NA LEI E NA GUERRA: POLÍTICAS INDÍGENAS E INDIGENISTAS NO CEARÁ (1798-1845)

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

JOÃO PAULO PEIXOTO COSTA

NA LEI E NA GUERRA: POLÍTICAS INDÍGENAS E INDIGENISTAS NO CEARÁ (1798-1845)

CAMPINAS 2016

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

C823n

Costa, João Paulo Peixoto, 1986CosNa lei e na guerra : políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845) / João Paulo Peixoto Costa. – Campinas, SP : [s.n.], 2016. CosOrientador: Silvia Hunold Lara. CosTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Cos1. Índios da América do Sul - Ceará - Aspectos políticos. 2. Índios da América do Sul - Ceará - Estatuto legal, leis, etc.. 3. Política indigenista. 4. Brasil - História militar. 5. Ceará - História - Séc. XIX. I. Lara, Silvia Hunold,1955-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: In law and in war Palavras-chave em inglês: Indians of South America - Ceara - Politica aspects Indians of South America - Ceara - Legal status, laws, etc. Indigenous policy Brazil - History, militar Ceara - History - 19th century Área de concentração: História Social Titulação: Doutor em História Banca examinadora: Silvia Hunold Lara [Orientador] Maria Regina Celestino de Almeida Vânia Maria Losada Moreira Fernanda Sposito Ricardo Pirola Data de defesa: 30-11-2016 Programa de Pós-Graduação: História

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos professores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 2 de dezembro de 2016, considerou o candidato João Paulo Peixoto Costa aprovado.

Prof. Dra. Silvia Hunold Lara

Prof. Dra. Maria Regina Celestino de Almeida

Prof. Dra. Vânia Maria Losada Moreira

Prof. Dra. Fernanda Sposito

Prof. Dr. Ricardo Pirola

A ata de Defesa, assinada pelos membros Comissão Examinadora, constam no processo de vida acadêmica do aluno.

A John Manuel Monteiro, José Marques de Souza Neto, Renata Calábria, e Maria da Conceição Cardoso Costa (a bença vovó!)

A Jordana, meu cheiro, meu sorriso, meu todo dia, o grande amor da minha vida!

“Ai também de vós, doutores da Lei, que carregais os homens com pesos que não podem levar, mas vós mesmos nem sequer com um dedo vosso tocais os fardos. [...] Ai de vós, doutores da Lei, que tomastes a chave da ciência, e vós mesmos não entrastes e impedistes aos que vinham para entrar”. (Lc 11, 46 e 52).

AGRADECIMENTOS A humildade deveria ser obrigatória na formação de um historiador. Parece-me até injusto atribuir apenas a mim a autoria de um trabalho que contou com o apoio e a colaboração de tantas pessoas, de quem tenho uma gratidão incalculável. Agradeço a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, pelo apoio financeiro a esta pesquisa. Muito obrigado Isac do Vale, meu professor e um dos primeiros incentivadores a seguir esse ofício que tanto amo. Agradeço a todos os meus familiares do Ceará e do Piauí (se eu fosse citá-los nominalmente precisaria de mais 4 anos, mas amo todos!) e a família da minha esposa, especialmente a querida dona Yolanda e ao saudoso e inesquecível seu Zé Ribeiro, por tanta hospitalidade e carinho. Juliana Aragão, minha orientadora do mestrado na UFPI, muito obrigado por tudo o que fez para que eu realizasse aquilo que, de tão distante, nem era sonho há uns anos atrás. De diversas cidades, vários colegas me ajudaram com leituras, conversas, muitas críticas e até mesmo com o “tráfico” de documentos digitalizados. Agradecerei sempre a Carlo Romani, Gerson Menezes, Almir de Oliveira, Jóina Borges, Johny de Araújo, Edson Silva, Mariana Dantas, Ricardo Medeiros, Maico Xavier, Lígio Maia, Ricardo Pirola, Fernanda Sposito, Maria Regina de Almeida e Vânia Moreira. Serei sempre grato ao povo mais referenciado e enaltecido da historiografia cearense: os ilustres Etevaldo, Joãozinho, Paulo Cardoso, Márcio Porto, Acrísio, Jota, Jorismar, André Frota e todos que fazem o Arquivo Público do Estado do Ceará, corresponsáveis de tantos trabalhos. São imensos o carinho e a gratidão aos meus amigos de Fortaleza e Teresina Amanda, Thiago, Pedro, Thaís, Caio, Camila, João (intelectual), Luiz, Aristides, Meire, Thiago, Patrícia, Kim, Iris, Gabriel, Renata, Jan, Nanda, Thiago, Sofia (intelectual), Airton, Carol e Camila, que tanto perturbaram meu juízo e nunca deixaram que esta trajetória fosse um caminho solitário. E entre Campinas e São Paulo, novos e velhos amigos foram importantíssimos nesses tempos longe de casa. Zé, Felipe, Manoel, Matheus, Ludmila, Rodrigo, Manuela, Tathy, Andy e meus primos Athayde Neto (Taia, Ataia, Atalaia...), Raquel, Marcos e Herbene, muito obrigado por essa amizade que nunca vou esquecer. Valeu negrada!

John Manuel Monteiro, como eu queria ter tido mais tempo. Diante da minha total incompetência em me expressar, só queria te agradecer por ter acreditado em mim. Silvia Hunold Lara teve a árdua missão de me orientar depois de algo difícil. A você, minha gratidão é eterna por ter aturado minhas teimosias durante todo esse período. Obrigado pela paciência, presteza, profissionalismo e por tudo que me ensinou. Mamãe, papai, Lia, Ruy e Bia: tudo de bom que eu faço na vida eu devo ao amor incondicional de vocês. Jordana, minha princesa linda, que tanto cuida e em tudo ama. Meu projeto de vida é fazer você feliz todos os dias. Te amo tanto! E o melhor ainda está por vir... Agradeço a Deus, que eleva os humildes, que me trouxe de volta, que é todo amor e misericórdia!

RESUMO A promulgação da Carta Régia de 1798, que revogou o Diretório dos Índios, não resultou em qualquer efeito em território cearense. Quando a lei pombalina foi finalmente extinta no Ceará em 1845, cedeu lugar ao Regulamento das Missões, que se tornou a primeira lei indigenista geral do império brasileiro. No contexto de crise do Antigo Regime e formação do Estado nacional, as relações sociais mudaram em consonância com redefinições da condição jurídica dos indígenas e com uma série de conflitos armados. A legislação produzida nessa conjuntura recebe destaque neste estudo por ter sido um dos definidores dos confrontos entre políticas indígenas e indigenistas em torno da caracterização do lugar social dessas populações. Por meio dela é possível analisar as transformações da condição política dos índios no Ceará, considerando a relação entre as leis e os índios, a passagem da categoria de súditos da Coroa portuguesa para a de cidadãos brasileiros e suas implicações nas reivindicações dos índios relativas à sua própria condição jurídica e na sua participação em eventos militares. São questões centrais na análise: a situação de permanência do Diretório em território cearense no século XIX; o contexto legal do período de formação do Estado nacional brasileiro e a relação dos índios com o arcabouço normativo; as variadas formas de classificação dos índios e gentios na legislação indigenista de Portugal e do Brasil. A questão bélica tem igual evidência e é focalizada na segunda parte da tese. A defesa sempre foi uma das principais funções das populações indígenas integradas no corpo social do império português. Mais do que meros soldados recrutados a serviço do Estado (lusitano ou brasileiro), era na guerra, assim como na lei, que os índios se posicionavam nos eventos de conflito político e manifestavam seus interesses e expectativas. Têm destaque neste estudo o recrutamento militar indígena, a legislação referente ao tema e a agência política dos oficiais índios; o envolvimento militar indígena no contexto da independência e nas revoltas liberais oitocentistas; as transformações da relação dos índios com as Coroas lusitana e brasileira, com o liberalismo e com o antilusitanismo a partir de suas experiências.

PALAVRAS-CHAVE: Índios; Leis; Guerra; Política; Ceará.

ABSTRACT The promulgation of the Royal Letter of 1798, which revoked the directory of the Indians, resulted in no significant effect in the territory of Ceará. When Pombalina law was finally repealed in Ceará in 1845, it was replaced by the Missions Regulation and it became the first indigenous general law of the Brazilian empire. In this context of Old Regime crisis and with the formation of the national State, social relationships have changed alongside legal and regulatory renewal and multiple armed conflicts. The legislation involving this period is investigated in this study as it defined the clashes between Indians and indigenous policies regarding the social portrayal of these populations. In contrast, the war issue reveals equal evidence. Security has always been one of the main functions of indigenous people that are socially integrated into the Portuguese Empire. The Indians represent more than mere labour for the State service (Lusitanian or Brazilian) either in war or law, standing during political conflict events and demonstrating their interests and expectations. This work aims to analyse the transformation of these political conditions of the Indians in Ceará, considering the relationship between the laws during this period and the Indians, the passage of the category from subjects of the Portuguese monarchy for Brazilian citizens and the implications in the Indian's claims in regard to their legal conditions, rights and to their role in military events.

KEY-WORDS: Indians; Laws; War; Politics; Ceará.

FIGURAS, TABELAS E MAPAS

FIGURAS

Figura 1: Francisco Bento Maria Targini, Visconde de São Lourenço. 1819........................ 53

TABELAS

Tabela 1: Tropas militares no Ceará em 1814...................................................................... 208 Tabela 2: Mapa da força militar da tropa, milícias e ordenanças da capitania do Ceará Grande (1814).................................................................................................................................... 209

MAPAS

Mapa 1: Vilas e povoações de índios no Ceará no início do século XIX................................ 26 Mapa 2: Locais de atuação dos índios durante os motins de Maranguape e Vila Viçosa..... 144 Mapa 3: Locais de atuação dos índios peticionários à justiça................................................ 150 Mapa 4: Locais de atuação dos gentios nas fronteiras do Ceará........................................... 185 Mapa 5: Postos de guarda das tropas indígenas na costa cearense, outubro de 1822........... 256 Mapa 6: Locais de atuação dos índios durante a guerra de independência no Piauí............ 265 Mapa 7: Locais de atuação dos índios do Ceará na Revolução Pernambucana de 1817...... 289 Mapa 8: Locais de atuação dos índios do Ceará na Confederação do Equador.................... 313 Mapa 9: Locais de atuação dos índios do Ceará na Balaiada............................................... 334

SIGLAS – FONTES ARQUIVÍSTICAS Arquivo Histórico Ultramarino – AHU Fundo Conselho Ultramarino – CU Série Brasil-Ceará – 006 Arquivo Nacional – AN Câmara de Messejana – 8J Confederação do Equador – IN Gazeta do Ceará – J040 Ministério da Guerra – OG Secretaria de Governo do Ceará – 88 Série Interior – AA Série Justiça – A1 Série Marinha – XM Arquivo Público do Estado do Ceará – APEC Fundo Governo da Capitania – GC Fundo Governo da Província – GP Atas da Junta do Governo Provisório – AJ Correspondências Expedidas – CO EX Fundo Câmaras Municipais – CM Fundo Ministérios – MN Ministério da Guerra – MG Ministério da Marinha – MM Ministério da Justiça – MJ Ministério do Império – MI Arquivo Público do Estado do Piauí – APEPI Série Independência – SI Série Balaiada – SB Biblioteca Nacional – BN

SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 16

1ª PARTE: NA LEI CAPÍTULO 1 – O DIRETÓRIO NO CEARÁ APÓS 1798 1.1.O “VAZIO LEGISLATIVO”................................................................................... 39 As outras Cartas Régias de 1798................................................................................... 44 1.2.AS DEFESAS DO DIRETÓRIO............................................................................. 47 O grau de liberdade........................................................................................................ 52 Os males da perfeita liberdade...................................................................................... 62 CAPÍTULO 2 – O ESTADO NACIONAL E A LEGISLAÇÃO INDIGENISTA 2.1. CIDADÃOS DESPOSSUÍDOS..................................................................................... 71 2.2. A VITÓRIA DOS PROPRIETÁRIOS......................................................................... 83 2.3. TODAS AS CAUSAS DA DECADÊNCIA.................................................................. 89 CAPÍTULO 3 – OS INDÍGENAS DIANTE DA LEGISLAÇÃO................................... 103 3.1. "OS ÍNDIOS DESSA VILA NÃO QUEREM TER DIRETOR”............................ 107 O “alumiado” João de Souza Benício e os índios da Ibiapaba............................ 111 3.2. "NÃO DEIXAM DE SUSPIRAR PELA SUA LIBERDADE"................................ 119 O motim dos índios de Maranguape...................................................................... 124 Senhores do Brasil, escória da humanidade......................................................... 131 O vigário Felipe Benício Mariz e os índios de Viçosa.......................................... 138 3.3. À MERCÊ DO DESAMPARO: OS ÍNDIOS E OS JUÍZES................................... 144 CAPÍTULO 4 – ÍNDIOS, GENTIOS, VASSALOS, CIDADÃOS.................................. 152 4.1. "DAR A PRÓPRIA VIDA POR VOSSA MAJESTADE"....................................... 155 4.2. "CIDADÃOS SEM A MENOR SOMBRA DE DÚVIDA"...................................... 161 4.3. ATACÁ-LOS COM BRANDURA, MATÁ-LOS COM PRUDÊNCIA.................. 171 A pátria agreste e os dissabores da sociedade....................................................... 181

2ª PARTE: NA GUERRA CAPÍTULO 5 – O SERVIÇO MILITAR INDÍGENA................................................... 188 5.1. DO DIRETÓRIO À GUARDA NACIONAL............................................................ 190 5.2.

ATUAÇÃO

BÉLICA,

DISCIPLINA

MILITAR

E

CONSCRIÇÃO

INDÍGENA.......................................................................................................................... 203 “A mais bela disposição para os serviços da Marinha”....................................... 212 CAPÍTULO 6 – AUTORIDADES MILITARES INDÍGENAS..................................... 216 6.1. NOMEAÇÕES E JURAMENTOS............................................................................. 222 6.2. A ATUAÇÃO DOS OFICIAIS INDÍGENAS........................................................... 231

CAPÍTULO

7



OS

ÍNDIOS

DO

CEARÁ

NAS

GUERRAS

DE

INDEPENDÊNCIA............................................................................................................ 244 7.1. O ARMAMENTO GERAL DOS ÍNDIOS................................................................ 251 7.2. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NAS LUTAS DO PIAUÍ.................................................. 259 “Mata que é corcunda!”......................................................................................... 265 CAPÍTULO 8 – ATUAÇÃO INDÍGENA NAS INSURREIÇÕES LIBERAIS 8.1.

OS

ÍNDIOS

DO

CEARÁ

NA

REVOLUÇÃO

PERNAMBUCANA

DE

1817....................................................................................................................................... 277 “Viva os índios do Ceará!”..................................................................................... 279 8.2. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NA CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR...................... 289 “Temos por brasão o arco e a flecha”................................................................... 293 “De grande préstimo na restauração da ordem”................................................. 303 “Dignos da imperial contemplação”...................................................................... 310 8.3. ÍNDIOS DO CEARÁ NA BALAIADA...................................................................... 313 “Raimundo Gomes, nosso irmão”............................................................................ 317 Antes viver sob as armas do que o jugo das autoridades.................................... 322 Amor ao soberano e adesão ao seu governo.......................................................... 327

CONCLUSÃO..................................................................................................................... 336

FONTES E BIBLIOGRAFIA

FONTES ARQUIVÍSTICAS Arquivo Histórico Ultramarino............................................................................. 343 Arquivo Nacional..................................................................................................... 343 Arquivo Público do Estado do Ceará.................................................................... 343 Arquivo Público do Estado do Piauí...................................................................... 344 Biblioteca Nacional – Seção de Manuscritos......................................................... 344 FONTES IMPRESSAS LEGISLAÇÃO Coletâneas................................................................................................................ 344 Avulsas...................................................................................................................... 345 Disponíveis na internet.......................................................................................... . 345 RELATÓRIOS DE PRESIDENTE DA PROVÍNCIA........................................ 347 RELATOS E MEMÓRIAS.................................................................................... 347 OUTRAS FONTES IMPRESSAS......................................................................... 348 BIBLIOGRAFIA CITADA................................................................................................ 349

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INTRODUÇÃO "muito poucos são os que não os odeiam de morte, sem os conhecer nem ao menos de leve" (BEZERRA, Antônio. Caboclos de Monte-mor. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, ano XXX, 1916, p. 297)

"Leais e valorosos"! "Nada vos resistirá. Invejo-vos a glória de que todos vós ides cobrir"!1 Essas louvações bem que poderiam ter se dirigido a algum líder militar ou oficial branco de alta patente (como esses cujos nomes batizam ruas, praças e cidades), mas referiam-se, na verdade, a uma tropa de índios armados de arcos e flechas. Durante a Revolução Pernambucana de 1817, na iminência de uma guerra que colocava em risco a integridade política do império português, o fiel súdito Manuel Ignácio de Sampaio, governador do Ceará, se viu envolto em dificuldades estratégicas. Além da seca, que havia destruído lavouras desde o ano anterior e acentuara ainda mais a situação de penúria da capitania, o governo sofria com a falta de verbas e armamentos para enfrentar liberais. Um dos grupos recrutados era de índios, incumbidos da missão de combater os insurgentes fugitivos entre as matas das fronteiras cearenses com a Paraíba e o Rio Grande do Norte, a quem o governador dirigiu aquela proclamação repleta de elogios e vivas. Apesar das palavras de incentivo durante a guerra, as mesmas não haviam sido costumeiras na relação do governo do Ceará com os índios no início do século XIX, e contradiziam o ambiente de repressão em que viviam. Poucos meses após os conflitos com os liberais, ciente de que os indígenas da vila de Arronches estavam entregues à "mandriice e embriaguez, que em nada mais cuida[vam] do que em divertimentos de toda a qualidade", o governador Sampaio ordenou ao diretor José Agostinho Pinheiro que fizesse com que seus dirigidos abrissem a maior quantidade de roçados possível. Caso continuassem as desordens decorrentes do "abuso excessivo da venda de bebidas espirituosas", proibidas pela "disposição dos § 40 e 41 do Diretório dos Índios do Pará e Maranhão", iria proceder "criminalmente contra os transgressores". Os "rebeldes negligentes e preguiçosos" iriam ser capturados e "sumariados pela polícia, como vadios e membros podres da sociedade".2 A vida das comunidades indígenas no final do período de domínio português era, como vemos, envolta em contradições. A legislação indigenista no império lusitano, ao 1

"Proclamação aos índios do Ceará quando partiram para o ataque das capitanias sublevadas", de Manuel Ignácio de Sampaio. Fortaleza, 26 de maio de 1817. APEC, GC, livro 28, p. 45V. 2 De Manuel Ignácio de Sampaio a José Agostinho Pinheiro. Fortaleza, 16 de outubro de 1817. APEC, GC, livro 21, p. 184V.

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mesmo tempo em que forçava os índios a trabalhar para o Estado e para particulares, também os reconhecia como vassalos do rei e lhes concedia uma série de garantias políticas oriundas da condição de súditos. Pelos artigos do Diretório, citado pelo governador e vigente no Ceará até meados dos oitocentos, era dada aos índios a posse das suas terras e dos cargos nas câmaras de suas vilas. A relação que a Coroa e seus representantes locais estabeleciam com os indígenas variava de acordo com a posição que cada indivíduo ocupava na hierarquia das comunidades, criada pela própria lei portuguesa ao instituir posições de lideranças – como vereadores, juízes, capitães e sargentos-mores – e ao conferir a eles privilégios e mercês. Já aos índios comuns estava reservada maior vigilância, repressão e obrigações mais duras de trabalho. O posicionamento indígena diante das determinações do governo era, da mesma forma, diversificado. Se alguns desobedeciam às diretrizes, seja por meio do consumo excessivo de bebidas alcoólicas ou de fugas e indisciplinas, outros, em geral lideranças, se mostravam fiéis vassalos dos monarcas lusitanos. Em julho de 1817, pouco depois dos confrontos em Pernambuco, os índios de Viçosa, que não tinham sido enviados para as fronteiras, relataram ao rei, por meio de um abaixo-assinado, que seu corpo de ordenanças havia ficado "inquieto, pelo ardente desejo que tinham todos de passar em armas, derramar a última gota de sangue, e dar a própria vida por Vossa Majestade, com aquele mesmo zelo de D. Felipe de Souza e Castro",3 ancestral do então capitão-mor da vila Ignácio de Souza e Castro. Dez anos após os conflitos em Pernambuco, a condição política dos índios mudou bastante: de vassalos do rei de Portugal e recebedores de elogios e mercês, 4 passaram a ter cidadania brasileira. Ganharam uma nova condição jurídica, mas ao mesmo tempo perderam gradativamente uma série de garantias oriundas do Antigo Regime português ao fazerem parte do novo Estado nação. Por meio de leis promulgadas após a independência não mais tinham acesso a cargos nas câmaras de suas vilas e patentes militares, e suas terras passaram a ser administradas por juízes de paz e de órfãos, autoridades comprometidas com os interesses dos grandes proprietários.5 Por volta de 1826, os índios de Monte-mor Velho chegaram a ser 3

Ignácio de Souza e Castro, e demais índios de Viçosa, ao rei d. João VI. Vila Viçosa Real, 31 de julho de 1817. AN, AA, IJJ9 518. 4 Após os conflitos, os índios do Ceará, Paraíba e Pernambuco receberam isenções em impostos por meio do Decreto de 25 de fevereiro de 1819. Cf. COLEÇÃO das leis do Brasil de 1819. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, p. 06. 5 Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova forma às câmaras municipais, marca suas atribuições e o processo para sua eleição, e dos juízes de paz. Disponível em: . Acesso em: 07 de fevereiro de 2015. Lei de 18 de agosto de 1831. Cria as guardas nacionais e extingue os corpos de milícias, guardas municipais e ordenanças. Disponível em:

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expulsos de sua povoação, atingidos pelo processo de concentração fundiária característico do século XIX que promoveu a formação de latifúndios e desapropriações de comunidades indígenas em áreas de colonização antiga.6 Desesperados, pediram ao rei dom Pedro II para voltar à sua terra natal, já que sua retirada forçada fora uma

"manifesta infração da Constituição do Império, que no título 2º, artigo 6º, os declara cidadãos, sem a menor sombra de dúvida, porque são nascidos no Brasil, e são ingênuos: logo, assim, devem gozar de todos os direitos que a Constituição garante aos cidadãos".7

No final da década seguinte, a situação dos índios, os "gloriosos heróis" de anos anteriores, parecia lamentável. Em estado de miséria, eram "vítimas do desleixo, do abandono, da pilhagem", segundo o presidente da então província do Ceará, João Antônio de Miranda. De acordo com seu relatório de 1839, os próprios indígenas, esbulhados de suas terras, pediam "um pastor, que os gui[asse]; outros, o restabelecimento de seu Diretório e a restituição dos bens que possuíam; outros, finalmente, recordando-se lastimosos dos tempos e dos favores d'El Rei d. João VI, ped[iam] o governo do Rei velho".8 As expressões saudosas de outros tempos indicam a piora na vida dessa população, tão drástica e em tão pouco tempo. Mesmo com toda vigilância e repressão cotidianas no final do Antigo Regime português, muitos índios eram fieis ao rei de Portugal. Segundo Maria Regina de Almeida, valorizavam o período colonial e a monarquia pelas garantias concedidas, ameaçadas pelo contexto mais propício à usurpação fundiária no novo Estado nacional no início do século XIX. A autora também chama atenção que, em muitos conflitos, os índios integrados à colonização "não questionavam o sistema, mas o desrespeito às leis desse sistema. Sentiam-se parte dele, súditos do rei",9 como abertamente demonstraram os de Viçosa. Isso se aplicava muito mais às lideranças das vilas, mas o sentimento também se fazia presente entre os tidos . Acesso em: 7 de janeiro de 2015. Decreto de 03 de junho de 1833. Encarrega da administração dos bens dos índios aos juízes de órfãos dos municípios respectivos. Disponível em: . Acesso em 29 de janeiro de 2015. 6 CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Política indigenista no século XIX. História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 141. 7 De José Francisco do Monte, e demais índios de Monte-mor Velho, ao rei dom Pedro II. Messejana, sem data. BN, C-750, 29. 8 MIRANDA, João Antônio de. Discurso que recitou o excelentíssimo Sr. Dr. João Antônio de Miranda, presidente desta província, na ocasião da abertura da Assembleia Legislativa Provincial, no dia 1º de agosto do corrente ano. Fortaleza: Tipografia Constitucional, 1839, p. 24. 9 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Comunidades indígenas e Estado nacional: histórias, memórias e identidades em construção (Rio de Janeiro e México – séculos XVIII e XIX). In: ABREU, Marta; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 192 e 194.

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como "vadios", aqueles que se encontravam abaixo nas hierarquias. Ou seja, de maneira geral, o enfrentamento ao domínio português se dava por meio da insubordinação contra o ordenamento social imposto aos índios que não ocupavam posições de comando ou prestígio, quanto à forma como deveriam aproveitar o tempo, em relação ao trabalho e aos costumes familiares e religiosos, apesar de verem na Coroa a proteção diante dos abusos de potentados rurais, diretores e párocos. Já as lideranças indígenas, mais do que refúgio, entendiam a monarquia como fonte e mantenedora de sua autoridade, demonstrando gratidão e fidelidade, mesmo agindo diversas vezes em defesa de suas comunidades. Em contrapartida, as situações negativas posteriores à independência, especialmente no período regencial, vieram para todos os índios, resultado das políticas indigenistas do novo país que visavam a extinção do status jurídico específico e das proteções, fruto também do liberalismo e da individualização de suas terras. Nessa conjuntura, o discurso dos líderes indígenas precisava se adaptar, construindo-se "conforme as circunstâncias e os interesses" e assumindo, quando necessário, "o discurso liberal, defendendo o direito dos índios à propriedade e à cidadania", assim como fizeram os de Monte-mor Velho ao citar a Constituição brasileira de 1824. Não deixavam, contudo, de ter culturas políticas baseadas "nos três séculos de disputas e negociações" e "fundamentadas na legislação do Antigo Regime, que lhes dera condições distintas da dos demais vassalos", 10 como afirma Almeida e se pode observar nas "saudades do rei velho" registradas em 1839 por Miranda. A insistência das lideranças indígenas em amparar sua atuação política na lógica colonial portuguesa durante os primeiros anos do Brasil independente não era, como o leitor pode pensar a priori, sinal de descompasso em relação à situação histórica em que viviam. Para José Reinaldo Lopes, a legislação brasileira se apropriou da lusitana,11 e segundo Carlos Garriga e Andreia Slemian, as independências na América ibérica, inclusive no Brasil, não promoveram uma ruptura com a ordem jurídica tradicional,12 ainda que estas passassem a ser operadas em novo contexto. A própria vigência do Diretório em parte significativa do território do país até meados do século XIX é disso um claro exemplo. São muitos os trabalhos que se propõem a analisar as sociedades indígenas que viveram sob o regime desta lei setecentista, norma que substituiu o poder dos religiosos sobre essa população e que tinha como objetivo equipará-los aos brancos enquanto súditos da Coroa 10

Ibid., p. 204-205. Cf. LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade do século XIX. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 200-201. 12 GARRIGA, Carlos. SLEMIAN, Andreia. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América Ibérica (C. 1750-1850). Revista de História, n. 169, 2013, p. 203. 11

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portuguesa. Promulgada inicialmente para o Grão-Pará em 1757 e estendida ao resto do Brasil no ano seguinte, a legislação visava regulamentar as leis de liberdade de 1755, fazendo dos índios uma importante ferramenta de povoamento e exploração de terras não desbravadas na colônia, sem restringir seu emprego como mão-de-obra para os colonos e o Estado. Dentre as medidas mais marcantes estavam a elevação das antigas aldeias religiosas a vilas, a criação de cargos de câmara ocupados pelos próprios índios, a obrigatoriedade da execução de trabalhos de aluguel em lavouras próprias e na de particulares e a presença do diretor, principal representante do poder temporal da Coroa e responsável pela distribuição dos trabalhadores. De acordo com Isabelle da Silva, o objetivo do Diretório era a supressão do poder dos religiosos “sobre a vida dos índios e a emancipação e a integração destes à sociedade colonial”. Para a plena inserção dos indígenas como vassalos da Coroa portuguesa, algumas orientações na legislação eram especialmente destacadas pela autora, como a “massificação da presença de brancos” nas vilas. Ela enfatiza ainda que o “trabalho indígena, o comércio e a instituição de impostos [eram], sem dúvida nenhuma, matérias centrais do Diretório”.13 Segundo Ricardo Pinto de Medeiros, a lei indigenista em questão fazia parte das mudanças do período pombalino que visavam “promover a agricultura e o comércio, e aumentar os laços da exploração colonial”. Para o autor, a integração dos índios à sociedade portuguesa era contrária à política de segregação que havia caracterizado a administração missionária.14 Medeiros também destaca a importância dos oficiais de ordenança indígenas na implantação da ordem pombalina nos sertões do atual Nordeste, possibilitada pelas imprescindíveis negociações entre a Coroa e os povos indígenas. O enobrecimento das lideranças era decorrente dos serviços das armas dos índios em nome do rei e da expansão dos seus domínios.15 A esse respeito, tem destaque a reunião promovida no Recife pelo governador de Pernambuco Luís Diogo Lobo da Silva em 1759 com as principais lideranças indígenas do território que administrava, evento que marcou a instalação do Diretório na região. O primeiro encontro ocorreu em 29 de maio, contando com a presença de mais de 100 índios. Do Ceará, estiveram presentes João Soares Algodão, chefe da aldeia da Parangaba (elevada a vila de Arronches) e dom Felipe de Souza e Castro, mestre de campo da aldeia da Ibiapaba (que

13

SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 80-82. 14 MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da América portuguesa. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, p. 116. 15 Ibid., p. 123, 132-136.

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passou a ser Vila Viçosa). O objetivo da reunião era acertar, com o consentimento dos índios, a elevação das aldeias religiosas a vilas e o pleno funcionamento das diretrizes pombalinas. No dia 6 de junho foi promovido um pomposo jantar em comemoração ao aniversário de dom José I, ocasião em que Lobo da Silva presenteou os líderes indígenas, reconhecendo não apenas o prestígio social dos visitantes, mas também seu papel crucial no estabelecimento dos desígnios imperiais. Para Lígio Maia, a reunião “serviu para os índios como uma espécie de atualização de sua vassalagem”, bem como constituiu o “ponto chave para a compreensão da importância das lideranças indígenas na aplicação do Diretório” pois, sem elas, o novo sistema era “simplesmente impraticável”.16 Como afirma Isabelle da Silva, o evento foi um “genuíno ritual de pompas” em que “os índios eram os sujeitos a serem cortejados”, possivelmente suscitando “neles um certo sentimento de poder, tanto quanto suscitou no governador o respeito pelo poder militar deles”.17 Ciente das particularidades da região e da importância das lideranças indígenas para o bom andamento das diligências, Lobo da Silva criou ainda antes da reunião a Direção, uma versão adaptada do Diretório para Pernambuco e suas capitanias anexas.18 As diferenças entre as duas normativas estavam, essencialmente, nas condições de trabalho e na repartição das terras. Pela Direção, estas deveriam ser feitas de acordo com a posição social dos índios, e não da maneira igualitária como previa o Diretório, ressaltando a ênfase na hierarquia e no respeito aos postos das chefias que deveriam ser promovidos nas comunidades.19 Contudo, permanecia o entendimento da posse dos índios sobre suas terras, a partir dos preceitos liberais que embasaram as políticas pombalinas.20 A respeito do trabalho indígena, a adaptação do governador previa que apenas um terço dos índios poderia se ausentar para prestação de serviços, diferente da metade prescrita na norma original, destacando o maior foco nas atividades agrícolas para as capitanias anexas

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MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e identidade no Ceará colonial – século XVIII. Tese (doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 271. 17 SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande, p. 126. 18 DIREÇÃO com que interinamente se devem regular os índios das novas vilas e lugares eretos nas aldeias da capitania de Pernambuco e suas anexas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XLVI, parte I, 1883, p. 121-171. 19 A nova proposta de repartição de terras não foi autorizada pela Coroa, mas, segundo Maia, provavelmente sua proibição não foi sempre obedecida. Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 239. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índio do Rio Grande do Norte sob o Diretório pombalino no século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 84. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da América portuguesa, p. 118. 20 Cf. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade, p. 29-30.

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a Pernambuco em relação ao norte do Brasil.21 Para Isabelle da Silva, as medidas de Lobo da Silva sugerem que “havia certo grau de autonomia do governador no trato das diretrizes do novo regulamento”, objetivando o enriquecimento do Estado português “através do comércio, este sustentado pelo crescimento da produção agrícola”.22 Curiosamente, não encontrei menções à Direção na documentação analisada: o termo referente à norma pombalina era, sempre, Diretório. Apesar dos cuidados de Lobo da Silva e da atuação das lideranças indígenas, as reações à implantação do Diretório no Ceará foram diversas, variando “da obediência à revolta contra os diretores, da reivindicação [de] serem incorporados ao projeto pombalino às ameaças contra o bom funcionamento do sistema”. Isabelle da Silva entende esta lei setecentista como “parte das relações sociais” que passaram a existir em território cearense, onde uma série de exigência em relação à disciplina do trabalho era simultânea às garantias políticas indígenas. Mesmo que não exercesse controle completo sobre a sociedade, o Diretório não podia ser negado, sendo operacionalizado por diferentes estratos sociais, “cujos produtos eram antes de tudo frutos das relações de poder e práticas sociais”.23 Analisando a realidade de Vila Viçosa, Lígio Maia afirma que os índios “tinham consciência de sua condição de livres”, e lutavam, amparados na lei, pela sua plena observância. Por isso, “mesmo em condição de dominação e sob uma drástica vigilância em seu trabalho e nas formas de sua vivência nas povoações pombalinas, os índios vilados impuseram limites à política do Diretório”.24 No ano de 1798, por meio de uma Carta Régia, a lei indigenista pombalina foi oficialmente abolida no Grão-Pará e em outras regiões do Brasil, num contexto de ocupação, exploração e conflitos em suas fronteiras externas e internas, como veremos no primeiro capítulo. A medida teve alcance geográfico limitado, e em muitas capitanias, como na do Ceará, o Diretório continuou vigente, atravessando períodos de intensa transformação e 21

Cf. PIRES, Maria Idalina Cruz. Resistência indígena nos sertões nordestinos no pós-conquista territorial: legislação, conflito e negociação nas vilas pombalinas 1757-1823. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2004, p. 204- 214. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade, p. 82-84. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 237. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da América portuguesa, p. 117-118. CUNHA, Elba Monique Chagas da. Sertão, sertões: colonização, conflitos e História indígena em Pernambuco no período pombalino (1759-1798). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, 2013, p. 57. SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco: historiografia, legislação, política indigenista e povos indígenas no sertão de Pernambuco (1801-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2015. DANTAS, Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do estado nacional brasileiro: revoltas em Pernambuco e Alagoas (18171848). Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2015. 22 SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande, p. 135. 23 Idem, p. 153 e 160. 24 MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 309-311.

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configurações políticas bastante distintas, nas quais os índios vivenciaram mudanças em seu estatuto social e jurídico de igual profundidade. Como lembra Isabelle da Silva, em território cearense, o Diretório “permaneceu em vigor até ser substituído pela Diretoria Geral dos Índios, em meados do século XIX”.25 Os debates que relacionam as comunidades indígenas com a formação do Estado nacional brasileiro, tanto dos pontos de vista político como legislativo, contudo, ainda são iniciais na historiografia. Apesar das reflexões importantes escritas há mais de 20 anos por Marivone Chaim, Carlos de Araújo Moreira Neto e Manuela Carneiro da Cunha 26 sobre a política e a legislação indigenistas, e dos trabalhos produzidos sobre a temática indígena e as normas legais a ela relacionadas nas primeiras décadas do Brasil independente, pouco se discutiu até hoje acerca da vigência do Diretório nos oitocentos. Consequentemente, são pouco conhecidas as nuances e transformações da condição política dos índios ao longo deste contexto, tanto pelo viés das ações do Estado – seja ele português ou brasileiro, das capitanias ou provincial – quanto dos índios. Se a legislação definia – ou tentava definir – o lugar dessa população, governantes e indígenas lidaram constantemente com ela, fazendo das leis um campo de disputas. Além disso, levando em conta que o serviço das armas era um dos principais caminhos da ação política indígena, são igualmente escassas as pesquisas sobre a atuação militar dos índios durante esse período, tendo se mostrado especialmente importantes em eventos de contestação social no país. Esta tese visa analisar as transformações da condição política dos índios no Ceará entre 1798 – ano de promulgação da Carta Régia que revogou o Diretório dos Índios, mas que não teve qualquer efeito em território cearense – e 1845, quando a lei pombalina foi finalmente extinta e cedeu lugar ao Regulamento das Missões, primeira lei indigenista geral do império brasileiro. O recorte também corresponde ao governo de dom João VI até o reinado de seu neto, dom Pedro II, atravessando, portanto, o processo de separação política brasileira e o período regencial. Neste contexto de crise do Antigo Regime e formação do Estado nacional, as relações sociais mudaram em consonância com redefinições jurídicas e de uma série de conflitos armados. O funcionamento legislativo, por um lado, tem papel de destaque neste estudo, na medida em que foi um dos definidores dos confrontos entre políticas indígenas e indigenistas 25

SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande, p. 84. CHAIM, Marivone Matos. Aldeamentos indígenas: Goiás, 1749-1811. São Paulo: Nobel; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-memória, 1983. MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia, de maioria a minoria: (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1988. CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Política indigenista no século XIX. Idem. Prólogo. Legislação indigenista no século XIX: uma compilação: 1808-1889. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992. 26

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em torno da caracterização do lugar social dessas populações. Concordo com Ivone Barbosa, para quem a legislação tem tanto o significado de evidência da ação do Estado quanto é “indício precioso para se auscultar a experiência social geradora da demanda de uma ordem legal”.27 É partindo deste pressuposto que pretendo analisar a relação entre as leis e os índios. Investigo, neste período de transição, a passagem da categoria de súditos da Coroa portuguesa para a de cidadãos brasileiros e suas implicações nas reivindicações dos índios relativas à sua própria condição jurídica (na luta pelas garantias de súditos e direitos de cidadãos) e na sua participação em eventos militares (quando recrutados ou amotinados em defesa dos monarcas e de sua liberdade). Por outro lado, a questão bélica tem igual evidência. Como ensinam diversos autores da nova história militar brasileira, a guerra é uma categoria pluridimensional, percebida de diversas maneiras pelas mais variadas culturas e passível de ser analisada em relação, por exemplo, a questões sociais, étnicas e políticas.28 No caso das populações indígenas integradas no corpo social do império português, a defesa sempre foi uma das suas principais funções – característica que contou, inclusive, com a implantação de hierarquias internas em que as lideranças militares tinham papel de relevo. Como afirma Juliana Lopes, para “os povos indígenas, a guerra era uma questão de vida, não de morte; uma afirmação de continuidade”, e “se caracterizava, antes de tudo, [como] uma prática cultural”.29 Bem mais do que meras peças de recrutamento a serviço do Estado (lusitano ou brasileiro), era na guerra, assim como na lei, que os índios se posicionavam nos eventos de conflito político e manifestavam seus interesses e expectativas. A escolha por priorizar a relação das comunidades indígenas com a legislação e os conflitos armados não se dá, necessariamente, em detrimento de outras questões igualmente relevantes, como, por exemplo, as relacionadas à posse da terra e à distribuição e exploração do trabalho indígena. A primeira adquiriu mais importância nas discussões indigenistas

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BARBOSA, Ivone Cordeiro. Cidadania em construção: a legislação provincial do Ceará. Apontamentos para uma história social do Estado brasileiro. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais: Estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará – compreendendo os anos de 1835 a 1861 pelo Dr. José Liberato Barroso [Ed. Fac-similada]. Fortaleza: INESP, tomo I, 2009, p. 31. 28 TEIXEIRA, Nuno Severiano. A história militar e a historiografia contemporânea. Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, Lisboa, ano XVI, nº, 1991, p. 71. WHELING, Arno. A pesquisa da história militar brasileira. Da Cultura, ano 1, nº 1, 2001, p. 35-26 e 41. PARENTE, Paulo André Leira. A construção de uma nova história militar. Revista Brasileira de História Militar, ano 1 (edição especial de lançamento), 2009, p. 5-9. SANCHES, Marcos Guimarães. A guerra: problemas e desafios do campo da história militar brasileira. Revista Brasileira de História Militar, ano 1, nº 1, 2010, p. 2 e 12-13. PEDROSA, Fernando Velôso Gomes. A história militar tradicional e a “nova história militar”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – Anpuh, 2011, p. 11-12. 29 ELIAS, Juliana Lopes. Militarização indígena na capitania de Pernambuco no século XVII: o caso Camarão. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 77-78.

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principalmente a partir do século XIX, com a expansão agrícola da promovida pela Coroa portuguesa, que atravessou a separação política brasileira e a formação do Estado nacional. Nesse contexto, os territórios indígenas foram particularmente visados pela ampliação latifundiária e transformados em áreas de produção. Já a mão-de-obra dos índios, que nunca estava desvinculada da questão da terra, sempre foi prioritária para a monarquia lusitana em sua colônia na América. O próprio Diretório era fruto da necessidade de os proprietários de terem acesso àquela força de trabalho que passou a ser considerada livre. Além disso, tais trabalhadores eram indispensáveis para as ambições do governo de Portugal de aumento da produtividade colonial. Mesmo no século XIX, quando a terra passou a ter cada vez mais destaque, a demanda pelo trabalho indígena não diminuiu, acentuando-se durante a crise de mão-de-obra no Brasil a partir da década de 1830. Cientes de sua importância para a Coroa portuguesa e das prerrogativas concernentes à sua condição de vassalos livres, os índios sempre atuaram politicamente para que suas terras, seu trabalho e sua liberdade fossem plenamente respeitados. Com a separação política do Brasil, a agência indígena se transformou em concomitância com as novas conjunturas do país. O objetivo desta tese, portanto, é analisar as transformações do estatuto legal e da condição política dos índios a partir de suas relações com os governos e outros agentes. Terra, trabalho digno, autonomia e liberdade eram garantias pelas quais as comunidades indígenas lutavam por meio de sua atuação política. Esta poderia se dar de diversas formas, como, por exemplo, a partir dos cargos de vereadores e juízes ocupados pelas lideranças em suas vilas, ou mesmo por insubordinações cotidianas por parte dos índios comuns. Diante da necessidade de executar um recorte temático – arbitrário, porém, inescapável – privilegio nesta pesquisa os âmbitos legais e bélicos, nos quais entendo que mais amplamente se manifestou o protagonismo indígena durante a crise do Antigo Regime português e a formação do Estado nacional brasileiro. Por um lado, estas populações conheciam bem as leis, por meio das quais as Coroas garantiam suas mercês e definiam seu lugar nas sociedades portuguesa e brasileira. Por outro, a integração dos índios no corpo de súditos lusitanos pelo serviço das armas – tema ainda carente de pesquisas por parte da historiografia – era previsto por lei e operado frequentemente pelos indígenas, cujos arcos e flechas eram símbolos de sua posição diante do monarca. Ou seja, era na lei e na guerra que os índios agiam politicamente, de forma predominante – mas não exclusiva –, em defesa de suas prerrogativas, em busca de condições

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dignas de trabalho, inviolabilidade de suas terras e respeito à sua condição de súditos ou cidadãos. A delimitação espacial da pesquisa se concentra nas vilas e povoações de índios, a maioria oriunda dos antigos aldeamentos religiosos fundados em meados dos séculos XVII e XVIII e que concentravam a maior parte da população indígena do Ceará, além de lugarejos vizinhos habitados por eles. As vilas eram Soure (atual Caucaia), Arronches (atual bairro da Parangaba, em Fortaleza), Messejana (bairro de Fortaleza), Monte-mor Novo (atual Baturité) e Vila Viçosa (atual Viçosa do Ceará). As povoações correspondiam a São Pedro de Baepina (atual Ibiapina) no município de Vila Viçosa, Almofala (atual aldeia da etnia tremembé, em Itarema) no território de Sobral e Monte-mor Velho (atual Pacajús) pertencente a Aquiraz.

Mapa 1: Vilas e povoações de índios no Ceará no início do século XIX

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Ceará disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ceará

A respeito da demografia das vilas de índios do Ceará no início do século XIX, Lígio Maia afirma que a população indígena era predominante, sendo diminuta a presença de pretos – mais numerosos em polos econômicos da capitania, como Sobral ou Icó. A exceção era Monte-mor Novo, a mais povoada de “extranaturais” – ou seja, não-índios que estabeleceram moradia na vila – em decorrência, segundo o autor, da produção de algodão da serra de

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Baturité, onde se localizava. A população indígena habitando em povoações e vilas de brancos era considerável, perfazendo 18% do total de índios, até, pelo menos, 1808.30 Também faz parte da análise empreendida nesta tese a região do Cariri, na fronteira cearense com Pernambuco e Paraíba, território de moradia dos chamados "gentios", povos nômades de variados etnônimos. Segundo Ricardo Pinto de Medeiros, muitos desses grupos haviam voltado a viver do corso após experiências missionárias, e chegaram a ser “violentamente reduzidos”, habitando algumas vezes em vilas.31 Tais populações foram atingidas com igual intensidade em sua condição jurídica pela mudança do regime político brasileiro e se posicionaram em diversas ocasiões – inclusive belicamente – em prol da manutenção de relações a elas benéficas e em defesa de sua liberdade. Os limites geográficos da análise também se estendem às capitanias vizinhas do Ceará, conforme a abrangência da atuação indígena. Parte da historiografia que aborda a legislação indigenista do período entre a promulgação da Carta Régia de 1798 e do Regulamento das Missões admite não ter conseguido explicar por que a Carta que aboliu o Diretório foi aplicada em algumas regiões, tendo, outras, presenciado a continuidade da norma pombalina (como aconteceu no Ceará). Fátima Lopes assume que “os historiadores não indicaram ainda algum documento pelo qual tenha sido também estendido" para o restante da colônia. Pela falta de registros que provem o contrário, a autora conclui que “o Diretório dos Índios não foi extinto para todo Estado do Brasil, permanecendo, portanto, em vigor na capitania de Pernambuco e suas anexas”.32 Alguns autores tentaram discorrer brevemente sobre a questão. Segundo Maria Hilda Paraíso, por conta das incongruências decorrentes da aplicação da Carta Régia de 1798 – como a decadência e a instabilidade social das povoações de índios – a lei pombalina "continuou a vigorar para os antigos aldeamentos até meados do século XIX".33 Maico Xavier afirma que o Diretório chegou a ser abolido porque já não "estava preenchendo plenamente estes interesses da Coroa no final dos anos setecentistas", e que sua vigência no Ceará no século XIX seria uma "contradição, ou indecisão, em relação à legislação indígena naquele

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Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 303-306. A porcentagem de índios vivendo em vilas e povoações de brancos provavelmente diminuiu a partir das políticas de controle e vigilância do governo de Manuel Ignácio de Sampaio, iniciado em 1812. Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção. 31 MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da América portuguesa, p. 121-122 e 138. 32 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade, p. 395-397 33 PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos sertões do leste. Salvador: EDUFBA, 2014, 93.

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ensejo".34 Não há, entretanto, qualquer indício de que a Coroa portuguesa tenha pretendido ampliar o espaço de aplicação da Carta Régia – inicialmente dirigida para o Pará – ou que os anos em que ela esteve em vigor tenham sido um "período de teste" para uma posterior extensão ao resto do Brasil. Para boa parte da historiografia, o "vazio legislativo" postulado por Manuela Carneiro da Cunha35, que caracterizaria essa conjuntura pela inexistência de uma diretriz geral para os índios no Brasil (apesar da farta quantidade de leis expedidas neste período sobre a questão), seria a razão para a continuidade do Diretório em algumas regiões. 36 Segundo Patrícia Sampaio, por exemplo, o fato de a Carta Régia de 1798 não ter se transformado em uma legislação indigenista geral gerou, na primeira metade dos oitocentos, uma lacuna legal. As "especificidades da legislação de 1798" teriam comprometido sua "aplicabilidade em outras áreas do país, restringindo seu caráter de política indigenista geral da Coroa", por dar "grande ênfase à questão da disponibilidade de trabalhadores".37 Segundo André Roberto Machado e Magda Ricci, a importância da incorporação indígena como mão-de-obra, inclusive no âmbito militar, teria sido confirmada pelo fato de que a maior parte dos integrantes das revoltas ocorridas nos anos posteriores era indígena e ter sido motivada pela defesa da garantia de sua condição de liberdade.38 O problema é que a "ênfase" no trabalho dos índios, destacada por Sampaio, é particularmente evidente no Diretório, tendo sido esta uma das causas de sua permanência em algumas regiões durante o século XIX. Tal cenário ocorreu, por exemplo, em Goiás, no Rio Grande do Norte e no próprio Ceará,39 que se utilizou fortemente do recrutamento indígena em situações de conflito bélico, além de ter sido palco da Balaiada juntamente com o Piauí e o Maranhão.

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XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos": dinâmicas das relações sócio-culturais dos índios do termo da Vila Viçosa Real – século XIX. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 76-79. 35 CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo, p. 09. 36 IGLESIAS, Rubén Álvares. Entre la asimilación y el exterminio: los indios de Brasil desde el Directório hasta la abolición de la esclavitud indígena (1750-1845). Cuadernos del Tomás, n. 04, 2012, p. 34-35. MACHADO, Marina Monteiro. A trajetória da destruição: índios e terras no império do Brasil. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2006, p. 37-38. MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras, p. 141. 37 SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011, p. 245. 38 Cf. MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo regime português na província do Grão-Pará (1821-25). Tese (doutorado) – USP, 2006. RICCI, Magda Maria de Oliveira. Sobre patriotismos e bairrismos: identidades e conflitos no antigo Grão-Pará – século XIX. In: CABALLERO, Gabriela Dalla Corte; CÉSPEDES, Ricardo Piqueiras; MATA, Meritxell Tous (Org.). América: poder, conflicto y política. Murcia: Universidad de Murcia / Servicio de Publicaciones, 2013, pp. 01-14. 39 CHAIM, Marivone. Aldeamentos indígenas. LOPES, Fátima Martins. As mazelas do Diretório dos índios: exploração e violência no início do século XIX. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção.

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Seguindo um caminho diferente, Francisco Cancela entende, assim como Lopes e Porto Alegre, que a questão do alcance jurisdicional da Carta Régia de 1798 ainda espera mais pesquisas. Em seu trabalho acerca dos índios e do processo colonial em Porto Seguro, Cancela chama atenção para a ausência de qualquer menção à Carta Régia de 1798 nesta capitania, além do reestabelecimento do Diretório naquela região em 1803 por ordem da Coroa, de maneira semelhante ao que ocorreu em Goiás, como demonstra Marivone Chaim.40 Reconhece que, se a execução da lei pombalina teve diferentes feições em cada uma das regiões do Brasil, sua superação também "não pode ser analisada sem levar em consideração a possibilidade de diferentes temporalidades e múltiplas experiências". Mais do que ter marcado um "vazio legislativo", a passagem dos séculos XVIII e XIX teria selado o "ponto de referência para o retorno de uma política indigenista flexível e dual".41 Cancela trabalha na perspectiva de que as normas legais no Antigo Regime português eram aplicadas nas capitanias de maneira diferenciada, a partir de suas particularidades, ainda que houvesse leis universais. No que diz respeito aos índios, o quadro de variações tão gritantes na aplicação das leis – que Cunha chamou de “vazio legislativo” – nos leva a concluir que as particularidades de cada região estavam diretamente relacionadas a tais situações heterogêneas e às políticas de governadores, capitães-mores e diretores. O próprio Diretório, como demonstra o trabalho de Mauro Cezar Coelho, foi concebido inicialmente para o Grão-Pará como uma adaptação das "leis de liberdade" – surgidas no bojo da influência do pensamento iluminista ibérico – às demandas dos colonos por força de trabalho barata e de acesso ilimitado. O autor atribui a construção da lei pombalina “ao contexto imediato da Colônia” que, no caso paraense, se relacionava com “os conflitos vividos em torno do controle da mão-de-obra indígena”.42 Ao ser estendida para o restante do Brasil, as distintas formas de aplicação da lei reforçam a ideia de que a colônia, em toda a sua diversidade de contextos, e bem mais do que os desígnios da metrópole, era quem definia a leitura dos textos legislativos e os rumos das práticas políticas populacionais. No Rio de Janeiro, segundo Luís Rafael Corrêa, até 1763,

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Cf. CARTA Régia de 18 de agosto de 1803. Apud. CHAIM, Marivone. Aldeamentos indígenas, p. 186-188. CANCELA, Francisco Eduardo Torres. De projeto a processo colonial: índios, colonos e autoridades régias na colonização reformista da antiga capitania de Porto Seguro (1763-1808). Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, 2012, 280-281. 42 COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo, 2005, p. 152 41

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nenhuma das antigas aldeias jesuíticas havia sido elevada a vila,43 e em São Paulo as diretrizes pombalinas tiveram repercussões frouxas, de acordo com John Monteiro.44 O trabalho de Fabrício Santos analisa as dificuldades em se aplicar o Diretório na Bahia, onde escrivães acabavam assumindo o papel de diretores por falta de pessoas capacitadas para o cargo.45 No Mato Grosso, como destaca Alessandra Blau, os casamentos entre índios e negros eram incentivados por conta do baixo número de brancos nas povoações, 46 e em Pernambuco e suas capitanias anexas chegou-se ao extremo de se aprovar a “Direção”, como vimos acima. Nesses estudos, o período mais amplamente abordado é a segunda metade do século XVIII e, mesmo quando se estendem ao XIX, não analisam de forma densa sua permanência nos oitocentos e menos ainda no pós-independência. Tal balanço historiográfico pode nos ajudar a refletir sobre o caráter plural das leis e da sociedade corporativa do Antigo Regime português. Elías Palti explica que de “cada corpo emanava sua própria legislação, sendo que o monarca tinha a missão de compatibilizá-las mutuamente e assim preservar uma ordem natural (que se condensava na ideia de justiça)”.47 Mas, ainda que os índios vassalos demandassem uma legislação própria enquanto membros do corpo social, a heterogeneidade desta população e dos lugares onde habitavam eram outras variantes que os definiam enquanto fontes de direito. Para Carlos Garriga e Andreia Slemian, tal pluralismo jurídico integrou o Novo Mundo por meio da colonização “em um prolongado processo de territorialização”. Com isso, o direito na América portuguesa era “produto da casuística adaptação da ordem metropolitana às circunstâncias ultramarinas”. 48 De maneira semelhante argumenta Antônio Manoel Hespanha, segundo o qual "a realidade seria tão multiforme que bem se podia conceber que alguma utilidade particular exigisse a correção da norma geral", se esta houvesse, como era o caso da legislação indigenista. A ordem jurídica no Brasil colonial era "produto da dinâmica de fatores locais, de ordem geográfica, ecológica, humana e política".49

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CORRÊA, Luís Rafael de Araújo. A aplicação da política indigenista pombalina nas antigas aldeias do Rio de Janeiro: dinâmicas locais sob o Diretório dos Índios (1758-1818). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2012, p. 154-155 44 MONTEIRO, John Manuel. A memória das aldeias de São Paulo: índios, paulistas e portugueses em Arouche e Machado de Oliveira. Dimensões, vol. 14, 2002, p. 18. 45 SANTOS, Fabrício Lyrio. Da catequese à civilização: colonização e povos indígenas na Bahia (1750-1800). Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, 2012, p. 206-207. 46 BLAU, Alessandra Resende Dias. O “ouro vermelho” e a política de povoamento da capitania do Mato Grosso: 1752-1798. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Mato Grosso, 2007, p. 48 47 PALTI, Elías. Entre a natureza e o artifício: a concepção de nação nos tempos da independência. Lua Nova, n. 81, 2010, p. 35. 48 GARRIGA, Carlos. SLEMIAN, Andreia. “Em trajes brasileiros”, p. 191-192. 49 HESPANHA, Antônio Manoel. Direito comum e direito colonial. Panóptica, Vitória, ano 1, nº 3, 2006, p. 111-115.

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Não era à toa que o Diretório foi aplicado de formas tão diversas quanto vimos acima. No caso da Direção de Pernambuco, segundo Ricardo Pinto de Medeiros, a lei se adaptou às circunstâncias ambientais e demográficas e às necessidades econômicas da região ao priorizar atividades como a pecuária e as lavouras.50 Mesmo o Diretório tendo sido estendido para todo o território brasileiro em 1758, a leitura e aplicação de seus artigos estava determinada justamente pela realidade multiforme da Colônia. Em se tratando do período após 1798, a legislação no império português não funcionava de maneira generalizante – e, sim, pontual e particularizante: por isso, nos lugares onde a Carta Régia não foi aplicada, funcionou o Diretório da forma que melhor se adaptava às realidades locais. Antes de 1798, a lei pombalina não era – e nem poderia ser – instaurada igualmente em todas as regiões. Não era contraditória, portanto, sua permanência, e muito menos resultado de incongruências, indecisões ou de um suposto "vazio legislativo". Quando analisamos novamente o panorama da produção historiográfica, percebemos o quão necessário se faz observar a ambivalência da política indigenista de Portugal. Boa parte das pesquisas que se debruçaram sobre a temática indígena na passagem dos séculos XVIII e XIX seleciona os chamados "sertões do leste"51 para a investigação empírica, por ter sido palco das ações aonde se dirigiram as famosas Cartas Régias de guerra justa aos "botocudos", em 1808 e 1811. Como vimos acima, outros trabalhos importantes vêm, nos últimos anos, ampliando as perspectivas analíticas ao escolher outras regiões, com condições históricas distintas e particulares. Não obstante a qualidade das pesquisas, parte delas tende a generalizar a política indigenista do período joanino como tendo sido basicamente ofensiva, sem 50

MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da América portuguesa, p. 118. 51 BARICKMAN, Bert J. "Tame Indians", "wild heathens" and settlers in southern Bahia in the late eighteenth and early nineteenth centuries. The Americas, v. 51, n. 03, 1995, pp. 325-368. LANGFUR, Hal. The Forbidden Lands: Colonial Identity, Frontier Violence, and the Persistence of Brazil's Eastern Indians, 1750-1830. Stanford, Calif.: Stanford University Press. 2006. LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio virou pó de café? A resistência dos índios Coroados de Valença frente à expansão cafeeira do Vale do Paraíba (1788-1836). Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2004. MATTOS, Izabel Missagia. "Civilização" e "revolta": povos botocudos e indigenismo missionário na província de Minas. Tese (doutorado) – UNICAMP, 2002. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). Revista de História, nº 166, 2012, pp. 223243. MALHEIROS, Márcia. Homens da fronteira: índios e capuchinhos na ocupação dos Sertões do Leste, do Paraíba ou Goytacazes (séculos XVIII e XIX). Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2008. MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce (Espírito Santo, 1824-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2007. MOREL, Marco. Independência, vida e morte: os contatos com os Botocudo durante o Primeiro Reinado. Dimensões, v. 14, 2002, pp. 91-113. PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho. SILVA, Natalia Moreira da. Papel de índio: políticas indigenistas na província de Minas Gerais e Bahia na primeira metade dos oitocentos (1808-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de São João Del-Rei, 2012. SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta de civilização e conquista dos índios e navegação do rio Doce: fronteiras, apropriação de espaços e conflitos (1808-1814). Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2006.

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distinguir de forma precisa as atitudes anti-indigenistas da Coroa e dos administradores locais ou apontar as especificidades estratégicas e econômicas das fronteiras internas e das relações entre povos ditos "bravios" e os oriundos de aldeamentos.52 Seguindo caminho contrário, como fazem alguns autores, devemos atentar para a "ambivalência" das ações indigenistas portuguesas.53 Maria Regina de Almeida argumenta que se "o príncipe regente decretou guerra contra alguns índios, procurou beneficiar outros", não diferindo, nesse sentido, da política que "vinha sendo praticada desde o início da colonização".54 Durante a instalação do Diretório nos sertões de Pernambuco, por exemplo, foi recomendado o uso da força para a submissão de povos que resistiam ao projeto, como mostrou Medeiros.55 Já no período joanino, é importante lembrar que, em 1819, os índios das vilas do Ceará, Paraíba e Pernambuco ganharam isenções de impostos pelos serviços de guerra prestados contra os revoltosos pernambucanos em 1817,56 e foi concedida a ocupação de terra aos índios do aldeamento de Valença, no Rio de Janeiro, em uma "conjuntura possível para que o Brasil solidificasse seu papel no interior" do recém-criado Reino Unido, por iniciativa de dom João VI, como explica Marina Machado.57 Em se tratando da situação dos índios aldeados no período pós-independência, os estudos são ainda poucos, concentrando-se a maioria na situação dos chamados "bravios"58 (seguindo a mesma lógica que caracteriza como sendo apenas ofensiva a política indigenista joanina) ou na construção da memória e identidade nacional no primeiro reinado. 59 Outros 52

CHAIM, Marivone. Aldeamentos indígenas, p. 94. CHAIM, Marivone Matos. A política indigenista no Brasil. Clio: Revista de Pesquisa Histórica. Recife: Universitária, n. 15, 1994, p. 148. CUNHA, 1992b, p. 06-07. LOURENÇO, Jaqueline. Um espelho brasileiro: visões sobre os povos indígenas e a construção de uma simbologia nacional do Brasil (1808-1831). Dissertação (mestrado) – USP, 2010, p. 93. MATTOS, Izabel Missagia. "Civilização" e "revolta", p. 55. MOREL, Marco. Apontamentos sobre a questão indígena e o mosaico da população brasileira em 1808. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 169, n. 439, 2008, p. 387-388. SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta de civilização e conquista dos índios e navegação do rio Doce, p. 103. SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012., p. 51. 53 CANCELA, Francisco Eduardo Torres. De projeto a processo colonial, p. 287. MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras, p. 103-104. IGLESIAS, Rubén Álvares. Entre la asimilación y el exterminio, p. 41 54 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Reflexões sobre política indigenista e cultura política indígena no Rio de Janeiro oitocentista. Revista USP. São Paulo: nº 79, 2008, p. 95. 55 MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da América portuguesa, p. 122. 56 Decreto de 25 de fevereiro de 1819. Concede aos índios das diversas vilas do Ceará Grande, Pernambuco e Paraíba diversas graças e mercês pelo serviço prestado contra os revoltosos da vila do Recife. COLEÇÃO das Leis do Brasil de 1819. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, p. 06. 57 MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras, p. 145. 58 Além dos que tratam dos botocudos nos sertões do leste, citados anteriormente: SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros. SOUZA, Almir Antônio de. Armas, pólvoras e chumbo: a expansão luso-brasileira e os indígenas do planalto meridional na primeira metade do século XIX. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, 2012. 59 ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Comunidades indígenas e Estado nacional. LOURENÇO, Jaqueline. Um espelho brasileiro.

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pontos de interesse vêm aparecendo em investigações dos últimos anos, como a participação indígena nas lutas pela separação política brasileira e nos conflitos liberais oitocentistas60 e a relação dos índios com o estatuto de "cidadãos"61. Vânia Moreira acredita que tais processos foram "muito mais impostos pela ação estatal a essas populações do que inicialmente reivindicados por elas"; mas é preciso enfatizar o fato de elas terem, "ao longo do processo histórico, se apropriado do vocabulário político da época segundo seus próprios interesses e projetos"62, como fizeram em Monte-mor Velho. Na tarefa de trazer à tona temas tão pouco debatidos, mas fundamentais para o entendimento da formação da sociedade e Estado nacional brasileiros, essa tese se debruça sobre o material disponível nas revistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Instituto do Ceará, no Arquivo Histórico Ultramarino, e, principalmente, na farta documentação da Biblioteca Nacional, do Arquivo Nacional, do Arquivo Público do Estado do Ceará e do Arquivo Público do Estado do Piauí (com fontes sobre a Balaiada e o foco de resistência portuguesa em 1823). Aqui se faz necessária menção especial a estas duas últimas instituições, detentoras de acervos surpreendentemente ricos e representantes da importância dos arquivos estaduais para o patrimônio e a memória no Brasil, apesar do frequente descaso do poder público e da frustrante negligência por parte considerável da comunidade acadêmica, que a eles dispensa pouquíssima atenção. A maior parte das fontes aqui utilizadas é composta pela correspondência entre as autoridades centrais nos impérios português e brasileiro, da capitania e província do Ceará e das vilas e povoados habitados por índios, como diretores, vereadores, párocos, juízes, oficiais militares etc. Presente em fundos documentais de todos os acervos pesquisados, a 60

CARVALHO, Marcus J. M. de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (1817-1848): Ideologias e Resistências. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de. GALINDO, Marcos. Índios do Nordeste: temas e problemas – III. Maceió: EDUFAL, 2002. FERREIRA, Lorena de Mello. São Miguel de Barreiros: uma aldeia indígena no Império. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2006. GARCIA, Elisa Frühauf. Dimensões da igualdade: os significados da condição indígena no processo de independência do Rio da Prata. In: Anais do XIX Encontro Regional de História da Anpuh - Seção São Paulo, 2008. GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil. Studia Historica. Historia Contemporánea, n. 27, 2009, pp. 235-277. MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades. MELO, Karina Moreira Ribeiro da Silva e. A aldeia de São Nicolau do Rio Pardo: histórias vividas por índios guaranis (séculos XVIII e XIX). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. DANTAS, Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do estado nacional brasileiro. 61 SANTOS, Raquel Dani Sobral. A construção do estatuto de cidadão para os índios do Grão-Pará (18081822). Dissertação (mestrado) – Universidade de São Paulo, 2013. Vânia Moreira se utiliza dos conceitos de "cidanização" e "nacionalização" para tratar do processo de inclusão índios na condição de cidadãos pertencentes ao Estado nacional brasileiro a partir da promulgação da Constituição de 1824. Cf. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios, p. 68-69 62 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência – Vila de Itaguaí, 1822-1836. Diálogos Latinoamericanos, n. 18, 2011, pp. 1-17. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios.

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comunicação produzida em âmbito local, somada àquela dirigida para fora da capitania e às vereações de câmaras municipais, possibilitam a análise tanto de práticas políticas indigenistas em diversos níveis (metropolitano, colonial, na capitania/província, nas povoações etc.) quanto da agência indígena na sua relação com outros sujeitos desta sociedade (colonos, pobres livres etc.). A busca dos índios pela garantia de benefícios para suas comunidades se expressava tanto na operacionalização da legislação quanto no seu posicionamento nos conflitos armados. Para este intento, tem destaque a documentação produzida por eles, a maioria composta de requerimentos anexos à correspondência administrativa, nos quais solicitavam mercês ou faziam queixas contra aqueles que os prejudicavam. Foram utilizados os livros de registro de confirmação de patentes, juramentos e nomeações, contendo dados referentes à história das elites militares indígenas até a extinção de seus postos na década de 1830. A documentação inclui também memórias e crônicas produzidas no período (por viajantes e autoridades administrativas e militares), relatórios de presidente da província do Ceará e alguns poucos jornais. Esses textos trazem em sua linguagem uma visão abrangente da população indígena da região – a despeito de simplificações e do estranhamento oriundos de seus lugares sociais – além de fornecer detalhes muitas vezes ocultos nas fontes governamentais, acerca de eventos militares. Por fim, um dos conjuntos documentais mais importantes deste trabalho é constituído pela malha legal indigenista produzida no período, agregando, por exemplo, decretos, cartas régias, portarias, bandos e atas legislativas. Aliada aos registros que tratam da agência indígena diante da legislação que a eles se dirigia, compõe as fontes que possibilitam a análise das transformações da condição política dos povos indígenas no Ceará e da maneira pela qual essas comunidades modificaram a realidade que as leis visavam ordenar e reagiram a suas imposições. Este trabalho está dividido em duas partes. A primeira prioriza tanto o panorama da legislação indigenista no Ceará entre o final do século XVIII e a primeira metade do XIX quanto a relação dos índios com as leis. No primeiro capítulo é central a análise da situação de permanência do Diretório em território cearense até a independência, refletindo-se também sobre o funcionamento das leis no Antigo Regime português, a aplicação de políticas indigenistas distintas para cada região, as especificidades da antiga lei setecentista, os interesses da Coroa lusitana e as particularidades econômicas e demográficas da capitania em questão. No segundo, o foco se dirige ao contexto legal do período de formação do Estado nacional brasileiro, quando as diretrizes pombalinas continuaram extraoficialmente no Ceará

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após 1822, antes de ser abolida na década de 1830 e restaurada em 1843. Prioriza-se o conjunto legal produzido ao longo desse período – tanto ao nível do legislativo cearense quando do império do Brasil, como foi o caso da criação da guarda nacional em 1831, que extinguia os postos de oficiais índios – e sua relação com o acúmulo de poder dos proprietários rurais, que os possibilitou ter cada vez mais acesso a cargos políticos locais e tendo como consequência a gradativa extinção de antigas garantias indígenas. O terceiro capítulo se concentra na atuação política indígena diante da legislação. O objetivo é refletir sobre a conexão que suas comunidades estabeleciam com momentos de intensas transformações políticas – operacionalizando algumas leis ou lutando pela supressão de outras – e de que maneira suas ações também influenciaram os posicionamentos indigenistas dos governos imperiais de Portugal e do Brasil e da capitania e província do Ceará. São aspectos importantes nessa investigação a relação dos índios com o arcabouço normativo, as ações jurídicas movidas por suas comunidades e a participação indígena em conflitos no contexto da Constituição portuguesa de 1821 e da separação política brasileira, motivados pela possível redefinição de seu lugar no novo império na América. O quarto capítulo problematiza os significados para diferentes agentes do período (membros do governo, proprietários rurais e, principalmente, os próprios indígenas), dos variados termos pelos quais índios e gentios eram classificados na legislação indigenista, como a presença da questão tutelar, voltada tanto para os "mansos" quanto para os "selvagens". Em relação aos aldeados, analisa-se a transformação do estatuto de vassalos do rei de Portugal para a de súditos do monarca brasileiro e, com a independência, no enquadramento e na percepção de si próprios como cidadãos do império do Brasil, ao mesmo tempo em que se viram despossuídos de diversos benefícios. Acerca dos gentios da região do Cariri, reflete-se sobre o tratamento que recebiam do monarca lusitano (enquanto vassalos "em potencial" e dignos de proteção), a relação que estabeleciam com a monarquia (vista por eles muitas vezes como uma entidade protetora) e as mudanças ocorridas a partir da década de 1830, cuja perseguição se aprofundou pelo aumento do poderio de proprietários e pela omissão e impotência dos governos do Ceará e do Brasil. A segunda parte da tese se dedica a analisar aspectos militares da atuação política indígena entre a crise do Antigo Regime português e a formação do Estado nacional brasileiro, bem como sua relação com as transformações do estatuto legal dos índios no Ceará. No capítulo quinto a prioridade é a legislação relativa à incorporação e o papel dos índios nas companhias de ordenanças, além das formas de recrutamento militar indígena e seu significado para as Coroas portuguesa e brasileira na defesa de interesses dos Estados. No

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sexto as autoridades indígenas têm papel central, por figurarem enquanto intermediadores da hierarquia imperial portuguesa (e que assistem o fim de seus postos após a independência do Brasil) e de suas comunidades, agindo pela garantia tanto dos intentos da coroa quanto dos índios seus subordinados. A análise da documentação permitirá conhecer os caminhos da agência política desses líderes por meio da busca pela autonomia de suas comunidades e a partir da maneira como se percebiam enquanto membros dos impérios. Tanto as autoridades militares quando os indígenas comuns participaram de diversos eventos bélicos relativos à separação política brasileira e às revoltas liberais oitocentistas. O sétimo capítulo visa investigar o envolvimento militar dos índios no contexto da independência do Brasil, que se deu por meio de recrutamentos no intuito de defesa territorial em 1822 – armados e postos em alerta em diversos pontos da capitania – e para proteger o Piauí do foco de resistência portuguesa comandado por João José da Cunha Fidié em 1823. Vendo-se na iminência de serem enquadrados em novos estatutos jurídicos por conta dos movimentos liberais portugueses, a análise da participação indígena nesses acontecimentos revela tanto o seu papel para as autoridades do novo país que os recrutavam quanto sua luta pela defesa das condições de vassalos livres e de outras antigas garantias. Por fim, o capítulo oitavo reflete acerca do envolvimento dos índios no Ceará nas revoltas liberais oitocentistas: a Revolução Pernambucana de 1817, a Confederação do Equador de 1824 e a Balaiada entre 1839 e 1841. Na primeira, em 1817, foram convocados pelo governo para defender o monarca português; já em 1824, seu posicionamento em relação ao imperador do Brasil dependeu bem mais da conjuntura cearense frente à nacional. Ainda que fossem tratados como "valorosos vassalos" por quem os recrutava e que se portassem como fiéis às Coroas, as ocasiões não excluíam a diferenciação entre brancos e índios – por conta de seus hábitos tidos como perigosos (de que "todos os bens eram comuns") – e o sentimento de animosidade com as pessoas "de coiro alvo". No caso da Balaiada, a adesão se deu pelos índios da Ibiapaba aos rebeldes do Piauí e Maranhão contra a ordem regencial, mesmo que declarassem lutar em nome do rei. No conflito se expressou a concretização do que era temido pelos governos locais nas revoltas liberais anteriores: a união de índios aos negros e mestiços, ressentidos do fim de antigas garantias do tempo do império português, rebelando-se contra os brancos e as autoridades. Em tais situações de confronto bélico é possível refletir acerca dos significados indígenas de vassalos e cidadãos brasileiros e das relações que estabeleciam com não-índios e os governos, em meio a mudanças nos seus estatutos legais que cada vez mais ameaçavam suas condições de trabalho e a preservação de suas terras.

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Esse longo processo de transformações políticas, vivido pelos índios no Ceará no início dos oitocentos, não se reduz à mera sequência de fatos locais de uma minoria, e muito menos à crônica de massacres e dizimação. Esta pesquisa procura seguir uma tradição historiográfica que há mais de 20 anos insiste em reafirmar que os povos indígenas tiveram e têm história e dela são coautores. Contar sua participação na formação do Estado nacional brasileiro é conhecer sua constituição enquanto entes políticos e jurídicos, cuja atuação se faz presente nas situações e nos desafios dos índios do século XXI.

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1ª PARTE NA LEI

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CAPÍTULO 1 O DIRETÓRIO NO CEARÁ APÓS 1798 "Mas nem por isso se deve extinguir os diretores, nem tampouco deixar de se distribuir os índios a salário, e a jornal da maneira prescrita pelo Diretório, fim principal a que se dirigem todas as representações dos índios, ignorando os grandes males que se seguiriam de ser deferida uma tal súplica” (De Manuel Ignácio de Sampaio a Thomas Antônio de Vilanova Portugal. Fortaleza, 2 de julho de 1818. BN, C-199, 14)

1.1. O "VAZIO LEGISLATIVO" Manuela Carneiro da Cunha caracterizou de “vazio legislativo” o período entre 1798 e 1845 (quando se criou o Regulamento das Missões), por não ter havido neste intervalo uma lei geral para regular a política indigenista no Brasil. Segundo ela, a legislação “do século XIX, sobretudo até 1845, é flutuante, pontual, e como era de se esperar, em larga medida subsidiária de política de terras”. Com a revogação do Diretório, criou-se, segundo ela, "um vazio que não seria preenchido"; sua anulação só ocorreu “por falta de diretrizes que o substituíssem" e, mesmo assim, "parece ter ficado oficiosamente em vigor. No Ceará [...] permanece [como] um parâmetro de referência”.1 Outros autores reforçaram a tese, ao interpretarem a influência ou presença do Diretório em algumas regiões como um sintoma da ausência de outros regulamentos.2 Para Patrícia Sampaio, o Diretório permaneceu em boa parte do Brasil pela "falta de Diretrizes que o substituíssem [...], vigorando extra-oficialmente em várias regiões, chegando até mesmo a ser reestabelecido em 1843 no Ceará".3 Além de acreditar que o funcionamento da lei pombalina se deu contra as determinações do Estado português – o que, pelo menos até 1822, não é verdade, já que até esta data não há registro de nenhuma lei ou ordem da Coroa lusitana para a anulação do Diretório em todo o Brasil – conclui que a "Carta de 1798, aparentemente, 1

CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo. Legislação indigenista no século XIX: uma compilação: 1808-1889. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992, p. 09. Idem. Política indigenista no século XIX. História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 139. 2 MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras: terras indígenas nos sertões fluminenses (1790-1824). Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 63. LOURENÇO, Jaqueline. Um espelho brasileiro: visões sobre os povos indígenas e a construção de uma simbologia nacional do Brasil (1808-1831). Dissertação (mestrado) – USP, 2010, p. 93. IGLESIAS, Rubén Álvares. Entre la asimilación y el exterminio: los indios de Brasil desde el Directório hasta la abolición de la esclavitud indígena (1750-1845). Cuadernos del Tomás, n. 04, 2012, p. 37. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). Revista de História, nº 166, 2012, p. 229 e 232. 3 SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011, p. 228. Grifo meu.

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ficou restrita ao Pará e suas capitanias subordinadas", mesmo tendo sido aplicada em outras, como Espírito Santo, São Paulo e Rio Grande do Sul.4 Parte da historiografia, por outro lado, vem discordando da perspectiva do "vácuo legislativo" para caracterizar a política indigenista no início dos oitocentos. Apesar de levarem em consideração os incontáveis conflitos, embates políticos e acaloradas discussões sobre o assunto, as explicações apresentadas para a inexistência de uma lei geral para os povos indígenas no Brasil nesse contexto supõem que o tema tenha sofrido a concorrência de outros mais urgentes ou pela falta de consenso no legislativo brasileiro durante a formação do Estado nacional.5 Definem a conjuntura do primeiro reinado pela falta de opções, e não observam, portanto, os anos anteriores a ela e os possíveis interesses da Coroa portuguesa com a manutenção da lei. Com o início dos oitocentos, o padrão de diferenças regionais permaneceu, revelando que, neste aspecto, não houve mudanças significativas. A Carta Régia de 1798, pensada para o contexto paraense, foi aplicada ou não em diversos lugares dependendo de cada conjuntura. Mesmo para onde se seguiu a recomendação de extinção do Diretório não se pode acreditar que as ações dos governos locais se deram da mesma forma que no norte. Se as reclamações em relação aos diretores, à decadência das vilas e à “incivilidade” dos índios parecia ser uma constante em todas as regiões do Brasil, que diferenças motivaram ações tão díspares, sobretudo no Ceará, onde a diretriz pombalina permaneceu vigente por tanto tempo? Nas capitanias onde a Carta Régia não teve efeito não se instaurou necessariamente um vazio, sendo fundamental, portanto, compreender as particularidades da região, as diversidades das experiências indígenas e da própria legislação indigenista do século XIX no âmbito das províncias, como afirma Patrícia Sampaio em artigo posterior à tese que deu origem ao livro já citado.6 Após a expedição da Carta, cada governo passou a utilizar as determinações régias que, do seu ponto de vista, melhor se ajustassem às suas próprias conjunturas sociais e econômicas, raras vezes tendo caráter geral, segundo Maria Regina de 4

Ibidem. Ver também, a esse respeito: MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios, pp. 223-243. SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012. SOUZA, Almir Antônio de. Armas, pólvoras e chumbo: a expansão luso-brasileira e os indígenas do planalto meridional na primeira metade do século XIX. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, 2012. 5 MOREL, Marco. Independência, vida e morte: os contatos com os Botocudo durante o Primeiro Reinado. Dimensões, v. 14, 2002, pp. 92-93. SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 71-72. SILVA, Natalia Moreira da. Papel de índio: políticas indigenistas nas províncias de Minas Gerais e Bahia na primeira metade dos oitocentos (1808-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de São João del-Rei, 2012, p. 19. 6

SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil imperial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil imperial, volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 184.

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Almeida. O Diretório, contudo, não era apenas um “parâmetro de referência” para as práticas governamentais:7 continuava oficialmente em vigor, já que a carta emitida em 1798 continha determinações dirigidas ao Grão Pará e não para toda a colônia. Tudo isso é característico do funcionamento legal do Antigo Regime de Portugal, como vimos na introdução com Hespanha,8 tornando-se anacrônico falar em "vazio legislativo" por conta da ausência de uma lei geral. Com a independência do Brasil e a crise desse modelo político, há a tendência de formulação de leis gerais, apesar da herança do sistema anterior ser perceptível em algumas circunstâncias, como era o caso da continuação da aplicação do Diretório no Ceará, vigente até a década de 1830 e reativado em 1843. No âmbito indigenista, só passou a existir uma legislação que abarcasse todo o território nacional no ano de 1845, com a promulgação do Regulamento das Missões, resultante de uma longa trajetória de discussão "na busca de uma definição geral da política indigenista", como afirma Kaori Kodama.9 Para entender o porquê de a Carta Régia de 1798 ter sido aplicada em alguns lugares e, em outros, o Diretório ter continuado em vigor, é preciso, primeiramente, estar atento ao contexto maior onde estava inserida a Coroa portuguesa. Havia uma urgente preocupação da monarquia portuguesa no final do século XVIII com a proteção de suas fronteiras externas, somada à carência de mão-de-obra no norte da colônia. O contexto explica a ênfase da Carta Régia de 1798 na questão militar, indicando que os índios integrados seriam importantes aliados políticos.10 Em segundo lugar, apesar de 1798 ter sido o ano quando, pela primeira vez, houve uma declaração aberta da monarquia lusitana de que seu projeto não havia logrado sucesso, as iniciativas que motivaram tal posicionamento e as consequentes mudanças de rumo vieram, entretanto, da própria colônia portuguesa, mais especificamente da região para onde foi pensada a lei de Pombal. As críticas à política pombalina foram constantes em todo o Brasil durante sua regência, inclusive em território paraense. A civilização dos índios, o desenvolvimento das vilas e o fornecimento regular de mão de obra pareciam não ter sido 7

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios no tempo da corte: reflexões sobre a política indigenista e cultura política indígena no Rio de Janeiro oitocentista. Revista USP, n. 79, 2008, p. 95-96. 8 HESPANHA, Antônio Manoel. Direito comum e direito colonial. Panóptica, Vitória, ano 1, nº 3, 2006, pp. 95116. 9 KODAMA, Kaori. Os filhos das brenhas e o Império do Brasil: a etnografia do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (1840-1860). Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2005, p. 233. 10 NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial: (1777-1808). São Paulo: Editora HUCITEC, 1989, p. 117. ALMEIDA, Rita Heloísa de. A Carta Régia de 12 de maio de 1798 e outros documentos sobre índios no códice 807. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: ano 163, nº 416, 2002, p. 177. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 230.

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alcançados no Grão-Pará na visão de vários representantes do poder monárquico que por lá passaram. Mesmo na década de 1790, cerca de 30 anos após sua instauração, a proposta de união entre a liberdade concedida aos índios e sua transformação em força de trabalho disponível não havia sido concretizada na prática, e a administração criada por esta legislação – os diretores em especial – era geralmente responsabilizada pelo fracasso. Em meio a problemas como a ausência de mão-de-obra, os diretores eram referenciados como responsáveis tanto por monopolizarem para si a exploração violenta sobre essa população como pela fuga dos indígenas motivada pelos maus tratos que recebiam. As vilas de índios, projetadas para ser espécie de “celeiros” de trabalhadores,11 acabavam por não suprir essa necessidade. Francisco de Souza Coutinho, então governador da capitania do Grão-Pará, produziu em 1797 o “Plano de civilização dos índios”, que deu origem, no ano seguinte, a emissão da Carta Régia que aboliu o Diretório. Centrada na ocupação territorial promovida por povoados de habitantes livres e na restituição da liberdade aos indígenas, a maior diferença da Carta em relação à lei pombalina, segundo Sampaio, estava “no que diz respeito à supressão de uma tutela exterior (nesse caso, laica) sobre as populações já estabelecidas nas vilas e lugares”. Ou seja, com a nova legislação, o tão criticado cargo de diretor deixava de existir. A ideia, portanto, era promover uma permanente disponibilidade de índios, inserindo-os em corpos militares ou de trabalho, para uma devida ocupação do território através da liberdade de negociação entre particulares e indígenas.12 As diretrizes pombalinas também confirmaram a liberdade dos índios, já promulgada anteriormente, mas estabelecia limitações a ela diante da grande necessidade de trabalho por parte do Estado e dos proprietários, especialmente nos lugares com poucas condições de adquirir grandes contingentes de escravos negros.13 Seu fim principal era a civilização dos indígenas, que, na visão dos gestores imperiais, não havia sido conseguida com a 11

DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 83; LEITE NETO, João. Índios e Terras: Ceará: 1850-1880. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2006, p. 106. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina: EDUFPI, 2015, p. 183-196. PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos sertões do leste. Salvador: EDUFBA, 2014, p. 73-74. 12 SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 233-234. 13 Segundo João Brígido, no Ceará até "1818 não tinha havido importação direta [de escravos] da costa da África. Segundo testemunho do governador Sampaio, os que tinham vindo, por via de Pernambuco, de 1813 a 1817 andavam somente por 352. O governador solicitou para o Ceará, em fevereiro de 1818, a graça de poder importar escravos da África como se tinha concedido à capitania do Pará. Não foi porém concedida". In: A Fortaleza em 1810. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXVI, 1912, p. 107. De acordo com Bárbara Sommer, durante o reinado de Maria I é fortalecida a ligação entre trabalho indígena e importação de escravos: a necessidade na mão-de-obra dos índios aumenta quando há dificuldade em obter cativos africanos. Cf. SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements: native Amazonians and Portuguese policy in Pará, Brazil, 1758-1798. Tese (doutorado) – University of New Mexico, 2000, p. 88.

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administração dos religiosos, e, para isso, igualava-os aos brancos enquanto vassalos do rei português. Tinham direito a cargos de vereação nas suas vilas14 – as antigas aldeias missionárias – e a títulos de oficiais nas suas companhias de ordenança, mas por ainda praticarem muitos costumes oriundos do "barbarismo" em que viviam, não tinham condições de se autogovernar, necessitando da convivência com os brancos e da tutela de um diretor15. Esta figura seria responsável por vigiar o cotidiano e incentivar, com brandura e docilidade, os índios a praticarem hábitos civilizados, além de atuarem na organização da principal ferramenta educativa segundo essa legislação: o trabalho. Era papel dos diretores pôr ordem e disciplina nos indígenas em suas roças, distribuí-los aos proprietários que os requeressem e cuidar de seus pagamentos. No caso da Carta Régia 1798, a grande novidade, portanto, estava na dispensa dessa figura tutelar, estabelecendo liberdade aos índios para comercializar e prestar serviços aos proprietários que bem entendessem. Por outro lado, como compensação ao fim da tutela, a lei obrigava-os ao correto exercício de suas funções. 16 Ou seja, nos dois casos, a liberdade trazia, na prática, como ônus, o serviço compulsório. Ao contrário do que afirma Manuela Carneiro da Cunha, que generaliza o contexto indígena no Brasil entre 1798 e 1845 ao falar que o autogoverno vigorou entre os índios em decorrência da Carta que extinguiu a função dos diretores, o cargo continuou existindo no Ceará por conta da manutenção do Diretório.17 Independentemente de podermos ou não classificar a situação como uma "crise de definição tutelar",18 o fato é que a situação de tutela acabava para os aldeados no Grão-Pará. Por meio da Carta Régia de 1798, a Coroa declarava que os índios eram iguais aos demais vassalos, "sendo dirigidos e governados pelas mesmas leis que regem todos aqueles dos diferentes Estados que compõem a Monarquia, restituindo

14

DIRETÓRIO que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão, enquanto sua Majestade não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1758, §2, p. 01. 15 Ibid., §1, p. 01. 16 CARTA Régia de 12 de maio de 1798. In: ALMEIDA, Rita Heloísa de. A Carta Régia de 12 de maio de 1798 e outros documentos sobre índios no códice 807. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: ano 163, n. 416, 2002, p. 192. 17 CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Política indigenista no século XIX, p. 152. 18 Rita Heloísa de Almeida argumenta que a diferença mais significativa da Carta Régia de 1798 em relação à lei pombalina seria o fim da tutela dos diretores, que não resolvia, entretanto, a crise conceitual que inaugurava em relação a liberdade, menoridade, tutoria e quem seria o responsável – o Estado ou a iniciativa privada – no trato com a questão indígena. Cf. ALMEIDA, Rita Heloísa de. A Carta Régia de 12 de maio de 1798 e outros documentos sobre índios no códice 807, p. 179. Mesmo concordando com o afastamento da Coroa nos procedimentos de contato com índios não aldeados, Patrícia Sampaio acredita que não tenha havido, necessariamente, uma "crise de definição tutelar". Se a condição de tutela continuava aos contatados recentemente, com a autonomia promulgada aos oriundos das povoações, a obrigação a prestação de serviços ao Estado e a particulares, enquanto ônus da liberdade, permanecia. Cf. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 228.

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os índios aos direitos que lhes pertencem igualmente aos meus outros vassalos livres". 19 Por mais que apresentasse continuidade na exploração de sua força de trabalho, a novidade da substituição dos diretores na distribuição dos trabalhadores indígenas aos particulares e nos Corpos de Milícias tinha relação direta com os novos planos de povoamento, exploração e comércio da Coroa para o norte do Brasil. A Carta Régia de 1798 foi expedida, portanto, em um momento de busca da Coroa portuguesa pelo fortalecimento do Antigo Regime em sua colônia na América, especialmente em suas regiões de fronteira, como era o caso da Amazônia. O próprio fato de não ter sido estendida a todo o Brasil evoca mais um aspecto desse modelo político, no qual as leis eram aplicadas pontualmente e de forma diferenciada, a partir das particularidades de cada região ou corpo social. Algumas Cartas Régias produzidas no mesmo dia da que aboliu o Diretório, em 12 de maio de 1798, podem revelar os planos políticos para a economia e a população de outras regiões não diretamente atingidas pela nova legislação indigenista. Se não poderia ser estendida como uma lei geral, outros encaminhamentos foram dirigidos para capitanias próximas ao território amazônico. Diante de tantas leis, fica difícil visualizar o "vazio".

As outras Cartas Régias de 1798 Tal conjunto se encontra atualmente no Arquivo Nacional, no volume 11 do “Códice 807”, estudado por Rita Heloísa de Almeida.20 Com oito circulares contendo planos relativos ao comércio, navegação, reconhecimento territorial e ocupação, o códice é formado por documentos

encaminhados

ao

Pará,

Mato

Grosso,

Goiás,

Maranhão,

Piauí

e,

surpreendentemente, um registro ao Ceará. Com exceção das duas últimas capitanias, a região abarcada pelo projeto corresponde praticamente a atual Amazônia legal, sendo o governador da capitania paraense, Francisco de Souza Coutinho, a autoridade responsável por tal articulação. Claros estavam alguns direcionamentos que indicavam certa continuidade em relação às leis anteriores no que concerniam aos lugares a serem ocupados pelos diferentes grupos sociais. Brancos e negros seriam os principais povoadores, sendo relegado aos índios os papeis de trabalhadores, situação que provocou a seguinte pergunta de Almeida: o trabalho 19

CARTA Régia de 1798. Apud. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 334-335. ALMEIDA, Rita Heloísa de. A Carta Régia de 12 de maio de 1798 e outros documentos sobre índios no códice 807. Como não pude consultar o volume, por restrições de acesso impostas pelo Arquivo Nacional, não tenho informações sobre a natureza dessa documentação, se são originais ou cópias, nem o motivo pelo qual foram agrupadas em um único códice. 20

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supostamente livre dos indígenas não seria, de fato, forçado? 21 É bastante curioso perceber que, simultaneamente a uma lei que previa uma restituição da liberdade aos índios, os mesmos eram concebidos como a principal fonte de mão-de-obra, semelhante ao que havia determinado o Diretório.22 Na busca de incentivar a ocupação do território e o desenvolvimento comercial, a questão da comunicação tinha um papel fundamental nas circulares. O único registro do conjunto expedido à capitania do Ceará – que também inseria as outras mencionadas – previa providências sobre o trânsito fluvial entre essas regiões. Segundo a ordem, o “governador e capitão general da capitania do Pará, dom Francisco de Souza Coutinho” deveria cuidar da “comunicação [que] se há de tentar fazer pelos rios”. Curiosamente, não há no território cearense qualquer rio cujo percurso pelo menos se aproxime da bacia amazônica. De que maneira, então, esta capitania se inseria nos planos e como se daria a participação dos índios, já que não chegam a ser citados no texto? Nos anos que se seguiram, a comunicação entre vilas no Ceará e mesmo para outras regiões passou a se utilizar dos indígenas como mão de obra responsável pelo transporte de correspondências, sendo posteriormente conhecidos como “índios correio” ou “estafetas”.23 Dez anos após a promulgação das Cartas Régias, em dezembro de 1808, o governador Luiz Barba Alardo de Menezes comunicou-se com a autoridade do Rio Grande do Norte acerca do “plano de facilitar a correspondência interior desta capitania, [...] e feita por este modo a nossa combinação será também muito fácil que se possa estender até Pernambuco”

24

. Menos de

cinco anos depois, o então governador Manuel Ignácio de Sampaio, em resposta a ofício recebido do Maranhão, tratou do correio que estabeleceu nesta capitania para a de Pernambuco e das intenções do líder do governo maranhense em fazer o mesmo entre “essa e esta capitania, como também para a do Pará”25. É possível conjecturar, portanto, que o Ceará, juntamente com o Piauí e o Maranhão, serviria como uma região estratégica de ligação entre dois dos principais polos comerciais na colônia portuguesa: Grão-Pará e Pernambuco. Além do percurso marítimo, havia rotas terrestres onde os índios, mais uma vez, tinham o papel indispensável de servir como força de trabalho. 21

Ibid., p. 175. ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” do Brasil do século XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 167; DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, p. 38-40 23 COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 235-264. 24 De Luiz Barba Alardo de Menezes a Lopo Joaquim de Almeida Henriques. Fortaleza, 29 de dezembro de 1808. APEC, GC, livro 31, p. 207V 25 De Manuel Ignácio de Sampaio a Paulo José da Silva Gama. Fortaleza, 26 de fevereiro de 1813. APEC, GC, livro 23, p. 26 22

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A não extensão da Carta Régia de 1798 a outras capitanias, em especial àquelas próximas à região amazônica, não se deu por mero acaso ou por uma espécie de negligência legal da monarquia. Todos esses planos revelam um grande projeto comercial de comunicação e exploração no qual os índios tinham considerável importância. O fato de todas essas ordens terem sido expedidas na mesma data deixa clara a importância dos indígenas na ordenação social e econômica imposta pela Coroa lusitana. Rita de Almeida tem razão ao entender que a Carta “pouca alteração traria em relação aos meios e fins formulados pela legislação anterior”, já que, mesmo tendo restituído a liberdade aos índios, os coagia a ocuparem o papel de força de trabalho para o Estado e aos particulares, algo já posto pelo Diretório.26 Almeida acredita que, juntas, as Cartas Régias "evidenciam uma inter-relação das ações praticadas com os índios, inserindo a questão indígena nos projetos econômicos" da metrópole.27 Em muitas das capitanias a que eram destinadas as circulares, a lei pombalina não havia sido anulada, como era o caso do Ceará, denotando a importância da mão-de-obra indígena, usada havia muito tempo no transporte de correspondências, e a necessidade de tutela para os índios de algumas regiões. Se a característica de mudança mais importante da Carta Régia de 1798 foi o fim da presença tutelar dos diretores (apesar da continuidade da tutela para os recém-descidos) e a abertura para iniciativas privadas na captação de mão de obra indígena, sua aplicação se fazia pertinente em regiões onde a defesa das fronteiras externas e internas e a expansão agrícola eram questões de primeira ordem. No Ceará, as demandas eram outras, como veremos à frente. Segundo Cunha, no século XIX, “a questão indígena deixou de ser essencialmente uma questão de mão de obra para se tornar uma questão de terras”, posto que, naquele período, a “mão de obra indígena só é fundamental como uma alternativa local e transitória diante de novas oportunidades”.28 Contudo, em algumas regiões, o trabalho dos índios nunca deixou de ser crucial e urgente, mesmo com o crescimento avassalador das tomadas de suas terras. Bárbara Sommer afirma que o Diretório foi, em parte, extinto por conta das vilas não suprirem a demanda do Estado por trabalhadores indígenas.29 Porém, enquanto as determinações da Carta Régia de 1798 podiam atender às expectativas de arregimentar mãode-obra indígena não aldeada nos sertões para os colonos na Amazônia, no Ceará, o fim da 26

ALMEIDA, Rita Heloísa de. A Carta Régia de 12 de maio de 1798 e outros documentos sobre índios no códice 807, p. 171. 27 Ibid., p. 176. 28 CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Política indigenista no século XIX, p. 133. 29 SOMMER, Barbara Ann. Negotiated settlements, p. 155.

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tutela dos diretores dificilmente resolveria esse problema. Patrícia Sampaio procurou ainda vincular a grande necessidade da economia da Amazônia de mão de obra indígena – contrapondo-se à ascensão da questão da terra apontada por Cunha – à não aplicação da Carta Régia de 1798 em outras capitanias.30 O problema é que, como vimos, o Diretório continuou em vigor no Ceará, justamente por ter, assim como o Grão-Pará, uma forte demanda da força de trabalho dos nativos para suas atividades econômicas.

1.2. AS DEFESAS DO DIRETÓRIO "Tratava-se [...], essencialmente, de povoar?",31 pergunta Fernando Novais acerca da política colonial portuguesa durante a crise do Antigo Regime. No período onde a monarquia buscava estimular a acumulação primitiva de capitais, "elemento constitutivo do processo de formação do capitalismo moderno",32 impunha-se a "adoção de formas de trabalho compulsório", com forte destaque para o escravismo. Para isso, não bastava, no Brasil, apenas o povoamento: este se organizava "através do engajamento de trabalhadores (europeus, aborígenes ou africanos, conforme o caso)". Portanto, "o essencial era a exploração", cujas várias formas de trabalho ficavam, para o autor, "ainda por explicar". 33 Ainda assim, acredita ser indiscutível "que os indígenas foram também utilizados em determinados momentos", mesmo que a sua rarefação demográfica e a importância do tráfico negreiro para o comércio colonial possibilitassem a preferência econômica em relação à escravidão africana. 34 A situação do Ceará à época era diferente do que descreve o autor e das capitanias que adotaram a Carta Régia de 1798. Até o final do século XVIII, a atividade econômica predominante em território cearense era a pecuária e a comercialização de couro e carne seca, quando foi suplantada pela cultura do algodão.35 A mão-de-obra era majoritariamente livre,

30

SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 245. NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial: (1777-1808). São Paulo: Editora HUCITEC, 1989, p. 99. 32 Ibid., p. 70. 33 Ibid., p. 98-99. 34 Ibid., p. 105. 35 Cf. PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores e artesãos: origens do trabalho livre no Ceará colonial. Revista de Ciências Sociais, vol. 20/21, n. 1/2, 1989/1990, p. 10-11. PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Fontes inéditas para a história indígena no Ceará. In: PORTO ALEGRE, Maria Sylvia; MARIZ, Marlene; DANTAS, Beatriz Góis. Documentos para a história indígena no Nordeste. São Paulo: USP/NHII/FAPESP, 1994, p. 19. LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da capitania do Ceará (1780-1822). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 1997, p. 77-83. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará: 1680 – 1820. Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008, p. 197-199. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”: a construção do Estado nacional brasileiro e os projetos políticos no Ceará (1817-1840). Dissertação (mestrado) – Universidade 31

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ainda que, como a historiografia mostrou nas últimas décadas, a escravidão tenha sido bem mais importante do que se acreditava.36 A partir da década de 1780 se iniciou o auge da produção algodoeira no Ceará, que coincidiu com as tentativas, por parte dos ricos comerciantes da capitania, de emancipação em relação a Pernambuco, ocorrida em 1799.37 Segundo José Jobson Arruda, este contexto foi marcado pela dinâmica da economia mercantil de subsistência que integrou o Brasil no mercado mundial, por meio das diferentes zonas produtivas e dos variados padrões de acumulação nas regiões brasileiras. 38 Fortaleza se consolidou como capital, apesar de menos estruturada que outras vilas, tanto por conta das condições de seu porto quanto pela estratégia da Coroa portuguesa de concentrar o poder em uma região “neutra”, ou seja, longe dos conflitos entre potentados das diferentes ribeiras.39 Outra característica relevante de Fortaleza, também importante em sua definição como capital, era sua proximidade com as regiões produtoras se algodão e das vilas e povoações indígenas. Os índios formavam, até meados dos setecentos, parcela considerável dos escravos capitania, até que, por meio do Diretório, foram considerados definitivamente livres. Curiosamente, na segunda metade do século XVIII, a população escrava no Ceará cresceu em decorrência do desenvolvimento da economia em algumas regiões da capitania.40 Em outras, onde se localizavam as lavouras algodoeiras, os índios continuaram a ser uma indispensável reserva de mão-de-obra. O desenvolvimento econômico, atrelado à emancipação da capitania e a supremacia de Fortaleza como capital, principal porto exportador, aumentou a necessidade Federal do Ceará, 2010, p. 20-30. DUARTE, Rones da Mota. Natureza, terra e economia agropastoril – Soure (CE): 1798-1860. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2012, p. 61-62, 113. 36 CHANDLER, Billy Jaynes. The role of negroes in the ethnic formation of Ceará: the need for a reappraisal. Revista de Ciências Sociais, vol. IV, n. 1, 1973, pp. 31-43. PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Fontes inéditas para a história indígena no Ceará, p. 18. SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha riqueza é fruto do meu trabalho”: negros de cabedais no Sertão do Acaraú (1709-1822). Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, 2015, p. 18-19. 37 PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores e artesãos, p. 16-17. LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da capitania do Ceará (1780-1822), p. 79. 38 ARRUDA, José Jobson de Arruda. O sentido da colônia. Revisitando a crise do antigo sistema colonial no Brasil (1780-1830). In: TENGARRINHA, José (Org.). História de Portugal. Bauru: EDUSC; São Paulo: UNESP; Lisboa: Instituto Camões, 2000, p. 182. 39 FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 51-52. “Até a segunda metade do século XIX não havia uma unidade político-administrativa no que chamamos hoje de Ceará. [...] A administração da capitania era feita com base naqueles marcos geográficos que haviam sido suas vias de comunicação, ou seja, as ribeiras” Estas eram “unidades independentes uma das outras [...] com pouco nível de centralização das decisões nas mãos do capitão-mor, depois de 1799, governador da capitania”. Cf. OLIVEIRA, Almir Leal de. A construção do Estado nacional no Ceará na primeira metade do século XIX: autonomias locais, consensos políticos e projetos nacionais. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais: Estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará – compreendendo os anos de 1835 a 1861 pelo Dr. José Liberato Barroso [Ed. Fac-similada]. Fortaleza: INESP, tomo I, 2009, p. 17-18. 40 LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da capitania do Ceará (1780-1822), p. 102-104. SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha riqueza é fruto do meu trabalho”, p. 16-17.

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do fornecimento de braços indígenas. Estes, além dos trabalhos nos algodoais por aluguel e em cultivos como da mandioca, eram também requisitados em outros serviços, como obras públicas ou artesanato.41 Como afirma Francisco José Pinheiro, os índios se transformaram em um dos principais grupos cooptados como mão-de-obra para a produção de algodão no final dos setecentos, “tendo em vista que já havia toda uma legislação regulamentando as relações de trabalho entre estes e os proprietários”.42 A respeito das especificidades regionais como definidoras das práticas dirigidas aos índios, Fernanda Sposito concorda que o Diretório e a Carta Régia de 1798 faziam sentido para a realidade amazônica, e outras conjunturas demandavam ações distintas. Ou seja, era “difícil para a Coroa conjugar esforços para elaborar uma política que [pudesse] ser plenamente aplicada em toda a América”. Para a autora, não se pode pensar a questão indígena deste contexto atrelando-a unicamente a uma dimensão local. Todas as diferentes ações indigenistas da monarquia lusitana faziam parte “do mesmo processo de consolidação das fronteiras em alta densidade demográfica indígena”.43 Sposito expõe com lucidez os sentidos distintos que cada uma das políticas indigenistas – seja do período pombalino como do joanino – poderiam assumir. Entretanto, ao contrário do que acredita a autora, o quadro legislativo não se resumia à aplicação das Cartas Régias de 1798 e 1808 (de ataque aos botocudos) para regiões de expansão da fronteira externa e interna, respectivamente.44 Como mostra Juciene Apolinário, foi ordenada pela secretaria do reinado de dom João VI em 1821 a plena aplicação do Diretório nas terras dos povos timbiras, habitantes nos limites das capitanias do Maranhão, Goiás e Pará – região fortemente assediada pelo avanço das fazendas de gado.45 Além disso, justamente por conta do caráter multifacetado da política indigenista no limiar do século XIX, a questão indígena não era relevante apenas em periferias ou áreas de expansão de fronteira.46 Já em meados dos setecentos haviam sido fundadas vilas em todas as

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PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores e artesãos, p. 21-25. PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Fontes inéditas para a história indígena no Ceará, p. 19-21. LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da capitania do Ceará (1780-1822), p. 93-104. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 226. 42 PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 200. 43 SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português: análise da política indigenista de d. João VI. Revista de História, n. 161, vol. 2, 2009, p. 108-109. 44 Ibid., p. 109-110. 45 APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Povos timbira, territorialização e a construção de práticas políticas nos cenários coloniais. Revista de História, n. 168, 2013, p. 264-265. 46 SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português, p. 109.

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ribeiras do Ceará.47 Nos oitocentos, o território cearense não era uma região de expansão de fronteira (externa ou interna), e nem por isso deixou de estar nos planos de desenvolvimento econômico da Coroa, com os índios ocupando um papel destacado nas discussões. Ou seja, a questão indígena deve ser vista a partir da conjugação de dilemas centrais da monarquia com as particularidades regionais. Semelhante ao que ocorria no Grão-Pará, as reclamações dos administradores portugueses em relação à ineficácia do Diretório no Ceará eram constantes por conta dos abusos dos diretores e donos de terra.48 Mesmo assim, como afirma Pinheiro, “a manutenção das vilas de índios era essencial, pois estava se iniciando a produção de algodão na capitania e a força de trabalho indígena seria fundamental”.49 A preocupação maior das autoridades imperiais em território cearense era o controle da mão-de-obra, em sua maioria livre – com variações entre as regiões – e que tinham como característica demográfica a dispersão geográfica e o constante nomadismo.50 Lá, como veremos ainda neste capítulo, os membros do governo entendiam como inviável a anulação do Diretório, que garantia o controle dos diretores sobre o cotidiano de trabalho dos índios e o vínculo das comunidades às vilas, verdadeiros "celeiros de mão de obra". Era prioritário para a Coroa e os estadistas lusitanos "o aumento da quantidade e a melhora da qualidade da produção colonial".51 Nesse contexto, destaca-se dom Rodrigo de Souza Coutinho (irmão do governador do Grão-Pará, Francisco de Souza Coutinho) que ocupou vários cargos na Corte portuguesa, preocupado com o "fomento da exploração econômica no Brasil" e em "reorganizar a exploração ultramarina".52 Intrínseco aos

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PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores e artesãos, p. 6-7. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 21-23. 48 PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 214-219. 49 Ibid., p. 220. 50 Em sua análise dos dados populacionais no Ceará entre os séculos XVIII e XIX, Chandler não atenta para a maior facilidade que havia em computar escravos do que a população livre e dispersa, além dos índios terem sido, muitas vezes, obscurecidos nas diversas classificações referentes aos mestiços ou até mesmo na categoria “brancos”. Cf. CHANDLER, Billy Jaynes. The role of negroes in the ethnic formation of Ceará, p. 34-36. Ainda assim, é exagerada a afirmativa de Pinheiro, para quem, no Ceará, “o trabalho escravo africano foi insignificante”. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 226. Raimundo Nonato de Souza, por exemplo, mostra que houve um crescimento no número de escravos do vale do Aracaú no final do século XVIII, além da significativa população negra, forra e proprietária. Cf. SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha riqueza é fruto do meu trabalho”, p. 173. Em contrapartida, Billy Chandler, João Leite Neto e Rones Duarte apresentam a relativamente baixa porcentagem de cativos nos habitantes das vilas próximas a Fortaleza. Cf. CHANDLER, Billy Jaynes. The role of negroes in the ethnic formation of Ceará, p. 40-41. LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da capitania do Ceará (1780-1822), p. 98-99. DUARTE, Rones da Mota. Natureza, terra e economia agropastoril – Soure (CE), p. 98. 51 NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, p. 254. 52 Ibid., p. 117-119. No ministério de Coutinho a "civilização" dos índios tinha papel fundamental, seja pela liberação das terras por eles ocupadas – promovendo o povoamento, circulação e comércio nessas regiões –

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programas reformistas de Portugal do final do século XVIII estava o objetivo de recuperação da antiga grandeza do império, imbuídos da missão de civilizar os povos de seus domínios ultramarinos. Cabia ao Estado, portanto, prover aos súditos a prosperidade, o bem comum e a felicidade, termos recorrentes na documentação e que remetiam à ambição iluminista advinda da civilização.53 Em relação aos índios do início dos oitocentos, o Diretório servia como um dos arcabouços legais de regulação das práticas da metrópole, cujo intuito era torná-los felizes e transformá-los em indivíduos úteis aos interesses públicos.54 Quando o olhar se direciona aos contextos locais, fruto da interação de diversos agentes formadores da sociedade colonial nas vilas, percebe-se que as concepções relativas àqueles povos passam a ter feições distintas do que era pensado na lei. As imagens acerca dos índios, construídas pelos administradores metropolitanos, eram oriundas de suas ideias políticas e filosóficas em choque com a realidade prática com a qual se deparavam, e que, por isso, se transformavam de acordo com a particularidade das situações. Muitas das práticas civilizadoras, teorizadas no outro lado do Atlântico, eram fatalmente abandonadas ou adaptadas pelos administradores portugueses quando lidavam com os povos na América, que se posicionavam de maneiras incontrolavelmente diferentes ao que era previsto. Com o tempo, os habitantes da colônia, segundo Domingues, percebiam que os “conceitos de felicidade, bem comum, riqueza e progresso não tinham aplicabilidade quando se tratava das etnias ameríndias [...], porque reconheciam que estes objetivos eram diferentes para lusobrasileiros e índios”.55 Como aconteceu no Grão-Pará, os planos da Coroa eram questionados por muitos governadores das capitanias quando percebiam que os indígenas, mesmo se relacionando com os brancos e submetidos ao poder imperial, não se transformavam em súditos ideais. As explicações para o insucesso do projeto indigenista estavam tanto na ação dos nativos – a partir de sua natureza “indolente” – quanto no despreparo e abuso dos diretores56 sobre a

como pelo seu aproveitamento enquanto mão de obra. Cf. MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras, p. 44-45. 53 NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, p. 217-218. PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (século XVI a XVIII). In: CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 122. 54 DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, p. 299-303. 55 Ibid., p. 324. 56 APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá e outros povos indígenas nas fronteiras do sertão: as práticas das políticas indígena e indigenista no norte da capitania de Goiás – século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 160-161. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, p. 156. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índio do Rio Grande do Norte sob o Diretório pombalino no século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 451. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 216-218.

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população de quem deveria cuidar e fazê-la "tomar consciência” da “convicção relacionada com o ‘bem comum’”.57 No entanto, mesmo que houvesse críticas às leis ou suas aplicações por parte dos líderes do governo cearense no período estudado, alguns se posicionaram pela manutenção das políticas indigenistas que vinham sendo adotadas desde a segunda metade do século XVIII. Se acreditavam que o Diretório, ou sua aplicação, era falho, por que as soluções alternativas que propuseram não sugeriam sua abolição? Vários aspectos da população indígena e da demografia e economia do Ceará foram importantes para que se manifestassem em favor da continuidade da lei pombalina. Veremos agora exemplos de dois governadores da capitania no século XIX que defenderam a manutenção do Diretório por acreditarem ser a ferramenta que melhor atendia os intentos da metrópole, pela simetria dos objetivos da legislação setecentista com os do Estado português no Ceará em termos de produção econômica e uso da população disponível.

O grau de liberdade

O primeiro deles foi Bernardo Manuel de Vasconcelos. Chefe de esquadra da Armada Real Portuguesa, nomeado governador do Ceará por decreto de 18 de outubro de 1797, 58 era, segundo Geraldo Nobre, “o mais notável de todos à época de sua nomeação, pois era veterano de várias campanhas, com uma folha de serviços comprobatória de sua capacidade e de seu patriotismo”.59 Para a produção de uma memória dirigida à rainha dona Maria I em 1799, quando assumiu o governo cearense, Vasconcelos encontrou em “Francisco Bento Maria de Targini perfeitos conhecimentos da mesma capitania, mostrados por princípios físicos e políticos”.60

ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” do Brasil do século XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 183 58 Cf. ALMEIDA, Manuel Lopes de. Notícias históricas de Portugal e Brasil (1751-1800). Coimbra: Coimbra Editora, 1964, p. 369. 59 NOBRE, Geraldo da Silva. O Ceará capitania autônoma. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária, tomo especial 8, 1987, p. 88. 60 De Bernardo Manuel de Vasconcelos à rainha Dona Maria I. 1799. AHU_CU_006, Cx. 13, D. 745. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento. Visconde de São Lourenço e responsável pelo Real Erário do governo de dom João VI, Targini foi também “Escrivão e Deputado da Junta da Fazenda do Ceará por nomeação de 25 de janeiro de 1799”. Cf. A correspondência de Bernardo Manoel de Vasconcelos e João Carlos Augusto d’Oyenhausen com os ministros D. Rodrigo de Souza Coutinho e Visconde de Anadia como subsídio para a história de seus governos. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: tomo III, 1889, p. 142. Segundo Isabel Lustosa, Targini teria saído do Ceará brigado com governadores e ouvidores por conta de práticas administrativas desonestas, indo para o Rio de Janeiro em 1807 e ficando conhecido como "homem mais corrupto da corte de d. João". Cf. LUSTOSA, Isabel. Do ladrão ao barão. Folha 57

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Figura 1 – Francisco Bento Maria Targini, Visconde de São Lourenço. 1819.

Henrique José da Silva. “Francisco Bento Maria Targini, Visconde de São Lourenço”. In: POPE, Alexandre. Ensaio sobre o homem. Tradução: Francisco Bento Maria Targini. Londres, Sociedade Literária da GrãBretanha, 1819 (gravura aquarelada). Biblioteca Nacional de Portugal, Iconografia, E-4673-P. Disponível em: .

Sobre os “naturais tapuias, ou caboclos (a que vulgarmente chamam índios)”, viviam, segundo o governador, “naquela indolência que influi nos seus habitantes os climas mais ardentes”. Seriam, por outro lado, “susceptíveis de estímulo e de condição de obrarem quando um superior sábio, e ativo, lhes inspirar”, ao invés de os “sujeitar pelas suas próprias inclinações” como acontecia no Ceará, onde os índios trabalhavam por um

"pequeno salário de cinquenta reis por dia que lhe dá o diretor, que não os satisfazendo, fogem das povoações e se ocultam nas montanhas, aonde vão cultivar um terreno que lhe dê para si e suas famílias quanto necessitam, gozando de uma vida mais tranquila e livres da cobiça do Europeu, que tanto os consterna". de São Paulo, jun. 2007. Disponível em: . Acesso em 18 de novembro de 2014.

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O contato com os brancos que, segundo o que a Coroa e os legisladores acreditavam, poderia ser um caminho para a “civilização” dos índios, os afastava de forma cada vez mais obstinada dos centros urbanos e das influências do império. Tal raciocínio se assemelha às críticas de ouvidores em relação à dificuldade de aplicar o Diretório no Grão-Pará, por causa, segundo eles, da ignorância e dos abusos dos diretores, fazendo com que os índios preferissem viver na natureza do que na “sociedade civil”, na “liberdade do homem, que na do cidadão”.61 Vasconcelos prosseguiu em sua argumentação a partir do pensamento de Targini, confrontando ainda mais suas bases políticas e filosóficas com uma realidade para ele surpreendentemente adversa. Contou que os relatos dos “maiorais” indígenas “alcantilados nas serras, [...] atento aos seus dispersos”, convenceram-no de que "aqueles homens, animados tão somente das luzes da natureza, não deixam de ser mais sábios, e menos felizes, do que nós somos, neste século da mais apurada filosofia". O bem comum, objetivo máximo das políticas populacionais desse período e das legislações embasadas em princípios ilustrados, é enfim questionado na fala do governador. Parece concordar, mesmo ainda sem experiência, que as políticas de civilização até então praticadas com o Diretório, por conta de sua má execução nas vilas de índios, surtiam efeito inverso ao pretendido pela lei. Viver sob as chamadas luzes da natureza, afastados da sociedade civil, poderia ser sinal de grande sabedoria, ainda que longe da “felicidade” tão almejada pela “mais apurada filosofia”. "Ser feliz" era impossível para essas pessoas, privadas das benesses da civilização pela cobiça e mau tratamento que recebiam de quem a lei pombalina incumbiu para educá-los. O definhamento da condição de vida da população indígena parecia vir, portanto, justamente dos agentes e da estrutura administrativa que visava seu crescimento, cujo conceito estava diretamente atrelado aos hábitos civilizados e à produção econômica. Atesta tal condição ao tratar mais especificamente das vilas, que eram sete à época, e

"consideravelmente diminutas, pelo vexame que lhe causa o bárbaro costume, dos governadores, ouvidores, diretores, e vigários, de arrancarem os filhos dos braços de seus pais, e os mandarem servir a diferentes capitanias, donde jamais voltam à sua pátria, debilitando-se, assim, a cultura tão necessária daquele terreno"

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SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. As viagens do Ouvidor Sampaio (1774-1775). Lisboa: 1825; Manaus: Associação Comercial do Amazonas/Fundo Editorial, 1985, p. 137. Apud. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 220.

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Os espaços imaginados como polos civilizadores dos indígenas eram a marca, segundo o governador, da decadência das ações governamentais por conta da deturpação do trabalho, pensada inicialmente como ferramenta educacional. Ao estudar o contexto do Rio Grande do Norte, Fátima Martins Lopes aborda a construção da imagem de desolação das vilas dessa capitania nos relatos de observadores da época: por um lado, a situação refletiria a decadência moral de seus habitantes; por outro, se explicava pela ação abusiva dos diretores. Mesmo se levando em conta o olhar do observador europeu, que traduzia os atos de resistência dos índios enquanto sinal de uma índole degenerada,62 é preciso reconhecer os efeitos devastadores da superexploração que essa população sofria por parte de seus gestores. No olhar de Vasconcelos, o trabalho indígena, ao invés de ser uma ferramenta transformadora de bárbaros em vassalos, acabava por servir a interesses particulares. Tais atitudes seriam evidentemente danosas, seja por separar famílias, mas principalmente por atingir aquilo que era prioritário ao império, ou seja, a criação, naquela região, de um campesinato produtivo. No contexto descrito pelo governador, com base no pensamento de Targini, os costumes bárbaros eram praticados pelos administradores, representantes das luzes europeias na América, e não necessariamente – ou unicamente – pelos índios, bem mais sábios por se alcantilarem em meio à natureza. Em 1º de abril do ano seguinte, já ambientado na capitania que passou a governar, Vasconcelos produziu novo ofício sobre os índios e suas vilas, dessa vez a partir de conhecimentos próprios e do que ele mesmo observou.63 O remetente era dom Rodrigo de Souza Coutinho, em resposta às cartas por ele encaminhadas: uma delas trata do "cuidado da civilização dos índios, a qual me pondera V. Exª. tem sido até agora tão mal praticada e entendida". Vasconcelos concorda com Coutinho, para quem, dentre os vários motivos para a má situação, o principal era a má escolha dos diretores, causa maior das deserções dos índios das vilas para "os seus bosques, de onde primeiramente foram compelidos a sair". O argumento se relaciona com o que foi dito na memória encaminhada à rainha dona Maria I, acerca da falta de homens "filósofos" para dirigir os nativos. Para o governador, as opressões aos índios vinham desde o descobrimento, mas alcançaram seu ponto máximo com os padres da Companhia de Jesus, cujos "evidentes testemunhos" eram as leis dos reis D. Pedro II, D. João V e D. José I, "a fim de coibir os procedimentos arbitrários dos jesuítas sobre os índios seus dirigidos". Após a expulsão dos 62

LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade, p. 390-392. De Bernardo Manuel de Vasconcelos a Rodrigo de Souza Coutinho. Fortaleza, 01 de abril de 1800. AHU_CU_006, Cx. 13, D. 769. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento. 63

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religiosos, a proteção aos índios ficou ao cargo dos diretores, "cujas obrigações se acham excelentemente prescritas nos diversos capítulos de que se compõem o Diretório, que o Senhor Rei Dom José mandou ordenar". Fundados "nos axiomas dos direitos natural e das gentes", era também sobre estes que o rei "regul[ara] as ordens que respectivamente V. Exª. me dirigi[ra] em 28 de agosto de 1798". Nessa data, Vasconcelos ainda não havia chegado ao território cearense, mas passara um mês da promulgação da Carta Régia que aboliu a legislação pombalina no norte do Brasil. Não foi possível encontrar as ordens de 28 de agosto; contudo, pelo texto de Vasconcelos, fica clara sua conexão com o Diretório, extinto para o Grão-Pará, mas ainda em voga nos planos da Coroa para algumas regiões de sua colônia e elogiado pelo governador do Ceará. Ao contrário do que faziam alguns críticos da época, como o líder do governo paraense Francisco de Souza Coutinho (irmão do remetente do ofício), Vasconcelos entendia que a crítica à forma como eram escolhidos os diretores não significava uma condenação à lei que instituía o cargo. Esta era "excelentemente prescrita" e necessária para um lugar como o Ceará. Depois de correr "um véu aos efeitos que a proteção tirana dos jesuítas exerceu sobre os índios", o governador passou a expor o então estado dos índios "relativamente ao governo dos seus diretores, ao modo com que se acham aldeados, ao emprego que fazem seus dirigidos, ao grau de liberdade que possuem [característica importante do Diretório, criado justamente como adaptação às leis de 1755], e, finalmente, à vida social e cristã". Segundo Vasconcelos, em todas as vilas, curiosamente, viviam "com tranquilidade os índios com os seus diretores, sem que a opressão tenha, até agora, motivado grandes queixas que necessitem de providência maior". O maior desafio seria "empregar os índios no trabalho" para sua própria subsistência.

"Não há, porém, sacrifício maior para um índio que este dever imposto pela natureza e humanidade. Tirá-los dos seus bosques, arrancá-lo ao ócio, proibir-lhe o furto e o latrocínio, uni-los com os mais homens nos vínculos da sociedade, são isto dificuldades que eu talvez não erre chamando-lhe invencíveis".

As reclamações do governador, frustrado com o apego "invencível" dos índios aos seus hábitos ancestrais, mudam o foco das explicações até então apresentadas para a civilização mal praticada entre os nativos. Mesmo que presente neste ofício e no do ano anterior, os abusos perpetrados por autoridades já não eram mais a causa principal da fuga para os bosques, e a relação que tinham com seus diretores chega a ser caracterizada como "tranquila". A argumentação de Vasconcelos passa a se voltar aos próprios indígenas, que

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dividiam a aplicação daquilo que ganhavam como fruto do trabalho em três partes iguais: "aguardente, farinha e tabaco de fumo", para, em seguida, entregar-se "ao repouso até que o outro dia lhe faça sentir as mesmas necessidades". Diante do que entendia como um "estranho modo de viver", o esforço do governador estava em incumbir os diretores de mostrar aos índios "a utilidade de estenderem as vistas ao futuro, com trabalho antecipado, mostrando-lhes a habitação que o suor dos outros edificou, a abundância que para si e sua família adquiriu, e que o descanso só deve vir em consequência do trabalho". A felicidade, na visão do representante da Coroa, era exclusiva da sociedade civilizada e estágio impossível para aqueles que não compartilhassem o ideal do trabalho enquanto útil, fonte de abundância e único meio para o descanso. Não poderia ser constatada de outra maneira, e muito menos alcançada em outra circunstância, a não ser por meio da produtividade. Refugiar-se em meio às "luzes da natureza", ainda que sábio – por que melhor que a exploração – jamais lhes faria felizes. Mas, se em 1799, quando ainda não havia chegado ao território cearense, esta hipótese era considerada, a convivência com os indígenas fez com que Vasconcelos mudasse de opinião. Se antes creditava as fugas à má escolha dos diretores, passou a atribuir "a primeira origem da deserção dos índios das suas vilas e aldeias para os bosques [...], segundo a experiência me fez ver, àquele natural pendor para o ócio mais profundo, e a constante repugnância a viverem em sociedade civil". Na segunda análise do governador, os nativos passam à posição de protagonistas de sua condição. Mais do que reagir perante adversidades, era dos índios a responsabilidade por escolher "os bosques" em detrimento da "sociedade". O entendimento europeu iluminista, contudo, os percebia como infelizes ociosos, e a causa das deserções e de seu modo "incompreensível" de vida estava em sua natureza, e não em atos racionais. Por isso que o segundo motivo para as fugas, de acordo com Vasconcelos, era o "emprego dos índios em serviços estranhos". Não deixou claro do que se tratava, mas disse reforçar aos diretores que pagassem os salários dos índios "com toda a exatidão, e não se intromet[essem] com o seu governo doméstico, nem lhes tom[assem] os filhos para serviços estranhos". Sabia que, com imposição e sem bom tratamento, os indígenas jamais abraçariam a "sociedade civilizada", de quem, como que por instinto, também fugiam. Era tarefa difícil, na opinião de Vasconcelos, convencer os índios a adquirir hábitos civilizados se isso não havia lhes sido mostrado de forma competente. Mas em sua segunda comunicação, a ação dos diretores deixa de ser o motivo principal para seus obstáculos. A relação, que antes era tensa, passou a ser tranquila, e o que parecia realmente invencível era o apego dos índios às matas, aos seus hábitos ancestrais e suas antigas formas de conceber o

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mundo. Na continuação dos comentários a respeito das ordens que recebeu do rei, tratou da "inteira liberdade" que não fosse "ofensiva às leis". Parecia-lhe "assaz precisa [...] enquanto os bons efeitos forem o seu resultado". Para Vasconcelos, em uma

"nação que se assemelha muito a um agregado confuso de homens bárbaros e independentes, que não obedecem senão às suas paixões particulares, e que não podem ter um interesse comum, sem se sujeitar à Regra, à Lei e à Sociedade, e a usos constantes, parece estar nas circunstâncias de se lhe aplicar muito esta restrição".

O governador abordou a liberdade relacionando-a a leis que a restringiam quando aplicada a grupos humanos tidos como insubmissos e bárbaros por serem independentes. Tal raciocínio era diretamente contrário ao que, nesta mesma época, ocorria no Grão-Pará por meio da extinção da tutela para os índios aldeados, e faz transparecer a concepção de que a aplicação de determinada lei se guiava por aspectos específicos de cada realidade. No Ceará, a atuação dos índios fazia com que o governo da capitania entendesse que esses grupos deveriam ser livres, mas não sem quaisquer limitações, ideias que compactuavam com a legislação em vigor na região: o Diretório. Não foi possível encontrar as ordens enviadas a Vasconcelos meses após a promulgação da Carta Régia de 1798, mas as leis a que se referiam eram, provavelmente, os artigos da legislação pombalina. "É outro objeto da mesma carta de V. Exª.", e que também fazia parte dos planos do Diretório, a "abertura de um comércio de troca", e que "entre os índios [se] estabeleçam algumas pessoas, no qual pratiquem a mais exata boa fé e lisura, e lhes deem a conhecer as vantagens que lhes devem resultar da comunicação com os europeus". Esse seria "um meio muito próprio e eficaz de civilizá-los", mas lamenta não haver "descoberto neles alguma inclinação para o fundamento deste estabelecimento", e nem trabalho "que produza efeito visível, que seja objeto desse comércio". Mais uma vez, a obstinação dos índios em negar diretrizes do governo é ressaltada nos insucessos de Vasconcelos. Após tratar rapidamente da "educação civil e cristã dos índios", expôs as grandes dificuldades em fazer com que os indígenas construíssem e habitassem suas próprias casas. Na sua visão, "todo índio, geralmente falando" seria um "agregado de indolência absoluta e de insensibilidade, mesmo àquela ambição que é justa, e que a natureza infundiu no homem para fazer obrar muitas e utilíssimas coisas, não só a si mesmo, mas à sociedade". Por conta "desta total inércia", mantinham o "contínuo costume de não edificarem casas que os abriguem e em que vivam", e as únicas feitas "são comuns a todos eles, a que denominam Casas da Vila, por

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que são obrigados pelos diretores". Depois de alguns meses, a vida nas residências era interrompida

"por digressões ociosas para os bosques [...], de sorte que a mesma Vila é obrigada a vendê-las com intervenção dos diretores aos brancos, que só por este modo se conservam as mesmas casas que os índios fazem. Ninguém sabe que espécie de persuasão invente para convencer os índios de que a habitação fixa é preferível aos bosques. Só eles são suas delícias, só para eles fogem: nenhuma sensação lhes faz o aspecto das suas choupanas demolidas, que os seus braços acabaram ainda a pouco de levantar".

A "obrigação" da vila em vender as casas deveria ser a necessidade, percebida pelas autoridades, em dar utilidade às edificações que, logo após construídas, eram abandonadas. Os lucros possíveis dos diretores com as vendas aos brancos parecem não ter sido percebidos por Vasconcelos, que também não entendia a indiferença dos índios pelas habitações. Por mais que o governador qualifique as choupanas como "suas", para os índios, não passavam de obrigações, como ele mesmo mencionou. A vida desses grupos ainda guardava conexões com antigos costumes e visões de mundo, e esse era o motivo para que o governo percebesse como necessário restringir sua liberdade através do Diretório. Se a civilização ainda não havia sido idealmente transmitida aos nativos, a ponto de sequer residirem em casas e manterem-nas em bom estado, a situação das vilas de índios era, consequentemente, de ruína, na ótica de Vasconcelos. Depois de ter examinado pessoalmente as três povoações que circundavam a capital, diz ter dado providências para sua reconstrução. Sobre Arronches, que se encontrava em pior estado, ordenou ao diretor que não empregasse os indígenas "em serviços fora da vila", até que seus destroços "de que ela se compõe se convert[essem] nas casas de que constava". Segundo John Monteiro, havia “duas grandes tendências que marcaram o debate indigenista da segunda metade do século XVIII até os anos iniciais do século XX”. Para uns, o “atraso e a inferioridade dos índios era consequência das ações humanas de maus governantes, administradores e religiosos”, e outros acreditavam que “os povos selvagens não tinham jeito mesmo”, centrando as origens de seus problemas na natureza.64 Em cerca de um ano de experiência no Ceará, tendo conhecido pessoalmente três de suas vilas de índios, Vasconcelos parece ter cambiado de uma dessas tendências para outra, a partir de um poder de análise da realidade que presenciara bastante limitado. Não percebia a tensa relação que outras autoridades constantemente indicaram, antes e depois de seu mandato, entre índios, 64

MONTEIRO, John Manuel. A memória das aldeias de São Paulo: índios, paulistas e portugueses em Arouche e Machado de Oliveira. Dimensões, vol. 14, 2002, p. 20.

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párocos e diretores. Apesar de assumir que eram mal escolhidos, aparenta ter esquecido os relatos de Targini sobre maus tratos, ao falar de uma suposta tranquilidade e atribuindo apenas à "inconstância" indígena as repetidas deserções. A percepção e ação política dos nativos fugiam à ótica do governador, que os descrevia de forma quase animalesca, movidos por uma natureza ociosa. A pouca compreensão de Vasconcelos representada no antagonismo entre a vila e o bosque não traz maiores esclarecimentos acerca dos significados das mudanças de espaço para os índios, como aponta Lígio Maia. As fugas, além de transparecerem "a maneira como os índios se relacionavam com toda essa construção planejada nas povoações pombalinas", também manifestavam buscas por melhores condições de vida, assim como contou Targini sobre os "alcantilados na serra".65 Maia lamenta não ter encontrado fontes semelhantes às que tratam da trajetória dos nativos no sul da colônia portuguesa, que cruzavam as fronteiras com o império espanhol dizendo-se súditos de Castela, trabalhadas por Elisa Garcia.66 Mas no caso cearense, um dos destinos possíveis, quando a saída das vilas era permanente, eram fazendas particulares, trabalhando como empregados e geralmente sofrendo maus tratos, ou vilas de brancos, onde eram incorporados às ordenanças do lugar e cultivavam lavouras próprias.67

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MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e identidade no Ceará colonial – século XVIII. Tese (doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 307. 66 GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009, p. 859. 67 COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 274-280 e 320-323. Bárbara Sommer, a partir dos estudos de Gabriel Debien, se utiliza das expressões "petit marronnage" e "grand marronnage" para definir padrões diferenciados de fuga dos índios. Esta última se referia a formas mais permanentes de abandono das vilas, protagonizadas geralmente por grupos recém contatados, cuja ligação com o mundo colonial ainda era frágil. No Ceará, como vimos, tais movimento definitivos quase nunca representavam quebra de laços com a sociedade envolvente, sendo frequente o silenciamento da condição de indígena. Já as "petit marronnage" representavam formas de protesto contra más condições de trabalho e tratamento por diretores e particulares. Cf. SOMMER, Barbara Ann. Negotiated settlements, p. 156. Eram sinais de que as linhas que separavam o mundo da "gentilidade" – ou dos costumes ancestrais – e da "civilização" eram bastante tênues. Não necessariamente falsas, como afirma Sommer, já que os grupos nativos lidavam com ela e passaram a percebê-la de forma mais concreta com o recrudescimento das políticas disciplinares – Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 169-264. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 195-363 – além do fato dos aliados se identificarem como absolutamente diferentes dos gentios, como veremos mais à frente. As fronteiras eram flexíveis, como coloca a própria autora (SOMMER, Barbara Ann. Negotiated settlements, p. 174), porque frequentemente atravessadas, praticadas e pensadas de maneiras distintas por índios e pela política da Coroa. Fugas também foram constantes em outras regiões do Brasil, como em Goiás e no Piauí, decorrentes do aumento do assédio à mão-de-obra dos índios e suas terras entre o final do século XVIII e início do XIX. Cf. KARASCH, Mary. Catequese e cativeiro: política indigenista em Goiás: 1780-1889. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP: 1992, p. 398. SILVA, Mairton Celestino da. Africanos escravizados e índios aldeados na capitania de São José do Piauí, 1720-1800. In: SILVA, Mairton Celestino da; OLIVEIRA, Marylu Alves de. Histórias: do social ao cultural/do cultural ao social. Teresina: EDUFPI, 2015, p. 190-193.

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A conjuntura indigenista no Ceará se desenrolou de maneira inversa à do Grão-Pará:68 para Bernardo Manuel de Vasconcelos, as próprias fugas dos índios, somadas aos seus hábitos pouco civilizados, eram o motivo principal para que sua liberdade tivesse restrições. O Diretório, mantido nesta capitania décadas após 1798, era a lei ideal para esses objetivos. A lógica da Coroa portuguesa parecia funcionar diferentemente da análise de Bert Barickman para a realidade colonial do início dos oitocentos. O autor acredita que a lei pombalina fracassara por não ter conseguido desenvolver o comércio nas vilas pela constante resistência dos índios.69 Para as autoridades imperiais lusitanas, o Diretório seria uma solução para a fraca economia e a população insubordinada de regiões como o Ceará, que careciam fortemente da força de trabalho indígena. Ao contrário do que assevera parte da historiografia, a legislação pombalina não continuou em partes do Brasil apenas por falta de outras que a substituísse, já que não havia preocupação da monarquia em aboli-la em toda a sua colônia. A política indigenista nos primeiros anos do século XIX, como afirma Marina Machado, atrelava-se aos projetos de colonização e desenvolvimento, não somente em relação à "dinâmica de ocupação, mas também às possibilidades de utilização de mão-de-obra indígena".70 Como não havia no Ceará tantas terras a serem desbravadas, a preocupação estava em agregar a força de trabalho nativa dispersa pelo território, fugida dos espaços destinados a sua integração à sociedade civilizada. Na continuidade de seus trabalhos, o governador Vasconcelos comunicou-se novamente com Rodrigo de Souza Coutinho em março de 1801, agora sobre a reedificação de Arronches, Soure e Messejana, e que esperava "ver por todo este ano realizados os efeitos da primeira [vila]". Pelo aumento de sua população, mandou "edificar mais oito casas, o que fica sendo de suma comodidade aos seus habitantes". Sobre Soure, ordenou a seu diretor que empregasse os índios "no corte das madeiras necessárias para a reedificação da mesma vila [...], para que assim tenha plena satisfação de dar pleno cumprimento às sábias e providentíssimas ordens de V. Exª.".71 Ainda preocupado que os indígenas vissem as casas que eram obrigados a construir como lugares 68

As ações dos índios, que contestavam a sociedade pretendida pela Coroa e os abusos das autoridades através das deserções, não passavam despercebidas pelo governo imperial, e influenciavam a prática política. Barbara Sommer acredita que a própria abolição do Diretório no norte do Brasil, substituído pela Carta Régia de 1798, veio como uma resposta a esses atos e às novas condições demográficas que a mobilidade indígena gerou. Cf. SOMMER, Barbara Ann. Negotiated settlements, p. 156 e 187. Para Patrícia Sampaio, os planos coloniais para a Amazônia foram impedidos pelo "simples fato de que seus habitantes tinham seus próprios interesses". Conclui que "a maior modificação resultante das intervenções das populações nativas sobre a legislação pombalina foi a sua própria extinção". Cf. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 226. 69 BARICKMAN, Bert J. "Tame Indians", "wild heathens" and settlers in southern Bahia in the late eighteenth and early nineteenth centuries. The Americas, v. 51, n. 03, 1995, p. 327-329. 70 MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras, p. 59. 71 De Bernardo Manuel de Vasconcelos a Rodrigo de Souza Coutinho. Fortaleza, 31 de março de 1801. AHU_CU_006, Cx. 15, D. 840.

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cômodos, vemos que as ações do governo do Ceará, seguindo um caminho diferente do que ocorria no norte do Brasil por meio da reforma de vilas pombalinas, seguia de acordo com as determinações do rei. Tais melhorias eram peças-chave dos objetivos da Coroa para os índios, cuja relação com os espaços projetados era bem diferente do que pretendiam as autoridades. De acordo com Marina Machado, as políticas lusitanas de desenvolvimento econômico para a colônia, na passagem dos séculos XVIII e XIX, viam como vitais "a necessidade de aldeamento e controle dos índios". Mas, se para o Rio de Janeiro estudado pela autora, o foco estava na ocupação das terras, na expansão da fronteira de ocupação e na lavoura do café, 72 em território cearense a ideia era fazer das vilas fornecedoras constantes de mão-de-obra, como era previsto no Diretório. O que unia as distintas formas de aplicação da política indigenista no império português era a "civilização": palavra frequentemente citada na documentação de Vasconcelos aqui analisada, esse seria o caminho para a plena integração dos indígenas à sociedade colonial como súditos trabalhadores e disciplinados. O próprio dom João VI, em outubro de 1802, ordenou ao governador que informasse "com maior exatidão dos progressos que tem feito a importantíssima civilização dos índios dessa capitania do Ceará", assim como fez por meio de "ordem circular aos mais governadores do dito Estado do Brasil". 73 O caráter civilizatório nas ações com os nativos, portanto, não deixou de ser preocupação do príncipe regente, ao mesclar controle populacional, liberação de terras para cultivo e formação de contingentes de mão-de-obra, características presentes em seu governo mesmo após sua chegada ao Brasil.

Os males da perfeita liberdade

O segundo exemplo de defesa do Diretório é a resposta do governador Manuel Ignácio de Sampaio ao extenso requerimento produzido pelos índios de Vila Viçosa e Baepina, na serra da Ibiapaba, em outubro de 1814: a mais importante e bem documentada manifestação indígena contrária à lei pombalina no Ceará oitocentista. Encaminhando à "Soberana Rainha Nossa Senhora" dona Maria I, os nativos pediram na solicitação que recolhesse "o Diretório por um decreto, para que os senhores brancos, e outras qualidades de pessoas que residem nas

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MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras, p. 69. De d. João VI e ministros do Conselho do Ultramar a Bernardo Manuel de Vasconcelos. Lisboa, 12 de outubro de 1802. AHU_CU_006, Cx. 17, D. 946. 73

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terras dos índios, cada um procure suas pátrias". Só assim se veria "florescer os índios nos aumentos da sua vila e dos seus negócios", impedidos pelos brancos que lhes tiravam "todo o seu direito". Requereram ainda a devolução de algumas terras aparentemente invadidas e que mandasse mantimentos que pagariam com algodão.74 A resposta da Coroa foi expedida ao final do mês de outubro, solicitando que o governador informasse "sobre as pretensões dos suplicantes, dando, entretanto, que o mesmo Senhor não as resolve, a providência que vossa mercê julgar conveniente a respeito dos diretores de quem se queixam”.75 A decisão é um indicativo do funcionamento da política indigenista joanina, que delegava a cada capitania a condução dos rumos da administração da população indígena. Apenas no ano seguinte o governador agiu no sentido de deliberar acerca da solicitação da comunidade de Viçosa. Como fez Bernardo de Vasconcelos para produzir sua memória, solicitou a opinião de algumas autoridades – como o diretor de Viçosa, Antônio do Espírito Santo,76 e o secretário do governo do Ceará, José Rabelo de Souza Pereira. A resposta do secretário veio em 11 de julho de 1815. Com palavras duras, atribuiu a culpa dos problemas da região aos próprios suplicantes, dificultando a conquista do que pediam. Reconhecia as adversidades com o estabelecimento dos subsídios de carnes, que impediram o aparecimento de arrematantes desse contrato – “a ponto que faltavam mais de 12 mil, que existiam na Parnaíba e no Piauí ganhando sua vida” – mas negava a explicação dos maus tratos para a situação de esvaziamento da vila. Afirma ter tido boas informações do então diretor, Antônio do Espírito Santo, e em relação “aos rigores de que os índios se queixam ser tratados, parece-me, ao contrário, que a relaxação em que eles estão produz a sua mesma miséria e aniquilação, pois que são gente sem avareza, nem ambição, nem prevenção, com poucas necessidades, e estas do momento, e de uma indolência que se deixarão antes morrer que trabalhar”.

O método dos jesuítas, segundo o secretário, era sábio, “pois naquele tempo [os indígenas] floresciam em população, agricultura, e indústria ao seu modo”, mas, pela situação no período em que escrevia, em pouco tempo se veria “confundir ou extinguir a raça dos índios”.77

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Abaixo-assinado dos índios da Ibiapaba à rainha dona Maria I, anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93. 75 Do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93. AN, AA, IJJ9 56, p. 111. 76 De Manuel Ignácio de Sampaio a Antônio do Espírito Santo. Fortaleza, 12 de maio de 1815. APEC, GC, livro 20, p. 19. 77 De José Rabelo de Souza Pereira a Manuel Ignácio de Sampaio. Fortaleza, 11 de julho de 1815. BN, C-199, 14.

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A resposta de Pereira sugere possíveis ligações políticas envolvendo o secretário e autoridades locais da vila, como o diretor Antônio do Espírito Santo, através das “boas informações” que disse ter ouvido. Ainda que o destaque à sabedoria da ação religiosa indique sua discordância aos planos pombalinos – possivelmente insuficientes no rigor necessário aos índios, de natureza tida como autodestrutiva – não coloca a presença dos diretores como um problema. Para ele, as palavras desses povos não deveriam ser sequer ouvidas, e quanto mais autonomia lhes fosse garantida – já prevista com limitações pelo Diretório e requerida com maior amplitude pelos índios – mais se aprofundariam sua miséria e aniquilação. No mês seguinte, quase um ano após a deliberação da Coroa, Sampaio enviou um ofício em resposta ao Marquês de Aguiar, a partir de observações que fizera e das pessoas que consultara.78 Apesar de admitir justas as reclamações dos índios a respeito da decadência de Viçosa e dos abusos que sofriam, julgou “nada dever alterar, por ser tudo conforme com o que se acha prescrito pelo Diretório, dado à mesma vila no momento da sua criação em 1759”. Segundo o governador, a causa principal das queixas era a “distribuição dos mesmos índios pelos moradores circunvizinhos [...], sendo os de menor idade dados a salários, e os outros a jornal”. Para ele, os índios entendiam tais procedimentos como “restos da escravidão que antigamente sofriam, sem se lembrar, primeiro, que a sua liberdade lhes foi concedida pelos anos de 1755 e 1758 com este ônus”. Em segundo lugar, que da mesma forma como eram tratados os brancos órfãos, assim deveriam ser reputados “todos os índios”, seja por ser a maioria filhos de mulheres solteiras como pelos ensinamentos dos pais, que os habituavam “ao ócio e aos princípios do gentilismo, cujos ritos não perdem a ocasião de exercitar no meio dos matos em lugares tão escondidos, que muitas vezes só eles conhecem”. A distribuição dos índios para os moradores era, no seu entendimento, “de grande interesse para a cultura do país”, e de “maior utilidade para os mesmos índios, e para o aumento de sua civilização”. Aqueles que haviam aprendido algum ofício mecânico foram educados “em casa de morador”, mas os que ficavam com os pais formavam “a ideia de que os bens são comuns, e degeneram com muita facilidade em ladrões, de que com igual facilidade saltam a salteadores”. Acerca da cessão das terras nas vilas para os extranaturais, teriam a finalidade de “aumentar a civilização dos índios, facilitando-lhes a comunicação com os brancos, e de procurar algum rendimento para as câmaras por meio dos foros”, que pagavam aqueles que não tinham casa na vila. “Tudo se acha sabiamente providenciado no Diretório”; contudo, 78

De Manuel Ignácio de Sampaio ao Marquês de Aguiar. Fortaleza, 01 de agosto de 1815. BN, C-199, 14. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento.

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reconhecia que os diretores, autoridades criadas pela lei, abusavam dos índios, “sem que o governador lhes possa inteiramente obstar, em razão das grandes distâncias destes sertões”. “Mas além de que este abuso se não verifica[va] a respeito do atual diretor de Vila Viçosa Real [Antônio do Espírito Santo]”, os males provenientes de uma “perfeita liberdade” seriam muito maiores do que os que procediam dos abusos dos diretores, anualmente fiscalizados pelos ouvidores. Para um combate mais efetivo aos abusos, a proposta de Sampaio era a criação dos cargos de juízes de fora nas vilas de índio, “observando-se o que prevê o Diretório”. Não mereceria, na visão do governador, “nenhuma atenção” a “pretensão de terem uma loja de ferramenta e de instrumentos de agricultura”. Segundo ele, os índios teriam nas vilas de Sobral e Granja tudo o que precisassem, o que seria bom para que “fossem capazes de sentir necessidades e de trabalhar para supri[-las]”. Ainda assim, admitia que tinham “muita razão de lamentarem da decadência das suas vilas, que eles atribuem a causas bem diferentes das reais e verdadeiras”. Desconsiderando a importância das reclamações sobre agressões e abusos dos diretores, a origem das dificuldades, para ele, estava em impostos cobrados – subsídios militar e literário e o de “cinco réis sobre cada libra de carne verde” – que emperravam ainda mais a economia de uma região já comercialmente debilitada. Sobre isto, afirmou ter recebido “várias representações tanto dos índios de Vila Viçosa como de outros”, mas não tomava providências por obediência às ordens da Coroa. Concluiu suas informações “sobre as queixas dos índios de Vila Viçosa” como sendo “em parte justas”, mas que “não souberam suficientemente aclarar no seu requerimento”, ainda que carecessem de providências por serem “dignos de compaixão”. A defesa ao Diretório foi mais uma vez corroborada, não só em prol de sua manutenção como também na tentativa de provar seus benefícios para a civilização dos índios. A busca em reafirmá-los e expor uma suposta ignorância indígena acerca de sua realidade fez com o que Sampaio caísse em redundância. O governador passou boa parte do texto explicando os objetivos da lei pombalina – provavelmente, já bem conhecidos pelo príncipe regente – e, por ela em si, os clamores indígenas não fariam sentido ou seriam provenientes de entendimentos limitados. A explicação da denúncia dos “restos de escravidão” pelo que ele julga de “esquecimento dos índios” das leis de liberdade é uma prova dos “a priori” que revestiam o raciocínio de Manuel Ignácio de Sampaio. Ao contrário, as leis de 1755 e 1758 não foram esquecidas pelos indígenas, mas usadas como argumento para legitimar sua liberdade enquanto mercês da monarquia, e que, por não serem postas em prática plenamente, deveriam ser beneficiados com a expulsão dos brancos da vila.

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Para o governador, a natureza dos índios seria, em si, inferior, por não terem capacidade de avaliar sua própria situação, por serem propensos ao gentilismo e por não perceberem que era ela a origem de seus sofrimentos. O diretor de Viçosa, Antônio do Espírito Santo, foi novamente defendido, e a convivência com os extranaturais passou de “causa da decadência” – na ótica indígena – para fundamental à civilização. O trabalho tutelado dos índios, alugados aos proprietários, é também destacado como benéfico a eles e à economia da região, reforçando sua opinião de que os sofrimentos e soluções que apresentavam – ao pedirem armazéns de ferramentas – eram injustificáveis, e que apesar de ser preciso providências, a política indigenista deveria permanecer inalterada. Por serem como “órfãos”, a liberdade deveria continuar restrita, e o “sábio” Diretório, em vigor na Ibiapaba desde 1759 sem ter sido, até então, abolido, assim precisava continuar. Em setembro do ano seguinte, uma nova comunicação foi remetida ao governador, por meio de ofício do ministro Thomas Antônio de Vilanova Portugal, sobre o requerimento dos índios da Ibiapaba. Pedia, além de novas informações sobre a situação dos índios, que desse as providências necessárias para que, indefectivelmente, se observasse "o que se acha estabelecido a respeito dos índios, não consentindo que se lhes tirem as suas terras, nem se lhes façam violências, e procedendo contra os diretores que faltarem ao seu dever”. A postura do príncipe regente mais objetiva, e aparentemente atenciosa aos clamores indígenas, se deveu a ter-lhe sido “muito agradável a adesão que os índios mostraram ter à sua real pessoa no sucesso da Revolução Pernambucana”, abafada havia poucos meses, e queria, "por este motivo, que [fossem] muito favorecidos”.79 Mesmo sem acatar o pedido de anulação do Diretório, há aqui a recomendação de que outras queixas não fossem ignoradas ou tratadas enquanto problemas menores. A participação dos índios do Ceará a favor do rei nas lutas em Pernambuco – mesmo sem a presença de tropas de Viçosa ou Baepina – e a resposta da monarquia indicam a relação positiva que eventualmente havia entre indígenas aldeados, que se declaravam repetidas vezes como fiéis súditos do soberano, e dom João VI, que buscava mostrar-se atento aos nativos que compartilhavam de seus interesses, ainda que nem sempre atendesse a todos os seus anseios. Após o novo pedido da Coroa, Manuel Ignácio de Sampaio escreveu outra análise acerca da situação dos índios e de suas requisições, em 2 de julho de 1818.80 Produzido quase um ano depois da solicitação que recebera, o texto é bem mais extenso e detalhado, 79

De Thomas Antônio de Vilanova Portugal a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 3 de setembro de 1817. AN, AA, IJJ9 56, p. 188. 80 De Manuel Ignácio de Sampaio a Thomas Antônio de Vilanova Portugal. Fortaleza, 2 de julho de 1818. BN, C-199, 14. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento.

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discorrendo acerca do trabalho e das terras dos índios, expondo até que ponto – em sua ótica – eram válidas suas reivindicações e apresentando propostas ainda mais objetivas para a melhoria da vida dessa população, sem, necessariamente, concordar com tudo o que argumentaram em suas queixas. É mister destacar, antes de tudo, que o maior cuidado patente na escrita do governador veio após a aberta demonstração de gratidão do rei em relação aos índios seus vassalos, que, em seu nome, batalharam no ano anterior e cujos atos foram realçados diversas vezes no oficio. No novo texto, talvez por ter sido novamente ordenado providências, a exposição das ideias do governador é mais concreta, ainda que, no que diz respeito à política indigenista e ao Diretório, acreditava que nada deveria ser mudado. Para Sampaio, o fim dos abusos e de qualquer outro problema por que passavam os índios não viriam, necessariamente, da interrupção do fornecimento de trabalhadores indígenas a proprietários, da abolição da tutela de grupos ainda propensos ao “gentilismo”. Sampaio deu relevo à “fidelidade constantemente evidenciada por todos os índios aldeados” durante a Revolução Pernambucana de 1817, sendo, “sem dúvida, digna de contemplação de Sua Majestade”.

"Mas nem por isso se deve extinguir os diretores, nem tampouco deixar de se distribuir os índios a salário, e a jornal da maneira prescrita pelo Diretório, fim principal a que se dirigem todas as representações dos índios, ignorando os grandes males que se seguiriam de ser deferida uma tal súplica”.

Sujeitos a um diretor, segundo Sampaio, os índios “aumentam gradualmente de civilização”, e sua distribuição nas propriedades era “de grande utilidade aos extranaturais ou moradores, na frase do Diretório, fornecendo-lhes braços para a agricultura, para o comércio e para todos os outros trabalhos da economia civil e política”. Sem os diretores, cessaria a “distribuição pelos extranaturais e sua civilização retrogradaria a passos mui gigantescos”, além de se entregarem à ociosidade e “aos seus ritos gentílicos, que, apesar de todas as cautelas, não tem jamais sido possível fazer inteiramente cessar”. Paralelos à civilização dos nativos e a extirpação de seus hábitos “gentílicos” estavam os objetivos econômicos na manutenção da lei pombalina em pleno século XIX. “Sem os diretores, enfim, cessariam de repente todas as utilidades que o Estado tira do trabalho de tantos índios”, que fatalmente virariam ladrões por conta da ainda viva “ideia da comunidade dos bens”. Intensamente proclamada durante a Revolução Pernambucana de 1817, tais princípios encontravam terreno fecundo, na visão de Sampaio, entre as comunidades

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indígenas “e as qualidades de misturados [mestiços]”. Ao relembrar os conflitos em Pernambuco, Sampaio fez questão de frisar que, independentemente das “vicissitudes que presentemente ameaçam o Estado”, o rei poderia contar com a fidelidade de todos os índios, se estes permanecessem “aldeados e sujeitos a seus diretores”. Era vantajosa sua fidelidade por serem “soldados a quem não paga soldo, nem necessita de armar, prontos a baterem-se com entusiasmo pela defesa da Sua Real Coroa, e que fazem longas marchas sem bagagem alguma, e sem lhes serem por modo algum pesados os incômodos do sertão, que são bastante para desanimar qualquer outra tropa”.

Segundo o governador, nas “circunstâncias dos sertões do Brasil, não ha[via] tropa melhor, nem menos dispendiosa”, do que a dos índios. Como se demonstrou em 1817, eram fiéis ao rei, pouco dispendiosos e bastante efetivos, mas tais vantagens desapareceriam se o cargo de diretor fosse extinto, por ficarem desamparados da disciplina de seu tutor. Os “índios dispersos, assim como também a maior parte dos misturados que vagueiam pelos sertões”, eram propensos aos crimes e “sempre dispostos a se agregarem àqueles que os chama, lhes dá de comer, e os protege devida ou indevidamente”, numa clara referência à formação dos potentados locais. Com tudo que era oferecido, era bem melhor, para muitos deles, viver junto a ricos proprietários do que subjugados àqueles que os alugavam e aos diretores. Sem esses, a tendência a que seriam propensos se acentuaria. Sampaio defendia o Diretório pelos benefícios que traria aos índios, cuja percepção da própria situação seria limitada, inviabilizando o autogoverno indígena com um sistema vantajoso para a economia e a civilização. Acerca da queixa dos índios de que ainda sofriam "restos da antiga escravidão", o governador novamente entendia que o argumento era equivocado, pois se baseava na própria determinação do Diretório de distribuí-los, assim como a seus filhos, para trabalhar em propriedades particulares. Para ele, a prática não era escravista por ser também estendida aos órfãos brancos, "e como tais órfãos são com justa causa considerados todos os índios". Sugeria ainda, para minimizar os possíveis abusos que sofriam, "em atenção à fidelidade constantemente evidenciada pelos índios", que os diretores passassem a receber soldo ou ordenado, "ficando estes só com as prerrogativas que os §50 e §71 do Diretório estabelecem para os principais". Tais parágrafos se referem ao pagamento dado aos capitães mores, sargentos mores e principais indígenas com a extração de drogas no sertão. Como o cargo de principal não existia no Ceará oitocentista (por cujo motivo ainda não conhecemos), Sampaio propunha que os diretores recebessem em seu lugar, mas não

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deixa claro se capitães e sargentos mores também seriam beneficiados. Sobre isso, remeteu a uma proposta feita em setembro de 1818 ao rei, para que promovesse o sargento-mor de ordenanças José Agostinho Pinheiro, que liderou os 400 índios que marcharam contra os liberais, para sargento-mor do batalhão de milícias de Fortaleza e diretor das vilas Arronches, Soure e Messejana, cujo soldo viria apenas do posto militar, "sem perceber emolumentos alguns dos índios". A principal solicitação, entretanto, não foi atendida, e o Diretório continuou vigente no Ceará até a década de 1830, junto com a tutela – e os abusos – dos diretores.

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A estratégia de dom João VI buscava mostrar-se como um soberano atencioso aos seus súditos, sem passar, contudo, por cima dos interesses comerciais. Suas decisões comprovam que o fortalecimento econômico encetado nesse período não poderia funcionar a partir de ordenamentos gerais e que não atentassem às particularidades sociais e produtivas de cada região. A coleta de informações minuciosas com o governador, portanto, revela que as características próprias do Ceará, bem como de seus habitantes, foram determinantes na ação política do rei, inclusive naquelas direcionadas às comunidades indígenas. Classificar a política indigenista joanina como inteiramente ofensiva é, no mínimo, excessivamente generalizante, por desconsiderar a heterogeneidade de suas práticas dirigidas a realidades fundamentalmente distintas. Em contrapartida, a atenção da monarquia à fidelidade dos índios encontrava limites nos interesses mercantis. Mesmo conhecendo os vários exemplos de devoção das comunidades nativas do Ceará, vindos de longa data e especialmente destacados sobre as tropas de 1817, a Coroa entendia que o seu estado de "civilização" não era suficiente para que o fim da tutela fosse lucrativo ou substituível pela função de trabalhadores de aluguel que exerciam nas propriedades. As propostas de criação de armazéns de ferramentas, a expulsão dos extranaturais das vilas de índios e a abolição do cargo de diretor não foram acatadas por dom João VI porque, acima dos anseios indígenas, estavam os planos de desenvolvimento econômico, especialmente em uma região tão carente de recursos e de condições para adquirir mão-deobra cativa. Por isso que o Diretório permaneceu em vigor mesmo durante todo seu reinado. Além disso, é preciso ainda levar em consideração que a situação política no Brasil se transformou radicalmente, não havendo tempo de se presenciar possíveis novas mudanças.

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Sem a possibilidade de proteção da Coroa portuguesa, o poder dos potentados aumentou, tornando-se ainda mais desamparada a vida dos índios no Ceará.

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CAPÍTULO 2 O ESTADO NACIONAL BRASILEIRO E A LEGISLAÇÃO INDIGENISTA "nenhuma razão há para que, em uma associação que tem por objetivo a igualdade perante a lei, sejam alguns dos membros, em contravenção ao pacto fundamental de sua regeneração política, forçados a obedecer leis bárbaras ditadas em tempos prestigiosos pelo capricho de um conquistador" (José Ferreira Lima Sucupira. Fortaleza, 6 de dezembro de 1830. In: Atas do Conselho Geral da Província do Ceará: 1829-1835. Fortaleza: INESP, 1997, p. 165-166)

“a raça dos primeiros habitantes do Brasil parece condenada à completa aniquilação pelos imperscrutáveis Decretos da Providência. Talvez, porém, Srs., que os erros da nossa legislação vão não pouco contribuindo para este funestíssimo resultado, cuja maléfica influência reverte em grande parte sobre nós mesmos..." (Francisco de Souza Martins. Relatório... Fortaleza, Tipografia Constitucional, 1840, p. 12)

2.1. CIDADÃOS DESPOSSUÍDOS

Apesar da riqueza da historiografia que busca reescrever a história dos processos que levaram à emancipação política brasileira, há muito que avançar, principalmente quando o objetivo de analise é o seu desenrolar em outras regiões da antiga colônia lusitana que não sejam a capital. De acordo com João Paulo Pimenta, "a independência do Brasil nos é ainda praticamente desconhecida em muitas partes", como, por exemplo, no Ceará. 1 Nesse caso, como notam Almir Oliveira e Keile Felix, percebe-se o quanto a capitania foi marcada pela falta de consensos e como os grupos locais tomavam por base o debate nacional, buscando legitimações a partir da defesa de projetos políticos próprios.2 A construção do novo Estado e da nacionalidade brasileira foi atravessada por intensas disputas de poder e marcada por diferentes projetos para o Brasil em conflito, com reflexos diretos na legislação que se formava no nascente país. 1

PIMENTA, João Paulo Garrido. A independência do Brasil e o liberalismo português: um balanço da produção acadêmica. Revista de História Ibero-americana, v. 01, n. 01, 2008, p. 90. 2 OLIVEIRA, Almir Leal de. A construção do Estado nacional no Ceará na primeira metade do século XIX: autonomias locais, consensos políticos e projetos nacionais. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais: Estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará – compreendendo os anos de 1835 a 1861 pelo Dr. José Liberato Barroso [Ed. Fac-similada]. Fortaleza: INESP, tomo I, 2009, p. 20-21. FELIX, Keile Socorro Leite. "Espíritos inflamados": a construção do Estado nacional brasileiro e os projetos políticos no Ceará (1817-1840). Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 15.

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Relacionada a acontecimentos internacionais e às novas ideias defensoras dos conceitos de autonomia, liberdade e cidadania, a independência do Brasil trouxe consigo polêmicas que extrapolaram o âmbito das discussões políticas e legais e atingiram de forma intensa o cotidiano dos setores sociais subalternos. Para Gladys Ribeiro, o “ser livre” era pensado pelas classes dominantes a partir do direito à propriedade. Ou seja, nesta “igualdade da liberdade [...] obviamente todos excluíam os escravos e [negros] libertos dos direitos de cidadãos”. 3 Em relação à população indígena, o debate político à época girava em torno do estatuto legal desses indivíduos e do lugar que ocupavam – ou deveriam ocupar – no quadro social brasileiro: se na legislação colonial portuguesa os índios, enquanto aliados, eram súditos do rei luso, agora também seriam do monarca brasílico? A cidadania os alcançaria? Mary Karasch observa que, em Goiás no início dos oitocentos, os "paternalistas governadores portugueses perderam sua influência sobre a política indigenista, que foi sendo assumida por goianos",4 ou seja, pelos potentados locais da região. A tendência deve ter se repetido em todo o Brasil, com a ocupação dos cargos de governo pelos poderosos locais, além da continuidade da característica já comentada sobre a política indigenista joanina, que integrava uma série de práticas diferenciadas, a partir das distintas situações no país. A própria condição das províncias, enquanto unidades autônomas, era perceptível nas falas dos deputados presentes nos trabalhos da Constituinte em Lisboa, formando "um conjunto disperso" como peças do mosaico brasileiro, que apenas com o tempo cediam lugar à ideia de um país unificado.5 Separadas entre si em relação ao ainda disforme sentimento de unidade nacional, os poderes nas províncias amalgamavam aspectos, interesses e desafios particulares às suas elites, inclusive sobre as ações voltadas para os índios. Como observa Kenneth Maxwell, a independência brasileira foi constituída por uma "sociedade de colonos que se implantou no Novo Mundo", miscigenada, mas marcada pela tradição do Antigo Regime, na qual os brancos assumiram majoritariamente as posições governativas e excluíram índios, negros e mestiços dos lugares de poder.

6

Ainda segundo

Maxwell, a "base social predisposta a enfrentar mudanças radicais era mais forte em Portugal,

RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo de liberdade e a participação de homens livres pobres e “de cor” na independência do Brasil. In: Caderno Cedes. Campinas: UNICAMP, v. 22, nº 58, 2002, p. 29-30. 4 KARASCH, Mary. Catequese e cativeiro: política indigenista em Goiás: 1780-1889. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP: 1992, p. 401. 5 JANCSÓ, Istvan; PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico, ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira. Revista História das Ideias, v. 21, 2000, p. 431-432. 6 MAXWELL, Kenneth. Por que o Brasil foi diferente? O contexto da independência. In. MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p. 181-182. 3

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na década de 1820, do que no Brasil".7 As mudanças empreendidas, portanto, se deram a partir das conveniências dessa mesma elite político-econômica, como as que levaram, por exemplo, à progressiva deterioração das garantias dadas aos povos indígenas pelos reis portugueses. A conjuntura legal desses primeiros anos de independência, entretanto, não pode ser simplesmente caracterizada enquanto um “paradoxo”, quando se buscava “modernizar o país e preservar, em nome da estabilidade do império, estruturas arcaicas”, como faz Ivone Barbosa.8 Como explicam Carlos Garriga e Andrea Slemian, os mecanismos jurídicos tradicionais não foram simplesmente herdados após a crise do Antigo Regime, tratando-se, antes, de uma “ação para sua reprodução”.9 Nesse sentido, a presença de leis no Brasil anteriores à separação de Portugal não representavam continuidades uniformes. Tais leis passaram a ser operacionalizadas pelas elites políticas do país com objetivos específicos em um novo contexto, ainda que, como destaca Elías Palti, o “emaranhado corporativo do Antigo Regime” tenha permanecido após as independências na América.10 A própria vigência do Diretório em muitas províncias – como a do Ceará – foi exemplo da operação de práticas coloniais a despeito da formação nacional, como aspecto característico do arcabouço legal do Primeiro Reinado, segundo Fernanda Sposito. É questionável, por outro lado, se realmente havia uma "necessidade de se resolver o problema através de uma política geral”, já que, além da infrutífera Comissão de Catequese, Colonização e Civilização dos Índios da Assembleia Constituinte de 1823 e do Plano Geral de Civilização dos Índios de 1826, poucas propostas de grande porte legislativo de âmbito nacional apareceram até 1845.11 A falta de uma “resolução imediata para o problema das populações autóctones” foi devida não só aos “inúmeros conflitos e embates políticos

7

Ibid., p. 189. BARBOSA, Ivone Cordeiro. Cidadania em construção: a legislação provincial do Ceará. Apontamentos para uma história social do Estado brasileiro. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais: Estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará – compreendendo os anos de 1835 a 1861 pelo Dr. José Liberato Barroso [Ed. Fac-similada]. Fortaleza: INESP, tomo I, 2009, p. 34. 9 GARRIGA, Carlos. SLEMIAN, Andreia. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América Ibérica (C. 1750-1850). Revista de História, n. 169, 2013, p. 220. Os autores vão bem além de proposições como a de José Reinaldo de Lima Lopes, segundo o qual a transição do direito colonial para o nacional fosse "um misto bastante particular de ruptura e continuidade". Para ele, "a revolução da independência é mesclada, portanto, com a sobrevivência do Antigo Regime". Cf. LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade do século XIX. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 200-201. 10 PALTI, Elías. Entre a natureza e o artifício: a concepção de nação nos tempos da independência. Lua Nova, n. 81, 2010, p. 22. 11 SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012, p. 111. 8

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próprios à construção do Estado”,12 mas também à já citada característica desse período de permanência de aspectos próprios do Antigo Regime. Segundo Maria Regina de Almeida, após os anos 1820 a questão indígena "se tornou competência das Assembleias Legislativas Provinciais, tendo prevalecido os interesses das oligarquias locais",13 situação que perdurou até 1845. Contudo, a primeira determinação legal indigenista do império brasileiro foi a decisão do Conselho de Estado tomada durante a sessão n.º 16 de 23 de setembro de 1822, por meio da qual o imperador e demais conselheiros e ministros de Estado ordenaram que "se mandasse extinguir a Diretoria dos índios e se lhes avivasse a execução das leis de abril de 1755 – e 6 de julho do dito ano que instaura a de 1º de abril de 1680, e 10 de novembro de 1647".14 Como aponta Patrícia Sampaio, a determinação surpreendentemente não é mencionada pela historiografia.15 Uma explicação possível é, primeiramente, o fato de que algumas províncias, ignorando a sessão do Conselho que confirmava a liberdade não tutelada dos índios, continuaram aplicando a lei pombalina por pelo menos uma década, como foi o caso do Ceará. Em segundo lugar, o Conselho foi extinto no ano seguinte, reforçando a tendência de descentralização na política indigenista imperial indicada por Almeida. A decisão, portanto, não teve consequências significativas, e nos anos que se seguiram não chegou sequer a ser mencionada pelo legislativo cearense, que utilizava a Constituição para justificar a abolição do Diretório, como veremos mais a frente. O marco inicial dessa conjuntura foi a lei da Assembleia Geral Constituinte (que substituiu o Conselho de Estado) de 20 de outubro de 1823, ao dar "nova forma aos governos das províncias, criando para cada uma delas um presidente e conselho". Em seu artigo 24, §9, previa que seriam tratados pelo "presidente em conselho todos os objetos que demand[assem] exame e juízo administrativo", como "promover as missões e catequese dos índios".16 Manuela Carneiro da Cunha aponta que o projeto constitucional da Assembleia apenas se "contentou com declarar a competência das províncias para promoverem missões e catequese". Indica que, nos anos seguintes, os governos provinciais legislaram por conta própria sobre a questão indígena de seus territórios, por se ressentirem da "ausência de

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Ibid., p. 71-72. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao protagonismo. Revista História Hoje, vol. 1, n. 2, 2012, p. 29. 14 Sessão n.º 16 do Conselho de Estado do Império do Brasil. Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1822. ATA do Conselho de Estado. Brasília: Senado Federal/Arquivo Nacional, 1973, p. 53. 15 SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil imperial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil imperial, volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 183. 16 Lei de 20 de outubro de 1823. COLEÇÃO de leis do império do Brasil de 1823. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887, parte I, p. 13. 13

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diretrizes gerais sobre a política indigenista", caracterizando o que ela denomina de vácuo legal e que explicaria o reestabelecimento do Diretório no Ceará em 1843.17 Como já vimos, não é possível caracterizar como "vazio legislativo" um período composto de um emaranhado de leis sobre os índios apenas pela inexistência de uma que fosse direcionada exclusivamente para esta questão e aplicada em todo Brasil. Também é de se questionar se as tentativas de gerar um grande plano de civilização dos índios são realmente indícios de que todas as províncias se ressentiram da "ausência de diretrizes gerais", já que bem maior era a vontade de autonomia na condução de suas decisões, especialmente no trato com a população indígena, cujas características demográficas, sociais e econômicas eram bastante variadas. Além disso, ainda que só relegasse uma pequena parte para mencionar as "missões e catequeses" aos nativos, a lei de 20 de outubro de 1823 não deixava de ser uma lei geral. Sua vigência, contudo, também não durou muito. O golpe impetrado por dom Pedro I em março de 1824, segundo Fernanda Sposito, foi uma demonstração da ameaça que sentia das expressões políticas à época, contempladas com as leis promulgadas pela dissolvida Assembleia Geral Constituinte. Apresentando um novo texto constitucional, o imperador "concentrou em si o poder de legislar",18 buscando minar a descentralização política e a autonomia das províncias. Como bem observa Cunha, a "Carta outorgada de 1824, nossa primeira Constituição, sequer menciona os índios".19 Mas mesmo que nela "não tenha constado uma única linha que se referisse às populações autóctones", Sposito lembra que diversos "projetos, ideias, intenções e estratégias com relação a esses povos faziam parte da realidade daquele território que se pleiteava agora como nacional".20 A fragmentada legislação indigenista, portanto, não foi pobre, como afirma Julio Gómez, pela inexistência de determinações comuns para todo império, justamente por estar pulverizada em várias instâncias legisladoras.21 No caso cearense, por exemplo, é impossível falar vácuo até a década de 1830, quando o Diretório ficou em vigor. Apesar de dissolvida a Assembleia e imposta uma Constituição centralizadora em 1824, diversos aspectos do sistema jurídico anterior permaneceram. Continuou a tendência das províncias de legislar a questão indígena por conta própria e executar políticas 17

CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo. Legislação indigenista no século XIX: uma compilação: 1808-1889. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992, p. 10-11. 18 SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 71. 19 CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo, p. 10. 20 SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 72. 21 GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil. Studia Historica. Historia Contemporánea, n. 27, 2009, p. 275.

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particulares,22 assim como o costume de se interpretar distintamente a lei: ainda que não mencionasse nominalmente os índios, o §1º do artigo 6º da Constituição considerava como cidadãos brasileiros "os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua nação".23 Manuela Carneiro da Cunha, Andreia Slemian e Fernanda Sposito, trabalhando com as discussões da Assembleia Constituinte e com o texto constitucional de 1824, concluíram que os índios estariam excluídos das categorias de cidadãos e brasileiros. 24 Mas, como observa André Roberto Machado, a supressão dizia respeito apenas àqueles que viviam nas florestas, “fora do convívio dos ditos ‘civilizados’”. E a respeito dos que “conviviam com os brancos, mas continuavam a ser considerados como índios”, se havia alguma indefinição durante a Constituinte, a situação passou ficar mais clara após a promulgação da Carta Magna. 25 Ao contrário do que afirmam Cunha, Slemian e Sposito, os índios, a rigor, especialmente os nativos das vilas, eram cidadãos brasileiros, subordinados aos mesmos direitos e deveres como qualquer outro. As formas como o §1º do artigo 6º da Constituição era interpretado pelas comunidades indígenas, pelos legisladores provinciais (como veremos mais adiante) e até pelo próprio imperador (como mostra Vânia Moreira)26 foram variadas, especialmente em situações quando era preciso definir a permanência ou não de certas garantias coletivas. Evidentemente, a nova nação que se constituía, liderada majoritariamente por brancos descendentes da antiga elite colonial, "deliberadamente rejeitava identificar-se com o todo corpo social do país, e dotou-se para tanto de um Estado para manter sob controle o inimigo interno". Além dos escravos, que causavam temor pelas notícias de Santo Domingo como bem apontam Jacsó e Pimenta,27 os índios também eram inimigos em potencial, cuja conexão

A exemplo do “Regulamento para civilização dos índios botocudos das margens do rio Doce”, vigente no Espírito Santo de 1824 a 1845. Cf. MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce (Espírito Santo, 1824-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2007, p. 72-79. 23 Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I em 25 de março 1824. Disponível em: . Acesso em: 20 de novembro de 2014. 24 CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Terra indígena: história da doutrina e da legislação. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 63. SLEMIAN, Andréa. Seriam todos cidadãos? Impasses na construção da cidadania nos primórdios do constitucionalismo no Brasil (1823-1824). In: JANCSÓ, Istvan. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, p. 843. SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros. 25 MACHADO, André Roberto de Arruda. O Conselho Geral da Província do Pará e a definição da política indigenista no império do Brasil (1829-1831). Almanack, n. 10, 2015, p. 439-440. 26 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência – Vila de Itaguaí, 1822-1836. Diálogos Latinoamericanos, n. 18, 2011, 11-12. 27 JANCSÓ, Istvan; PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico, ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira, p. 440. 22

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já havia sido feita pelo bispo José Joaquim de Azeredo Coutinho no início do século. 28 O estabelecimento das cidadanias ativa e passiva, que dividia aqueles que tinham ou não direito de voto e acesso à burocracia do Estado, dificultava ainda mais que as paupérrimas comunidades indígenas participassem de decisões e ocupassem cargos políticos. A tomada de poder cada vez maior dos potentados provinciais fez com que os nativos, de maneira geral, fossem vistos como incapazes e pouco civilizados, intensificando sua subordinação como mão-de-obra. Exemplos de tal postura foram as resposta dos poderes legislativo e executivo do Ceará à ordem do ministério do império, de julho de 1826, para que várias províncias remetessem informações suficientes à montagem do Plano Geral de Civilização dos Índios.29 O Conselho de Governo cearense, atendendo ao que foi exigido pelo presidente Antônio de Sales Nunes Barfor, apresentou um parecer acerca das causas "que tem baldado os esforços feitos para sua civilização". Segundo os conselheiros, o insucesso das "sábias leis deste império" com os nativos não se deu por conta da ação de governadores e diretores. A razão estava na "conduta dos costumes gentílicos dos seus pais", o que tornava "muito difícil poderem eles tomar a boa disciplina de seus mestres e capelães, os exemplos dos homens brancos, cristãos verdadeiros e amigos da sociedade e bem público" (ou seja, os próprios conselheiros). O melhor meio para se conseguir a civilização dos indígenas, portanto, seria

"a dispersão geral da aldeação deles, queremos dizer, suspender o Diretório, ficando os mesmos índios sujeitos à política como os demais cidadãos do Império, por isso mesmo que se unindo em parentesco por afinidade franca, e livremente com quem lhe aprouver, por isso mesmo que tratando e sociando[sic] com os mais mudarão de conduta, como a experiência tem mostrado com aqueles que, apartados da aldeia são mui diferentes do que eram: uteis a si e à sociedade, principalmente caindo sobre si o rigor da polícia, que tanto temem e respeitam."

Os conselheiros acreditavam ter sido justa a concessão em outros tempos de suas terras sem a obrigação de pagamento. Mas, com a sugestão da dispersão, as mesmas passariam ao domínio das câmaras municipais, podendo aforá-las "a quem quiser ser útil à

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"Aqueles índios [não-aldeados habitantes da fronteira entre Ceará e Pernambuco], ainda que poucos em número, [...] conservando-se na sua rebelião entre serras e brenhas incultas, seriam de terríveis consequências para o Estado [...]; os negros da ilha de Santo Domingo acabam de dar ao mundo um exemplo terrível destas surpresas: aqueles índios seriam o ponto de ajuntamento e apoio dos negros fugidos, e ainda dos brancos descontentes, se eles existissem por muito tempo em sua rebelião". CARTA do bispo d. José Joaquim de Azeredo Coutinho sobre os índios da capitania. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart, tomo XI, 1897, pp. 124-128. 29 De José Feliciano Fernandes Pinheiro a Antônio de Sales Nunes Barfor. Rio de Janeiro, 3 de julho de 1826. APEC, MN, MI, livro 89.

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província pela sua cultura, não ficando, deste modo, incultas, como tem sucedido no poder dos índios, que nem cultivavam todas nem deixavam os extranaturais cultivar".30 O presidente Barfor emitiu sua resposta em novembro. Segundo ele, os indígenas apresentavam uma "índole inteiramente má" por serem "propensos à ociosidade, e, por conseguinte, necessitados de furtar para poder subsistir", de forma semelhante ao que expusera o Conselho de Governo. Trabalhavam apenas em "alguma pesca e em alguma lavoura, à que mostram grande aversão, e em que aliais poderiam ser muito úteis". Apresentariam costumes "inteiramente grosseiros" pela "pequena civilização" que adquiriram "debaixo dos diretórios [ou seja, nas vilas]", agravada pelas "perturbações das continuadas revoltas desde 1821 [que analisaremos adiante], e já pelo desastroso e completo transtorno que tem causado a fome e a peste de 1824". De tão reduzidos à época em quantidade demográfica, sugeria serem suficientes as povoações de Soure, Almofala e Vila Viçosa para agregá-los por serem próprias para a agricultura. A primeira tinha como vantagem sua "proximidade à capital", onde os índios poderiam "ser empregados utilmente e debaixo das vistas do governo". Para o presidente, os esforços para a civilização dos índios fracassaram pela

"imperfeição dos regulamentos e instruções dadas para os diretores, [...] que até pela pequenez de seus ordenados nunca cuidaram de cumprir à risca com os deveres de um diretor, e pelo conseguinte ou se ocuparam inteiramente de seus negócios com inteira abstração de um emprego, que lhes não dava para subsistência, ou se aproveitaram do trabalho dos índios, reduzindo-os aos seus escravos e sem os tratar com aquela brandura e caridade com que deveriam tratar homens livres e necessitados de educação".

Caso os índios fossem reunidos nos "aldeamentos" liderados por diretores probos, instruídos e que ganhassem o suficiente, poderiam ser muito úteis para "diminuir-se nesta província a necessidade da população escrava".31 Inúteis em si mesmo, os índios eram potencialmente vantajosos, como diz Izabel Mattos.32 A conclusão da análise de Barfor seguiu caminho diferente ao que fora sugerido pelo Conselho de Governo. Como parte da elite fundiária do Ceará, os conselheiros isentaram de qualquer culpa aqueles que até então haviam trabalhado na administração dos índios, muitos 30

PARECER do Conselho de Governo da Província do Ceará, 22 de setembro de 1826. In: Documentos sobre os nossos indígenas. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora "Instituto do Ceará", tomo LXXVII, 1963, p. 323-324. 31 De Antônio de Sales Nunes Barford a José Feliciano Francisco Ribeiro. Fortaleza, 3 de novembro de 1826. In: NAUD, Leda Maria Cardoso. Documentos sobre o índio brasileiro (1500-1822): 2ª parte. Revista de Informação Legislativa, vol. 8, n. 29, 1971, p. 306. 32 MATTOS, Izabel Missagia de. "Civilização" e "revolta": povos botocudos e indigenismo missionário na província de Minas. Tese (doutorado) – UNICAMP, 2002, p. 115.

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deles membros dos potentados ambiciosos pelo trabalho e as terras indígenas. Através dos argumentos de uma natural incapacidade e inutilidade, os membros do legislativo cearense buscaram, na primeira oportunidade que tiveram logo após a independência do Brasil, acabar com o estatuto diferenciado dos índios. Submetendo-os à igualdade com os demais habitantes do país, por meio da cidadania, poderiam utilizar "mecanismos de controle [como a polícia] para limitar suas ações e, mormente, explorar sua força de trabalho" – como coloca Maico Xavier sobre o parecer do Conselho33 – e tomar posse definitivamente de suas terras e dos cargos municipais em suas vilas. Para este intento, a abolição do Diretório era peça chave. Barfor compartilhava com os conselheiros a opinião de que havia nos indígenas uma natural repulsa ao trabalho, que os tornava inúteis diante do Estado, mesmo com as várias ações empreendidas pelos próprios nativos para garantir suas terras e proteger suas lavouras contra a ganância dos proprietários. Durante os conflitos da época da independência, confirmam-se as duras consequências sofridas pelas comunidades, especialmente para aquelas diretamente envolvidas nos confrontos em Maranguape e Viçosa de que trataremos no próximo capítulo. Por outro lado, na visão do presidente, a culpa do "fracasso civilizatório" era dos diretores, ainda que a eles se somassem os efeitos devastadores da seca e das revoltas de 1821. Como sugere Barford, o próprio Diretório era imperfeito nas instruções dadas a eles e no insuficiente ordenado que estabeleciam para seu sustento. Ao contrário do que fez Manuel Ignácio de Sampaio 10 anos antes, admitiu a quase escravidão em que viviam esses "homens livres", mas justamente por necessitarem de educação, ainda devessem se submeter ao trabalho, tanto para sua civilização quanto para uma economia pobre e carente de mão-deobra escrava como a do Ceará. Apesar de criticar os "regulamentos e instruções" direcionados aos diretores, as opiniões e quase inconclusivas sugestões dadas pelo presidente em suas informações se assemelham bastante ao que foi dito pelo governador Sampaio sobre a diretriz pombalina. Tanto na lei quanto no texto de Barfor os índios eram livres, mas, incivilizados, e precisavam, portanto, de pessoas competentes que os instruíssem e obrigassem a trabalhar, educando-os e dinamizando o comércio na região. Além disso, a defesa da manutenção do Diretório, ainda que colocasse suas imperfeições, pode ter sido uma tentativa de frear a ambição dos potentados representados no Conselho de Governo, cujas consequências nefastas aos índios já eram bem previsíveis.

33

XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social: os índios do Ceará no período do império do Brasil – trabalho, terras e identidades indígenas em questão. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, 2015, p. 109.

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De fato, a lei pombalina não foi abolida em seu mandato e, mesmo após a recepção de suas informações34 e de outros presidentes pela Corte, pouco se fez em termos de mudança na política indigenista brasileira. Mesmo falho, o Diretório ainda seria a melhor opção para lidar com os índios e como alternativa à mão-de-obra escrava no Ceará, segundo Xavier a respeito do texto de Barford.35 Como mostra a análise de John Monteiro das respostas dos outros presidentes de província para a criação do Plano de Civilização – que nem chegou a ser feito – as posturas eram bastante variadas, indo desde "aqueles que defendiam políticas filantrópicas e outros que subscreviam a práticas agressivas e intolerantes".36 Diante de realidades tão distintas, as políticas indigenistas permaneceram funcionando a partir das discussões legislativas provinciais e da vontade dos potentados locais. Acerca de tal "mosaico de situações", Fernanda Sposito acredita que "a falta de consenso não estava no conteúdo do projeto indigenista em si, mas no desacordo sobre este projeto ser realmente uma prioridade", já que competia ao mesmo tempo com as questões escravistas (com as propostas para o fim do tráfico negreiro), de propriedade territorial e de colonização estrangeira. No caso do norte do Brasil, como afirma Julio Gómez, a indiferença em relação à situação dos índios passou a ser ainda maior pela grande necessidade de sua força de trabalho.37 Por isso que, segundo Sposito, a indefinição de projetos amplos e gerais não impedia "soluções localizadas, na periferia do império, longe do crivo dos dirigentes centrais",38 mostrando que, ao menos a nível local, a questão indigenista não deixava de ser prioritária. Tais ações, comandadas pela elite econômica, geralmente visavam excluir o quanto podiam os índios dos espaços políticos. Os governantes nas províncias brasileiras e nos municípios se amparavam das antigas opiniões de que os povos nativos eram incapazes. Eram movidos pela ambição de se apoderar das terras e dos cargos das vilas de índios, que na década de 1820 já contava com uma população bem mais reduzida e que sofreu um golpe ainda mais duro com a lei imperial de 1º de outubro de 1828, promulgada por dom Pedro I para dar "nova forma às câmaras municipais". Os artigos 3º e 4º diziam: "Têm votos na eleição dos vereadores os que têm voto na nomeação dos eleitores da paróquia na conformidade da constituição, art. 91 e 92", e "Podem ser vereadores todos os que podem 34

Do marquês de Caravelas a Antônio de Sales Nunes Barfor. Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1826. APEC, MN, MI, livro 89. 35 XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social, p. 105. 36 MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese (Concurso de Livre-docência), 2001, p. 142. 37 GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil, p. 275. 38 SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 87.

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votar nas assembleias paroquiais, tendo dois anos de domicílio dentro do termo". 39 Os citados artigos constitucionais regulavam os votantes em eleições primárias (cidadãos brasileiros e estrangeiros naturalizados) e os excluídos do voto nas assembleias paroquiais. Dentre estes estavam os que não tinham de "renda líquida anual cem mil réis por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego".40 Segundo José Murilo de Carvalho, a “limitação de renda era de pouca importância”, já que a “maioria da população trabalhadora ganhava mais de 100-mil-réis por ano [...]. O critério de renda”, portanto, “não excluía a população pobre do direito de voto”. 41 As fontes pesquisadas não nos permitem saber quantos índios possuíam tal patrimônio em 1828, e se, consequentemente, eram eliminados dos papeis de eleitores e vereadores. Os indígenas oficiais de ordenanças no Ceará, por exemplo, geralmente não recebiam soldo, como veremos no capítulo 6.42 Além disso, é possível supor que uma parcela significativa dos índios estivesse passando por sérias dificuldades financeiras no período, a julgar pelo processo de esvaziamento de suas vilas e as migrações para o Piauí que ocorreram durante toda a primeira metade do século XIX.43 Ao final da lei de 1828, em seu artigo 90, revogava-se "todas as leis, alvarás, decretos e mais resoluções que dão às câmaras outras atribuições, ou lhes impõem obrigações diversas

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Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova forma às câmaras municipais, marca suas atribuições e o processo para sua eleição, e dos juízes de paz. Disponível em: . Acesso em: 07 de fevereiro de 2015. 40 Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I em 25 de março 1824. Disponível em: . Acesso em: 20 de novembro de 2014. 41 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2014, p. 35-36. 42 Nas assinaturas da ata da sessão de adesão do Ceará à Confederação do Equador em 1824, que analisaremos no capítulo 8, o capitão-mor indígena Vitorino Correia da Silva, de Arronches, e o sargento-mor indígena João da Costa da Anunciação, de Vila Viçosa, se identificaram como “eleitores”. Cf. ATA da sessão extraordinária e grande conselho provincial. Fortaleza, 27 de agosto de 1824. Apud. Confederação do Equador. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXV, 1911, p. 295-299. De acordo com a nomeação de Anunciação e a carta patente de Silva, os dois não recebiam soldo pelo posto. Cf. Nomeação de João da Costa da Anunciação como sargento-mor de Vila Viçosa. Fortaleza, 4 de fevereiro de 1807. APEC, GC, livro 67, p. 116. Registro de patente de capitão-mor de Arronches a Vitorino Correa da Silva. Fortaleza, 26 de dezembro de 1823. APEC, GC, livro 72, p. 120. 43 Além do comentário de Manuel Ignácio de Sampaio que vimos no capítulo anterior, segundo o qual havia cerca de 12 mil indígenas da Ibiapaba vivendo no Piauí em 1815 por conta da excessiva tributação, um índio que se identificou por Vitorino Soares Barbosa, natural de Arronches, denunciou em 1816 a intensa migração indígena para o Piauí, Rio Grande do Norte e Paraíba em decorrência da opressão que atrapalhava suas lavouras. Cf. Requerimento anexo ao ofício de Manuel Ignácio de Sampaio ao Marquês de Aguiar. Fortaleza, 19 de agosto de 1816. AN, AA, IJJ9, 168. De acordo com a câmara de Granja, em 1843, frequentemente os índios da Ibiapaba se mudavam para o Piauí. Cf. Da câmara da vila de Granja para José Maria da Silva Bittencourt. Granja, 23 de setembro de 1843. APEC, CM, câmara de Granja, pacotilha 1843-1845.

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das declaradas na presente lei, e todas as que estiverem em contradição à presente". 44 O Diretório, que elevava as aldeias religiosas a vilas e regulamentava suas câmaras constituídas pelos índios, seria, teoricamente, anulado por tal legislação. A preferência que deveria ser dada aos indígenas na escolha de cargos honoríficos prevista pela lei pombalina45 já não seria mais considerada, principalmente pelos brancos, cuja população aumentava nas vilas de índios nesse período. Tal como a Constituição, a lei de 1º de outubro de 1828 não fez qualquer menção aos índios, mas foi uma determinação que no reinado de dom Pedro I atingiu diretamente todas as comunidades indígenas que ainda viviam em vilas regidas pelo Diretório. A respeito da referida norma, José Reinaldo de Lima Lopes esclarece que, por meio dela, partia-se da concepção de que "o direito deve ser em princípio territorial, e não pessoal, ou seja, de que todos os habitantes de um território submetem-se a um só ordenamento".46 Ou seja, sua promulgação era mais uma medida que acabava com o estatuto diferenciado dos índios. Ainda assim, as interpretações de seus artigos, bem como do texto constitucional, foram múltiplas, inclusive se eles realmente aboliam a norma pombalina, já que também não foi citada pela lei em questão. A confusão ficou expressa em uma proposta de posturas da câmara de Messejana em 1829. A resposta do presidente da província Joaquim Pereira da Silva para a maioria dos pontos foi negativa por "ser contra as disposições do Diretório". Mas o comentário feito ao artigo 5º da postura dizia que sua requisição não tinha lugar "porque seu objeto é da competência do foro contencioso por leis anteriores e pela lei regimental das câmaras de 1º de outubro de 1828".47 Chama atenção, primeiramente, o fato de a câmara de Messejana ainda ser de índios em 1829 e, em segundo lugar, não se poder regular as posturas do município desobedecendo a lei pombalina. Mas não era ignorada pelo governo do Ceará a recém-promulgada legislação das câmaras municipais: ao contrário, as duas diretrizes são citadas no mesmo comentário. Os índios, por um lado, pareciam querer se livrar da antiga norma e "dirigir" seu espaço com autonomia. Por outro, o governo provincial parecia buscar a conciliação das duas coisas: a 44

Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova forma às câmaras municipais, marca suas atribuições e o processo para sua eleição, e dos juízes de paz. Disponível em: . Acesso em: 07 de fevereiro de 2015. 45 DIRETÓRIO que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão, enquanto sua Majestade não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1758, §84, p. 34. 46 LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade do século XIX, p. 209. 47 De Joaquim Pereira da Silva e Francisco Esteves de Almeida à câmara de Messejana. Fortaleza, 6 de julho de 1829. APEC, GP, CO EX, livro 13, p. 70.

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subordinação dos indígenas ao trabalho e as limitações a eles infringidas nos cargos políticos e nos lugares de poder. O segundo tópico não demorou a se efetivar, e, poucos anos após as tentativas dos nativos de Messejana de instituir códigos de postura que os favorecessem, o Diretório foi abolido pela primeira vez no Ceará. Mas, diferentemente do que queriam, foram também juntas sua esperança de autonomia e suas antigas garantias dos tempos dos reis portugueses.

2.2. A VITÓRIA DOS PROPRIETÁRIOS

Após o início das atividades do Conselho Geral da Província do Ceará em 1829 tomaram força argumentos que defendiam a anulação do Diretório em seu território, que já havia sido sugerida em 1826, como vimos há pouco. Pelas limitações da Constituição e da lei de 1828, dificilmente os índios teriam condições de prosseguir ocupando cargos camarários, sendo uma exceção à tendência de que os mesmos grupos sociais continuaram a ascender à câmara e a outros órgãos de poder, como disse José Reinaldo de Lima Lopes.48 Ainda assim, a decisão em suprimir as vilas e a vigência da legislação pombalina não foi imediata, demandando algumas discussões. Apenas no mês de dezembro de 1830, através de proposta do conselheiro José Ferreira Lima Sucupira, levantou-se a possibilidade de limitar a aplicação da diretriz indigenista ainda em vigor. Segundo ele, não havia

"nenhuma razão para que, em uma associação que tem por objetivo a igualdade perante a lei, sejam alguns dos membros, em contravenção ao pacto fundamental de sua regeneração política, forçados a obedecer leis bárbaras ditadas em tempos prestigiosos pelo capricho de um conquistador"

A obrigação a que eram coagidos os índios de obedecer ao Diretório seria uma "manifesta infração à Constituição do Império que os declara cidadãos brasileiros, os que pela péssima educação e escravidão de mais de 300 anos" nem ao menos conheceriam seus direitos. Viveriam sem "garantia do direito de propriedade", usurpados pelos diretores que os arrancavam dos "serviços de um lavrador que lhes paga por mais para mandá-los trabalhar a outro que lhes paga por menos". Mas apesar de todo ataque aos efeitos negativos da lei setecentista e à sua "manifesta infração" à Carta Magna do país, curiosamente, propôs ao final

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LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade do século XIX, p. 209.

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que se cumprisse o "Diretório unicamente naquela parte que não dispuser a Constituição e leis constitucionais".49 Todas as afirmativas de Sucupira são carentes de explicações. Em primeiro lugar – supondo que a Constituição realmente abolira o Diretório – em que, na sua perspectiva, a lei pombalina era bárbara, se apresentava maiores garantias aos índios do que o texto constitucional? Ainda assim, como sabemos, não há qualquer menção sobre o Diretório no texto constitucional (e, sim, na já citada sessão n.º 16 do Conselho de Estado). Então, em que parte da mesma se havia anulado a legislação setecentista? Além disso, mesmo direcionando seu ataque a ação dos diretores, não ficou explícito se Sucupira era contra a tutela em si, deixando em aberto o mais crucial, na medida em que não esclareceu quais artigos da diretriz pombalina não feriam a Constituição. O que se percebe é que a autonomia provincial em legislar era tamanha – pelo menos no que dizia respeito aos índios – que seria possível operacionalizar a interpretação das leis e inclusive aplicá-las parcialmente, a partir das conveniências locais e das percepções particulares dos legisladores. Mais cauteloso, o conselheiro Castro e Meneses propôs em 7 de janeiro de 1831, "como emenda ao requerimento" de José Sucupira, que se fizesse uma "representação, motivada à Assembleia Legislativa, para uma vez fazer cessar o Diretório", e que se pedisse ao vice presidente "para suspender as ordenadas dos diretores até a decisão da mesma Assembleia".50 Na mesma sessão, Ângelo José da Expectação Mendonça foi bem mais minucioso em sua proposta, ao sugerir que, "à vista da Constituição, das leis da Assembleia, do Diretório", se marcasse "as casas em que presentemente podem ter lugar o mesmo Diretório, enquanto não aparece decisão terminante a tal respeito da Assembleia e do poder executivo". Pedia também que cessassem "o ordenado dos diretórios, tão mal percebido, visto o pequeno número de índios e o nenhum trabalho de tais diretores".51 Mais clara, a proposta de Mendonça parece indicar que, pela pouca serventia dos diretores, a tutela para a população indígena deveria ser extinta no Ceará. Sem ela, e a partir do aval da presidência da província, a vigência do Diretório chegaria ao fim pela primeira vez em território cearense. Tais debates do Conselho demonstram que, por uma série de razões – os traumas sofridos com os conflitos da época da independência, o avanço do poder das elites econômicas, a impunidade diante de abusos e explorações, a redução de ações protetoras da Coroa – a dispersão dos índios pela província aumentara bastante, a ponto de ser perceptível o 49

Proposta de José Ferreira Lima Sucupira. Fortaleza, 6 de dezembro de 1830. ATAS do Conselho Geral da Província do Ceará: 1829-1835. Fortaleza: INESP, 1997, p. 165-166. 50 Proposta de Castro e Menezes. Fortaleza, 7 de janeiro de 1831. Idem, p. 171. 51 Proposta de Ângelo José da Expectação Mendonça. Fortaleza, 7 de janeiro de 1831. Idem, p. 171.

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esvaziamento de suas vilas. Indicam ainda que, pelo menos momentaneamente, a necessidade pela mão-de-obra nativa por parte dos proprietários diminuíra, ou, pelo menos, fora suplantada pela ambição sobre as terras. Estando as vilas de índios pouco povoadas, com suas câmaras não mais ocupadas por eles e com a redução da dependência de sua força de trabalho, pouco motivo havia para que se continuasse com uma lei do tempo dos antigos monarcas lusitanos. Em abril do mesmo, dom Pedro I abdicou do trono em favor de seu filho menor de idade, iniciando-se no Brasil um governo regencial – o que representou uma grande vitória para os proprietários. Triunfava uma espécie de conservadorismo contra-revolucionário defensor da liberdade constitucional, cujo rótulo liberal, segundo Carlos Guilherme Mota, servia para disfarçar características ligadas ao Antigo Regime, como a exclusão de grupos sociais e a exploração de sua força de trabalho.52 Para Maria Hilda Paraíso, com a

"tomada do controle pelas elites provinciais, o que se constata é a adoção de uma política agressiva, que lentamente foi-se encaminhando para promover a extinção dos aldeamentos, de forma a beneficiar os foreiros e sesmeiros dessas terras. Essas posturas reivindicatórias das oligarquias e sua atuação prática eram tanto mais desenvoltas quanto maior fosse a distância física da Corte, num claro sinal da incapacidade do Estado de controlar a ação dos seus súditos nas franjas de ocupação territorial".53

Ao final de 1831 o Diretório parecia já não ser mais utilizado. Apesar de não termos encontrado qualquer decreto ou lei que o anulasse, é o que se entende na leitura do parecer do Conselho Geral de 13 de dezembro acerca de uma representação da câmara de Messejana, que perguntava se os índios que habitavam o patrimônio da mesma deveriam ou não pagar o foro. O parecer foi negativo

"porque, posto que o Diretório esteja em desuso, e que os índios sejam considerados cidadãos brasileiros pela constituição do império, contudo a lei da criação das vilas lhes garante a cultura das terras do mesmo patrimônio extinto de foro, ou arrendamento em atenção ou que os seus progenitores foram os legítimos possuidores do país, e só por outra lei podem ser privados dessa garantia". 54

Em sua particular interpretação das leis, o Conselho da Província do Ceará entendia que a Constituição fazia dos indígenas cidadãos brasileiros e que, por isso, a mesma anulava a 52

MOTA, Carlos Guilherme. Ideias de Brasil: formação e problemas (1817-1850). Viagem incompleta. A experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p. 205 53 PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos sertões do leste. Salvador: EDUFBA, 2014, p. 342. 54 Parecer do Conselho Geral da Província do Ceará. Fortaleza, 13 de dezembro de 1831. ATAS do Conselho Geral da Província do Ceará: 1829-1835. Fortaleza: INESP, 1997, p. 176-177.

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legislação setecentista, mas apenas em partes. A referida "lei de criação das vilas" não era outra senão o mesmo Diretório que parecia estar "em desuso" no Ceará. A situação é confirmada na maneira pela qual os índios são citados, como se não fossem os autores da representação e muito menos ocupassem a câmara de Messejana. Mas, mesmo que a lei pombalina não mais vigorasse, alguns de seus artigos, como a posse da terra isenta de foro aos índios, ainda não podiam ser abolidos sem determinação régia. Tais garantias, as últimas restantes do Antigo Regime, não duraram por muitos anos. Ainda que não tivessem sido expressamente revogadas nesse período, algumas leis promulgadas a nível imperial e provincial e interpretações legais de agentes políticos locais fizeram com o poder dos índios de manutenção de suas terras ficasse ainda mais precário. Em ofício de maio de 1833 ao deputado da Junta da Fazenda Provincial José Antônio dos Santos Silva, o presidente do Ceará José Mariano de Albuquerque Cavalcante tratou da decisão do governo em suprimir Messejana, Soure e Arronches, anexando-as a Fortaleza. Disse que nas vilas havia "alguns próprios nacionais, assim como alguns bens que pertencem do d'antes ao Diretório, que além de incompatível com a Constituição do Império, tem caído em comisso" e que, por isso, deveriam "reverter para o Estado". Ao final, ordenou que o deputado mandasse "pôr em execução os referidos próprios [nacionais], até que haja lei que lhe dê destino".55 O discurso de Cavalcante já se dirigia para a abolição completa do Diretório, utilizando a Constituição como argumento, com o objetivo de que fossem liberadas as terras dos indígenas, última garantia que ainda lhes restava da lei indigenista. As intenções do presidente se faziam presentes em outras regiões do Brasil no pós-independência e, segundo Maria Regina de Almeida, outros políticos "também propunham a assimilação dos índios como cidadãos e a incorporação de suas terras aos 'próprios nacionais'". 56 A cidadania indígena, portanto, revertia-se em benefício das elites político-econômicas locais na medida em que automaticamente eram extintos os estatutos diferenciados oriundos do Antigo Regime, levando juntas as proteções e seus bens. Vânia Moreira acredita que a condição de ser cidadão da nova nação, ainda que muitas vezes negociada, também poderia ser imposta aos índios de forma violenta, e mesmo que indivíduos e comunidades tenham operacionalizado de múltiplas formas sua recém-coagida cidadania, as intenções governativas geralmente agiam objetivando a desamortização das terras indígenas. Para a autora, tal 55

De José Mariano de Albuquerque Cavalcante a José Antônio dos Santos Silva. Fortaleza, 13 de maio de 1833. APEC, GP, CO EX, livro 20, p. 99V. 56 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Comunidades indígenas e Estado nacional: histórias, memórias e identidades em construção (Rio de Janeiro e México – séculos XVIII e XIX). In: ABREU, Marta; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 202.

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situação fundiária foi deslanchada com a promulgação da Lei de Terras de 1850, "cujo objetivo precípuo era o de acabar com o domínio e o uso comum sobre várias terras que eles possuíam na forma de sesmarias, missões, aldeamentos, compras e doações".57 A gestação dessas formas de usurpação, como vemos, são ainda anteriores. As convenientes leituras do texto constitucional de 1824 pelas elites locais já indicavam o fim dos estatutos diferenciados dos índios no que tangia à manutenção de antigos bens. A maior vitória para os potentados foi, de fato, a abdicação forçada de dom Pedro I em 1831, cujo auge, segundo Manuela Carneiro da Cunha,58 estava na promulgação do Ato Adicional à Constituição de 1834. Era a oportunidade de administrar com maior autonomia as problemáticas locais envolvendo os índios e de tomar posse de suas terras e patrimônios. Seu artigo 11, §5º, incumbia como uma das competências das assembleias legislativas – que substituíam os conselhos gerais de províncias – a promoção, "cumulativamente com a Assembleia e o governo geral, a organização da estatística da província, a catequese, a civilização dos indígenas e o estabelecimento de colônias". 59 Assim como a lei de 1º de outubro de 1828, o ato adicional de 1834 não deixava de ser uma lei indigenista de âmbito geral, ainda que não tratasse exclusivamente desse tema. Além disso, era mais uma demonstração de que as intenções em se criar uma legislação ampla que uniformizasse as práticas voltadas aos índios de todo o Brasil – ou, pelo menos, um consenso em relação a ela – não eram compartilhadas pela maioria das lideranças políticas provinciais. Reações ao ato legal, e a seus possíveis efeitos nas comunidades indígenas, sugiram no final do mesmo ano na Vila Viçosa, justamente a partir de quem se pensava estar excluído definitivamente do cotidiano dos nativos. No mês de novembro, o presidente do Ceará José Martiniano de Alencar alertou o juiz de paz da vila sobre uma denúncia do chefe de política de Sobral, de que "algumas pessoas mal-intencionadas procuram indispor os índios, como mais ignorantes, contra a reforma na constituição, decretada na lei de 12 de agosto de 1834", produzindo "perturbações e desordens". Ordenava que procurasse quem buscava denegrir as "instituições soberanas" e punisse os que tentavam "destruir os artigos da constituição". 60 Em março do ano seguinte, foi revelado o provocador das agitações. Segundo o juiz de paz, o 57

MOREIRA, Vânia Maria Losada. Deslegitimação das diferenças étnicas, "cidanização" e desamortização das terras de índios: notas sobre liberalismo, indigenismo e leis agrárias no México e no Brasil na década de 1850. Revista Mundos do Trabalho, v. 04, 2012, p. 68-69. 58 CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo, p. 13. 59 Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834. Faz algumas alterações e adições à Constituição Política do Império, nos termos da lei de 12 de outubro de 1832. Disponível em: . Acesso em: 2 de dezembro de 2014. 60 De José Martiniano de Alencar ao juiz de paz de Vila Viçosa. Fortaleza, 22 de novembro de 1834. APEC, GP, CO EX, livro 28.

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vigário Felipe Benício Mariz – expulso da Serra da Ibiapaba pelos índios em 1822,61 como veremos no capítulo 3 – recebeu algumas armas – não diz de onde e por que motivo – e passou a meter "cizânias no povo, fazendo ver que se pretende fazer recrutamentos, que só existe na fantasia dele, e com o fim de transtornar a ordem pública". Nas palavras do presidente Alencar, em resposta ao juiz, "em vez de cumprir com as suas obrigações", o vigário era "o instrumento do desassossego e perturbação pública".62 Muitas informações nos faltam do acontecimento, como os reais intentos de Felipe Benício Mariz e de que maneira os índios receberam as suas provocações. Provavelmente, as intenções do vigário não devem ter sido relevadas de imediato pelos indígenas, tendo em vista a falta de fontes acerca de uma possível repercussão. Mas se alguns índios chegaram a embarcar nas acusações ao ato de 1834 e participaram de alguma manifestação, não agiram por "ignorância", como supôs José Martiniano de Alencar, já que os efeitos da lei na vida dos índios não se demoraram a sentir.63 Manuela Carneiro da Cunha observa que a descentralização de 1834 fez com que várias províncias passassem "imediatamente a tomar medidas anti-indigenistas", como o Ceará, que extinguiu três vilas de índios nos anos seguintes.64 Pela lei provincial nº 2 de 13 de maio de 1835 ficavam "suprimidas as vilas de índios de Soure e Arronches, e seus municípios unidos à capital". 65 Segundo Rones Duarte, a lei foi consequência da “necessidade de terras para aumento da produção”, promovida pelas “elites políticas locais, imbuídas de maior autonomia dada pelo governo imperial”. Para o autor, a “medida foi a que mais surtiu efeito com relação à tomada das terras” indígenas. 66 Em 20 de setembro de 1837 os códigos de postura de Messejana foram finalmente aprovados pelo governo pela lei nº 83, mas com um texto de tom bastante negativo para os índios. Já em seu artigo 1º dizia que "aquele lavrador que maltratar rês alheia a título de ter entrado em sua lavoura será obrigado a pagar a rés multada, quer morra ou não, logo que seu dono prove o dano feito". Além disso, seria "multado em quatro mil réis para as despesas da câmara, e não 61

Segundo o índio Felipe Pereira, Mariz voltou a Viçosa porque era vigário colado. Cf. Diário de Francisco Freire Alemão, "Informações sobre os antigos agrupamentos indígenas nas redondezas de Viçosa". Vila Viçosa, 8 e 9 de dezembro de 1860. BN, I-28, 8, 68. 62 De José Martiniano de Alencar ao juiz de paz de Vila Viçosa. Fortaleza, 8 de abril de 1835. APEC, GP, CO EX, livro 28, 132. 63 O alerta de Mariz não era apenas fantasioso: quatro anos depois, índios da Ibiapaba aderiram à Balaiada contra as práticas de recrutamento, como veremos no capítulo 8. 64 CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo, p. 13. 65 Lei nº 2 de 13 de maio de 1835. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais: estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará - compreendendo os anos de 1835 e 1861 pelo Dr. Liberato Barroso. Ed. Fac-similada. Fortaleza: INESP, 2009 [1862], tomo I, p. 50. 66 DUARTE, Rones da Mota. Natureza, terra e economia agropastoril – Soure (CE): 1798-1860. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2012, p. 64.

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tendo com que pague a rés maltratada" seria "remetido pelo juiz de paz respectivo para a casa de correção da capital para de seu trabalho indenizar a rés, no caso que esta tenha morrido". Um dos grandes motivos de queixas dos índios era a destruição de suas plantações pelos animais de seus vizinhos. Como mostrei em trabalho anterior, os governos no tempo da capitania geralmente agiam em defesa das causas indígenas nesse tipo de conflito. 67 Após o Ato Adicional de 1834, porém, os potentados passavam a ter vantagem em suas contendas com povos que dificilmente teriam condições financeiras para arcar com cercados e possíveis multas. No 2º artigo do código de postura, acerca do foro de vinte réis pago à câmara aos proprietários de casas na vila, o texto faz referência ao "extinto diretório" ao estabelecer que eram isentos os possíveis sítios que tivessem nos alagadiços. Os índios que "ainda existi[ssem]" teriam isenção total, "porque estes gozarão para sempre das regalias que lhes concedeu o extinto diretório".68 Aparentemente vantajosa aos indígenas, a lei trazia um prenúncio de que os que "ainda existissem" poderiam diminuir numericamente na vila, revelando as intenções dos potentados para que fossem assimilados e desfeitos das garantias de um estatuto diferenciado. Diante de uma lei tão desigual, como decreta o artigo 1º, tornava-se muito difícil para um índio de Messejana continuar vivendo em seu povoado de origem, mesmo que "protegido" pelo artigo 2º. Dois anos depois, pela lei nº 188 de 22 de dezembro, ficava "suprimida a vila de Messejana, e seu termo dividido em duas partes", entre a cidade de Fortaleza e a vila do Aquiraz. De acordo com seu artigo 3º os índios continuariam "gozando da mesma posse [das terras] e dos privilégios que lhes competem", o que dificilmente se aplicou na prática. A ganância dos que avançavam sobre as terras indígenas estava amparada pela colaboração daqueles que, por lei, deveriam protegê-las e garantir sua integridade: os juízes municipais, de paz e de órfãos.

2.3. TODAS AS CAUSAS DA DECADÊNCIA

Em substituição aos ouvidores, cargo extinto em novembro de 1832, os juízes de órfãos passaram a assumir a "administração dos bens pertencentes aos índios" por meio do

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COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina: EDUFPI, 2015, p. 338-339. 68 Lei nº 83 de 20 de setembro de 1837. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais, p. 138.

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decreto régio de 3 de junho de 1833. 69 Acerca da lei, Leda Naud afirma que "não é muito difícil imaginar como se processou semelhante assistência, principalmente quando os 'homens bons', dos conselhos municipais, os intendentes e os próprios magistrados pretendiam ampliar suas posses, tomando as terras dos índios".70 Ou seja, mesmo antes da promulgação do Ato Adicional de 1834, a legislação já havia sido favorável às intenções dos potentados, na medida em que os membros do judiciário local estavam muito mais interessados em servi-los do que em proteger os indígenas, assim como observado por Vânia Moreira no Rio de Janeiro.71 A condição da cidadania para a população indígena, com a abolição do Diretório no Ceará na década de 30 do século XIX, parecia prever direitos constitucionais e, aparentemente, satisfazer as antigas demandas dos índios por autonomia em suas vilas, com o fim da tutela dos diretores. Entretanto, como vimos, esse processo foi acompanhado de uma série de perdas de suas garantias políticas. De acordo com Carlos de Souza Filho, o discurso liberal se enaltecia com a proteção das populações indígenas, desde que não atrapalhassem as ambições fundiárias dos proprietários.72 Em menos de 15 anos os índios foram enquadrados como "cidadãos" do império brasileiro, mas simultaneamente expropriados de cargos, direitos e, cada vez mais, de suas terras. Os efeitos da anulação da lei pombalina em território cearense não demoraram a ser sentidos. Por ocasião da abertura da Assembleia Legislativa em 1838, a fala do então presidente da província, Manuel Felizardo de Souza Melo, tratou dos efeitos negativos da "falta do braço dos índios", prejudicando as colheitas dos proprietários que dependiam na mão-de-obra indígena, e da necessidade de civilização dessa população, que sobrevivia desapropriada de bens e direitos. Lembrou que em novembro de 1837 haviam chegado ao Ceará 120 colonos dos Açores que haviam sido "distribuídos por diferentes cidadãos, pagando estes metade da passagem à vista, e outra parte em prazos de seis meses e um ano". A iniciativa teria sido mal planejada, já que boa parte dos que aportaram eram "pessoas prejudiciais à segurança e moralidade pública". Alguns haviam cometido assassinatos, roubos

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Decreto de 03 de junho de 1833. Encarrega da administração dos bens dos índios aos juízes de órfãos dos municípios respectivos. Disponível em: . Acesso em 29 de janeiro de 2015. 70 NAUD, Leda Maria Cardoso. Índios e indigenismo: histórico e legislação. Revista de informação legislativa, v. 4, n. 15, 1967, p. 262. 71 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência – Vila de Itaguaí, 1822-1836, p. 15-16. 72 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O direito envergonhado: o direito e os índios no Brasil. In: GRUPIONI, Luís Donizete Benzi. Índios no Brasil. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, 1994, p. 158.

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e fugido "para o interior do país". Acreditava que nenhum agricultor ou criador queria "correr os riscos de admitir em suas casas quem pode causar-lhes danos semelhantes aos que praticaram os primeiros colonos"; por quantia bem menor poderiam "aproveita[r] muitos dos nossos braços, aliás hoje inúteis no país".73 Segundo Souza Melo, os índios estavam dispersos e em decréscimo populacional em decorrência da extinção do Diretório, ocorrida pelo mau entendimento da Constituição, cujo fenômeno teve como consequência uma "extraordinária diminuição dos produtos agrícolas". Para o presidente, no tempo em que as vilas eram habitadas por índios, um "agricultor com gasto módico encontrava trabalhadores que o ajudavam nas estações próprias", mas em 1838 raramente havia alguém para ao menos abrir um roçado. Também era difícil e caro para o governo achar operários para obras públicas, "e tudo se poderia conseguir com pequeno dispêndio, se estivesse aldeada essa classe de homens". Apesar do Ato Adicional de 1834, que incumbira as assembleias provinciais de catequizar e civilizar os índios, os mesmos ainda estavam "mal catequizados e mui pouco civilizados". A invasão de seus bens não era devidamente combatida pela sobrecarga de trabalho dos juízes, e por isso sugeriu que se estabelecesse uma gratificação aos procuradores que agenciassem suas reivindicações e se tomasse "um advogado dos índios em cada comarca em que eles tiverem bens". Ao final, fez as seguintes proposições:

Parece-me por enquanto suficiente o reestabelecimento das aldeias de Soure e Vila Viçosa, onde ainda existem terras em que eles podem trabalhar independente de demandas. Um regulamento ou reforma do antigo é mister no caso de assentardes ser conveniente o reestabelecimento das aldeias, e pôr embaraço ao rápido aniquilamento dos antigos habitantes da Terra de Santa Cruz"

De acordo com Jofre Vieira, a partir de 1838, a reutilização da mão-de-obra indígena no Ceará passou a ser a alternativa mais viável diante dos “parcos recursos gerados pela renda da própria província” e do insuficiente contingente de escravos. Além disso, como observa o autor, a necessidade de controle dessa população também se conectava às ameaças de que os índios da Ibiapaba pudessem aderir à Balaiada.74 Os temas voltaram à tona no ano seguinte, no relatório do presidente João Antônio de Miranda. Contou aos deputados da província que cerca de 60 índios foram cumprimentá-lo e

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MELO, Manoel Felizardo de Souza. Fala que recitou o Ex. Sr. Manoel Felizardo de Souza Melo, presidente desta província, por ocasião da abertura da Assembleia Legislativa da Provincial, no 1º de agosto do corrente ano. Fortaleza: Tipografia Constitucional, 1838, p. 19-20. 74 VIEIRA, Jofre Teófilo. Uma tragédia em três partes: o motim dos pretos da Laura em 1839. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 120-121.

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oferecer seus serviços na limpeza dos arredores de Arronches, num sinal de miséria e busca de recursos. "Uns pedem um pastor que os guie; outros o reestabelecimento de seus diretórios e a restituição dos bens que possuíam; outros, finalmente, recordando-se lastimosos do tempo e dos favores d'El Rei o Senhor dom João VI, pedem o governo do Rei Velho". Nessa época, muito já havia sido esbulhado, e segundo o presidente, eram desamparados até mesmo por aqueles que deveriam agir em seu benefício. Reafirmou a sugestão de seu antecessor para o restabelecimento de Viçosa e Soure e da criação do cargo de um advogado responsável pela "medição, restituição, demarcação e conservação de suas terras, e que requeira tudo o mais que convier a bem deles". Pela malograda experiência da introdução de colonos e pela falta de "escravos suficientes", acreditava não ser possível progredir a indústria e a agricultura, e por isso era preciso "olhar para os índios com vista também neste interesse", sendo os aldeamentos muito úteis nesse sentido. Na sua visão, eram "geralmente dóceis, humildes, obedientes, religiosos e alguns mesmo amantes do trabalho para que se oferecem", como os que recebera e os de Messejana, "à cujo pároco se ofereceram para auxiliarem as obras da Matriz". Concluía sua proposta sobre os índios para a Assembleia provincial:

"Tirar proveito de suas boas disposições, prevenir que seus defeitos os tornem inúteis a si e a sociedade, substituir com eles pouco a pouco os escravos, e chamálos ao serviço, a que se furtam os ociosos, os viciosos colonos, com que quase sempre os presenteiam, é isto uma tarefa humana e política, de que vós não deveis descuidar".75

A percepção de que os índios podiam ser uma alternativa à escassez de trabalhadores também foi manifestada pelo presidente Francisco de Souza Martins em 1840. Como eram "poucos os escravos nesta província (onde o contrabando felizmente não tem penetrado)", e pela dificuldade em se assalariar braços livres, os "índios domésticos, que aqui são muito numerosos", poderiam suprir essa falta. Em outros tempos, os diretores os repartiam aos lavradores, com o salário previamente estipulado pelo Diretório, "mas este reputou-se abolido pela Constituição, e os índios entregues ao seu gênio inconstante e indolente". Não se sujeitavam mais ao "trabalho aturado, de sorte que ainda ajustando-se com o lavrador, os abandonam ordinariamente depois de poucos dias de serviço". A província teria sido uma das mais ricas em índios, mas que iam aos poucos desaparecendo, "de sorte que a raça dos primeiros habitadores do Brasil parece condenada à completa aniquilação pelos imperscrutáveis decretos da providência". Sua opinião era de que a legislação contribuía 75

MIRANDA, João Antônio de. Discurso que recitou o Exm. Sr. Doutor João Antônio de Miranda, presidente desta província, na ocasião da abertura da assembleia legislativa provincial, no dia 1º de agosto de corrente ano. Fortaleza: Tipografia Constitucional, 1839, p. 24-25.

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bastante para esta situação, resultando em efeitos negativos para a agricultura da província. Os jesuítas teriam feito florescer as aldeias de índios, substituídos de forma não tão satisfatória pela legislação pombalina. Mas depois de jurada a constituição

"entendeu-se nesta província abolido o Diretório dos Índios, porque a lei devia ser igual para todos os cidadãos brasileiros, em cujo número com razão compreendem os índios, mas esta inteligência nem foi razoável, nem conveniente ao país".

Como resultado, suas terras eram invadidas sem que tivessem meios para "defender os seus direitos perante os tribunais". As leis também os excluíram "de todos os empregos públicos", que passaram a ser ocupados por brancos, "mais hábeis e cavilosos". Abandonados a si mesmos, os índios estavam "desgostosos de sua posição social e suspir[avam] pelo antigo regime". Por isso, Souza Martins sugeriu que fosse restabelecido o Diretório, "com as modificações adaptadas à época e à legislação novíssima que nos rege", sendo novamente unidos e subordinados aos diretores. Recomendou a presença de “missionários que pregassem a moral e religião nas suas aldeias e vilas" e o estabelecimento de advogados dos índios, "por que eles não podem nas suas demandas pagar as despesas do foro pela nímia pobreza em que ordinariamente vivem". Lembrou ainda

"que uma boa legislação sobre os índios pode suprir em grande parte a falta de braços que é igualmente sentida na província para os trabalhos agrícolas e todos os empregos rurais, dispensando-nos das avultadas despesas com a colonização estrangeira, que até agora mui pouco tem prosperado no império, e da falta de recursos do contrabando de escravos, que envolve o gérmen da futura aniquilação do Estado".76

Em 1841 foi decretado por lei provincial que o foro das terras patrimoniais das câmaras de Arronches e Soure seria arrecadado por Fortaleza, e que parte das despensas do ano financeiro da capital deveria ser destinada "com o advogado que trata das causas das terras dos índios".77 Tais medidas, na visão do presidente José Joaquim Coelho, eram insuficientes para amenizar o definhamento da população indígena. Em seu relatório deste ano denunciou o que chamou de "anomalia" das políticas provinciais o fato de elas se preocuparem mais em "suprir com braços estranhos a falta da população" do que com o "aniquilamento progressivo a que parecem estarem voltados os antigos habitantes da Terra de 76

MARTINS, Francisco de Souza. Relatório que apresentou o Exm. Sr. Doutor Francisco de Souza Martins, presidente desta província, na ocasião da abertura da assembleia legislativa provincial no dia 1º de agosto de 1840. Fortaleza, Tipografia Constitucional, 1840, p. 10-13. 77 Lei nº 240 de 20 de janeiro de 1841. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais, p. 322.

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Santa Cruz". Privados de "inteligência vigorosa, da atividade empreendedora, do espírito providente", os índios necessitavam de proteção, e chegaram a ter florescido com os jesuítas. Mas com a administração dos juízes de órfãos, "que mais se estende aos bens do que às pessoas, tem-se entre eles desenvolvido com espantosa energia todas as causas da decadência, algumas das quais, todavia, achavam-se esterilizadas durante a tão imperfeita instituição dos diretores". Dirigindo-se aos deputados, sua intenção não era, segundo ele, atacar os magistrados, mas proporcionar-lhes, através da assembleia legislativa, os meios de efetivamente executarem suas funções.

"Basta para este fim que por hora façais uma lei, criando em todos os termos onde houver aldeados um curador especial de nomeação da presidência, o qual, sob a inspeção do respectivo juiz de órfãos, requeira e promova perante as autoridades competentes tudo quanto for a benefício dos seus curatelados; aplique-os ao trabalho, sem o qual o homem não pode subsistir e prosperar, extinguindo neles destarte a inércia e indolência a que naturalmente são propensos; e que lhes faça enfim desfrutar o benefício da instrução pública primária, que a lei liberaliza a todos os cidadãos, e que tão própria deve ser para estender o acanhado intelecto destes homens semi-bárbaros".

O trabalho destes curadores estaria aliado à ação de missionários, na busca de melhorar a sorte dos "mais miseráveis proletários desta pátria". Deveriam ser bem pagos, já que estariam no "exercício de uma comissão que, além de não ser lucrativa, só pode servir a trazer porfiosas lutas com homens quiçá poderosos, que tem invadido os territórios dos índios, e lhes devem foros e retribuição".78 As falas de todos estes presidentes dirigidos ao legislativo cearense são outros exemplos de operacionalizações de aspectos do Antigo Regime no pós-independência. No Ceará do período regencial, isso foi feito em meio a um ambiente político dominado por forte tendência liberal, como observou Jofre Vieira,79 prevalecendo, portanto, os interesses na autonomia provincial. Em primeiro lugar, além de não se reclamar uma lei geral e exclusiva para os índios, as definições legais em certas esferas se davam a partir de interpretações locais. Isto fica claro quando é dito várias vezes que a abolição do Diretório se executou pelo que se entendeu de uma Constituição que sequer citava os índios. Em segundo lugar, por este mesmo raciocínio de liberdade provincial em legislar, sugeria-se desde 1838 o retorno de uma lei do século XVIII. Terceiro, os argumentos em sua defesa permaneciam os mesmos, sendo muito semelhantes ao que vimos desde os governadores Bernardo Manoel de Vasconcelos e 78

COELHO, José Joaquim. Discurso recitado pelo Exmo. Senhor Brigadeiro José Joaquim Coelho, presidente e comandante das armas da província do Ceará, na abertura da assembleia provincial, no dia 10 de setembro de 1841. Recife: Tipografia de Santos e Companhia, 1842, p. 18-19. 79 VIEIRA, Jofre Teófilo. Uma tragédia em três partes, p. 112.

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Manuel Ignácio de Sampaio: apesar de reconhecida a cidadania brasileira aos índios, estes não tinham condições de viver sem alguém que os guiasse. Novamente se opinava, ano após ano, que o aproveitamento da mão-de-obra indígena seria a solução para a agricultura e indústria do Ceará e para a civilização deste povo que a cada dia diminuía em número. Em sintonia com a "agenda de construção da nacionalidade no império [brasileiro]", segundo Carlos Guilherme do Valle, a "tarefa de 'catequizar e civilizar' os índios conciliava elementos do período colonial", mas a civilização, em sentido mais moderno, equivaleria à sua integração. Por serem "inferiores", contudo, a incorporação se daria apenas como força de trabalho barata e de fácil aquisição.80 Os presidentes reconheciam também a ineficácia da lei que relegava aos juízes o dever de administrar os bens dos índios, ainda que não atacassem – talvez por falta de coragem – a probidade de suas pessoas. Mas o conjunto de todas as sugestões de elementos que se somariam ao trabalho dos magistrados – com advogados, missionários e a volta do Diretório – revelam que, como já vimos, a vontade política dos presidentes esbarrava nas intenções do legislativo que compactuava com o avanço dos potentados, cuja vitória era clara. Prova disso é que muito foi acatado – como veremos a seguir – mas outros pontos foram completamente ignorados. Não foram restabelecidos os empregos públicos reservados aos índios (como os cargos de vereadores e juízes) e as antigas vilas indígenas (suprimidas na década anterior e já bastante esvaziadas), e também não se executaram novas demarcações de suas terras. O retorno da lei pombalina não previa igual processo para os benefícios dados aos indígenas e nem uma efetiva proteção de seus bens, que continuaram sendo usurpados. Os índios, por sua vez, suspiravam pelo “antigo regime”. Como nota Valle, a nostalgia indígena, também presente em revoltas contra o governo imperial como a cabanagem e a balaiada, "foi sempre notada por conferir apoio social, engendrado historicamente, aos portugueses".81 Sabemos que a vida das comunidades durante o período do dom João VI era repleta de turbulências e explorações, registradas em diversos relatos e queixas indígenas como veremos no capítulo seguinte. Mas, como muito do que era ruim poderia piorar, não se comparava ao esbulho e à miséria que sofriam nas décadas posteriores à independência, especialmente após 1831, quando o poder do monarca era limitado por regentes. O comentário de Francisco Constâncio em sua História do Brasil, de 1839, é incisivo a este respeito: 80

VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX: um exercício de antropologia histórica. In: VALLE, Carlos Guilherme do. SCHWADE, Elisete. Processos sociais, cultura e identidades. São Paulo: Annablume, 2009, p. 33-34. 81 Ibid., p. 37.

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“Até à época de que tratamos, os portugueses estabelecidos no Brasil e seus descendentes não cessaram de tratar com o maior desprezo as nações indígenas, que tentaram reduzir à condição de escravos. Aos missionários devem estes infelizes a proteção do rei, benefício de que os índios conservam grata memória”. 82

No período regencial, a entidade benfeitora dos índios, antigamente representada pela Coroa portuguesa, não existia mais. O “antigo regime” de que índios sentiam falta não correspondia a todo o período colonial, mas ao contexto iniciado no período pombalino, quando foi proibida sua escravização. A política indigenista do ministério de Pombal pode ser interpretada pelo viés da ruptura, como faz Fernanda Sposito, por ter inserido os índios, na condição de vassalos livres, no processo de consolidação do território colonial.83 No entanto, a política joanina não necessariamente seguiu caminho contrário à pombalina porque também se utilizou do Diretório e nem sempre foi ofensiva em relação à heterogênea população indígena.84 Desapropriados de cargos, vilas e câmaras, sem a proteção de uma monarquia paternal e desfeitos de suas terras – os últimos bens que lhes restavam – é compreensível a saudade que sentiam de tempos antigos, do rei velho (a quem a historiografia muitas vezes ressalta apenas a face ofensiva) e até mesmo dos diretores, quem repetidas vezes combateram. Os argumentos utilizados para o retorno do Diretório também possibilitam refletir sobre a famosa ideia de Manuela Carneiro da Cunha acerca da "questão indígena no século XIX", que havia deixado de ter como centro a mão-de-obra para se converter essencialmente para a terra. A autora reconhece que havia diferenças regionais, mas destaca que mesmo nas áreas de colonização antiga buscava-se "extinguir os aldeamentos, liberando as terras para os moradores".85 Os debates desenrolados no Conselho Geral da Província do Ceará durante as décadas de 1820 e 1830 pareciam confirmar a tese de Cunha, por entender que os poucos índios que restavam nas antigas povoações não tinham mais a relevância de poucos anos antes para a economia da região. Entretanto, em seus relatórios, os presidentes da província seguiram um caminho argumentativo inverso, destacando que o processo de extinção das vilas e a indiferença governamental diante do destino da população indígena afetara profundamente a agricultura. Acerca da interpretação da autora, Carlos Guilherme do Valle acredita que "tratar da terra implicava também lidar com o uso da mão de obra disponível". Para ele, a

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CONSTÂNCIO, Francisco Solano. História do Brasil, desde seu descobrimento por Pedro Álvares Cabral até a abdicação do imperador dom Pedro I. Paris: Livraria Portuguesa de J. P. Aillaud, 1839, p. 219. 83 SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português: análise da política indigenista de d. João VI. Revista de História, n. 161, vol. 2, 2009, p. 91-92. 84 Ibid., p. 104-105. 85 CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo, p. 4.

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compreensão da mão-de-obra mudara ao ser "descaracterizada de seus atributos étnicos, enquanto indígena, para ser generalizada como 'livre' e identificada como cearense e passível de ser aproveitada em termos econômicos".86 De fato, a desagregação dos espaços indígenas provocara uma intensa dispersão das populações nativas desapropriadas de bens e terras e, consequentemente, fragmentara comunidades e laços étnicos. Mas nem sempre esses "novos homens livres", antigos índios aldeados, passaram a ser aproveitados imediatamente como trabalhadores dos latifundiários invasores de suas antigas propriedades, já que muitos migraram para regiões distantes – movimento observado em décadas anteriores.87 Era disso que se lamentavam os presidentes em seus relatórios: a ambiciosa elite econômica do Ceará fora prejudicada por suas próprias ações, na medida em que, apossando-se das terras indígenas, passaram a sofrer com a escassez de sua força de trabalho. Ou seja, pelo menos no caso cearense, a questão da terra dos índios estava completamente vinculada à da exploração do seu trabalho. Apesar da ênfase à questão da terra para o século XIX, é Cunha quem diz que, nas zonas de povoamento mais antigo, a restrição do acesso à propriedade fundiária andava junto com a conversão da população independente em assalariada. "A política de terras não é, portanto, a rigor, independente de uma política de trabalho".88 Não havia, portanto, oposição entre “terra” e “trabalho” na questão indígena no início do século XIX. Mesmo com a diminuição demográfica presenciada nas vilas de índios nos anos posteriores a independência, é de se questionar a veracidade das falas do Conselho Geral da Província na década de 1830 acerca desses espaços. Era conveniente para os representantes dos potentados locais sedentos por terra declarar que as vilas estavam vazias com a abolição do Diretório. A intensificação da dispersão populacional indígena, sua diminuição demográfica e as referências aos danos econômicos apresentados pelo legislativo, com a conseguinte extinção das vilas, eram reais. Contudo, foram infladas e utilizadas enquanto manobras políticas pela ambição em torno das terras dos índios, como também nota Maico Xavier.89 Suprimido por ter supostamente "perdido importância", o Diretório era peça chave no fornecimento de trabalhadores em uma província carente de escravos e de recursos. Após cerca de 10 anos de terem resolvido abolir a lei, e já senhores das terras e do patrimônio das 86

VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX, p. 31. Como os índios da Ibiapaba que foram para o Piauí. Cf. De José Rabelo de Souza Pereira a Manuel Ignácio de Sampaio. Fortaleza, 11 de julho de 1815. BN, C-199, 14. De Manuel Ignácio de Sampaio ao Marquês de Aguiar. Fortaleza, 01 de agosto de 1815. BN, C-199, 14. 88 CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo, p. 15. 89 XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social, p. 106. 87

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antigas vilas de índios, os deputados da província resolveram acatar as sugestões dos presidentes, num claro sinal da necessidade sentida da mão-de-obra indígena. Em dezembro de 1842 a assembleia legislativa participou ao líder do governo do Ceará o ato nº 20 que sancionava o retorno da diretriz pombalina.90 Em 1º de agosto de 1843 o Diretório foi então restabelecido no Ceará pela lei nº 303. O texto legal, contudo, é pouco esclarecedor, não especificando quais pontos seriam aplicados ou de que maneira funcionariam as vilas, resumindo-se a dizer que sua execução não deveria se opor à Constituição e às leis do Estado, "que garantem a liberdade do cidadão".91 A norma pouco providenciava em favor dos índios, que seguiram enquanto "cidadãos livres e expropriados". No dia 14 do mesmo mês de agosto, o presidente José Maria da Silva Bittencourt escreveu circular aos juízes de órfãos da província e a algumas câmaras municipais, pedindo informações para a execução da nova legislação "que restabeleceu o Diretório dos Índios, acomodadas à diversidade de circunstâncias e de legislação". Foram perguntados se havia índios no seu termo, "e em que pontos ou lugares residem, qual seu número provável, em que gênero de vida se ocupam, se vivem aldeados ou dispersos".92 Uma das respostas veio Viçosa, que havia poucos anos era vila de índios. De acordo com a câmara, a população indígena correspondia a mais de 500 pessoas dispersas em várias localidades da região. Segundo os vereadores, quando os índios “tinham diretor, eram recrutados por toda parte para viverem para sua aldeia” e, caso fossem realdeados, “ter[ia] o município mais que florescer”.93 Percebe-se que a intenção de reativar o Diretório servia apenas para reagregar os índios em espaços próprios, de modo a facilitar seu fornecimento para o trabalho nas propriedades. Os objetivos do governo e a expectativa dos vereadores de Viçosa apontavam exclusivamente para o controle da população indígena e seu pleno aproveitamento enquanto mão-de-obra, sem que estes readquirissem um estatuto especial ou os antigos privilégios do Antigo Regime. As autoridades municipais da antiga vila de índios passaram longe de cogitar que lideranças indígenas voltassem a ocupar cargos na câmara. A lei setecentista em plena

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Da assembleia legislativa da província do Ceará a José Joaquim Coelho. Fortaleza, dezembro de 1842. AN, AA, IJJ9 175-a. 91 Lei nº 303 de 01 de agosto de 1843. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais, art. 1º §8, art. 2º §12, p. 323-235. 92 De José Maria da Silva Bittencourt aos juízes de órfãos da província. Fortaleza, 14 de agosto de 1843. APEC, GP, CO EX, livro 58, p. 130. De José Maria da Silva Bittencourt às câmaras municipais de Imperatriz, Sobral, Granja, Vila Viçosa, Vila Nova, São José do Príncipe, Quixeramobim, Baturité, Aquiraz, Cascavel, Aracati, São Bernardo, Riacho do Sangue, Icó, Lavras, Jardim, Crato, São Mateus e Fortaleza. Fortaleza, 14 de agosto de 1843. APEC, GP, CO EX, livro 62, p. 1V. 93 Da câmara de Vila Viçosa a José Maria da Silva Bittencourt. Vila Viçosa, 11 de setembro de 1843. APEC, CM, câmara de Imperatriz, pacotilha 1843-1849. Até esta pesquisa, não havia uma sessão da câmara de Vila Viçosa no fundo CM do APEC.

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década de 1840 não se configurava apenas como uma “herança” arcaica, mas era operacionalizada a serviço de interesses políticos e econômicos. Em julho de 1844 Bittencourt fez um balanço de um ano de execução da antiga lei pombalina em seu relatório proferido à Assembleia Legislativa. Assumiu que "havia obstáculos, tanto por falta de ordenado para os diretores como por falta de terras, por se acharem ocupadas devida ou indevidamente as dos índios". Ainda que sentissem a necessidade de tê-los novamente agregados e transformados em mão-de-obra, os proprietários invasores dificilmente cederiam suas novas possessões, e nem mesmo o líder do governo provincial teria forças para enfrentá-los. O presidente disse que esperava poder removê-los, a partir de um aviso do ministério do Império que ordenava que remetesse esclarecimento para a produção de uma nova lei "para a civilização e catequese dos indígenas".94 A volta do Diretório foi contemporânea à nova alta da produção algodoeira no Ceará da década de 1840, observado por João Leite Neto, atendendo, portanto, à necessidade de fornecimento regular de mão-de-obra para as lavouras.95 Sua extinção e seu posterior reestabelecimento, assim como outros procedimentos jurídicos analisados por Carlos Garriga e Andreia Slemian, devem ser tratados como atos deliberados das autoridades “no processo de reconstituição das novas unidades políticas e não uma simples herança, cuja recorrência à tradição fornecia aos coevos a manutenção de seus status quo frente às sociedades multiétnicas em convulsão política no início dos oitocentos”. Sob o regime de uma “justiça de juízes (e não de leis)”,96 novos e velhos mecanismos estavam a serviço das ambições das elites políticas e econômicas. O Diretório reestabelecido até certo ponto atendia aos interesses específicos das elites cearenses que desejavam eliminar os índios dos espaços políticos, apoderar-se de suas terras e usufruir de sua mão-de-obra. A decisão corrobora a ideia de André Roberto Machado, de que a questão indígena continuou relevante nas décadas posteriores à independência. No Pará analisado pelo autor, mesmo sem promulgar o reestabelecimento do Diretório, também houve propostas de utilização da lei pombalina e de outras medidas de coerção da força de trabalho dos índios.97

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Tratava-se do Regulamento das Missões, promulgado no ano seguinte. BITTENCOURT, José Maria da Silva. Relatório do Ex.mo presidente e comandante das armas da província do Ceará, o brigadeiro José Maria da Silva Bittencourt, na abertura da Assembleia Legislativa Provincial no 1º de julho de 1844. Fortaleza: Tipografia Cearense, 1844, p. 17. 95 LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da capitania do Ceará (1780-1822). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 1997, p. 92. 96 GARRIGA, Carlos. SLEMIAN, Andreia. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América Ibérica (C. 1750-1850). Revista de História, n. 169, 2013, p. 188-189. 97 MACHADO, André Roberto de Arruda. O Conselho Geral da Província do Pará e a definição da política indigenista no império do Brasil (1829-1831). Almanack, n. 10, 2015, p. 459-464.

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Muitas vezes, dilemas locais poderiam até culminar em decisões gerais no império, como foi o caso da criação do Regulamento das Missões em 1845. Tanto a volta da lei pombalina no Ceará quanto a promulgação do Regulamento foram exemplos da crescente necessidade do controle da mão-de-obra indígena em algumas províncias. Outra sugestão dos presidentes da Ceará acatada pelo legislativo foi a obtenção de frades católicos para que atuassem na civilização e catequese dos índios, presente desde o relatório do Francisco de Souza Martins em 1840. Segundo Patrícia Sampaio, os "capuchinhos já haviam sido convocados para assumir a catequese indígena desde 1840, durante a regência de Pedro de Araújo Lima, o relator do projeto do Regulamento", e em quem Martins provavelmente se inspirou. A autora destaca a "implementação de missões religiosas no Maranhão, Pará, Espírito Santo e Ceará, ainda no decurso das décadas de 1830 e 1840", quando os missionários estavam "a serviço do Estado e seriam considerados os principais responsáveis pela execução do Regulamento de 1845".98 Pela resolução de 10 de novembro de 1842, o presidente do Ceará José Joaquim Coelho, através de decreto da assembleia legislativa provincial, autorizou que o governo da província solicitasse à Santa Sé, por meio do governo imperial, “o transporte de dois missionários capuchinhos italianos, que se ocupem da catequese dos índios, e exercício das missões por toda a província, não excedendo a despesa do transporte a quatro contos de réis”. Seria designada em Fortaleza uma residência para os religiosos, empregados onde o governo achasse útil e subordinados ao superior do hospício de Pernambuco, “de acordo com o mesmo prelado diocesano impetrando-se nesse sentido a competente autorização da Corte de Roma”.99 Em abril de 1843 Coelho comunicou ao ministro José Antônio da Silva Maia a promulgação da lei de transporte dos missionários, esperando a aprovação da Corte do Rio de Janeiro.100 As despesas dos religiosos deveriam ser tratadas pelo presidente da província do Ceará, apesar da catequese e civilização dos indígenas serem competências do ministério do império.101 A vinda dos religiosos não foi imediata. Em março de 1844, o ministro do império José Carlos Pereira de Almeida Torres comunicou ao então presidente do Ceará José Maria da Silva Bittencourt sobre o extrato do enviado extraordinário e ministro plenipotenciário em Roma e os “obstáculos que tem encontrado para a remessa de dois a quatro missionários para a catequese e civilização dos índios desta província”. Curiosamente, caberia a Bittencourt dar 98

SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil imperial, p. 180. Resolução do presidente José Joaquim Coelho. Fortaleza, 10 de novembro de 1842. AN, AA, IJJ9 175-a. 100 De José Joaquim Coelho a José Antônio da Silva Maia. Fortaleza, 21 de abril de 1843. AN, AA, IJJ9 175-a. 101 Sem remetente, destinatário e local. 21 de junho de 1843. AN, AA, IJJ9 175-a. 99

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as providências para a remoção dos mesmos obstáculos,102 que não ficam claros no registro. O mesmo extrato foi comunicado à assembleia legislativa cearense no mês de maio.103 Paralelamente ao legislativo cearense, algumas normas imperiais foram promulgadas regulamentando a criação das missões religiosas e o trabalho dos missionários no Brasil. Dava-se início, segundo Marta Amoroso, à época na qual a política indigenista no império seria "erguida sob os pilares da catequese e da civilização pautada por um conjunto de princípios que giravam em torno da conversão, educação e assimilação branda da população indígena ao conjunto da sociedade nacional".104 A primeira diretriz foi o decreto n.º 285, de 24 de junho de 1843, que autorizava o "governo para mandar vir da Itália missionários capuchinhos, e distribuí-los pelas províncias em missões".105 Na lei nº 317, de 21 de outubro de 1843, por meio de seu artigo 1º, §21, determinou-se a quantia de 16:000$000 nas despesas para a "Catequese e civilização de índios, ficando o governo autorizado para dar regulamento às missões, e pô-los em execução".106 No ano seguinte, o decreto n.º 373 de 30 de julho de 1844 fixou novas "regras que se devem observar na distribuição pelas províncias dos missionários capuchinhos". Curiosamente, nenhum dos dois decretos, nem o 285 e nem o 373, sequer citavam os índios em seus textos ou vinculavam o trabalho dos missionários à sua catequese. No último, de 1844, contudo, era fixado em seus artigos 4º e 5º que nenhum dos religiosos deveria solicitar obediência ou outra ordem de seu superior em Roma, mas somente ao "beneplácito imperial".107 Foi o governo monárquico brasileiro quem incumbiu os frades capuchinhos da função que, segundo Oscar Beozzo, foi semelhante ao que os jesuítas desempenharam nos primeiros duzentos anos de catequese e aldeamento, mesmo que não tivesse, nem de longe, as mesmas proporções. Ainda assim, tal atuação foi a base da "parte religiosa da política 102

De José Carlos Pereira de Almeida Torres a José Maria da Silva Bittencourt. Rio de Janeiro, 30 de março de 1844. AN, AA, IJJ9 91. 103 De Raimundo Ferreira de Araújo Lima ao 1º secretário da assembleia provincial. Fortaleza, 6 de maio de 1844. APEC, GP, CO EX, livro 66, p. 6. 104 AMOROSO, Marta Rosa. Mudança de hábito: catequese e educação para os índios nos aldeamentos capuchinhos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13, n. 37, 1998, p. 2. 105 Decreto n.º 285, de 24 de junho de 1843. Autoriza o governo para mandar vir da Itália missionários capuchinhos, distribuí-los pelas províncias em missões; e concede seis loterias para aquisição ou edificação de prédios, que sirvam de hospícios aos ditos missionários. Disponível em: . Acesso em: 20 de agosto de 2015. 106 Lei n.º 317, de 21 de outubro de 1843. Fixando a despesa e orçando a receita para os exercícios de 1843-1844, e 1844-1845. Disponível em: . Acesso em: 20 de agosto de 2015. 107 Decreto n.º 373, de 30 de julho de 1844. Fixando as regras que devem observar na distribuição pelas províncias dos missionários capuchinhos. Disponível em: . Acesso em: 20 de agosto de 2015.

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indigenista traçada pelo decreto de 1845". Entre um dos principais objetivos do novo Regulamento, segundo o autor, estava cuidar do destino das terras indígenas e reagrupar os pequenos grupos de índios que ainda restassem. "O índio não devia ser um obstáculo ao aproveitamento da terra. Ele mesmo devia transformar-se em lavrador".108

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Como alerta Marta Amoroso, é preciso acrescentar à analise das apropriações fundiárias novos olhares sobre as intenções "de utilização dos índios como força de trabalho".109 De fato, o avanço territorial não ignorou seus antigos donos, mas que deveriam ser destituídos de uma vez por todas de suas antigas garantias e estatutos diferenciados, como vimos há pouco. Os missionários, como dizia a lei, estavam a serviço do governo, atuando na prática mais em congregar trabalhadores do que proteger os indígenas ou lutar por seus direitos políticos. No Ceará, uma das primeiras províncias a se mobilizar pela vinda dos religiosos, não foi à toa que o restabelecimento do Diretório tenha sido contemporâneo à presença dos missionários e à declaração, cerca de 20 anos depois de sua chegada, de que não havia mais índios em seu território.110

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BEOZZO, José Oscar. Leis e regimentos das missões: política indigenista no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1983, p. 78-79. 109 AMOROSO, Marta Rosa. Mudança de hábito: catequese e educação para os índios nos aldeamentos capuchinhos, p. 9. 110 Cf. XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos": dinâmicas das relações sócio-culturais dos índios do termo da Vila Viçosa Real – século XIX. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 167. XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social. SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. O relatório provincial de 1863 e a expropriação das terras indígenas. In: João Pacheco de Oliveira. (Org.). Presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.

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CAPÍTULO 3 OS INDÍGENAS DIANTE DA LEGISLAÇÃO "por motivo das leis serem todas sonegadas [...] prostram-se os miseráveis índios suplicantes a representar as suas misérias e vexames" (João de Souza Benício e demais índios da Ibiapaba, 1814. APEC, GC, Livro 93) "Os índios [...] são esbulhados de suas terras, ficando à mercê do desamparo, sem que tenham aparecido por parte das autoridades [...] aquelas providências que as leis autorizam" (José Joaquim Coelho, 1842. APEC, GP, CO EX, Livro 58, p. 11)

Apesar da obrigação do trabalho compulsório prevista no Diretório, os índios eram, por lei, livres e deveriam ser remunerados pelos serviços que executassem, situação que perdurou durante toda a vigência dessa legislação no Ceará. O reinado de dom João VI não mudou essa característica na capitania, ainda que a historiografia costume acentuar seu caráter agressivo.1 Marina Machado acredita que "não se pode generalizar a política indigenista deste governo", já que "adotou práticas específicas para cada região, lidando com a declaração de guerra justa em paralelo aos incentivos ao aldeamento".2 Segundo Fernanda Sposito, a dinâmica das leis a respeito dos índios “respondeu historicamente às demandas presentes nas estruturas sociais às quais corresponderam”. Por isso, a autora trabalha com os termos “arcaico” e “moderno” não enquanto categorias estanques – “uma coisa ou outra” –, mas ajudando a perceber práticas distintas que conviviam em uma mesma situação de “transformações oriundas da crise do Antigo Regime, sejam revolucionárias ou regressistas”. A respeito da política indigenista joanina, Sposito percebe suas tensões como pertencentes ao período quando o sistema colonial praticado na América portuguesa não se sustentava mais, requerendo “adaptações crescentes às demandas do capital industrial vigente no final do século XVIII”.3 O Diretório em vigor no Ceará – atendendo à necessidade de mão-de-obra para as produções de algodão e mandioca, voltadas, respectivamente, aos mercados externos e Manuela Carneiro da Cunha chama dom João VI de “o mais anti-indigenista dos legisladores”. CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Terra indígena: história da doutrina e da legislação. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 63. 2 MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras: terras indígenas nos sertões fluminenses (1790-1824). Tese (doutorado) - Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 103-104. 3 SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português: análise da política indigenista de d. João VI. Revista de História, n. 161, vol. 2, 2009, p. 87-91. 1

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internos – também compôs a dinâmica da política indigenista joanina, assim como as Cartas Régias de 1808 declarando guerras aos chamados "botocudos". Estas correspondiam a situações bastante específicas, espacial e temporalmente, que não podem ser generalizadas para todo o Brasil, tendo em vista que o tratamento da Coroa aos indígenas da América não era uniforme. O contexto de produção dessas leis diz respeito a regiões fortemente visadas pela expansão agrícola do início do século XIX (atuais Paraná, São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais), e exclusivamente aos índios não-aldeados, que atrapalhavam as intenções econômicas do governo. Os textos das Cartas Régias de guerra justa sinalizavam possibilidades de conciliação que frequentemente era desobedecida na prática, já que a escravidão prevista para os índios capturados era durante o "tempo que durar sua ferocidade", ou "enquanto não derem provas do abandono de sua atrocidade e antropofagia". Os "tão saudáveis e grandes fins" pretendidos pelas Cartas Régias eram "tudo o que tocar a pacificação, civilização e aldeação [sic] dos índios".4 Para aqueles que quisessem se aldear, e "viver sob o suave jugo" das leis, "já não só não ficarão sujeitos a serem feitos prisioneiros de guerra, mas serão até considerados como cidadãos livres e vassalos especialmente protegidos por mim e por minhas leis".5 Faz-se necessário, portanto, ponderar sobre as ações e intenções dos diferentes agentes que lidavam com os botocudos neste contexto. Pela leitura das Cartas Régias de 1808, a transformação dos índios, aldeados ou não, em escravos não era necessariamente o objetivo do governo joanino, e muito menos a regra para o tratamento com estas populações em todo o Brasil. O texto legal abria aos indígenas a possibilidade da liberdade, tanto na condição de vassalos como também de cidadãos.6 No entanto, a aplicação de tais preceitos por representantes da administração colonial e pelos colonos seguia muitas vezes caminhos distintos. Tais discrepâncias estão presentes na análise de Tarcísio da Silva a respeito da atuação da Junta de Civilização dos Índios do rio Doce, por exemplo. Ainda que apresente o reinado de dom João VI como mais ofensivo do que anteriores,7 o autor enfatiza que “sempre houve por parte de Portugal certa ambiguidade, tanto legal como prática, no tratamento dos

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Carta Régia de 13 de maio de 1808. Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em 29 de janeiro de 2015. 5 Carta Régia de 05 de novembro de 1808. Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em 29 de janeiro de 2015. 6 A operacionalização desses conceitos por índios e outros agentes serão analisados no capítulo 4. 7 SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta de civilização e conquista dos índios e navegação do rio Doce: fronteiras, apropriação de espaços e conflitos (1808-1814). Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2006, p. 103-104.

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índios”.8 Para Silva, mesmo que “a ideia de guerra [...] nunca [tenha sido] abandonada”, as ordens do comando da Junta sempre foram “no sentido de tentar um contato amistoso e só usar de meios violentos quando este tipo de ação” fosse necessário.9 Atentar para essas nuances não significa ignorar os efeitos sanguinários dessas práticas iniciadas em 1808. Comparando com as medidas pombalinas, Fernanda Sposito entende as joaninas contra os botocudos de Minas e São Paulo como um atraso, ao reeditar práticas coloniais de extermínio e escravização. No entanto, sua finalidade não se resumia a eliminação dos índios do território em questão. Além da resistência indígena, sua aliança era de fundamental importância no conhecimento de locais imprescindíveis a novos espaços de produção e “como a principal mão-de-obra disponível”. Também tiveram momentos de recuo – com o plano de catequese dos índios de Guarapuava10 – e foram contemporâneas a ações bastante distintas, em que o próprio dom João VI recomendava a observância ao Diretório. Exemplo de outro procedimento da política joanina está registrado no regimento do Tribunal da Relação do Maranhão de 1812, cuja jurisdição foi estendida para o Ceará em 1815. O §15 do título 2º – Do governador da Relação – ordena que se favorecessem os gentios "que estiverem em paz", proibindo que fossem maltratados e "obrigados a serviços e trabalhos [...], por preços e tempos arbitrados que não sejam estipulados por mútuas convenções [...], maneira que se observa com todos os outros meus vassalos". As instruções seguiam caminho oposto aos das Cartas Régias contra os botocudos, já que até mesmo a vontade dos nativos deveria ser levada em consideração se recrutados como mão-de-obra. Se em relação aos sertões do leste, repleto de áreas propícias a lavouras, ressaltava-se o combate à resistência indígena, para o território da Relação do Maranhão mandava-se "proceder com vigor contra quem os maltratar ou molestar". No caso específico da região do Tribunal maranhense, ao contrário do cativeiro, buscava-se a atração dos gentios pelo convencimento

"dando ordens e providências para que se possam sustentar o viver junto das povoações dos portugueses, ajudando-se delas de maneira que os que habitam no sertão folguem de vez para as ditas povoações e entendam que tenho bem lembrança deles, guardando-se por este efeito inteiramente a lei que sobre esta matéria ordenou o Senhor Rey dom Sebastião no ano de 1570 e todas as mais leis, provisões e ordens expedidas sobre a mesma matéria, e muito especialmente as que foram promulgadas pelo Senhor Rey dom José, meu senhor e avô"11

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Idem, p. 115. Idem, p. 118. 10 SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português, p. 105-107. 11 Registro da Provisão e Regimento da Relação da Casa de São Luís do Maranhão. Fortaleza, 20 de março de 1815. APEC, CM, câmara de Fortaleza, livro sem número (1813-1818). Grifo meu. 9

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Os gentios que habitassem e vivessem em paz no território da Relação do Maranhão seriam bem lembrados e chamados de "vassalos" por dom João VI. Para algumas situações, havia grande interesse por parte da Coroa em congregá-los junto aos outros súditos. Tal convivência, como propunha a lei setecentista, era um meio possível para civilizá-los, transformando-os em mão-de-obra para particulares e para o Estado. Ao final do texto, fez especial referência ao Diretório dos Índios – promulgado pelo seu avô, dom José I – vendo os gentios, por essa maneira, como potenciais trabalhadores a serviço de Portugal. A legislação indigenista pombalina, mais uma vez, é referenciada nos planos da monarquia lusitana como ainda pertinente para determinadas circunstâncias. “Práticas políticas diferenciadas, portanto, integravam uma mesma política indigenista”, com afirma Maria Regina de Almeida acerca do período joanino.12 Ao contrário do que coloca Fernanda Sposito,13 o incentivo de incorporação dos indígenas à sociedade colonial atravessou o século XIX, sem que toda ação política se resumisse a guerras justas. Mas apesar da proteção prevista pela lei pombalina, da condição de vassalos livres que lhes era concedida e dos cargos de câmara que podiam exercer, era grande a rejeição indígena em relação ao Diretório. Por um lado, a lei vetava a escravização dos índios e os faziam vassalos "iguais aos outros"; por outro, a incongruência entre a liberdade concedida e a situação de tutela, além das obrigações que lhes eram impostas, acentuavam as contradições da lei na prática e, consequentemente, sua rejeição por parte dos nativos. Para Fátima Lopes, as descrições de "decadência física das vilas" presentes em muitos relatos do início do século XIX são provas dos males provocados pelas diretrizes pombalinas em relação aos índios.14 Segundo ela, "a situação de pobreza e miséria só tenderia a se agravar com as exigências de consumo feitas pelo próprio Diretório".15 A autora indica ainda que os principais motivos para o "fracasso" apontado pela historiografia seriam "a má administração devida à falta de preparo dos agentes coloniais; os maus tratos infligidos aos índios; a exploração sobre a produção indígena".16 Contudo, como vimos, o cenário de espaços decadentes era justamente um dos motivos para que a Coroa acreditasse na lei pombalina como uma solução. Ao traçar diferenças entre o Diretório e a diretriz que o substituiu em algumas regiões, Vânia Moreira argumenta que a extinção a tutela dos diretores era um dos aspectos 12

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios no tempo da corte: reflexões sobre a política indigenista e cultura política indígena no Rio de Janeiro oitocentista. Revista USP, n. 79, 2008, p. 98. 13 SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012, p. 38. 14 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índio do Rio Grande do Norte sob o Diretório pombalino no século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 390. 15 Ibid., p. 423. 16 Ibid., p. 451.

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característicos da Carta Régia de 1798. Tal sistema visava "transformar os índios em 'súditos úteis', por meio do trabalho prestado ao Estado, aos particulares, a si mesmo e à família". Além disso, teria aberto "espaços para o exercício da política indígena, expressa na defesa de sua liberdade e territorialidade", contra aqueles que cobiçavam suas terras e seu trabalho. 17 O problema da avaliação da autora é que, primeiramente, os objetivos apresentados eram os mesmos do Diretório, que ansiava pela mão-de-obra indígena por meio da tutela. Em segundo lugar, a ação política dos índios também esteve presente nas vilas onde estavam submetidos aos diretores e, como veremos, solicitavam justamente o fim desse cargo em suas manifestações. A ação indígena presente nas vilas do Ceará oitocentista lidava frequentemente com a legislação. Utilizava-a para buscar autonomia no governo dos espaços, garantir terras e mercês e contra a opressão dos que usufruíam de sua mão-de-obra. Vivendo sob as normas do Diretório, os índios atuaram diante da lei de diversas formas, seja procurando eliminar as limitações comerciais impostas pela diretriz setecentista, a figura do diretor ou mesmo intentando aboli-la por completo. Situações radicais também eclodiram, convivendo com iniciativas de lideranças conhecedoras dos trâmites burocráticos do universo português. Compunham uma heterogeneidade indígena plural em experiências e intenções, mas conhecedora da legislação e de sua condição política: eram súditos da Coroa e se percebiam como merecedores, portanto, de sua atenção e de mais liberdade.

3.1. "OS ÍNDIOS DESSA VILA NÃO QUEREM TER DIRETOR”

Na sessão da câmara de Aquiraz de 15 de janeiro de 1821 foram lidas várias memórias de algumas autoridades do município, oriundas de suas reflexões e proposições. Uma delas foi a dos índios da povoação de Monte-mor Velho, liderados pelo comandante José Francisco do Monte, que foi aceita, "menos o quererem eles passar sem um diretor branco que o dirijam".18 A solicitação não chegou sequer às mãos do governador da capitania, prontamente recusada pelas autoridades da vila, formada por homens brancos. A negação poderia ter acontecido pelo fato de os vereadores não terem autorização para tomar tal decisão. Mas o mais provável, já que a memória dos índios ficou restrita à deliberação municipal, é que tenha sido fruto da 17

MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). Revista de História, nº 166, 2012, 230. 18 Termo de vereação da câmara municipal. Aquiraz, 15 de janeiro de 1821. APEC, CM, câmara de Aquiraz, livro 29, p. 10.

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preocupação das lideranças locais de que os indígenas vivessem sem tutela, "incivilizados" e sem alguém para distribuí-lo, mediante aluguel, pelas propriedades. Já um memorial da câmara de Messejana, constituída por índios, chegou a ser remetido ao governo provisório do Ceará em janeiro do ano seguinte, contendo uma série de parágrafos com diversos requerimentos. Por meio dele pediam, indo além dos índios de Monte-mor Velho, não somente a dispensa do diretor, mas explicitamente o fim da lei pombalina. Argumentavam que o comércio da vila era impedido "por não se poder vender nela licores espirituosos" e, por isso, solicitavam que ficasse o "Diretório abolido por resultar em benefício público". Diziam que os "índios desta vila não queriam ter diretor", e que "deveriam ser administrados debaixo da inspeção do seu respectivo capitão-mor", que, no caso do Ceará, eram indígenas. Seriam "obrigados a trabalhar [para] os moradores, mas que seus filhos não seriam tirados para o trabalho e serviço [...] como antes eram obrigados". Não ficariam, contudo, ociosos, já que teriam um "mestre de primeiras letras que os ensin[asse]". Disseram-se ainda cientes de que a agricultura era "um dos principais objetos para aumento da província", mas que não se podia "bem estabelecer pela falta de possessões dos moradores por não terem fábricas", ou seja, pessoas que os auxiliassem. Como solução, acordaram "com o voto de todos" que fossem enviados "escravos para se vender aos moradores, e que estes seriam pagos com os frutos das mesmas lavouras e plantações que se fizesse, e a pagamentos anuais".19 Como coloca Vânia Moreira, as queixas dos índios das vilas não eram a favor do ócio ou para que não mais trabalhassem, mas em prol de serem tratados dignamente,20 supervisionados por uma liderança da própria comunidade e sem repetição da exploração de crianças, denunciadas no texto de Vasconcelos havia cerca de 20 anos. Indo além das condições de trabalho, a proposta também previa um incremento comercial que era impedido pelo Diretório e pela própria condição de pobreza que visavam superar. A presença dos escravos de origem africana não os isentava de trabalhar para os moradores extranaturais, e revela, primeiramente, a preocupação dos índios em desenvolver economicamente sua vila através de sugestões concretas. Em segundo lugar, mostra a visão que tinham do seu lugar no império português, enquanto pessoas "habilitadas" a vender bebidas alcoólicas e viver sem tutela. É preciso notar ainda que o memorial, escrito no início do ano de 1822, é

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Memorial que fez o senado da câmara desta vila de Messejana, com assistência dos repúblicos e mais povo. Messejana, 15 de janeiro de 1822. BN, II-32, 24, 9. 20 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios, p. 241.

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contemporâneo às Cortes de Lisboa, tendo sido uma provável tentativa dos índios de se aproveitar do momento liberal para abolir tais aspectos ligados ao Antigo Regime português. A proposta dos indígenas de Messejana parece não ter surtido efeitos ou nem ao menos ter sido avaliada pelo governo da capitania. Em junho de 1829, os índios tentaram novamente incrementar sua dinâmica comercial por meio de uma lista de posturas da câmara municipal, já citada no capítulo anterior. Algumas buscavam modificar as leis, numa nova tentativa de derrubar a legislação setecentista. Boa parte delas foi rejeitada ou recebeu algum comentário do conselho da província, presidido pelo governador Joaquim Pereira da Silva, que ordenou seu reenvio no mês seguinte com atenção às observações feitas. Para as lideranças provinciais, não teriam "nem tom nem som jurídico", e nem mereciam "o nome de 'posturas'", já que "alguns de seus artigos até vão de encontro à lei". Destacaram que, por serem "contra as disposições do Diretório", era preciso que a câmara se dirigisse ao poder legislativo, expondo a necessidade de dispensa das diretrizes pombalinas por conta dos contratos de aguardente e das casas dos extranaturais, fazendo "aumento e comércio delas, sem ônus ou pensão". Ao final, foi sugerido que a câmara de Messejana, para "organizar novas e legais posturas e aumentar as suas tênues rendas", chamasse um "advogado hábil que a assessore", já que "muitos de seus artigos [eram] opostos à lei".21 A preocupação das lideranças indígenas em desenvolver a vila e aumentar suas rendas vai de encontro às imagens que os retratavam apenas como ociosos, indolentes e desprovidos de qualquer motivação por esses espaços. O choque entre a visão dos índios e a das autoridades estava presente também nas diferentes percepções da lei: enquanto o Diretório, para os nativos, era um claro empecilho ao comércio, o governo via vantagens na presença de não-índios nas vilas, mesmo sem a cobrança de impostos. Percebemos que as concepções acerca das vilas eram heterogêneas, fazendo desses espaços palcos de conflitos de interesses. Até mesmo dentro da comunidade indígena havia objetivos e óticas distintas, entre os que fugiam para as matas e o que agiam por vias legais, ainda que todos se incomodassem com a presença tutelar do diretor. Disputas e discordâncias também ocorriam entre o governo e representantes da Coroa brasileira, com tentativas de abolir o Diretório por parte destes últimos. As posturas de Messejana foram finalmente aprovadas no ano seguinte22, mas, antes disso, em setembro de 1829, houve nova tentativa de burlar a legislação, dessa vez por parte do juiz de paz da vila. 21

De Joaquim Pereira da Silva e Francisco Esteves de Almeida à câmara de Messejana. Fortaleza, 6 de julho de 1829. APEC, GP, CO EX, livro 13, pp. 69-71. 22 De Manoel José de Albuquerque a João Facundo de Castro e Menezes. Fortaleza, 25 de maio de 1830. APEC, GP, CO EX, livro 15, p. 26V.

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Foi acusado de querer entrar nas atribuições do diretor, “contra o disposto nos alvarás da sua criação em vigor (e tanto em vigor [...] que o senhor deputado para esta província Manoel do Nascimento Castro e Silva fez uma indicação para serem abolidos os diretores dos índios)". 23 Por isso, o presidente da província ordenou-lhe respeito às leis do Diretório "até que S. M. I. [Sua Majestade Imperial] ordene novamente o que se deve observar a tal respeito". 24 O líder do governo comunicou-se também com o diretor, para que continuasse "no mesmo exercício como até agora, de baixo das mesmas leis e instruções a tal respeito".25 O que parecia haver em Messejana era a disputa pelo poder em torno da mão-de-obra dos índios, ambicionada pelo juiz de paz. Contudo, pelo que foi citado por Pereira da Silva e como vimos no capítulo 2, abolir o Diretório era um desejo compartilhado por parte do Legislativo. Havia receio no governo da província de que a alteração na lei ferisse a autoridade do rei ou fugisse a suas atribuições, mas o fato de que a mudança na legislação tenha sido discutida sinaliza a existência de intenções de transformação. A proposta dos índios de Messejana já apontava dificuldades econômicas locais e dava soluções concretas para essa superação, entre elas, o fim da lei pombalina e da tutela, também ansiado pelos índios de Monte-mor Velho. Em outro memorial de autoria anônima, provavelmente de meados da década de 1820, há a sugestão de extinguir artigos do Diretório para melhorias econômicas no Ceará, que mesmo tendo conhecido "progressivo aumento no seu comércio" entre 1818 e 1821, sofria de "uma falta geral de tudo". Sobre a administração dos índios, propunha-se que fossem "governados da mesma forma que são os brancos", sendo "extintos os lugares de capitãesmores, e fiquem policiados pelas autoridades territoriais, e servindo nos corpos de milícias". Suas povoações e vilas ficariam livres para comercializar licores, as terras seriam repartidas igualmente a partir dos fogos existentes e os extranaturais que tivesse edificações teriam que pagar foro aos índios "na forma do Diretório, [...] e continuará nesse aforamento enquanto quiser ali estar, não podendo nunca ser despejado".26 Alguns detalhes da proposta levam a crer que não tenha sido concebida por índios. Em primeiro lugar, apesar do sugerir que os não-indígenas fossem foreiros, isentava-os de qualquer possibilidade de expulsão, algo dificilmente acordado pelos indígenas. Em seguida, 23

De Manoel Joaquim Pereira da Silva a José Ferreira Lima. Fortaleza, 12 de setembro de 1829. APEC, GP, CO EX, livro 13, p. 129. 24 De Manoel Joaquim Pereira da Silva a José Ferreira Lima. Fortaleza, 17 de setembro de 1829. APEC, GP, CO EX, livro 13, p. 132. 25 De Manoel Joaquim Pereira da Silva a João da Cunha Pereira. Fortaleza, 17 de setembro de 1829. APEC, GP, CO EX, livro 13, p. 132V. 26 BN, II-32, 23, 63.

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tal divisão por lotes individuais seguia um raciocínio liberal incomum na tradição dos índios das vilas, descendentes dos habitantes dos antigos aldeamentos missionários, de viver em terras comunais. Por fim, a extinção dos diretores viria junto com a dos capitães-mores, acabando com o posto de prestígio constantemente referenciado nos requerimentos indígenas, além de deixar ambígua a questão da tutela ao não esclarecer quem seriam as "autoridades territoriais" e o que significava, para os índios, ficar policiado por elas. Ser governado "da mesma forma que os brancos", contudo, remete a uma vida sem as obrigações de estarem agrupados no espaço da vila e de trabalhar para particulares e para o Estado. Esta foi a sugestão do diretor de Vila Viçosa, Paulo Fontenele, enviada ao presidente do Ceará, Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, em maio de 1824. Em resposta, Araripe disse que não tinha autoridade para "desaldear" os índios "pois iria contra as leis", e ordenou que, ao contrário, Fontenele deveria "congregar os dispersos, e da mesma sorte obrigá-los à cultura" da mandioca. Como observa Maico Xavier, no pedido do diretor estava o desejo, institucionalizado anos depois, de que os índios fossem "misturados" aos não-índios e de que perdessem suas garantias coletivas, dentre elas, a terra.27 Contrariando os anseios de Fontenele, a ideia de que a condição de tutelados para índios seria um necessário remédio para a "ociosidade, mãe fecunda dos furtos e de vícios"28, bem como para debilitada economia da região, permaneceu vigente nos governos do Ceará até a década de 1830, mesmo com as repetidas contestações de autoridades locais e das lideranças indígenas. O “alumiado” João de Souza Benício e os índios da Ibiapaba

O desejo comum de índios e autoridades locais em abolir o Diretório se diferenciava nos objetivos finais: cada lado visava se ver livre do outro, garantindo para si a autonomia na administração das vilas e na posse das terras. Sabemos que a vontade dos proprietários acabou imperando, já que o fim da lei pombalina ocorreu apenas no contexto do período regencial, quando o status de cidadania brasileira para os índios foi acompanhado pelo fim de antigas garantias, de uma proteção mais efetiva da Coroa brasileira e da promulgação de uma série de diretrizes que os prejudicavam. Por conta da conjuntura de separação política e dos primeiros anos do império do Brasil, as tentativas indígenas de abolir a norma setecentista na década de 27

XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos": dinâmicas das relações sócio-culturais dos índios do termo da Vila Viçosa Real – século XIX. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 125. 28 De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe a Paulo Fontenele. Fortaleza, 21 de maio de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 02, p. 52.

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1820 não se compararam em termos de repercussão com o requerimento dos índios da Ibiapaba de 1814,29 como vimos no 1º capítulo. Segundo os indígenas, cientes da legislação a que estavam submetidos, o requerimento tratava das "leis que têm feito os diretores contra as ordens de Sua Majestade Fidelíssima", indicando, de início, que o tratamento que sofriam era uma afronta às próprias determinações da Coroa. Relataram que havia 50 anos eram dirigidos pelos diretores, e mesmo assim não gozavam "das honras, nobrezas, liberdades e privilégios dados por Sua Majestade, o falecido Dom João V". Diziam-se merecedores das mercês reais "pelos benefícios que fizeram seus antepassados na defesa da Real Coroa [...] na continuação das batalhas que deram aos bárbaros gentios deste Brasil". Pelo fato de as "leis serem todas sonegadas", prostravam-se "os miseráveis índios suplicantes a representar as suas misérias e vexames que se veem oprimidos dos diretores", que o rei mandara "para criá-los, e não para os acabar, destruir, aniquilar". Encontravam-se, portanto, "no vexame de cativos, tudo urgido pelas leis dos diretores". A "lei dos diretores”, a que insistentemente se referiam os índios, dizia respeito à maneira com que estas autoridades conduziam seus trabalhos na vila com a população indígena. Habilidosos nas escolhas das palavras e argumentos, os nativos fizeram questão de sublinhar que o tratamento que exigiam nada mais era do que o correto cumprimento das ordens da própria monarquia lusitana, e que as explorações que sofriam configuravam um desrespeito à Coroa. Além disso, não hesitaram em se remeter aos feitos de seus antepassados em defesa dos reis portugueses: sua cultura histórica era estreitamente vinculada à cultura política, ao demarcar a diferença entre eles e os "gentios bárbaros" e rememorar sua fidelidade ancestral aos soberanos de Portugal. No mesmo requerimento, em seguida, os índios contaram resumidamente o histórico da relação com cada um dos oito diretores que passaram por sua povoação, desde quando ascendeu à condição de vila, além de outro que dirigiu São Pedro de Baepina. Os relatos foram minuciosamente analisados por Maico Xavier, que classificou a situação dos nativos em Viçosa como um "regime de escravidão mascarada".30 O autor também aponta para disputas em torno da interpretação das leis e da própria memória, quando alguns diretores

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Abaixo-assinado dos índios da Ibiapaba à rainha dona Maria I, anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93. 30 XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 89.

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chegaram a afirmar que as honras e privilégios haviam ficado no passado, 31 com a justificativa de que somente "os que [as] gozavam foram seus ancestrais". A posição dos índios nesse confronto era clara: sabiam com precisão dos feitos dos seus antepassados e dos privilégios garantidos pelos reis. Era em nome do correto cumprimento das ordens monárquicas que pediam à rainha para que estendesse "os seus benignos olhos para as misérias dos pobres índios", e mandasse "recolher os Diretórios que se achasse nas vilas dos índios". Lembraram, mais uma vez, a "patente que foi passada aos seus antecedentes", por conta das terras que conquistaram à Coroa, e especialmente pela batalha travada contra o indígena "Mandu Ladino, um dos principais inimigos", e que comandou uma revolta indígena no Piauí na primeira metade do século XVIII. Em decorrência desses combates teria morrido "o governador dos índios dom José de Vasconcelos, cavaleiro do Hábito de Cristo, falecendo miseravelmente sem sacramento algum, mostrando ser fiel vassalo de sua Majestade". Segundo os autores do requerimento, muitos outros sucumbiram nas guerras "por onde hoje está o Brasil, aumentado de grande número de povos", numa tentativa de destacar sua importância e a de seus ancestrais na construção da colônia portuguesa. Amparados pela histórica fidelidade de seu povo, e diante de tantos abusos, pediram, por isso, que a rainha abolisse o Diretório e expulsasse os brancos e outros extranaturais da vila. A preocupação dos nativos de Viçosa em desenvolver sua vila é semelhante ao caso de Messejana na década seguinte. Não se tratava apenas de se verem livres dos não-índios para viver em ociosidade: estes eram mais uma vez apontados pelos indígenas como a causa da decadência dos espaços em que viviam. Em contrapartida à desobediência dos brancos, indicavam novamente o papel de seu povo para a consolidação do império português ao morrerem pelo estabelecimento da colônia na América. O citado Mandu Ladino, famoso pela rebelião na capitania vizinha e contra quem seus ancestrais haviam lutado, não era um bárbaro arredio. Ao contrário, fora criado por frades capuchinhos e educado em Pernambuco, e, ainda assim, tornara-se inimigo da Coroa lusitana. Já os de Viçosa, segundo os autores do requerimento, sempre se portaram como fiéis súditos, prontos para derramar seu sangue em nome da monarquia. Os anseios dos índios de Viçosa mais uma vez se assimilam com os de Messejana ao expressarem a vontade de ver o "aumento da vila" e, para isso, além da expulsão dos nãoíndios, propuseram outras medidas com o objetivo de incrementar a economia local. Pediram

31

Ibid., p. 94.

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a elevação do povoado de Baepina à condição de vila, por ser distante de Viçosa 12 léguas. Para Xavier, a solicitação sugere a participação dos índios da localidade na produção do texto, desejosos de "viver sem autoridades locais superiores a eles próprios, [...] ocupar cargos político-administrativos de importância e dialogar diretamente com os reinóis sem a interferência de terceiros".32 Requisitaram ainda a devolução de algumas terras aparentemente invadidas, que lhes foram dadas "pela Data Régia primeira, e os que [se] acha[ssem] dentro delas com sesmarias ficar[iam] perdendo o benefício que tiverem feito". Por fim, que a rainha mandasse

"todos os anos uma frota de fazenda [tecido], ferramenta, pólvora, armas, para nos mandarmos carregar, e fazer paga com algodões em pluma, fazendo para isso nossos chefes casa de alfândega, para ali todos irem comprar com seu algodão o que carecer, ou para seus negócios como fazem os senhores brancos, para assim se acabar tanta miséria, tanta carestia, tanto [?] que se tem feito aos miseráveis índios".

Não parece tão difícil deslindar o pensamento dos índios da Ibiabapa, como acredita Xavier. Concordando com o relato do padre Andreoni, que esteve com os tabajaras dessa região no século XVIII, o autor entende como contraditórios os pedidos dos nativos, ao desejarem o recolhimento do Diretório e, ao mesmo tempo, a elevação de um povoado a vila.33 Vânia Moreira, por outro lado, analisa o sistema político vivido pelos índios no Espírito Santo nos primeiro anos do século XIX, sob a aplicação da lei que abolira a diretriz pombalina. Lá, eles eram “submetidos ao governo de suas vilas, onde poderiam exercer cargos civis e militares, tornando-se livres da tutela dos diretores”.34 Onde a Carta Régia de 1798 havia entrado em vigor, os indígenas governavam suas próprias povoações: era esse o anseio dos da Ibiapaba, ainda que não citassem a legislação que extinguira o Diretório, mesmo porque foram além, ao implorarem a expulsão completa dos não-índios. Ao proporem o fim de uma lei e uma nova forma de vida não entravam, necessariamente, em contradição, como afirma Xavier,35 mas operacionalizavam diversas concepções legais e políticas. Os índios vislumbravam novas relações por meio das mercês da Coroa, relembrando sua fidelidade ancestral e sugerindo medidas concretas para o desenvolvimento do comércio que tanto interessava à monarquia. Queriam, enfim, viver e cuidar de seus negócios “como faziam os senhores brancos”, sem o sofrimento que sua presença provocava.

32

Ibid., p. 105. Ibid., p. 104. 34 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios, p. 226. 35 XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 105. 33

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O requerimento foi entregue pessoalmente pelos índios à Corte no Rio de Janeiro, para onde foram caminhando por terra, atravessando Minas Gerais, e junto levavam 10 documentos anexos. O grupo era formado por João de Souza Benício, Pedro Gonçalves de Vasconcelos, Antônio Rodrigues Lima e João da Costa de Oliveira, “índios, o primeiro alumiado mestre professor das primeiras letras na Vila Viçosa Real da Ibiapaba da Capitania do Ceará Grande”.36 Chama atenção o destaque dado ao “alumiado” professor João Benício que, pelos conhecimentos que tinha, foi provavelmente o autor do requerimento, ou, pelo menos, um dos principais organizadores da ação. Remete ao “fascínio pela escrita” apontado por John Monteiro, presente na história dos índios em suas relações com os colonizadores. Juntamente com “motins”, fugas, arcos e flechas, “a escrita apresentava-se como outra escolha para estas lideranças”,37 que também a utilizavam enquanto referência nas suas comunidades. Municiados das "luzes" de João Benício, executaram uma longa viagem para o Rio de Janeiro. Segundo Manuela Carneiro da Cunha, o século XIX tem como característica o estreitamento da arena de discussão da política indigenista a partir da vinda da Corte portuguesa para o Brasil em 1808,38 facilitando, inclusive, a solicitação de mercês por parte dos índios, pela proximidade física. Mais do que isso, a presença da Coroa no Rio de Janeiro “significava a possibilidade de reivindicar direitos diretamente ao rei que, por sua vez, os recebia com a devida atenção, cumprindo seu papel de monarca justiceiro, preocupado com o bem-estar dos seus súditos indígenas”, como afirma Maria Regina de Almeida.39 Um dos anexos era a carta patente de governador dos índios da Ibiapaba dada a dom José de Vasconcelos pelo rei dom João V em 1721, por conta da morte de dom Jacob de Souza e Castro e pelos serviços que havia feito à Coroa, “desinfestando dos gentios bárbaros as capitanias do Ceará e do Piauí, e alcançando muitas vitórias, e ultimamente a em que

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De Manuel de Portugal a João de Souza Benício, Pedro Gonçalves de Vasconcelos, Antônio Rodrigues de Lima e João da Costa de Oliveira. Vila Rica, 20 de agosto de 1814. Anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93. 37 MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese (Concurso de Livre-docência), 2001, p. 77. 38 CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Política indigenista no século XIX. História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 133. 39 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios no tempo da corte, p. 96. Um exemplo foi o do líder indígena João Marcelino, da vila de São Gonçalo do Amarante (atual Regeneração, no Piauí), que foi ao Rio de Janeiro em 1811 reclamar ao rei da invasão das terras de sua comunidade. Cf. MOTT, Luiz Roberto de Barros. Piauí colonial: população, economia e sociedade. Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985, p. 121.

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mataram o índio Mandu Ladino, um dos mais cruéis inimigos nossos”.40 Outro era uma portaria do antigo governador Montauri nomeando dom Jacob de Souza e Castro – descendente de outro, do mesmo nome, citado na carta patente de 1721 – como sargento-mor dos índios de Viçosa em 1784.41 Tais anexos atestavam a ancestralidade nobre dos requerentes e o histórico de fidelidade de seu povo à monarquia lusitana, em mais uma demonstração da relevância da palavra escrita na cultura histórica e política dos índios, que guardaram esses documentos por décadas.42 Para Xavier, a glória indígena de outrora “fazia parte do presente dos índios de Vila Viçosa em 1814”. Ao ocupar um “lugar na memória de seus descendentes”, a lembrança dos antigos chefes era a arma “que lhes permitia exigir bons tratamentos da parte dos brancos administradores da vila”.43 A resposta da Coroa foi expedida ao final do mês de outubro. O príncipe regente ordenou ao governador que “inform[asse] sobre as pretensões dos suplicantes, dando, entretanto, que o mesmo Senhor não as resolve, a providência que vossa mercê julgar conveniente a respeito dos diretores de quem se queixam”.44 A resposta de dom João VI, para Xavier, “talvez tenha gerado nos índios um pressentimento de que haveriam de encarar dias ainda mais difíceis, pois continuariam sendo administrados por diretores”. Segundo o autor, o príncipe havia fechado "os olhos para os problemas por eles apresentados”.45 Mas, ao contrário do que acredita Xavier, dom João não havia simplesmente ignorado por completo as súplicas dos nativos da Ibiapaba. É preciso levar em consideração que, mesmo sem as resolver, exigia informações do governador acerca da questão e incumbia-o da responsabilidade sobre o problema com os diretores. Além do tradicional procedimento da administração colonial portuguesa de informações, a decisão é um indicativo do

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Carta patente do rei D. João V nomeando Dom José de Vasconcelos como governador dos índios da Ibiapaba. Lisboa, 28 de janeiro de 1721. Anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93. 41 Portaria de Antônio Batista de Azevedo Coutinho de Montauri nomeando Jacob de Souza e Castro como sargento-mor dos índios de Viçosa. Fortaleza, 20 de fevereiro de 1784. Anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93. 42 Outros anexos foram: um “passaporte a folhas corridas” que fora dado a “João de Souza Benício, e outros índios de Vila Viçosa”, autorizando sua ida ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1813; “uma atestação gratuita passada pelo capitão-mor Ignácio de Souza e Castro a favor de João de Souza Benício”, em maio de 1812; outra, do padre Manuel Martins de Sá, de Vila Viçosa, em março de 1813; e a nomeação de Benício, passada pelo diretor de Baepina João Sampaio, como mestre de primeiras letras em abril de 1812. O 8º anexo não consta no registro, e os dois últimos são “duas listas de meninos da escola de Baepina”. Cf. Anexos ao ofício do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93. Pelas datas dos documentos, é possível conjecturar que o início da mobilização dos indígenas para pôr em ação sua jornada começara, pelo menos, dois anos antes da produção e entrega do requerimento. 43 XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 83 44 Do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, Livro 93. AN, AA, IJJ9 56, p. 111. 45 XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 109.

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funcionamento da política indigenista joanina, que delegava a cada capitania a condução dos rumos da administração da população indígena. Essa história estava longe de ter uma conclusão e, como vimos, muitos outros documentos foram produzidos nos anos seguintes, frutos da busca dos governos do Ceará e do Reino Unido do Brasil e Portugal em resolver a situação dos índios. Como consta no requerimento dos índios em seu 1º anexo, foram autorizados a fazer sua travessia em 20 de agosto de 1814, e conseguiram chegar a seu destino no início do mês seguinte. A demora de uma resolução para seus problemas, contudo, mesmo após as informações passadas pelo governador, os deixava apreensivos, e voltaram a se comunicar com a Coroa a fim de ter suas súplicas atendidas. Em documento sem data e nem remetente, pertencente ao acervo da Biblioteca Nacional, registra-se que “João de Souza Benício e mais índios de Vila Viçosa Real, e os da povoação de São Pedro de Baepina [...], tiveram a honra de entregar na real mão de Vossa Majestade os seus requerimentos em 11 de setembro de 1814”. Souberam que havia “vários tempos” que o rei passara um informe ao governador do Ceará, Manuel Ignácio de Sampaio, mas até então “não tiveram deferimento algum”. O texto conta que os suplicantes puseram na presença do rei as comprovações dos “grandes vexames e violências que estavam sofrendo dos seus diretores, oprimindo-os de todas as maneiras”. Obrigavam-lhes “à força de tirar seus filhos, para servir” em diferentes lugares, e tomavamlhes “suas terras por sesmarias, quando estas lhes foram dadas pelos senhores reis antecessores de Vossa Majestade para habitação dos pobres suplicantes, como tudo melhor se via provado nos ditos documentos”. Pediam, enfim, à “Real Clemência de Vossa Majestade para lhes deferir como for do seu real agrado”.46 Anos se passaram e nada foi decidido, e os índios, sem saber, estavam em meio a um jogo de atribuições onde a Coroa e o governo do Ceará transferiam de uma para outra instância a responsabilidade na resolução do problema. Manuel Ignácio de Sampaio chegou a solicitar em agosto de 1816 uma cópia do Regimento das Missões ao governador do Maranhão “para responder a uma provisão da Mesa do Desembargo do Paço” acerca do requerimento dos índios de anulação do Diretório.47 Três anos depois, dom João VI finalmente agiu concretamente em resposta ao requerimento dos índios de 1814; todavia, apenas em parte. Levando em consideração "a fidelidade e amor à minha real pessoa com que os índios [...] marcharam contra os revoltosos"

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Sem remetente, local ou data. BN, C-199, 14. De Manuel Ignácio de Sampaio a Paulo José da Silva Gama. Fortaleza, 31 de agosto de 1816. APEC, GC, livro 23, p. 111V. 47

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– mas principalmente, a partir declarações de Manuel Ignácio de Sampaio – por meio do decreto de 25 de fevereiro de 1819, o rei declarou-os isentos do subsídio militar, do pagamento de selo nas patentes e das "quotas parte de 6%, ou outras semelhantes, aos seus diretores".48 Mas o Diretório, como vimos, permaneceu em vigor. Ao dar atenção à estima dos índios em relação às patentes militares em suas ordenanças, a Coroa buscava incentivar ainda mais a fidelidade dessa população em relação à monarquia. Segundo Isabelle da Silva, os 6%, por exemplo, eram “alvo de grande rejeição por parte da população indígena no Ceará” desde a instalação do Diretório na capitania, em meados do século XVIII.49 A estratégia de dom João VI, portanto, era mostrar-se um soberano atencioso para com seus súditos, sem passar, contudo, por cima dos interesses dos proprietários de terra e nem do comércio. Além disso, suas decisões comprovam que o fortalecimento econômico encetado nesse período não poderia funcionar a partir de ordenamentos gerais e que não atentassem às particularidades sociais e produtivas de cada região. A coleta de informações minuciosas com o governador revela que as características próprias do Ceará, bem como de seus habitantes, foram determinantes na ação política do rei, inclusive naquelas direcionadas às comunidades indígenas. As sugestões de Sampaio e a atuação política dos índios – ainda que suas súplicas não tenham sido atendidas – também servem para refletir acerca das práticas governamentais da Coroa portuguesa e de sua operacionalização pelos indígenas no início dos oitocentos. Em primeiro lugar, os juízes ordinários não tiveram limitações no alcance de sua autoridade – talvez por falta de tempo, já que a única grande inovação jurídica anterior à independência do Brasil foi a criação da Relação de Pernambuco em fevereiro de 1821, de quem passava a fazer parte o Ceará.50 Mas é fato que, além de ter sua jurisdição estendida após 1822, a atuação dos juízes locais era comumente associada aos interesses dos potentados rurais, principais interessados nas terras e no usufruto da mão-de-obra dos índios. Apesar da isenção dos impostos, todos os outros pontos presentes nos requerimentos de João de Souza Benício e de seus companheiros foram ignorados pela monarquia, seja por influência do governador ou 48

Decreto de 25 de fevereiro de 1819. Concede aos índios das diversas vilas do Ceará Grande, Pernambuco e Paraíba diversas graças e mercês pelo serviço prestado contra os revoltosos da vila do Recife. COLEÇÃO das leis do Brasil de 1819. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889. De igual conteúdo In: BN, C-199, 14. COSTA, Hipólito José da. Correio Brasiliense ou Armazém Literário. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado. Brasília: Correio Brasiliense, 2002, v. XXIII, p. 353. Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina: EDUFPI, 2015, p. 347-349. 49 SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 154. 50 Alvará de 6 de fevereiro de 1821. Disponível em: . Acesso em 30 de junho de 2015.

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porque afrontavam os poderosos proprietários no sertão, dependentes dos trabalhadores indígenas. Em segundo lugar, enquanto foram vassalos do rei lusitano, os índios buscaram o amparo régio, por meio da observância dos ritos, procedimentos e elementos da burocracia portuguesa. Chama atenção a impressionante saga de mais de 20 dias e dois mil quilômetros entre Vila Viçosa e o Rio de Janeiro. Mas em todo esse "percurso" burocrático – entre 1812, data da primeira atestação, e 1819, quando foi promulgada a isenção dos impostos – também merecem destaque todas as ações empreendidas, os argumentos históricos, jurídicos e comerciais utilizados, a habilidade do manuseio das palavras – sendo o próprio professor Benício uma referência para a comunidade – e o detalhado conhecimento da lei que visavam extinguir. As maneiras pelas quais os indígenas se percebiam como membros do império luso – sendo importantes para sua grandeza e dignos da complacência monárquica, ainda que nem sempre ou inteiramente atendidos – e como se relacionavam com a legislação do Antigo Regime têm profunda conexão com seus posicionamentos no contexto de separação política de Brasil.

3.2. "NÃO DEIXAM DE SUSPIRAR PELA SUA LIBERDADE"

Diferentemente da maioria dos estudos, concentrados na visão e atuação das elites, são ainda recentes os que se debruçam sobre a participação dos grupos marginalizados na construção do Estado brasileiro, como negros livres, escravos, mestiços, brancos pobres e índios, bem como nos seus lugares na nova nação. Para Natália Peres, desde o século XIX as grandes narrativas nacionais das antigas colônias europeias ressaltavam, de forma romântica, o papel dos heróis na construção das nações, geralmente associados às elites, tendência que se transformou com a atuação dos historiadores marxistas e, posteriormente, graças aos chamados “subaltern studies”, que deram relevo aos grupos subalternos nestes eventos. Todavia, não se trata de, apenas, “lembrar” dos dominados, mas reescrever estas histórias a partir de uma via de mão dupla onde, além dos dominadores, os setores subordinados atuavam movidos por interesses próprios.51 No caso da participação das populações indígenas, os estudos que os incluem "apenas começam a receber os primeiros tratamentos".52 51

PERES, Natalia Sobrevilla. Introduction: Identity and subalterns actors in the wars of independence. In: Estudios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe. Tel Aviv: Universidade de Tel Aviv, vol. 22, nº 01, 2011, p. 09-10. 52 PIMENTA, João Paulo Garrido. A independência do Brasil e o liberalismo português: um balanço da produção acadêmica. Revista de História Ibero-americana, v. 01, n. 01, 2008, p. 84-85.

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Índios, negros, mestiços e pobres não necessariamente compartilhavam os objetivos de seus possíveis aliados apenas enquanto peças de manobra do “recrutamento de gente mais pobre”53, como se seguissem cegamente as lideranças que os incitavam. Histórias de tumultos, revoltas e manifestações organizadas por índios ressaltam o poder que tinham de se envolver com outros grupos étnicos, de interpretar os eventos que explodiam nos centros de governo do Ceará e do Brasil e de lutar a partir de suas prioridades. O que estava em jogo não era somente a união ou não da antiga colônia ao império lusitano: as transformações em curso eram decisivas na redefinição da relação dos grupos sociais entre si. Seguindo as provocações de Bert Barickman, é preciso considerar a relevância da participação dos índios na formação do Estado nacional brasileiro.54 Protagonizaram movimentos em que se posicionaram a respeito das leis e das novas conjunturas políticas, mesmo em 1821, durante a reunião das Cortes de Lisboa, quando "tudo parecia despedaçarse", como afirma Magda Ricci.55 Assim como os escravos de São Paulo estudados pela autora, que forjavam novos significados para a liberdade durante os debates da constituição portuguesa,56 também os indígenas não ficaram passivos diante de mudanças tão perceptíveis e imprevisíveis, que poderiam afetar de diversas maneiras suas vidas. A transferência da Corte portuguesa para a América em 1808 foi uma delas, ao "avivar entre os índios a figura do rei, longamente trabalhada no imaginário dessas populações, como um senhor todo-poderoso a quem deviam obediência", como explicam Dantas, Sampaio e Carvalho.57 Por isso que o retorno forçado de dom João VI em 1821 provocou tanta agitação, somente acalmada com a aclamação de dom Pedro I como imperador do Brasil no ano seguinte. Em contrapartida, a “população pobre e desvalida estava sempre presente” nos movimentos que caracterizaram este período, “conduzindo conjunta e efetivamente os fatos”.58 A exclusão dos setores marginais da nova nação não pode ser vista como uma atitude consensual, também por conta das próprias ações e reivindicações desses grupos na tessitura e desenrolar dos eventos. No Ceará, a mobilização de índios em 1817 foi intensa,

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FELIX, Keile Socorro Leite. "Espíritos inflamados": a construção do Estado nacional brasileiro e os projetos políticos no Ceará (1817-1840). Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 74. 54 BARICKMAN, Bert J. "Tame Indians", "wild heathens" and settlers in southern Bahia in the late eighteenth and early nineteenth centuries. The Americas, v. 51, n. 03, 1995, p. 325. 55 RICCI, Magda Maria de Oliveira. Nas fronteiras da independência: um estudo sobre os significados da liberdade na região de Itu (1779-1822). Dissertação (mestrado) - UNICAMP, 1993, p. 240. 56 Ibid., p. 223-226. 57 DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos indígenas no nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP: 1992, p. 450. 58 RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo de liberdade e a participação de homens livres pobres e “de cor” na independência do Brasil. In: Caderno Cedes. Campinas: UNICAMP, v. 22, nº 58, 2002, p. 29-30.

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caracterizando não apenas seu papel de relevância para o Estado naquele contexto, mas também suas capacidades de leitura e atuação, mesmo depois do fim dos conflitos.59 Durante a década de 20 do século XIX, a população indígena na província também se fez presente em diversos eventos marcados pela ebulição política. Aqui, desde o início, é preciso enfrentar o desafio já explicitado por Carlo Ginzburg, em sua reflexão sobre os “intermediários” no processo de análise histórica: aqueles que produziam os documentos.60 No caso proposto, a atuação dos índios inseridos na formação do Estado brasileiro era muitas vezes caracterizada pelos administradores como “tumultos”. Nesse clima de instabilidades, era assustador para as elites políticas das diversas regiões do Brasil o fato de novas ideias estarem sendo apropriadas pelas camadas subalternas, como observa André Roberto Machado em relação aos indígenas.61 Indo além dos atos de nomear dos administradores, nosso objetivo é dar destaque aos possíveis significados daquela conjuntura para os índios nela envolvidos. Em menos de 30 anos após a revogação do Diretório – mesmo com a continuação de seu uso no Ceará – os indígenas se encontravam na iminência de serem enquadrados por uma legislação. Como consequência, os ânimos se encontravam agitados, provocando manifestações nascidas da incerteza do que estava por vir. Como vimos anteriormente, os índios de Messejana, cientes das mudanças políticas ocorridas no império português, propuseram a abolição do Diretório e a instalação de um sistema de autogoverno na vila, talvez em busca de uma sintonia com os novos rumos liberais presentes na reunião das Cortes de Lisboa. Mas, se suas prerrogativas não eram plenamente garantidas com a lei pombalina, as notícias de uma nova Constituição para o império português, que diminuiria o poder do rei e o levaria de volta para a Europa, poderia significar o fim de uma proteção já distanciada e o aumento da força dos colonos sobre eles. No final do ano de 1821, chegaram à Junta Provisória de Governo do Ceará notícias sobre o suposto envolvimento dos índios de Almofala em um levante de negros, diante do qual foi passada ordem ao sargento-mor Francisco de Sales Gomes "observar seu movimentos, [...] e não perder um instante em dar em tudo parte a este governo". 62 Foi também questionado ao comandante de Monte-mor Velho o porquê de ter armado os índios 59

COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 287-304. GINZBURG, Carlo. Our words, and theirs: a reflexion on the historian’s craft, today. In: FELLMAN, Susanna; RAHIKAINEN, Marjatta. Quest of Theory, Method and Evidence. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2012, p. 106-107. 61 MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo regime português na província do Grão-Pará (1821-25). Tese (doutorado) - USP, 2006, p. 98-99. 62 Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Francisco de Sales Gomes. Fortaleza, 1 de dezembro de 1821. AN, AA, IJJ9 576, p. 53. 60

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de seu comando com arcos e flechas em setembro desse ano, durante as eleições de comarca na capital.63 Pelas informações da documentação, não é possível ter plena certeza se tais movimentações se relacionavam diretamente com a reunião das Cortes em Lisboa, mas certamente contribuíram para o aumento da tensão desse período, marcado pelo conturbado contexto de criação da própria Junta Provisória. Desde a promulgação do decreto de 24 de fevereiro, por meio do qual dom João VI aprovava o texto constitucional que se fazia em Portugal,64 e com as notícias de criação de juntas de governo em Pernambuco e Bahia, autoridades militares e políticas do Ceará buscaram proceder de igual maneira na capitania. Suas ações eram motivadas por sua oposição ao então governador Francisco Alberto Rubim, por conta de suas ações no sentido de restringir o acesso indiscriminado à mão-de-obra indígena, "que até então o Diretório lhes facultava, [...] sem haver ordem régia para isso".65 Os comentários dos injuriados vereadores de Fortaleza expressam sua dependência em relação ao trabalho dos índios, bem como a falta de qualquer determinação do rei, até aquele período, que anulasse a lei pombalina em território cearense. O filho do governador, Braz da Costa Rubim, também fez considerações sobre os acontecimentos em sua "Memória sobre a Revolução no Ceará de 1821". O culto católico que, segundo ele, poderia contribuir para arrefecer os ânimos, "estava, se não de todo desprezado, quase indiferente, mormente nas povoações dos índios, gente ainda inculta, e por consequência sem fé, sem consciência, sem temor de Deus".66 O autor ignorou – talvez por não ter sido contemporâneo – as diversas manifestações dos índios em prol da melhoria de suas freguesias,67 bem como sua mobilização diante dos acontecimentos que narrou em seguida. Utilizando linguagem diferenciada ao destacar a prudência e "firme opinião" de seu pai, relatou que na madrugada de 14 de abril, pressionado por manifestantes amotinados em frente à sua residência, Francisco Rubim decidiu, entre outras coisas, jurar a constituição que se fizesse em Portugal, sem formar, contudo, uma junta governativa. Dois dias depois, alguns "malévolos espalharam o boato de que, às instigações do governador, os índios se reuniam 63

Da Junta Provisória de Governo do Ceará ao comandante de Monte-mor Velho. Fortaleza, 15 de novembro de 1821. AN, AA, IJJ9 576, p. 66. 64 Decreto de 24 de fevereiro de 1821. Aprova a Constituição que se está fazendo em Portugal, recebendo-a ao Reino do Brasil e mais domínios. Palácio do Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em 02 de julho de 2015. 65 Dos vereadores da câmara de Fortaleza ao rei dom João VI. Fortaleza, 17 de novembro de 1821. AN, AA, IJJ9 513. 66 RUBIM, Braz da Costa. Memória sobre a revolução do Ceará em 1821. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1866, tomo XXIX, segunda parte, p. 206-207. 67 COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 150-166.

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com hostil intento de encaminhar-se depois à Fortaleza, e prender o batalhão de linha que tinha tomado a iniciativa na revolução".68 Os membros da câmara de Fortaleza, em vereação enviada ao rei de novembro do mesmo ano, também contaram sobre a "notícia de que os índios se ajuntavam para prender o batalhão", segundo eles, na "tarde do dia 15". Sem chamar os autores do boato de "malévolos", disseram ainda que o governador lançou mão da ocasião para promover uma "intriga para dividir a tropa do povo", provocando uma "tão relaxada insubordinação que todos temiam a sua desgraça".69 Fica claro o esforço de ambas as partes, seja de Braz Rubim como dos vereadores, em se utilizar da difusão do rumor em seus relatos para promover ou detratar quem lhes interessava. O comum nas duas versões era o receio que havia, tanto no governo quanto em outros setores da população, de uma possível reação dos índios. Mesmo que fossem geralmente descritos como apáticos, alheios ao mundo ou "sem consciência", era conhecida a fidelidade das comunidades indígenas à Coroa e sua determinação em defendê-la, como ficara claro, anos antes, na Revolução Pernambucana. Por isso, mesmo não sendo possível ter certeza se os índios realmente planejavam confrontar os militares que pressionaram o governador, não é possível afirmar categoricamente que o “povo” não compreendia se deveria apoiar ou não o movimento vintista, como faz Keile Felix.70 A respeito dos indígenas, era previsível que se posicionassem de maneira firme e perigosa diante da nova Constituição e de eventos políticos que ameaçavam a soberania de seu rei e sua própria segurança. Apesar dos poucos estudos a respeito, não faltaram exemplos no Brasil da atuação política dos índios no contexto da independência brasileira. Para além das discussões nas Cortes de Lisboa sobre a questão indígena, Julio Sánchez Gómez chama atenção para casos de índios que, agindo coletivamente, se dirigiram à Assembleia Constituinte portuguesa demandando direitos violados ou pedindo modificações em seus estatutos legais. O autor cita a representação dos principais das margens do rio Tocantins de dezembro de 1821, pedindo a propagação da religião e a restituição de sua liberdade, e a queixa de índios de Extremoz, no

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RUBIM, Braz da Costa. Memória sobre a revolução do Ceará em 1821, p. 215. Também sobre o boato da reunião dos índios no Ceará no contexto da reunião das Cortes de Lisboa, vide: VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História da independência do Brasil até ao reconhecimento pela antiga metrópole, compreendendo, separadamente, a dos sucessos ocorridos em algumas províncias até essa data. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, tomo LXXXIX, 1916, p. 448. 69 Dos vereadores da câmara de Fortaleza ao rei dom João VI. Fortaleza, 17 de novembro de 1821. AN, AA, IJJ9 513. 70 FELIX, Keile Socorro Leite. "Espíritos inflamados", p. 80.

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Rio Grande do Norte, contra seu pároco.71 Como se observa, boa parte da atuação dos índios nessa e em outras conjunturas girava em torno de sua liberdade e do combate à exploração de sua mão de obra. André Roberto Machado afirma que, com o avanço do debate sobre a nova constituição a ser promulgada no império português, cada vez mais os índios "foram invocando a condição de homens livres para reivindicar suas garantias constitucionais, especialmente como forma de minar as estruturas que os obrigavam ao trabalho compulsório".72 Todos esses exemplos fazem parte de um contexto maior de “construção da liberdade” analisado por Gladys Ribeiro, quando diferentes setores sociais no Brasil “passaram a vislumbrar as possibilidades de um futuro promissor e a lutar passo a passo pelas suas libertações”.73 Para os índios no Ceará, a luta por sua liberdade no contexto da independência do Brasil conectava referências muito antigas a perspectivas de futuro. Lutavam com temor de um possível retorno da escravidão vivida por seus antepassados e contra as explorações que cotidianamente sofriam. Percebiam este momento como uma oportunidade de lutarem por sua condição de vassalos livres.

O motim dos índios de Maranguape

O maior e mais bem documentado levante de índios no Ceará desse período aconteceu em Maranguape (à época, povoado pertencente ao município de Arronches; hoje emancipado), próximo a Fortaleza. Segundo Geraldo Nobre, o "acontecimento é deveras importante, não pelo vulto, mas pelas circunstâncias e consequências, ocorrido em um período agitado por mudanças institucionais de natureza jurídico política". Mesmo tendo suscitado ações militares violentas e sérias preocupações no governo, a falta de vulto na ótica do autor se devia à condição étnica dos amotinados, cuja rebelião durou mais de um ano. Pelos escassos documentos de que dispunha Nobre, não era possível esclarecer "suficientemente os motivos do levantamento dos íncolas maranguapenses", atribuído à expulsão do vigário Felipe Benício Mariz de Viçosa pelos índios da vila em julho de 1822,74 caso que analisaremos em seguida. Contudo, as primeiras referências às tensões em Maranguape são do ano anterior, 71

GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil. Studia Historica. Historia Contemporánea, n. 27, 2009, p. 250-251. 72 MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 108. 73 RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Tese (doutorado) – Universidade de Campinas, 1997, p. 336. 74 NOBRE, Geraldo. Os índios revoltosos na serra de Maranguape. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: tomo CIX, 1995, p. 315.

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contemporâneas à reunião das Cortes em Lisboa. A ligação ente esses eventos políticos não foi suposta pelo autor. Em 06 de outubro de 1821, chegou à sala do governador Francisco Alberto Rubim, através da câmara da vila de Arronches, a notícia de que na localidade de Maranguape o capitão Antônio José de Vasconcelos teria espalhado que o objetivo da constituição portuguesa, era cativar os índios, “e quanto às mais pessoas concede-lhes liberdade de obrar arbitrariamente sem que se possa conhecer das suas ações”.75 Poucos dias depois, o governador, juntamente com o Conselho, confirmou que a câmara de Arronches estava “mal informada sobre a representação que fez”. Ordenaram que, “a vista da inocência” de Vasconcelos, tornasse a “entrar no comando da povoação de Maranguape, e que, atendendose à ignorância dos camaristas, se lhe advertisse” para serem “mais escrupulosas nas suas representações”.76 Apesar de não ser possível certificar a veracidade da denúncia, percebe-se a ligação da própria suspeita com a questão do uso da força de trabalho indígena por parte dos colonos. A acusação originou-se na câmara de uma vila de índios, cujos membros eram também indígenas, e que, de alguma forma, perceberam o perigo que este tipo de boato poderia causar na população. Mesmo que a escravidão tivesse sido expressamente proibida desde a instituição do Diretório, o medo dela parecia ainda pairar na mente dos indígenas. Para os que sofriam abusos – como, por exemplo, os denunciantes da Ibiapaba – esse medo nunca havia cessado por completo. Ou seja, o grande problema estava na falta de limites para as ações de proprietários que utilizavam seu trabalho, que poderiam ficar ainda mais frouxos com uma nova constituição. As lembranças dos índios de contextos ancestrais em suas comunidades e a forma como agiam a partir delas em diferentes situações compunham sua “cultura histórica”. Maria Regina de Almeida entende-a como “a compreensão e o posicionamento que os grupos têm a respeito de seu próprio passado e o uso que dele fazem, conforme necessidades do presente”. A opressão e os abusos que sofriam não eram impedimentos para suas atuações: antes, era em resposta a eles que desenvolviam “suas próprias formas de agir politicamente e de pensar sobre seu passado para operacionalizá-lo de acordo com seus objetivos do presente”.77

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Do Conselho Consultivo do governo do Ceará à câmara da vila de Arronches. Fortaleza, 06 de outubro de 1821, APEC, GC, livro 32, p. 03V. 76 Do Conselho Consultivo do governo do Ceará à câmara da vila de Arronches. Fortaleza, 15 de outubro de 1821, APEC, GC, livro 32, p. 04V. 77 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. O lugar dos índios na história entre múltiplos usos do passado: reflexões sobre cultura histórica e cultura política. In: SOIHET, Rachel. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de.

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Em 27 de novembro, alguns dias após a deposição do governador Francisco Rubim, a Junta Provisória de Governo do Ceará lançou um edital acerca das tensões entre os moradores de Maranguape, “composta de naturais da vila de Arronches [índios] e de outros naturais ali estabelecidos com seu negócio e lavoura". Segundo os membros do governo, a origem dos distúrbios haviam sido algumas "palavras indiscretas" proferidas por não-índios, provocando reações nos indígenas "por falta de conhecimentos civis e políticos" e pela destruição de suas plantações por animais soltos dos extranaturais, apesar das proibições das leis municipais.

"Mandamos e recomendamos a todos os sobreditos moradores de Maranguape que, como cidadãos que igualmente o são, vivam em paz e união, ficando na certeza de que obrando o contrário, procederemos contra eles com todo o rigor das leis e como perturbadores do sossego público, e, outrossim, mandamos a todos os que ali tiverem bois de carro e de açougue, que as conserve com pastos longe das lavouras, e aos que tiverem animais cavalares as façam pear, e aos que tiverem porcos e cabras as lancem para fora, ou conservem presos, aliás serão castigados na forma acima dita, e para que o referido chegue a notícia de todos, se mandou publicar o presente".78

No mesmo dia, ordens do governo foram enviadas para que se evitassem conflitos entre extranaturais e índios. Aos primeiros, que não perturbassem os indígenas, "assim de palavras como de ações, [...] no exercício de suas terras que por direito lhe pertencem".79 Para os índios, recomendou-se que reportassem qualquer queixa ao governo, "o qual estará sempre pronto para promover tudo quanto for a bem dos sobreditos índios".80 O governo já percebia que a conjuntura das Cortes de Lisboa provocava interpretações diversas pelos diferentes setores sociais e buscava se precaver de consequentes distúrbios. As "palavras indiscretas" dos não-índios tinham provável ligação com os boatos do mês anterior denunciados pela câmara de Arronches. Somadas à destruição das plantações indígenas, pareciam fazer parte de uma investida dos extranaturais no contexto do retorno de dom João VI para Portugal. Os índios, por sua vez, agiram vigorosamente diante da possível ameaça: embora o governo lhes atribuísse falta de conhecimento, percebiam o avanço sobre suas lavouras, o histórico de abusos que sofriam, a impunidade contra seus algozes e a ausência de seu protetor, transladado à força para o outro lado do oceano.

SÁ, Cecília. GONTIJO, Rebeca. Mitos, projeto e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 210-211. 78 Edital. Fortaleza, 27 de novembro de 1821. AN, AA, IJJ9 576, p. 69V. 79 Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Antônio José de Vasconcelos. Fortaleza, 27 de novembro de 1821. AN, AA, IJJ9 576, p. 70. 80 Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Francisco José Pinheiro. Fortaleza, 27 de novembro de 1821. AN, AA, IJJ9 576, p. 71V.

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A alerta sobre os ânimos no povoado manteve-se no mês seguinte, com as investigações a respeito da família do índio Ângelo Manuel e a situação dos bananais dos indígenas,81 provavelmente afetados pelo gado dos vizinhos não-índios. Na véspera do natal, tendo recebido um ofício de Pinheiro do dia 21, o governo ordenou-lhe as "providências que são do estilo, [...] sem, contudo, haver excesso de rondas que haja de motivar novidades, assim aos moradores como aos índios".82 O resultado parece não ter sido satisfatório, atribuído a desavenças entre autoridades militares da região, e deram espaço à eclosão de distúrbios no natal de 1821 em Maranguape, cujas motivações e outros detalhes não são claros na documentação. 83 Em 7 de janeiro de 1822 o juiz de fora Jacinto Fernandes de Araújo foi acionado para proceder "contra os culpados, que desde já fica[ram] presos", dentre eles o índio Lino José Batista por dar uma facada em uma mulher.84 Já nessa situação de tumulto, os índios, havia pouco vítimas de boatos e de destruição de suas lavouras, passaram a ser elementos perigosos. As causas dos distúrbios nem sequer mereceram ser registradas, e a reação imediata do governo foi o encarceramento dos envolvidos. O governo se desfez da promessa de “promover tudo quanto for a bem dos índios” porque, mesmo em meio a uma crise do Antigo Regime – quando o governo do Ceará, por meio do edital acima mencionado, chamava os habitantes da província de “cidadãos” –, a sociedade ainda era hierarquizada. Nela, além da economia das penas que variava de acordo com os privilégios sociais do réu, como afirma Silvia Lara,85 a própria definição de crime e culpa se dava de acordo com as origens étnicas e sociais dos autores do ato. Nesse clima de repressão, ainda no dia 7 de janeiro, a Junta informou ao diretor de Monte-mor Novo, Manuel Moreira Barros, que recebera o comandante dos índios da vila, Manoel Soares do Nascimento, dizendo que havia se ausentado "com receio que o prendessem" e que ignorava as desordens do dia 25. Diante disso, o governo lhe ordenou que "voltasse ao seu distrito, e que fosse viver em paz", e ao diretor, que o vigiasse "sobre seu viver, para ser castigado competentemente no caso de transgredir as ordens desta Junta e faltar 81

Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Francisco José Pinheiro. Fortaleza, 12 de dezembro de 1821. AN, AA, IJJ9 576, p. 82V. 82 Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Francisco José Pinheiro. Fortaleza, 23 de dezembro de 1821. AN, AA, IJJ9 576, p. 102V. 83 Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Afonso José de Albuquerque. Fortaleza, 26 de dezembro de 1821. AN, AA, IJJ9 576, p. 105. Da Junta Provisória de Governo do Ceará a José Agostinho Pinheiro. Fortaleza, 26 de dezembro de 1821. AN, AA, IJJ9 576, p. 105V. 84 Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Jacinto Fernandes de Albuquerque. Fortaleza, 7 de janeiro de 1822. AN, AA, IJJ9 576, p. 121V. 85 LARA, Silvia Hunold. Introdução. Ordenações Filipinas, livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 40.

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ao que prometeu".86 O medo de Nascimento, que não foi à toa, é indício de que a situação dos índios passou a ser bastante desvantajosa. O governo em questão foi o mesmo que obrigou ao antigo governador Rubim a jurar a constituição portuguesa, e agia violentamente contra qualquer manifestação de oposição às Cortes de Lisboa. Por conta dos acontecimentos em Maranguape, e pelos índios já terem se mostrados insatisfeitos com as medidas, todos eles eram dignos de suspeita. Meses se passaram desde os conflitos de dezembro sem qualquer informação sobre convulsões envolvendo o povo de Maranguape. Já em Viçosa, os índios entraram em confronto com o vigário Felipe Mariz, como vimos nos comentários de Geraldo Nobre, mas não o iniciaram necessariamente por conta da constituição portuguesa, já que os primeiros relatos falam exclusivamente de violências praticadas pelo religioso. Ainda assim, os distúrbios preocupavam o governo pelas ligações que poderiam ter com questões políticas e com os acontecimentos ocorridos próximos a Fortaleza. As medidas preventivas não conseguiram, porém, impedir que novas e mais intensas manifestações surgissem naquela região. Pouco menos de um ano depois dos primeiros boatos que assustaram os indígenas, em setembro de 1822 – durante os acontecimentos que levaram à independência do Brasil – temse a notícia de um "tumulto dos índios e extranaturais da serra de Maranguape tendo ido um número de mais de seiscentos às fazendas do diretor geral o sargento-mor José Agostinho, e o juiz de fora pela lei Joaquim Lopes com ânimo de assassiná-los, e sempre roubaram as casas, dando gritos contra os europeus, e a favor da liberdade dos escravos" (grifos meus).

A sessão decidiu que se tomassem as “providências necessárias para a prisão dos revoltosos, e para a segurança desta capital, e mais vilas imediatas, que estiveram em armas para repelir qualquer ataque repentino”. 87 Por se localizar a cerca de 30 km de Fortaleza, tais incidentes eram ameaças bastante perceptíveis para os que comandavam a capitania. O conteúdo de suas manifestações chama atenção tanto pelas reivindicações como pelos seus protagonistas: da maneira como expõe o documento, índios e não índios – desafetos até o ano anterior – pareciam gritar juntos contra os “irmãos” de outro continente, refazendo a fronteira político-identitária que os diferenciava. Se tal união, mesmo que momentânea, de fato

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Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Manuel Moreira Barros. Fortaleza, 7 de janeiro de 1822. AN, AA, IJJ9 576, p. 122V. 87 Do Conselho Consultivo do governo do Ceará à câmara da vila de Arronches. Fortaleza, 23 de setembro de 1822, APEC, GC, livro 32, p. 29. Grifo meu.

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aconteceu, denota o caráter fluido das fronteiras étnicas, que tem o “outro” como motor88 (nesse caso, a oposição aos europeus). Os alvos do "tumulto" eram diretamente ligados aos índios: José Agostinho Pinheiro era o diretor geral, e Joaquim Lopes de Abreu havia sido uma das autoridades protagonistas da ocupação da serra de Maranguape entre os séculos XVIII e XIX e das usurpações de terras indígenas na região. Além disso, os dois eram naturais de Portugal,89 remetendo ao sentido político do antilusitanismo que marcou o início dos oitocentos, como aponta Robert Rowland,90 e aos boatos difundidos em 1821. As "palavras indiscretas" registradas em outros documentos podem ter sido ações de brasileiros não-índios – brancos ou mestiços – contrários aos portugueses e que buscavam insuflar os indígenas. Mas mesmo que a revolta tenha sido inicialmente incitada pelos extranaturais, os índios tinham suas próprias demandas, como resistir à já sentida tomada de suas terras, pedir o retorno de seu rei e temer uma nova escravidão. Daí se explicava claramente os gritos pela libertação dos cativos, que aconteceram mais de 60 anos depois. No início do século XIX, mesmo proibida, escravidão era a forma como os índios definiam o abuso na exploração de sua mão de obra, assim como registraram os da Ibiapaba em seu requerimento de 1814. Contudo, falar em "liberdade dos escravos" poderia provocar interpretações muito amplas, além de revelar diferentes concepções entre as distintas comunidades indígenas. Enquanto que, em janeiro do mesmo ano, os nativos de Messejana solicitavam cativos nos serviços prestados aos moradores, no clamor dos de Maranguape parecia haver um anseio pelo fim de todo um sistema socioeconômico. É possível que todas essas notícias partissem de exageros provenientes da situação conturbada deste contexto, fazendo circular histórias contraditórias. Todavia, a própria ebulição desses temores já revela a tensão que também perpassava pela população indígena, atenta à conjuntura política do período. 88

BARTH, Fredrick. Grupos étnicos e suas fronteiras. Apud. POUTIGNAT, Philippe. STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 188. CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneira da. Cultura com aspas. São Paulo: Cosacnaify, 2009, p. 253. SAHLINS, Marshall. Adeus aos tristes trópicos: a etnografia no contexto da moderna história mundial. In: Cultura na prática. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007, p. 520. 89 José Agostinho Pinheiro veio de Portugal para o Ceará em 1789 com o capitão-mor Luiz da Motta Féo e Torres. Cf. de Manuel Ignácio de Sampaio ao Marquês de Aguiar. Fortaleza, 19 de agosto de 1816. AN, AA, IJJ9 168. Joaquim Lopes de Abreu, português, é apontado como um dos fundadores do povoado de Maranguape. No fim do século XVIII já possuía terras na região. Cf. MATOS, Pedro Gomes de. Capistrano de Abreu: vida e obra de um grande historiador. Fortaleza: Batista Fontenele, 1953, p. 35-39. MATOS, Pedro Gomes de. Maranguape, Ceará (aspectos histórico-geográficos). Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora "Instituto do Ceará", tomo LXXVII, 1963, p. 111. 90 ROWLAND, Robert. Patriotismo, povo e ódio aos portugueses: notas sobre a construção da identidade nacional no Brasil independente. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 384-385.

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Imediatamente após a notícia do tumulto, o governo passou ordens para que os moradores de localidades próximas a Maranguape fossem armados, atuando juntos a uma expedição de combate aos insurgentes, comandada pelo capitão-mor Marcos Antônio Brício.91 Compondo a tropa de combate estavam as ordenanças dos índios da vila de Arronches, que passou a ser base das operações. Para lá também se dirigiu o ouvidor interino, responsável pelas devassas.

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Em menos de 5 dias vários revoltosos já haviam sido

capturados e enviados presos a Fortaleza, e já se autorizava a dispensa de tropas supérfluas, inclusive do próprio comandante Brício.

93

As notícias transmitidas pela documentação

revelam o sucesso da expedição, bem como a importância dada ao evento pelo governo da província e os risco que tais índios amotinados representavam, especialmente para os moradores próximos. Estes últimos, antes vistos como promovedores da discórdia, passaram a ser agentes da repressão contra os revoltosos e protegidos pela Junta Governativa. Destaca-se também a tropa de índios de Arronches, membros da mesma comunidade dos de Maranguape e fiéis às lideranças provinciais, exemplo da heterogeneidade de visões e posicionamentos em um mesmo grupo indígena, composto tanto de oficiais e soldados quanto de agricultores comuns. Alguns ofícios de 30 de setembro sugerem que tenha havido envolvimento de índios de Maranguape com os de outras vilas, além da já citada suspeita em relação ao comandante Manuel do Nascimento, de Monte-mor Novo. Nesse dia, foi aceito o pedido de perdão de índios presos em Soure, mas que deveriam ser a partir de então vigiados pelo capitão-mor.94 O governo também noticiou ao coronel de Granja, Francisco Carvalho Mota, sobre alguns fugitivos que teriam se dirigido à Viçosa (a uma distância de 270 km), ordenando que os prendessem, evitando uma presumível aliança com os que se insurgiam contra o vigário Felipe Mariz.95 Não é possível confirmar se realmente havia intenções por parte dos índios de diferentes lugares em formar ações de resistência coordenada – até porque os de Arronches

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Barão de Jaguary, nascido em 1800 em São Luís do Maranhão, foi sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, deputado pelo Ceará entre 1826 e 1829, comandante superior da guarda nacional e diretor dos índios do Pará. Cf. VASCONCELOS, Rodolfo Smith de; VASCONCELOS, Jaime Smith de. Arquivo nobiliárquico brasileiro. Lausana: Imprimerie la Concorde, 1918, p. 233. 92 De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Marcos Antônio Brício. Fortaleza, 24 de setembro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 119V. 93 De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Marcos Antônio Brício. Fortaleza, 28 de setembro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 122V. De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Marcos Antônio Brício. Fortaleza, 30 de setembro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 123V. 94 De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Francisco da Costa Lira. Fortaleza, 30 de setembro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 124V. 95 De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Francisco Carvalho Mota. Fortaleza, 30 de setembro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 125.

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integravam as tropas expedicionárias – mas é provável que a repressão do governo foi tamanha que muitos devem ter procurado refúgio em outros lugares. As tropas formadas pelo governo controlaram a situação em Maranguape já no início do mês seguinte, a contar pelos vários registros sobre os presos, acusados também de "vários furtos de importância" e da "destruição do sítio da índia Maria". No dia 7 foi produzida uma devassa, com uma relação dos índios capturados, e os que não coubessem na alçada da justiça da província do Ceará deveriam ser "remetidos com a culpa para a Relação de Pernambuco".96 Com o conflito já terminado, a junta de governo provisório agradeceu ao vigário de Arronches por ter negado pagamento "pelos mantimentos que forneceu aos índios reunidos nessa vila e milicianos quando aconteceu o tumulto de Maranguape". Reconhecia o patriotismo do religioso, "que foi mais uma prova de quanto tem a prestar-se ao bem público todas as vezes que se lhe oferece a ocasião de ser útil".97 O reverenciado religioso era Amaro Joaquim de Moraes e Castro, o mesmo que, três anos antes, havia sido denunciado pelos índios de Arronches ao bispado de Olinda por extorsão e chamado de criminoso pela junta administrativa que, em 1820, governava o Ceará antes da chegada de Francisco Alberto Rubim. Curiosamente, um dos membros do governo à época era Joaquim Lopes de Abreu, alvo dos índios no início das manifestações.98 A mudança tão rápida nas qualificações do padre Amaro tinha provável relação com a necessidade em refazer sua imagem perante Abreu, mas principalmente diante dos índios de sua vila, que primeiro o haviam incriminado e que poderiam, na nova situação, colaborar com seu novo prestígio de patriota.

Senhores do Brasil, escória da humanidade

Já os revoltosos de Maranguape não tiveram a mesma sorte. Mesmo com a promessa do ano anterior que tudo seria feito pelo governo para o bem dos índios, não escaparam das

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De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Jacinto Fernandes de Araújo. Fortaleza, 2 de outubro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 127V. De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Vitoriano Alves de Souza. Fortaleza, 4 de outubro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 127. De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Vitoriano Alves de Souza. Fortaleza, 5 de outubro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 129. De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Jacinto Fernandes de Araújo. Fortaleza, 7 de outubro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 133V. De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Jacinto Fernandes de Araújo. Fortaleza, 9 de outubro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 138V. 97 De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Amaro Joaquim de Moraes e Castro. Fortaleza, 11 de outubro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 141V. 98 De Adriano José Leal, Francisco Xavier Torres e Joaquim Lopes de Abreu a Antônio Gomes Coelho. Fortaleza, 12 de fevereiro de 1820. APEC, GC, livro 30, p. 110V. Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 159.

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prisões e da violenta repressão.99 Sua situação mudou apenas em fevereiro de 1823, com a consolidação da independência: presos pela oposição aos portugueses, foram soltos pela mesma razão. Na sessão do dia 13, a então junta provisória que comandava o Ceará decidiu soltar os presos "pelos movimentos da povoação de Maranguape, e dar-se imediatamente parte a Sua Majestade Real do procedimento do governo, visto que o seu único crime era defender a independência”.100 Na mesma ocasião, o novo governo cearense, contrário às Cortes de Lisboa e adepto da independência liderada por dom Pedro I, produziu um relato ao monarca contando todos os acontecimentos que levaram à prisão dos índios, e constando, inclusive, um abaixo-assinado de 21 indígenas envolvidos. As lideranças da província reconheciam a “injustiça com que foram presos, e até cruelmente açoitados os índios da serra de Maranguape, tudo por cabala de europeus e brasileiros degenerados”.101 Como se afirma no texto, os índios solicitaram sua soltura e o perdão real para os membros do governo que haviam destituído seus antigos algozes. Liderados por José Pereira Filgueiras, aproveitaram a comunicação para denunciar os abusos de seus antecessores. Segundo eles, investigaram o caso assim que se compôs a nova administração da província, e concluíram que se tratava do “antigo rancor da prepotência de alguns inimigos da causa do Brasil contra os miseráveis queixosos”. Comovidos pelos açoites que os índios sofreram a mando do capitão-mor Brício, “sensibilizados com a horribilidade de semelhante tirania e despotismo”, o governo pôs “em liberdade os infelizes capturados”. Há na argumentação uma clara oposição entre “tirania” e “liberdade”, representadas pela repressão do antigo governo – simpatizante do vintismo – contra a soltura promovida pelos adeptos da independência. O presidente Filgueiras e seus companheiros, imbuídos de antilusitanismo, percebiam na ocasião uma oportunidade de consolidar sua posição na província e imagem perante o rei, além de firmar sua aliança com a população indígena. 102 O texto, como destaca Maico Xavier, também é expressão dos conflitos entre diferentes grupos políticos no Ceará.103

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Geraldo Nobre se refere a um documento de 23 setembro de 1822 dando conta de que os índios José da Silva e Antônio da Silva foram açoitados no tronco pelo agente de política de Aquiraz, juntamente com alguns escravos, mas que não constava seus crimes ou se ao menos eram de Maranguape. Cf. NOBRE, Geraldo. Os índios revoltosos na serra de Maranguape, p. 317-318. 100 Sessão da Junta Provisória de Governo do Ceará. Fortaleza, 13 de fevereiro de 1823. APEC, GC, livro 32, p. 63V. 101 De Jose Pereira Filgueiras, Joaquim Felício Pinto de Almeida e Castro e Francisco Fernandes Vieira a José Bonifácio de Andrada e Silva. Fortaleza, 25 de fevereiro de 1823. AN, AI, IJ¹ 719. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento. Agradeço a Maico Oliveira Xavier pela cessão da cópia digitalizada do documento. 102 Indispensáveis como força de trabalho e militar, os índios se mostraram importantes aliados do governo liderado por José Pereira Filgueiras e Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, atuando na deposição da antiga

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Em seguida, passaram a relatar o acontecido a partir da versão repassada pelos próprios índios.104 Inicialmente abordaram a importância do “direito de propriedade individual”, e tudo o que a ele se opusesse era considerado “transtorno da sociedade; é perturbar a ordem; elevar [?] uma subversão universal”. Por meio do Diretório, “dom José I, de gloriosa memória, deu liberdade aos índios cativos, [...] e lhes mandou assinar terras jamais alienáveis para sua moradia”. Desde a libertação de Pernambuco dos holandeses, e da expulsão dos franceses do Rio de Janeiro e do Maranhão, os índios já haviam mostrado “aquela corajosa fidelidade que distingue o brasileiro”, com destaque para Mel Redondo, antiga liderança. Apesar dos ferros e humilhações, “jamais deixaram de ser fieis ao seu soberano, [...] não tendo nas mãos outras armas mais que o arco e que a fecha”. Muitos elementos argumentativos ressaltam a convivência de elementos referentes ao Antigo Regime e outros referentes ao novo momento vivido no Brasil. A ênfase à liberdade e ao direito a propriedade dos índios, identificados como “brasileiros”, denota o caráter liberal do posicionamento dos autores do texto. Ao mesmo tempo, tudo isso tinha como base medidas que remetiam ao período pombalino e a contextos bem mais antigos, presentes na memória indígena. Elementos da cultura política dos índios, o Diretório ainda em vigor no Ceará e a histórica relação de vassalagem entre esta população e a Coroa portuguesa foram utilizados para justificar os direitos individuais indígenas no Brasil recém-independente. A própria forma “meritória” de se relatar a fidelidade dos índios, mais do que simples mistura entre “arcaico” e “moderno”, é um traço da tradição absolutista operacionalizada em um novo contexto liberal, como vimos no capítulo anterior. Maico Xavier também observa que, se a questão da propriedade foi lembrada, é porque as mesmas estavam sendo invadidas,105 como se reclamara desde o início dos conflitos em 1821. De acordo com o relato, o “rico europeu” Joaquim Lopes de Abreu, pelo “direito da força”, havia “usurpado as diminutíssimas terras dos índios, os senhores do Brasil, território imenso”, e José Agostinho Pinheiro, também nascido em Portugal, havia se “assenhorado [sic] da linha da serra de Maranguape, como já desc[ia] aquém dela”. Apesar de serem donos junta vintista, opondo-se à elite política de Fortaleza, e em outros conflitos posteriores, como veremos nos capítulos 7 e 8. 103 XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social: os índios do Ceará no período do império do Brasil – trabalho, terras e identidades indígenas em questão. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, 2015, p. 88. 104 Relato redigido por José Rodrigues de Souza com abaixo-assinado dos índios presos pelo motim de Maranguape. Fortaleza, 13 de fevereiro de 1823. Anexo ao ofício de Jose Pereira Filgueiras, Joaquim Felício Pinto de Almeida e Castro e Francisco Fernandes Vieira a José Bonifácio de Andrada e Silva. Fortaleza, 25 de fevereiro de 1823. AN, AI, IJ¹ 719. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento. 105 Ibid., p. 90.

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dessas terras havia 114 anos, “os índios eram reputados como a escória da humanidade. Seus clamores e seus gemidos apenas se ouviam no recinto de suas humildes choupanas. Prevalecia a violência e a força”. As razões apresentadas da indignação dos índios eram muito antigas e mostram que os alvos não foram escolhidos aleatoriamente. Sendo portugueses e usurpadores de terras, tal associação denota o início do antilusitanismo indígena tão marcante nos conflitos liberais da década de 1820, como veremos nos capítulos 7 e 8. Mas não é correto afirmar, como faz Xavier, que o “período pré-independência” é descrito como “tempo de não liberdade aos índios”.106 Na verdade, os índios eram livres desde o Diretório, como o próprio relato asseverou, mesmo que tal liberdade fosse sempre desrespeitada. O que Filgueiras buscava argumentar era que os autores de tais tiranias eram os portugueses, vistos neste contexto como inimigos da liberdade. Só após estas explicações é que o acontecimento é descrito. De acordo com o depoimento dos índios, em setembro de 1822 souberam de proclamações de dom Pedro I que tratavam “aos europeus por inimigos da nação brasileira”, que “ao longe se forjavam grilhões para nos prender” e que “dentro em três meses seriam escravos”. A partir daí, iniciaram sua ação: Os índios alvoroçados, lembrados dos seus ferros antigos, pegarão dos seus arcos e das suas flechas na noite do dia 22 de setembro, convida[ram] os habitantes a vingar a sua liberdade debaixo dos auspícios d’El Rei [?] Defensor do Brasil. [Fizeram] retumbar nos ares seus Nomes Augustos, a sua independência política. Corre[ram] à casa de José Agostinho Pinheiro para saber se assinava a causa, assim como já tinham feito aos demais europeus da povoação. Não derrama[ram] uma só gota de sangue, e nem maltrata[ram] a pessoa alguma; e se arromba[ram] as portas de seu diretor foi somente para saber-se do seu partido. Concorreu o povo em massa [?] para a casa de Joaquim Lopes de Abreu, não para ofendê-lo, sim para expulsá-lo para fora das suas usurpações. Foi então que apareceu um indigno e leve furto.

Pela versão dos índios, o acontecimento tem aspecto bem diferente do “motim” reprimido pelo governo da época. Por meio dos recursos linguísticos dos autores do relato, a ação indígena é alçada a um novo patamar: como observa Xavier, o que antes era tido por crime de amotinação passou a ser qualificado como “luta pela liberdade”.107 Mais uma vez a oposição entre a independência do Brasil e a escravidão de Portugal é evidenciada, associadas, respectivamente, à ação dos índios e à presença usurpadora de Abreu. A aliança entre o governo de Filgueiras e os índios também se expressa por compartilhar de uma versão

106 107

Ibid., p. 92. Ibid., p. 93.

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que difere em diversos aspectos do que reproduzira a antiga junta provisória do Ceará. Na ótica indígena, o alvoroço e até mesmo a invasão à casa de Abreu ocorreram por uma causa justa e sem a barbárie com que havia sido encarada. O “leve furto” – antes tido como de “importância” – não manchara suas atitudes feitas em nome do rei, da independência e de sua liberdade. Diante dessa importante aliança, o novo governo agregava forças contra a elite das regiões próximas a Fortaleza e os adeptos do constitucionalismo português. Por isso, seu relato é um raro registro de uma autoridade não-indígena que classifica uma ação dos índios como “política”. Em contrapartida, Filgueiras contou que o antigo governo, “adorador das Cortes de Lisboa, [...] à independência chamou revolta e roubo”. Na repressão, Marcos Antônio Brício, à frente de sua tropa, havia garantido a “segurança individual e de propriedade” dos índios, o que fez com que devolvessem as roupas e legumes que roubaram, “que se julgaram pequenos diante” do que já se usurpara deles. Entretanto, o “oficial infame violou a sua palavra; mandou passar roda de pau aos homens” e palmatória nas mulheres, “despotismo tão horroroso”. Novamente o antigo governo é associado ao constitucionalismo vintista e, consequentemente, a atos de despotismo. A novidade é que Brício, na verdade, enganara os índios que, segundo eles, nada haviam feito além de buscar garantir sua liberdade e obedecer às proclamações do imperador. Na devassa que se seguiu após as prisões, o juiz e os escrivães responsáveis pelo julgamento eram todos portugueses, que acreditavam que “os brasileiros deveriam ser escravos”, como conta o relato. “Em questões de independência do Brasil, como foi a dos suplentes, não se deveriam admitir testemunhas inimigas [...]. Tudo, porém, se fez. Os europeus juraram, os corcundas juraram, os inimigos juraram”. Como resultado, os índios teriam sido sentenciados “somente por serem brasileiros, amantes da causa da nossa independência e adesão à Majestade Augusta do Imortal Imperador do Brasil, nosso Protetor; e ainda agora gem[iam] os suplicantes nas masmorras como mártires da pátria”. Diante de tal “injustiça” da “prepotência do despotismo”, os índios pediram para serem perdoados, já que “só a independência do Brasil” foi o “objeto de perdição destes infelizes brasileiros acabrunhados pelos europeus, e por americanos degenerados, escravos vis desses senhores absolutos”. O perdão de dom Pedro I foi finalmente obtido no dia 1º de julho de 1823.108 Mesmo que pareça precipitado crer que os índios realmente aderiram à independência do Brasil, sua luta por respeito às garantias de terra e liberdade tinham conexão direta com os

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Sessão da Junta do Governo Provisório da Província. Fortaleza, 18 de agosto de 1823. APEC, GP, AJ, p. 37V.

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eventos políticos que culminaram com a separação política brasileira e com os conflitos internos na província. Ao contrário do que acredita Xavier, a ação indígena em defesa de prerrogativas e contra a exploração não se opunha à “causa da independência”, e lutar por ela não era o mesmo que agir pelos interesses dos governantes.109 Seus antigos inimigos, a elite das regiões no entorno de Fortaleza, derrubaram o último governador da capitania e simpatizaram com o constitucionalismo de Lisboa, que defendia a descentralização do poder no império. Além da ameaça da ambição dos proprietários, os índios também sabiam que o movimento vintista submetera dom João VI. O antilusitanismo indígena, portanto, nasceu de sua luta pela liberdade, pela posse de seus territórios e contra a violência sofrida neste contexto. A tradicional defesa da Coroa, que garantira estes direitos e que passava a ser brasileira, era expressão da expectativa de reciprocidade e de justiça. O medo da escravidão, que poderia ressurgir com a constituição de Portugal, não estava baseado em meros boatos, mas nas práticas contra os índios de Maranguape. Em contrapartida, o novo governo os libertou e os enalteceu enquanto “brasileiros mártires da pátria”, em oposição aos inimigos nascidos no Brasil, chamados de “americanos degenerados”. Por esse apoio, os índios dessa serra – e, consequentemente, de outras vilas e povoações do Ceará – passaram a ver a independência do Brasil como um movimento em prol de sua liberdade. A ação liderada por Pereira Filguerias não foi apenas um ato de altruísmo, mas principalmente uma forma de se aproximar dos bons olhos e ouvidos de dom Pedro I. Segundo Lúcia Neves, as tensões sociais “contribuíram para situar d. Pedro numa posição privilegiada, como fiador de uma ordem ameaçada”,110 que passou a ser o símbolo dos “brasileiros” independentes. Além disso, soltura dos indígenas, o subsequente comunicado a dom Pedro I e o perdão régio mostram que as elites políticas no Ceará não poderiam fechar os olhos diante da atuação das camadas subalternas. Segundo Filgueira, em outro relato dirigido a José Bonifácio em fevereiro de 1823, os antigos membros da extinta junta de governo provisório José Raimundo Passos de Porbém Barbosa e Mariano Gomes da Silva buscaram revoltar os índios de Monte-mor Velho, Messejana, Arronches e Soure em prol das Cortes de Lisboa contra a independência do Brasil. Não teriam tido sucesso pois, segundo Filgueiras, apesar de possuírem um "gênio servil e acabrunhado", os índios não deixavam de "suspirar pela sua liberdade". Os nativos de 109

XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social, p. 96-97. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Estado e política na independência. In: GRINBERG, Keila. SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil Imperial, volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 128. 110

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Maranguape, que costumavam sofrer nas mãos dos diretores, “portugueses imperiosos”, haviam sido acossados tão barbaramente pelo governo que fora impossível a Barbosa e Silva conseguirem sua adesão.

"Armados de arcos e de flechas este povo miserável posto em armas torna-se tremendo. Com proclamações, e um pouco de docilidade, assenhoreei-me, com o tenente coronel Bezerra, dos ânimos desses desgraçados americanos". 111

O raciocínio contraditório de Filgueiras reconhece o poder não só das armas, mas também da ânsia dos índios em garantir seu estatuto de homens livres, que se revelou na rejeição aos opressores dos manifestantes de Maranguape. Entretanto, a fidelidade demonstrada não foi necessariamente decorrente das proclamações e docilidade do capitãomor, mas se dirigia ao imperador do novo país que havia lhes concedido perdão. Ao comentar acontecimentos semelhantes no Pará, André Roberto Machado afirma que "o grito de 'morte aos portugueses'" bradado pelos indígenas "tinha a sua motivação no desejo de alijar do poder os homens da velha ordem que os oprimia, especialmente através do trabalho compulsório, o que, por extensão, atingia também a indivíduos de notável posição nascidos na América".112 Segundo o autor, os índios em território paraense “passaram a reivindicar para si garantias e direitos aprovados nas Cortes de Lisboa, numa lógica que fazia a sua antiga condição de vassalos do rei de Portugal transformar-se no status de cidadão”.113 Instrumentalizavam, portanto, o liberalismo em prol de suas demandas. Os índios no Ceará no mesmo período também basearam sua liberdade e posse da terra na tradicional relação de vassalagem com a Coroa portuguesa. Mas sua leitura do constitucionalismo lusitano foi inversa à dos índios no Pará: nessa conjuntura, como aponta a historiografia,114 os portugueses significavam uma "nova ordem", ou seja, um mundo "liberal" que atacava o rei e ameaçava suas antigas garantias. Por isso que não existia "nada mais uniforme nos levantes feitos por esses indígenas do que o fato de eles se apresentarem como representantes do Imperador".115 Ainda que tenham passado a se referir ao Antigo Regime a

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De José Pereira Filgueiras a José Bonifácio de Andrada e Silva. Fortaleza, 20 de fevereiro de 1823. AN, IN, caixa 742, pacote 1. 112 MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 225. 113 MACHADO, André Roberto de Arruda. O Conselho Geral da Província do Pará e a definição da política indigenista no império do Brasil (1829-1831). Almanack, n. 10, 2015, p. 445. 114 Cf. MAXWELL, Kenneth. Por que o Brasil foi diferente? O contexto da independência. In. MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p. 189. MOTA, Carlos Guilherme. Ideias de Brasil: formação e problemas (18171850). In. MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta, p 202-205. 115 MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 262.

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partir de uma leitura liberal, a ordem que os índios do Ceará queriam e defendiam era, de fato, a velha, que os tornara súditos livres da escravidão.

O vigário Felipe Benício Mariz e os índios de Viçosa

Em meio aos fatos que acometeram Maranguape, outras notícias de distúrbios ecoaram do outro lado do Ceará. Durante uma audiência com moradores de Viçosa, realizada no final de março de 1822, chegaram às mãos dos governadores provisórios queixas contra o vigário da vila, Felipe de Souza Mariz. Natural do Icó, ele estudara no Seminário de Olinda e, segundo Washington Vieira, lutara contra os liberais durante a Revolução Pernambucana de 1817. Dois anos depois tomara posse como vigário colado da freguesia de Nossa Senhora da Assunção da Vila Viçosa Real.116 Dado seu histórico de posicionamentos conservadores, eram suficientemente preocupantes as reclamações contra ele em um momento de tensões política e de estabelecimento das ideias liberais no Brasil e em Portugal. Os registros não explicitam com clareza os motivos da denúncia contra o padre, mas atestam a repreensão que ele recebeu da junta provisória por ter tentado promover agitações entre os moradores de Viçosa, em sua maioria índios, "povos que ainda gem[iam] de baixo de um pesado jugo e cativeiro". Segundo o governo, a "glória do cidadão liberal" era "cooperar, manter e congregar os povos ignorantes para uma perfeita harmonia", mas "sua imprudência" fazia com que os habitantes da vila se mudassem para as vizinhas. Ao final da missiva, disseram esperar que o vigário Mariz se contivesse "nas suas paixões e arbitrariedades, para não passar pelas torturas que a lei impõe, porque esta somente reserva àqueles que são bons cidadãos".117 As palavras do governo levam a crer que os primeiros queixosos recebidos em audiência eram índios que poucos anos antes haviam se mobilizado em prol de melhorias e denunciado as violências que sofriam. Outra autoridade repreendida foi o diretor de Viçosa, Antônio do Espírito Santo (o mesmo que fora acusado pelos índios em 1814, elogiado pelo então governador Manuel Ignácio de Sampaio e pelo secretário José Rabelo de Souza Pereira em 1815). A junta dizia saber que ele, "de mãos dadas com o reverendo vigário dessa vila", queria, "neste tempo liberal, aterrar os povos rústicos da mesma". Por isso recomendava que, VIEIRA, Washington Luiz Peixoto. Personagens históricos: padre Felipe Benício Mariz (1780-1850) – Parte I. Opinion, abril de 2009. Disponível em: . Acesso em: 7 de julho de 2015. 117 Da junta de governo provisório a Felipe Benício Mariz. Fortaleza, 20 de março de 1822. AN, AA, IJJ9 576, p. 196. 116

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caso os índios não quisessem cumprir suas obrigações, o diretor os deveria "castigar sem motivo de paixão". Era seu dever agir com "prudência, brandura, sem seguir outro caminho que desvaire da mestra liberdade justa, único meio de conter os povos em subordinação e perfeita harmonia".118 Até aqui não há um dado claro que indique que as ações abusivas do padre e do diretor se relacionavam com os novos acontecimentos políticos no império português, como a reunião das Cortes em Lisboa e a preparação da nova constituição. Mas as referências nos dois registros aos "tempos liberais" e aos deveres dos cidadãos levam a supor que, em suas queixas, os índios viam ligações entre o recrudescendo das atitudes de Felipe Mariz e Antônio do Espírito Santo com este momento de retorno do rei e, nos anseios dos que ambicionavam se apoderar da mão-de-obra indígena, de possíveis anulações das antigas mercês que lhes haviam sido garantidas. Ciente disso, a junta de governo escreveu à câmara de Viçosa, formada também por índios, sobre as representações contra o vigário Mariz "para que se contivesse nos destemperados procedimentos", exigindo que os vereadores repassassem qualquer informação a respeito do padre.119 Apesar dos esforços dos governadores, outra representação foi enviada no final de maio à junta "assinada por vários habitantes de Vila Viçosa", que encaminhou, por sua vez, a responsabilidade de dar providência ao ouvidor interino da comarca de Fortaleza para, com brevidade, "fazer cessar de uma vez tão odiosas questões". 120 Poucos dias depois, o juiz ordinário de Granja, acompanhado de oficiais, marchou rumo à vila dos índios para tomar conhecimento dos fatos relatados na representação que versava "toda contra o vigário Benício".121 Depois de estar cerca de um mês em Viçosa averiguando os fatos, outra denúncia lhe foi remetida; nesse caso, a Junta determinou, caso as acusações fossem precedentes, que o juiz deveria prender os "cabeças dessa perturbação" e remetê-los a Fortaleza.122 Talvez cansados da lentidão do governo e da impunidade contra seus agressores, os índios não mais esperaram os resultados de tantos ofícios e queixas e partiram para a rebelião. Já nas recomendações de julho é possível perceber que, de denunciantes, os índios poderiam passar a criminosos em potencial na ótica do governo. O ápice da revolta ocorreu, segundo Geraldo Nobre, em entre 30 e 31 de julho na Vila Viçosa, "quando o agrupamento indígena

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Da junta de governo provisório a Antônio do Espírito Santo. Idem, p. 196V. Da junta de governo provisório à câmara de Vila Viçosa. Fortaleza, 28 de março de 1822. Idem, p. 205. 120 De José de Castro e Silva a Adriano José Leal. Fortaleza, 30 de maio de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 58V. 121 De José de Castro e Silva ao juiz ordinário de Granja. Fortaleza, 3 de junho de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 61V. 122 Fortaleza, 1º de julho de 1822. Idem, p. 74V. 119

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expuls[ou] da freguesia o vigário Felipe Benício Mariz".123 A memória de Manoel Ximenes de Aragão, contemporâneo do conturbado período da independência e das revoltas liberais da década de 1820, também relata a retirada a força do padre na Ibiapaba:

"Na Vila Viçosa, depois de estarem com seu pároco, que então era o padre Felipe Benício, debaixo de cerco dentro da igreja, por algum tempo, perdoaram-lhe a morte, mas botaram-no serra abaixo, montado no meio de uma cangalha, em uma besta velha piolhenta, depois de ter suportado muitos pescoções que lhe davam as cunhãs".124

Na versão de Antônio Bezerra, a partir de histórias que colheu em viagem pelo norte do Ceará no final do século XIX, a índia Dionísia teria esbofeteado o padre que, "depois de sofrer as mais revoltantes afrontas", foi obrigado a deixar a freguesia.125 Como nota Maico Xavier, as mulheres – que eram comumente castigadas e abusadas, de acordo com o requerimento dos índios de 1814 – agora aparecem de forma destacada nos dois relatos com participação marcante na expulsão de Mariz.126 A ação radical das índias pode ter sido uma manifestação limite contra as agressões que sofriam e que não conseguiam pôr fim pelas vias legais. Também se conectava provavelmente com o momento político e, talvez, com alguma ação ou ideia que o religioso buscava impor aos índios. Outros documentos também se referem ao banimento de Felipe Mariz, mas diferente dos relatos mencionados acima, parte deles consta que teria ocorrido no povoado de Baepina. No diário de Freire Alemão, a partir de entrevistas que fez durante sua passagem na serra da Ibiapaba em 1860, há o registro das memórias dos índios José da Silva de Azevedo e Felipe Pereira sobre os acontecimentos. Segundo eles, indígenas saídos "das matas de São Pedro [de Baepina]" expulsaram "o vigário e mais brancos", e ao se aperceberem do ocorrido, as autoridades convocaram os "índios dos sítios vizinhos para se oporem". Não houve mortes, mas o capitão-mor indígena Paulo Borges teria sido flechado.127 Em outro registro, a junta governativa respondeu em 6 de agosto de 1822 a uma correspondência do pároco da Serra dos Cocos (atual Ipueiras), Manuel Pacheco Pimentel, tratando do "arrojo que tiveram os índios da povoação de São Pedro fazendo sair o vigário e tomando conta da vila". Incumbia-o de enviar um sacerdote no lugar de Felipe Mariz "para

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NOBRE, Geraldo. Os índios revoltosos na serra de Maranguape, p. 315. ARAGÃO, Manoel Ximenes de. As fases de minha vida: genealogia. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, ano XXVII, 1913, p. 72 125 BEZERRA, Antônio. Notas de viagem. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1965, p. 177. 126 XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 121. 127 Diário de Francisco Freire Alemão, "Informações sobre os antigos agrupamentos indígenas nas redondezas de Viçosa". Vila Viçosa, 8 e 9 de dezembro de 1860. BN, I-28, 8, 68. 124

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tomar conta da igreja" e convencer os "índios a voltarem para as suas casas". Foi autorizado a tomar todas as providências que achasse adequadas entre outras já estabelecidas, "sendo uma delas mandar retirar da freguesia o vigário colado até segunda ordem", mostrando que, ao menos provisoriamente, o padre Felipe não voltaria à Ibiapaba. Os manifestantes parecem ter sido apenas parcialmente vitoriosos, já que também era vontade da junta que Pimentel informasse os nomes dos culpados da expulsão, para que pudessem "proceder contra os chefes desse desacato",128 contando com a ajuda do juiz ordinário e capitão-mor de Viçosa.129 A ausência de Mariz deve também ter atingido Viçosa. A pesquisa de Maico Xavier se deparou com alguns livros de batismo da vila assinados pelo padre Felipe Benício,130 que atendia as duas localidades indígenas. Em 9 de agosto a junta provisória respondeu ao pedido do sargento-mor dos índios João da Costa da Anunciação de que fosse enviado um presbítero para sua freguesia, ordenando que conservasse os "povos em paz, ficando responsável ao governo por qualquer desordem que por eles sejam motivadas".131 Como discute Xavier, a manutenção da patente de Anunciação e a missão que recebeu mostram que o sargento-mor indígena não se envolvera diretamente com o motim. Assumindo um cargo militar, exercia a difícil tarefa de servir de ponte entre as determinações do governo e as demandas de sua comunidade.132 Mesmo não tomando parte ativamente na insubordinação, atuou para que sua igreja não ficasse sem padre, provável preocupação dos índios de sua comunidade que atentaram não contra a religião, mas para afastar alguém que os afligia. Agiu de igual forma ao flechado capitão-mor indígena Paulo Borges e aos outros convocados, que se opuseram àqueles que pretendiam expulsar os brancos e concretizar o negligenciado desejo expresso no grande requerimento de 1814. Juntos eram expressão da heterogeneidade de visões e intenções que compunha as comunidades indígenas oitocentistas. Mantendo-se na posição de liderança dos índios e ocupando patente nas forças armadas do império português, João da Costa da Anunciação permaneceu ileso diante da truculenta perseguição do governo do Ceará contra os envolvidos diretos na expulsão do padre. A força da repressão foi ainda maior pelo clima de tensão na província, que passava por um período de agitações populares em diversas partes de seu território. Em sessão da junta de governo provisório de 21 de agosto, os membros destacaram os tumultos decorrentes 128

Da junta de governo provisório a Manoel Pacheco Pimentel. Fortaleza, 6 de agosto de 1822. AN, AA, IJJ9 576, p. 330. 129 Da junta de governo provisório ao juiz ordinário e capitão-mor de Vila Viçosa. Idem, p. 330V. 130 XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 120. 131 De José de Castro e Silva a João da Costa da Anunciação. Fortaleza, 9 de agosto de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 97V. 132 XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 121-122.

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do decreto de 3 de junho (que convocara uma Assembleia Geral Constituinte e Legislativa composta por deputados provinciais) e "da instalação do primeiro governo provisório". Segundo eles, o povo pegou em armas no Crato "e em toda região do Cariri", assim como nas vilas do Aracati e em São Bernardo (atual Russas). A respeito dos índios, mencionaram que estes estavam "inquietos por toda parte, e preparando-se", como ocorria em Maranguape. As medidas para conter os atos de insubordinação deveriam ser rigorosas: para os de Viçosa, "cabeças de motim, devem ser castigados não só para pagarem as penas dos seus delitos, como para exemplo de outros". Como já foi dito, o temor em relação a uma ação extremada dos indígenas era recorrente e, por isso, os nativos "das vilas imediatas a esta capital deve[riam] ser vigiados pelos seus diretores e particularmente por este governo", ordenando-os para “pôr em execução os termos e prática observada no seu Diretório”. Pela proximidade que Soure, Arronches, Messejana, Monte-mor Novo e Monte-mor Velho tinham de Fortaleza era preocupação do governo que se tomassem "todas as medidas que parecerem mais adequadas para manter a segurança e tranquilidade desta capital, assim como de toda a província".133 Aqui, definitivamente, o foco da ação do governo já não era mais as ações arbitrárias de Mariz, quaisquer que tenham sido elas. Bem mais preocupante era o povo em armas, especialmente os de posição mais baixa da hierarquia social. A junta provisória já não se importava mais com os motivos dos índios de se queixar ou de usar a força, mesmo que não tivessem chegado a matar o padre como aconteceu em outras localidades do Ceará, segundo Ximenes Aragão.134 Diante de uma situação tão conturbada, a prioridade dos membros do governo era abafar os tumultos, evitar que contagiassem outros grupos e que seus efeitos chegassem a Fortaleza, medo que acendeu com os eventos de Maranguape. Ou seja, maior ofensa do que mandar embora à força o vigário foi ter feito isso em pleno momento de levante popular, durante os acontecimentos que culminaram na separação política brasileira. A punição imposta pela junta se utilizava de uma pedagogia típica das penas do Antigo Regime estudadas por Silvia Lara, que visava ser “afirmativa e exemplar”. Entretanto, neste caso, o poder que buscavam afirmar não era o do soberano, mas o deles próprios. 135 Destaca-se, também, a presença do Diretório como referência aos procedimentos em relação aos índios, mesmo em um período liberal, ainda que seus "termos e prática" fossem aplicados com mais ênfase no caráter punitivo.

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Sessão da junta de governo provisório. Fortaleza, 31 de agosto de 1822. APEC, GC, livro 32, p. 19V. ARAGÃO, Manoel Ximenes de. As fases de minha vida, p. 72. 135 LARA, Silvia Hunold. Introdução. Ordenações Filipinas, livro V, p. 21. 134

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Em 16 de setembro foi comunicado ao padre Pimentel, da Serra dos Cocos, a nomeação do vigário forâneo de Fortaleza Francisco Urbano Pessoa de Albuquerque Montenegro "para servir de encomendado na freguesia de Vila Viçosa".136 Ao fim do mês, em meio à repressão aos distúrbios encabeçados pelos índios de Maranguape, as perseguições aos da Ibiapaba continuaram e, no dia 30, o governo ordenou ao coronel de Granja para que prendesse “os cabeças do motim urdido em Vila Viçosa contra o vigário e alguns empregados da mesma vila",137 confirmando que Felipe Benício Mariz não fora o único afetado pela fúria indígena. Comunicou-o também sobre a marcha dos fugitivos entre as serras de Maranguape e Ibiapaba,138 ratificando o receio há pouco mencionado de que grupos de localidades diferentes influenciassem uns aos outros em atos contestatórios. Ao final do mês seguinte, os culpados foram definitivamente capturados, com o envio do ouvidor Adriano José Leal para dar ordens acerca dos "procedimentos dos índios de Vila Viçosa".139 Os súditos que eram antes amparados por dom João VI tornaram-se, enfim, rapidamente criminosos, perseguidos e condenados. O contexto conturbado e incerto da nova constituição portuguesa – por mais que não tenha sido explicitamente citada – atingiu diretamente os índios da Ibiapaba, dando condições para a eclosão do tumulto que promoveram e de sua violenta repressão. A repercussão da expulsão do padre Felipe, menos de 10 anos após a solicitação de João Benício e seus companheiros, também não mencionou as vozes indígenas nos documentos, mas trouxe à tona outras formas de manifestações indígenas para além da palavra escrita. A revoltada índia Dionísia, o ileso sargento Anunciação e o flechado capitão Borges, juntos com o professor Benício, são expressões da heterogeneidade de visões, intenções e posicionamentos dos índios, ainda que de uma mesma comunidade. Nos dois momentos, em 1814 e 1822, a intenção era afastar os não-índios de seu convívio, mas o papel desempenhado pelos três primeiros indica também as mudanças que já começavam a ser perceptíveis. A atuação indígena contra o sacerdote e a repressão do governo, ambas violentas, eram frutos do momento de tensão e dos dilemas em torno do destino do império lusitano, do Brasil e deles próprios, sujeitos a novas leis, condições políticas e relações sociais.

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De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Manoel Pacheco Pimentel. Fortaleza, 16 de setembro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 113V. 137 Sessão da junta de governo provisório. Fortaleza, 30 de setembro de 1822. APEC, GC, livro 32, p. 30V. 138 De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Francisco Carvalho Mota. Fortaleza, 30 de setembro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 125V. 139 De José de Castro e Silva a Adriano José Leal. Fortaleza, 31 de outubro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 156V.

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Mapa 2: Locais de atuação dos índios durante os motins de Maranguape e Vila Viçosa

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Ceará disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ceará

3.3. À MERCÊ DO DESAMPARO: OS ÍNDIOS E OS JUÍZES

Os índios da Ibiapaba não conseguiram a autonomia que tanto reivindicaram e, como vimos no capítulo anterior, o poderio dos proprietários se fortaleceu, amparados por uma legislação para eles extremamente vantajosa. O decreto de 3 de junho de 1833, que delegava a administração dos bens indígenas aos juízes, foi especialmente nocivo para essas comunidades. Mas mesmo em desvantagem, agora sob um governo regencial que limitava o caráter protetor da Coroa, os índios não deixaram de exigir o cumprimento da lei e de recorrer àqueles que haviam sido delegados para assisti-los. No ano de 1838 no Ceará diversas reclamações indígenas chegaram à presidência da província acerca de contendas com donos de terra e da negligência dos juízes em relação aos abusos cometidos por proprietários. Em 14 de março foi enviada ao juiz de órfãos de Fortaleza uma queixa dos índios de Arronches contra pessoas que usurpavam seus bens, e pediam que a justiça se encarregasse da punição de seus algozes.140 Relutante, o juiz sugeriu que o decreto de 1833 contradizia o artigo 20º da Disposição Provisória acerca da Administração da Justiça Civil,141 mas que faria tudo quanto pudesse em benefício dos índios. O presidente Manuel Felizardo de Souza e Melo não aceitou o comentário do juiz, e disse que a Disposição Provisória e o decreto de 1833 não eram opostos, "por que naquele fixa-se 140

De Manuel Felizardo de Souza e Melo ao juiz de órfãos de Fortaleza. Fortaleza, 14 de março de 1838. APEC, GP, CO EX, livro 40, p. 30. 141 "Seção 4ª: Dos oficiais de justiça dos juízos de paz. Artigo 20º: Estes oficiais serão nomeados pelos juízes de paz, e tantos quantos lhes parecerem bastantes para o desempenho das suas e das obrigações dos inspetores". Cf. Lei de 29 de novembro de 1832. Promulga o código do processo criminal de primeira instância com disposição provisória acerca da administração da justiça civil. Disponível em: . Acesso em: 17 de junho de 2015.

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somente a jurisdição contenciosa dos juízes de órfãos, e nestes se lhes aumentou uma atribuição administrativa".142 Tal acréscimo de atribuição, referente à proteção dos bens indígenas, era comumente negligenciado por muitos juízes, que de tudo faziam para que as ações das comunidades se transformassem em causas perdidas. Prova disso é que, em outubro de 1838 os índios de Arronches novamente se mobilizaram e produziram um requerimento para que, "na conformidade do decreto de 1833", o juiz de órfãos de Fortaleza tomasse "as necessárias providências, a fim de que" não fossem "usurpados das terras que lhes foram doadas".143 Mesmo que, meses depois, seus problemas continuassem sem que houvesse uma verdadeira vontade da justiça em solucionar seus problemas e combater os invasores de suas terras, os índios não deixavam de acioná-la. Durante esse período, as investidas contra suas comunidades se deram em um contexto de ampliação violenta dos latifúndios, fenômeno ao qual, por conveniência política e interesses econômicos, os juízes fechavam os olhos ou eram até mesmo facilitadores. Ainda assim, pela lei, era apenas a eles que os índios poderiam recorrer, como aconteceu com os de Arronches e como fizeram as comunidades indígenas da Ibiapaba, que se manifestaram contra a extinção de juizados de paz em sua região. Em 14 de maio, o presidente Souza e Melo comunicou a câmara de Vila Viçosa acerca da supressão dos juizados nos povoados de São Pedro e São Benedito,144 habitados majoritariamente por índios, por meio de portaria do mesmo dia,145 atendendo ao artigo 1º da lei provincial nº 101 de 5 de outubro de 1837.146 Insatisfeitos por não mais terem o amparo próximo da justiça, os habitantes de São Benedito fizeram um abaixo-assinado solicitando o reestabelecimento do distrito de paz, e foram atendidos no mês de julho.147

142

De Manuel Felizardo de Souza e Melo ao juiz de órfãos de Fortaleza. Fortaleza, 20 de março de 1838. APEC, GP, CO EX, livro 40, p. 32V. 143 De Manuel Felizardo de Souza e Melo ao juiz de órfãos de Fortaleza. Fortaleza, 25 de outubro de 1838. APEC, GP, CO EX, livro 40, p. 204. 144 De Manuel Felizardo de Souza e Melo à câmara de Vila Viçosa. Fortaleza, 14 de maio de 1838. APEC, GP, CO EX, livro 40, p. 72V. 145 Portaria extinguindo os juizados de paz de São Pedro e São Benedito. Fortaleza, 14 de maio de 1838. APEC, GP, CO EX, livro 40, p. 73. 146 Artigo 1º: Os distritos de paz desta província ficam reduzidos ao número de suas freguesias e aquelas capelas filiais onde o presidente julgar indispensável um juiz de paz. Cf. Lei nº 101 de 5 de outubro de 1837. In. OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais: estado e cidadania (18351861). Compilação das leis provinciais do Ceará - compreendendo os anos de 1835 e 1861 pelo Dr. Liberato Barroso. Ed. Fac-similada. Fortaleza: INESP, 2009 [1862], tomo I, p. 159. 147 De Manuel Felizardo de Souza e Melo à câmara de Vila Viçosa. Fortaleza, 14 de julho de 1838. APEC, GP, CO EX, livro 40, p. 107. De Manuel Felizardo de Souza e Melo a Luiz José de Miranda. Fortaleza, 14 de julho de 1838. APEC, GP, CO EX, livro 40, p. 107.

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Apesar da mobilização indígena diante da justiça, que chegou a promover um levante na Bahia contra os juízes em 1834, como conta André de Almeida Rego,148 a relação era bastante desigual. Como vimos no caso de Arronches e nos que serão analisados em seguida, os índios encaminhavam suas queixas apenas ao presidente da província, que só então as repassavam aos juízes. O procedimento sugere que os indígenas percebiam sua própria desvantagem com a administração dos magistrados e, por isso, buscavam o auxílio do governo. Visivelmente posicionados a favor da usurpação fundiária encabeçada pelos potentados, os membros do judiciário local, pouco fiscalizados, tinham plena liberdade para interpretar a legislação e encaminhar processos da maneira que lhes conviesse. Diante disso, os líderes dos governos das províncias, mesmo que aparentassem interesse na proteção dos índios, pouco podiam fazer. Segundo o presidente do Ceará Souza e Melo, era competência dos juízes de órfãos

"preencher os títulos dos arrendatários dos terrenos pertencentes aos índios que habita[ssem] seus municípios todas as vezes que tais diligência se poderem fazer pelo exercício da jurisdição simplesmente administrativa, havendo acordo entre os confrontantes, mas devem remeter a questão ao conhecimento das justiças ordinárias logo que traz litígio com contestação entre as partes" 149

Ou seja, nada garantia que um processo litigioso entre índios e arrendatários fosse assim registrado e encaminhado para a justiça ordinária se o juiz de órfãos não quisesse. Ao presidente era impossível fiscalizar com minúcia tais casos, cabendo apenas encaminhá-los aos magistrados e esperar uma "justa" resolução. Em outubro de 1838, Souza e Melo encaminhou ao juiz de órfãos de Messejana a queixa do índio Feliciano Borges dos Santos Arcoverde, para que informasse "sobre a veracidade da mesma, podendo logo tomar todas as providências que estive[ssem] ao seu alcance a bem dos índios, que pelo decreto de 3 de junho de 1833 esta[vam] debaixo de sua proteção".150 Cabendo ao magistrado julgar se a reclamação de Arcoverde era verdadeira ou não – supondo que fosse e caso o juiz agisse de má fé – não havia nada que o índio – acionando a justiça – e o presidente – lembrando-o da lei de 1833 – pudessem fazer. Acerca do funcionamento da justiça no período regencial, Carlos Garriga e Andreia Slemian contam que uma série de medidas foi promulgada para “favorecer a efetiva exigência

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REGO, André de Almeida. Deslocamento espaciais de índios nas aldeias e vilas indígenas da Bahia do século XIX. Revista Trilhas da História, v. 2, nº 4, 2013, p. 63 149 De Manuel Felizardo de Souza e Melo ao juiz de órfãos de Messejana. Fortaleza, 16 de julho de 1838. APEC, GP, CO EX, livro 40, p. 109. 150 Idem, p. 193.

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de responsabilidade dos juízes”, dando oportunidade a ações populares contra a magistratura. Segundo eles, tal movimento na década de 1830 coincidia com o “momento de maior instabilidade política e radicalização na projeção de alternativas para o futuro com a abdicação do imperador”. Tudo isso tinha a ver com a “inexistência de um conflito entre as leis novas e antigas, e a consequente permanência dos juízes como seus decodificadores”.151 Ou seja, por mais que aos índios tenha sido aberta a via da contestação pela justiça e sobre o procedimento dos próprios juízes, o poder de decisão destes era maior. Ainda que sofressem pressões dos indígenas ou até do presidente da província, os magistrados tinham o legislativo ao seu lado. Em um mundo que adequava normativas de diferentes temporalidades, eram eles os intérpretes. O decreto nº 143, de 15 de março de 1842, confirmou a incumbência dos juízes de órfãos de administrar os "bens pertencentes aos índios, nos termos do decreto de 3 de junho de 1833".152 Em agosto, o ministro da justiça Paulino José Soares de Souza comunicou ao então presidente do Ceará José Joaquim Coelho a determinação do rei de que, baseado no decreto que estabelecia a proteção dos bens indígenas pelos juízes de órfãos de 1833, era sua função recomendar "as necessárias averiguações a tal respeito, para que, verificando por meio delas terem sido usurpadas aos índios as terras de seu patrimônio, lhes faça restituir pelos meios competentes". Enquanto às casas de câmara das extintas vilas de Arronches, Soure e Messejana, pertencendo ao Tesouro Nacional, deveriam ser incorporadas aos próprios nacionais.153 Entretanto, sem elementos para executar tais averiguações, pouco mudou, tanto no texto legal quanto no cotidiano dos índios em seus conflitos com os que esbulhavam suas terras e em seu desamparo diante da justiça. Em dezembro de 1842 o índio Manoel Batista dos Santos, representando a comunidade de Monte-mor Velho, entregou à presidência da província uma queixa de haviam sido "esbulhados de suas terras, ficando à mercê do desamparo, sem que tenham aparecido da parte das autoridades, que sobre os mesmos devem velar, aquelas providências que as leis autorizam". Diante disso, o presidente ordenou ao magistrado de Cascavel "que, na qualidade de juiz municipal, ou de órfãos, proced[esse] com o maior desvelo em prol dos desvalidos

GARRIGA, Carlos. SLEMIAN, Andreia. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América Ibérica (C. 1750-1850). Revista de História, n. 169, 2013, p. 218-220. 152 Decreto nº 143 de 15 de março de 1842. Regula a execução da parte civil da lei nº 261 de 3 de dezembro de 1841. Disponível em: . Acesso em: 18 de julho de 2015. 153 De Paulino José Soares de Souza a José Joaquim Coelho. Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1842. APEC, MN, MJ, livro 38. 151

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índios, administrativa ou contenciosamente", para que fossem "garantidos aos ditos índios os direitos que as leis lhes outorgam".154 Neste caso, a mesma pessoa ocupava os dois cargos, tanto no juizado administrativo quanto no contencioso. Ou seja, se em um distrito onde havia duas instâncias nada garantia que um processo fosse levado ao âmbito da resolução litigiosa, para os nativos liderados por Manoel Batista dos Santos a situação era ainda pior. Diante do desamparo das autoridades que deveriam protegê-los, como disse o "incapaz" presidente, o fato de a questão ter sido levada a Cascavel – e não a Aquiraz, município que pertencia Monte-mor Velho – talvez indique uma tentativa dos indígenas, longe de onde sabiam que não seriam tratados com justiça, de buscar auxílio jurídico em outro lugar, ainda que em vão. É importante destacar também que, mesmo que o juiz fosse porventura dedicado às causas dos índios, era muito difícil desempenhar competentemente suas funções ocupando dois cargos simultaneamente e sendo pressionado pelos poderosos da região. Em 1845, outros juízes foram acionados pelo governo da província a partir de novas denúncias de abusos aos indígenas. Em junho, o então presidente Ignácio Correa de Vasconcelos escreveu ao magistrado de Sobral a partir das acusações de que "os moradores de Almofala se apropriaram das terras que ali pertencem aos índios, fazendo nelas cercado e plantações, sem quererem nem pagar algum rendimento pelas mesmas".155 Em 2 de setembro, após a promulgação do Regulamento das Missões, o ministro da justiça José Carlos Pereira de Almeida Torres escreveu que era da "mais pública notoriedade" a existência de indígenas "a serviço de pessoas particulares sem que percebam salário ou estipêndio algum, achando-se assim reduzidos ao estado de quase perfeito cativeiro". Para "prevenir a continuação de tão escandaloso abuso", passou ao presidente do Ceará a determinação do rei para que os juízes de órfãos recebessem os indígenas que estavam "nas indicadas circunstâncias", indagassemnos se eram bem tratados e se queriam continuar servindo nas casas onde se achavam ou "ser transferidos para qualquer aldeamento já existente".156 Dias depois, uma circular foi enviada aos "juízes municipais e órfãos, substitutos e promotores da província" para que nunca se verificasse qualquer prejuízo contra os índios que

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De José Joaquim Coelho ao juiz municipal e de órfãos de Cascavel. Fortaleza, 23 de dezembro de 1842. APEC, GP, CO EX, livro 58, p. 11. 155 De Ignácio Correa de Vasconcelos ao juiz de órfãos de Sobral. Fortaleza, 21 de junho de 1845. APEC, GP, CO EX, livro 68, p. 12V. O documento não informa a autoria das acusações, que provavelmente partiram dos índios de Almofala. 156 De José Carlos Pereira de Almeida Torres a Ignácio Correa de Vasconcelos. Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1845. APEC, MN, MJ, livro 38.

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tivessem que sair do termo de sua jurisdição, quer fossem dele naturais ou residentes.157 No mês de outubro, para que a câmara municipal de Fortaleza pudesse "dar cumprimento às ordens superiores que em benefício dos índios lhes foram dadas", o presidente intimou ao juiz de órfãos da capital que tomasse as medidas "para fazer cessar os males [...] contra os índios de Maranguape", e que desse conta à presidência de "todos e quaisquer atos de esbulho já praticados, [...] propondo as medidas que julgar adequadas para providenciar-se como for de justiça".158 Sem a proteção efetiva dos juízes, não somente as terras dos índios ficaram à mercê da ambição dos potentados, mas também sua mão-de-obra. Em tal sociedade escravista, mas com pouca condição de adquirir quantidades significativas de cativos, e já abolido o Diretório, as crianças sem pais acabavam virando alvo de proprietários. Chegou ao conhecimento do então presidente José Maria da Silva Bittencourt, em setembro de 1843, a "prática escandalosa", que seria "vulgar" em Granja, de "arrancarem-se órfãos pequenos, principalmente índios, às suas mães, ou às pessoas que deles curam, para serem reduzidas a uma quase servidão, sob o especioso pretexto de assoldamento [sic], que desta forma não é permitido por lei". As desculpas dadas por quem os praticamente escravizavam se assemelham a empreendimentos no Espírito Santo, estudados por Maria Hilda Paraíso, que visavam "batizar os 'boticudinhos' e distribuí-los entre pessoas de prestígio".159 No dia 26, ordenou ao juiz municipal e de órfãos que fizesse cessar o "abuso contra infelizes, a quem a sociedade deve especial proteção", que usasse de todos os meios para que desaparecessem "fatos tão vergonhosos", que os meninos e meninas capturados fossem "restituídos à sua liberdade, indenizados das perdas e danos sofridos e punidos os autores de fatos tão violentos". Destacou o caso do órfão Francisco, "filho de Maria Francisca, parda, moradora no Olho D'água, município de Vila Viçosa", em poder de José Felix da Cunha, morador do Coreaú.160 No mesmo dia escreveu ao juiz de Vila Viçosa, em resposta a um ofício, comunicando-o ter expedido as "convenientes ordens para fazer cessar os abusos contra os índios de que [o magistrado] se queixa[va]". 161 O caso do filho de Maria Francisca,

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Ofício circular da presidência da província aos juízes municipais, de órfãos, substitutos e promotores da província. Fortaleza, 15 de setembro de 1845. APEC, GP, CO EX, livro 68, p. 44V. 158 De Ignácio Correa de Vasconcelos ao juiz de órfãos da capital. Fortaleza, 21 de outubro de 1845. APEC, GP, CO EX, livro 68, p. 64. 159 PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos sertões do leste. Salvador: EDUFBA, 2014, p. 351. 160 De José Maria da Silva Bittencourt ao juiz municipal e de órfãos de Granja. Fortaleza, 26 de setembro de 1842. APEC, GP, CO EX, livro 58, p. 155. 161 De José Maria da Silva Bittencourt ao juiz municipal e de órfãos de Vila Viçosa. Fortaleza, 26 de setembro de 1842. APEC, GP, CO EX, livro 58, p. 157.

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mãe solteira e quem provavelmente acionou a justiça para resgatá-lo, mostra outra trama difícil de ter sido resolvida por envolver juizados de dois municípios diferentes, e onde havia a já citada situação de uma pessoa ocupando dois cargos do judiciário. Pior seria somente a condição dos que eram levados para algum lugar desconhecido ou dos que perderam por completo os pais, desamparados de tudo. Mapa 3: Locais de atuação dos índios peticionários à justiça

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Ceará disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ceará

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A calamitosa situação vivida por Francisco não impediu sua mãe de agir, ainda que o nível de desvantagem para os índios fosse praticamente absoluto. Em diferentes momentos e conjunturas, variadas formas de ação indígena tiveram lugar em conexão profunda com a legislação do período. Era perceptível o conhecimento das leis por parte de muitos índios, que as operacionalizavam a seu modo e a partir de suas próprias preocupações, como a tomada de terras, o resgate de um filho ou a própria condição política de seu povo com a deportação de seu rei. A já comentada heterogeneidade de atitudes era oriunda das diferentes experiências e posições sociais nas comunidades: mas, do código de posturas de vereadores aos "pescoções" das cunhãs, todas elas agiram diante de dilemas semelhantes. Não somente os índios se posicionaram a partir da legislação: as próprias formas de aplicação das leis indigenistas eram influenciadas pela atuação indígena. Ainda que o regime joanino, atento aos "males da perfeita liberdade", tenha sido repleto de exemplos de repressão e criminalização contra os índios, tudo se exacerbou após a independência, especialmente no período regencial, também por conta do esforço dos potentados locais em restringir o poder de

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atuação política indígena. Em todos esses tempos, a partir de circunstâncias próprias de cada momento, os índios se valiam da legislação de que dispunham e que era muitas vezes desvantajosa para eles. Sua atuação sempre foi de encontro aos abusos da exploração de sua mão-de-obra e a favor de sua liberdade e autonomia, baseados em uma cultura política tanto saudosa do prestígio de seus antepassados quanto atenta aos novos tempos liberais que passaram a viver.

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CAPÍTULO 4 ÍNDIOS, GENTIOS, VASSALOS, CIDADÃOS "derramar a última gota de sangue, e dar a própria vida por Vossa Majestade, com aquele mesmo zelo de dom Felipe de Souza Castro" (Ignácio de Souza e Castro e demais índios de Vila Viçosa, 1817. AN, AA, IJJ9 518) "cidadãos sem a menor sombra de dúvida, porque são nascidos no Brasil, e são ingênuos: logo assim devem gozar todos os direitos que a Constituição garante aos cidadãos " (José Francisco do Monte e demais índios de Monte-mor Velho, 1831. BN, C-750, 29)

O espaço social imaginado para os índios no Brasil, da vigência do Diretório até a Constituição de 1824, os colocava em uma ambiguidade. A pretensa situação de equidade com os brancos enquanto vassalos1 era utópica, já que eram caracterizados como ainda sujeitos a uma menoridade,2 estando em um estágio inferior na hierarquia do corpo social do Antigo Regime português.3 Por meio da crítica da atuação dos missionários junto às comunidades indígenas, o argumento legislativo da época era de que, “não tendo sido educados com os ‘meios da civilidade’, da ‘convivência’ e da ‘racionalidade’, os índios também estariam inaptos a formar governos próprios”. Pautada por ideais civilizatórios de base iluminista “com os olhos fitos em certo ideal de sociedade livre”,4 a política indigenista lusitana, por um lado, tinha como meta transformá-los em trabalhadores civilizados e fiéis à Coroa lusitana. As vilas de índios, espaços criados para serem polos civilizadores, garantiamlhes terras, cargos, posses e mercês. Por outro lado, até mesmo as autoridades indígenas “serão obrigados a conservar com os índios aquela recíproca paz, e concórdia, que pedem as Leis da humana Civilidade, considerando a igualdade, que tem com eles na razão genérica de Vassalos de Sua Majestade, e tratando-se mutuamente uns a outros com todas aquelas honras, que cada um merecer pela qualidade das suas Pessoas, e graduação de seus postos". DIRETÓRIO que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão, enquanto sua Majestade não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1758, §83. Grifo meu. 2 “menoridade civilizacional, porque se considerava que a ‘civilização índia’ ocupava um estádio inferior na evolução da humanidade; menoridade individual, porque se concebiam os indígenas súditos não totalmente responsáveis pelos seus atos, mas como ‘pessoas miseráveis’, simples e rústicas, incapazes de avaliar, de forma total, as consequências do seu comportamento”. Cf. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 43. 3 XAVIER, Ângela Barreto. HESPANHA, Antônio Manoel. A representação da sociedade e do poder. In: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. O Antigo regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, s/d, p. 122-124. LARA, Silvia Hunold. Introdução. In: LARA, Silvia Hunold. Ordenações Filipinas, livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 20. PALTI, Elías. Entre a natureza e o artifício: a concepção de nação nos tempos da independência. Lua Nova, n. 81, 2010, p. 22. 4 ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” do Brasil do século XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 167. 1

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estavam submetidas à estrutura administrativa do império e a uma série de obrigações ligada a formas de conduta e costumes. Ou seja, ainda que o discurso oficial estabelecesse várias garantias e “a igualdade entre índios e luso-brasileiros”, os indígenas constituíam uma classe de homens inferiores na ótica do governo e de estudiosos, verificando-se, segundo Ângela Domingues, “inúmeras contradições [...] a nível legislativo”. Mesmo tendo concedido ao índio “o estatuto de vassalo”, transformando-o “num verdadeiro súdito, num luso-brasileiro a serviço dos interesses da Coroa e útil à política colonial”, eram considerados “não como integralmente responsáveis pelos seus atos, mas como indivíduos em estado de menoridade”.5 Apesar das pretensões políticas e legais, na prática, não existia igualdade entre vassalos no corpo social do Antigo Regime português. A respeito dos índios, as causas atribuídas para a forte ligação aos seus hábitos ancestrais iam desde a “indolência” proporcionada pelo clima6 até aos abusos de diretores e outros representantes do poder administrativo imperial nas vilas.7 Afastados das “luzes” da civilização, estariam bem mais conectados com a “natureza”, termo recorrente na documentação do período ao caracterizar os grupos indígenas e que os opunha à “razão”. Não haviam abandonado por completo os matos de onde tinham saído: estes ainda os “corrompiam” e protegiam. Por suas ações e reivindicações, contudo, é possível perceber que tais comunidades, caracterizadas pela ligação com o mundo “selvagem” e, salvo raras exceções, quase total falta de articulação política, concebiam visões diferentes das dos governantes. Traçando distinções com outros grupos desta sociedade e requerendo suas garantias, os índios buscavam muitas vezes respeito à sua condição de integrantes do corpo social lusitano. Para isso, “assumiam-se como verdadeiros súditos luso-brasileiros”8 diferentes dos “gentios”, fiéis à fé católica e na defesa do reino, mesmo que atuando contra os administradores locais. Guiadas por visões inferiorizantes, as atitudes da Coroa e de seus representantes na administração colonial frente à movimentação dos índios mesclavam rigor com certa tolerância corretora. As punições e restrições impostas eram constantemente motivadas a partir da ideia de natural incapacidade, contrastando de maneira gritante com muitos atos 5

DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, p. 41-43. Ibid., p. 318. 7 ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios, p. 168, 192-195. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, p. 155-156. LOPES, Fátima Martins. As mazelas do Diretório dos índios: exploração e violência no início do século XIX. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, p. 250. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011, p. 216-218. 8 DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, p. 266. 6

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reivindicatórios indígenas. Se os observadores europeus “tendiam a retratar os índios recalcitrantes como verdadeiros selvagens, que hostilizavam os brancos em função da sua natureza bruta”, tais representações, segundo John Monteiro, iam de encontro à imagem do “índio que colaborava com os projetos coloniais”, ou aos atos de “apropriação, por parte de algumas lideranças, dos símbolos e dos discursos dos brancos para buscar um espaço próprio no Novo Mundo”.9 Entre a construção da imagem dessa população associada à barbárie e a ação política dessas comunidades em suas povoações, chama atenção a procura constante dos índios das vilas – especialmente suas lideranças – em identificar-se enquanto súditos do rei e merecedores das mercês que lhes eram garantidas e que bem conheciam. Acerca da população indígena das vilas do tempo da instalação do Diretório no Ceará, Isabelle da Silva alerta que “não se tratava mais dos ‘índios do corso’ do período da Guerra dos Bárbaros”, pois “já tinham acumulado certas experiências nas relações com o mundo colonial”. Eram povos que traziam “nas suas histórias e memórias os choques sangrentos vividos por gerações passadas” e que já haviam “passado pelos aldeamentos missionários e todas as suas ambiguidades”.10 Na passagem entre os séculos XVIII e XIX, Maria Regina de Almeida afirma que os “diversos grupos indígenas aldeados agiam [...] com base em culturas políticas e culturas históricas próprias, construídas num longo processo de suas trajetórias de contatos com os colonizadores”, através dos quais “valorizavam seu papel de súditos cristãos das monarquias ibéricas”.11 Na primeira metade do século XIX, marcada por intensas mudanças na legislação indigenista, as leis eram interpretadas e operacionalizadas pelas Coroas lusitana e brasileira, agentes de governo no Ceará, autoridades locais e índios. Tanto que, nessa sempre tensa relação entre agência indígena e a legislação que os submetia, usando as palavras de PerroneMoisés, os próprios índios, "situando-se de modos diversos diante da colonização portuguesa do Brasil", obrigaram "o projeto civilizatório a assumir certas feições". 12 A atuação política indígena, desde a instituição do Diretório e, especialmente, das lideranças nas vilas, revelava

9

MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese (Concurso de Livre-docência), 2001, p. 75-76. 10 SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 94. 11 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. O lugar dos índios na história entre múltiplos usos do passado: reflexões sobre cultura histórica e cultura política. In: SOIHET, Rachel. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. SÁ, Cecília. GONTIJO, Rebeca. Mitos, projeto e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 209-210. 12 PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Verdadeiros contrários: guerras contra o gentio no Brasil colonial. Revista Sexta Feira, v. 07, 2003, p. B210.

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sua fidelidade em relação à monarquia de Portugal – e, após 1822, à do Brasil – e exigia o respeito às mercês garantidas pelos reis. A ênfase na posição social que ocupavam no império, registrada na legislação, era constante, mesmo porque, apesar de serem “vassalos iguais aos outros”, eram vistos como indivíduos de capacidade limitada. A própria lei pombalina, ainda que confirmasse sua liberdade, bens e cargos que podiam ocupar, declarava sua natureza inferior ao instituir sua condição de tutelados.

4.1. "DAR A PRÓPRIA VIDA POR VOSSA MAJESTADE"

Exemplo da diferenciação que os considerava inferiores aos demais vassalos livres está na circular de 9 de julho de 1799 transmitida aos governadores dos domínios ultramarinos por ordem do príncipe regente dom João VI, para que procurassem “introduzir a inoculação das bexigas, principalmente nos meninos negros e índios, visto tem mostrado a experiência ser este o único e eficaz preservativo contra o terrível flagelo”. Não se sabia bem quais seriam os “efeitos que devem ter resultado de uma tão saudável providência”, e por isso ordenava ao governador Bernardo Manuel de Vasconcelos em 1802, “por meio dos médicos e das casas dos expostos”, que adotasse a prática e desse “conta dos progressos que se fizerem neste importante objeto”. 13 A inoculação de bexiga (varíola), método que consistia na aplicação do pus contaminado em uma pessoa saudável, começou a ser utilizada na América portuguesa no fim século XVIII, mesmo já tendo sido praticada na Inglaterra desde o início dos setecentos.14 No Ceará, por não se conhecer ainda as consequências do procedimento, foram chamadas as crianças rejeitadas e oriundas de estratos sociais mais baixos, ainda que as indígenas fossem vassalas do rei. Mesmo que se argumente que tais grupos foram escolhidos por terem maior incidência da doença, tal hipótese, se válida, também pode indicar a precariedade de suas condições de vida. De qualquer forma, tal exemplo evidencia que a condição de vassalos dos índios não os tirava da inferioridade e muito menos os igualava aos brancos. A "animalização" de que fala Perrone-Moisés, presente em "documentos que descrevem sua fereza",15 não se demonstrava apenas em situações de guerra.

13

Do Visconde de Anadia a Bernardo Manuel de Vasconcelos. Lisboa, 1º de outubro de 1802. APEC, GC, livro 48. 14 Cf. ABREU, Jean Luiz Neves. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2011, p. 124. 15 PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Verdadeiros contrários, p. A31-A32.

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Latente em sua própria natureza, os impedia de usufruir de uma completa autonomia e de se livrar do trabalho compulsório, mas era, sem dúvida, bem mais enfatizada pelos representantes da Coroa em situações de conflito. Uma “desordem” promovida por índios na vila de Monte-mor Novo em janeiro 1811 foi descrita pelo governador Barba Alardo de Menezes como tendo sido originada pela “embriaguez e de mal-entendidas diligências que podem ser causas de fugas dos mesmos índios”. Para evitar maiores distúrbios, solicitou ao diretor José Severino de Vasconcelos que remetesse “presos os principais cabeças”, executasse a “segura arrecadação de todos os arcos e flechas” e estabelecesse “rondas noturnas e de dia, a fim de evitar por esse modo os insultos, roubos e abusos das armas proibidas”. Sem detalhar as causas do ocorrido, Menezes enfatizou o que entendia como limitação da mentalidade dos indígenas, raiz não só da persistência de práticas bárbaras e ancestrais – desde a embriaguês como o uso dos arcos e flechas apreendidos – mas também da sua incapacidade de compreensão das “diligências”.16 Em outro ofício encaminhado ao juiz ordinário da vila, o governador tratou do “motim dos índios sucedido a 5 do mesmo mês, e que felizmente se remediou pelo incansável zelo de vossas mercês”. Fez referência ao diretor e à ordem que havia lhe enviado, reforçando-a para que examinasse “a verdadeira origem da referida desordem” e que não ficassem “impunes seus autores”. De um texto para o outro, a linguagem muda de acordo com o destinatário. O diretor, fazendo parte daqueles que eram geralmente apontados como ambiciosos e violentos com os índios, não recebeu o mesmo tratamento que o juiz. Apenas a este Menezes escreveu estas palavras acerca da condição dos nativos e de como deveriam ser tratados:

"Esta infeliz nação tem alguma desculpa pela sua ignorância e, quando conhecem o erro, se fazem sempre dignos da nossa indulgência. Os soberanos todos sempre os protegeram, por terem sido os primários senhores deste continente, e se os diretores fossem mais cuidadosos na sua educação eles certamente seriam mais discretos e dóceis de que são".17

Os diretores, enfim, são diretamente apontados como o impedimento à devida civilização dos povos indígenas, “primários senhores deste continente”. Seguindo as “benevolentes” orientações da Coroa portuguesa, Menezes explicou a causa dos erros dos índios pela falta da proteção e educação prevista pela lei. Por conta de sua “ignorância”, os

Do governador Luiz Barba Alardo de Menezes. “Registro do ofício dirigido ao sargento-mor José Severino de Vasconcelos diretor de Monte-mor o Novo”. Fortaleza, 19 de janeiro de 1811. APEC, GC, livro 40, p. 122. 17 Do governador Luiz Barba Alardo de Menezes. “Registro do ofício dirigido ao juiz ordinário da vila de Monte-mor o Novo, em resposta da [?] que deu do motim que houve dos índios da dita vila”. Fortaleza, 19 de janeiro de 1811. Ibid., p. 123. 16

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castigos deveriam ser direcionados no sentido de alcançar a sua docilidade, que enquanto não fosse atingida, estariam fadados aos erros, à barbárie e à desordem. Naturalmente incapazes, seriam nada mais que uma “infeliz nação”. Tal maneira de caracterizar as ações dos índios, enquanto “desordens” ou “motins”, deixava muitas vezes escapar o sentido político dos grupos na luta por seus interesses. O que era prescrito por lei, onde a liberdade, o bem-estar e o poder de organização indígena deveriam ser respeitados, não representava por completo a tradição dos governos em lidar com essa população. Para os índios, a fuga para os matos ou o uso de arcos e flechas eram sempre possibilidades que também se mesclavam com o sentimento de ser súdito da Coroa portuguesa e por meio dela requerer seus direitos. Longe de ter reações desarticuladas, infantis e puramente violentas, os indígenas buscavam a garantia de benefícios para si. Tentavam em diversas ocasiões agregar resistências, na manutenção de mercês ou costumes ancestrais, à adoção de elementos que lhes garantissem a posição de súditos lusitanos. Era na monarquia que as lideranças indígenas das vilas viam proteção, especialmente contra aqueles que exploravam sua força de trabalho e usurpavam suas terras, demonstrando gratidão pelas mercês que recebiam e fidelidade pelas Coroas portuguesa e brasileira. Nas diversas situações de embate bélico que movimentaram a primeira metade do século XIX vários são os exemplos dessas manifestações, como vimos anteriormente. O único registro escrito por índios que encontramos acerca dos conflitos pernambucanos de 1817 foi um ofício assinado por 82 pessoas naturais de Vila Viçosa, entre oficiais e soldados, encabeçados pelo capitão-mor Ignácio de Souza e Castro, “genuflexos aos pés de Vossa Majestade com a maior humildade e respeito devido”. Escrito no mês de julho, após o final dos embates, destacaram a “inteireza, retidão, prudência e sabedoria” de Manoel Ignácio de Sampaio, que governava o Ceará desde 1812, “deixando a todos os seus súditos, vassalos de Vossa Majestade, em tudo bem satisfeitos, pela sua economia de governo”. 18 Em tom contrário a opositores liberais da época, que caracterizavam o governador como um homem tirano e perseguidor19, os índios descreveram-no como um “fidelíssimo defensor dos direitos reais, como para o bem público e comum desses colonos”. Isso se explica porque, mesmo sendo conhecido seu combate contra a vadiagem – atingindo muitos índios comuns – os autores do ofício eram lideranças que compactuavam com os planos reais, e reconheciam 18

Abaixo-assinado de Ignácio de Souza e Castro e demais índios de Viçosa a dom João VI. Vila Viçosa, 31 de julho de 1817. AN, AA, IJJ9 518. Salvo indicação em contrário, as próximas citações pertencem a esse documento. 19 Cf. TAVARES, Francisco Muniz. História da revolução de Pernambuco em 1817. Recife: Imprensa Industrial, 1917, p. 76.

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os esforços de Sampaio em enfrentar, com igual vigor, os abusos que sofriam dos proprietários que alugavam sua mão-de-obra.20 Os elogios dos índios continuaram, listando os serviços de Sampaio pela capitania: havia "fortificado aquela praça do Ceará Grande com um formoso e bem fundado baluarte", disciplinado as tropas de linha e milicianas e removido qualquer sinal de rebelião. Em seu combate à revolução, extinguiu os "perversos das desgraças capitanias do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco", instalou presídios pela costa e "aprontou e fez marchar tropas para a defesa da Coroa de Vossa Majestade". Os índios de Viçosa não chegaram a se juntar aos de outras vilas e participar dos conflitos nas fronteiras, mas, numa demonstração de ardente lealdade, disseram ter ficado inquietos

"pelo ardente desejo que tinham todos de pegar em armas, derramar a última gota de sangue, e dar a própria vida por Vossa Majestade, com aquele mesmo zelo de dom Felipe de Souza Castro, de quem o capitão-mor representante é descendente em próximos graus".

O apoio manifestado ao rei, sempre acompanhado da lembrança da lealdade de seus antepassados, é semelhante ao que escreveram, anos antes, os mesmos índios que buscavam a anulação do Diretório. Tal maneira de se posicionar nos revela como identificavam seu lugar no império e de que forma podiam agir politicamente. Colocavam-se como diferentes dos "bárbaros gentios", não se referiam a si próprios a partir dos antigos etnônimos, e sim, pelos seus nomes em português, pelas vilas de onde eram naturais, por suas patentes e pelos feitos de seus antecedentes, com destaque à figura de dom Felipe de Souza e Castro, importante chefe militar indígena dos setecentos.21 Era sinal do caráter familiar, observado por Lígio Maia, da constituição de lideranças e de grupos de índios privilegiados no Antigo Regime.22 Atestavam sua posição de fiéis vassalos também quando elencavam as qualidades do "reto governador", que atendia a "todos os seus súditos", inclusive aos índios. Castigava os maus, distinguia os bons e nada lhe era oculto, com "grandes e vantajosas utilidades aos moradores desta capitania", e caso fosse removido para outro lugar, sua ausência provocaria "grandes danos pela falta do bom regime que a todos é profícuo". Pediram ao rei, ao fim do abaixo-assinado, que conservasse por mais anos o governador na capitania, e que ouvisse os

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Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (18121820). Teresina: EDUFPI, 2015, p. 81. 21 Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e identidade no Ceará colonial – século XVIII. Tese (doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 241 e 274. 22 Ibid., p. 277.

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"rogos, deprecações e súplicas destes fiéis vassalos que sempre têm sido felizmente protegidos por Vossa Majestade, e mais soberanos seus ascendentes". É difícil saber se as lideranças de Viçosa tiveram conhecimento da resposta negativa de Manuel Ignácio de Sampaio a respeito de seu grande requerimento que pedia a abolição do Diretório. Contudo, a posição de complacência do governador com os abusos sofridos pelos indígenas não ficou restrita ao ofício encaminhado ao rei: Sampaio sempre se mostrou um devoto representante dos desígnios da Coroa, inclusive no que dizia respeito ao trato com os vassalos indígenas, protegendo-os de eventuais exploradores ainda que fossem poderosos donos de terra.23 Para os índios, portanto, exaltar as qualidades de Sampaio (talvez como uma tentativa de conquistar a atenção do governador ao que requisitaram anos antes) e ressaltar sua fidelidade ao rei faziam parte de uma mesma expressão diante de soberanos, vistos como sempre garantidores de suas mercês e posições sociais. Além disso, confirmar antigas leis era tentar fazer das mercês caminhos para conseguir satisfazer os interesses de suas comunidades. Como foi visto, dom João VI se mostrou atencioso ao grande requerimento de 1814 e não ignorou a atitude dos índios durante os conflitos em 1817, premiando-os dois anos depois com isenções de impostos, seguindo o conselho de Sampaio e estreitando ainda mais as relações de devoção. Em pouco tempo o decreto já havia chegado ao conhecimento das comunidades indígenas no Ceará, através de ordens encaminhadas pelo governador aos diretores de índios24 e às câmaras municipais, inclusive às de brancos com povoações indígenas, como era o caso de Aquiraz.25 Percebe-se que as manifestações indígenas não eram uma via de mão única: suas demonstrações de respeito e submissão eram acompanhadas da expectativa de que fosse respeitada sua condição de vassalos. Dificilmente o retorno de respeito era conseguido das autoridades locais, e aos índios restava lutar em nome da Coroa, a ela recorrendo como um dos seus poucos refúgios de proteção, e exigir serem tratados como as leis recomendavam. Por exemplo, durante os conflitos de Maranguape, tropas foram mobilizadas para abafar os revoltosos indígenas e tiveram a vila de Arronches como base de operações, cuja corporação de índios foi acionada. Durante a estada de milicianos na localidade, por razões que não ficam claras na documentação, o “capitão, ajudante e alferes índios de Arronches foram asperamente repreendidos e advertidos”, mas disseram que o diretor José Agostinho Pinheiro 23

Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 118-133. Circular de Manuel Ignácio de Sampaio aos diretores de índios. Fortaleza, 16 de setembro de 1819. APEC, GC, livro 22, p. 86. 25 Termo de vereação da câmara municipal. Aquiraz, 1º de outubro de 1819. APEC, CM, Câmara de Aquiraz, livro 28, p. 116. 24

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“também havia de ser estranhado, por não ter dado parte” de um acontecimento que tanto os embaraçou. Os oficiais indígenas denunciaram “que os índios tomavam por desfeita o serem os soldados obrigados a andar nus como os selvagens e gentios”, e que “queriam trazer chapéus, e não barretinas de palha”. 26 O registro não explicita quem seriam os acusados, mas fornece informações acerca do entendimento que aquela comunidade tinha de si mesma e do lugar que ocupavam no império. Exigindo chapéus e negando abertamente a comparação com “selvagens”, buscavam se distanciar da imagem muitas vezes a eles atribuída enquanto homens bárbaros. Os “gentios”, inclusive, eram frequentemente lembrados em pedidos de mercês dos índios enquanto referência aos serviços prestados por seus antepassados que os combateram27, assim como fizeram os de Viçosa em 1814. As roupas e apetrechos militares se revestiram da função de sinais diferenciadores e demarcadores da identidade reclamada pelos nativos.28 O diretor geral Pinheiro aparece de forma ambígua, supostamente “amado” durante os eventos de 1817 (como veremos no capítulo 8), “ameaçado” em Maranguape e omisso em Arronches. Mesmo acusado pelos oficiais indígenas – seus subordinados na vila e que lhe deviam obediência – o caso não teve a mesma repercussão que os outros, já que os ofendidos não foram nenhuma autoridade branca, como o diretor ou o vigário. Em 1822, os índios ainda estavam salvaguardados pelo estatuto legal diferenciado característico do contexto pombalino do Antigo Regime português. Sua situação mudou após a independência, e o lugar social que ocupavam foi gradativamente impactado pelas transformações políticas do Brasil e pelas novas dimensões adquiridas com a condição de cidadania.

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De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a José Agostinho Pinheiro. Fortaleza, 17 de setembro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 114. 27 COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 324-329. 28 GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009, p. 48-49, 58-59. MAIA, Lígio José de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social: a inserção da família indígena Souza e Castro nas redes de poder do Antigo Regime na capitania do Ceará. Revista de Ciências Sociais. Fortaleza: v. 43, n. 2, 2012, p. 20. ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina: sociedade, hierarquia e resistência (17511798). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2009, p. 97-98. CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneira da. Cultura com aspas. São Paulo: Cosacnaify, 2009, p. 238. SAHLINS, Marshall. Adeus aos tristes trópicos: a etnografia no contexto da moderna história mundial. In: Cultura na prática. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007, p. 530. BARTH, Fredrick. Grupos étnicos e suas fronteiras, p. 194.

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4.2. "CIDADÃOS SEM A MENOR SOMBRA DE DÚVIDA" O conceito de cidadania não apareceu apenas com a independência do Brasil.29 Já nas Cartas Régias das guerras justas contra os botocudos de 1808, por exemplo, dom João VI previa que os índios que quisessem se aldear seriam "considerados cidadãos livres e vassalos especialmente protegidos por mim e por minhas leis".30 Os índios cidadãos a quem se refere o monarca seriam aqueles que fariam parte do seu corpo de súditos da Coroa lusitana, abandonando os sertões e habitando o convívio civilizado. Seu significado, especialmente no que se referia aos povos indígenas, se transformou de forma substancial nos anos seguintes. Nas Cortes de Lisboa houve debates em torno da redefinição do conceito de cidadania, característicos do momento de crise do Antigo Regime português,31 que continuou com a separação política brasileira. Alguns autores já trataram dos processos de exclusão de diversos grupos sociais e étnicos da categoria de cidadão, como foi o caso dos chamados "gentios". Ainda em 1821, segundo Julio Gómez, a voz do deputado Correa de Seabra se destacou por negar a cidadania tanto aos "tapuias bravios do Brasil" quanto aos "gentios da costa da África", que só poderia alcançá-la através da religião e civilização.32 Após a independência, a Assembleia Constituinte de 1823 passou a discutir os membros da sociedade do novo império. De acordo com Maria Hilda Paraíso, todos os seus moradores seriam brasileiros, por que a constituíam, mas nem todos seriam cidadãos. Para a autora, os índios só teriam cidadania se deixassem de ser silvícolas e abraçassem a civilização, pelo fato de "não gozarem dos cômodos e incômodos de pertencerem à sociedade brasileira, uma vez que não participavam do pacto social que constituíra o Estado e por não estarem

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Segundo José Murilo de Carvalho, à "época da independência, não havia cidadãos brasileiros, nem pátria brasileira". Para o autor, no período colonial, não "havia república no Brasil, isto é, não havia sociedade política; não havia 'repúblicos', isto é, não havia cidadãos", e a "independência não introduziu mudança radical no panorama descrito". CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2014, p. 24, 29 e 31. Não é intenção desta tese discutir a definição de tais termos, ou se os mesmos, partindo de sentidos contemporâneos, "existiam" no contexto estudado, mas analisar as interpretações e operacionalizações dos conceitos a partir dos agentes históricos do período. Sobre o tema, vide também: BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O que significava ser cidadão nos tempos coloniais. In: ABREU, Marta. SOIHET, Rachel. Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009. 30 Carta Régia de 5 de novembro de 1808. Disponível em: . Acesso em: 25 de agosto de 2015. 31 JANCSÓ, Istvan; PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico, ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira. Revista História das Ideias, v. 21, 2000, p. 397. 32 GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil. Studia Historica. Historia Contemporánea, n. 27, 2009, p. 246-247.

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submetidos ou reconhecerem o Império ou sua autoridade já que viviam em guerra com os brasileiros".33

Tal noção de separação fica claramente expressa na fala do deputado Manoel José de Souza França, que dividia a sociedade do império do Brasil entre os cidadãos brasileiros, os brasileiros não cidadãos (como era o caso negros cativos) e os "índios que viviam nos bosques", que nem ao menos brasileiros seriam enquanto não se civilizassem.34 Boa parte das considerações da historiografia sobre o tema reafirma as restrições de pertencimento impostas aos grupos não-aldeados às categorias de brasileiros (sobre a qual não havia consenso) e de cidadãos (estatuto impossível para aqueles que não se submetiam às leis). Muitas vezes, as generalizações podem passar a ideia de que, nesse contexto, absolutamente nenhum indígena era enquadrado assim pelas autoridades governamentais. Entretanto, pouco foi dito sobre os aldeados, oriundos das antigas vilas pombalinas, boa parte deles vivendo ou em contexto urbano ou próximos a propriedades de potentados rurais. Eles compunham a grande maioria da população indígena do Ceará no início do século XIX, não viviam como os bravios, e até faziam questão de se portar de maneira contrária a eles, como vimos há pouco. Não só se submetiam às leis como também as conheciam e delas se utilizavam muitas vezes ao tratarem de assuntos de seu interesse. Como, então, passaram a ser tratados nos primeiros anos do império do Brasil? O que significou ser membro deste novo país? Mesmo que se considere que a proteção aos indígenas não era uma prioridade na formação do Estado nacional brasileiro, estes povos não foram completamente ignorados. Raquel Santos apresenta evidências de que havia índios entre os eleitores do Grão-Pará para a escolha de deputados a serem enviados para Lisboa.35 Cipriano Barata, em sua fala nas Cortes, defendeu que os índios, assim como outros grupos étnicos de cor, também eram cidadãos honrados e valorosos.36 Já em setembro de 1822 a câmara da vila de índios de Monte-mor Novo chegou a receber um "exemplar manuscrito de S.A.R. [Sua Alteza Real] o Príncipe Regente Constitucional e defensor perpétuo do Reino do Brasil aos povos deste

33

PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Construindo o estado da exclusão: os índios brasileiros e a constituição de 1824. Revista Clio, v. 28.2, 2010, p. 13. 34 Cf. SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012, p. 25-26. 35 SANTOS, Raquel Dani Sobral. A construção do estatuto de cidadão para os índios do Grão-Pará (18081822). Dissertação (mestrado) – Universidade de São Paulo, 2013, p. 63-64, 80. 36 Cf. GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados, p. 259; JANCSÓ, Istvan; PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico, p. 437.

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reino".37 Com a Constituição de 1824, ainda que os índios não tenham sido nela citados, a política indigenista do primeiro reinado continuou a distinguir os índios "bravos" dos "civilizados", e estes últimos tinham, indubitavelmente, cidadania. Vânia Moreira apresenta o caso dos indígenas da vila de Itaguaí, no Rio de Janeiro, que sofriam intenso esbulho de suas terras. Foi nessa conjuntura que o próprio imperador dom Pedro I reafirmou que todos os índios nela residentes eram cidadãos, “de acordo com a novíssima Constituição do império".38 Por isso, é preciso cuidado ao tratar dos novos enquadramentos legais, políticos e sociais propostos pelas autoridades nos primeiros anos do Brasil independente. Manuela Carneiro da Cunha afirma que, no Brasil independente, era negado aos índios o direito de cidadania.39 Para Andreia Slemian, nas discussões da Constituinte em 1823, “’súdito’ era entendido como sinônimo de ‘cidadão’, pois que, nesse momento e no âmbito da Assembleia, adentrar à ‘sociedade brasileira’ significava pactuar com o sistema monárquico que se instituía”.40 Por isso, os índios não estariam circunscritos, segundo a autora, no âmbito da cidadania.41 Segundo Fernanda Sposito, "o índio, dentro do império, só poderia ser brasileiro, ou, hipoteticamente, cidadão, se deixasse justamente de ser indígena". Somente a "extinção de sua identidade indígena é que lhe daria direitos um pouco mais igualitários nesse Estado". 42 Mas os índios das vilas do Ceará, por exemplo, eram súditos da Coroa portuguesa havia séculos, e continuaram a ser de dom Pedro I. Ao contrário do que argumentam as autoras, a fundação do Estado nacional brasileiro e a subsequente Constituição não excluíram todos os índios da condição de cidadãos e muito menos da de brasileiros, sem que precisassem deixar de ser indígenas. Se os deputados nas Cortes de Lisboa, em 1821, e na Assembleia Constituinte do Brasil, em 1823, muitas vezes generalizavam ao se referir a uma população tão heterogênea quanto a indígena, não precisamos fazer a mesma coisa. Como vimos no capítulo 2, os índios das vilas cearenses passaram a ser, após a independência e pela lei, súditos de dom Pedro I, cidadãos e brasileiros. No Ceará, tais condições foram operacionalizadas de diversas formas por indígenas e governantes, a partir de interesses próprios e de acordo com os dilemas 37

Termo de vereação da câmara municipal. Monte-mor Novo, de 28 de setembro de 1822. APEC, CM, Câmara de Monte-mor Novo, livro 54, p. 59V. 38 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência – Vila de Itaguaí, 1822-1836. Diálogos Latinoamericanos, n. 18, 2011, p. 10-11. 39 CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Terra indígena: história da doutrina e da legislação. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 63. 40 SLEMIAN, Andréa. Seriam todos cidadãos? Impasses na construção da cidadania nos primórdios do constitucionalismo no Brasil (1823-1824). In: JANCSÓ, Istvan. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, p. 836. 41 Ibid., p. 840. 42 SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 143.

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particulares de cada momento. Durante a eclosão da Confederação do Equador, o então presidente confederado Tristão Gonçalves de Alencar Araripe enviou uma circular em maio de 1824 a todos os diretores de vilas e povoações de índios, para que os mantivessem prontos ao primeiro sinal de guerra.

Nas conjunturas atuais não há brasileiro tão infame que prefira o cativeiro à liberdade, estou certo que os índios, meus valorosos patrícios, não querem ser escravos [...]. Vossa mercê avise aos nossos irmãos dos seus deveres, e plenamente execute o que se lhe ordena.43

Nesse novo momento político do Brasil a "questão identitária envolvia um jogo complexo", nas palavras de André Roberto Machado, onde as afetividades em torno do sentimento pátrio e nacional ainda estavam em intensa disputa,44 especialmente durante a Confederação proclamada pelos liberais. Muito provavelmente nem todos compartilhavam as declarações de Araripe, que identificava os índios como brasileiros, patrícios (aqui vinculado a "pátria", e não a "nobreza") e irmãos. Suas palavras, no entanto, indicam um caminho possível por onde seguiu o discurso do governo brasileiro e das províncias, que se acendia ainda mais nos momentos de crise. No mês seguinte, o tom do presidente da província em relação aos índios mudou radicalmente em um ofício ao diretor de Messejana. Para ele, era impossível existir uma "sociedade regular sem religião", que estaria sendo "desprezada pelos índios da diretoria [...], que nem ao menos cumprem com o preceito quaresmal". Reclamava, por fim, que não havia "autoridade eclesiástica nesta província que olh[asse] atentamente para a triste situação desses miseráveis brasileiros, tão ignorantes dos princípios da religião quase como os mesmos selvagens".45 Mesmo que continuasse a chamá-los de "brasileiros", Araripe ainda não se refere aos indígenas de Messejana como cidadãos, talvez por que, em sua ótica, mal vivessem em sociedade. A catequese, presente de maneira fundamental na política indigenista imperial a partir da década de 1840, já era evocada como crucial para a civilização desses nativos, "patrícios irmãos" agora comparados aos "selvagens" e ainda vivendo sob a tutela de um diretor.

43

De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe aos diretores de índios do Ceará. Fortaleza, 18 de maio de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 2, p. 44. Grifo meu. 44 MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo regime português na província do Grão-Pará (1821-25). Tese (doutorado) – USP, 2006, p. 188-190. 45 De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe ao diretor de Messejana. Fortaleza, 4 de junho de 1824. Diário do Governo do Ceará, Fortaleza, 30 de junho de 1824, p. 1. AN, IN, caixa 742, pacote 1. Grifo meu.

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A cidadania só seria associada aos índios no Ceará a partir da década de 30 dos oitocentos, justamente quando o Diretório começava a entrar em desuso. Em sessão de 25 de janeiro de 1830, quando o Conselho Geral da Província sugeriu a supressão das vilas de índios e a inclusão do patrimônio de suas câmaras ao novo Seminário, foram criticadas as opressões que sofriam, "vivendo pelo Diretório sujeitos ao capricho dos ditos diretores, quando aliás devem ser considerados como qualquer outro cidadão".46 Em dezembro do mesmo ano, o deputado Sucupira propôs que o Diretório fosse aplicado somente no que não ferisse a Constituição e, como argumento, chamou os "nativos índios" de "nossos patrícios e concidadãos".47 É preciso que se faça referência ainda ao já citado parecer de 13 dezembro de 1831, onde o Conselho declarou que, por já estar o Diretório em desuso, os índios de Messejana eram "considerados cidadãos brasileiros pela Constituição do império", mas somente outra lei poderia privá-los da garantia criada no Antigo Regime português de isenção de pagamento de foro.48 Curiosamente, em Messejana se deu o oposto do que ocorreu com os índios de Itaguaí. Ali, como relata Vânia Moreira, dom Pedro I os declarou cidadãos e, por isso, sujeitos ao tributo "como qualquer indivíduo de igual posição e qualidade”.49 As diferenças na aplicação e interpretação das leis reforçam mais uma vez o forte caráter local do funcionamento legislativo nos primeiros anos do Brasil independente. Por outro lado, sejam quais fossem os interesses particulares, parecia comum o entendimento de que a extinção do Diretório – declarada por dom Pedro junto ao Conselho de Estado em setembro de 1822 e só praticada no Ceará cerca de 10 anos depois – e a confirmação dos índios "civilizados" como cidadãos do império brasileiro decretava o fim da condição de tutela. Mas, se na vila do Rio de Janeiro o objetivo maior era o aumento da arrecadação por meio dos foros, mesmo que se protegessem as terras dos índios, no Ceará a cidadania só passou a ser associada ao fim do regime tutelar pelo governo justamente com o objetivo de facilitar a invasão das propriedades desses "miseráveis brasileiros". Não por coincidência, tais intentos também foram propostos pelo Conselho Geral de Pernambuco em 1833, que pretendia extinguir os aldeamentos da província e tornar os índios cidadãos, como mostra Sposito.50

46

Representação do Conselho Geral da Província. Fortaleza, 25 de janeiro de 1830. ATAS do Conselho Geral da Província do Ceará: 1829-1835. Fortaleza: INESP, 1997, p. 164. 47 Proposta de José Ferreira Lima Sucupira. Fortaleza, 6 de dezembro de 1830. Idem, p. 165-166. 48 Parecer do Conselho Geral da Província. Fortaleza, 13 de dezembro de 1831. Idem, p. 171. 49 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência – Vila de Itaguaí, 1822-1836, p. 11. 50 SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 100-101.

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Para Moreira, a atribuição aos índios das condições de brasileiros e cidadãos constituía muitas vezes um "procedimento de 'cima para baixo', de acordo com os interesses das elites nacionais e locais", cujo processo poderia ser mais ou menos forçado. Foi imposta aos índios uma transição autoritária e radical do Antigo Regime para a nova ordem: se antes acumulavam "diferentes noções de pertencimento, identidades e lealdades – especialmente a de índios, cristãos e súditos do reino", com a independência, passaram a assumir a classificação de cidadãos brasileiros. O novo estatuto era utilizado pelos governos provinciais como argumento para que os índios perdessem antigos privilégios ou para que o “direito coletivo de domínio sobre as terras dos aldeamentos” fosse mais facilmente usurpado, nem sempre proporcionando “vantagens compatíveis às perdas sofridas".51 A contraditória “igualdade” na cidadania era também imposta e, algumas vezes, dispendiosa e prejudicial aos índios: a respeito da abertura de uma estrada geral em maio de 1824, por exemplo, o presidente Araripe declarou que os nativos de Arronches, por serem "proprietários das terras deste termo", deveriam "abri-la com os foreiros, sem que antevenha despesa da nação".52 Pelo menos neste caso, fazer parte da comunidade nacional em condições de igualdade aos demais cidadãos não os isentava de serem onerados. Em contrapartida, os índios que viveram este período tinham suas próprias concepções e prioridades. Beatriz Perrone-Moisés nos convida a "buscar os termos ameríndios da política, pois os termos de que dispomos deitam profundas raízes num campo radicalmente diferente daquele que nos propomos a explorar".53 Mas além de possuir uma terminologia própria, calcada em culturas e formas de ver o mundo muitas vezes intraduzíveis, os povos indígenas, especialmente os aldeados do século XIX, também operacionalizaram os novos conceitos e estatutos jurídicos a partir de suas demandas. Para Andreia Slemian, o pacto constitucional não era letra-morta, pois existia “uma efetiva pressão de distintos setores da sociedade” que encontravam “novas formas de reivindicação de seus anseios às novas instituições então criadas, sobretudo após a independência”. Neste contexto, as relações entre Estado e sociedade civil não eram unilaterais, apenas “de ‘cima’ para ‘baixo’”.54 O caso dos índios no Pará apresentado por André Roberto Machado é significativo nesse sentido, já que, para eles, o reivindicar-se "brasileiros" era menos se opor aos europeus 51

MOREIRA, Vânia Maria Losada. Deslegitimação das diferenças étnicas, "cidanização" e desamortização das terras de índios: notas sobre liberalismo, indigenismo e leis agrárias no México e no Brasil na década de 1850. Revista Mundos do Trabalho, v. 04, 2012, p. 83. 52 De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe à câmara de Arronches. Fortaleza, 22 de maio de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 2, p. 55V. 53 PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Bons chefes, maus chefes, chefões: elementos de filosofia política ameríndia. Revista de Antropologia (USP), v. 54, n. 02, 2011, p. 877 54 SLEMIAN, Andréa. Seriam todos cidadãos?, p. 833.

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a partir de uma identidade coletiva com os brancos nascidos na América e mais deslegitimar as práticas que os obrigavam ao trabalho compulsório.55 Já os membros da comunidade indígena de Itaguaí analisada por Vânia Moreira, por sua vez, chegaram a se entusiasmar em 1824 por se tornarem cidadãos e pela cobraça do foro. Citando o §1º do art. 2º da Constituição se diziam também livres de tutela: revertiam, portanto, o quadro de prejuízos advindos com a cidadania ao se apropriarem do vocabulário político da época de acordo com seus próprios interesses.56 Outro exemplo foi o dos índios de Nova Almeida, no Espírito Santo, analisados por Francieli Marinato. Queixando-se de serem forçados a trabalhar longe de suas terras e da falta de pagamentos, clamaram em requerimento ao governo da província “por seus direitos ofendidos”, tendo a “honra de se denominarem ‘cidadãos brasileiros’”.57 No Ceará um caso peculiar se deu com os índios de Monte-mor Velho, que haviam sido transferidos à força para Messejana em 1826 por meio de uma manobra política de autoridades de Aquiraz, ambiciosas em ocupar suas terras. Angustiados com o despejo, as lideranças José Francisco do Monte, Manuel Batista dos Santos, Policarpo Pereira de Freitas, Manoel Batista de Oliveira, Anselmo Pereira Lopes, Estevão Pinheiro da Rocha, João Francisco Pereira "e mais índios naturais de Monte-mor Velho", denunciaram em 1831 ao recém-coroado dom Pedro II aquilo que consideravam uma "infração da Constituição do império, que no título 2º, artigo 6º, os declara cidadãos sem a menor sombra de dúvida, porque são nascidos no Brasil, e são ingênuos: logo assim devem gozar todos os direitos que a Constituição garante aos cidadãos"

Citaram também o §6º do art. 179, que garantia a "conservação ou saída do Brasil, guardados os regulamentos policiais, e salvo o prejuízo de terceiro", sendo "claro que nenhum cidadão brasileiro pode ser obrigado a morar em certos e determinados lugares". Fizeram referência ainda ao §22 do mesmo artigo, que assegurava o "direito de propriedade em toda sua plenitude". Entendiam, portanto, que jamais poderiam ter sido "forçados a largarem suas casas, os seus sítios, e as suas terras para serem exilados sem processo, sem sentença, despótica e arbitrariamente". Após os argumentos, concluíram sua solicitação:

"Como felizmente o Brasil colocou no seu trono um monarca brasileiro, que fará a felicidade do solo que o viu nascer, [...] requerem os suplentes à Vossa Excelência que lhes conceda licença para se retirarem a seus lares, levando consigo a imagem 55

MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 190 e 225. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência – Vila de Itaguaí, 1822-1836, p. 11-12. 57 MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce (Espírito Santo, 1824-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2007, p. 219-220. 56

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de Nossa Senhora da Conceição: daquela matriz, que também se acha exilada na matriz de Messejana".58

Impressiona a visão que os índios tinham do contexto político em que viviam. Mesmo que o rei fosse apenas uma criança, não deixaram de tocar na "brasilidade" do novo monarca, buscando em sua argumentação uma afetividade patriótica e também religiosa, com a referência à imagem "exilada" de sua matriz de origem. Destaca-se ainda mais o minucioso conhecimento do texto constitucional, demonstrando de forma clara o quão ilegal havia sido sua transferência para Messejana. É provável que o requerimento tenha sido escrito por algum terceiro disposto a ajudar na causa indígena, mas mesmo assim não deixaram de estar bem municiados em seus argumentos através das leis e, principalmente, do novo momento político. E até para que sua solicitação fosse plausível confirmavam sua indubitável adesão à cidadania brasileira, não podendo, por isso, serem retirados de suas terras. Chamam atenção ainda os argumentos utilizados para provar que eram cidadãos brasileiros pela Constituição de 1824: além de nascidos no Brasil eram ingênuos, termo que se referia aos filhos de escravos nascidos livres. Tal identificação possivelmente estava na estreita ligação entre a cultura política e a memória dessas comunidades, associada ao passado de cativeiro de seus antepassados e à liberdade adquirida. Em um período muito próximo, os índios estudados por Moreira haviam se utilizado da Carta Magna brasileira para se mostrarem cidadãos e, por isso, livres da tutela e com direito à posse irrestrita da terra. No Pará, como vimos com Machado, a cidadania brasileira clamada pelos índios também se opunha ao trabalho compulsório. Ainda que os de Monte-mor Velho não tocassem na questão de serem ou não "tuteláveis", sua cidadania, oriunda do estatuto de liberdade historicamente garantido, era condição irrefutável para que não pudessem ser usurpados de suas terras. O Diretório, que em 1831 ainda não havia sido completamente abolido no Ceará, declarava que os índios, mesmo que dirigidos, eram inquestionavelmente livres. Como já abordamos, o fim do regime diretorial em território cearense na década de 1830 ocorreu de maneira danosa para os índios, ao facilitar a usurpação de suas terras. Poucos anos depois, decretos foram promulgados incumbindo os juízes de órfãos de administrarem os bens indígenas, reputando-os, portanto, incapazes, sobre quem o Estado deveria velar.59 Para 58

De José Francisco do Monte e demais índios de Monte-mor Velho a dom Pedro II. Messejana, sem data [julho de 1831]. BN, C-750, 29. Grifo meu. Um ofício do vice-presidente do Ceará José de Castro Silva ao ministro da Justiça Manoel José de Souza França faz referência ao requerimento dos índios de Monte-mor Velho em 28 de julho de 1831. Cf. APEC, GP, CO EX, livro 14. BN, II-32, 24, 9. 59 CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo. Legislação indigenista no século XIX: uma compilação: 1808-1889. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992, p. 25.

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Eunice Durham, tal legislação aparentemente protetora “deve ser interpretada como um recurso retórico indispensável para legitimar o caráter nacional do Estado integrando o índio como súdito sob a ficção da proteção tutelar”.60 Segundo Fernanda Sposito, o ato aponta para "para a condição de tutelados sob a qual eles viviam no Estado Nacional". A diferença em relação ao regime anterior era que não havia mais tantas garantias políticas e territoriais. "Nesse sentido, atenta-se para o fato de que a condição de tutela aos autóctones, embora possa parecer sob a forma de proteção, na verdade configura-se muito mais como uma institucionalização dos danos causados a eles".61 Ainda que seja discutível se isso se tratava de uma condição tutelar, o fato é que, se os índios não podiam administrar seus bens, o decreto atestava a incapacidade indígena. Não por acaso, os juízes por eles responsáveis eram de órfãos. A concretização desses danos a partir da administração dos magistrados se deu de diversas formas, tendo em vista seu comprometimento com os grandes proprietários e sua violenta expansão fundiária. Já próximo a meados do século XIX ganharam força os argumentos governamentais que punham em cheque a própria condição do "ser indígena", transformando-a novamente e facilitando o avanço do processo de usurpação. Não somente a dispersão era usada como recurso discursivo para promover a incorporação dos territórios dos índios,62 mas também a "'mistura' [...] desembocaria na ideia de assimilação, na transformação do índio em não-índio". Como contam Dantas, Sampaio e Carvalho, ao apresentar insistentemente a população indígena como dispersa e mestiçada, as autoridades regionais visavam, "mediante a mistura de raças e culturas", descaracterizar "os sujeitos de direitos históricos, dentre os quais o mais relevante era a posse da terra".63

60

DURHAM, Eunice Ribeiro. O lugar do índio. O índio e a cidadania. São Paulo: Comissão Pró-Índio/SP, Editora Brasiliense, 1983, p. 14. Entretanto, diferente do afirma a autora, a tutela não necessariamente excluía a cidadania, como vimos acima no caso dos índios de Monte-mor Velho. Cf. Ibid., p. 16. 61 SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 99-101. 62 Como vinha sendo levantada desde pelo menos a década de 1820. 63 Resultado do convívio entre os brancos, efetuado no plano biológico e cultural, o apelo à miscigenação como elemento diluidor "se exacerba no decorrer da segunda metade do século", relacionando-se diretamente "com o conjunto de dispositivos jurídicos, que, a partir da Lei de Terras (1850), disciplina a propriedade fundiária no Brasil". DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos indígenas no nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP: 1992, p. 451-452. O ápice desse momento no Ceará foi o famoso "Relatório da Extinção", quando em 1863 o então presidente Figueira Junior declarou não mais haver índios na província, a partir de um critério de indianidade que restringia a própria definição do "ser indígena". Cf. XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos": dinâmicas das relações sócio-culturais dos índios do termo da Vila Viçosa Real – século XIX. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 167-169. SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. O Relatório de 1863: um documento, muitas leituras. In: Anais do XXV Simpósio Nacional de História, simpósio temático 36: Os Índios na História. Fortaleza: 2009, p. 10.

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As controvérsias em torno da relação entre a mestiçagem e a manutenção de direitos originários indígenas vieram da década de 1840. Em fevereiro de 1844, o presidente do Ceará, José Maria da Silva Bittencourt, respondeu ao subdelegado de Almofala, Luiz Antônio Gama, a respeito de um ofício em que perguntava

"se os filhos legítimos ou naturais de índios ou índias com mistura de branca, cabra ou negra devem ser considerados como índios, e com direito a vantagens que são a estes concedidas por lei; cumpre-me dizer-lhe que, na conformidade das leis de 10 de setembro de 1611, 1º de abril de 1680 e 6 de junho de 1755 devem ser reputados por tais e com direito às referidas vantagens, com a única exceção dos que procederem de ventre cativo".64

O registro não esclarece a origem do conflito ou que vantagens seriam essas, mas pelo conteúdo da legislação citada (que proibia a escravização indígena, a não ser por guerra justa, e confirmava a liberdade dos índios) se infere que teriam a ver com o usufruto de sua mão-deobra. A questão do trabalho compulsório, portanto, não necessariamente se opunha ao evidente destaque do avanço sobre as terras indígenas, tendo em vista que aquela população desapropriada poderia se converter em força de trabalho barata aos potentados e ao Estado. A diminuição dos índios registrados em livros de batismo e sensos populacionais na segunda metade do século XIX, notada por Fátima Lopes e Maico Xavier,65 não era exclusivamente um sinal da mestiçagem ou "desindianização" da população: o discurso da "mistura" também servia a interesses econômicos e fundiários. Com coloca Carlos Guilherme do Valle, mesmo com o fim dos aldeamentos, as "terras deveriam continuar legalmente para usufruto e subsistência dos índios e seus descendentes, pois não tinham abandonado o lugar onde habitavam tradicionalmente", assim como esclareceu o presidente Bittencourt. A pergunta do subdelegado Gama reflete o contexto de desrespeito generalizado a essas e outras garantias, "já que a definição de um sujeito de direito dependia evidentemente de assertivas culturais e posições políticas, menos de um critério legal exclusivo e absoluto". O que estava em jogo – quando se debatia o estatuto jurídico das terras de aldeamento, a validade das leis e mercês antigas e se os "misturados" tinham acesso

64

De José Maria da Silva Bittencourt a Luiz Antônio Gama. Fortaleza, 28 de fevereiro de 1844. APEC, GP, CO EX, livro 65, p. 7V. 65 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índio do Rio Grande do Norte sob o Diretório pombalino no século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 442. XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", 198-223.

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a elas – era a ontológica questão se "as autoridades reconheciam ou não a presença de índios no Ceará".66 Acerca dessas "culturas de contato" que se formaram ao longo da história do Ceará e do Brasil, oriundas da convivência cada vez mais intensa dos índios com outros grupos étnico-sociais, Maria Sylvia Porto Alegre relaciona-as com a flexibilidade, fluidez e capacidade dessas comunidades em continuarem existindo e, algumas vezes, permanecendo em seus lugares de origem.67 A desenvoltura desses grupos em lutar e se articular politicamente, no entanto, não se manifestava apenas pela mestiçagem, e a própria pergunta do representante da política de Almofala tem provável origem da mobilização dos índios. Como mostra do Valle, a documentação do período entre as décadas de 1850 e 1870 é repleta de exemplos de "representações" de comunidades que lutavam por seus interesses, 68 a partir de definições próprias dos direitos que tinham e do que para elas significava "ser indígena".

4.3. ATACÁ-LOS COM BRANDURA, MATÁ-LOS COM PRUDÊNCIA Os chamados "gentios"69 foram os que mais despertaram o interesse da historiografia sobre a primeira metade do século XIX. Protagonistas das conhecidas cartas régias de guerra justa, eram importantes obstáculos aos projetos de expansão das fronteiras internas, ocupação de novas áreas para plantio e construção de rotas de circulação. Apesar da ofensividade com que agiu o governo imperial português, especialmente a partir de dom João VI, as recomendações de tratamento dessas populações e a forma como eram classificadas pela Coroa também tiveram variações profundas. Uma delas estava na importância estratégica da região que ocupavam para a economia e política lusitanas. Como já vimos no primeiro 66

VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX: um exercício de antropologia histórica. In: VALLE, Carlos Guilherme do. SCHWADE, Elisete. Processos sociais, cultura e identidades. São Paulo: Annablume, 2009, p. 56. 67 PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Aldeias indígenas e povoamento do Nordeste no final do século XVIII: aspectos demográficos da “cultura de contato”. In: Anais do XVI Encontro Anual da ANPOCS, GT História indígena e do indigenismo. Caxambu: 1992, p. 17. 68 VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX, p. 64. 69 Entre os séculos XVIII e XIX, o significado de “gentio” ia desde “idólatra” a “bárbaro”. Cf. BLUTEAU, Rafael. SILVA, Antônio de Moraes. Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: Oficina de Simão Tadeu Ferreira, tomo I, 1789, p. 658. PINTO, Luiz Maria da Silva. Dicionário da Língua Brasileira. Ouro Preto: Tipografia de Silva, 1832. No Ceará do final dos setecentos e início dos oitocentos, o vocábulo era utilizado bem mais no seu sentido civilizatório do que religioso, tendo em vista que se referia a povos não-aldeados, mas que já haviam passado por longos anos de catequese, não sendo, necessariamente, “pagãos”. Como veremos a frente, o bispo Azeredo Coutinho chama-os “índios bárbaros”, e não “idólatras”. Emprego o termo “gentio” não como uma forma de reproduzir os preconceitos das fontes trabalhadas, mas para distingui-los dos chamados “índios” ou “indígenas”. Estes, por sua vez, tratavam-se de povos diferentes e que, em suas próprias manifestações, não se identificavam com os primeiros. Além disso, é difícil saber os termos que os próprios gentios usavam para se identificar.

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capítulo, onde foi aplicada a Carta Régia de 1798 os recém-descidos estavam sujeitos à tutela dos juízes. A necessidade de um texto legal que tratasse, entre outros assuntos, de uma nova política de descimentos – com o enfrentamento, controle e aproveitamento dos gentios – já indica a postura que passou a ter o império lusitano com as áreas a serem exploradas, com o pretendido desenvolvimento comercial e com os grupos que lá habitavam. Segundo Marco Morel, o próprio foco territorial das Cartas Régias contra os botocudos indica o deslocamento do eixo de poder no Brasil para o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.70 Os etnônimos mais frequentes em território cearense eram os oés, umãns, xocós e quipapáz, habitantes da chapada do Araripe, região do Cariri. Sua situação e a de outros grupos que viviam nas fronteiras entre Ceará, Pernambuco, Paraíba e, provavelmente, também o Piauí71 era bem diferente da dos chamados "botocudos" dos sertões do leste por conta do que essa região representava para os planos imperiais portugueses. De acordo com os resultados preliminares da pesquisa de Ricardo Pinto Medeiros e Demétrio Mutzenberg, a "presença e circulação de etnias não aldeadas do semiárido", em um espaço bastante vasto ao longo do século XVIII, indicam que “esta região ainda não havia sido completamente conquistada pelos colonizadores".72 Para Carlos dos Santos Junior, a presença desses grupos na primeira metade do XIX nessa região se explica pela desorganização do trabalho missionário sob o regime do Diretório e da exploração de sua mão-de-obra. Com a expansão da pecuária, os proprietários passaram a disputar com os índios o acesso às escassas fontes de água doce.73 Este "vazio" na conquista territorial perdurou por mais tempo, atravessando os oitocentos, como ficou registrado pela documentação, o que significa dizer que os interesses imperiais portugueses e brasileiros na exploração econômica dessa zona de fronteira eram bem menores. Por isso, as soluções para os eventuais conflitos ocorridos entre gentios, vaqueiros e proprietários se davam de maneira localizada, envolvendo, quando muito, os governos das capitanias e províncias. 70

MOREL, Marco. Apontamentos sobre a questão indígena e o mosaico da população brasileira em 1808. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 169, n. 439, 2008, p. 282. 71 O mapa etnográfico de Curt Nimuendajú indica a presença do etnônimo "kariri" no Piauí, próximo à fronteira com Pernambuco e a Bahia. Cf. Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes adaptado do mapa de Curt Nimuendajú (1944). Brasília: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1980. Os xocós aldeados na Cachorra Morta na década de 1850 empreendiam constantes fugas, algumas vezes para o adentrando o território piauiense. Cf. VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX, p. 58. 72 MEDEIROS, Ricardo Pinto. MUTZENBERG, Demétrio. Cartografia histórica dos povos indígenas em Pernambuco no século XVIII. Clio Arqueológica, v. 28, n.º 2, 2013, p. 10 e 14. 73 SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco: historiografia, legislação, política indigenista e os povos indígenas no sertão de Pernambuco (1801-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2015, p. 77.

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As relações que os grupos estabeleciam com a sociedade colonial eram, assim como ocorria em outras regiões do Brasil, flexíveis e flutuantes. As situações de tensão com moradores dos sertões eram intercaladas com períodos pacíficos, e não se conhece qualquer ação ofensiva de grande porte organizada por parte do governo imperial português contra eles. Houve inclusive momentos de aproximação por iniciativa dos próprios gentios, como quando o bispo José Joaquim de Azeredo Coutinho – entusiasta das virtudes e defensor dos índios do Brasil74 – intermediou uma ação dos "índios bárbaros dos sertões de Pernambuco e do Ceará", que depuseram suas armas aos pés do rei "em sinal da sua obediência e da sua fidelidade". Através de uma carta escrita entre 1802 e 1806, o bispo conta que aqueles gentios, "restos dos antigos bárbaros", já haviam sido sujeitos à dominação de Portugal, mas se rebelaram novamente.75 Quando chegara ao bispado, em 1794, recebera pedidos de comandantes locais para fazer a guerra contra eles, ao que se negou por acreditar que "o único meio que há para domálos são as armas da beneficência e caridade, que formam o caráter e a base da nossa santa religião". Carlos dos Santos Junior conta que em 1801 foi organizada uma “’bandeira’ para extinção do ‘gentio’” pipipã e xocó nas ribeiras do Pajeú, Moxotó e riacho do Navio, próximos à fronteira com o Cariri cearense. Segundo o autor, por mais que o governo recomendasse bons tratamentos, as bandeiras “não perderam o seu caráter violento, pois aqueles que as executavam eram homens experimentados em combates com os índios desde meados do século XVIII”.76 Por isso, o bispo organizara uma missão de catequese liderada pelo missionário barbadinho italiano frei Vital de Frescarolo, "de uma grande utilidade para Igreja e para o Estado, [...] feita sem derramar nenhuma gota de sangue". Por meio de uma carta do religioso de 1802 soubera que os índios deram como motivo da rebelião os maus tratos que vinham recebendo de moradores havia mais de 20 anos, "que até os fizeram recolher em um pátio debaixo do pretexto da religião, [e] os fizeram passar a espada". Os povos a que se refere Coutinho, "ainda que poucos em número", eram "restos de quatro diferentes nações bárbaras" que viviam em revoltas e fugas, levando armas e bagagens, "queimando searas e plantações, sem perdoar nem ainda as vidas mais inocentes". O temor do bispo era tamanho que chegou a fazer referência a Santo Domingos, que acabara "de dar ao 74

Cf. SIQUEIRA, Antônio Jorge. Bispo Coutinho e o Clero ilustrado de Pernambuco na Revolução de 1817. Revista Brasileira de História das Religiões, ano V, vol. 14, 2012, p. 164. 75 CARTA do bispo d. José Joaquim de Azeredo Coutinho sobre os índios da capitania. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart, tomo XI, 1897, pp. 124-128. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento. 76 SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco, p. 82-84.

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mundo um exemplo terrível destas surpresas", e se os índios não fossem logo contidos serviriam de "ponto de ajuntamento e apoio a negros fugidos e ainda dos brancos descontentes". A intenção do bispo, portanto, era que a Coroa aceitasse a iniciativa de aproximação dos indígenas, que renderam armas e ofereceram "os pobres trastes de seu uso e de seus enfeites, que consistem em uma coberta, um par de sandálias e dois alforjes fabricados por eles mesmos, e duas pedras de tintas a que chamam tauá, com que se pintam ao seu modo". Ao fim da carta, rogou ao rei que os pusesse debaixo de sua alta proteção, assinasse terras para cultivarem e fornecesse ferramentas, "ficando, entretanto, conservados debaixo da direção dos ministros da religião até que eles percam as saudades da barbárie, e se façam aos costumes dos povos civilizados". À época em foi escrita a carta, tanto Pernambuco quanto o Ceará seguiam as determinações do Diretório dos Índios, e daí as especificidades do último pedido do bispo. O epíscopo não tinha autoridade para alterar a lei, e por isso não pretendeu acabar com o cargo dos diretores. Contudo, sua solicitação de que os mesmos fossem exclusivamente membros da Igreja indica, em primeiro lugar, sua posição contrária a submeter a administração dos indígenas a leigos – ou seja, moradores com quem viviam historicamente em conflito. Em segundo, havia prováveis ambições do bispado de Olinda de novamente ter mão-de-obra à sua disposição, de forma semelhante do que ocorria antes do período pombalino. Apesar de relações tão tensas, o posicionamento dos gentios não era unicamente de rebeldia: a própria deposição das armas aos pés de dom João VI foi uma busca de proteção contra as investidas que sofriam. Pela oferta de objetos ligados ao seu cotidiano também é possível supor que sua história não se constituía apenas de isolamento com outros grupos, mas também era marcada por encontros intermitentes. Junto com duas pedras tauá, expressão de hábitos ancestrais que ainda perduravam, as sandálias e os alforjes feitos por eles talvez indiquem a influência que receberam desde quando eram sujeitos ao domínio português. Segundo Santos Junior, humãs e oés já haviam passado por aldeamento, tinham nomes em português e até chegaram a receber patentes militares.77 Para o autor, os próprios índios buscavam muitas vezes transformar-se em vassalos do rei de Portugal – conseguindo a proteção da Coroa em relação às bandeiras que sofriam –, como foi o caso da criação da

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SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco, p. 87-88.

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aldeia do Olho d’Água da Gameleira pela qual foram corresponsáveis, junto ao frei Vital de Frescarolo.78 Ou seja, como afirma Bárbara Sommer, a fronteira entre o que era ser aliado ou inimigo, índio ou gentio, era frequentemente atravessada por esses grupos a partir das especificidades das situações que enfrentavam.79 As próprias guerras que eventualmente impetravam não era feita contra o que não conheciam, uma vez que, como aponta PerroneMoisés, muitos desses povos "já haviam passado por experiências de aldeamento e aliança e sabiam, portanto, exatamente contra o quê lutavam".80 Além da missão do frei Frescarolo, localizada em território pernambucano,81 há a indicação, segundo Guilherme Studart, de que em 5 de maio de 1809 o "governo de Pernambuco enviou também frei Ângelo, frade da Penha, [...] para catequizar e aldear os índios xocós, residentes no termo do Jardim".82 Dez anos depois, durante o governo de Manuel Ignácio de Sampaio, foi organizada uma bandeira de ataque aos chamados "gentios do Pajeú", liderada por Gregório do Espírito Santo, proprietário na comarca do Jardim. Formada em resposta aos prejuízos agrícolas sofridos em consequência das incursões desses grupos, chegou ao fim com uma proposta de aldeamento dos próprios gentios, só então chamados pelo governador de "índios".83 A Coroa também buscou formas de aproximação pacífica com esses grupos, como já vimos no capítulo 3 através da provisão da Relação do Maranhão, aplicada também no Ceará a partir de 1815. Pelas suas determinações, os gentios "que estive[ss]em em paz" deveriam ser tratados da mesma "maneira que se observa com todos os outros meus vassalos", em tom oposto ao que foi dirigido aos botocudos.84 As fronteiras entre o "ser selvagem" e o "civilizado" eram tão porosas que a própria monarquia lusitana se dirigia aos gentios como "vassalos em potencial", que poderiam, se O autor destaca que a presença de capuchinhos italianos nos sertões do Pajeú é uma “informação nova, pois o fato conhecido era que o retorno do trabalho missionário de ordens religiosas no Brasil aconteceu na década de 1840”. Cf. Ibid., p. 90-91. 79 SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements: native Amazonians and Portuguese policy in Pará, Brazil, 1758-1798. Tese (doutorado) – University of New Mexico, 2000, p. 174. 80 PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Verdadeiros contrários, p. A32. 81 Cf. INFORMAÇÕES sobre os índios bárbaros dos sertões de Pernambuco: ofício do bispo de Olinda acompanhado de várias cartas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Tipografia Universal, tomo XLVI, parte I, 1883. 82 STUDART, Guilherme. Administração Barba Alardo. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXII, 1908, p. 336. Esta primeira intenção de aldeamento no século XIX não obteve sucesso. Cf. VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX, p. 57. Acerca da atuação dos freis italianos Vital de Frescarolo e Ângelo Maurício de Nisa em Pernambuco, vide: SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco, p. 113-123. 83 Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 360-370. Esta é mais uma prova de que, neste contexto, a fronteira entre o “gentio” e o “índio” estava bem mais na civilização do que na religião. 84 Registro da Provisão e Regimento da Relação da Casa de São Luís do Maranhão. Fortaleza, 20 de março de 1815. APEC, CM, câmara de Fortaleza, livro sem número (1813-1818). 78

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quisessem, se submeter às leis e proteções oferecidas aos súditos portugueses. No caso dos conflitos do tempo do governador Sampaio, bastou um indicativo de aproximação por parte do grupo para que deixassem de ser os "atrevidos gentios do Pajeú" e se tornassem "índios". Segundo Perrone-Moisés, tais categorias mostram que não existia para os colonizadores "índios genéricos", mas grupos “que contracenavam com a presença europeia de modo diverso" e que se alteravam constantemente a partir de suas ações, obrigando, por sua vez, ao projeto civilizador a assumir diferentes feições.85 Como afirma Marco Morel, as situações de confronto conviviam e eram simultâneas a momentos de encontros e aproximações. O autor cita o caso do soldado Raimundo Ferreira de Araújo, desertor da 7ª Divisão do Rio Doce que se refugiou entre os botocudos para não ser punido.86 Também no Ceará houve exemplos semelhantes quando, durante a Revolução de 1817, insurgentes fugitivos se esconderam junto aos gentios,87 concretizando o que alertara o bispo Coutinho. Uma hora faziam guerra, em outra se aldeavam, davam auxílio aos inimigos do rei e pediam sua proteção: as ações aparentemente inconstantes desses grupos revelam a complexidade de sua atuação política, manejando sua imprensada liberdade entre os distintos agentes com quem se relacionavam. Como afirma Jóina Borges, a autonomia indígena sobre um território diante da dominação colonial europeia dependia, sobretudo, das negociações políticas que estabeleciam entre diferentes atores, muitas vezes fluidas e pouco duradouras.88 Nutrindo-se do outro para elaborar seu ser, a máquina social indígena, segundo Guillaume Boccara, também se recriava a partir das variadas situações de contato.89 As relações dos gentios com a sociedade envolvente permaneceu constante com a independência,90 e até se tornaram amenas, de acordo com Morel, diante das tentativas de 85

PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Verdadeiros contrários, p. A31. Interessante sobre essa questão era a classificação de "semi-mansos" atribuída a alguns kaingangs do Paraná, que viviam de forma pendular entre as matas e as vilas. Cf. SOUZA, Almir Antônio de. Armas, pólvoras e chumbo: a expansão luso-brasileira e os indígenas do planalto meridional na primeira metade do século XIX. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, 2012, p. 261. 86 MOREL, Marco. Apontamentos sobre a questão indígena e o mosaico da população brasileira em 1808, 399400. 87 Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 361-362. Em agosto de 1817, após o fim dos conflitos, pipipãs e xocós batizados – e, ainda assim, chamados de “gentio bárbaro” – de Pernambuco atacaram a Vila de Flores. Cf. SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco, p. 97. 88 BORGES, Jóina Freitas. Os senhores das dunas e os adventícios d'além-mar: primeiros contatos, tentativas de colonização e autonomia tremembé na costa leste-oeste (séculos XVI e XVII). Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 257-258. 89 BOCCARA, Guillaume. Antropologia diacrónica. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, 2005. Disponível em: , p. 5. 90 Após a independência, o termo gentio some na documentação aqui analisada, talvez por ser mais próprio do Antigo Regime, e é substituído geralmente pela expressão "índios selvagens". Francieli Marinato encontrou o termo “gentio” em documento do Espírito Santo de 1825 referente aos botocudos. Cf. MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais, p. 125.

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aproximação da então Coroa brasileira, que buscava também por vias pacíficas a integração dos índios à ordem nacional.91 Estes, por sua vez, também iam ao encontro dos não-índios quando precisavam e até se posicionavam diante das novas conjunturas políticas. Exemplo disso foi a estadia de 4 meses dos botocudos em Vitória analisada por Francieli Marinato, exigindo do governo do Espírito Santo sua transferência de aldeamento, e suas constantes relações com os quartéis da região do rio Doce.92 Já os índios do Cariri, assim como se envolveram nos conflitos de 1817 – demonstrando apoio aos liberais que acolheram em seus acampamentos –, há registros de que em 1831 também tiveram participação nos eventos que deram origem à chamada Revolta de Pinto Madeira, que exigia a volta de dom Pedro I ao trono. De acordo com os vereadores do Jardim, após a aclamação de dom Pedro II houve resistência e ameaças de prisões por parte da câmara municipal do Crato, o que provocou a reação de várias pessoas em defesa do novo regime no dia 7 de junho. Entre estes, "uma porção de índios em número de cinquenta, os quais se achavam na vizinhança desta vila dizendo que vinham defender a bandeira do seu rei, e que tinham muita gente de diversas nações, a quem já faziam aviso para se incorporarem". O movimento teria sido acalmado somente após se fazer uma "aclamação do Senhor Dom Pedro II".93 É difícil saber as motivações claras para o apoio dos índios ao novo monarca e o que estava em jogo quando se posicionaram contrários aos liberais do Crato, mas ainda assim sua manifestação revela tanto a capacidade de articulação que tinham com outros povos nativos, que habitavam regiões próximas e seriam por eles convocados, quanto sua percepção do momento político em que viviam. Mesmo não sendo aldeados, consideravam-se vassalos da Coroa e levantaram naquele momento a bandeira do novo rei que chamavam de "seu". Mas, apesar dessa demonstração de fidelidade a dom Pedro II, há um registro de que chegaram a estabelecer contatos com membros do movimento restaurador. Em carta de 3 de julho de 1831 destinada ao capitão-mor do Jardim Pedro Tavares Muniz, o tabelião Venceslau Patrício de Oliveira Castro reclamava de ser acusado de liberal e contava suas pretensões de se mudar para o Icó, por não querer "mais morar nessas nova Lisboa aonde me reputam criminoso só por que amo minha pátria e meus patrícios". Ao final do escrito, disse que um certo Pinto – não esclarecendo se o mesmo seria Joaquim Pinto Madeira, líder da revolta do ano seguinte

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MOREL, Marco. Independência, vida e morte: os contatos com os Botocudo durante o Primeiro Reinado. Dimensões, v. 14, 2002, p. 92-99. 92 MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais, p. 138-139, 171-172. 93 Da câmara da vila de Jardim a José de Castro e Silva. Jardim, 24 de junho de 1831. AN, AA, IJJ9 513.

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em prol do retorno de dom Pedro I ao trono – havia ido "para o Corrente [localidade próxima ao Jardim] a visitar os tapuios".94 A facilidade dos contatos com os índios, a participação deles nos movimentos políticos em diálogo com diferentes lados, e mesmo o conhecimento que tiveram das novidades envolvendo a câmara cratense em 1831 denotam que a presença dos índios nos espaços urbanos das vilas da região não era incomum. É revelador a esse respeito o relato do inglês George Gardner sobre o Crato em sua passagem pela região do Cariri no ano de 1838, cuja população seria composta, em sua maioria, de indígenas ou de seus descendentes mestiços.95 Segundo o viajante, os índios também eram vistos vendendo uma fruta chamada puçá nas ruas da vila.96 Não é possível, entretanto, afirmar com certeza que tais índios descritos por Gardner sejam os mesmos nômades que transitavam nas fronteiras das então províncias do Ceará, Paraíba e Pernambuco. Poderiam ser os próprios habitantes pobres da vila, constados nos censos populacionais e registro de batismos como "mamelucos", "cabras" ou "pardos", descendentes das comunidades indígenas aldeadas no século XVIII na antiga Missão do Miranda que dera origem ao Crato. Por outro lado, apesar de não ficar claro no relato, não se pode descartar também a possibilidade de que tais vendedores de puçá fossem, de fato, silvícolas que negociavam tais produtos oriundos das matas onde viviam, criando gradativamente afinidade com relações comerciais.97 Gardner se refere de forma mais direta aos "selvagens" em seu relato quando fala de duas pequenas tribos de índios não civilizados vivendo no distrito da Barra do Jardim, que iam rapidamente diminuindo em número. Uma delas, chamada de humões, era formada por cerca de oitenta pessoas residindo geralmente a sete léguas a sudoeste da vila, e o outro grupo eram os xocós, em torno de setenta indivíduos localizados a treze léguas para o sul. Segundo o viajante, eram geralmente inofensivos, apesar de terem sido vistos roubando gado em uma 94

De Venceslau Patrício de Oliveira Castro a Pedro Tavares Muniz. Jardim, 3 de julho de 1831. AN, AA, IJJ9 513. Baseando-se em João Alfredo Montenegro, Dantas, Sampaio e Carvalho afirmam que os "índios da vila de Santo Antônio do Jardim, no Ceará, aderiram ao discurso restaurador do padre Antônio Manuel e de Pinto Madeira, integrando-se, em 1832, às fileiras rebeldes de mais um movimento que se batia pela volta de Pedro I ao trono". Cf. DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos indígenas no nordeste brasileiro, p. 448. Entretanto, Montenegro apenas assevera que a revolta foi protagonizada por “populações marginalizadas, formadas por remanescentes indígenas e por mestiços”, e que o “universo cultural dos índios cariris [...] formavam a base sobre a qual se ergueu a organização social daquela gente”. Na verdade, o autor não afirmou e nem apresentou nenhuma prova documental de que os índios participaram dos conflitos. Cf. MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa. A revolta de Pinto Madeira no Ceará: participação dos segmentos sociais marginalizados. In: ANDRADE, Manuel Correia de. Movimentos populares no Nordeste no período regencial. Recife: FUNDAJ, Editora Massananga, 1989, p. 30. A pesquisa para esta tese só encontrou sobre o assunto os dois manuscritos citados. 95 GARDNER, George. Travels in the interior of Brazil. Londres: Reeve Brothers, 1846, p. 186. 96 Ibid., p. 198. 97 De maneira semelhante aos botocudos de 1808 no Espírito Santo estudados por MOREL, Marco. Independência, vida e morte: os contatos com os Botocudo durante o Primeiro Reinado, p. 105-107.

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fazenda vizinha a um local que visitara. Dizia-se que eram sujos nos seus hábitos, que quando lhes faltava comida se alimentavam de cascavéis e outras cobras e que ocasionalmente apareciam na vila.98 A forma como Gardner descreveu a proximidade em que viviam de ambientes urbanos, como Crato e Jardim, faz supor que, pelo menos até então, as relações que os humões e xocós estabeleciam com os moradores da região eram relativamente diferentes do que ocorria à mesma época em outros lugares do Brasil, com constantes guerras e escravizações ilegais.99 Apesar do histórico de conflitos com moradores, das acusações de roubo e das formas depreciativas com que tratavam seus costumes, também eram vistos nas vilas, participaram de movimentos políticos e eram "visitados" por aqueles que precisavam de seu auxílio.100 Outro exemplo da proximidade desses grupos com os moradores das vilas do Cariri foi registrado por Freire Alemão, a partir do relato que colheu da cunhada de Franklin de Lima, que o hospedou em sua passagem por Fortaleza em 1860.101 Segundo ela, seu avô havia sido “capitão de bandeira desses índios” e, como os tratavam “com humanidade”, não atacavam suas reses, “porém fazendo estragos nos gados das fazendas vizinhas”. Costumavam frequentar sua propriedade “e pediam para [festejá-lo] com suas danças, cantos e música, e [disse] a senhora que não deixava de ser coisa engraçada. Andavam todos nus, trazendo apenas uma tanga”. Somente as meninas podiam entrar na casa “pela indecência com que os homens se mostravam”. Elas vestiam tecidos de fios de cruá, “tintos de várias cores”, se enfeitavam com laços de fita da casca da mesma planta e com pinturas no corpo. O relato provavelmente se refere a um período mais ou menos próximo à visita de Gardner pelo Cariri, e atesta que tais grupos não viviam isolados e nem totalmente arredios aos não-índios. Seu modo de vida lhes permitia manter diversos elementos de sua cultura ao mesmo tempo em que estabeleciam uma relação estável com um fazendeiro. Apesar dos detalhes apresentados, várias questões são nebulosas no registro, como o que era a posição de “capitão de bandeira” do avô da depoente ou os motivos das visitas. Para os índios, possivelmente havia expectativas de ganhos de alimentos e de proteção contra outros proprietários. Já o capitão, que os tratava com complacência e hospitalidade, talvez esperasse 98

GARDNER, George. Travels in the interior of Brazil, p. 218. Cf. SOUZA, Almir Antônio de. Armas, pólvoras e chumbo, p. 28-29. 100 O atual distrito de Corrente, localizado no município de Jardim e onde os "tapuios" foram visitados em 1831, se localiza a 82 km ao sul do Crato, com indicação semelhante ao que Gardner apontou como morada dos xocós. Portanto, os mencionados "tapuios" eram, possivelmente, os mesmos xocós descritos pelo viajante inglês. 101 ALEMÃO, Francisco Freire. Papéis da expedição do Ceará. Fortaleza, 23 de maio de 1860. Apud: Anais da Biblioteca Nacional: os manuscritos do botânico Freire Alemão [catálogo e tradução por Darcy Damasceno e Waldir da Cunha]. Rio de Janeiro: Divisão de Publicações e Divulgação, vol. 81, 1961 [1964], p. 313-314. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento. 99

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agregá-los como mão-de-obra. Por exemplo, a declarante ressaltou que as “índias apareciam muitas vezes a casa” e, “sem serem percebidas, mostravam-se de repente entre elas acocoradas”. Duas “indiazinhas” chegaram a trabalhar na residência da família quando esta se mudou para Fortaleza. “uma criou-se muito gordinha, era muito inteligente e servia muito bem, e fugiu de casa [...] provavelmente aconselhada; a outra logo que chegou à casa começou a cobrir-se de um fuá (caspa) e a emagrecer até que morreu, o que foi atribuído a mudança de alimentação”.

Adoeciam com comidas temperadas, e “quando se matava rês”, as duas levavam pedaços “muito satisfeitas, conversando em sua língua, para a cozinha, lançavam a carne sobre as brasas e apenas sapecadas, e sem sal, a devoravam sôfregas. Comiam qualquer qualidade de bichos; era para elas quando apanhavam um calango (lagartinho) uma festa; lançavam-no no fogo inteiro com tripas e o devoravam”.

A realidade dessas índias em Fortaleza nos fornece elementos para analisar as transformações que sua comunidade de origem enfrentava. O diálogo entre as duas na própria língua é mais um exemplo de uma cultura que ainda conseguia, a duras penas, manter diversos aspectos particulares, mas que se degradava, como sugere a própria necessidade de servir a família do capitão como criadas na capital. Nesse período, que correspondia aproximadamente à década de 1840, a crise de mão-de-obra era assunto constante nos relatórios dos presidentes da província do Ceará, que motivou, inclusive, a reativação do Diretório. Com tais dificuldades e evitando gastos com a compra de escravos, era bem menos dispendioso integrar as duas indiazinhas como serviçais. O relato não informa como se deu a negociação com a comunidade indígena para que as duas pudessem ir para Fortaleza. Mas mesmo que esse processo tenha sido tranquilo, por conta da boa relação entre os índios e o capitão, a vida delas na capital certamente piorou bastante. A declarante nem sequer mencionou o nome das “indiazinhas” – provavelmente ainda crianças ou adolescentes – e não demonstrou ter havido qualquer comoção quando uma delas morreu. A outra que fugiu, mesmo que tenha sido “aconselhada” para tal, o fez porque se via insatisfeita, e seu destino foi simplesmente ignorado. Os hábitos alimentares das duas não eram apenas exemplos de “costumes exóticos”, mas denotam que as condições de subsistência da comunidade de onde vieram eram bem precárias, como também observou João Alfredo

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Montenegro.102 Isto se conecta aos ataques ao gado de proprietários mencionado no início do relato, prática que indica a piora de suas condições de vida e o aumento dos conflitos armados.

A pátria agreste e os dissabores da sociedade

A situação desses grupos se encrudeleceu no mesmo período da passagem de George Gardner pelo Cariri, provavelmente simultânea à época descrita no relato registrado por Freire Alemão. O relatório do presidente da província do Ceará João Antônio de Miranda em 1839 abordou a progressiva desolação dessa população, cuja diminuição numérica, já apontada no relato do viajante inglês, era claro sinal da piora de suas condições de vida. Segundo Miranda, esses índios errantes que habitavam próximos às localidades do termo de Jardim, como Macapá (atual Jati) e Carnaúba, faziam "inúmeros prejuízos aos criadores da vizinhança, inclusive os de Pajeú". Nenhum dos esforços feitos para civilizá-los havia logrado resultado, a exemplo da missão do já citado frei Ângelo, enviado em 1809 pelo governo de Pernambuco e que "apenas os pôde conservar por alguns meses em aldeia" na serra da Baixa Verde, assim como algumas iniciativas particulares. O terreno que habitavam não lhes era propício, vivendo de pesca e caças escassas, "chegando apenas para o tabaco, de que são mui apaixonados, o pouco mel e cera que apanham, donde se deduz não haver vantagem alguma que os convide a se aldearem". Recebera informações de que seriam em torno de "vinte e cinco homens de arco, além de mulheres e meninos", mas, por seu agrupamento ser antigo, acreditava que o número deveria ser maior. Lamentando seu destino, acreditava que, por tudo que já passaram e por todas as tentativas de reduzi-los já praticadas, somente a religião era capaz de levá-los à civilização. Eles já teriam a "ideia de um aldeamento, ou de uma povoação", mas, como a "ingratidão dos lugares por onde erra[vam] não tolera[va] sua reunião e seu repouso", e era condenável sua expulsão pelas armas "dessa pátria agreste, que não ousa[vam] trocar pelos dissabores da sociedade", sugeria que o melhor caminho era chamá-los para as proximidades do Jardim por meio de "afagos" e do "evangelho". Mesmo que fosse preciso arcar com grandes despesas para a montagem de uma missão, a situação desses povos era tão dramática que as ações se faziam justas e necessárias. Se sua vida nessa "pátria agreste", ainda que tão rígida, não era

102

MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa. A revolta de Pinto Madeira no Ceará, p. 30.

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trocada, a dimensão dos "dissabores" de viver em meio a sociedade dos não-índios deveria ser bem maior, como reflete Miranda:

"Que importa, porém, senhores, que arranquemos esses infelizes dos sertões em que vagam, se por ventura lhes não oferecermos vantagens que os façam arrepender da permuta? Se hão de vir entre nós passar a vida miserável, que carregam os seus irmãos civilizados, os descendentes de outros índios; se hão de vir ser espectadores e vítimas do desleixo, do abandono, da pilhagem, melhor será então deixá-los entregues à sua vida selvagem, fazendo-os internarem-se por esses extensos bosques, ou tirando-lhes pela força os meios de nos fazerem prejuízos"103

Apesar da aparente empatia do presidente com a difícil situação dos índios, os referidos bosques já não eram mais tão extensos. Segundo Santos Junior, o “acesso à água foi a razão dos muitos conflitos” ocorridos entre índios e proprietários desse sertão na primeira metade do século XIX, em que competiam o controle de ribeiras, riachos, serras e nascentes.104 Mas a aspereza do ambiente em que viviam não vinha apenas do clima ou geografia do lugar: as dificuldades de encontrar alimentos (que os fazia recorrer a cobras e ao pouco mel) e os roubos de gado que eventualmente praticavam – também relatados por Gardner e Freire Alemão – indicam o desmatamento provocado pelo aumento populacional e da extensão das propriedades na região, tendo como consequência a escassez de recursos naturais. Espremidos nos espaços cada vez menores e mais áridos que lhes restavam, o abandono, lamentado por Miranda, não era só relativo à subsistência ou a uma classificação formal de ser ou não vassalo e cidadão. O pessimismo do presidente, inerte diante de um povo que definhava por resistir à lógica de expansão fundiária de proprietários aparentemente mais poderosos que ele, "lavou as mãos" para uma conjuntura que, praticamente, assumiu como sem solução. Declarava, portanto, que não tinha condições de remediar tanto os sofrimentos dos "civilizados" quanto dos "selvagens". Os registros desse período sobre os índios errantes do Cariri são sempre relativos a conflitos com moradores, simultâneos ao avanço nas terras indígenas do lado pernambucano da fronteira,105 e a constante inércia do governo provincial. Três meses antes ao relatório de João Antônio de Miranda, o presidente que o antecedeu, José Felizardo de Souza Melo, escreveu ao juiz de direito do Jardim, João José Gouveia, que lhe parecia "conveniente nada por hora resolver a respeito dos índios de Macapá". A proposta do juiz de transferi-los para 103

MIRANDA, João Antônio de. Discurso que recitou o Exm. Sr. Doutor João Antônio de Miranda... Fortaleza: Tipografia Constitucional, 1839, p. 23-24. 104 SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco, p. 169. 105 Cf. Ibid., p. 196-197.

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Fortaleza era "sumamente dispendiosa", e se continuassem os roubos e os incômodos aos habitantes do termo, o próprio Gouveia deveria tomar "as providências para fazê-los retirar".106 Em mais um exemplo de isenção de responsabilidades, a solução adotada deveria ser, provavelmente, o uso da força pelas autoridades locais. Novas notícias apareceram no mês de setembro de 1842, em ofício do então presidente José Joaquim Coelho respondendo ao líder do governo de Pernambuco, o Barão da Boa Vista, que solicitou auxílio para que fossem batidos os "índios selvagens das nações quissapá [sic], humões e xocós, que se tem assinalado pelas suas sanguinolentas correrias nos limites” destas províncias com a da Paraíba.107 Em dezembro, os conflitos se intensificaram, produzindo novas correspondências de outras autoridades pernambucanas, como do seu chefe de política, pedindo mais providências a respeito "dos índios selvagens das nações quipapá, humões e xocós", que assassinavam "quaisquer pessoas que transitam pelas estradas das Croás e Serra Negra", em Pernambuco e na Paraíba. Como punição, ordenou Coelho que o delegado do Jardim se utilizasse do destacamento da vila e da guarda nacional para "prender os referidos índios, e assegurar a vida e liberdade dos habitantes desse termo". Alertou, contudo, que não queria com tais determinações o "extermínio desses selvagens", e que, em primeiro lugar, deveria ser empregado "os meios da brandura e conciliação que sua prudência lhe sugerir", e caso precisasse "atacá-los e matá-los, deverá fazer com toda a moderação, compatível com o que as circunstâncias permitirem, evitando as crueldades que acompanham algumas vezes atos tais, em que o extermínio abrange homens e mulheres, meninos indistintamente". O objetivo da ação, enfim, era garantir a "vida e propriedade dos habitantes desse município, com o menor derramamento de sangue dos índios, por cuja sorte não deixa esta presidência de interessar-se".108 O resultado das ações para deter as "incursões das hordas selvagens dos quipapaz, humões e xocós no termo do Jardim" foi noticiado no relatório do presidente José Maria da Silva Bittencourt, em junho de 1843. Disse que não passavam de "incêndio de algumas casas de palha, e do roubo e maus tratos de viajantes, com quanto se mostrassem eles mais ferozes nos lugares das províncias de Pernambuco e Paraíba". Mandou-se a guarda nacional, com a recomendação de que agissem por meios brandos, "só devendo usar a força em casos

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De José Felizardo de Souza e Melo a João José Gouveia. Fortaleza, 25 de janeiro de 1839. APEC, GP, CO EX, livro 40, p. 256V. 107 De José Joaquim Coelho ao Barão da Boa Vista. Fortaleza, 5 de setembro de 1842. APEC, GP, CO EX, livro 52, p. 33V. 108 De José Joaquim Coelho ao delegado de Jardim. Fortaleza, 23 de dezembro de 1842. APEC, GP, CO EX, livro 58, p. 11V.

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extremos" e, de acordo com autoridades pernambucanas, foi o suficiente para conservá-los “em respeito, e até 27 de março [...] não tem havido estragos".109 Como vimos, neste mesmo ano foi restabelecido o Diretório no Ceará, com as devidas alterações a partir das circunstâncias da época – muito mais vantajosas para os proprietários – e, para sua melhor instalação, o governo da província executou consulta a algumas câmaras de vilas do Ceará a respeito da população indígena residente em seu município. Em resposta, os vereadores do Jardim relataram que os índios que lá viviam eram os "restos de duas numerosas tribos que antigamente habitavam, os umã [sic] da serra do Piancó, na Paraíba, e os xocós de Pajeú, província de Pernambuco, lugares estes limítrofes deste município", e, por isso, sempre exposto às frequentes suas incursões. Eram distintas, porém, aliadas, sendo muito semelhantes "na cor, usos e modos de vida, e mesmo na linguagem", e ainda que mansos, era muito "aferrados à vida errante e selvagem". Acerca da já citada missão do frei Ângelo, localizada na Baixa Verde, termo de Pajeú, disseram que a aldeia fora dissolvida com sua morte, apesar dos bons frutos que teria dado, como um índio que, educado desde a infância, "já sabia latim", e o hospício que havia no lugar passou a ser liderado pelo religioso frei Caetano. Sobre os conflitos do ano anterior, declararam que os índios, "acossados pelas tropas deste município, Pajeú e Piancó embrenharam-se, mas é sempre de recear que tornem às suas acostumadas incursões, nas quais prejudicam gravemente os fazendeiros". 110 Segundo Freire Alemão, fugiram dos encalços e das secas provavelmente para o Piauí em 1845, “sendo aí perseguidos, debandados e mortos muitos”, e o restante – 50 a 60 índios – se retirara para as proximidades de Milagres.111

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BITTENCOURT, José Maria da Silva. Relatório que a Assembleia Legislativa Provincial do Ceará apresentou na sessão ordinária, no dia 1º de junho de 1843, o Ex. mo presidente e comandante das armas da mesma província o brigadeiro José Maria da Silva Bittencourt. Fortaleza: Tipografia de José Pio Machado, 1843, p. 3-4. 110 Da câmara da vila de Jardim a José Maria da Silva Bittencourt. Jardim, 16 de setembro de 1843. APEC, CM, câmara de Jardim, pacotilha 1840-1849. 111 ALEMÃO, Francisco Freire. Papéis da expedição do Ceará. Fortaleza, 23 de maio de 1860. Apud: Anais da Biblioteca Nacional, p. 313. Há hoje no Piauí uma comunidade que se identifica como “kariri” da aldeia Serra Grande, no município de Queimada Nova, próximo às fronteiras com Pernambuco e Bahia, localizado a cerca de 360 km do Crato. Cf. CARTA dos povos indígenas kariri e tabajara do Piauí. XIV Semana dos Povos Indígenas: construção da política indigenista no Piauí. Disponível em: . Acesso em: 29 de setembro de 2016. No Ceará, há uma comunidade kariri na aldeia Poço Dantas, no distrito de Monte Alverne, zona rural do Crato. Cf. SANTOS, Elizângela. Índios Kariri lutam pelo reconhecimento da tribo. Diário do Nordeste, Fortaleza, 5 de setembro de 2008, Caderno Regional. Disponível em: . Acesso em: 29 de setembro de 2016.

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Mapa 4: Locais de atuação dos gentios nas fronteiras do Ceará

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual dos estados da região Nordeste disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Região_Nordeste_do_Brasil

O aumento dos conflitos indica o cruel cerceamento dos espaços ocupados por estes índios na fronteira sul do Ceará. É notório que nos registros analisados não apareça a fala dos índios, ficando nebulosa a explicação do por que intensificaram suas incursões nas estradas, propriedades rurais e proximidades das vilas. Apesar de serem conhecidos como mansos, sua única ação, presente nos manuscritos de meados dos oitocentos, era a guerra. Contudo, assim como no tempo do frei Frescarolo e mesmo que obscurecida nas fontes, não deixavam de ter suas próprias motivações, e, independente de quais fossem, elas tinham provável relação com a expansão agrícola, que limitava suas áreas de atuação e escasseava suas reservas de caça e coleta. Repete-se, portanto, a já mencionada passagem de Perrone-Moisés: apesar de serem constantemente reputados como "selvagens" e "bárbaros", como se fossem isentos de consciência política e movidos apenas pela natureza, suas incursões eram praticadas contra um sistema que conheciam, cujos prejuízos eram sentidos na pele.112 A partir da passagem das décadas de 1830 a 1840 o avanço latifundiário e a intensificação dos conflitos tornaram a situação desses índios mais semelhante ao que era vivenciado por grupos de outras regiões do Brasil, como era o caso dos "botocudos" das atuais regiões Sul e Sudeste. As diferenças, entretanto, pareciam estar na quase total indiferença com que os do Ceará eram tratados pelo governo imperial e provincial, mais preocupados com a Balaiada que estourava na Ibiapaba. As autoridades imperiais nada 112

PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Verdadeiros contrários, p. A32.

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disseram sobre eles. Os presidentes apenas se declaravam preocupados, mas se mantinham em Fortaleza, afastados da situação, e sempre assentando a resolução dos conflitos quase que exclusivamente na "prudência" das autoridades locais: as sugestões do presidente Miranda e do bispo Coutinho de que se utilizasse os meios da religião – concretizadas em leis provinciais e imperiais no Ceará para os "civilizados" na década de 1840 – vinham por se saber da inevitável violência com que os potentados rurais resolveriam os problemas com os índios.113 As recomendações para que se evitasse o derramamento de sangue, contudo, não eram mais importantes que a real prioridade: a propriedade dos moradores. Neste momento liberal, era em nome da vida e liberdade dos habitantes do Cariri que se devia, cada vez mais, cercear a dos indígenas. Em contrapartida, entregues nas mãos de quem os repugnava, os índios demonstravam ser, o quanto podiam, constantes ameaças.

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Curiosamente, a pesquisa não encontrou registros da ação dos missionários capuchinhos italianos ou de qualquer outra companhia religiosa em meados do século XIX com os índios no Cariri cearense.

2ª PARTE NA GUERRA

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CAPÍTULO 5 O SERVIÇO MILITAR INDÍGENA “Nada há pior neste mundo do que a opressão revestida de formas legais” (Requerimento da índia Thereza de Jesus, 1862. AN, XM 1143, doc. 26)

A pouca experiência do exército regular na América portuguesa, de acordo com Vitor Izecksohn, acentuou “o papel das concessões e das mercês reais como pagamento pelos esforços particulares a serviços do rei” e a consolidação de seus domínios.1 Somada à precariedade das tropas regulares – chamadas “tropas de linha” – e a falta de gente suficiente para integrá-las, consagrou-se no Brasil a formação de agrupamentos auxiliares. Havia grande dependência de Portugal em relação aos não-europeus para a formação do império no ultramar – inclusive dos índios – e às articulações, hierarquias e organização militares e burocráticas que iam se formando em cada domínio português no mundo.2 As tropas auxiliares mencionadas acima foram as companhias de ordenança, instituídas pelo Regimento geral das ordenanças de 1570. Eram formadas por toda população masculina livre não recrutada pela tropa de linha, e a partir de meados do século XVII, nem pertencente às milícias.3 Com papel fundamental na tentativa de controle populacional na Colônia, eram instrumentos de capilaridade social, na busca de que os braços do Estado alcançassem até as povoações mais distantes. 4 Por serem formadas por moradores locais sem instrução militar formal, as ordenanças ainda tinham a característica de seu efetivo permanecer em suas atividades particulares, utilizadas somente “em caso de perturbação da ordem pública”.5 Os índios eram recrutados apenas em corpos de ordenança pelo seu potencial como mão-de-obra, já que, assim, não

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IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares: mapeando os espaços militares luso-brasileiros. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro. GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial, volume 3 (ca. 1720 – ca. 1821). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 486. RAMINELLI, Ronald. Serviços e mercês de vassalos da América portuguesa. Historia y Sociedad, nº 12, 2006, p. 123-124. 2 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2009, p. 140 3 Criadas no contexto das guerras de restauração, as milícias atuavam, sobretudo, na defesa dos portos do mar de invasões e assédios de estrangeiros. Recebiam os mesmos privilégios das tropas pagas, embora apenas vencessem soldo em situações de conflito. Cf. Ibid., p. 83. 4 Ibid., p. 83-84. WEHLING, Arno. WEHLING, Maria José. Exército, milícias e ordenanças na corte Joanina: permanências e modificações. Da Cultura, ano VIII, nº 14, 2008, p, 27. SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura do Recife, 2001, p. 77-79. 5 IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 493.

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seriam mobilizados para atuar longe de onde habitavam – a não ser em situações extremas de conflito bélico – o que não atrapalharia os trabalhos que executassem. Pela necessidade de tropas que defendessem os interesses da monarquia em sua colônia americana, os índios não poderiam ser dispensados, ao contrário do que afirmam Arno Wehling e Maria José Wehling.6 Milícias e ordenanças tiveram mais poder no ultramar do que em Portugal, o que fortalecia os poderes locais em detrimento do poder régio.7 Por isso, a necessidade da Coroa lusitana da fidelidade dos seus súditos ameríndios era grande. 8 Estes, por sua vez, também tinham seus próprios interesses na aliança com o monarca português, vendo na adesão ao seu império, por exemplo, o aumento de sua força para combater inimigos (outras tribos, nações europeias inimigas e mesmo colonos ambiciosos de sua mão-de-obra). Além disso, desde os primeiros contatos e alianças, o rei era para os índios a última instância protetora a quem poderiam recorrer contra as invasões de terra, como afirma Marcus Carvalho.9 Para Ronald Raminelli, a fragilidade de integração entre a Metrópole e seus domínios, acentuada pelas distâncias e dificuldades de acesso, configurou a conexão entre vassalos e a monarquia. Esta se dava por meio de prestação de serviços dos primeiros à Coroa, no sentido de consolidar a conquista através de atuações bélicas, transmissão de informações, mas, também, da arregimentação de novos súditos. Firmava-se, assim, o vínculo entre serviço, honra e centralização política, característico do modo de governo do Antigo Regime, mas tão difícil em um império tão vasto e heterogêneo. Por isso, a “produção de lealdade em terras tão remotas era mais relevante do que a classificação social própria do reino”, o que explica a presença de índios em posições de prestígio. Aos que prestavam serviços e suplicavam mercês, por sua vez, o reconhecimento era importante para a obtenção de privilégios e fazerem-se mais poderosos que os demais. “Os pedidos de mercê dinamizavam e revitalizavam o pacto entre vassalos e monarquia, pois os primeiros reconheciam o centro como forma de consolidação de sua ascensão social”.10

Segundo os autores, as ordenanças eram compostas por “homens livres válidos entre 18 e 60 anos”, não excluindo, portanto, os índios, como afirmam. Cf. WEHLING, Arno. WEHLING, Maria José. Exército, milícias e ordenanças na corte joanina, p. 26. 7 MOREIRA, Luiz Guilherme Scaldaferri. A Nova História Militar, o diálogo com a história social e o Império Português. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – Anpuh, 2011, p. 13-15. 8 Cf. ALBUQUERQUE, Manuel Coelho. Seara indígena: deslocamentos e dimensões identitárias. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará, 2002, p. 95-97. 9 CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Clientelismo e contestação: o envolvimento dos índios de Pernambuco nas brigas dos brancos na época da independência. In: MONTEIRO, John Manuel. AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. (Org.). Confronto de culturas: confronto, resistência e transformação. São Paulo: EDUSP/Expressão e cultura, 1997, p. 336. 10 RAMINELLI, Ronald. Serviços e mercês de vassalos da América portuguesa, p. 130-131. 6

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Devido à importância desses grupos, foram criados terços especiais na primeira metade do século XVII, que tiveram participação destacada na expulsão dos holandeses do Brasil. A chamada “Guerra Brasílica”, adaptação das técnicas indígenas às ações militares portuguesas, determinou a superioridade das tropas do rei lusitano. De acordo com Pedro Puntoni, os índios eram, portanto, imprescindíveis para o sucesso militar.11 O fim da presença batava no Brasil possibilitou a expansão da cultura do açúcar e da pecuária nos sertões desde o final dos seiscentos, dando ocasião a múltiplos conflitos com os povos que lá habitavam e que não se aliaram, chamados genericamente de Guerra dos Bárbaros, na passagem dos séculos XVII e XVIII. 12 Tanto aos sobreviventes quanto aos antigos aliados que os combateram – ou mesmo aos fugitivos dos conflitos holandeses – restava o aldeamento em missões religiosas, onde eram catequizados e serviam como mão-deobra e força militar.13 A partir de vários exemplos, José Eudes Gomes mostra como, já nesse período, “os serviços prestados pelas tropas indígenas no Ceará estiveram longe de restringirem-se à sua participação em guerras [...], incluindo mesmo a escolta de autoridades locais em suas diligências pelos sertões”. Após o fim das concessões de sesmarias a índios em território cearense na década de 1730 e a consolidação da conquista das terras da capitania, principais e seus comandados “continuaram a prestar serviços em troca da concessão de benefícios para as suas gentes, e a atuação de tropas indígenas como força armada no Ceará manteve-se pelo menos até as primeiras décadas do século XIX”.14

5.1. DO DIRETÓRIO À GUARDA NACIONAL

Em meados do século XVIII, por meio do ministério do marquês de Pombal, houve tentativas de centralização militar e ampliação do controle imperial por conta do contexto de conflitos internacionais, especialmente nas fronteiras com a América espanhola.15 Quando o Diretório foi instalado no Ceará, os diretores nomeados eram todos oficias, “donde se pode suspeitar”, segundo Isabelle da Silva, “a proeminência da força militar no processo de

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PUNTONI, Pedro. A arte da guerra no Brasil: tecnologia e estratégia militar na expansão da fronteira na América portuguesa, 1550-1700. Novos Estudos, nº 53, 1999, p. 191-196. 12 PUNTONI, Pedro. A arte da guerra no Brasil, p. 195-196. 13 ALBUQUERQUE, Manuel Coelho. Seara indígena, p. 90. MAIA, Lígio José de Oliveira. Cultores da vinha sagrada: missão e tradução nas serras da Ibiapaba, século XVII. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2005. 14 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 143, 151. 15 Ibid., p. 241. IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 505-507.

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implantação das vilas”.16 A lei, que visava especialmente a civilização e integração dos índios através do usufruto de sua mão-de-obra, também reforçou a disciplina das comunidades por meio da regulamentação dos corpos de ordenança e a importância dos oficiais indígenas. 17 As tropas e suas atividades de revista serviam também como controle e sedentarização da população, e até mesmo as vilas de índios – descendentes das antigas missões – se consolidaram como polos de abastecimento de mão-de-bra e de força militar.18 A lei criticava em seu §9 a maneira inadequada com que “principais, sargentos-mores, capitães e demais oficiais” eram tratados até então, sem o devido respeito às “honras e privilégios competentes aos seus postos”. Ordenava aos diretores, portanto, que estimassem “a todos aqueles índios [...] e também suas famílias, dando-lhes assento na sua presença, e tratando-os com aquela distinção que lhes for devida, conforme as suas respectivas graduações, empregos e cabedais, para que, vendo-se os ditos índios estimados pública e particularmente, cuidem em merecer com o seu procedimento as distintas honras com que são tratados, separando-se daqueles vícios e desterrando aquelas baixas imaginações que insensivelmente os reduziram ao presente abatimento e vileza”19

As titulações que recebiam, além de firmar alianças pelos serviços que prestavam ao rei, tinham também forte caráter civilizatório. Em meados dos setecentos, boa parte das lideranças indígenas, principalmente das capitanias anexas a Pernambuco, já havia conseguido seus títulos por serem descendentes de antigos chefes que haviam prestado serviços bélicos ao rei ibérico. Portanto, a principal função dos oficiais do tempo da instalação do Diretório era de mediação entre os interesses da Coroa e os seus subordinados. A ambição por prestígio social, ansiada tanto pelos índios quanto pela Coroa ao inseri-los no mundo português, seria um caminho possível para a adesão aos costumes europeus e o abandono às antigas tradições. Como explica Raminelli, enquanto que aos nativos interessavam status e privilégios, para a monarquia era indispensável a produção de lealdade.20 Para que isso fosse

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SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 93. 17 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 91-99. 18 ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” do Brasil do século XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 171. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 81-83. GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009, p. 85-86. 19 DIRETÓRIO que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão, enquanto sua Majestade não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1758, §9, p. 4-5. 20 RAMINELLI, Ronald. Serviços e mercês de vassalos da América portuguesa, p. 130.

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possível, o respeito aos seus postos deveria ser aplicado na prática, tanto pelos diretores nas vilas como por qualquer membro da administração colonial ou súdito do monarca lusitano. Na prática, isso frequentemente não acontecia, apesar do rei ter sido “servido nobilitar e declarar por isentos de toda e qualquer infâmia, habilitando-os para todo o emprego honorífico”, conforme o §10 do Diretório. Talvez por isso sua ênfase ao ordenar, no §15, que os índios deveriam se “vestir à proporção da qualidade de suas pessoas, e das graduações de seus postos”. De acordo com o §50 da lei, “capitães-mores, sargentos-mores e mais oficiais, de que se compõem o governo das povoações” não deveriam ir pessoalmente à extração das drogas do sertão, podendo, para isso, mandar índios. O §71 reforça-o, ao prever que fossem pagos aos referidos oficiais os salários por seus trabalhos. Tudo isso em obediência ao que ordenara Sua Majestade “nas suas reais e piíssimas leis, que se lhes guardem todas aquelas honras competentes à graduação de seus postos”, devendo ser, inclusive, preferidos na ocupação dos empregos honoríficos, como prevê o §84.21 Como afirma Maria Regina de Almeida, tal política de enobrecimento buscava o envolvimento dessas pessoas na ordem colonial, para que, por meio dela, “conduzissem seus liderados à obediência e disciplina”.22 Além disso, as remunerações representavam uma possibilidade real de acumulação material e ascensão social para muitos índios oficiais.23 Acerca da estrutura das ordenanças, o Diretório não apresentou mudanças, mas trouxe regulamentações mais precisas sobre as atribuições dos oficiais indígenas. Isso mostra o quanto incluir os índios em forças militares era visto pela Coroa lusitana como importante para incorporar essas populações na sociedade colonial, inclusive por meio da concessão de patentes. Aos que as alcançavam, tais postos significavam uma clara chance de mobilidade social.24 Para o império português, as ordenanças de índios eram ferramentas imprescindíveis para os interesses da Coroa,25 atuando no controle e vigilância da população – inclusive

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DIRETÓRIO que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão, enquanto sua Majestade não mandar o contrário, §10, §50, §71 e §84, p. 5-9, 22, 30 e 35. 22 Cf. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional 2003, p. 161. 23 Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social: a inserção da família indígena Souza e Castro nas redes de poder do Antigo Regime na capitania do Ceará. Revista de Ciências Sociais. Fortaleza: v. 43, n. 2, 2012, p. 12. WEHLING, Arno. WEHLING, Maria José. Exército, milícias e ordenanças na corte joanina, p. 27. GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio, p. 283. 24 COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). Tese (doutorado) - Universidade de São Paulo, 2005, p. 220. MAIA, Lígio José de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social, p. 14 25 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, 139-155.

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indígena – no que dizia respeito ao “sossego público”,26 contra revoltas internas,27 confrontos com gentios28 e ameaças internacionais.29 Eram mediadores entre os interesses da Coroa e de suas comunidades, mas ainda que devessem total obediência à primeira, as lideranças frequentemente pendiam para a luta a favor dos benefícios de seus comandados.30 O caráter civilizatório da inserção dos índios no universo do prestígio nobiliárquico português tinha conexão direta com a relação de fidelidade que a Coroa desejava consolidar entre seus súditos indígenas. Tal relação acompanhava o contexto de modernização do exército português durante o período pombalino, analisado por Arno Wehling e Maria José Wehling, quando as milícias e ordenanças – “significativo instrumento de capilaridade social” – assumiram papel fundamental para a defesa dos interesses lusitanos.31 De acordo com José Eudes Gomes, diversas medidas foram tomadas no âmbito militar, a partir da década de 1760, “no sentido de aumentar o controle sobre a população”, atingindo também o Ceará e acompanhando o momento de reforço da presença do Estado português em sua colônia americana.32 Ainda segundo o autor, a formação de ordenanças indígenas na segunda metade dos setecentos – que não consistia em uma questão nova – também “oficializava a política de incorporação dos índios como vassalos da monarquia portuguesa”.33

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COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina: EDUFPI, 2015. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará: 1680 – 1820. Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008. 27 DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro: revoltas em Pernambuco e Alagoas (1817-1848). Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2015. CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (1817-1848): Ideologias e Resistências. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de. GALINDO, Marcos. Índios do Nordeste: temas e problemas – III. Maceió: EDUFAL, 2002. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 223-235, 287-304. 28 MATTOS, Izabel Missagia. "Civilização" e "revolta": povos botocudos e indigenismo missionário na província de Minas. Tese (doutorado) – UNICAMP, 2002. OLIVEIRA, Ana Stela Negreiros. O povoamento colonial do sudeste do Piauí: indígenas e colonizadores, conflitos e resistência. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2007. SILVA, Mairton Celestino da. Africanos escravizados e índios aldeados na capitania de São José do Piauí, 1720-1800. In: SILVA, Mairton Celestino da; OLIVEIRA, Marylu Alves de. Histórias: do social ao cultural/do cultural ao social. Teresina: EDUFPI, 2015. SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco: historiografia, legislação, política indigenista e os povos indígenas no Sertão de Pernambuco (1801-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2015. 29 GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio. 30 SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements: native Amazonians and Portuguese policy in Pará, Brazil, 1758-1798. Tese (doutorado) – University of New Mexico, 2000, p. 188. ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina: sociedade, hierarquia e resistência (1751-1798). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2009, p. 26-27. LOPES, Fátima Martins. Oficiais de ordenanças de índios: novos interlocutores nas vilas da capitania do Rio Grande do Norte. Anais do XXV Simpósio Nacional de História – ANPUH. Fortaleza, 2009, p. 9. 31 WEHLING, Arno. WEHLING, Maria José. Exército, milícias e ordenanças na corte joanina, p.. 26-29. 32 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 241-242. 33 Ibid., p. 259-260.

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A Carta Régia de 1798 que aboliu o Diretório no Grão-Pará e em outras capitanias trouxe direcionamentos diferentes para a atuação militar indígena a partir das particularidades das regiões onde era aplicada. Foram criados os corpos de Milícias subordinados às câmaras, medida que diminuía a importância dos oficiais nativos e, ao mesmo tempo, acentuava o processo de desagregação das comunidades e incentivava a execução de empreendimentos individuais de exploração e povoamento.34 Em contrapartida, nas capitanias onde o Diretório permaneceu em vigor, os corpos de ordenanças indígenas continuaram. Arno Wheling frisa que a vinda da Corte para o Rio de Janeiro e a política implementada por dom Rodrigo de Souza Coutinho trouxeram diversas melhorias e reforçaram em uma série de aspectos a questão da defesa no Brasil. 35 A diminuição das distâncias entre os súditos americanos e o monarca também avivou entre os índios a figura do rei, o que talvez possa ser relacionado com a rapidez nas promoções e a incorporação de famílias ao oficialato.36 Segundo Izecksohn, apesar de sujeitos ao contexto de transformações advindo no início dos oitocentos, a estrutura das companhias de ordenanças de índios pouco mudou neste período, mesmo depois da independência.37 Entretanto, é notório o impulso que adquiriu o recrutamento indígena pelo menos nas duas primeiras décadas dos oitocentos no Ceará, inserido no contexto de busca por maior racionalização do espaço e controle da população e de transformações indicada por Wheling. São sinais dessas práticas o aumento da produção de mapas das tropas, o incentivo às revistas por parte dos governadores da capitania, o reforço da política de passaportes – que exigia documentos de autorização para pessoas que transitassem pelo território – e a concretização de uma verdadeira “caça aos vadios”.38 A presença do Diretório ainda em vigor era, portanto, mais uma ferramenta na sedentarização da população indígena e um reforço na aliança entre a disciplina militar e o incentivo ao trabalho regular e produtivo. Tal realidade vai de encontro à perspectiva de parte da historiografia que defende ter havido uma “perda de importância” das ordenanças e de seus oficiais indígenas na passagem SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. “Vossa excelência mandará o que for servido...”: políticas indígenas e indigenistas na Amazônia portuguesa do final do século XVIII. Tempo, vol. 12, nº 23, 2007. 35 WEHLING, Arno. WEHLING, Maria José. Exército, milícias e ordenanças na corte Joanina, 2008, p. 31. 36 DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos indígenas no nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP: 1992, p. 450. IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 508. 37 IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 508-509. 38 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 252-258. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará: 1680 – 1820. Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008, p. 310-327. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 171-183. 34

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do século XVIII para o XIX, atribuída à diminuição de conflitos armados.39 Para Lígio Maia, as ordenanças de índios perderam o prestígio que outrora tiveram a partir da primeira metade dos oitocentos pelo fato de este período diferir das centúrias anteriores, marcadas por instabilidades sociais – como a Guerra do Açu – e a ocupação pastoril.40 Contudo, as ordenanças indígenas destacaram-se em diversos conflitos no século XIX, como aconteceu com a invasão de Caiena,41 nas ações militares no rio Doce42 e em 1817. Foi em decorrência do envolvimento das tropas de índios nestes embates que o rei promulgou o decreto de 25 de fevereiro de 1819, que os isentava de vários tributos, dentre eles o subsídio militar e o pagamento de selo das patentes de oficiais.43 As batalhas ocorridas na independência, as lutas contra a resistência portuguesa no Piauí em 1823 e a Confederação do Equador de 1824 são exemplos de conflitos bélicos em que as ordenanças indígenas do Ceará foram acionadas, mas com a diferença de serem, então, vassalas do rei brasileiro e agindo em defesa de interesses nacionais.44 Entretanto, seus posicionamentos – muitas vezes divergentes dos pensamentos dos que os recrutavam e tidos, por isso, como “insubmissos” – faziam contraponto à ideia de índios-soldados exclusivamente a serviço do Estado.45 Também por isso, a arregimentação dos nativos não parece ter sido menos importante. Apesar da relevância bélica, a “perda de prestígio” dos oficiais indígenas parece ter sido de fato iniciada a partir da conjuntura constitucional do pós-independência. A decisão nº 8 do Ministério da Guerra de 15 de janeiro de 1823 estabelecia que as patentes de milícia e

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DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos indígenas no nordeste brasileiro, p. 448-449. SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements, p. 196-197. 40 MAIA, Lígio José de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social, p. 14. 41 SANTOS, Raquel Dani Sobral. A construção do estatuto de cidadão para os índios do Grão-Pará (18081822). Dissertação (mestrado) – Universidade de São Paulo, 2013, p. 25-35. 42 SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta de civilização e conquista dos índios e navegação do rio Doce: fronteiras, apropriação de espaços e conflitos (1808-1814). Tese (doutorado) - Universidade Federal do Espírito Santo, 2006. MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce (Espírito Santo, 1824-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2007. 43 Decreto de 25 de fevereiro de 1819. Concede aos índios das diversas vilas do Ceará Grande, Pernambuco e Paraíba diversas graças e mercês pelo serviço prestado contra os revoltosos da vila do Recife. COLEÇÃO das leis do Brasil de 1819. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889. De igual conteúdo In: BN, C-199, 14. COSTA, Hipólito José da. Correio Brasiliense ou Armazém Literário. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado. Brasília: Correio Brasiliense, 2002, v. XXIII, p. 353. 44 CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Clientelismo e contestação. CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. Batalha do Jenipapo: reminiscências da cultura material em uma abordagem arqueológica. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2014. DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro. DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos indígenas no nordeste brasileiro. 45 DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos indígenas no nordeste brasileiro, p. 448

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ordenança fossem lavradas em nome dos governos provisórios das províncias.46 Tal medida se inseria no contexto de ocupação de cargos nos governos e justiças provinciais e municipais pelas elites locais, antes destinados a administradores portugueses, ampliando ainda mais seus espaços de poder. Nesta mesma década, uma memória sem data e nem autoria – pertencente ao acervo da Biblioteca Nacional – propôs que fossem extintos os cargos de capitães-mores indígenas. Os índios passariam a ser “governados da mesma forma que o são os brancos, [...] policiados pelas autoridades territoriais e servindo nos corpos de milícia”.47 Neste contexto, uma série de ações como a concessão de patentes a oficiais indígenas já passava pelo crivo de potentados interessados no fim de suas garantias. Como vimos, a situação de cidadania advinda com a Constituição de 1824 promovia uma igualdade entre os grupos que minava cada vez mais as antigas mercês e os estatutos diferenciados dos índios. Como efeito do contexto liberalizante no pós-independência, acentuadamente no primeiro reinado, a grande transformação na estrutura militar brasileira foi a criação da Guarda Nacional em 1831, acabando com as milícias e ordenanças. Chama atenção o quão reduzido era o exército profissional à época da independência, ao que Jeanne de Castro atribuiu à urgência em se abafar ebulições locais, enquanto poucas ameaças internacionais existiam naquele tempo.48 A ojeriza ao exército, abordada por Flávio Saldanha, era explicada pela composição dos oficiais e das tropas, portugueses e vadios em sua maioria, respectivamente; já a Guarda Nacional, ao contrário, cooptava pessoas “honradas”. Ressaltese ainda o quanto a instituição serviu como mais uma força da elite senhorial para a defesa de seus interesses.49 Segundo Izecksohn, a criação da Guarda Nacional se deu como manifestação de um processo amplo de cooperação entre Estado e poderes privados, “de reação liberal à percepção de uma ameaça absolutista por parte do imperador e de seus aliados”.50 Outra inovação em relação à estrutura militar anterior – e que se liga ao aumento do poder senhorial – é a forma de ingresso dos não-brancos nas tropas. Para Castro, a Guarda Nacional misturou todas as cores, ao contrário dos corpos de milícia e ordenança organizados por “castas”. Para a autora, este era um relevante caráter moderno da instituição, ao cessar a

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Decisão nº 8, 15 de janeiro de 1823. COLEÇÃO das decisões do governo do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887, p. 5-6. 47 Sem autoria, local e data. BN, II-32, 23, 63. 48 CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979, p. 3. 49 SALDANHA, Flávio Henrique Dias. Exército e Guarda Nacional: recrutamento militar e a construção do Estado no Brasil imperial. Coleção Meira Mattos, vol. 9, nº 36, 2015, p. 674. 50 IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 512-514.

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distinção de cores numa sociedade ainda escravista.51 Isso se liga também aos esforços de formar uma sociedade nacional, excluindo, ainda que de forma lenta, as diferenças politicojurídicas características do Antigo Regime entre os grupos étnico-sociais e ampliando o conceito de cidadania. Servindo aos interesses dos potentados locais, submetendo a população pobre, agora ainda mais misturada, ao seu poderio, a Guarda Nacional se constituiu como uma força armada paralela ao exército profissional que era mal visto sobre diversos aspectos. Segundo Saldanha, para os não-brancos ela foi sinal de distinção social já pela forma de conscrição: enquanto que o “recrutamento” – que se referia ao exército – representava castigos físicos, má remuneração e composição de desajustados, o “alistamento” – termo para a Guarda Nacional – não tinha a mesma conotação negativa e era formado por “cidadãos honrados”.52 Por outro lado, a estrutura da Guarda Nacional acabou por ser prejudicial para nãobrancos. A presença de lideranças nativas com títulos militares – tendo, por isso, remuneração e prestígio social – a partir de mercês concedidas pelo rei português não faria mais sentido no entendimento dos governantes do novo país. A lei de 18 de agosto de 1831, mesmo sem citar os índios, acentuou ainda mais a perda de benefícios vigentes no Antigo Regime. Por meio dela foram criadas as guardas nacionais e extintos os corpos de milícia, guardas municipais e ordenanças. Seu artigo 141 previa que os oficiais de ordenança permaneceriam com "as honras anexas aos seus postos, mas não [eram], por isso, isentos do serviço das guardas nacionais".53 Isso significava que as lideranças militares indígenas continuavam com suas patentes, mas as mesmas não tinham mais qualquer significado prático, já que os oficiais seriam alistados nas guardas como qualquer outro cidadão. Por mais que ainda fossem referências para suas comunidades – cada vez mais reduzidas – não tinham mais o prestígio que possuíam em anos anteriores. Analisando a situação da vila de Itaguaí, no Rio de Janeiro, Vânia Moreira observa que, ao longo da década de 1830, o estatuto dos cidadãos ingressos na guarda nacional passava a ser oposto ao dos índios aldeados: perdia-se a antiga condição e, juntamente, as proteções e mercês a ela inerentes.54 O recebimento do aviso de extinção das ordenanças só foi confirmado no Ceará em 2 de outubro de 1832, pelo presidente José Mariano de Albuquerque Cavalcante, “à maneira 51

CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã, p. 135-136. SALDANHA, Flávio Henrique Dias. Exército e Guarda Nacional, p. 674-675. KRAAY, Hendrik. Repensando o recrutamento militar no Brasil imperial. Diálogos, vol. 3, nº 3, 1999, pp. 113-151. 53 Lei de 18 de agosto de 1831. Cria as guardas nacionais e extingue os corpos de milícias, guardas municipais e ordenanças. Disponível em: . Acesso em: 7 de janeiro de 2015. 54 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência Vila de Itaguaí, 1822-1836. Diálogos Latinoamericanos, n. 18, 2011, p. 13-15 52

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que nos diferentes municípios se organizarem as guardas nacionais”.55 No mês de junho do ano seguinte, a câmara de Fortaleza determinou em sessão o adiamento da divisão das guardas nacionais da cidade por conta do processo de supressão de Messejana, Arronches e Soure. 56 O presidente Cavalcante repreendeu a ação dos vereadores da capital, afirmando que o alistamento fora feito antes da extinção das ditas vilas, comunicando que em Arronches já havia uma companhia e ordenando que criassem com urgência as guardas de Fortaleza.57 As novas tropas, portanto, foram formadas em meio ao processo de extinção e esvaziamento das antigas vilas de índio e dispersão de sua população. Além de não mais haver companhias militares exclusivamente indígenas, as novas da Guarda Nacional das suprimidas vilas de índios não passariam a contar com uma parcela significativa dessa população. O antigo prestígio social das lideranças indígenas tendia a ser, então, obsoleto. Mesmo assim, inicialmente ainda era possível o acesso de alguns não-brancos ao oficialato pela forma de acesso eletiva.58 Segundo Jeanne de Castro, as críticas a esse sistema não demoraram a vir, por parte de diversos jornais e políticos avessos à igualdade que muitos negros e pardos poderiam ter com brancos em cargos de oficial. Em 1833, o governador de Pernambuco chegou a sugerir a separação dos corpos da Guarda segundo a cor.59 No ano seguinte, outra medida minou ainda mais a possibilidade de acesso de lideranças indígenas às patentes da Guarda. Com as reformas instituídas pelo Ato Adicional de 1834, os oficiais passaram a ser nomeados pelas instâncias políticas locais, como câmaras municipais e assembleias legislativas provinciais.60 A igualdade, portanto, foi vencida pela “reação discriminatória”.61 Para Izecksohn, com o tempo, a Guarda Nacional acabou por ser prejudicial aos não-brancos em relação à estrutura anterior porque perderam prestígio social, as patentes e outros privilégios a que tinham acesso.62 O fim das ordenanças acentuou o processo de desestruturação das comunidades ao longo da década de 1830 já afetadas com a abolição das vilas. Além de tudo que perderam, as

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De José Mariano de Albuquerque Cavalcante a Bento Barroso Pereira. Fortaleza, 2 de outubro de 1832. APEC, MN, MG, livro 99, p. 24. 56 Sessão da câmara de Fortaleza de 10 de junho de 1833. APEC, CM, câmara de Fortaleza, livro 55. 57 De José Mariano Albuquerque Cavalcante à câmara de Fortaleza. Fortaleza, 15 de junho de 1833. APEC, GP, CO EX, livro 19, p. 270. 58 Lei de 18 de agosto de 1831, capítulo IV: “nomeação dos postos”. Disponível em: . 59 CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã, p. 139. 60 Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834, Art. 10, §7. Disponível em: . 61 CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã, p. 13-14, 142. 62 IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 513-514.

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lideranças nativas já não mais possuíam o status que havia tido durante o regime português. O presidente Francisco de Souza Martins, atento ao processo de exclusão dos “índios de todos os empregos públicos”, propôs em seu relatório de 1840 uma série de medidas com o objetivo de frear o rápido “decrescimento da raça indígena”. Uma delas era que se alistassem “em corpos de milícia com oficiais de sua raça, os quais gozem das honras e prerrogativas dos da Guarda Nacional, e possam apresentar-se honrados com as insígnias de distinção nas ocasiões de cortejo ou de festividades públicas. Isto lisonjeará seu amor próprio despertando os sentimentos de brio e de honra, e não pouco concorrerá para que estes chefes mantenham a subordinação e obediência às leis nos mais indivíduos de sua raça”63

Pelo raciocínio de Martins, que também sugeriu a volta do Diretório, percebe-se que sua intenção era o reestabelecimento, pelo menos parcial, da antiga política indigenista lusitana. Ao contrário do que sugere Maico Xavier, a ideia do presidente não era de inseri-los na Guarda – pois dela provavelmente já faziam parte – mas de que se criassem corporações exclusivas para eles, à semelhança das antigas ordenanças.64 O foco da proposta era também os oficiais índios, que tiveram seu prestígio reduzido com a extinção de suas companhias, para que passassem a ser reorganizadores de suas comunidades e colaboradores da consolidação do Estado nacional. Mas, como vimos no capítulo 2, as sugestões acatadas pela Assembleia provincial apenas diziam respeito àquilo que facilitava a captação de sua força de trabalho. Em relação aos benefícios dos índios – honras, bens e garantias – foram todos ignorados. Para os índios, as reformas militares com o fim das ordenanças parecem ter gerado efeitos semelhantes aos que afetaram mestiços e negros libertos. Vânia Moreira, em diálogo com Hendrick Kraay, por um lado, percebeu as eventuais tentativas de transformação e recategorização dos indígenas em vadios, para fazê-los ingressar no exército de maneira forçada, como forma de controle social e coerção ao trabalho.65 Tais práticas parecem ter atingido os índios mais fortemente através da Marinha, como aponta Silvana Jeha, relacionando-as a busca de alternativas à presença dos estrangeiros nas forças armadas e à

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MARTINS, Francisco de Souza. Relatório que apresentou o Exm. Sr. Doutor Francisco de Souza Martins, presidente desta província, na ocasião da abertura da assembleia legislativa provincial no dia 1º de agosto de 1840. Fortaleza, Tipografia Constitucional, 1840, p. 10-13. 64 XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social: os índios do Ceará no período do império do Brasil – trabalho, terras e identidades indígenas em questão. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, 2015, p. 162-164. 65 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Caboclismo, vadiagem e recrutamento militar entre as populações indígenas no Espírito Santo (1822-1875). Diálogos Latinoamericanos, n. 11, 2006, p. 97. KRAAY, Hendrik. Repensando o recrutamento militar no Brasil imperial, p. 119.

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crise de mão-de-obra do período.66 Segundo Manuela Carneiro da Cunha, um grande número de avisos e circulares recrutaram índios para a Marinha.67 As ações truculentas de recrutamento para o serviço na Real Armada chegaram, inclusive, a ser uma das causas para a adesão dos índios da Ibiapaba na Balaiada do lado dos revoltosos.68 Em 29 de maio de 1837, um aviso do Ministério da Marinha de autoria de Tristão Pio dos Santos foi enviado a vários presidentes de província – dentre eles, o do Ceará – acerca do “engajamento de índios [...] para o serviço da Esquadra”. Por serem “pacientes no trabalho, sóbrios e mui subordinados à disciplina”, deveriam servir de alternativa à conscrição de estrangeiros, caros e insubordinados. Aos presidentes se ordenou que recrutassem indígenas entre 13 e 20 anos de idade, que seriam enviados à Corte e vestidos adequadamente, mas nunca de maneira violenta. O texto mencionava que, em outros momentos, havia 117 índios empregados no Arsenal do Rio de Janeiro, “e se isto pôde ser alcançado sem violência no Antigo Regime, com mais razão se deve esperar agora”.69 Como destaca Silvana Jeha, o recrutamento indígena sempre ocorreu no período colonial, mas a política imperial parece ter sido mais objetiva e específica por conta da legislação. No aviso, a faixa etária foi bem delimitada, demarcando uma população muito jovem e revelando a preocupação em dar-lhe ocupação e utilidade. Sem o amparo de um estatuto diferenciado, as ações de recrutamento indígena continuaram ao longo das décadas de 1830 e 1840 atendendo exclusivamente às necessidades do Estado de mais trabalhadores e homens aptos a servir. Se a maioria dos índios era alistada para a Guarda Nacional, o recrutamento na Marinha se dirigia àqueles que “não serviam”, ou seja, considerados vadios, buscando dar-lhes ocupação.70 Ressaltava-se, portanto, a continuidade da relação entre disciplina militar, trabalho e civilização na política indigenista do Brasil, além da procura de soluções à já comentada crise de mão-de-obra. O texto de Santos, contudo, destoa do que comumente se via dos recrutamentos. Em primeiro lugar, as ações de conscrição de pobres livres para as forças

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JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar: indígenas na Armada Nacional e Imperial do Brasil. Anais do VI Encontro Estadual de História – ANPUH/BA, 2013, p. 2-5. 67 CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo. Legislação indigenista no século XIX: uma compilação: 1808-1889. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992, 1992, 28. 68 JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar, p. 2. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Caboclismo, vadiagem e recrutamento militar entre as populações indígenas no Espírito Santo (1822-1875), 2006, p. 103. 69 AVISO do Ministério da Marinha. De Tristão Pio dos Santos a Francisco José de Souza Soares de Andrea. Idem aos presidentes das províncias do Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Rio de Janeiro, 29 de maio de 1837. Correio Oficial, v. 1, n. 119, 3 de junho de 1837, p. 474-475. 70 Como veremos mais à frente na proposta do presidente Barford, p. 184-185.

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armadas sempre foram marcadas pela violência, inclusive no Antigo Regime.71 Segundo, de acordo com Jeha, já na década de 1840 era possível observar que, enquanto o engajamento de estrangeiros diminuía, as “políticas internas de recrutamento recrudesciam”.72 Associadas ao combate à vadiagem, como destaca Vânia Moreira, os recrutamentos eram sempre violentos.73 Entretanto, de maneira geral, a forma mais comum de conscrição militar indígena parece ter sido pelo alistamento na Guarda Nacional. Pela lei, eram obrigados a se alistar os cidadãos que tivessem voto nas eleições primárias,74 cuja exigência censitária, segundo José Murilo de Carvalho, era baixa para a época, o que não excluía a maioria dos pobres.75 Vânia Moreira especula se os índios, após a independência, teriam renda suficiente para participar dos processos eleitorais – ingressando, portanto, na “milícia cidadã” como cidadãos com honra – ou se acabavam confundidos com a massa de vadios e desordeiros coagidos a servir nas forças armadas.76 Mas na primeira fase da Guarda Nacional, período que vai de sua criação em 1831 até a reforma da corporação em 1850, as restrições censitárias eram flexíveis, exigindo-se muito mais dos ingressos o fato de terem ou não ocupação.77 Aos índios, agricultores de maneira geral, interessava serem cidadãos honrados, diferindo-se dos que eram recrutados para o exército. Inclusive, alguns conseguiram ascender aos cargos de oficiais nos momentos iniciais da “milícia cidadã”, como foi o caso de Agostinho Panaxo, em Pernambuco, e Vitorino Condá, no Rio Grande do Sul, em situações extremas de conflito contra rebeldes liberais e gentios.78 No final do século XVIII, “o recrutamento se faz por press, ou seja, pelo exercício da violência sobre os incautos”. Cf. COSTA, Fernando Dores. Os problemas do recrutamento militar no final do século XVIII e as questões da construção do Estado e da nação. Análise Social, vol. XXX, 1995, p. 128. LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio virou pó de café? A resistência dos índios Coroados de Valença frente à expansão cafeeira do Vale do Paraíba (1788-1836). Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2004, p. 131132. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios no tempo da corte: reflexões sobre a política indigenista e cultura política indígena no Rio de Janeiro oitocentista. Revista USP, n. 79, 2008, p. 102. 72 JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar, p. 1 e 5. 73 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Caboclismo, vadiagem e recrutamento militar entre as populações indígenas no Espírito Santo (1822-1875). Diálogos Latinoamericanos, n. 11, 2006, p, 94. 74 Lei de 18 de agosto de 1831, título II, capítulo I, art. 10. Disponível em: . 75 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2014, p. 35-36. 76 MOREIRA, Vânia Maria Losada. De índio a guarda nacional: cidadania e direitos indígenas no Império (vila de Itaguaí, 1822-1836). Topoi, vol. 11, nº 21, 2010, p. 135. 77 CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã, p. 280. MOURA, Denise. A farda do tendeiro: cotidiano e recrutamento no império. Revista de História Regional, vol. 4, nº 1, verão, 1999, p. 39. SALDANHA, Flávio Henrique Dias. Os oficiais do povo: a Guarda Nacional em Minas Gerais oitocentista, 1831-1850. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita, 2004, p. 32. COSTA, Lidiana Justo da. A Guarda Nacional e o processo de construção do Estado nacional brasileiro: um estudo de caso sobre os alistamentos na província da Paraíba (1831-1850). Temporalidades, vol. 4, nº 2, 2012, p. 232. 78 FERREIRA, Lorena de Mello. São Miguel de Barreiros, uma aldeia indígena no Império. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2006. DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da 71

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Estes casos, contudo, pareciam ser exceções. E ainda que a maioria dos índios tenha ingressado na Guarda Nacional, sua adesão – e consequente inclusão na categoria de cidadãos – fazia parte, segundo Moreira, do mesmo processo de perda das antigas garantias de posse das terras.79 Tudo isso se inseria no contexto de extinção dos benefícios oriundos de sua anterior condição de vassalos da Coroa portuguesa. Os cargos e posições políticas a que tinham acesso, como as patentes de oficiais militares, passaram a ser a eles vetados. Não foi coincidência que a lei da Guarda Nacional e o Ato Adicional tenham sido contemporâneos à extinção do Diretório nas capitanias que ainda a aplicavam e ao fim dos aldeamentos, no início da década de 1830. A lei pombalina foi abolida justamente pelos legislativos provinciais que atuavam a serviço dos interessados nas terras indígenas. Para a concretização dos objetivos dos potentados locais, era conveniente que os índios se desfizessem de antigos benefícios, como terras e cargos políticos, e a “cidadania” seria utilizada como argumento principal: sendo cidadãos iguais aos outros, não poderiam ter mais privilégios, especialmente se estes remetessem ao tempo da Coroa portuguesa.80 Tais intentos tiveram mais sucesso em 1834, quando o Ato Adicional deu ainda mais poder aos políticos locais. Portanto, por mais que o alistamento tenha significado um refúgio contra o recrutamento para os pobres livres,81 resultou também na degradação do prestígio dos antigos oficiais de ordenança e, consequentemente, na perda de referenciais para as comunidades, contribuindo para sua desagregação e a adesão de muitos aos séquitos das elites senhoriais. O contexto indigenista das décadas de 1830 e 1840, entretanto, não impediu por completo que algumas comunidades e suas lideranças ainda atuassem na tentativa de manter suas prerrogativas. Um conflito envolvendo o padre Norberto Madeira Barros e os índios de Monte-mor Velho, mais de 10 anos depois da lei que criou as Guardas Nacionais, é exemplar nesse sentido. Em ofício enviado ao presidente do Ceará, José Maria da Silva Bitencourt, de participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro. MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924). Maringá: Eduem, 2008. MELO, Karina Moreira Ribeiro da Silva e. A aldeia de São Nicolau do Rio Pardo: histórias vividas por índios guaranis (séculos XVIII-XIX). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. SOUZA, Almir Antônio de. Armas, pólvoras e chumbo: a expansão luso-brasileira e os indígenas do planalto meridional na primeira metade do século XIX. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, 2012. NEUMANN, Eduardo Santos. “Um só não escapa de pegar em armas”: as populações indígenas na Guerra dos Farrapos (1835-1845). Revista História, nº 171, pp. 83-109, 2014. 79 MOREIRA, Vânia Maria Losada. De índio a guarda nacional, p. 236-237. 80 "nenhuma razão para que, em uma associação que tem por objetivo a igualdade perante a lei, sejam alguns dos membros, em contravenção ao pacto fundamental de sua regeneração política, forçados a obedecer leis bárbaras ditadas em tempos prestigiosos pelo capricho de um conquistador. São os nativos índios, nossos patrícios e concidadãos, obrigados ainda a obedecer à dureza e barbaridade de seu Diretório, com manifesta infração à Constituição do império que os declara cidadãos brasileiros". Proposta de José Ferreira Lima Sucupira. Fortaleza, 6 de dezembro de 1830. ATAS do Conselho Geral da Província do Ceará: 1829-1835. Fortaleza: INESP, 1997, p. 165-166. Grifo meu. 81 SALDANHA, Flávio Henrique Dias. Exército e Guarda Nacional, p. 676.

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agosto de 1844, Barros comentou acerca de um requerimento do líder indígena Manuel Batista em que pedia isenção de pagamento dos direitos de enterramento, qualificando a situação como uma "arenga dos índios". Segundo o padre, a igreja não mais lhes pertencia "porquanto não eram mais aldeados", já que, por um decreto, dom Pedro I teria acabado "com o Diretório passando eles para as ordenanças" e, por isso, "não gozavam de privilégio algum concedido aos índios", que só valeria "se fossem novamente aldeados".82 Norberto Madeira Barros não especificou a que decreto se referia. Ainda assim, leis como a de 18 de agosto de 1831, mesmo sem fazer qualquer menção ao Diretório, aboliram diversos outros privilégios concernentes aos índios. Quando citou as “ordenanças” talvez estivesse aludindo às guardas nacionais, em uma tentativa de delimitar o lugar dos índios no novo contexto em que, desaldeados, passaram a pertencer à sociedade nacional sujeitos à mesma condição de qualquer outro cidadão. Para as comunidades, por outro lado, lideranças como Manuel Batista ainda se posicionavam como referência, mesmo que a legislação posterior à Constituição de 1824 tivesse abolido sua importância na burocracia e sociedade brasileiras. Acerca do fato, Ticiana Antunes observa que a função de guias religioso, além da de líderes políticos, “fortalecia ainda mais os laços de solidariedade e estreitavam as relações com outras figuras importantes da comunidade”.83 Os índios de Monte-mor Velho ainda consideravam a igreja como “sua”, apesar da condição de aldeados ter sido extinta com a cidadania. As reivindicações eram mostras de que suas culturas políticas eram também baseadas nos benefícios que outrora tiveram e que buscavam ainda assegurar, mesmo que se adequassem às novas realidades.

5.2. ATUAÇÃO BÉLICA, DISCIPLINA MILITAR E CONSCRIÇÃO INDÍGENA

As tropas de ordenanças indígenas no Ceará, desde o início da colonização, foram frequentemente mobilizadas para defesa contra ameaças externas e internas na capitania. O governador Barba Alardo de Menezes deu o exemplo de dom Felipe Algodão, antigo “chefe desta nação de seu apelido” em Arronches, que havia sido “muito respeitado no seu tempo [século XVII] e comandava cinco companhias de ordenanças, que são as que ficam mais próximas para acudir a qualquer rebate na capital, da qual fica distante para leste uma

82

BEZERRA, Antônio. Os caboclos de Montemor. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1916, tomo XXX, p. 290. 83 ANTUNES, Ticiana de Oliveira. Índios arengueiros: senhores da igreja? Religião e cultura política dos índios do Ceará oitocentista. Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2016, p. 162.

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légua”.84 Em 3 de janeiro de 1799, por ordem do governador Luis da Motta Féo e Torres, cerca de 50 índios se juntaram às tropas que combateram piratas franceses vindos de Caiena na praia do Cauípe, a oito léguas ao norte Fortaleza, após bombardearem a capital.85 No ano seguinte, 400 índios de Viçosa armados de arco e flecha, liderados pelo governador Oeynhausen, atuaram na prisão do coronel Manoel Martins Chaves, provavelmente em Baepina, acusado de diversos atos de violência.86 A partir dos exemplos apresentados, percebe-se a importância estratégica das ordenanças indígenas em conexão com a própria localização das vilas no território, em diferentes períodos e conjunturas, como afirma Mariana Dantas.87 Remanentes das antigas missões religiosas, elas representavam proteção para a Coroa lusitana: não era à toa que a capital do Ceará, Fortaleza, estava cercada por três vilas de índios (Arronches, Soure e Messejana). Destaca-se ainda, a partir do caso citado da prisão do coronel Chaves, o papel das ordenanças indígenas como braço armado do Estado português nos combates aos potentados locais, servindo como força mantenedora da presença da lei lusitana nos sertões de sua colônia88. Como vimos, o recrutamento indígena foi intensificado a partir do final do século XVIII no contexto de reformas militares promovidas por Portugal, ao mesmo tempo em que a Coroa procurava proteger seu território e investir na produção colonial. Os índios assumiram o papel de agentes responsáveis pelo que Fernando Novais chama de “defesa do patrimônio”:89 ao norte, depois da Carta Régia de 1798, os corpos militares indígenas tinham como missão explorar o território e vigiar as fronteiras, como vimos no primeiro capítulo. Nas capitanias que continuavam sob a vigência do Diretório, como o Ceará, a prioridade era engrossar as fileiras das ordenanças nativas através do combate aos vadios. O termo era utilizado para identificar tanto os índios que se encontravam fora de suas povoações natais 84

MENEZES, Luís Barba Alardo de. Memória sobre a capitania independente do Ceará grande, escrita em 18 de abril de 1814, escrita pelo governador da mesma, p. 43. GOMES, Alexandre Oliveira. A saga de Amanay, o Algodão e dos índios da Porangaba. In: PALITOT, Estevão Martins. (Org.). Na mata do sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Siará. Fortaleza: Museu do Ceará, Imopec, Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2009, p. 155-192. 85 De Luís da Motta Féo e Torres a Thomaz José de Mello. Fortaleza, 7 de janeiro de 1799. Apud: STUDART, Guilherme. Luiz da Motta Féo e Torres e seu governo no Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Econômica, 1890, tomo IV, p. 34-35. 86 Cf. Idem. João Carlos Augusto de Oeynhausen e Manoel Martins Chaves. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1919, tomo XXXIII, p. 12. 87 DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro: revoltas em Pernambuco e Alagoas (1817-1848). Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2015, p. 31. 88 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 139. 89 NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial: (1777-1808). São Paulo: Editora HUCITEC, 1989, p. 137.

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sem passaporte90 quanto os que não se inseriam nos padrões de trabalho ditados pela obtenção de lucro imediato.91 A partir da preocupação da Coroa em disciplinar o cotidiano indígena por meio da lei pombalina, o recrutamento militar tinha uma importância fundamental. Por um lado, as ordenanças nativas assumiam papeis relevantes no cotidiano de suas vilas. Em agosto de 1808, por exemplo, o governador Luis Barba Alardo de Menezes mobilizou um destacamento de índios de Arronches para que ficassem de guarda do paiol da pólvora de sua localidade: protegiam um material importante e perigoso, ao mesmo tempo em que exerciam um trabalho rigoroso e vigiado pelo diretor.92 Por outro, os mapas das ordenanças indígenas, produzidos intensamente no início do século XIX, são indícios das preocupações governamentais em controlar a circulação dessa população pelo território e coagi-los ao trabalho produtivo. Segundo o governador Menezes, em resposta ao diretor de Baepina também em agosto de 1808, por estes documentos ficaria “perfeitamente conhecendo o estado das ditas companhias [de ordenança]”.93 O seu sucessor, Manoel Ignácio de Sampaio, procurou recrudescer ainda mais o combate à vadiagem, as ações de recrutamento, as revistas das tropas e a produção de mapas, em prol do minucioso conhecimento e controle dos indivíduos.94 José Eudes Gomes conta que desde a segunda metade do século XVIII – com a política pombalina de reforço da presença do Estado – foram intensificadas as medidas de controle da população. Como ferramenta para tais intentos, as ações relativas ao âmbito militar ganharam destaque, o que explicava “a confecção cada vez mais frequente dos mapas de tropas e populacionais que dispomos para o período”. Mas foi a partir das “primeiras décadas do século XIX que a elaboração de mapas de tropas se tornou efetivamente sistemática no Ceará”.95 Para as vilas de índios, o exato conhecimento da população servia a fins específicos. Em seu primeiro ano de governo no Ceará, Manuel Ignácio de Sampaio reclamou com o sargento-mor de Monte-mor Novo dos dados incompletos no mapa da população da vila:

GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 242-243. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 310. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina: EDUFPI, 2015, p. 171-183. 91 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Caboclismo, vadiagem e recrutamento militar entre as populações indígenas no Espírito Santo (1822-1875), p, 105. 92 De Luís Barba Alardo de Menezes a Florêncio José de Freitas Correa. Fortaleza, 12 de agosto de 1808. APEC, GC, CO EX, livro 40, p. 36. 93 De Luís Barba Alardo de Menezes a Manoel da Silva Sampaio. Fortaleza, 3 de agosto de 1808. APEC, GC, CO EX, livro 40, p. 31V. 94 COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 196-223. 95 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 244, 251. 90

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“Em tempo competente recebi um ofício de seu capitão-mor datado de 20 de maio que acompanhava o mapa da população desse termo o qual lhe torno a remeter por não estar em termos: 1º por nele não incluir os índios: 2º por claramente se conhecer que foi arbitrariamente feito. Portanto ordeno a vossa mercê [...] com a brevidade possível me remeta outro mais correto...”.96

As informações a que se referiu o governador provavelmente serviram de base – junto com as de outras localidades – ao mapa geral da capitania produzido no ano seguinte, que analisaremos mais à frente. Organizado a partir das informações concedidas pelo capitão-mor, novamente expõe a ligação entre a formação militar das ordenanças e o controle da população produtiva. A não inclusão dos índios no mapa de Monte-mor Novo se configurava como “arbitrária” por Sampaio porque a vila era de índios, e os que lá viviam e eram recrutados em companhias dos de sua “casta” eram submetidos a obrigações específicas. Sob o Diretório, serviam de mão-de-obra para o Estado e a proprietários e eram tutelados por um diretor. O conhecimento e controle da população indígena, portanto, tinha conexão direta com os objetivos de desenvolvimento econômico da capitania. O início dos oitocentos correspondeu ao período em que dom Rodrigo de Souza Coutinho ocupou os cargos de secretário de Estado dos Negócios da Guerra e ministro da Guerra do Brasil. Atendendo à preocupação da metrópole em conhecer a população colonial, Coutinho promoveu diversos levantamentos estatísticos, acentuando as informações militares.97 Para Nuno Monteiro, o ministro promoveu reformas em um contexto de prosperidade econômica – com destaque para o plantio do algodão – e de aumento da importância da colônia como produtora de matéria prima e consumidora de produtos metropolitanos.98 O desenvolvimento econômico era central nas ideias de Coutinho, e as reformas militares estimuladas por ele tinham participação crucial, segundo Manuel Amaral.99 O controle espacial da população indígena no Ceará, feito também por meio da disciplina militar e do conhecimento das tropas, conectava-se diretamente com seu aproveitamento como mão-de-obra, especialmente na cultura algodoeira.100 96

De Manuel Ignácio de Sampaio ao sargento-mor de Monte-mor Novo. Fortaleza, 22 de junho de 1812. APEC, GC, livro 15. 97 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 103. 98 MONTEIRO, Nuno. As reformas na monarquia pluricontinental portuguesa: de Pombal a dom Rodrigo de Souza Coutinho. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro. GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial, volume 3 (ca. 1720 – ca. 1821). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 141-142. 99 AMARAL, Manuel. D. Rodrigo de Souza Coutinho e o exército. A guerra peninsular, perspectivas multidisciplinares. Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar e Centro de Estudos Anglo-portugueses, 2008, pp. 355-374. Disponível em: , p. 1-4. 100 PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 265. LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da capitania do Ceará (1780-1822). Dissertação (Mestrado) ‒ Universidade Federal de Pernambuco, 1997.

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Os mapas das companhias de ordenanças, instrumento de capilaridade social, eram formas eficazes de conhecimento da população masculina ativa na busca pelo controle dos habitantes da capitania. “A população, entretanto, não constitui uma realidade prévia”, como alerta Ivana Lima, mas é composta de inapreensível heterogeneidade. O Estado lusitano procurava incessantemente classificar e ordenar a sociedade marcadamente hierárquica e hierarquizante de sua colônia americana. A autora destaca a importância de refletir acerca das categorizações presentes em muitos censos estatísticos e mapas populacionais, especialmente relativas à cor de pele ou grupos étnico-sociais. “Tratava-se de um saber técnico que pretendia esvaziar o seu próprio sentido político”, ao mesmo tempo em que procurava “ordenar a população em seu discurso”. Conhecer a população era simultâneo à sua regulação e ordenação.101 Pensando na disposição das categorias nos recenseamentos, como sugere Lima, podese notar ainda que os mapas discriminam as companhias de brancos, pardos e índios.102 Tais recenseamentos eram realizados no âmbito militar, seguindo características da sociedade do Antigo Regime no ordenamento da população e cruzando aspectos étnico-sociais. A tabela abaixo foi elaborada por José Eudes Gomes a partir de informações sobre as tropas militares do Ceará extraídas do texto da memória do antigo governador Luiz Barba Alardo de Menezes, de 1814.103 Por ela observamos que o efetivo da capitania era composto basicamente por tropas auxiliares,104 e as ordenanças de índios de Soure, Arronches e Messejana correspondiam, ao todo, a 16 companhias. Entretanto, não são discriminadas as ordenanças indígenas das vilas de Monte-mor Novo e Viçosa, mesmo sendo de índios.

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LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas, p. 23, 90, 97. Ibid., p. 97-98. 103 Cf. MENEZES, Luís Barba Alardo de. Memória sobre a capitania independente do Ceará Grande escrita em 18 de abril de 1814 pelo governador da mesma. In: Documentação primordial sobre a capitania autônoma do Ceará. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997. Apud. GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 255 104 GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 251. 102

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Tabela 1: Tropas militares no Ceará em 1814

Fonte: GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 255.

O mapa que vem em seguida foi elaborado pelo próprio governador Menezes, anexo à sua Memória. Cruzando as informações da tabela 1 com as do mapa abaixo, que apresenta um total de 48 companhias nas vilas de índios, percebemos que as das outras duas vilas somariam um significativo total de 32 unidades militares. O número, entretanto, não corresponde às 23 ordenanças das vilas de índios, contando com as de Monte-mor Novo e Viçosa, apresentadas na primeira tabela. É curiosa a incongruência dos dados, tendo em vista que os mesmos são oriundos da mesma obra.

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Tabela 2: Mapa da força militar da tropa, milícias e ordenanças da capitania do Ceará Grande (1814)

Fonte: MENEZES, Luis Barba Alardo de. Memória sobre a capitania independente do Ceará Grande escrita em 18 de abril de 1814 pelo governador da mesma, Luiz Barba Alardo de Menezes. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, tomo XXIV. Rio de Janeiro: P. L. Garnier, 1871, p. 279. Apud. GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 256.

O silêncio da primeira tabela sobre as ordenanças de índios destas duas vilas e a contradição dos dados podem ter diversas explicações, como a dificuldade comum em executar tais recenseamentos nos sertões daquele período. Além disso, é possível conjecturar a influência da própria localização das três primeiras vilas, que ficavam ao redor de Fortaleza, e de sua importância bélica na descrição das companhias. Formavam um verdadeiro cinturão de proteção armada da capital e, somadas, eram um dos maiores efetivos militares da capitania, situação estrategicamente importante pela proximidade uma das outras. Outro aspecto que chama atenção nas duas tabelas é a falta de referência às ordenanças indígenas localizadas em vilas de brancos, como a de Almofala em Sobral e a de Monte-mor Velho em Aquiraz. Os índios que eventualmente eram recrutados em tropas de brancos também não foram computados. As práticas de revista e produção de mapas, associadas à intensificação da política de passaportes, contribuíram para a fixação de alguns índios que possuíam propriedades em vilas de brancos fora de suas localidades de nascimento. Para que pudessem viver legalmente, passavam a incorporar as companhias de ordenança desses novos lugares que habitavam.105 Nas observações do Mapa da população da capitania do Ceará extraído dos que deram os capitães-mores no ano de 1813, por exemplo, registrou-se: “Deve

105

COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 320-323.

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notar-se que se algumas vilas não levam índios é por que os capitães-mores os inseriam no número de brancos”.106 Esse mapa, além de ser populacional, era também militar – já que suas informações foram extraídas pelos capitães-mores – o que reforça o vínculo que havia entre a disciplina militar e o controle da população. Os contabilizados são classificados como “brancos”, “índios”, “pretos” e “mulatos”, sendo estes dois últimos divididos entre “cativos” e “livres”, e todas as categorias contam com as subdivisões de sexo e estado civil. Como observou Ivana Lima, os índios estavam livres da distinção de livres e cativos, 107 posto que sua liberdade era garantida pelo Diretório. Vemos também uma mostra mais detalhada e aproximada da realidade dos indígenas da capitania, inclusive dos que viviam em Monte-mor Velho e Almofala, computados em Aquiraz e Sobral. Ao contrário do que argumenta Lima, os índios nem sempre apareciam de forma marginal na contabilização da população.108 Tal realidade passou a ser mais comum na segunda metade do século XIX, diferente da do início dos oitocentos, quando os indígenas ainda tinham um peso demográfico, econômico e militar significativo. Outras informações, entretanto, permaneciam silenciadas, como vemos pelo que vai indicado nas observações do mapa. O termo “mulatos” provavelmente abarcava todas as classes de mestiços, independentemente de suas procedências, o que desconsiderava as identidades étnicas e seu caráter político. A depender das situações e contextos, a fronteira entre um “índio”, um “cabra” ou um “mameluco”, por exemplo, era fluida, negociada, sujeita às dificuldades ou interesses tanto dos recenseadores ao descrever as cores ou grupos quanto dos indivíduos registrados.109 Exemplos disso eram os índios recrutados em ordenanças de brancos e não computados no mapa. Segundo Lígio Maia, a situação de índios em vilas de brancos ou fora de suas localidades de origem é assunto geralmente esquecido pelos estudiosos, talvez pela dificuldade em se analisar dados sobre esses grupos geralmente ocultados nas contagens.110 Como percebe Francisco José Pinheiro, o fenômeno pode ser caracterizado como um

“Mapa da população da capitania do Ceará extraído dos que deram os capitães-mores no ano de 1813”. Fortaleza, 1813. BN, II-32, 23, 3. 107 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas, p. 98-99, 101. 108 Ibid., 102. 109 Ibid., p. 123-127. BOCCARA, Guillaume. Antropologia diacrónica. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, 2005. Disponível em: . COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 329334. 110 MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e identidade no Ceará colonial – século XVIII. Tese (doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 305306. 106

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mecanismo utilizado pelos índios para “desaparecer frente à repressão”. 111 O recrudescimento da política de recrutamentos e as eventuais concessões aos que tinham terras produtivas fora de suas vilas são sinais da associação que havia entre o recrutamento militar, o monitoramento populacional indígena e sua importância como força de trabalho. Além disso, o dado apresentado no mapa de 1813 também indica uma primeira etapa do processo de fixação de índios fora de suas povoações de origem, acentuado durante o esvaziamento nos anos posteriores à independência. Após o governo Sampaio, talvez pela diminuição da quantidade de índios dispersos, os recrutamentos e as ações de combate à vadiagem não continuaram a ser aplicados com a mesma intensidade. Em janeiro de 1820, o governo interino ordenou a conscrição de Manoel João da Assumpção nas ordenanças de Messejana,112 e acusaram, no mês seguinte, a recepção de mapas das ordenanças de Baepina, enviados pelo diretor remetido ao antigo governador que deixara o Ceará em janeiro.113 Esses poucos registros posteriores a Sampaio são efeitos de sua ação política, que não prosseguiu da mesma forma no decorrer da década de 1820. As fontes acerca do cotidiano das ordenanças indígenas após a independência são escassas, com exceção das referentes à Confederação do Equador (que veremos no capítulo 8). Os oficiais índios ainda não haviam perdido completamente seu status perante o governo durante os conflitos liberais. Em junho de 1824, o governador do Ceará Tristão Gonçalves de Alencar Araripe ordenou à câmara de Arronches que promovesse o sargento-mor e capitãomor das ordenanças da vila, lembrando que “as patentes dos índios passam-se gratuitamente”.114 Mesmo com a separação política brasileira ainda era válido o decreto promulgado por Dom João VI que isentava os indígenas do pagamento de selo das patentes, sinal da herança do Antigo Regime e resquício dos últimos momentos de prestígio de seus oficiais. Ainda que as lideranças militares índias tivessem algum reconhecimento durante eventos bélicos na década de 1820, a situação da garantia dos direitos indígenas se encontrava cada vez mais frágil após a promulgação da Constituição de 1824. Segundo um relato da câmara de Aquiraz de 1838 sobre os índios de Monte-mor Velho, muitos “se ofereceram para a guerra do sul” em 1825 por conta das perseguições que sofriam dos vizinhos ambiciosos por suas terras. O conflito a que se referiram os vereadores era, provavelmente, a Guerra da 111

PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 238. Dos governadores interinos ao capitão-mor de Messejana. Fortaleza, 18 de janeiro de 1820. APEC, GC, livro 22, p. 168V. 113 Dos governadores interinos ao diretor de Baepina. Fortaleza, 7 de fevereiro de 1820. APEC, GC, livro 22, p. 177. 114 Diário do Governo do Ceará. Fortaleza, 22 de junho de 1824. AN, IN, caixa 742, pacote 1. 112

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Cisplatina, quando os nativos de Monte-mor Velho, em um ato desesperado, se uniram às tropas buscando reaver o que perderam e chamar a atenção do rei para sua situação. Tal atitude remete à relação de reciprocidade que costumavam ter com a recém-deposta Coroa lusitana – a exemplo do decreto de isenção de impostos de 1819 – mas, dessa vez, sem os mesmos resultados: dos que se lançaram para o sul, alguns “morreram em caminho pela peste de bexiga, e os que restaram com suas famílias foram incorporados à aldeia de Messejana”.115 “A mais bela disposição para os serviços da Marinha”

Não cessaram, contudo, os registros sobre recrutamento indígena na Marinha desde o início dos oitocentos até meados deste século. Ainda no contexto das reformas empreendidas por dom Rodrigo de Souza Coutinho,116 o ministro escreveu ao governador Barba Alardo de Menezes em novembro de 1808, ordenando-lhe que, pela pouca quantidade de “gente de serviço de mar”, enviasse o maior número que pudesse de índios para Pernambuco. Serviriam por dois anos no Arsenal Real da Marinha, ao fim dos quais revezariam com outros e seriam “convenientemente vestidos por conta da Real Fazenda”.117 Dessa forma, reforçava-se a defesa do Estado ao mesmo tempo em que se daria uma ocupação disciplinar aos índios, cujo revezamento impediria que a produção local ficasse desfalcada de braços. Índios da vila de Valença, no Rio de Janeiro, também foram recrutados para a Armada Real da Corte em 1809, como apontam Marcelo Lemos e Maria Regina de Almeida, com registro de ações violentas.118 Tais práticas prosseguiram após a independência. Em outubro de 1822, o secretário dos Negócios da Marinha, Ignácio da Costa Quintela, escreveu ao Conselho Ultramarino sobre o sustento de sete índios do Ceará que estavam no Arsenal.119 O pedido de Quintela 115

Sessão da câmara municipal de Aquiraz, 12 de fevereiro de 1838. APEC, CM, câmara de Aquiraz, pacotilha 1835-1839. Sobre envio de tropas de diferentes regiões do Brasil para a Guerra da Cisplatina, vide: RIBEIRO, José Iran. “De tão longe para sustentar a honra nacional”: brasileiros nas guerras meridionais. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História, 2005. 116 “é natural que o desenvolvimento econômico estivesse intimamente ligado ao do desenvolvimento da capacidade de defesa, que permitisse defender não só os domínios ultramarinos, base essencial, para D. Rodrigo, do futuro enriquecimento nacional, mas sobretudo, porque mais vulneráveis, as rotas comerciais. Está ligado, por isso, ao aumento significativo da Marinha, que nunca tinha sido possível, desde 1640, tornar uma força numerosa. Na verdade, só uma Marinha numerosa poderia proteger as rotas comerciais atravessada pelo comércio marítimo português”. Cf. AMARAL, Manuel. D. Rodrigo de Souza Coutinho e o exército, p. 2. 117 De Rodrigo de Souza Coutinho a Luís Barba Alardo de Menezes. Rio de Janeiro, 23 de novembro de 1808. APEC, GC, livro 48; APEC, GC, livro 49, p. 9. 118 LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio virou pó de café?, p. 131-132. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios no tempo da corte, p. 102. 119 De Ignácio da Costa Quintela ao Conselho Ultramarino. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1822. AHU_CU_006, Cx. 24, D. 1390.

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fazia sentido num contexto no qual os recrutamentos eram feitos muitas vezes de maneira violenta e sem garantias de que marujos seriam devidamente amparados.120 Por ser menos dispendiosa, a conscrição de índios nas diversas regiões do Brasil prosseguiu ao longo da década de 1820. Francieli Marinato apresenta alguns exemplos de recrutamento neste decênio no Espírito Santo, de onde “não esporadicamente [se enviava] levas de índios para o serviço militar na Corte, especialmente na Marinha”.121 Através dos governos das províncias, o Ministério da Marinha consultava a população indígena hábil para seus serviços, como foi requisitado ao presidente do Ceará, em fevereiro de 1825, que fizesse uma relação de índios lá habitantes, “declarando os seus nomes, ocupações, estado, idades e residências”.122 Segundo Manuela Carneiro da Cunha, era “opinião generalizada no começo do século XIX [...] que os índios teriam aptidões naturais para a navegação”.123 A ideia era compartilhada pelo presidente Antônio de Sales Nunes Barford, para quem os índios apresentavam “a mais bela disposição física para os trabalhos fortes, especialmente para os serviços da Marinha, pela inclinação à pesca que neles se observa”. A declaração faz parte da resposta dada à consulta aos presidentes de província para a criação do Plano de Civilização dos Índios em 1826, analisado no capítulo 2. A respeito da manutenção de alguns aldeamentos – quando já se debatia a definitiva extinção do Diretório – defendeu as que se localizassem perto de rios piscosos, satisfazendo “sua inclinação à pesca e fazendo, por este meio, os primeiros ensaios para o serviço da Marinha”. Segundo ele, se corrigissem as imperfeições do Diretório e aperfeiçoassem a escolha e contratação de diretores, seria possível diminuir a população escrava e fornecer ao Exército e à Marinha “soldados e marinheiros robustos e aptos”.124 Sobre isso, o Conselho do governo da Província do Ceará também já havia manifestado que, por serem “indiferentes às honras e riquezas”, os índios seriam apenas aptos para a guerra “e principalmente para a Marinha”.125 Como tratamos anteriormente, o posicionamento de Barfor e dos conselheiros provinciais demonstram a procura de propor alternativas em um contexto de crise de mão-de120

JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar, p. 2. MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais, p. 210. 122 De Francisco Vilela Barbosa a José Felix de Azevedo e Sá. Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 1825. APEC, MN, MM, livro 81. 123 CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo. Legislação indigenista no século XIX: uma compilação: 1808-1889. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992, 1992, 28. 124 De Antônio de Sales Nunes Barfor a José Feliciano Francisco Pinheiro. Fortaleza, 3 de novembro de 1826. In: NAUD, Leda Maria Cardoso. Documentos sobre o índio brasileiro (1500-1822): 2ª parte. Revista de Informação Legislativa, vol. 8, n. 29, 1971, p. 306. 125 PARECER do Conselho de Governo da Província do Ceará, 22 de setembro de 1826. In: Documentos sobre os nossos indígenas. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora "Instituto do Ceará", tomo LXXVII, 1963, p. 323. 121

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obra, além de entender os serviços militares como próprios para disciplinar os índios para o trabalho produtivo. Tais sugestões passavam imediatamente pela tentativa de negação do status que até então os oficiais indígenas haviam conseguido manter, mas que eram encarados pelos membros do governo como supérfluos. Os recrutamentos executados ao longo da primeira metade do século XIX demonstram que a preocupação em aproveitar a população indígena como força de trabalho não diminuiu na política indigenista do império do Brasil. De acordo com Silvana Jeha, “a Marinha foi uma das instituições escolhidas para tornar os indígenas trabalhadores, enfim, incorporá-los à sociedade nacional”.126 Em aditamento ao já comentado aviso de 29 de maio de 1837, sobre o recrutamento de índios para a Armada Imperial, o rei ordenou no mês seguinte que também fossem remetidos os que tivessem de 7 a 10 anos de idade, “a fim de se empregarem nas oficinas do Arsenal da Marinha desta Corte, e aprenderem nelas os diversos ofícios”.127 No Rio de Janeiro, o então presidente José Paulino de Souza também defendeu a conscrição de meninos índios, de acordo com Luciano Dias.128 O acréscimo ordenado pelo monarca ia de encontro à antiga luta dos índios no Ceará que havia muito combatiam a captação de suas crianças para trabalhos de aluguel em lugares distantes e por longos períodos de tempo, como vimos no capítulo 3. Ainda que o aditamento ressaltasse que o objetivo era o aprendizado de ofícios, a medida divergia enormemente das propostas de escolas de primeiras letras reclamadas pelas comunidades em seus requerimentos. Não por acaso, uma das causas para a adesão dos índios do Buriti, na serra da Ibiapada, à Balaiada – como veremos no capítulo 8 – foram as ações de recrutamento. Depois de contida a rebelião, o destino do líder balaio Antônio Marques da Costa e de outros envolvidos de Baepina capturados acabou sendo a Armada Imperial.129

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126

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Cf. JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar, p. 2. De Tristão Pio dos Santos a José Martiniano de Alencar. Rio de Janeiro, 15 de junho de 1837. APEC, MN, MM, livro 83. 128 DIAS, Luciano. Limites, índios, culto. O implacável Saquarema, 2009. Disponível em: . Acesso em 14 de fevereiro de 2016. A respeito do comentário de Joaquim Norberto de Souza e Silva, de 1854, sobre a aplicação do aviso de 29 de maio de 1837 no Rio de Janeiro, vide: MOREIRA, Vânia Maria Losada. O ofício do historiador e os índios: sobre uma querela no Império. Revista Brasileira de História, vol. 30, n. 59, 2010, p. 7. 129 AN, XM 14. Apud. JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar, p. 2. 127

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As transformações ocorridas no serviço militar indígena entre o fim do Antigo Regime português e a formação do Estado nacional brasileiro acompanharam as mudanças na condição política dessa população. Os planos de incorporação dos índios na sociedade lusitana viam na atuação das companhias de ordenanças a ferramenta de conexão entre a produção de hierarquias e fidelidades, o disciplinamento para o trabalho produtivo e, enfim, a civilização. De igual maneira, o processo gradual de expropriação das terras, dos patrimônios e dos cargos políticos – conseguidos pela elite política no período regencial pela imposição de uma cidadania supostamente igualitária – também significou a perda de patentes dos oficiais, da importância dos índios como força bélica e o fim de suas companhias. Se antes eram vassalos dignos de nobiliarquia em defesa do rei português, isso se alterou a partir das transformações políticas no país. Ainda que essa condição tenha permanecido de maneira similar durante o reinado de dom Pedro I, os índios não puderam mantê-la com a vitória do “liberalismo conservador”: não é à toa que a abdicação do monarca antecedeu em poucos meses a criação da Guarda Nacional, em 1831, e tenha sido contemporânea à primeira abolição do Diretório no Ceará. A partir daí, passaram a ser vistos como mais um grupo que compunha a massa de pobres expropriados e submissos aos grandes proprietários rurais, alistados em defesa da ordem nacional ou recrutados quando ainda não se enquadravam como cidadãos honrados. As mudanças da condição legal dos índios nesse período modificaram também sua atuação política por meio do serviço das armas. Os indígenas sabiam de sua importância para a Coroa portuguesa e o governo brasileiro durante o primeiro reinado como força militar, e a partir desse conhecimento lutavam por seus interesses. Eram fundamentais não apenas pelo poderio bélico, mas também pela fidelidade que prestavam até o fim, porque compreendiam a relação recíproca que mantinham com os monarcas. Como veremos no próximo capítulo, ainda que a produção de hierarquias promovida pelas ordenanças tenha aumentado a distância social entre lideranças e índios comuns, podemos caracterizar as patentes de oficiais como verdadeiros patrimônios comunitários, perdidos com o processo de formação do Estado nacional brasileiro. Capitães, sargentos e outros líderes militares dependiam do reconhecimento de suas comunidades, e por elas lutavam a partir dos postos que ostentavam. Com a Guarda Nacional, a restrição da ascensão social de lideranças indígenas por meio de patentes prejudicou a atuação política dos grupos, contribuindo para sua desagregação e o processo de dispersão dos índios ao longo das décadas de 1830 e 1840.

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CAPÍTULO 6 AUTORIDADES MILITARES INDÍGENAS “Eu, Antônio Tavares Nunes, de nação índio, [...] juro aos Santos Evangelhos, que quanto em mim for, terei sempre prestes a dita gente para o serviço de Sua Majestade”. (Termo de juramento como capitão-mor da vila de Arronches. Fortaleza, 3 de janeiro de 1821. APEC, GC, Livro 61, p. 82-83) “Eu, Vitorino Correa da Silva, [...] juro pelos Santos Evangelhos, [...] que quanto em mim for terei sempre a dita gente para o serviço nacional e imperial”. (Termo de juramento como capitão-mor da vila de Arronches. Fortaleza, 25 de dezembro de 1823. APEC, GC, Livro 61, p. 101V)

A formação de elites indígenas a partir do contato dos povos ameríndios com a Coroa lusitana remete ao início da dominação portuguesa na América. Como abordamos no capítulo anterior, as mercês concedidas pela Coroa aos que atuavam no Novo Mundo buscavam estreitar os laços entre a Metrópole e sua colônia e retribuíam serviços ligados ao envio de informações e a ações bélicas. Nestes dois aspectos, a inserção dos índios aliados e a nobilitação de suas lideranças eram imprescindíveis. Com a expansão do mundo atlântico português no século XVI, a adjetivação por cores dos habitantes do império seria, “tanto ou mais do que descrever, classificar socialmente”. 1 Como vimos desde o início desta tese, a legislação e a política lusitanas eram específicas para cada circunscrição administrativa e grupo social. Contudo, ainda que nem todos fossem iguais – e muito menos estivessem no mesmo “patamar” – a Coroa necessitava de sua fidelidade para a garantia da dominação nos diversos territórios. Segundo João de Figuerôa-Rego e Fernanda Olival, até pelo menos a primeira metade dos setecentos, a ascensão de não-brancos a cargos nobiliárquicos era mais flexível no Brasil no que dizia respeito aos recrutamentos. 2 Citam o exemplo da Ibiapaba, onde as insígnias da Ordem de Santiago cedidas aos índios dom Sebastião Saraiva Coutinho, dom José Vasconcelos e dom Felipe de Souza e Castro dispensaram inquirições por parte do rei dom João V. “Os imperativos da economia de mercês”, ligados às garantias de serviços na colônia, “por vezes falavam mais alto do que os preconceitos sociais”.3 1

FIGUERÔA-REGO, João de. OLIVAL, Fernanda. Cor de pele, distinções e cargos: Portugal e espaços atlânticos portugueses (séculos XVI a XVIII). Tempo, vol. 15, n. 30, 2011, p. 116-117. 2 Ibid., p. 126-127. 3 Ibid., p. 142-143. Sobre limites e flexibilizações da ascensão social indígena na colônia, vide: ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. O enobrecimento dos líderes indígenas na capitania do Rio de Janeiro: reflexões sobre significados e usos políticos diversos. Revista Ultramares, nº 5, vol. 1, 2014, p. 61-62.

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As autoridades indígenas eram geralmente nobilitadas com patentes militares, ressaltando a importância desses povos para os interesses bélicos da Coroa. Os chefes ameríndios assumiram, portanto, papel de destaque na política da Coroa como elo entre as comunidades – no sentido de congregá-las para agir pelos interesses metropolitanos – e o rei. José Eudes Gomes mostra como mercês e hábitos de Cristo foram concedidos a lideranças indígenas desde o final dos seiscentos no Ceará, no início da ocupação portuguesa na capitania.4 Uma das mais proeminentes a atuar em território cearense, compreendendo a capitania de Pernambuco e suas anexas, foi Potiguaçu, chefe dos potiguares, nascido provavelmente em 1580 e batizado em 1612 com o nome de Antônio Felipe Camarão. Recebeu os títulos de “Dom” e de “Capitão-mor e governador de todos os índios do Brasil” e as comendas “Cavaleiro da Ordem de Cristo” e dos “Moinhos de Soure e o Brasão das Armas”. 5 Segundo Juliana Lopes, a promoção militar representou “um degrau a mais no status social na Colônia”, possibilitando que o nome “Camarão” tenha se tornado um título concedido aos seus sucessores.6 Para a autora, o poder de influência da família Camarão sobre outros grupos indígenas e seu o potencial de reunião de tropas não poderia ser dispensado pela Coroa. Tal característica era particularmente importante no Ceará, estigmatizado à época como “terra sem lei” por conta das distâncias em relação aos grandes centros como Recife e São Luís e de seu precário aparelho burocrático. Já para os chefes indígenas, assim como outras lideranças, a aliança com os portugueses tinha uma série de vantagens, como aumento de poder de negociação, recebimento de títulos, mercês, soldo, entre outras.7 As características da posição de liderança militar indígena colonial eram bem diferentes do que a etnografia tradicionalmente apontou para os chefes dos grupos nativos da América. Pierre Clastre, em sua análise sobre o exercício do poder político em comunidades indígenas, indicou quais seriam as três principais atribuições de uma chefia: fazedor de paz, generoso e bom orador. Apresentada de maneira genérica, a reflexão do autor delimita grupos que não possuíam hierarquia ou lideranças coercitivas. Mas, ainda que a mesma não seja GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2009, p. 141 5 ELIAS, Juliana Lopes. Militarização indígena na capitania de Pernambuco no século XVII: o caso Camarão. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 116, 122. IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 492. 6 ELIAS, Juliana Lopes. Militarização indígena na capitania de Pernambuco no século XVII, p. 122-123. 7 Idem, p. 20, 140, 148. RAMINELLI, Ronald J. Nobreza indígena – os chefes potiguares, 1633-1695. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, p. 60-61. MAIA, Lígio José de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social: a inserção da família indígena Souza e Castro nas redes de poder do Antigo Regime na capitania do Ceará. Revista de Ciências Sociais. Fortaleza: v. 43, n. 2, 2012, p. 12-13. 4

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válida para comunidades integradas ao império colonial português, tais atributos podem ter permanecido, mesmo que com muitas modificações. Em relações aos dois últimos pontos, o caráter de orador também poderia estar presente em ações de requerimento – quando escrevia às instâncias governamentais em prol de seus liderados – e sua generosidade – por meio da qual dava e fazia tudo pelo grupo – se expressava pela manutenção de sua posição no interior de suas comunidades mesmo quando aparentemente não ganhava muito.8 Sobre as atribuições de um chefe indígena, Raminelli apresenta o exemplo de Antônio Paraupaba, liderança potiguar aliada dos holandeses no século XVII que, passando a viver nos Países-Baixos, pleiteou durante anos seu retorno à América e o reestabelecimento de sua posição como liderança militar de seu povo, sob o pretexto de novamente congregá-lo em prol dos interesses batavos. O autor não esclarece, entretanto, diante de quem Paraupaba buscava retomar o seu prestígio.9 É preciso considerar que, pela lógica ameríndia, não haveria outro caminho para esta liderança recuperar seu status: a manutenção de seu título só faria sentido se fosse de interesse do grupo, seguindo os mecanismos próprios das comunidades. Ao contrário da lógica europeia, a autoridade tribal indígena era destituída de poder, e a impotência da instituição estava estruturalmente articulada à essência da sociedade. A respeito da primeira atribuição apontada por Clastres, o poder do líder aumentava eventualmente em situações de guerra, mas sua função principal era a de mantenedor da harmonia do grupo.10 A autoridade da chefia indígena colonial, portanto, estabeleceu-se – instrumentalizada pelo colonizador e agindo pelos interesses de suas comunidades – a partir do modelo social militarizado dos corpos de ordenanças. As ações bélicas não eram raras (contra gentios, insubordinados e ameaças estrangeiras) e, quando não aconteciam, os índios aldeados viviam com a disciplina dos recrutamentos, das revistas e da vigilância no cotidiano das vilas e roçados. Se nos povos que tinham pouco contato com os colonizadores havia dois chefes – um titular (“de paz”) e outro de guerra11 – com tal sociedade militarizada as lideranças indígenas guerreiras se firmaram diante de suas comunidades e da administração colonial. Para Beatriz Perrone-Moisés, discordando da recusa do poder e da hierarquia defendida por Clastres, a duplicidade era a marca das sociedades ameríndias: em um mundo 8

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: investigações de antropologia política. Porto: Afrontamento, 1979, p. 27. 9 RAMINELLI, Ronald J. Nobreza indígena – os chefes potiguares, 1633-1695. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, p. 58. 10 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado, p. 27. 11 Ibid., p. 47-48. PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Bons chefes, maus chefes, chefões: elementos de filosofia política ameríndia. Revista de Antropologia (USP), v. 54, n. 02, 2011, p. 859-860.

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com diferentes chefes para cada situação, o que se recusava era a escolha. Não se tratava, portanto, de recusar “o ‘poder’ em nome da ‘liberdade’ ou a ‘hierarquia’ em nome da ‘igualdade’”. Todavia, com o estreitamento da relação dos grupos ameríndios com outras concepções políticas, novas fontes de prestígio e formas de autoridade poderiam surgir.12 A inserção militarizada das comunidades indígenas no império atlântico, portanto, reconfigurou o sentido das chefias. Como vimos no capítulo anterior, o Diretório não trouxe inovações acerca das ordenanças, mas delimitou o papel dos oficiais indígenas.13 Segundo Mauro Cezar Coelho, os dois fatores que sofreram a maior inflexão com a introdução da lei pombalina foram a coerção e a hereditariedade: justamente o que Clastres apontou como avesso ao poder político indígena. Coelho é enfático em afirmar que o Diretório não inaugurou tais características no seio das comunidades índias aldeadas, mas acentuou a integração dessas populações à sociedade colonial portuguesa, objetivo central da lei pombalina. “Nesse sentido, o papel das chefias [...] passa a constituir os projetos e as iniciativas de ocupação e reprodução da sociedade colonial – material e culturalmente”.14 Com o Diretório, as lideranças militares indígenas não somente atuaram na defesa dos domínios portugueses, mas foram também pivôs na transformação dos índios em vassalos produtivos e fiéis ao rei. Redimensionando suas posições como oficiais de ordenança, a lei pretendia, segundo Rita Heloísa de Almeida, reforçar o princípio de que os índios estariam “aptos a formarem quadros de representação política”. Estes deveriam, em primeiro lugar, agir para modificar os costumes de suas comunidades.15 Ângela Domingues defende que, com o Diretório, houve a formação de uma elite indígena. Possuindo patentes nas ordenanças, intentavam “diferenciar-se do comum da população”, na busca de privilégios e reconhecimento por parte da sociedade colonial.16 Segundo Rafael Ale Rocha, no século XVIII isso era de certa forma facilitado em regiões como a Amazônia, cujo peso percentual

12

PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Bons chefes, maus chefes, chefões, p. 876. Ao regulamentar o papel das lideranças como intermediadores das determinações da Coroa, o Diretório enfatiza a figura dos “principais”, como eram chamados os chefes indígenas tradicionais e bastante comentados pela historiografia. Entretanto, não encontrei nesta pesquisa, ou em trabalhos que abordem o período pombalino no Ceará, nenhuma referência ao termo, com exceção de algumas cartas patentes que o utilizam como recurso formal. 14 COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo, 2005, p. 214. 15 ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” do Brasil do século XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 183. 16 DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 174-175. 13

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dessa população na sociedade era significativo.17 Maria Regina de Almeida também concorda que o papel das lideranças como “intermediários entre as autoridades e os demais índios” foi “particularmente valorizado com a política pombalina”. A autora ressalta que nesse período os índios deixavam de ser incluídos entre as chamadas “raças infectas” e sua atuação a partir das patentes militares foi ampliada.18 A importância que tinham tais lideranças para a Coroa portuguesa foi demonstrada na pompa com que foram recebidos os chefes das aldeias do Ceará e de outras capitanias anexas a Pernambuco no Recife, para discutir a instalação das vilas pombalinas, em 1759. 19 Viabilizadores da “civilização” pretendida pela monarquia europeia para os nativos americanos, as chefias eram, de acordo com Fátima Lopes, provenientes de famílias tradicionalmente ligadas aos interesses da administração colonial. 20 Segundo Lígio Maia, com as transformações da política pombalina na segunda metade dos setecentos, tais lideranças se mantiveram ao longo de décadas “justamente porque se adequaram às inovações do Diretório, decidindo elas que

a colaboração com

as

autoridades

colonialistas era

então

imprescindível”.21 Para Adriano Paiva, a ambição das lideranças por prestígio e benefícios se deu em detrimento de seus grupos. Segundo ele, um “novo esquema sociopolítico indígena” possibilitou a criação de uma posição de “chefe que não mais representaria os interesses de suas comunidades”.22 O autor simplifica bastante a ação dos líderes militares, como se o Diretório tivesse acentuado seu egoísmo. Entretanto, isso não necessariamente acontecia. O poder que tais autoridades adquiriram de fato se transformou, passando a emanar do rei, mas

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ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina: sociedade, hierarquia e resistência (17511798). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2009, p. 15-16. 18 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 119-120. Nesse período os cristãos-novos também deixaram de ser considerados como raça-infecta. Cf. FIGUERÔA-REGO, João de. OLIVAL, Fernanda. Cor de pele, distinções e cargos, p. 145. 19 SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 125-126. LOPES, Fátima Martins. Oficiais de ordenanças de índios: novos interlocutores nas vilas da capitania do Rio Grande do Norte. Anais do XXV Simpósio Nacional de História – ANPUH. Fortaleza, 2009, p. 2. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e identidade no Ceará colonial – século XVIII. Tese (doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 271. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. O enobrecimento dos líderes indígenas na capitania do Rio de Janeiro, p. 71-72. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da América portuguesa. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, p. 133-134. 20 LOPES, Fátima Martins. Oficiais de ordenanças de índios, p. 3-4. ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina, p. 59. 21 MAIA, Lígio José de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social: a inserção da família indígena Souza e Castro nas redes de poder do Antigo Regime na capitania do Ceará. Revista de Ciências Sociais. Fortaleza: v. 43, n. 2, 2012, p. 20. 22 PAIVA, Adriano Toledo. “O domínio dos índios”: catequese e conquista nos sertões de Rio Pomba (17671813). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, 2009, p. 156-187.

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ainda dependiam de seus comandados, como aponta Bárbara Sommer.23 Segundo Patrícia Sampaio, apesar do Diretório ter reforçado as “hierarquias indígenas”, a manutenção das prerrogativas dos líderes continuava a depender, também, “de sua capacidade de fazer valer o atendimento das necessidades dos seus ‘vassalos’”.24 O poder das lideranças indígenas, ainda que transformado com as patentes de oficiais de ordenança e detalhado com o Diretório, não se desvinculava dos interesses de suas comunidades e de suas lógicas culturais. Para Mauro Coelho, as “bases tradicionais, próprias das populações indígenas, e o reconhecimento das autoridades metropolitanas” eram os pilares de sustentação das chefias indígenas durante a vigência do Diretório.25 Nos casos analisados por Clastres, se “o poder est[ava] contra o grupo”, a reciprocidade existia como a “dimensão ontológica [...] da própria sociedade” indígena.26 Entretanto, o mesmo pode ser dito sobre as lideranças índias coloniais – imbuídas de hierarquia – acerca de seu caráter recíproco, ainda que tivessem passado a conhecer o poder coercitivo. É por isso que, mesmo com a perda de importância das ordenanças de índios diante do governo brasileiro e a desagregação das comunidades na primeira metade do século XIX, as autoridades nativas se mantiveram por tanto tempo. Antes da independência, no início dos oitocentos, os oficiais de ordenanças indígenas ainda possuíam seus postos e sua relevância. Apesar da famosa passagem de Koster, em que relata o exemplo do capitão-mor índio ridicularizado pelos brancos,27 Bárbara Sommer faz referência a lideranças indígenas que mantiveram suas posições no século XIX no Pará, mesmo com a abolição do Diretório.28 Caio Prado Junior acertadamente observou que o viajante inglês, ao ironizar o oficial índio, não viu o sistema que representava e a importância das ordenanças para a sustentação da “ordem política e administrativa da colônia”.29 No Ceará, onde a lei permaneceu em vigor nos oitocentos, oficiais indígenas ainda comandavam ordenanças e participaram de eventos bélicos, como veremos nos próximos

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SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements: native Amazonians and Portuguese policy in Pará, Brazil, 1758-1798. Tese (doutorado) – University of New Mexico, 2000, p. 221. 24 SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011, p. 201-202. 25 COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar, p. 218. 26 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado, p. 40. 27 A partir de sua estadia no Ceará em 1810, o viajante registrou que os “indígenas têm também seus capitãesmores cujo título é vitalício e dá algum poder sobre os seus companheiros, mas como não há salário, o capitãomor indígena é muito ridicularizado pelos brancos, e com efeito, um oficial meio nu, com sua bengala de castão de ouro na mão é um personagem que desperta o riso nos nervos mais rijos”. KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo/Fortaleza: ABC Editora, 2003, p. 177. 28 SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements, p. 236. 29 PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1961, p. 326.

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capítulos. É possível afirmar, portanto, que nesta capitania ainda havia uma “elite indígena” no início do século XIX que continuou pela própria permanência do Diretório que a consolidou. Os descendentes das antigas lideranças militares setecentistas, ainda que não tivessem o respeito exigido por lei de autoridades coloniais, eram prestigiados pelos governantes metropolitanos e por seus liderados. Capitães e sargentos-mores indígenas mantiveram a existência de uma hierarquia hereditária nessas comunidades pelo menos até a passagem das décadas de 1820 e 1830. Com a descentralização da política indigenista e a promulgação da lei da Guarda Nacional, o espaço de prestígio pela via militar se tornou bastante restrito para os índios. Várias pesquisas acerca dos kaingangs no sul do país fazem referência a diversas lideranças que atuaram na ocupação de territórios e na luta contra índios arredios na década de 1830, como Vitorino Condá e Viri. Segundo Lúcio Mota, ainda nesse período, mesmo que de certa forma colaborassem “com os brancos, jamais lhes foram totalmente submissos e confiáveis”.30 Eram, entretanto, indispensáveis para os planos do império brasileiro, e por isso receberam salários, ferramentas, tecidos e até títulos militares, como conta Kátia Malage.31 Patentes foram concedidas a índios mesmo após a independência, mas diminuíram drasticamente com a Guarda Nacional, salvo as raras exceções que vimos no capítulo anterior. No Ceará, elas desaparecem no final da década de 1820, bem como as referências à atuação dos oficiais na documentação.

6.1. NOMEAÇÕES E JURAMENTOS

O Regimento dos Capitães-mores de 1570 estabelecia, em seu §1º, que a ocupação de cargos de oficiais de ordenanças era feita a partir de eleições nos senados das vilas.32 Segundo Angélica Camargo, a realização desses pleitos nas câmaras “estabelecia um vínculo estreito entre estas e as ordenanças, que acabaram por assumir o caráter de braço auxiliar na execução da política administrativa metropolitana”. No governo de dom José I (1750-1777) verificou-se o ápice do processo de “restrição gradual do poder de ingerência das câmaras” nesses

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MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924). Maringá: Eduem, 2008, p. 231. 31 MALAGE, Kátia Graciela Jacques Menezes. Condá e Viri: chefias indígenas em Palmas-PR, década de 1840. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Paraná, 2010, p. 105-107. 32 Regimento dos capitães-mores e mais capitães e oficiais das companhias da gente de cavalo e de pé e da ordem que terão em se exercitarem. 15 de dezembro de 1570. Disponível em: .

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regimentos auxiliares, que já vinha ocorrendo em períodos anteriores.33 Nessa época, os vereadores passaram a apenas indicar os nomes que seriam empossados pelo rei ou pelo governador das capitanias. Entretanto, a nova forma não impediu a articulação das elites camarárias com as tropas locais, como vemos nos exemplos trabalhados por José Eudes Gomes.34 O Diretório, também criado no reinado josefino, não trouxe alterações na forma de escolha das autoridades de ordenanças indígenas.35 Mas, ao elevar as aldeias a vilas, criou novas formas de distinção social por meio das câmaras e o vínculo entre oficiais militares e índios vereadores, consolidando as hierarquias e as elites nativas nas comunidades. Como apontou Rafael Rocha, os textos das nomeações e cartas patentes costumavam seguir regras formais que indicavam as pretensões da Coroa acerca do papel das lideranças indígenas nas vilas. Ressaltavam a importância na hierarquia da qual faziam parte, a função de intermediários entre os interesses monárquicos e seus subordinados e, às vezes, o ganho advindo de sua patente.36 Algumas, entretanto, eram bem sucintas, restringindo-se a apontar os nomeados e seus respectivos cargos, como foi o caso de Manoel de Jesus, posto no cargo de alferes da companhia de ordenança dos índios de Arronches em março de 1799, por ordem do governador Luis da Motta Féo e Torres.37 Também foi concisa a nomeação de Virgínio da Costa Lima como capitão-mor das ordenanças do povoado de Baepina, no mesmo mês da anterior: aqui, entretanto, o documento assinala para o fato de que o nome de Lima foi “proposto pela câmara de Vila Viçosa”. 38 A liberdade que os vereadores das vilas de índios tinham para indicar pessoas para ocupar postos militares é um indício da relativa importância das lideranças indígenas na sociedade colonial. Ainda que os líderes fossem submetidos a um diretor, com quem muitas vezes mantinham relações conflituosas, as indicações de oficiais pelas câmaras proporcionavam que o ambiente político em tais vilas fosse marcado pela resistência aos abusos dos administradores leigos. Consequentemente, um grupo mais ou menos coeso de autoridades nativas se montava com o reconhecimento de suas comunidades. 33

CAMARGO, Angélica Ricci. Companhia de ordenanças. In: Mapa: memória da administração pública brasileira. Disponível em: , p. 2-3. 34 Cf. GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 90, 210. 35 O diretor, figura criada com a política indigenista pombalina, provavelmente não atuava na escolha de oficiais de ordenanças indígenas, já não lhe cabia “exercitar jurisdição coativa nos índios, mas unicamente à que pertence ao seu ministério, que é diretiva”. Cf. DIRETÓRIO que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão, enquanto sua Majestade não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1758, §2. 36 ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina, p. 71. 37 Nomeação de Manoel de Jesus como alferes da vila de Arronches. Fortaleza, 1 de março de 1799. APEC, GC, livro 65, p. 228V. 38 Nomeação de Virgínio da Costa Lima como capitão-mor de Baepina. Fortaleza, 27 de março de 1799. APEC, GC, livro 65, p. 229V.

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A indicação de Manoel José da Rocha para sargento-mor de Monte-mor Novo também havia sido proposta pela câmara da vila, em junho de 1799. Sua nomeação, entretanto, é mais extensa, sendo mais rica em aspectos formais: previa que diretor e outros principais o deixassem “servir e exercitar com toda a jurisdição” o posto a que era nomeado, “que pelos regimentos e ordens de Sua Majestade”. Da mesma forma, exigia que os “índios seus subordinados o reconhece[ssem] por seu sargento-mor, e como tal lhe obedece[ssem], cumpri[ssem] e guarda[ssem] as suas ordens, por [?] e de palavra, como devem e são obrigados”.39 Rafael Rocha destaca a função de intermediários dessas lideranças militares índias e sua atuação na consolidação do governo nas vilas.40 Ainda que diretores e outros representantes da Coroa geralmente não respeitassem sua posição, a relação que mantinham com seus subordinados costumava ser de respeito. A situação se explicava, além de se posicionarem frequentemente em defesa de sua comunidade, pelo próprio fato de que seus postos e destaque eram reconhecidos e constituídos pelo monarca. Nomeações e patentes de oficiais indígenas também ressaltavam a importância do Diretório e de sua estrutura administrativa nas vilas. Em outubro de 1799, o governador Bernardo Manuel de Vasconcelos nomeou Antônio Ferreira Pessoa e Gabriel Ferreira Maciel aos cargos de comandante de Monte-mor Velho e Monte-mor Novo, respectivamente. Obedecendo ao diretor, capitão-mor e mais principais, e “conformando-se com as determinações do Diretório”, deveriam “executar as ordens que se acham estabelecidas”. Da mesma forma, às autoridades da localidade, ordenou-se que o reconhecessem, honrassem e estimassem, assim como pagassem os “emolumentos que direitamente lhe pertencem”.41 Fazia parte das incumbências de um oficial indígena garantir a plena execução da lei, disciplinando seus subordinados e atuando para sua integração à sociedade portuguesa. Os registros também atestam a política diferenciada da Coroa portuguesa para distintas realidades de sua colônia: pouco tempo após a promulgação da Carta Régia de 1798 no norte da Colônia, as referidas cartas patentes são exemplos de que a distinção social incentivada pela política pombalina ainda era vigente em algumas regiões. Assim como ocorria desde a instalação das vilas, a posição de liderança continuou tendo a ver com linhagens familiares. Em 7 de março de 1800, foram confirmadas as patentes 39

Nomeação de Manoel José da Rocha como sargento-mor de Monte-mor Novo. Fortaleza, 18 de junho de 1799. APEC, GC, livro 65, p. 235. 40 ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina, p. 95. 41 Nomeação de Antônio Ferreira Pessoa como comandante de Monte-mor Velho. Fortaleza, 14 de outubro de 1799. Nomeação de Gabriel Ferreira Maciel como comandante de Monte-mor Novo. Fortaleza, 31 de outubro de 1799. APEC, GC, livro 66, p. 6 e 12.

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de sargento-mor para Francisco da Costa Vasconcelos e de capitão-mor para José da Costa Vasconcelos Mascarenhas, nas ordenanças de Vila Viçosa.42 A família Vasconcelos era uma das mais importantes da Ibiapaba, e seus membros aparecem recorrentemente nos registros ligados à autoridades nativas da região.43 O capitão-mor Vasconcelos Mascarenhas faleceu em 1807, e com a vacância de seu posto foi nomeado Ignácio de Souza e Castro: o mesmo que, em 1817, encabeçou o elogioso abaixo-assinado em homenagem a Manoel Ignácio de Sampaio, que analisamos no capítulo 4. Souza e Castro era membro de outra família indígena tradicional e descendente de figuras importantes para estabelecimento português no Ceará.44 Na sua carta patente, o governador José Carlos Augusto de Oyenhausen-Gravenburg ressaltou que o nome do novo capitão-mor fora indicado pela câmara da vila: mais um indício da posição de destaque em sua comunidade, em que havia sido sargento-mor. No seu lugar, foi nomeado no mesmo dia João da Costa da Anunciação, que já havia assumido o posto de capitão de uma das companhias da mesma ordenança. Pelo texto de suas nomeações, Souza e Castro e Anunciação não receberiam soldo nos novos postos, mas gozariam “de todas as honras, graças e privilégios que em razão dele[s] lhe[s] pertencerem”.45 A proeminência de um oficial indígena em virtude da possibilidade de acúmulo material, de que falam Fátima Lopes e Lígio Maia,46 parecia não ser uma regra, já que oficiais de tropas auxiliares não eram pagos. Henry Koster, inclusive, explicou o deboche sofrido pelos capitães-mores índios por não receberem salário.47 Até mesmo uma autoridade como Ignácio de Souza e Castro – membro de uma família importante, descendente de figuras destacadas e com uma reconhecida experiência nos serviços da Coroa – não receberia qualquer pagamento como mercê pela nova patente. Ainda assim, o fato não diminuía a relevância do papel que ocupava como ponte de ligação entre o monarca e sua comunidade. Daí talvez viesse a zombaria mencionada por Koster: mesmo sem remuneração, os capitãesmores provavelmente se percebessem como socialmente importantes. Na relação recíproca de 42

Nomeação de Francisco da Costa Vasconcelos como sargento-mor de Vila Viçosa. Confirmação de patente de capitão-mor de Vila Viçosa a José da Costa Vasconcelos Mascarenhas. Fortaleza, 7 de março de 1800. APEC, GC, livro 66, p. 45. 43 Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 95-96. XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos": dinâmicas das relações sócio-culturais dos índios do termo da Vila Viçosa Real - século XIX. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 27-30. 44 Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 282-290. 45 Nomeação de Ignácio de Souza e Castro como capitão-mor de Vila Viçosa. Fortaleza, 4 de fevereiro de 1807. APEC, GC, livro 67, p. 115. Nomeação de João da Costa da Anunciação como sargento-mor de Vila Viçosa. Fortaleza, 4 de fevereiro de 1807. APEC, GC, livro 67, p. 116. 46 LOPES, Fátima Martins. Oficiais de ordenanças de índios, p. 9. MAIA, Lígio José de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social, p. 12-13. 47 KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil, p. 177.

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fidelidade – prestada pelo vassalo – e mercê – dada pelo rei – não havia privilégio maior para um índio do que a possibilidade de comunicação direta com o soberano português. Prova disso foi a isenção do subsídio militar em 1819, uma demonstração de reconhecimento de dom João VI da atuação das ordenanças indígenas em 1817. O decreto, que abolia o imposto cobrado aos índios, veio após a súplica de Manoel Ignácio de Sampaio e, principalmente, a iniciativa dos índios da Ibiapaba – com destaque para o já mencionado abaixo-assinado organizado por Souza e Castro. Além disso, a nomeação sem soldo de Anunciação não o impediu de defender a manutenção da ordem em nome do governo contra os índios revoltosos da Ibiapaba em 1822, como vimos no capítulo 3. Atestamos, portanto, que no início do século XIX as lideranças militares indígenas ainda mantinham suas prerrogativas diante do rei e poder sobre seus comandados, compondo as hierarquias hereditárias das comunidades. A ascensão de um oficial por meio das ordenanças de índios não se dava apenas por vacância de um posto ou pela proposição da câmara, mas também pela iniciativa individual de alguns. Um caso já analisado por Lígio Maia e por mim foi o de Antônio de Verçosa que, em 1815, solicitou a patente de alferes e o ofício de vaqueiro em uma das fazendas reais no Piauí. Para isso, alegou ter sido soldado nas ordenanças sua vila e ser descendente de Lopo Tavares da Silva, ajudante de dom Felipe Camarão, o que foi posteriormente provado ser falso.48 Mais sucesso encontrou Antônio Alves Barbosa, que em 1804 teve seu pedido deferido para ser nomeado comandante dos índios de Baepina. Em sua carta patente, destaca-se a obrigação de “manter a paz e o sossego entre seus comandados, e a aplicá-los à cultura das terras e plantações, principalmente da mandioca, na conformidade do Real Diretório”.49 Mais uma vez fez-se referência à política pombalina enquanto regulamento das competências de uma autoridade militar. Em seu papel de transmitir as intenções da Coroa para as comunidades que lideravam, os oficiais militares indígenas também eram peças importantes na civilização dos seus comandados por meio do incentivo trabalho e do sucesso da produção nas vilas de índios. Cientes de sua posição na sociedade portuguesa e do reconhecimento e mercês que recebiam do rei, costumavam agir a favor dos interesses reais. E mesmo nas situações já estudadas em que encabeçaram mobilizações a favor da abolição do Diretório, o que pleiteavam não era o fim do trabalho e, muito menos, a quebra de vínculos 48

MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 280-281. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina: EDUFPI, 2015, p. 324-329. 49 Nomeação de Antônio Alves Barbosa como comandante de Baepina. Fortaleza, 20 de fevereiro de 1804. APEC, GC, livro 70, p. 2V.

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com a monarquia e outras autoridades, mas, sim, respeito às suas posições e autonomia em suas terras. A Coroa também poderia ganhar com a concessão dos títulos de oficial aos índios, na medida em que conseguia estender geograficamente seu poder para a população do município de uma vila de índios, empossando-os para localidades distantes e afastadas das sedes das vilas. Os casos a seguir são exemplos desse funcionamento das ordenanças como instrumento de capilaridade social. Entre 1819 e 1820 foram passadas patentes de capitão-mor a quatro oficiais de distritos: Antônio Francisco Pereira na Pavuna e Ignácio da Silva Campelim na Caracanga, povoados de Messejana; Gabriel da Silva Rios para a 3ª companhia das ordenanças de Soure, “cujo distrito principia da serra Taquara até o rio Ceará, e de largura da Urucutuba até a serra do Coité”; por fim, Francisco de Paula Barbosa na 20ª companhia de Vila Viçosa, correspondendo do “lugar denominado Tape até a povoação de São Pedro de Baepina”. Em todas as referidas cartas patentes o capitão-mor empossado havia sido indicado pela câmara, ocupando o posto por vacância e sem receber soldo.50 Como foi dito, a ausência de soldo não impedia o reconhecimento de uma autoridade indígena perante os seus. Mesmo sem pagamento, a existência de tais cargos era uma possibilidade real de distinção social para índios que viviam em comunidades afastadas, além de ser uma chance de obtenção de outros privilégios. Assim funcionava o sentido da capilaridade das companhias de ordenança, fazendo com que a militarização e a disciplina alcançassem todos os vassalos. As cartas patentes de capitão-mor para Atanásio de Faria Maciel, de Messejana, Francisco da Costa Lira, de Soure, e Antônio Tavares, de Arronches, tem formato semelhante às analisadas há pouco. Eles ocuparam os cargos por vacância, indicados pelas câmaras respectivas e não receberiam soldo, gozando, contudo, “de todas as honras, graças, privilégios, liberdades, isenções e franquias que em razão dele lhe pertencerem”. 51 A pesquisa conseguiu localizar os termos de juramento desses três oficiais. Os textos são os mesmos, pelos quais os recém-empossados capitães-mores identificaram-se como “de nação índio”,

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Nomeação de Antônio Francisco Pereira como capitão-mor de Messejana. Fortaleza, 12 de junho de 1818. Nomeação de Ignácio da Silva Campelim como capitão-mor de Messejana. Fortaleza, 12 de junho de 1818. Nomeação de Gabriel da Silva Rios como capitão-mor de Soure. Fortaleza, 17 de fevereiro de 1819. Nomeação de Francisco de Paula Barbosa como capitão-mor de Vila Viçosa. Fortaleza, 12 de dezembro de 1819. APEC, GC, livro 70, p. 59, 60, 66 e 85V. 51 Nomeação de Atanásio de Faria Maciel como capitão-mor de Messejana. Fortaleza, 5 de dezembro de 1820. Nomeação de Francisco da Costa Lira como capitão-mor de Soure. Fortaleza, 5 de dezembro de 1820. Nomeação de Antônio Tavares como capitão-mor de Arronches. Fortaleza, 5 de dezembro de 1820. APEC, GC, livro 74, p. 23V, 24V e 25V. Registro de patente de capitão-mor de Soure a Francisco da Costa Lira. APEC, GC, livro 62, p. 281V.

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tendo “sempre prestes a dita gente para o serviço de Sua Majestade, e defensão do dito lugar e obediente aos seus mandados como bom e leal vassalo”. Com “a dita gente” fariam guerra quando ordenado pelo rei, mas jamais usariam dela para defender interesses particulares. Fizeram homenagem nas mãos do monarca, “uma, duas, três vezes segundo o uso e costume destes reinos”, jurando aos Santos Evangelhos usar apenas da jurisdição dada pelo soberano lusitano.52 Diferentes da documentação do século XVIII analisada por Rafael Rocha, a dos oitocentos já não mais constava o grupo étnico do oficial nomeado, referência substituída pela indicação que o mesmo era de “nação índio”.53 Segundo Marcus Carvalho, o “interesse em distinguir as nações por suas raízes étnicas perdera-se na primeira metade do século dezenove”, quando os índios “passaram a ser identificados apenas pelo local onde estavam aldeados”.54 A nova expressão presente nos juramentos relacionava-se com os objetivos integradores da política indigenista da época e de diluição étnica dos índios, desvinculando-os de seus costumes ancestrais. O termo “nação” demarcava a busca pela inserção dos grupos indígenas, desfeitos de suas antigas diferenças e especificidades culturais, como um dos corpos que constituíam a sociedade portuguesa.55 O formato destes juramentos, feitos pouco tempo antes da separação política brasileira, difere também em aspectos importantes do único encontrado por esta pesquisa para o período após 1822, talvez a última patente de oficial indígena de ordenança no Ceará. O registro é referente à nomeação de Vitorino Correa da Silva como capitão-mor de Arronches em 5 de dezembro de 1823,56 cujo juramento se deu no dia 25. À frente dos homens brancos e índios das ordenanças da vila, com a mão direita sobre os evangelhos, jurou ter “sempre prestes a dita gente para o serviço nacional e imperial, e defensão do dito lugar, obediente aos seus mandados como fiel súdito”. Fez “preito e homenagem à nação e à S. M. I. [Sua 52

Termo de juramento de Atanásio de Faria Maciel como capitão-mor de Messejana. Fortaleza, 12 de dezembro de 1820. Termo de juramento de Antônio Tavares Nunes como capitão-mor de Arronches. Fortaleza, 3 de janeiro de 1821. Termo de juramento de Francisco da Costa Lira como capitão-mor de Soure. Fortaleza, 17 de janeiro de 1821. APEC, GC, livro 61, p. 82-83. 53 ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina, p. 74. 54 CARVALHO, Marcus J. M. de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (1817-1848): Ideologias e Resistências. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de. GALINDO, Marcos. Índios do Nordeste: temas e problemas – III. Maceió: EDUFAL, 2002. p. 76. 55 “A sociedade moderna concebia-se a si mesma como um corpo. A sua constituição proviria, tal como a do corpo, da natureza. A vontade, quer do rei, quer dos súditos, não a poderia alterar. Os diversos órgãos sociais (famílias, Igrejas, comunidades, grupos profissionais) teriam, tal como os órgãos do corpo, uma extensa capacidade de auto-regulamentação”. Cf. XAVIER, Ângela Barreto. HESPANHA, Antônio Manoel. A representação da sociedade e do poder. In: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. O Antigo regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, s/d, p. 122. 56 Nomeação de Vitorino Correa da Silva como capitão-mor de Arronches. Fortaleza, 5 de dezembro de 1823. APEC, GC, livro 62, p. 352.

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Majestade Imperial]” e afiançou guardar “em tudo o Diretório, e as determinações diretoriais”, usando inteiramente da “jurisdição que pela nação e S. M. I. é-me dada”.57 O termo nação é recorrente nos juramentos apresentados, mas guardam significados distintos, característicos dos momentos em que foram feitos. Na primeira, se refere aos índios que os capitães-mores lideravam: faziam parte daquele povo, constituinte, por sua vez, da heterogeneidade de súditos da Coroa portuguesa. Já quando utilizado no caso de Vitorino Correa da Silva, reflete o momento de formação do Estado brasileiro e sua nacionalidade. Como veremos no próximo capítulo, os índios também estiveram inseridos nesse processo, seja através da formação de tropas em alerta a qualquer chamado, em situações de juramento à bandeira do novo país como também em combates reais contra a resistência portuguesa no Piauí, ocorrida poucos meses antes da nomeação do referido oficial de Arronches. No dia seguinte ao juramento de Vitorino da Silva registrou-se sua carta patente, com formato bem semelhante às outras já analisadas. Difere, entretanto, em aspectos formais que ressaltam a constituição da nova nação. Esperava-se dele que, “em tudo o de que for encarregado do serviço nacional”, haveria “com pronta satisfação, desempenhando o conceito que forma de sua pessoa, e mais por se achar o proposto nas circunstâncias do decreto de 9 de outubro de 1812 e mais ordens imperiais”. Não receberia soldo, gozaria de “graças, privilégios, liberdades, isenções e franquezas” e era obrigado a confirmar patente no prazo de um ano. Oficiais e soldados subordinados deveriam obedecê-lo e guardar “suas ordens no que pertencer ao nacional serviço”.58 De acordo com José Caros Chiaramonte, o conceito de “nação” tende a despojar seu sentido étnico desde, pelo menos, o século XVIII. Com a passagem para os oitocentos, o “Estado” muda sua natureza, “adotando a palavra nação para arrogar-se a soberania”.59 Para François-Xavier Guerra, no Antigo Regime, o termo nação se referia a um grupo de indivíduos de origem comum. Após a independência, adquiriu seu sentido moderno, significando a “associação voluntária de indivíduos iguais”. Passou-se a pensar uma sociedade comum,60 sem os corpos sociais que caracterizavam, por exemplo, as divisões militares no Brasil colonial. Mas, como lembrou Istvan Jancsó, para as elites brasileiras a 57

Termo de juramento de Vitorino Correa da Silva como capitão-mor de Arronches. Fortaleza, 25 de dezembro de 1823. APEC, GC, livro 61, p. 101V. 58 Registro de patente de capitão-mor de Arronches a Vitorino Correa da Silva. Fortaleza, 26 de dezembro de 1823. APEC, GC, livro 72, p. 120. 59 CHIARAMONTE, José Carlos. Metamorfoses do conceito de nação durante os séculos XVII e XVIII. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 67, 87. 60 GUERRA, François-Xavier. A nação moderna: nova legitimidade e velhas identidades. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 52-55.

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hipótese de integrar a população do novo país a partir de uma “coesão interna com base em critérios universais (fundamento da ideia nacional), pareceu-lhes absurda. Para elas, o corpo social, no seu todo, não formava a nação, nem deveria formá-lo.”61 A nomeação de um oficial de companhia de ordenanças índias após a independência, jurando defender, ao mesmo tempo, a nação e as determinações do Diretório, é um sinal desse aspecto. Era notória a continuidade de aspectos do Antigo Regime no pós-independência, especialmente no que dizia respeito às hierarquias sociais e identificações étnicas por conta do conservadorismo característico do período, como defende Carlos Guilherme Mota. Segundo o autor, somente com a marginalização do poder central, em 1831, é que o “Brasil vai consolidar sua identidade propriamente nacional”, opinião também compartilhada por Kenneth Maxwell.62 Assumamos o desafio proposto por João Paulo Pimenta acerca dos estudos sobre o processo de independência do Brasil, para que se investiguem indivíduos e grupos de diferentes condições sociais relacionando-os com as transformações das categorias.63 Para um oficial indígena como Vitorino da Silva, os dois conceitos de “nação” – ligados ao seu povo e ao país – se sobrepunham. Segundo Ângela Xavier e Antônio Manuel Hespanha, a função do rei no Antigo Regime, sendo a cabeça do corpo social, era a de representar a sua unidade e “manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio [...], garantindo a cada qual seu estatuto”.64 Por sua vez, a nova “nacionalidade” brasileira, ao ter o monarca como centro e amálgama, ainda guardava muitas características do regime político anterior. Dessa forma, não necessariamente o vínculo étnico que tinha com seu grupo se extinguia, e mais do que isso, era possível adquirir uma posição de destaque advinda tanto do reconhecimento comunitário como também da nação e de seu rei. Seguindo as sugestões de Tamar Herzog, é preciso buscar reconstruir os significados das comunidades, bem como das categorias, critérios e mecanismos de exclusão e inclusão,

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JANCSÓ, István. Este livro. Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 28. 62 MOTA, Carlos Guilherme. Ideias de Brasil: formação e problemas (1817-1850). Viagem incompleta. A experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p. 223. MAXWELL, Kenneth. Por que o Brasil foi diferente? O contexto da independência. In. MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p. 194. 63 PIMENTA, João Paulo Garrido. A independência do Brasil e o liberalismo português: um balanço da produção acadêmica. Revista de História Ibero-americana, v. 01, n. 01, 2008, p. 90-91. 64 XAVIER, Ângela Barreto. HESPANHA, Antônio Manoel. A representação da sociedade e do poder, p. 123. LARA, Silvia Hunold. Introdução. In: LARA, Silvia Hunold. Ordenações Filipinas, livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 19-20. PALTI, Elías. Entre a natureza e o artifício: a concepção de nação nos tempos da independência. Lua Nova, n. 81, 2010, p. 19.

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para as pessoas que nelas viveram no período aqui estudado.65 Oficiais indígenas reforçavam suas posições de vassalo e de autoridades por meio dos juramentos que prestavam e pelo compromisso de defenderem os desígnios das monarquias a que eram fieis. Enxergavam-se como dignos súditos da Coroa lusitana e, posteriormente, como partícipes da nação brasileira. Por um lado, a manutenção de divisões por corpos característicos do Antigo Regime, como as ordenanças entre 1822 e 1831, fora sintoma do conservadorismo de uma elite escravocrata e paternalista que não aceitava a igualdade entre os membros do país e nem sua convivência com índios, negros e mestiços nas mesmas companhias. Por outro, o fim dessas corporações militares pode ser considerado o decreto do estabelecimento dessa política conservadora, visando dificultar o acesso de não-brancos aos cargos do oficialato. Tidas como “liberais”, as promulgações da Constituição de 1824 e da lei da Guarda Nacional em 1831 não foram suficientes para fazer dos índios “iguais”: apesar do argumento de “igualdade perante a lei”, a cidadania brasileira passou a ser vivida de forma gradativamente excludente. A partir do período regencial e com o advento do Segundo Reinado, a existência de lideranças militares indígenas se tornou cada vez mais rara.

6.2. A ATUAÇÃO DOS OFICIAIS INDÍGENAS

Um detalhe que geralmente escapa à historiografia quando comenta o relato de Henry Koster sobre o ridicularizado capitão-mor indígena era que, apesar da forma como era tratado pelos brancos, o mesmo tinha “algum poder sobre seus companheiros”.66 Aparentemente pouco, porque limitado, esse poder já era, por si, significativo, levando em consideração a forma pela qual o papel dos chefes nas sociedades tribais ameríndias era tradicionalmente descrito, como vimos no início deste capítulo. Também nos possibilita a reflexão acerca da posição de intermediários desses oficiais nativos entre os desígnios da Coroa e as expectativas de seus comandados. A integração desses povos pelo meio militar, reforçada pelo Diretório, incentivou uma hierarquização no seio dessas comunidades, ainda que a capacidade de coerção dessas lideranças se impusesse até certo ponto, o que talvez explique a expressão “algum poder” por parte do viajante inglês. Conflitos internos e contestações de subordinados poderiam existir nas comunidades indígenas, como vimos nos exemplos de Viçosa e Maranguape nos capítulos 3 e 4, quando

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HERZOG, Tamar. Identidades modernas: estado, comunidade e nação no império hispânico. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 119. 66 KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil, p. 177.

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oficiais combateram outros índios pela defesa da ordem governamental. Dentro das ordenanças isso também era possível, como aconteceu em Almofala em 1813. O índio Jacinto Tavares e outros companheiros foram presos por deixarem de “executar a ordem do seu capitão-mor quando foram chamados para uma diligência do Real Serviço”. 67 Da mesma forma foi detido o cabo de esquadra Gonçalo José Dias, que em 1816, na mesma povoação, “desobedeceu e injuriou ao capitão-mor também índio Luiz Farias da Silva”.68 As punições por insubordinação eram praxe no mundo militar, independente da corporação. O fato de acontecerem em ordenanças de índios, no entanto, é digno de reflexão a respeito das hierarquias nas comunidades que, como vimos anteriormente, por mais que não fossem novidade com o Diretório, haviam sido por ele reforçadas. Tanto a disciplina quanto o respeito às diligências reais eram valores que se buscavam sempre incentivar nos grupos nativos. Prestar obediência aos oficiais, portanto, fazia parte do processo civilizador que a Coroa pretendia para os índios, na medida em que essas lideranças eram postas como representantes dos desígnios reais. Mas, como vimos acima, isso nem sempre acontecia, o que revela os limites tanto da disciplina estabelecida pelas ordenanças e por meio do Diretório, quanto da subordinação aos capitães-mores indígenas e ao cumprimento de diligências monárquicas. Os chefes militares índios eram incumbidos de uma série de serviços pelos governos imperiais (português e brasileiro) e da capitania. Além de questões ligadas a defesa, comandantes, sargentos e capitães-mores eram delegados para a vigilância e imposição da ordem em suas comunidades. Em fins do século XVIII e início dos oitocentos, a política portuguesa procurava aliar crescimento econômico e controle da população, fazendo das corporações militares armas de combate à vadiagem e mecanismos de disciplinamento dos trabalhadores.69 Tais intentos são expressos claramente em uma comunicação do governador Manuel Ignácio de Sampaio a um sargento-mor da vila de Monte-mor Novo de 1812:

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De Manuel Ignácio de Sampaio a Vicente Ferreira da Ponte. Fortaleza, 28 de novembro de 1813. APEC, GC, livro 34, p. 130. 68 De Manuel Ignácio de Sampaio a Francisco Braga. Fortaleza, 15 de fevereiro de 1816. APEC, GC, livro 20, p. 139V. 69 NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial: (1777-1808). São Paulo: Editora HUCITEC, 1989, p. 141-143, 254-255. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Caboclismo, vadiagem e recrutamento militar entre as populações indígenas no Espírito Santo (1822-1875). Diálogos Latinoamericanos, n. 11, 2006, p. 94. AMARAL, Manuel. D. Rodrigo de Souza Coutinho e o exército. A guerra peninsular, perspectivas multidisciplinares. Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar e Centro de Estudo Aglo-portugueses, 2008. Disponível em: , p. 14. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará: 1680 – 1820. Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008, p. 265. IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares: mapeando os espaços militares luso-brasileiros. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro. GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial, volume 3 (ca. 1720 – ca. 1821). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 507-508.

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“Vossa mercê me informará se será necessário criar algum outro comandante de distrito de novo a fim de se conseguirem os dois fins principais do estabelecimento dos comandantes, a saber: a manutenção da boa ordem e do sossego público e o adiantamento da agricultura no que os ditos comandantes devem também ter a maior vigilância persuadindo e obrigando os povos a que façam roçados e plantações, principalmente de mandioca, e remetendo presos a esta vila os que desprezando estes avisos continuarem a ser vadios ficando-me responsáveis pela falta de execução a esta mesma ordem”.70

Para não serem considerados vadios, os índios deveriam viver em sua vila de origem e trabalhar de forma ordenada como todos seus conterrâneos (com exceção dos que possuíam propriedades agrícolas produtivas em vilas de brancos). Aí entrava a função dos oficiais índios, cujos comandantes de distrito eram destacados pelo governador, já que suas ações de controle, vigilância e incentivo ao trabalho nos roçados deveria ser feita de forma cotidiana em cada uma das localidades dos municípios indígenas. Articulava-se, portanto, a atuação dos oficiais indígenas com o controle social e o desenvolvimento econômico (no caso cearense, da cultura da mandioca) pretendido pela Coroa portuguesa no início do século XIX. Outro aspecto a se destacar do ofício de Sampaio é a consulta feita ao sargento-mor acerca da necessidade de nomeação de novos comandantes índios. Como vimos nas cartas patentes, os oficiais indígenas também atuavam na escolha de lideranças, procedimento comum em outros regimentos auxiliares. Em 1809, o sargento-mor dos índios de Monte-mor Novo Manoel José da Rocha foi designado para a abertura de pelouros para vereador nas vilas de Arronches e Soure.71 Em dezembro de 1812, o governador Sampaio ordenou ao capitãomor dos índios de Vila Viçosa que fizesse junto à câmara a “proposta dos postos vagos que se acharem no corpo das ordenanças dos índios do seu comando, seguindo em tudo o que se acha determinado pelo regimento das ordenanças e Diretório a qual me dirigiram”.72 Por se achar vago o posto de sargento-mor do “terço de ordenanças” de Messejana, o governador ordenou ao senado da câmara da dita vila que, “chamando o capitão-mor respectivo, na conformidade da lei e mais reais determinações, deverão fazer proposta para os ditos postos vagos”.73 Apesar dos conflitos e desacatos serem possíveis internamente, não anulavam a autoridade que era dada aos oficiais indígenas de executar diligências e de impor a disciplina 70

De Manuel Ignácio de Sampaio ao sargento-mor de Monte-mor Novo. Fortaleza, 22 de junho de 1812. APEC, GC, livro 15. 71 Cf. CATÃO, Pedro. Baturité: subsídio geográfico, histórico e estatístico. Revista do Instituto Histórico do Ceará. Fortaleza: Ramos e Pouchain, 1938, tomo LII, p. 185-186. 72 De Manuel Ignácio de Sampaio ao capitão-mor de Vila Viçosa. Fortaleza, 2 de dezembro de 1812. APEC, GC, livro 16, p. 54. 73 De Francisco Alberto Rubim para a câmara de Messejana. Fortaleza, 20 de dezembro de 1820. APEC, GC, livro 101, p. 137V.

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em seus comandados. Segundo Freire Alemão, a partir de relatos que obteve da “gente mais antiga” de Baturité (Monte-mor Novo) em 1859, até o início do século XIX os índios da vila eram “particularmente governados pelos seus capitães”.74 Todas estas questões, somadas à liberdade que tinham de escolher suas próprias lideranças, mostram que a dependência de suas prerrogativas em relação às comunidades continuava fazendo parte da cultura política desses grupos. Reuniam-se em uma mesma política indigenista, como expôs Sampaio, os padrões militares das ordenanças – relativos à indicação de oficiais – com os objetivos de integração civilizatória do Diretório, ainda vigente no Ceará oitocentista. O prestígio que tais figuras assumiram em seus respectivos grupos era expressivo. Vimos no 3º capítulo um memorial dos índios de Messejana de 1822 para que fossem abolidos os diretores e passassem a ser administrados por seus capitães-mores. Além do combate dos índios ao instituto da tutela e aos abusos desses representantes do governo, o registro pode ter a ver com o interesse particular das lideranças em assumir posições de comando de forma mais autônoma. Por outro lado, isso não exclui a possibilidade de o texto ter sido uma demonstração do valor que os oficiais militares indígenas tinham em suas comunidades e da vontade dos índios em substituir os diretores pelos seus capitães, sargentos e comandantes. A hierarquização imposta pelas ordenanças e reforçada pelo Diretório transformara a figura dos chefes: de “os que reúnem”

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passaram também a coagir; de

“iguais” passaram a detentores de prestígio. E, ainda que aspectos tradicionais da relação que mantinham com seus líderes tenham permanecido, era inegável a preferência dos índios por eles, em detrimento de outros administradores. A importância de tais postos também se demonstrava na forma como defendiam suas posições e invocavam os privilégios que consideravam a eles inerentes, como afirma Ângela Domingues.76 Há registro de duas atestações solicitadas pelos “capitães oficiais das ordenanças índias” de Messejana à câmara da vila em 1810 e 1817.77 Não consta na documentação os motivos dos pedidos – possivelmente relativos à concessão de passaporte – mas sinalizam vantagens disponíveis apenas àqueles que ocupavam tais posições. Em de outubro de 1814, os oficiais índios das ordenanças de Arronches solicitaram isenção “de todo 74

ALEMÃO, Francisco Freire. Notícias sobre o povoamento e o desenvolvimento de Baturité. Apud. Anais da Biblioteca Nacional: os manuscritos do botânico Freire Alemão [catálogo e tradução por Darcy Damasceno e Waldir da Cunha]. Rio de Janeiro: Divisão de Publicações e Divulgação, vol. 81, 1961 [1964], p. 313-314, p. 339 75 PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Bons chefes, maus chefes, chefões, p. 875. 76 DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, p. 175. 77 Termo de vereação da câmara de Messejana. Messejana, 12 de novembro de 1811. APEC, CM, câmara de Messejana, livro 58, p. 271V. Termo de vereação da câmara de Messejana. Messejana, 25 de fevereiro de 1817. APEC, CM, câmara de Messejana, livro 59, p. 45.

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serviço das suas companhias enquanto ocupam algum lugar na câmara dessa vila”. Em resposta, o então governador Sampaio argumentou que: “semelhante pretensão não tem fundamento algum nem entre os índios, nem mesmo entre os brancos, porquanto nenhum capitão de ordenanças branco deixa de comandar a sua companhia nem de executar todas as ordens relativas ao Serviço das ordenanças enquanto ocupa algum lugar de vereador”. 78

Ainda que o Diretório buscasse utopicamente promover uma equiparação dos índios aos demais vassalos,79 os indígenas não eram assim tratados.80 Tal situação, ainda que clara – como indicara Koster – não era impedimento para que os oficiais se percebessem como dignos de mercês e buscassem vantagens para si,81 e que, neste caso, beneficiaria até os indígenas comuns que serviam na companhia. Em sua resposta, mesmo que talvez tentasse parear índios e brancos, o governador deixava claro que tais grupos não estavam no mesmo patamar. Em um de seus comentários no processo sobre o grande requerimento dos índios da Ibiapaba, analisados no capítulo 1, Sampaio também reconheceu a estima dos índios em relação aos seus postos. Vimos que o decreto de isenção do subsídio militar e do pagamento de selo no registro das patentes para os índios do Ceará, da Paraíba e de Pernambuco, promulgado por dom João VI em 1819, decorreu de suas opiniões sobre os impostos pagos pelos índios. Segundo o governador, o subsídio militar, estabelecido no Ceará desde 1800, motivava muitos indígenas a migrar para o Piauí, onde não era cobrado tal tributo, e por isso pedia sua extinção.82 Solicitava a mesma “augusta contemplação de Sua Majestade” em relação ao selo das patentes. De acordo com Sampaio, “uma das coisas que, com efeito, mais estimula os índios é a promoção aos diversos postos de ordenanças índias”, e mesmo que pobres, os oficiais indígenas eram “dignos de toda a estimação”. Portanto, requeria ao rei que os selos fossem pagos pela secretaria do governo da capitania.83

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De Manuel Ignácio de Sampaio a Florêncio José de Freitas Correia. Fortaleza, 26 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 19, p. 108. 79 Cf. ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios, p. 165. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, p. 38. GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009, p. 74. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 108. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 23. 80 Cf. COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar, p. 244. ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina, p. 77. 81 Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 341. 82 De Manuel Ignácio de Sampaio ao Marquês de Aguiar. Fortaleza, 01 de agosto de 1815. BN, C-199, 14 83 De Manuel Ignácio de Sampaio a Thomas Antônio de Vilanova Portugal. Fortaleza, 2 de julho de 1818. BN, C-199, 14.

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O pedido do governador, atendido pelo monarca, visava estreitar ainda mais os laços de fidelidade entre os oficiais indígenas e a Coroa. Mesmo que, em muitas ocasiões, não estivessem em pé de igualdade com os brancos, eram dignos da atenção real pela presteza e comprometimento dos serviços que prestavam. Tal dignidade não era apenas imaginada pelos índios, mas era comprovada pela monarquia e se materializava nas relações de fidelidade e concessões de mercê. O estímulo que tinham com a promoção nos postos de ordenança vinha do reconhecimento que recebiam do rei, exemplificado no decreto de isenção de tributos de 1819, o que alimentava o caráter externo de seu prestígio. Em seu estudo sobre a realidade do Rio de Janeiro, Rafael Corrêa destacou a importância que as chefias davam às patentes que solicitavam, reforçando o reconhecimento da autoridade do rei e o estabelecimento de seus domínios.84 O Diretório, além disso, instituía e consolidava a ordem social hierárquica da sociedade portuguesa nas povoações indígenas, reforçando as diferenças entre oficiais e liderados.85 Os índios comuns, mesmo demonstrando em diversas ocasiões serem soldados competentes e fieis ao rei,86 não recebiam os mesmos benefícios que suas lideranças. Todavia, como lembra Elisa Garcia, conhecendo bem os códigos dos agentes coloniais, os chefes buscavam garantir não apenas seu lugar de destaque, mas também “benefícios para os seus liderados”.87 É preciso, portanto, atentar para o caráter interno do prestígio: ou seja, o reconhecimento dos líderes por parte dos de sua comunidade. Podemos perceber tal relação pela forma como oficiais militares atuavam em prol de seus comandados, a exemplo do memorial de Messejana. Vimos também no 3º capítulo a proposta de extinção do cargo de diretor de Monte-mor Velho, levada à câmara de Aquiraz pelo comandante José Francisco do Monte em 1821. No grande requerimento dos índios da Ibiapaba, a que nos referimos há pouco, em quase todas as assinaturas dos indígenas que participaram do abaixo-assinado constavam patentes militares. Estava dividido entre a primeira (composta por um tenente, dois sargentos e cinco cabos), segunda (um capitão, um tenente, um alferes, dois sargentos e quatro cabos) e terceira companhias das ordenanças de Vila Viçosa (um capitão, um tenente, um alferes, dois sargentos e três cabos), além da divisão do capitão-mor Ignácio de Souza e

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CORRÊA, Luís Rafael de Araújo. A aplicação da política indigenista pombalina nas antigas aldeias do Rio de Janeiro: dinâmicas locais sob o Diretório dos Índios (1758-1818). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2012, p. 222-223, 246. 85 Ibid., p. 295. SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements, p. 188. 86 GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio, p. 85. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 287-304. 87 GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio, p. 80.

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Castro (com mais três capitães, um tenente, três sargentos, dois alferes, um cabo, um ajudante e outros 10 indivíduos sem patente registrada).88 Os objetivos dos oficiais indígenas nem sempre eram os mesmos de seus comandados. Por um lado, já observamos em outros momentos desta tese que a heterogeneidade de interesses dentro dos grupos era uma realidade constante. Por outro, como disse há pouco, as lideranças militares, lutando pela melhoria dos seus, agiam também em benefício próprio. Além disso, aquilo que entendiam ser vantajoso para si e sua comunidade poderia não ser necessariamente compartilhado pelos seus subordinados. Lembremo-nos do abaixo-assinado encabeçado pelo capitão-mor Ignácio de Souza e Castro, onde ele e mais de 20 outros oficiais – além de vários indivíduos sem patente – manifestaram o desejo que tiveram de participar dos conflitos de 1817 e defenderam a permanência de Manuel Ignácio de Sampaio na capitania.89 Como disse no 4º capítulo, as lideranças indígenas conheciam bem o combate do governador contra os abusos que sofriam dos proprietários e de outras autoridades locais, além de seu ideal de ordem, disciplina e produtividade que também compartilhavam e defendiam. Entretanto, não seria de se espantar que alguns índios comuns tivessem vibrado pela não convocação para a guerra – apesar de não termos encontrado registros a respeito – e que muitos não nutrissem os mesmos sentimentos afetuosos pelo governo – a tirar pela intensa perseguição promovida por Sampaio aos dispersos e punição aos considerados vadios. Mas em muitas ocasiões o ganho comunitário era bem mais evidente, como em um caso registrado por Freire Alemão nas cópias que elaborou de documentos da Ibiapaba quando por lá passou em 1860.90 Em 1798, o capitão-mor dos índios de Viçosa, José da Costa Vasconcelos Mascarenhas (falecido em 1807 e substituído por Ignácio de Souza e Castro, como vimos anteriormente neste capítulo), colaborou com o capitão-mor branco da mesma vila, Antônio Luiz Cavalcante, elaborando uma certidão para um requerimento seu. Cavalcante fazia uma reclamação ao governador da capitania dos abusos do diretor da vila, Amaro Rodrigues de Souza, que impedia que os índios trabalhassem para ele em suas lavouras, ameaçando-os com castigos. Isso porque Cavalcante não estaria obedecendo a Souza, que estaria tratando-o como “se fosse seu dirigido, e pois que o suplente percebe que 88

Abaixo-assinado dos índios da Ibiapaba à rainha dona Maria I, anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93. 89 Abaixo-assinado de Ignácio de Souza e Castro e demais índios de Viçosa a dom João VI. Vila Viçosa, 31 de julho de 1817. AN, AA, IJJ9 518. 90 Diário de Francisco Freire Alemão, “Requerimento do capitão-mor Antônio Luiz Cavalcante; despacho, e uma certidão passada pelo capitão-mor José da Costa Vasconcelos Mascarenhas. Vila Viçosa, 12 de julho de 1798”. Vila Viçosa, dezembro de 1860. BN, I-28, 9, 13. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento.

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ele só é diretor dos índios, e nada mais”. O capitão-mor branco se disse “manso, pacífico e caritativo com os índios, pagando-lhes todos os seus jornais na forma de costume, e a sexta parte que toca ou pede o diretor”. Por ser “falido de escravos”, Cavalcante não via “outro remédio senão valer-se unicamente de V.ª S.ª para que se sirva mandar que o capitão-mor desta vila dê índios ao suplente que promete lhes pagar o seu salário sem haver faltas nas sextas partes” do diretor, com “aumento dos dízimos reais ou o que V.ª S.ª for servido conferir”. Na cópia de Freire Alemão encontram-se registrados o despacho do governador do Ceará, Luiz da Motta Féo e Torres, e a certidão do capitão-mor índio José Mascarenhas. O líder da capitania lembrou a distribuição de índios que deveria ser feita para as plantações dos moradores com os devidos pagamentos. Segundo ele, “Sua Majestade no mesmo Diretório o recomenda ir”, considerando como “extravios da Real Fazenda as repugnâncias dos diretores em darem índios para as lavouras”. Já o capitão-mor Mascarenhas firmou conhecer Cavalcante havia quatro anos, e certificou que o mesmo era... “... manso e pacífico, muito temente a Deus e ao seu pároco, e à justiça de Sua Majestade e com muita caridade e união com os naturais e sobrenaturais [nãoíndios], vivendo de suas plantas de algodão e mais negócios de fazendas secas, e me consta que tem pago os jornais a todos que trabalham, como também as sextas partes que [?] o diretor lhe toca, e intencionalmente dá cumprimento a todos os seus tratos: e quem disser o contrário é pouco temente a Deus, e o que posso informar em fé do meu cargo e jurarei se necessário for”.

O caso é mais um exemplo, largamente abordado pela historiografia, de abuso de poder dos diretores em vilas de índios, mas aqui nem mesmo uma autoridade militar branca escapou dos excessos do administrador. Os argumentos utilizados por Cavalcante e reforçados por Torres buscam explicitar o quanto as atitudes de Souza atingiam o desenvolvimento econômico – prioridade da política portuguesa na passagem dos séculos XVIII e XIX – e feriam as determinações do Diretório, ainda vigente no Ceará. Mas por que o capitão-mor indígena se comprometeu em ajudar nas reclamações de seu colega branco? Poderia se pensar, a priori, que um chefe índio seria uma figura que, em defesa de seu povo, lutaria sempre contra a utilização do trabalho indígena. Todavia, como vimos no capítulo 3, em suas mobilizações políticas, os índios não eram a favor do ócio ou reivindicavam ficar sem trabalhar, mas combatiam a exploração violenta de sua mão-de-obra. É possível também supor que havia interesses envolvidos na relação pessoal de Mascarenhas e Cavalcante, mas não há no registro qualquer prova de que o capitão-mor indígena ganhasse

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alguma coisa. Faz-se necessário, portanto, procurar outros motivos que fizeram com que Mascarenhas se unisse ao capitão-mor branco contra o diretor. 17 anos depois, Amaro Rodrigues de Souza foi citado como um dos diretores de que passaram por Viçosa no grande requerimento dos índios desta vila, de 1814, que visavam abolir o Diretório pelos males provocados por esses representantes da Coroa. Foi denunciado pelos solicitantes por mandar os “filhos dos índios aos moradores no interesse dos donativos das quatro patacas de passaporte a dois mil réis”. Era violento ao cobrar as sextas partes, prendendo os que não pagavam, e “por ser tão injusto nas suas justiças requereram os índios ao ilustríssimo governador e o botaram fora de sua direção”.91 Os índios tinham, portanto, motivos suficientes para combaterem o diretor, tendo mostrado, inclusive, seu poder de mobilização ao conseguirem removê-lo do cargo, como aponta Maico Xavier.92 Para Rafael Rocha, a inserção de lideranças indígenas na sociedade colonial e o manejo da burocracia imperial portuguesa possibilitou que soubessem solicitar a intervenção das autoridades metropolitanas contra ações arbitrárias de administradores locais, influenciando inclusive na escolha ou exoneração de diretores.93 Voltemos a 1798: era bem mais vantajoso para os índios trabalhar para quem pagava em dia e os tratava bem do que viver sob a tirania daquele que os explorava de diversas formas. O capitão-mor Mascarenhas, ao produzir sua certidão em apoio a Cavalcante, não ganhava aparentemente nada, mas agia em benefício de sua comunidade. Um segundo caso ocorreu em Messejana em janeiro de 1816. O comandante Atanásio de Faria Maciel, os capitães-mores Veríssimo da Silva Carneiro e Antônio José Correa, os alferes José da Silva Carneiro e Francisco Pereira Correa Lima “e todos os mais soldados que moram e plantam no lugar do Cambeba [hoje, bairro de Fortaleza]” pediram providências a respeito do gado dos vizinhos que invadiam seus roçados. Segundo eles, viviam nessa localidade havia muitos anos, “mansos e pacificamente, plantando suas lavouras para a sustentação de suas famílias” e pagando “o dízimo a Deus”. Passaram, porém, a ser “desinquietados e flagelados, perseguidos de gados, e muito principalmente depois que se veio introduzir vizinhos dos suplicantes”. Pediram proteção do governador para que se fizesse justiça pelas “circunstâncias em que se acha[vam] as terras desta vila [que] é de índios”. Com tamanha “pobreza nela não produzem as plantas, [...] e nesta forma se veem os suplicantes em consternação de largarem o exercício da agricultura, e tudo por falta de humanidade dos 91

Abaixo-assinado dos índios da Ibiapaba à rainha dona Maria I, anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93. 92 XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 91. 93 ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina, p. 115.

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donos dos bois”. Por fim, requereram ao líder da capitania, “como pio, justo e reto”, que impusesse pena a quem levasse o gado sem pastoreio, “e com isto virá a notícia de vossa excelência o aumento da agricultura desta vila”.94 Nesta situação, se atendidos, todos ganhariam, e os oficiais, ainda que tenham sido os únicos a ser citados nominalmente, se colocaram como tão afetados quanto seus liderados. Os primeiros, cujos sobrenomes se repetiam (da Silva Carneiro e Correa), provavelmente faziam parte de famílias tradicionais em postos de liderança na vila. O comandante Atanásio de Faria Maciel, mesmo não pertencendo a nenhuma destas duas famílias, foi nomeado capitão-mor em 1820 – como analisamos anteriormente – sendo mais um exemplo de ascensão social por meio das ordenanças. No texto, os requerentes se utilizaram da hierarquia do Antigo Regime na estrutura formal do pedido, se colocando à frente da causa, mas sem esquecerem-se dos outros moradores, referidos como soldados recrutados das ordenanças da comunidade. A organização dos solicitantes e a forma como se apresentaram é reflexo do sistema militarizado desta sociedade e da maneira como os índios eram nela integrados. Também era um recurso discursivo dos índios, por meio do qual buscavam destacar a posição social de seus líderes e sua função como defensores dos interesses da monarquia. Outro argumento utilizado – recorrente em várias solicitações indígenas analisadas nesta tese e na do capitão-mor de Viçosa que vimos há pouco – foi o “aumento da agricultura”, que viria naturalmente caso a justiça do governador se impusesse. De acordo com os requerentes, a terra era bem-sucedida enquanto apenas eles, pacíficos e religiosos, viviam na região. Pensando na identidade como marcada pela diferença em relação ao outro,95 os índios, ao se descreverem como súditos trabalhadores e ordeiros, retratavam ao mesmo tempo os recém-chegados de forma negativa. É mais um exemplo de como o posicionamento indígena defendia que a prosperidade só seria possível pela sua posse efetiva de seus territórios. Em contrapartida, o “flagelo” e o fracasso da produção agrícola eram atribuídos aos proprietários brancos, desfeitos de humanidade. Assim como os índios descritos por Targini, como vimos no primeiro capítulo, invertiam a origem da barbárie a eles tantas vezes imputada.

94

De Atanásio de Faria Maciel, Veríssimo da Silva Carneiro, Antônio José Correa, José da Silva Carneiro, Francisco Pereira Correa Lima e mais índios do Cambeba a Manuel Ignácio de Sampaio. Primeiro despacho em Fortaleza, 10 de janeiro de 1816. AN, 8J, p. 105. 95 “A produção da identidade do ‘forasteiro’ tem como referência a identidade do ‘habitante do local’. [...] uma identidade é sempre produzida em relação a uma outra”. WOODWARD. Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 46. XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 242-244

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Também aqui o âmbito militar se aliava ao desenvolvimento econômico na caracterização do lugar dos índios no império lusitano, que dizia respeito tanto aos desígnios da Coroa quanto aos interesses dos próprios nativos. Para o governo, os índios aliados eram importantes seja para a defesa como para a cultura da terra. Reconhecer sua fidelidade e a posição de seus oficiais, nesse caso, teria como consequência a continuidade da produção agrícola. No lado indígena, a nobilitação militar lhes dava respaldo diante dos governantes para combater os intrusos, proteger suas terras e garantir a subsistência de seus comandados. Por fim, vejamos outro caso ocorrido em Soure, em agosto de 1827. O secretário do governo José de Castro Silva escreveu ao diretor da vila a respeito da requisição do comandante parcial dos índios e de polícia desse distrito. Ordenou-lhe que as satisfizesse “a bem da mesma polícia”, na esperança que cessassem “as representações de faltas respectivas que por vezes tem feito aquele comandante subir à sua presença”. 96 O registro não esclarece com mais detalhes o motivo das representações. Entretanto, por terem sido pelo “bem da polícia” e pela insistência com que eram feitas, é possível deduzir que foram ações em que este chefe militar agiu como porta-voz dos anseios de sua comunidade.

* *

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As referências à atuação de lideranças militares indígenas na primeira metade dos oitocentos desaparecem nos registros da década de 1820 por conta do fim dos corpos de ordenanças. A criação da Guarda Nacional em 1831 e a extinção das antigas companhias auxiliares restringiram ao máximo a possibilidade de ascensão de índios por meio de patentes. Havia exceções: a pesquisa de Kátia Malage mostra como o chefe Vitorino Condá passou da qualidade de “assassino” para a de “pacificador” pelas autoridades do sul da província de São Paulo (atual Paraná), por meio de sua colaboração no combate aos índios selvagens. 97 No Ceará a realidade parece ter sido oposta. No tempo do império português, mesmo que nem sempre recebessem emolumentos ou outras quantias em dinheiro, os oficiais possuíam outras vantagens e reconhecimento por parte da monarquia. Mas após 1831, sem nem ao menos prestígio, ser líder de uma comunidade indígena parecia ter proveitos ínfimos.

96

De José de Castro Silva ao diretor de Soure. Fortaleza, 14 de agosto de 1827. APEC, GP, CO EX, livro 7, p. 92. 97 MALAGE, Kátia Graciela Jacques Menezes. Condá e Viri, p. 95-96.

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Com poucas possibilidades de conseguir benefícios individuais, diante da desagregação comunitária, da usurpação das terras e da crescente discriminação, porque alguém continuaria ocupando a posição de chefia de um grupo de índios após a década de 1830? Para responder esta pergunta, observemos um exemplo que foge de nosso recorte temporal, mas que pode nos ajudar na reflexão acerca das transformações e da relação ao longo dos oitocentos entre o universo militar, o significado dos postos de liderança e a condição política dos índios. Francisco Freire Alemão e Antônio Bezerra, a partir das informações que registraram em suas passagens pela serra da Ibiapaba, fizeram referências a um índio idoso chamado Luiz de Miranda, que era tratado pelo título de capitão. Quando esteve em São Benedito em 1860, Freire Alemão conversou com ele, que teria sido responsável pela permanência dos índios de sua comunidade em suas terras, combatendo os esbulhos que frequentemente aconteciam, especialmente após a Lei de Terras de 1850.98 Antônio Bezerra visitou a localidade em 1884, e escreveu a respeito do já falecido Miranda, “chefe dos índios e capitão-auxiliar de polícia, título que lhe foi conferido pelo governo e que honrou sempre”. Passava revista aos membros de sua comunidade, punia os que não compareciam e havia sido “uma garantia de ordem entre os seus”.99 O capitão Miranda citado pelos viajantes era o mesmo índio Luiz José de Miranda a quem o presidente Francisco de Souza Martins fizera referência em 1840 como um dos que combateram os rebeldes da balaiada em São Benedito.100 Parece ter sido uma exceção entre os índios do Ceará, já que, em meados do século XIX, conseguira uma patente policial pelo governo. De forma semelhante a Vitorino Condá, possuíra certo destaque em sua localidade e contava com o reconhecimento governamental. Note-se aqui a conjunção de dois fatores para a existência de um chefe militar nesse período posterior ao fim das ordenanças. Por um lado, sua posição social tinha uma origem externa, amparada com o título dado pelo governo. Em nome do Estado impunha a ordem, ostentava sua patente como prerrogativa de autoridade. O segundo fator era interno: a comunidade o reconhecia como líder, e ele, por sua vez, lutava por ela, pela posse de suas terras e por sua sobrevivência. A natureza da liderança militar indígena ao longo dos oitocentos, portanto, não se resumia apenas em interesses pessoais, mas se vinculava de forma Diário de viagem de Francisco Freire Alemão. “Viagem de Fortaleza até a Serra Grande”, 1860-1861. BN, I28, 8, 11. 99 BEZERRA, Antônio. Notas de viagem. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1965, p. 166. 100 MARTINS, Francisco de Souza. Relatório que apresentou o Exm. Sr. Doutor Francisco de Souza Martins, presidente desta província, na ocasião da abertura da assembleia legislativa provincial no dia 1º de agosto de 1840. Fortaleza, Tipografia Constitucional, 1840, p. 6. 98

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visceral com o grupo e sua organização, guardando, assim, características tradicionais que ainda sobreviviam e conviviam com as transformações culturais e políticas vivenciadas pelos índios. Apesar das ordenanças terem produzido hierarquias, reforçadas pelo Diretório, as mesmas não aboliram por completo a inerente reciprocidade em relação às comunidades, que continuaram inclusive após a criação da Guarda Nacional. Por fim, um último aspecto a se mencionar é o posicionamento do capitão Miranda durante a Balaiada, enfrentando os insurgentes que, no caso do Ceará, eram indígenas de outras localidades da Ibiapaba. Ele e seus companheiros de São Benedito buscavam reconhecimento do governo a partir da luta que travavam pela manutenção e definição do que eles eram enquanto índios e do seu chefe enquanto liderança. Respondendo ao desafio proposto por Rafael Rocha, de “saber se (e como) os índios internalizaram os ideais de poder do mundo dos brancos”,101 vimos que as transformações vivenciadas pelos líderes nativos não se davam com uma absorção completa dos padrões governamentais. Tampouco a partir de uma negação aberta: constituíam leituras próprias – indígenas – dos momentos que viviam, da legislação e conjuntura política disponíveis e a partir da luta por benefícios. Isso é valido tanto para análise da atuação de oficiais de ordenanças quanto para de chefes com menos prestígio, como era o caso do capitão Miranda e seus liderados da Ibiapada. Em relação aos últimos – e a outros que assumiram posicionamentos diversos – suas ações estavam inseridas na construção do Estado brasileiro e tinham a ver com a forma como queriam dela participar, como veremos nos próximos capítulos.

101

ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina, p. 90.

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CAPÍTULO 7 OS ÍNDIOS DO CEARÁ NAS GUERRAS DE INDEPENDÊNCIA

"Armados de arcos e de flechas este povo miserável posto em armas torna-se tremendo" (José Pereira Filgueiras, 1823. AN, IN, caixa 742, pacote 1) “É sempre bom lembrar que não se deve tomar os outros por idiotas” (CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópoles: Vozes, 2008, p. 273)

A solução brasileira para os problemas nas relações com Portugal em meados de 1822 não era óbvia nem unânime nas diversas regiões do país. Como afirma André Roberto Machado, em sua análise sobre a realidade paraense, nem ao menos a questão se os habitantes da América lusitana queriam se alinhar ao Rio de Janeiro ou continuar unidos a Portugal era pertinente. Segundo o autor, “é só em um contexto mais amplo, o da crise do Antigo Regime português, que este processo pode ser compreendido”. Para fugir do anacronismo, que tradicionalmente pretende visualizar uma identidade nacional brasileira bem anterior à separação política do Reino Unido, Machado ressalta, primeiramente, a multiplicidade de projetos possíveis para as pessoas contemporâneas à independência. Em segundo lugar, assim como no Pará, em qualquer outro lugar do Brasil dificilmente havia uma posição hegemônica a respeito dos rumos a seguir, o que provocou profundas cisões nas províncias.1 Admitir-se brasileiro e opor-se aos portugueses era uma das várias opções plausíveis aos que viviam no Brasil naquele período – e isso acabou prevalecendo em épocas e por motivos diferentes para cada circunscrição administrativa. Portanto, o antilusitanismo, marcante no Brasil desde a reunião das Cortes em Lisboa em 1821, precisa ser caracterizado em seus contextos locais. Segundo Roland Rowland, os próprios conceitos de “brasileiro” e “português” não se definiam como nacionalidades, não foram dadas de antemão e nem sequer diziam respeito, necessariamente, aos locais de origem. Os termos se referiam a quem apoiava ou não o projeto centralizador de dom Pedro I, independentemente se tivesse nascido ou não na Europa.2 Para ele, “nas décadas de 1820 e 1830, o antilusitanismo tinha um evidente 1

MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo regime português na província do Grão-Pará (1821-25). Tese (doutorado) – USP, 2006, p. 38-39. 2 ROWLAND, Robert. Patriotismo, povo e ódio aos portugueses: notas sobre a construção da identidade nacional no Brasil independente. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 372-373.

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sentido político e foi utilizado quer como discurso de legitimação do novo Estado independente, quer nas lutas a respeito da centralização do Estado”.3 Como defende Gladys Ribeiro, nem mesmo a palavra “independência” se referia diretamente à separação política entre Brasil e Portugal. Segundo ela, “a emancipação política não estava em questão” entre 1821 e 1822, tendo em vista que, em termos econômicos, o Brasil já não dependia de Portugal. Para a autora, a emancipação política “foi muito mais obra do combate pela liberdade, que até o último momento se pensava em obter dentro da Nação portuguesa”.4 Não se tratavam, portanto, de lutas apenas pela prevalência de projetos nacionalistas, mas de embates por meio dos quais os grupos sociais atuavam em busca de vantagens. Desde 1821, as notícias que chegavam das Cortes de Lisboa, que passavam a ser vistas como “tirânicas e desejosas de agrilhoar novamente a ex-Colônia”, geraram manifestações em diversos lugares no país, exigindo “respeito às nossas especificidades, às nossas instituições, à nossa emancipação, entendida como autonomia”.5 Segundo Ribeiro, as disputas de nacionalidade conviveram com as clivagens de cunho étnico-raciais que caracterizavam aquelas sociedades. O envolvimento de grupos sociais subalternos (como escravos, libertos, mestiços, brancos pobres e índios) nos conflitos contemporâneos à separação política brasileira, independente de que lado apoiavam, se relacionava à busca pela liberdade e igualdade.6 Foi assim com os índios de Maranguape, que analisamos no capítulo 3. Divergindo dos que imaginam que as pessoas não tinham uma noção clara dos acontecimentos, deixando-se cooptar facilmente pelos poderosos, a autora destaca que a base das agendas reivindicatórias dos que lutavam naquele período eram suas experiências, mesmo que estivessem afastadas do poder político.7 Além disso, as lutas em torno de identidades nacionais que ainda estavam sendo construídas escondiam, muitas vezes, os preconceitos raciais “e também os desforços na busca por melhores condições de vida. [...] Os conflitos antilusitanos tinham muito mais um conteúdo racial e ‘patriótico’, sem serem nacionalistas”.8 Os tumultos de rua nos centros urbanos, os eventuais motins nos sertões e os acirrados debates políticos mostram que a separação política de Brasil e Portugal “não foi nada amigável”, pois “processou-se com lutas e ao custo de muito sangue derramado”. Mas, além 3

Ibid., p. 384-385. RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Tese (doutorado) – Universidade de Campinas, 1997, p. 88. 5 Ibid., p. 85. 6 Ibid., p. 271. 7 Ibid., p. 299. 8 Ibid., p. 311-312. 4

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disso, este período também foi caracterizado pelas diversas batalhas entre forças armadas que se estenderam até 1823. Carlos Daróz chega a defender, inclusive, que o exército brasileiro “foi criado e forjado na luta contra os portugueses”. Com o efetivo das tropas brasileiras formado, em sua maioria, por regimentos auxiliares, o autor, contudo, não problematiza as motivações políticas dos voluntários e quem seriam os “vagabundos” que na ocasião foram recrutados à força. Segundo Daróz, “coube a esses homens lutar na Guerra de Independência do Brasil”. Ao utilizar letras maiúsculas, o autor não percebe que não houve apenas “uma guerra”, deixando de lado a heterogeneidade de contextos onde ocorreram batalhas e de interesses entre os diversos grupos sociais.9 A respeito das lutas pela adesão do Piauí à separação política brasileira, Bernardo Pereira de Sá Filho foi um dos primeiros a estudá-las a partir da participação das classes populares. Para o autor, era impossível que a sociedade piauiense tivesse consciência política do que acontecia porque “a grande maioria da população era constituída de analfabetos”. Sua pesquisa não “verificou uma verdadeira participação social decorrente da formação de uma consciência política”. Segundo ele, sendo meramente aliciado, o povo não teria participado “efetivamente do processo de independência do Piauí, pois não lhe fo[ra] dado o direito de decidir sobre sua história”.10 De maneira contrária, Claudete Dias vai além da ideia de cooptação popular e defende a “participação autônoma de parcela das forças sociais diante do projeto de independência desejado pelas autoridades governamentais e militares”. Para a autora, a repressão às manifestações populares era prova de que os subalternos tinham consciências próprias do momento que viviam e não apenas executavam os ditames da elite letrada,11 tornando insustentável o argumento de Sá Filho. A tese de Dias se complica quando destaca, de maneira anacrônica, que a guerra excedia em “patriotismo e heroísmo em favor da causa da independência”,12 buscando enxergar o conceito moderno de “pátria” no contexto da independência. 13 A autora também

9

DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. A milícia em armas: o soldado brasileiro da guerra de independência. Revista Brasileira de História Militar, vol. 4, n. 11, 2013, p. 41 e 49. 10 SÁ FILHO, Bernardo Pereira de. A participação popular no processo de independência do Piauí. Revista Espaço-Tempo, Teresina, v. 1, n. 1, 1991, p. 163-169. 11 DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história: o processo de independência do Brasil, visto pelas lutas no Piauí – 1789/1850. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999, p. 243. 12 Ibid., p. 296. 13 No contexto da independência, “pátria” se referia à terra onde nasceu ou à província de origem. Cf. JANCSÓ, Istvan e PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico, ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira. Revista História das Ideias, v. 21, 2000, p. 391. GUERRA, François-Xavier. A nação moderna: nova legitimidade e velhas identidades. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 36. BERBEL, Márcia. Pátria e patriotas em Pernambuco (1817-1822): nação, identidade e vocabulário político. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 350.

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faz referência ao antilusitanismo dos subalternos quando diz que “o enfrentamento direto era a oportunidade para manifestar sentimentos de rancor da população sertaneja”. A explicação de Dias para o ódio aos portugueses por parte dos mais pobres é vaga. Mesmo reconhecendo a heterogeneidade da composição social das tropas, não explica por que “a vingança que se apresentava contra séculos de dominação”14 se dirigia bem mais aos portugueses que às autoridades e aos proprietários brasileiros. A crítica mais contundente ao tratamento da historiografia sobre a participação das classes populares nas guerras de independência do Piauí foi de Iara Moura. Discordando do trabalho de Sá Filho, a autora afirma que a consciência política de um grupo tem origem em suas “experiências de vida, isto é, o desejo de acabar com a exploração e a dependência econômico-política”. Também se contrapõe a Claudete Dias, que critica o tratamento apologético da “história positivista referente a esta temática”, mas acaba por fazer a mesma coisa com as massas em sua obra, “baseada em argumentos nacionalistas”.15 Acerca da marcante presença das classes populares nas guerras pela independência na Bahia, Sérgio Guerra Filho chama atenção para as diferentes expectativas diante do novo Estado soberano. A vitória por parte das elites que decidiram pela separação de Brasil e Portugal não representou o fim das diferenças sociais internas e a inclusão de outros setores menos favorecidos no cenário político. Tampouco a participação das camadas populares nas batalhas representava uma homogeneidade social: o envolvimento desses grupos estava baseado nas experiências específicas e nas demandas distintas em relação às elites políticas e econômicas brasileiras. Como afirma o autor, as “classes populares deixavam claro, com sua presença em vários episódios [bélicos], que a ‘vontade do povo’ nem sempre se compatibilizava com as atitudes e os objetivos” das lideranças político-militares provinciais.16 Os índios participaram ativamente desse contexto de indefinições políticas, quando se colocava em jogo o destino de suas conquistas e as possibilidades para o futuro. Além dos motins analisados no capítulo 3, as comunidades indígenas também atuaram ao atenderem as chamadas de recrutamento diante de situações de conflito bélico, por tradicionalmente exercerem funções de defesa do Estado. Ainda que obedecessem a ordens superiores, não deixaram de expressar seus interesses e manifestar fidelidade aos projetos que consideravam vantajosos. 14

DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 294. MOURA, Iara Conceição Guerra de Miranda. A visão da história social sobre a “batalha do Jenipapo”. Cadernos de Teresina, v. 39, 2008, p. 79-80. 16 GUERRA FILHO, Sérgio Armando Diniz. O povo e a guerra: participação das camadas populares nas lutas pela independência do Brasil na Bahia. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, 2004, p. 57-61. 15

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Ao contrário do que diz o autor e Carlos Dároz, segundo o qual os índios da Bahia não teriam sido “incorporados formalmente às fileiras do exército”,17 André Rego apresenta alguns exemplos de grupos recrutados no serviço miliciano, sem, contudo, problematizá-los.18 Quais seriam, então, as razões para a inserção indígena nas lutas pela causa brasileira, “justamente no momento em que recrudesciam as disputa entre estes [os índios] e a ‘civilização branca’ por terras e recursos naturais”? Sobre a realidade baiana, Guerra Filho levanta a possibilidade de que a “penúria em que se encontravam tenha levado os índios a se aproximarem das tropas” em busca de alimento, opinião compartilhada por Daróz. 19 Ainda que a explicação dos autores possa fazer sentido – o que precisa ser avaliado para cada realidade específica – ela obscurece as motivações políticas nativas para, no caso dos da Bahia, se colocarem ao lado dos que invadiam seus territórios e apoiarem a separação política do Brasil. Acerca do contexto baiano, Guerra Filho também argumenta que a população indígena encontrou mais dificuldade que outros grupos subalternos para ingressar nas guerras porque, segundo ele, “não se incorporava – ou de forma deliberada se recusava a se incorporar – à dinâmica social [...] relacionada à economia colonial”.20 O autor, entretanto, não explica de que maneira o nível de interação de uma comunidade indígena com as dinâmicas socioeconômicas coloniais complicaria “dimensionar a contribuição das populações indígenas para a experiência histórica do povo”21 que, à época, lutava pelos destinos do Brasil. Traçando caminho inverso ao de Guerra Filho, André Roberto Machado percebe na conjuntura do Pará na independência a relação que havia entre as relações de trabalho dos índios, a partir de sua exploração enquanto mão-de-obra, e seu recrutamento. Constituindo “grande parte das forças armadas” paraenses, o próprio controle da mão-de-obra dos índios “estava fundamentado no obrigatório alistamento destes em corpos de milícia”.22 Os indígenas participaram “ativamente da ebulição política do período, contribuindo para

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DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. A milícia em armas, p. 41-42. REGO, André de Almeida. Trajetórias de vidas rotas: terra, trabalho e identidade indígena na província da Bahia (1822-1862). Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, 2014, p. 53-54. 19 GUERRA FILHO, Sérgio Armando Diniz. O povo e a guerra, p. 117. DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. A milícia em armas, p. 42. 20 GUERRA FILHO, Sérgio Armando Diniz. O povo e a guerra, p. 115. Tal afirmação, contudo, dificilmente pode ser atribuída aos índios do período, integrados de forma maciça à produção brasileira como mão-de-obra. No caso da realidade baiana, analisada por Guerra Filho, vide: BARICKMAN, Bert J. "Tame Indians", "wild heathens" and settlers in southern Bahia in the late eighteenth and early nineteenth centuries. The Americas, v. 51, n. 03, 1995, pp. 325-368. PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos sertões do leste. Salvador: EDUFBA, 2014. REGO, André de Almeida. Trajetórias de vidas rotas. 21 Ibid., p. 116. 22 MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 66-67. 18

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instabilidade então vivida através de suas ações no exército, em grupos de desertores, ou de diversas outras formas que tornaram factíveis, em muitos momentos, a ameaça de subversão da ordem”.23 Compondo de forma majoritária as tropas e a força de trabalho na província, e insatisfeitos com a exploração e os recrutamentos forçados no período da independência, os índios e outros grupos subordinados provocaram temor nas autoridades,24 inclusive bradando contra o governo dos brancos.25 A discrepância de interesses e expectativas com os rumos do país era um claro sinal da heterogeneidade de ações políticas neste contexto, quando a voz indígena se fez presente ao perceber naqueles anos uma possibilidade de garantir sua liberdade. Outro caso de participação indígena nas guerras de independência foi o dos xucurus e paritiós aldeados em Cimbres, Pernambuco. Chamados de “fanáticos realistas absolutos”, foram presos em 1823 acusados de darem vivas a dom João VI e serem contrários à independência do Brasil. Marcus Carvalho compreende as imputações aos indígenas como pertencentes ao jogo político da época. Os índios, na realidade, teriam se posicionado contrários a poderosos locais, partidários da separação brasileira, porque havia tempos estes buscavam tomar suas terras. Aproveitando-se da tradicional fidelidade indígena à Coroa, vista por eles como máxima instância protetora, um opositor político de Cimbres os teria cooptado. Dessa forma, segundo Carvalho, “os índios foram pegos pela independência”, participando, por isso, dessas “brigas de brancos do século dezenove”.26 Mariana Albuquerque Dantas também analisa o conflito de Cimbres, percebendo a inserção do posicionamento político indígena “num quadro complexo de disputas locais pelas terras do aldeamento e por cargos políticos”.27 Trazendo outros elementos não abordados por Carvalho, a autora leva em consideração o histórico de confrontos entre os índios e as autoridades da vila. Segundo a autora, os índios estavam “imersos em relações de violência, de recrutamento forçado e de tentativas de invasão de suas terras” com a câmara partidária da separação política brasileira, o que motivou sua aliança com os portugueses e a realização de levantes em defesa de dom João VI. Indo além da ideia de “pegos pela independência” em 23

Ibid., p. 70 Ibid., p. 165. 25 Ibid., p. 175. 26 CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Clientelismo e contestação: o envolvimento dos índios de Pernambuco nas brigas dos brancos na época da independência. In: MONTEIRO, John Manuel. AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. (Org.). Confronto de culturas: confronto, resistência e transformação. São Paulo: EDUSP/Expressão e cultura, 1997, pp. 329-342, p. 334-337. GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil. Studia Historica. Historia Contemporánea, n. 27, 2009, p. 267-270. 27 DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro: revoltas em Pernambuco e Alagoas (1817-1848). Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2015, p. 139 24

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meio a uma “briga de brancos”, defendida por Marcus Carvalho, Dantas reconhece nessas ações estratégias indígenas “para fazer frente a essa situação local de conflitos e disputas políticas”.28 Se em muitas regiões do Brasil as comunidades indígenas se posicionaram fiéis à Coroa – representada seja por dom João VI como por dom Pedro I – o mesmo não pode se dizer dos grupos estudados por Elisa Garcia no Rio da Prata. O estudo se concentra na atuação de Andrés Guacurarí, o “Andresito”, liderança das missões e importante apoiador do projeto de José Artigas de independência da Cisplatina. Natural da Província Jesuítica de Missões do Paraguai, Andresito cresceu durante a administração hispânica e presenciou a invasão lusa na região. Portanto, “conhecia muito bem a administração portuguesa e espanhola dos povos, e parece ter percebido em ambos mais malefícios do que benefícios”. Artigas o nomeou “Comandante General de Misiones” em 1815, ciente de que a “nomeação de um índio potencializaria a adesão dos demais”.29 Os indígenas, por sua vez, viam no apoio a Artigas uma “possibilidade de autogestão na e da província por eles construída e habitada desde o século XVII”.30 O fato de que apenas as elites políticas e econômicas à época da separação do Estado brasileiro e se beneficiariam com a mudança de regime não fazia de seus aliados desfavorecidos meros cooptados. Como afirma Gladys Ribeiro, os grupos subalternos não se envolveram nos embates desses anos “somente porque eram pau mandados de autoridades estabelecidas ou de homens partidariamente posicionados. [...] os populares tinham uma ideologia própria, elaborada a partir de suas vivências e dos conflitos existentes naquela sociedade”.31 Os índios, por sua vez, não foram apenas “pegos pela independência”: estavam inseridos neste contexto, dialogando com diversos outros grupos (de classe e cor distintas) e agindo a partir de concepções próprias do que significava aquele momento e a luta que empreendiam. A compreensão dos conflitos políticos locais é fundamental para uma análise coerente dos embates na independência e da razão para as escolhas tomadas por cada um dos lados diante dos projetos possíveis. Mas a relação dos indígenas com a Coroa – que, no caso dos de Cimbres, era de fidelidade com dom João VI – talvez mereça uma análise mais demorada do que a de Dantas e Carvalho. Era um aspecto igualmente importante para o posicionamento 28

Ibid., p. 143-146. GARCIA, Elisa Frühauf. Dimensões da igualdade: os significados da condição indígena no processo de independência no Rio da Prata. Anais do XIX Encontro Regional de História da Anpuh-SP, 2008, p. 6-7 30 Ibid., p. 11. 31 RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção, p. 280 e 297. 29

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dessas comunidades nas guerras de independência por, pelo menos, duas razões. Primeiro porque se conectava aos conflitos com outros grupos sociais na luta em prol de suas terras, prerrogativas e liberdade. Em segundo lugar, porque era a manutenção da monarquia – entendida como algoz ou protetora – que estava em jogo, o que incidia diretamente nos seus interesses e na sua qualidade de vida. No contexto analisado por Elisa Garcia, a Coroa portuguesa representava prejuízo para os índios e perda de autonomia pelas terras que invadira. Em 1819, Andresito foi preso, enviado ao Rio de Janeiro, e provavelmente morto nesta cidade em 1822. “Seus projetos coletivos, entre eles a construção de uma relação mais paritária com o restante da sociedade, baseada principalmente na gestão de uma província essencialmente guarani, saíam bastante enfraquecidos”.32 Em contrapartida, a prisão deste líder indígena ocorreu no mesmo ano do decreto de dom João VI que beneficiou os índios de Pernambuco, Paraíba e Ceará. Tais casos são exemplos da necessidade de atentarmos para as realidades locais específicas durante as guerras de independência. O posicionamento dos índios recrutados em território cearense, diante das trocas de governo durante a separação política brasileira, e seu apoio incondicional à monarquia, não se deram pela manipulação de agentes externos. Foram manifestações políticas em prol de suas comunidades, inseridas em batalhas de uma guerra que também era sua.

7.1. O ARMAMENTO GERAL DOS ÍNDIOS

Os conflitos políticos no Ceará que culminaram com a adesão cearense à independência no Brasil começaram em 1821, por conta das notícias relativas às Cortes de Lisboa. Vimos no terceiro capítulo o confronto entre a câmara de Fortaleza e o então governador Francisco Alberto Rubim em torno das restrições de uso da mão-de-obra indígena pelos proprietários. Entretanto, este não foi o único motivo daquela disputa. Com a chegada da notícia de que dom João VI havia jurado a constituição portuguesa em fevereiro, as autoridades da capital cearense passaram a pressionar Rubim – “homem partidário do sistema vigente, que buscou de todas as maneiras resistir às ideias mais liberais” 33 – para que também ele jurasse fidelidade à nova ordem jurídica portuguesa no mês de abril. Em julho, o

32

GARCIA, Elisa Frühauf. Dimensões da igualdade , p. 11. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”: a construção do Estado nacional brasileiro e os projetos políticos no Ceará (1817-1840). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 82 33

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governador foi deposto, e, assim como ocorrera em Pernambuco e na Bahia, formou-se a primeira junta de governo provisório cearense. “Houve, a seguir, quase permanente anarquia em todo o Ceará, dividindo absolutistas e constitucionalistas”, segundo Bruno Barbosa.34 Keile Felix conta que, após a formação da primeira junta, vários tumultos ocorreram no interior da então província. Figuras como o capitão-mor José Pereira Filgueiras e o coronel Leandro Bezerra Monteiro, apoiados por grandes contingentes de cabras e mulatos, “não aceitavam nem o juramento da Constituição e nem a formação de juntas governativas”. Segundo a autora, os motins deixam clara a percepção dos grupos locais – sendo ou não da elite – de que o “movimento do Porto estava buscando barrar o poder do príncipe regente ao criar uma constituição que, baseada nos princípios liberais, limitaria o poder supremo que este detinha”.35 Essa foi, inclusive, a motivação para as sublevações indígenas deste período. Entretanto, as ações contrárias à formação das juntas eram heterogêneas, e os grupos agiam a partir de interesses próprios. Até mesmo os “processos de adesão às Cortes em cada uma das capitanias” foram bastante diversificados, como afirma André Roberto Machado.36 No Ceará, as elites das vilas do interior se rebelavam receosas com o acúmulo de poder da câmara de Fortaleza, que via, neste contexto, “o momento para obter maior autonomia local”. 37 Para os índios, esta mesma autonomia poderia se expressar em medidas anti-indigenistas, já que um dos membros do primeiro governo provisório era Joaquim Lopes de Abreu,38 grande proprietário de Maranguape e usurpador de terras indígenas.39 Em novembro de 1821 uma nova eleição nomeou a segunda junta governativa do Ceará, contando com a presença de Marcos Antônio Brício.40 Outros dois membros eram Mariano Gomes da Silva e José Raimundo do Paço Porbém Barbosa – este último um “partidário exaltado da causa portuguesa” segundo Antônio Martins Filho41 – que foram novamente eleitos na terceira eleição para a junta de governo, em fevereiro de 1822.42

34

BARBOSA, Bruno. A independência no Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXXVII, 1923, p. 3. 35 FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 86-87. 36 MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 146. 37 Ibid., p. 87. 38 Cf. Ibid., p. 86. 39 Não por acaso, foi por eles ameaçado em setembro de 1822. 40 O mesmo que liderou a expedição contra índios de Maranguape no ano seguinte. 41 MARTINS FILHO, Antônio. Episódios da independência. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, tomo C, 1986, p. 9. 42 Cf. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 88. Meses depois, ordenaram a truculenta repressão ao motim indígena.

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Segundo Denis Bernardes, as juntas governativas visavam desarticular o centralismo monárquico. Foram “instaladas por movimentos locais que se autolegitimaram, invocando, evidentemente, o movimento constitucionalista e a futura Constituição”. Sem obedecer a nenhuma “formalidade jurídica ou política preexistente na legislação do Reino”, a instalação das juntas “foi um misto de pronunciamento militar e aclamação popular direta impondo, nos dois casos, um novo governo local em substituição aos antigos delegados reais”. Por isso a “grande instabilidade e a efemeridade de muitas juntas locais, eleitas hoje, para serem substituídas amanhã”.43 As eleições das três juntas em Fortaleza, apoiadas no constitucionalismo das Cortes e convivendo com motins defensores do rei no interior, são exemplos do contexto analisado por Bernardes. A tensão era tamanha que, em 16 de outubro de 1822, o colégio eleitoral da comarca do Icó organizou um “Governo Temporário”, em discordância com Fortaleza. Segundo Keile Felix, talvez “temendo as consequências que poderiam advir com a atitude da câmara do Icó”, a junta governativa da capital aclamou dom Pedro de Alcântara imperador constitucional do Brasil em 24 de novembro de 1822.44 Reunidos na câmara da vila, juraram defender o imperador e a pátria, proclamando a “independência moderada a bem da santa causa luso-brasileira”.45 O posicionamento aparentemente contraditório da junta chamou muito a atenção da historiografia. Segundo Bruno Barbosa, o “governo cearense era legitimista, era constitucionalista português”, o que acabou “provocando a reação, que na maioria dos ânimos despertava o entusiasmo da causa nacional”.46 Luis Sucupira acredita que a Junta agiu de maneira titubeante e indecisa, procurando “aceitar um fato aparentemente consumado, mas que ainda não merecia completa adesão”.47 Para José Aurélio Câmara, os “cearenses que assinaram o documento [o juramento a dom Pedro I] constituíam a facção simpática aos interesses lusos”. Por isso, o texto não traduzia o “pensamento dos autênticos revolucionários cearenses, daqueles que vinham agitando o interior contra o conservadorismo filo-português da capital”.48

43

BERNARDES, Denis. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo: Hucitec, Fapesp; Recife: UFPE, 2006, p. 317-318. 44 FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 89. 45 Ata da Junta Governativa do Ceará. Fortaleza, 24 de novembro de 1822. Apud. BARBOSA, Bruno. A independência no Ceará, p. 5. 46 Ibid., p. 4. 47 SUCUPIRA, Luís. Os cearenses e o 7 de setembro de 1822. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, tomo especial, 1972, p. 86. 48 CÂMARA, José Aurélio. A adesão do Ceará à independência. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, tomo especial, 1972, p. 220-221.

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Ao contrário do que afirmam estes autores, não é possível apontar, para aquela época, a existência de uma “causa nacional brasileira”. A Junta de Governo não necessariamente titubeava ao proclamar seus anseios de união luso-brasileira porque a separação de Brasil e Portugal não era algo claro nos meses anteriores. Inclusive, a aclamação da junta se assemelha bastante a uma proclamação do próprio dom Pedro de julho de 1822, quando defendia a “causa santa da liberdade do Brasil” e sua “independência moderada pela união nacional”. Para Gladys Ribeiro, a “nação” que se referia o então príncipe era a portuguesa, formada por “cidadãos com direitos iguais”.49 A dissolução do Reino Unido, portanto, não era algo há muito desejado, muito menos por todos. Apoiando-se no constitucionalismo das Cortes, a junta certamente não era indecisa. Sua intenção não era apenas, como diz Felix, “usar a moderação como princípio norteador de suas ações”,50 mas procurar compactuar com o liberalismo de Lisboa e combater o centralismo da monarquia. Diferente do que afirmou Câmara, os opositores do interior não eram necessariamente “revolucionários”, e não havia nada de “conservador” nas autoridades de Fortaleza: era justamente o contrário. Por um lado, as lideranças reunidas no Icó se revoltavam contra a submissão forçada do rei e, rivalizando com a capital, lutavam pela manutenção do absolutismo. Por outro, o governo em Fortaleza, insistindo na “santa causa luso-brasileira”, ainda pendia para o liberalismo vindo da Europa, na busca por maior autonomia. E, para os índios, como vimos, a ameaça era clara, já que tal acúmulo de poder facilitava a usurpação de suas terras e bens. A manifestação da junta governativa do Ceará de apoio a dom Pedro, aclamado imperador do Brasil em 12 de outubro de 1822, pode ter sido resultado tanto das crescentes hostilidades entre a Corte no Rio de Janeiro e Portugal quanto das pressões vindas do interior. Diversos documentos produzidos antes da aclamação cearense de 24 de novembro revelam que o esforço da junta cearense em se mostrar fiel à causa brasileira, ainda que desejosa da união com o governo luso, e a tensão diante de seus opositores eram bem anteriores. Uma certidão do secretário do governo afirma que no dia 27 de setembro “se expediram ordens às sete direções de índios desta província para porem os ditos na maior atividade e disciplina com as suas armas competentes, o que assim se executou”.51 Tal resolução de armamento dos índios pode ter sido consequência tanto da declaração guerra às tropas mandadas de Portugal

49

RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção, p. 97-98. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 90. 51 De José de Castro Silva à Junta Governativa do Ceará. Fortaleza, 20 de novembro de 1822. AN, AA, IJJ9 170. 50

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de 1º de agosto, decretada por dom Pedro I, quanto uma prevenção a um possível ataque do interior. Entre o fim de setembro e o início o mês seguinte, o padre Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães, a serviço da Junta, organizou diversas viagens para vilas no norte Ceará a fim de combater “a falsidade dos princípios por que queriam os loucos tentar e segurar a independência do Brasil”. No dia 5 de outubro enviou ofício à câmara de Viçosa para tranquilizar a população da vila a respeito de uma comissão que para lá se dirigia. Determinou que “fizesse[m] constar aos índios, e mais habitantes, quais eram as intenções do governo na expedição do destacamento que para ali marchava”. Magalhães foi obrigado a mudar sua rota, “para não sacrificá-lo à fúria e violência dos mal-intencionados, pois me constou que os índios estavam destacados nas entradas das ladeiras, por lhe haverem dito” que seriam presos.52 A difusão de notícias de procedências duvidosas no período pode ter sido uma estratégia política dos diversos lados em disputa. Se os índios realmente se puseram a postos por conta de um boato, o mesmo fora espalhado por quem visava colocá-los contrários ao governo de Fortaleza. E ainda que a própria informação da mobilização indígena possa também ter sido inventada para mudar os planos do destacamento, era bem possível que os índios ainda se ressentissem da repressão que sofreram em agosto do mesmo ano por conta da expulsão do padre Felipe Benício. Buscando manter o poder na província e evitar agitações contrárias no interior, a junta ordenou o armamento de tropas para sua defesa em diversas localidades. No caso dos índios, em 7 de outubro – dois dias depois da tentativa de acalmar os ânimos dos indígenas da Ibiapaba – foi ordenado aos capitães-mores de Monte-mor Velho e Messejana que recrutassem soldados para a “defesa da costa desde Maceió até Mucuripe”.53 O diretor de Almofala foi encarregado de mobilizar os índios da povoação para auxiliar os presídios “desde a barra do Mundaú até Aracatimirim”, e o índios de Viçosa, de servir da “alagoa do Castelhano até Amarração”.54

52

De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães à Junta Governativa do Ceará. Sobral, 8 de outubro de 1822. AN, AA, IJJ9 170. 53 De José de Castro Silva aos capitães-mores de Aquiraz, Monte-mor Velho e Messejana. Fortaleza, 7 de outubro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 132V. 54 Certidão de José de Castro Silva. Fortaleza, 20 de novembro de 1822. AN, AA, IJJ9 170.

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Mapa 4: Postos de guarda das tropas indígenas na costa cearense, outubro de 1822

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Ceará disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ceará

Com a reunião do colégio eleitoral do Icó em 16 de outubro e a criação de um novo governo, a junta passou a temer ainda mais seus opositores, que os acusava de “falta de energia e pouca adesão à causa do Brasil” e ameaçavam destituí-la por vias militares. Por isso, os membros do governo provisório produziram um relato ao imperador acerca dos últimos acontecimentos na província, buscando dissipar “de uma vez o anárquico abuso de se levantarem e deporem governos por mero arbítrio popular ou por facções armadas” – como se a própria formação das juntas de governo não tivesse ocorrido desta forma. Segundo eles, antes de terem tido conhecimento do decreto de 1º de agosto, que declarava guerra às tropas mandadas de Portugal, “se tinham estacionado presídios em toda a longa extensão da costa”. Com o recebimento da determinação, “formaram-se imediatamente planos de defesa” do litoral. Diversas outras medidas militares foram tomadas: entre elas, no dia 1º de novembro, “determinou-se e armamento geral dos índios”.55 A alegada fidelidade da Junta às ordens do imperador não era o único motivo para a grande mobilização militar ordenada em toda a província. Como fica bem claro no próprio relato citado acima, o temor diante das pressões vindas do interior era evidente. A tensão ficou ainda maior com a notícia de que uma tropa liderada pelo capitão-mor José Pereira Filgueiras estava se dirigindo à capital, recrutando vários adeptos pelo caminho, com o objetivo de destituir o governo provisório. 55

Da Junta Governativa do Ceará ao imperador dom Pedro I. Fortaleza, 20 de novembro de 1822. AN, AA, IJJ9 175-a.

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Segundo Raimundo Girão, Filgueiras assinou uma proclamação no Icó em 29 de outubro que declarava “insubsistente a junta governativa de Fortaleza”. 56 Ou seja, o armamento geral dos índios de 1º de novembro, cujas tropas de ordenança se localizavam em sua maioria no entorno da capital, também visava a proteção dos membros do governo. Quatro dias depois, a Junta transmitiu uma série de ordens militares após receberem a notícia de que Filgueiras marchava “à testa de dois mil homens armados” para Fortaleza, “sem se declararem para que fim, e com que pretexto”. Ao sargento-mor José Felix de Andrade foi ordenado que reunisse “seu batalhão na vila de Soure para estarem prontos ao chamamento deste governo”.57 As medidas tomadas pela desesperada junta não surtiram efeito, e as tropas vindas do interior conseguiram congregar mais adeptos em defesa da monarquia. Em 3 de dezembro de 1822, os membros do governo se demitiram, entregando-o a Francisco Xavier Torres em caráter interino, com Filgueiras no comando de suas milícias – que entraram em Fortaleza em 23 de janeiro de 1823.58 Como diz Felix, se o capitão-mor “anteriormente provocava motins para defender dom João VI, sua fidelidade agora passava a ser do imperador dom Pedro I”, 59 o então representante da Coroa. Os índios, antes recrutados para defesa do governo, se voltaram contra seus membros em busca de sua liberdade. Após o fim das juntas em 1823, José Raimundo do Paço Porbém Barbosa e Mariano Gomes da Silva, “saindo da capital para levantar gente, e com ela abaterem o que eles chamavam ‘insurreição do Icó’, [...] procuraram revoltar os índios de Monte-mor Velho, das vilas de Messejana, Arronches e Soure, as quais circulam a capital”. Porém, como vimos no capítulo 3 pelo relato de Filgueiras, “nada conseguiram; [...] o governo extinto havia acossado os índios de Maranguape tão barbaramente, que eles todos, apesar dos diretores quase todos europeus imperiosos, repugnaram obedecer-lhes”.60 Por serem compostas de portugueses61 adeptos do liberalismo das Cortes, as juntas representavam uma ameaça às comunidades indígenas. O desejo das autoridades de Fortaleza de mais autonomia e acúmulo de poder não era apenas uma ideia difundida externamente,

56

GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1984, p. 130-131. 57 Ata da Junta Governativa do Ceará. Fortaleza, 5 de novembro de 1822. APEC, GC, livro 32, p. 40-42. 58 Cf. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 131. 59 FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 91. 60 De José Pereira Filgueiras a José Bonifácio de Andrada e Silva. Fortaleza, 20 de fevereiro de 1823. AN, IN, caixa 742, pacote 1. 61 Cf. Da Junta Governativa do Ceará ao imperador dom Pedro I. Fortaleza, 20 de novembro de 1822. AN, AA, IJJ9 175-a. De José Pereira Filgueiras a José Bonifácio de Andrada e Silva. Fortaleza, 20 de fevereiro de 1823. AN, IN, caixa 742, pacote 1.

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para os índios, já que fora sentida por eles meses antes em Viçosa e Maranguape. Analisando a situação do Pará, André Roberto Machado observa que havia interesse por parte dos índios em se valer de garantias constitucionais “como forma de minar as estruturas que os obrigavam ao trabalho compulsório”.62 No Ceará ocorria o oposto. De setembro a novembro, os indígenas defenderam as juntas porque eram a elas subordinados, mas quando puderam escolher, se posicionaram politicamente contrários aos simpatizantes da constituição portuguesa. Acerca do contexto de Cimbres, em Pernambuco, Mariana Dantas 63 e Marcus Carvalho fazem construções coerentes do panorama político local e das ligações dos índios com os interesses de autoridades da região. Indicam convincentemente os fortes vínculos indígenas com a monarquia e de que maneira se conectavam com suas demandas específicas, que transcendiam bastante as disputas de projetos nacionalistas. No entanto, Carvalho apresenta os índios como se tivessem sido “apreendidos” pela independência, pelo contexto, ou por grupos mais poderosos que eles. Mas, ao contrário do que afirma o autor, era justamente porque tinham suas próprias razões e experiências que as brigas não eram apenas “de brancos”, mas também deles e de todos os que nelas se envolveram. As guerras de independência não tinham “dono”: se o cerne dos conflitos era o mesmo – a separação do Brasil com Portugal – as motivações para o envolvimento de cada grupo diferiam bastante. Os índios buscavam nas guerras de independência, assim como em outros momentos analisados neste trabalho, a garantia de sua liberdade, entendida como autonomia em seus territórios e condições dignas de trabalho. No Ceará, o recrutamento dos índios pela terceira junta governativa era reflexo das pressões sofridas pelo povo do interior e sinal da importância bélica indígena. Por mais que em seus relatos buscasse provar sua fidelidade ao novo imperador do Brasil, as medidas militares do governo provisório tinham muito mais a ver com a instabilidade política do momento, iniciada em 1821, e que não se definiu no Ceará até, pelo menos, o início de 1823. O apoio da terceira junta a dom Pedro I pode ter sido tanto por ainda acreditarem na união luso-brasileira quanto porque não viam possibilidades de resistência ao que era decidido no Rio de Janeiro e ansiado pelo interior. Composta por portugueses simpáticos ao liberalismo de Lisboa, sua maneira particular de apoiar a causa do Brasil era prova de que, neste contexto, os conflitos não se tratavam, necessariamente, nos termos de uma guerra entre nacionalidades.

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MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 108. DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro, p. 133-146. 63

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Os embates eram de caráter político, o que deu o tom ao heterogêneo antilusitanismo no Ceará deste período. Cada grupo social tinha seus próprios motivos para “odiar” os lusitanos e, consequentemente, as juntas governativas. Estas, formadas pela elite de Fortaleza que forçara o último governador da capitania a jurar a constituição portuguesa e, em seguida, o depusera, haviam se apoiado no liberalismo das Cortes. As lideranças do interior, vendo seus antagonistas compactuando com algozes de seu rei, passaram a perceber nos portugueses uma ameaça à ordem que impedia a concentração de poderes na capital. Tanto que, conforme Raimundo Girão, no dia 29 de janeiro de 1823 foi “ordenada a exclusão dos portugueses que estivessem ocupando cargos públicos”.64 Os índios, por sua vez, não estavam alheios ao que se passava, e seu antilusitanismo não se dava apenas porque os nascidos no Brasil seriam menos opressores. Tinha a ver, principalmente, com o que os naturais da Europa passaram a representar, desde que as Cortes de Portugal se opuseram a seu protetor, e com o medo do que poderia acontecer com suas terras e outras garantias. Em um primeiro momento, foram acionados pela obrigação militar em relação ao governo a que estavam submetidos. Enquanto que os índios de Cimbres, em Pernambuco, se revoltaram contra os recrutamentos – associados pelos índios às coerções de autoridades ambiciosas por suas terras, como mostra Dantas65 – os do Ceará não fizeram o mesmo talvez por conta do discurso do governo cearense de agir contra as tropas de Portugal. Posteriormente, se manifestaram contrários à junta deposta, cujo posicionamento se coadunava cada vez mais ao liberalismo português, e apoiaram o novo governo chefiado por Pereira Filgueiras. Passaram a ver em dom Pedro I e nas novas lideranças da então província do Ceará a manutenção do regime que defendiam em nome da defesa de suas prerrogativas. Por isso, não hesitaram em novamente pegar seus arcos e flechas, já que os inimigos da Coroa ainda resistiam na província do Piauí.

7.2. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NAS LUTAS DO PIAUÍ

No Piauí, as manifestações de apoio à separação de Brasil e Portugal liderada por dom Pedro I se iniciaram em Parnaíba, no litoral da província, com a aclamação da coroação do

64

Cf. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 131. DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro, p. 146. 65

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imperador pela câmara da vila em 19 de outubro de 1822. 66 A junta governativa piauiense, sediada na cidade de Oeiras e fiel às Cortes portuguesas, recebeu com preocupação a notícia da atitude dos vereadores parnaibanos. Prontamente enviou à vila separatista o militar João José da Cunha Fidié, incumbido de debelar o movimento. Nomeado governador das armas por dom João VI em setembro de 1821, no contexto de reforma das forças armadas no Brasil,67 Fidié liderou a resistência portuguesa no Piauí até meados do ano seguinte, quando foi rendido por tropas brasileiras em Caxias, no Maranhão, preso e remetido a Lisboa, onde foi recebido como herói. Fidié chegou com uma tropa bem armada a Parnaíba em dezembro de 1821, tendo encontrado o apoio do capitão Francisco de Salema Freire Garção, que ancorara um brigue próximo à vila havia poucos dias.68 Antes disso, as autoridades separatistas de Parnaíba haviam fugido para o Ceará, onde puderam buscar apoio do novo governo desta província fiel a dom Pedro I.69 Durante a estadia de Fidié no litoral, diversas vilas no interior do Piauí e a própria capital, Oeiras, passaram a aclamar a independência do Brasil, o que fez com que o militar retornasse à capital no final de janeiro de 1823 na tentativa de reprimir os movimentos separatistas.70 Enquanto isso, o governo do Ceará começou a organizar o envio de tropas para a província vizinha com o objetivo de defender os adeptos da separação brasileira, combater Fidié e expulsar os que buscavam assegurar a adesão do Piauí às Cortes portuguesas. 71 Foram recrutados diversos voluntários cearenses e piauienses liderados por Luis Rodrigues Chaves, cuja tropa era composta de homens mal armados e sem formação militar, como vaqueiros e lavradores. Durante o retorno de Fidié e sua tropa à capital, no dia 13 de março, à beira do

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MARTINS FILHO, Antônio. Filgueiras e o exército libertador. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1945, p. 234-235. 67 FIDIÉ, João José da Cunha. Vária fortuna d’um soldado português, oferecida ao público pelo brigadeiro Fidié. Lisboa: Tipografia de Alexandrina Amélia de Sales, 1850. MARTINS FILHO, Antônio. Episódios da independência. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, tomo C, 1986, p. 12. DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. A milícia em armas, p. 35. 68 NEVES, Abdias. A Guerra do Fidié. Teresina: FUNDAPI, 2006, p. 77-79. DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 261-263. CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. Batalha do Jenipapo: reminiscências da cultura material em uma abordagem arqueológica. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2014, p. 128-129. 69 CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. Batalha do Jenipapo, p. 55. MARTINS FILHO, Antônio. Filgueiras e o exército libertador, p. 235. 70 PINHEIRO, Raimundo Teles. Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do Maranhão. Itinerário da expedição de Caxias. Independência. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, tomo C, 1986, p. 56-57. DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 267. ARAÚJO, Johny Santana de. O Piauí no processo de independência: contribuição para a construção do império em 1823. Clio: Revista de Pesquisa Histórica. Série História do Nordeste, v. 33, 2015, p. 35. 71 MARTINS FILHO, Antônio. Filgueiras e o exército libertador, p. 235. PINHEIRO, Raimundo Teles. Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do Maranhão, p. 56.

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riacho Jenipapo, próximo à vila de Campo Maior, os regimentos inimigos se encontraram, em um dos confrontos mais sangrentos das guerras de independência do Brasil.72 O resultado foi massacrante pela larga desvantagem numérica e bélica das tropas brasileiras em comparação com a dos constitucionalistas.73 Mas, apesar da expressiva derrota, os homens liderados por Chaves tiveram o trunfo de roubar diversos armamentos e suprimentos dos portugueses, o que tornou impossível a continuidade da marcha de Fidié a Oeiras.74 Segundo Antônio Martins Filho, as primeiras notícias sobre a derrota na batalha do Jenipapo chegaram a Fortaleza em 24 de março.75 Em seguida, tropas cearenses foram enviadas a Campo Maior com o objetivo de garantir sua segurança,76 e formou-se no Ceará, sobre a liderança de Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras, o Exército Libertador e Pacificador, criado para derrotar os portugueses e garantir a adesão piauiense à independência.77 Fidié mudou a rota para Caxias, a convite da própria câmara da vila, adepta das Cortes, em busca de apoio,78 mas acabou sendo cercado por tropas separatistas vindas do Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambuco e Bahia no mês de agosto de 1823.79 A Batalha do Jenipapo foi largamente abordada pela historiografia piauiense como um marco da formação do Estado brasileiro. Ainda assim, muito pouco se fala sobre a participação indígena nas guerras de independência no Piauí, geralmente de forma sucinta ou negativa.80 Até mesmo os poucos autores cearenses que escreveram sobre a participação de tropas do Ceará nos conflitos nada falam sobre os índios envolvidos. 72

PINHEIRO, Raimundo Teles. Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do Maranhão, p. 57. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 132. 73 CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. Batalha do Jenipapo, p. 138. 74 PINHEIRO, Raimundo Teles. Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do Maranhão, p. 57 75 MARTINS FILHO, Antônio. Filgueiras e o exército libertador, p. 237. ARAÚJO, Johny Santana de. O Piauí no processo de independência, p. 36. 76 PINHEIRO, Raimundo Teles. Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do Maranhão, p. 56. CHAVES, Monsenhor Joaquim. Campo Maior e a Independência. Revista da Academia Piauiense de Letras. Teresina: v. III, 1972. p. 27. CHAVES, Monsenhor Joaquim. O Piauí nas lutas pela Independência do Brasil. Teresina: Alínea Publicações Editora, 2005, p. 105. DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 301. 77 MARTINS FILHO, Antônio. Filgueiras e o exército libertador, p. 237. PINHEIRO, Raimundo Teles. Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do Maranhão, p. 57. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 132-133. 78 Cf. Da câmara de Caxias a João José da Cunha Fidié. Caxias, 3 de abril de 1823. Apud. FIDIÉ, João José da Cunha. Vária fortuna d’um soldado português, oferecida ao público pelo brigadeiro Fidié, p. 106-107. 79 ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedição do Ceará em auxílio do Piauí e Maranhão. Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, tomo XLVIII, 1885, p. 236. De igual conteúdo em: Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXVII, 1913, p. 244. PINHEIRO, Raimundo Teles. Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do Maranhão, p. 60. 80 NUNES, Odilon. Pesquisa para a história do Piauí: a Independência do Brasil, especialmente no Piauí. Manifestações republicanas. A ordem. Teresina: FUNDAPI; Fundação Monsenhor Chaves, 2007, p. 68. NEVES, Abdias. A Guerra do Fidié, p. 115-116, 169. CHAVES, Monsenhor Joaquim. Campo Maior e a Independência, p. 30. CHAVES, Monsenhor Joaquim. O Piauí nas lutas pela Independência do Brasil, p. 106-108.

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Entretanto, as fontes pesquisadas dão informações sobre a participação indígena nos embates contra os adeptos do constitucionalismo português no Piauí desde o final de 1822. Em ofício ao ministro da Marinha, Inácio da Costa Quintela, de 1º de janeiro de 1823, o capitão Francisco de Salema Freire Garção deu notícias de suas atividades militares desde novembro do ano anterior, quando aportara em Tutóia, no Maranhão, próximo a Parnaíba. Seu objetivo era “manter em segurança e firmes no sistema constitucional os habitantes daquela parte da predita província”. No dia 13 de dezembro de 1822, após a fuga dos vereadores de Parnaíba para o Ceará, entrara na vila piauiense e se mantivera à espera do governador das armas Fidié, que o incumbira da formação de um reduto na barra do rio Igaraçú, fronteira com o Ceará. Segundo ele, recebera notícias de que havia no lado cearense um presídio de tropa composto por cerca de 140 homens, “sendo parte deles milicianos da Granja, e os outros caboclos, armados de flechas”. Dizia-se que pretendiam “reunir mais gente para atacar” a vila de Parnaíba, ainda em poder dos constitucionalistas, “porém até o presente não tem feito tentativa alguma”.81 Os “caboclos” a que se referiu o capitão Freire Garção eram os índios de Viçosa, recrutados em outubro para servirem entre a lagoa do Castelhano e o porto da Amarração, como vimos anteriormente. Sua função era proteger a costa cearense contra possíveis ataques da marinha portuguesa.82 Entre dezembro de 1822 e janeiro de 1823, os indígenas já não mais seguiam ordens da junta que os havia recrutado: passaram a ser fieis ao novo governo, declarando oposição às Cortes lusitanas. O antilusitanismo indígena, atrelado ao retorno coercitivo de dom João VI a Portugal, se iniciara em Maranguape ainda em outubro de 1821, com os boatos sobre a constituição portuguesa, e teve seu ápice em setembro de 1822, com os gritos dos amotinados “contra os europeus”. Ao final deste mês havia notícias de que alguns índios fugitivos de Maranguape teriam entrado em contato com os de Viçosa, que havia pouco tempo expulsaram o padre Benício. O contato provavelmente aconteceu, e o “ódio aos portugueses” passou a aflorar entre os indígenas da Ibiapaba, cujas expressões mais evidentes veremos mais à frente. Ao final de janeiro de 1823 o Ceará iniciou de maneira efetiva a organização de tropas com o objetivo de atacar os adeptos das Cortes na província vizinha. Havia a necessidade, por parte do governo cearense, de proteger as vilas da fronteira, na Ibiapaba, contra as ideias liberais e para evitar uma possível invasão de constitucionalistas no Ceará, como afirmam 81

De Francisco de Salema Freire Garção a Inácio da Costa Quintela. Parnaíba, 1º de janeiro de 1823. Apud. DOCUMENTOS do tempo da independência (coleção Studart). Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXXVI, 1922, p. 320-322. 82 Cf. Certidão de José de Castro Silva. Fortaleza, 20 de novembro de 1822. AN, AA, IJJ9 170.

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Martins Filho e Monsenhor Chaves.83 No dia 23 o governo do Ceará recebeu diversos requerimentos das “vilas do norte” para enviar forças contra Fidié.84 No dia seguinte, por meio do frade Alexandrino da Purificação, tiveram notícias das lideranças militares de Vila Viçosa, Vila Nova d’El Rei, Sobral e Granja. Segundo o religioso, os chefes de várias corporações, “depois de prometerem marchar para o Piauí a libertar seus irmãos oprimidos, afracaram (sic)”. Por isso, ele pedia “que os fizessem marchar, ou demitissem dos postos”. O deputado José Joaquim Xavier Sobreira sugeriu que as tropas destas vilas fossem enviadas para Parnaíba.85 Apesar do anseio em combater os portugueses, a relutância das lideranças militares provavelmente se devia à desvantagem bélica em relação às tropas de Fidié, situação confirmada pelos acontecimentos dos meses posteriores. Em fevereiro de 1823, um ofício da câmara de Sobral relatava ao rei “que esta província está falta de munições e petrechos de guerra, e mesmo de oficiais hábeis que saibam dirigir com acerto as tropas”. 86 Anexo ao ofício está uma cópia da ata de vereação da câmara de 8 de dezembro de 1822, quando já se falava dos acontecimentos em Parnaíba, das possibilidade de auxílio aos adeptos da separação e do temor de que o Ceará fosse invadido pelo governador das armas do Piauí. Várias sugestões foram levantadas para que houvesse mobilizações militares na região em direção à província vizinha, como a formação de um regimento, e que “se expedisse ordens para que os índios de Vila Viçosa se reunissem também à tropa”.87 As ordenanças de índios da Ibiapaba combatiam em defesa dos interesses da Coroa no Piauí desde, pelo menos, o final do século XVII.88 Os próprios índios, em suas requisições, faziam menção aos feitos de seus antepassados nas terras além da serra, especialmente nos conflitos contra grupos indígenas inimigos.89 No contexto da separação política do Brasil, a força militar dos índios de Viçosa, aliada a dom Pedro I e carregada de antilusitanismo, não poderia ser dispensada, especialmente em uma situação de falta de recursos bélicos. Mas foi a própria comissão militar de Viçosa que passou a solicitar o auxílio do governo cearense antes de seguir para a missão em Parnaíba. A junta deliberou no dia 10 de março que fosse enviada 83

MARTINS FILHO, Antônio. Filgueiras e o exército libertador, p. 234. CHAVES, Monsenhor Joaquim. O Piauí nas lutas pela Independência do Brasil, p. 62. 84 Ata da junta governativa do Ceará. Fortaleza, 23 de janeiro de 1832. APEC, GC, livro 32, 56V. 85 Ata da junta governativa do Ceará. Fortaleza, 24 de janeiro de 1832. APEC, GC, livro 32, 57-59. 86 Da câmara de Sobral ao rei dom Pedro I. Sobral, 15 de fevereiro de 1823. AN, IN, caixa 742, pacote 4. 87 Ata de sessão da câmara de Sobral de 8 de dezembro de 1822, anexa ao ofício da câmara de Sobral ao rei dom Pedro I. Sobral, 15 de fevereiro de 1823. AN, IN, caixa 742, pacote 4. 88 Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e identidade no Ceará colonial – século XVIII. Tese (doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 94. 89 Cf. Abaixo-assinado dos índios da Ibiapaba à rainha dona Maria I, anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93.

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a embarcação do sargento-mor João da Silva Pedreira, juntamente com “vinte soldados, uma peça de campanha e um sargento, além do que já se achava a bordo”.90 Com o mesmo objetivo, “em consideração ao que representa a comissão militar de Vila Viçosa”, foi enviado o sargento-mor João Nepomuceno com “mantimento, armamento e mais petrechos de guerra” para a “expedição da Parnaíba, para o fim do ataque do inconfidente Cunha Fidié”.91 No dia 13 de março ocorreu a batalha do Jenipapo, em Campo Maior, com o massacre das tropas mal armadas dos separatistas. Demoraram alguns dias para se ter notícia do conflito em Fortaleza, e até lá, outros pedidos de reforços chegaram ao governo do Ceará. Em 16 de março a junta governativa deliberou sobre um novo ofício da comissão militar de Viçosa “em que pedia providências sobre a expedição do Piauí”, prometendo fazer marchar em socorro das tropas cearenses o coronel José Vitoriano Maciel.92 Já era tarde para remediar a derrota sofrida: no dia 24 o governo recebeu “várias participações oficiais de Quixeramobim, Montemor Novo, Vila Nova d’El Rei e de outros comandantes e autoridades sobre o destroço de nossas tropas auxiliadoras aportadas em Piauí, feito pelas tropas de Fidié”. Diante da notícia, a junta governativa decidiu agir ofensivamente, expedindo “tropas para a fronteira norte para serem guarnecidas e entrarem para o Piauí logo que o governador das armas [do Ceará] de[sse] as ordens”.93 Diante da emergência da situação, vários regimentos militares da Ibiapaba seguiram para as vilas próximas ao riacho Jenipapo, com o objetivo de protegê-las de um possível retorno de Fidié, que já marchava para Caxias. A comissão de Viçosa não poderia mais esperar reforços para partir. Mas, ao invés de rumar para o litoral, mudou sua rota para Campo Maior no final de março; a partir de abril registraram-se as primeiras informações sobre a presença da tropa de índios do Ceará no Piauí.

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Ata da junta governativa do Ceará. Fortaleza, 10 de março de 1823. APEC, GC, livro 32, p. 68-68V. Da junta governativa do Ceará a João Nepomuceno. Fortaleza, 10 de março de 1823. Apud. ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedição do Ceará em auxílio do Piauí e Maranhão, p. 242-243. 92 Ata da junta governativa do Ceará. Fortaleza, 16 de março de 1823. APEC, GC, livro 32, p. 80V. 93 Ata da junta governativa do Ceará. Fortaleza, 24 de março de 1823. APEC, GC, livro 32, p. 88. 91

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Mapa 5: Locais de atuação dos índios durante a guerra de independência no Piauí

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Piauí disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Piauí

“Mata que é corcunda!”

Não encontrei documentos que comprovem o envolvimento de tropas de índios vindas do Ceará em confrontos contra regimentos militares constitucionalistas no Piauí. A ata da sessão da junta governativa cearense de 24 de marços de 1823, que citei acima, faz referência ao comunicado do comandante de Monte-mor Novo, que era vila de índios, sobre a derrota no Jenipapo, mas não esclarece se havia indígenas compondo o regimento durante a batalha. Alencar Araripe cita um ofício de Pereira Filgueiras ao diretor da missão da Conceição em que solicitou o envio de “todos os índios que puderem seguir com seus competentes arcos e flechas” para a vila do Crato e, de lá, para o Piauí.94 As tropas da região do Cariri de fato se uniram ao Exército Libertador95 no posterior cerco a Fidié em Caxias, no mês de agosto de

De José Pereira Filgueiras ao “Sr. diretor dos índios da missão da Conceição José...”. Quartel general de São João, 12 de abril de 1823. Apud. ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedição do Ceará em auxílio do Piauí e Maranhão, p. 281-283. Não encontrei qualquer referência a uma “missão da Conceição”, em que província se localizava ou o nome completo de seu diretor. 95 Cf. MARTINS FILHO, Antônio. Filgueiras e o exército libertador, p. 239. 94

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1823, mas não foi possível encontrar comprovação de que havia índios participando desta marcha.96 Tudo indica que os índios de Viçosa não chegaram a ir para Parnaíba e muito menos estiveram na batalha do Jenipapo. Mas isso não significa que estivessem ausentes dos acontecimentos posteriores. De acordo com Francisco Pereira da Costa, em 30 de março “chegavam notícias a Oeiras de que o capitão Alexandre Neri Pereira Nereu entrara em Campo Maior comandando um troço de 800 homens trazidos da Ibiapaba”, e de “que se reuniam na serra mais de 600 índios que desceriam em breve para se bater pela independência”.97 Em 5 de abril o governo do Piauí escreveu a Nereu, incumbido de comandar o efetivo militar responsável pela proteção da referida vila e que lá chegara no dia 16 de março. Respondia a um ofício no qual o capitão alegara já esperar a tropa indígena da Ibiapaba, e se lamentava pela falta de efetivo militar e das poucas munições disponíveis. A junta piauiense aconselhou-o a dispensar todos os que “não estiverem armados com armas de fogo”. Entretanto, advertia que “os índios não devem ser dispensados por forma alguma, porque estes se devem considerar armados, visto que o arco e flecha é sua arma”. 98 A mesma opinião foi transmitida ao capitão-mor Joaquim Nunes de Magalhães: os “índios, uma vez que tragam arco e flechas, não os considera este governo na classe dos desarmados, por serem aquelas suas armas”.99 O poder bélico dos arcos e flechas indígenas já era bastante conhecido e, mesmo que não pudessem utilizar armas de fogo, não deixavam a desejar em relação a outros regimentos. O governo do Piauí só não contava com o comportamento insubmisso da tropa dos índios, que entrara na província manifestando toda sua fúria antilusitana. Quando a junta piauiense escreveu a Nereu, ainda não havia recebido o outro ofício do capitão do dia 4 de março, em que relata alguns dos problemas que enfrentara com regimentos cearenses em Campo Maior. Disse ter sido atacado diversas vezes, “tanto de meia dúzia de soldados pagos que aqui se acham do Ceará e dessa cidade, como de uma tropa de índios vindos de Vila Viçosa, os quais tem feito os maiores insultos e roubos possíveis por falta de subordinação de seus comandantes”. Alguns desses soldados, depois de terem sido “seduzidos” pelos irmãos Vicente Bezerra da Costa e Luis Pinto, foram à porta da casa de Claudete Dias afirma que “certamente” havia índios nas tropas que cercaram Fidié no Maranhão, mas não apresenta provas documentais. Cf. DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 321. 97 COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Cronologia histórica do Estado do Piauí. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1974, volume II, p. 317. 98 Da junta governativa do Piauí a Alexandre Neri Pereira Nereu. Oeiras, 5 de abril de 1823. APEPI, SI, livro 7, p. 9. 99 Da junta governativa do Piauí a Joaquim Nunes de Magalhães. Oeiras, 5 de abril de 1823. APEPI, SI, livro 7, p. 12. 96

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Nereu dirigindo-lhe “palavras injuriosas”, e por isso foram presos. Como reação às prisões, foi a vez dos índios irem até a residência do capitão gritando “morra que é corcunda”. Para que Nereu pudesse se “ver livre desse ataque foi preciso mandar chamar o capitão mandante dos ditos índios e mostr[ar]-lhe os meus papeis a fim de acomodar a vil gente”. A insubordinação dos índios em Campo Maior só teria cessado definitivamente no dia 2 de abril, quando chegara à vila o tenente Simplício José da Silva, mandando “soltar certa porção de animais que se achavam pegados e peados pelos ditos índios, os quais escandalizados, não só por isso, mas também por se tratar de outros roubos mais que eles tinham feito, hoje pelas 7 horas do dia se foram todos embora junto com os seus capitães, dizendo que estavam adoecendo todos de sezões, por isso se retiravam”.100

Monsenhor Chaves foi um dos poucos historiadores a trabalhar de forma mais minuciosa estes documentos, narrando a presença dos índios em Campo Maior para além de curtas citações, ainda que com tom abertamente racista. Relatou a afronta indígena contra Alexandre Nereu, “homem fraco, indeciso, que não queria se comprometer com coisa alguma”.101 O autor afirma que o “capitão mandou chamar o comandante dos índios e lhe mostrou a sua patente para provar àquele imbecil que não era um corcunda e sim um chefe independente. Muito estranho tudo isso”. Com a chegada do tenente Simplício, os “índios nem reagiram. Perceberam que estavam diante não de um molenga, mas de um homem enérgico e perigoso. Tinham pela frente agora um filho da terra, [...]. Trataram logo de inventar doença e arribaram”.102 Chaves tende a caracterizar a presença militar cearense em Campo Maior após a batalha do Jenipapo como uma invasão desastrosa. Em sua narrativa, é clara a diferença de postura entre Nereu – cearense comandante das tropas da província vizinha – e o piauiense Simplício José da Silva. Nas palavras do autor, os índios seriam ainda piores pela própria “imbecilidade” de seu líder. Entretanto, o agrupamento de Viçosa não foi apenas enganado: é possível perceber que a alegada insubmissão indígena se somava à de outros agentes subalternos que formavam a soldadesca do Piauí e do Ceará. A luta contra os constitucionalistas era extremamente heterogênea porque não se tratava meramente de um confronto entre Brasil e Portugal, ou de naturais destes dois países. Por um lado, na tropa de

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De Alexandre Neri Pereira Nereu à junta governativa do Piauí. Campo Maior, 4 de abril de 1823. APEPI, SI, livro 4. 101 CHAVES, Monsenhor Joaquim. O Piauí nas lutas pela Independência do Brasil, p. 105 102 Ibid., p. 108.

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Fidié não havia “um único português em seu efetivo de praças”, como afirma Carlos Daróz.103 Por outro, soldados e índios possivelmente mantinham um diálogo e convivência mais estreitas e certamente não tinham os mesmos objetivos que os oficiais de alta patente. Acerca das ações ofensivas dos índios contra o capitão Nereu, Claudete Dias afirma que a “violência contra certos oficiais serve como exemplo para explicar a atitude que certos grupos populares adotaram de autonomia em relação à condução oficial da guerra”.104 Entretanto, se contradiz ao acreditar que havia um “sentimento de pátria e até mesmo de nação mobilizando a população piauiense unida à do Ceará”.105 A própria saída dos índios de Campo Maior, relatada por Chaves com deboche,106 tendo sido seu pretexto inventado ou não, era sinal de que eles tinham motivações diferentes. Dias está correta quando diz que os atos de violência demonstravam discordância “quanto aos rumos da causa pela qual lutavam”. 107 Mas não é possível concordar que tenha havido um “patriotismo” unindo grupos sociais e étnicos tão diferentes. Ainda que estivessem do mesmo lado, nem todos combatiam pela mesma “pátria” ou em prol dos mesmos objetivos. Os significados da guerra, da independência, das identidades e do futuro eram múltiplos. Para os índios, era mais viável acreditar nas palavras de líderes populares do que na de um capitão branco, que só pôde comprovar não ser um “corcunda” – termo que se referia pejorativamente aos portugueses – mediante a entrega de papeis ao comandante indígena. Este não era nada “imbecil”: conhecia a burocracia e a documentação da época e detinha um efetivo poder de liderança diante de sua comunidade numa situação de guerra. O que a historiografia e as autoridades da época qualificaram como “insubmissão” pode ser interpretado como concepções próprias, indígenas, sobre as relações com seus líderes e de como lidar com os inimigos. Mas quem seriam, de fato, os corcundas e de que maneira deviam ser tratados? A análise de outros registros pode nos fornecer novos elementos para refletir sobre o caráter político tanto das atitudes indígenas quanto de outros agentes. Nem tudo era tão estranho, como acreditava Chaves. Em 12 de abril de 1823, a junta governativa do Piauí informou ao tenente Raimundo de Souza Martins ter recebido notícias de que “as tropas em Campo Maior têm estado em

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DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. A milícia em armas, p. 43. DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 311. 105 Ibid., p. 302. 106 CHAVES, Monsenhor Joaquim. O Piauí nas lutas pela Independência do Brasil, p. 108. 107 DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 311-312. 104

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total desarranjo, que já se debandou dela e que os índios se foram todos embora”. 108 No mesmo dia, respondeu ao capitão cearense Luiz Rodrigues Chaves, concordando que “não só os soldados do Ceará que cometem roubos, mas sim de mistura com muitos desta província e outras pessoas”.109 Já no dia 18, lamentou ao capitão Nereu “os repreensíveis procedimentos dos índios e dos soldados de linha”. Assegurou que os do Piauí seriam castigados, e os índios ficariam a cargo do governo cearense de “dar providências para evitar a continuação destes abusos”.110 O governo do Piauí percebia a dependência militar em relação ao Ceará pela falta de condições materiais para manter suas tropas. Por isso não havia muita coisa que a junta piauiense pudesse fazer, a não ser punir os soldados de sua província e esperar atitudes do governo cearense. Mas, além disso, contrariando o bairrismo do Monsenhor Chaves, as manifestações do governo mostram que os causadores das desordens não eram exclusivamente cearenses e, muito menos, os índios, que brevemente deixaram a província. De acordo com Abdias Neves, a “bala e o facho incendiário eram os argumentos convencedores nestes dias negros. De Campo Maior e de Valença, sobretudo, chegavam as notícias mais alarmantes de crimes perpetrados em nome da causa vencedora”.111 Segundo Monsenhor Chaves, após a “retirada de Fidié, Campo Maior se transformou num pesadelo. Nem o mais mínimo resquício de autoridade existia ali, e muito menos condições para exercêla”.112 O caos era generalizado nos dias posteriores à batalha do Jenipapo porque a população percebia a realidade em que vivia de maneira bastante particular, e cada grupo agia por motivações próprias em relação aos que consideravam inimigos. Alguns autores buscaram explicações para o ambiente conturbado que se instaurou na região, relacionando-as com a precária situação das tropas e da população e com seu exacerbado antilusitanismo. Segundo Bernardo Pereira de Sá Filho, os combatentes cometeram atos de vandalismo porque não haviam “recebido o pagamento do soldo prometido pelos dirigentes”.113 Johny Santana de Araújo destaca como uma das preocupações do governo piauiense a negociação “com as tropas oriundas do Ceará, que cobraram pela

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Da junta governativa do Piauí a Raimundo de Souza Martins. Oeiras, 12 de abril de 1823. APEPI, SI, livro 7, p. 33V. 109 Da junta governativa do Piauí a Luiz Rodrigues Chaves. Oeiras, 12 de abril de 1823. APEPI, SI, livro 7, p. 32. 110 Da junta governativa do Piauí a Alexandre Neri Pereira Nereu. Oeiras, 18 de abril de 1823. APEPI, SI, livro 7, p. 46V-47. 111 NEVES, Abdias. A Guerra do Fidié, p. 171. 112 CHAVES, Monsenhor Joaquim. Campo Maior e a Independência, p. 28. 113 SÁ FILHO, Bernardo Pereira de. A participação popular no processo de independência do Piauí, p. 168.

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atuação na guerra da independência”.114 Para Iara Moura, as promessas de distribuição de terras por parte das lideranças favoráveis à independência foram fundamentais para conseguir o apoio popular. Marcados pela fome, o objetivo do povo seria “acabar com a estrutura colonial de produção, totalmente o contrário da elite, que visava preservar esta ordem, pondo fim apenas às restrições coloniais que dificultavam o comércio livre”. Apesar de citar os saques e assassinatos contra portugueses, Moura não estabelece a ligação que havia entre tais ações violentas e o antilusitanismo115, que sequer chegou a ser mencionado por Sá Filho. Johny Araújo argumenta que, para as elites piauienses, “foi necessário cooptar nos meios populares forças para garantir, por meio das armas, a expulsão dos portugueses”. Acredita que os pobres “foram seduzidos pelo discurso nacionalista” das elites, ansiosas em “se ‘descolonizar’ [...] tanto no âmbito político quanto no cultural”.116 Com isso, o autor não percebe haver um antilusitanismo próprio dos grupos subalternos, manifestado violentamente após a batalha do Jenipapo. Monsenhor Chaves e Maria do Amparo Carvalho relatam que, após a batalha, portugueses foram mortos, roubados, e os que moravam em Campo Maior tiveram suas casas saqueadas.117 Segundo Abdias Neves, enquanto “houve bens de portugueses, foram roubados. Quando se extinguiram, foram atacados os das pessoas suspeitas, ou como tais indigitadas”. Fazendo algum esforço interpretativo para as ações, o autor afirma que “o furto cercava-se de um nimbo luminoso de patriotismo, era considerado ação meritória”.118 Tais exemplos enfatizam claramente que os habitantes portugueses eram o foco da fúria popular. Mas se as motivações estavam em confrontar o sistema econômico, porque a população escolheu despejar sua insatisfação contra os lusitanos, “unindo-se” às autoridades brasileiras que também os submetia? É necessário, portanto, analisar as motivações políticas de cada grupo envolvido a partir de suas próprias experiências. Como vimos em relação aos índios do Ceará, seu antilusitanismo plantara raízes em 1821, quando as Cortes submeteram o rei e circulavam histórias negativas a respeito da constituição que se fazia em Portugal. No ano seguinte, os portugueses eram representados pela então junta governativa do Ceará, que visava aumentar seu poder e que reprimira fortemente os movimentos de Maranguape e de Viçosa. Já em 1823, a tropa desta vila, ao chegar a Campo Maior, se deparou com os resultados do massacre 114

ARAÚJO, Johny Santana de. O Piauí no processo de independência, p. 36. MOURA, Iara Conceição Guerra de Miranda. A visão da história social sobre a “batalha do Jenipapo”, p. 8283. 116 ARAÚJO, Johny Santana de. O Piauí no processo de independência, p. 30. 117 CHAVES, Monsenhor Joaquim. Campo Maior e a Independência, p. 27-28. CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. Batalha do Jenipapo, p. 59. 118 NEVES, Abdias. A Guerra do Fidié, p. 114. 115

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perpetrado pelos lusitanos. O ódio que os índios nutriam dos portugueses não vinha simplesmente de uma “revolta contra a dominação”, como alega de maneira vaga a historiografia. Tinha a ver com o contexto específico do período: o “corcunda” que os indígenas perseguiam com tanto afinco era um representante do país que visava instaurar um novo sistema, e todos os que agissem assim também seriam perseguidos. O antilusitanismo dos índios, além de buscar vingar violências sofridas, também significava lutar pela manutenção de antigas garantias. Em meados de abril de 1823, os indígenas de Viçosa já não estavam mais em Campo Maior, mas sua estadia havia sido marcante o suficiente para ser negativamente referida em várias correspondências militares posteriores. Segundo o tenente Simplício José da Silva, escrevendo à junta piauiense no dia 21, os soldados cearenses já haviam quase todos saído de Campo Maior, levando “consigo os animais que puderam ajuntar, de tal sorte que em alguma fazenda suponho que nem sementes deixaram, e muito principalmente causado este destroço pelos índios; tropa que nos é inútil, antes sim causa um formidável prejuízo a esta província por serem insubordinados”.119

No dia 25, o sargento-mor Bernardo Antônio Saraiva respondeu a uma sugestão da junta governativa do Piauí de enviar os índios de Viçosa para Oeiras, a fim de proteger a capital. Disse achar a medida “inútil pela má conduta, insubordinação de semelhante gente”, e pela “destruição que tem causado aos povos desta província, com mortes e roubos, sem mais atenção a superior algum”.120 Em 7 de maio, o juiz José Marques Freire relatou ao governo piauiense haver um grande clima de denúncia contra quem fosse lusitano. Segundo ele “aos povos só lhes serviam o nome (grito) de ‘morra, é corcunda’. [...] Depois foram muitos roubados pelos índios, que não deixaram em casa vidros, e nem coisa alguma. [...] Nesta vila ficaram todas as casas abertas por as tombarem as portas; e roubarem tudo; assim estavam fazendo por fora a quem possuía alguns bens; bastava ter alguma coisa para ser chamado ‘corcunda’, e ser logo roubado”. 121

Monsenhor Chaves mais uma vez deixa transparecer seu racismo nos comentários feitos acerca do relato do juiz Freire. Segundo ele, os índios teriam sido uma “calamidade que 119

De Simplício José da Silva à junta governativa do Piauí. Estanhado [União], 21 de abril de 1823. APEPI, SI, livro sem número [correspondências recebidas]. 120 De Bernardo Antônio Saraiva à junta governativa do Piauí. Oeiras, 25 de abril de 1823. APEPI, SI, livro sem número [correspondências recebidas]. Havia grande “preocupação em defender a capital” e, por isso, vários pedidos de envio de tropas foram feitos aos governos de Pernambuco, Paraíba e Bahia. Cf. DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 306. 121 De José Marques Freire à junta governativa do Piauí. Campo Maior, 7 de maio de 1823. APEPI, SI, livro 4.

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o Ceará nos mandou naquela hora”, não teriam feito “outra coisa senão roubar, com toda aquela cara de bestas que Deus lhes deu” e quando “pressentiram que a repressão ia começar, se escafederam com muita presteza”.122 Entretanto, a retirada indígena não se deu de forma tão acabrunhada. Vimos anteriormente, pelo ofício de Nereu, que após soltarem os gados roubados, a tropa se retirara “escandalizada”, em clara insatisfação com a atitude do tenente Simplício. A represália não foi suficiente para afastar os índios de Viçosa definitivamente do Piauí. Em 25 de abril, o governador das armas Joaquim de Souza Martins foi comunicado pelo sargento-mor Bernardo Antônio Saraiva sobre as providências tomadas “para evitar a invasão dos índios que na Piracuruca [próxima a Campo Maior]” praticavam furtos. “Semelhante gente tem dado provas de serem inúteis”, e por isso ordenou em 9 de maio que o sargento-mor não consentisse em novas entradas. Caso ocorressem, que os mandasse “prender para serem remetidos para a província a que pertencem”.123 Sobre a situação de Piracuruca nos meses posteriores à batalha do Jenipapo, Abdias Neves comentou que os soldados responsáveis por protegê-la “haviam desertado quase todos e se reuniam aos índios que desciam da Ibiapaba, para atacar e roubar os sertanejos”. Segundo ele, a vila estava “quase em abandono pelas correrias dos índios da Serra Grande”.124 É curioso o verdadeiro “trauma” que as ações indígenas acarretaram nas autoridades brasileiras, mesmo que ambos estivessem lutando pela “causa do Brasil”. A repulsa dos oficiais em relação à tropa de Viçosa se devia a uma convivência que os membros da junta piauiense, sediada em Oeiras e longe do palco dos saques, não tiveram. Todos reconheciam o potencial bélico indígena, mas os militares não conseguiam admitir a insubmissão nativa, que agia a partir de seus objetivos e não obedecia ao que era ordenado. Deixaram Campo Maior porque foram privados da liberdade de atacar, por meios próprios, os inimigos portugueses. Tantas divergências são provas de que, ainda que houvesse um discurso patriótico brasileiro proferido pelas autoridades adeptas da separação, isso não significava uma união em torno de um mesmo “sentimento nacional”. As discordâncias entre índios e lideranças militares e administrativas na forma como lidar com os portugueses eram exemplos da heterogeneidade dos que lutavam pela independência, em meio às disputas pelas concepções de futuro. A análise dos saques e depredações promovidas pelos índios não indica apenas que suas ações eram motivas por autonomia. Os índios não faziam o que queriam – já que se 122

CHAVES, Monsenhor Joaquim. Campo Maior e a Independência, p. 30. De Joaquim de Souza Martins para Bernardo Antônio Saraiva. Oeiras, 9 de maio de 1823. APEPI, SI, livro sem número [ofícios do governador das armas]. 124 NEVES, Abdias. A Guerra do Fidié, p. 115-116. 123

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viram impelidos a deixar o Piauí – mas não foram impedidos de voltar quando podiam e nem de caracterizar o inimigo de maneira particular. Como vimos no relato do juiz José Marques Freire, os “corcundas” já não eram apenas os naturais de Portugal, mas todos aqueles que tivessem “bens”, contrariando a assertiva de Abdias Neves. Claudete Dias afirma que, após a batalha do Jenipapo, “os delitos eram cometidos, em várias vilas piauienses, exatamente contra europeus e brasileiros, contanto que fossem proprietários”. A autora não consegue responder, entretanto, qual era “o significado ou a razão desses delitos” e por que as violências passaram a atingir também os nascidos no Brasil.125 Dias ainda compartilha da ideia de que os “’insultos’ e ‘roubos’” eram manifestações populares que visavam “enfrentar a opressão dos europeus, [...] daqueles que ditavam as regras há muito tempo”,126 esquecendo-se de que os brasileiros ricos eram opressores igualmente antigos e os verdadeiros dominadores naquelas regiões. Como afirma André Roberto Machado, a alteridade entre “brasileiros” e “portugueses” era “construída no desenrolar da própria luta política”, e nem toda tensão se resumia ao choque entre essas duas identidades. No Pará, a fúria dos populares adeptos da separação não se restringia “apenas aos europeus, mas também a brasileiros tidos [...] como entraves à implementação dos objetivos políticos dos rebeldes”.127 Os inimigos das comunidades indígenas, evidentemente, não se restringiam àqueles que haviam nascido na Europa. Na cultura política dos índios no Ceará, “portugueses” e “Coroa portuguesa” não significavam a mesma coisa. O rei era aquele que havia garantido suas mercês e os havia protegido das ambições dos proprietários; e os nascidos em Portugal, com o constitucionalismo de Lisboa, passaram a representar uma ameaça contra esses benefícios. A união de indígenas e de outros grupos populares com as autoridades brasileiras ocorreu pelo desejo compartilhado de expulsão dos lusitanos. Com o decorrer dos acontecimentos, a figura do inimigo se transformou na associação entre europeus e todos aqueles socialmente superiores. “Portugueses”, “ricos” e “corcundas” passaram a significar praticamente a mesma coisa e a luta indígena mudou de rumo. Não se guerreava apenas pela “causa do Brasil”: para os índios, os combates da “independência” representavam uma oportunidade de enfrentar a submissão que sofriam e que poderia recrudescer ainda mais. Diferente do que afirma Eunice Duhram, o processo de inferiorização das populações indígenas não conseguiu ser “mascarado durante as lutas de independência” e nem teve

125

DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 315-316. Ibid., p. 314. 127 MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 224. 126

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sucesso a “afirmação da unidade fictícia [...] através da ideia de povo”, já que as autoridades militares faziam questão caracterizar os índios soldados enquanto presenças indesejáveis.128 Não havia unidade patriótica – e muito menos nacionalista – e nem homogeneidade entre os adeptos da separação política brasileira. Na mudança indígena, na qual os alvos se ampliaram dos europeus para “quem possuía alguns bens”, os “novos” inimigos eram, na verdade, os mesmos de séculos atrás.

* *

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Monsenhor Chaves citou um trecho de um ofício do tenente Simplício José da Silva em que dizia que “parte das pessoas habitantes desse distrito [de Campo Maior] tinha extraviado bens alheios, uns por serem dessa conduta, outras pelo vocábulo que corria entre as pessoas rudes dos bens serem comuns”. O comentário de Chaves a respeito de Simplício não poderia ser mais sarcástico. “Poxa vida! Marx ainda não tinha 5 anos e em Campo Maior já havia tanta gente progressista...”.129 O autor não acreditava que houvesse qualquer sentido nos saques que tomaram conta do Piauí em 1823 para além da pura baderna. Entretanto, é possível analisar tais situações turbulentas a partir de outras perspectivas. A respeito de uma revolta ocorrida no Pará, contemporânea ao que analisamos neste capítulo, André Roberto Machado vai de encontro à opinião de autoridades da época que a viam como uma “espasmódica manifestação de banditismo”. O autor percebe nela o caráter político das ações dos índios e de diversos outros grupos étnico-sociais envolvidos, ainda que suas variadas dissensões convergissem apenas no combate aos “inimigos da independência”. 130 No caso piauiense, o que muitos definiram como calamidade diante da falta de qualquer controle eram, de fato, manifestações políticas de setores muitas vezes distantes de posições de poder, mas obstinados em construir o próprio futuro. O pensamento relatado pelo tenente Simplício era mais antigo do que a turbulenta guerra de independência no Piauí. Em 1818, o governador da então capitania do Ceará, Manuel Ignácio de Sampaio, tecera alguns comentários sobre a insurreição do ano anterior

128

DURHAM, Eunice Ribeiro. O lugar do índio. O índio e a cidadania. São Paulo: Comissão Pró-Índio/SP, Editora Brasiliense, 1983, p. 12. 129 CHAVES, Monsenhor Joaquim. Campo Maior e a Independência, p. 32. 130 MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 258.

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com o ministro João Paulo Bezerra.131 Os conflitos foram contemporâneos à seca que assolava a região desde 1816, dando “ocasião a uma excessiva fome de que não havia memória de igual desde 1792 até o presente”. Para Sampaio, em meio a tais “calamidades públicas [...] os crimes se tornam de ordinário mais frequentes” e “sempre são acompanhados das mais terríveis consequências”. Durante esse contexto, uma das pessoas mais temidas pelos realistas foi o ouvidor João Antônio Rodrigues de Carvalho, expressivo apoiador do liberalismo pernambucano no Ceará. Em meio ao flagelo da estiagem e às tensões revolucionárias “o ouvidor Carvalho se lembrou de proclamar o princípio totalmente subversivo da ordem social, a saber ‘que todos os bens são comuns’. Este princípio, que jamais deixa de estar arraigado no espírito de todos os índios, ainda os mais civilizados, e que agrada por extremo a todas as castas de misturados, que constitui a maior parte dos habitantes deste sertão, sendo sustentado pelo ouvidor da comarca levou à maior desesperação os agricultores, donos de fazendas de gado e em geral todos os proprietários da capitania, e seria bastante para excitar uma grande desordem, e até uma revolta mesmo independente das mais sugestões”. 132

Durante os conflitos de 1817, as palavras proferidas pelo ouvidor não foram suficientes para convencer os índios das vilas do Ceará, que se posicionaram contrários aos insurretos de Pernambuco. Estes, lutando por sua liberdade, não necessariamente pretendiam transformar a sociedade em um mundo igualitário onde todos tivessem direito à propriedade. As propostas dos líderes mais radicais do movimento, contudo, eram recebidas pela população pobre de maneiras diversas. Os índios que obedeceram aos recrutamentos no Ceará, apesar terem relações comunais com seus bens e terras, percebiam que os autores das revoltas deste período turbulento eram geralmente os mesmos que, tradicionalmente, ambicionavam a expropriação de seus territórios. Os indígenas compreendiam a conjuntura em que viviam de maneira particular, e seu envolvimento em eventos bélicos desta época não seguia cegamente os ditames das autoridades às quais estavam submetidos. No próximo capítulo analisaremos a participação dos índios no Ceará nas guerras liberais oitocentistas, tanto na condição de recrutados quanto na de revoltosos. Em todos estes momentos manifestaram seu desejo de defender suas garantias e sua insatisfação contra aqueles que não as respeitavam durante um período que 131

João Paulo Bezerra, ministro dos Negócios Estrangeiros, faleceu em 29 de novembro de 1817. Cf. AZEVEDO, Manuel Duarte Moreira de. Os túmulos de um claustro. Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, tomo XXIX, primeira parte, 1866, p. 278. Quando escreveu a Bezerra, o governador Sampaio ainda não sabia de sua morte. 132 De Manuel Ignácio de Sampaio a João Paulo Bezerra. Fortaleza, 21 de janeiro de 1818. AN, 88, p. 83-83V. ARARIPE, Tristão Alencar. Documentos para a história do Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXV, 1911, p. 94-95.

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cada vez mais os cerceava. A luta contra proprietários e pelo direito a uma vida autônoma e comunal marcou a atuação política indígena em seu envolvimento nas guerras oitocentistas.

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CAPÍTULO 8 ATUAÇÃO INDÍGENA NAS INSURREIÇÕES LIBERAIS “Viva os intrépidos e valorosos índios do Ceará!” (Manuel Ignácio de Sampaio. Fortaleza, 26 de maio de 1817. APEC, GC, livro 28, p. 45V) “Os chefes indianos, assim como a gente que deles dependia, foram de grande préstimo na restauração da ordem, [...] formando, com efeito, os melhores padrões da raça nativa que eu vira na América do Sul” (Lord Cochrane. Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação portuguesa. Londres: James Ridgway, 1856, p. 185) “Entre os índios do Buriti [...] nunca cesse de recrutá-los para que pouco a pouco se vá desaparecendo daí essa gente avezada aos atentados” (José Joaquim Coelho. Fortaleza, 11 de agosto de 1841. APEC, GP, livro 48, p. 171V)

8.1. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NA REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817

O dia 6 de março de 1817 se distinguiu por algo inédito na história da monarquia portuguesa: pela primeira vez, parte de seus antigos súditos lançou-se “no crime de separar-se do corpo do rei, de não ser mais, simbólica e praticamente, parte dele, em solo então marcado pela presença da Corte e elevado à categoria de Reino Unido”. Constituindo uma república que pretendia se estender de Alagoas ao Ceará, o movimento liderado por militares, comerciantes, proprietários rurais e representantes do clero residentes em Pernambuco instaurou, segundo Denis Bernardes, o “tempo da pátria, no qual a legitimidade do poder real deixou de ser reconhecida e uma nova soberania a substituiu”.1 Segundo Evaldo Cabral de Mello, mais do que a república, “a independência foi o verdadeiro motor de Dezessete”, mas ainda assim não se compatibilizava nem ao menos com a ideia de um império constitucional.2 Não se tratava, entretanto, de uma revolução separatista, como alerta o autor, já que não havia nessa época uma unidade nacional no Brasil a ser quebrada. Tampouco o movimento pretendia constituir uma nação brasileira:3 o que ocorreu, como vimos com Bernardes, foi a quebra dos laços que uniam os adeptos da

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BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo-Recife: Aderaldo & Rothschild Editores, FAPESP, Editora Universitária UFPE, 2006, p. 205. 2 MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 24, 2004, p. 39. 3 Ibid., p. 44.

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insurreição ao corpo de vassalos do rei lusitano. Pelo excesso de tributos cobrados nas províncias – principalmente as do norte – para a manutenção da Corte no Rio de Janeiro,4 o movimento recorreu ao “argumento mais abrangente da violação pela Coroa do próprio pacto constitutivo da nação portuguesa”.5 O movimento abrangeu áreas de reconhecida influência histórica e econômica pernambucana, como o Ceará,6 mas é de questionar o verdadeiro impacto da revolução nesta capitania.7 A adesão das vilas do Crato e Jardim à república de 1817, liderada por José Martiniano de Alencar em 3 de maio, durou apenas 8 dias, sendo, em seguida, debelada por José Pereira Filgueiras.8 Para Guilherme Studart, “o movimento de 17 no Ceará foi obra de uma família, não interessou às diversas classes sociais, não foi produto da opinião pública”.9 O autor percebeu com clareza que a insurreição dos Alencar teve impactos mínimos em território cearense, mas desconsiderou a presença das classes populares que se manifestaram em apoio ao movimento. Em seu texto, o fracasso da rebelião é atribuído apenas às ações do governador do Ceará Manuel Ignácio de Sampaio em impedir a difusão das ideias liberais na capitania.10 A postura de Studart compõe o discurso da antiga historiografia da insurreição pernambucana acerca do envolvimento dos mais pobres, independente de quais lados estivessem.11 Segundo Denis Bernardes, era “quase geral, entre os que escreveram sobre 1817, [...] a ideia de que a participação popular na revolução foi, quando existente, mínima, sem grande importância ou, [...] teria permanecido como caudatária da direção dos senhores ou da elite dominante”.12 Apesar dos avanços posteriores em reconhecer o peso significativo da presença do povo nas tropas liberais e realistas, ela ainda é muitas vezes caracterizada como se tivesse apenas seguido os desígnios das lideranças abastadas.

4

Ibid., p. 29. Ibid., p. 46. 6 Ibid., p. 32. 7 Ibid., p. 54. BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. O patriotismo constitucional, p. 72-73. 8 GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1984, p. 128. 9 STUDART, Guilherme. 3 de maio de 1817: o movimento de 17 no Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXXI, 1917, p. 159. 10 Ibid., p. 159-160. 11 STUDART FILHO, Carlos. A revolução de 1817 no Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: tomo LXXIV, 1960 [1961], p. 9. MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817: estruturas e argumentos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Editora Perspectiva, 1972, p. 189. MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa. O trono e o altar: as vicissitudes do tradicionalismo no Ceará, 1817-1978. Fortaleza: BNB, 1992, p. 26. 12 BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. 1817. In: DANTAS, Mônica Duarte (Org.). Revoltas, motins e revoluções: homens livres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011,, p. 73. 5

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Interpretações semelhantes foram desenvolvidas sobre a presença indígena nos conflitos.13 Como afirma Bernardes, tais tipos de interpretações contêm diversas limitações por serem “baseadas em um exame parcial, incompleto ou deliberadamente seletivo da documentação”. Além disso, aqueles autores não se questionavam acerca das “condições de exercício da ação política”, seja em uma “situação de quebra repentina” do Antigo Regime14 ou de apoio ao mesmo. Em relação aos índios, Marcus Carvalho defende que eles não eram “meros peões na política local, mas agentes históricos com interesses próprios”. As “comunidades aproveitavam aqueles momentos em que eram requisitadas a participar como parte de uma força armada a serviço dos potentados rurais, para tentar preservar alguns dos seus direitos tradicionais em face desses mesmos potentados”.15 Mariana Dantas afirma que o “recrutamento de índios e o uso da força militar eram práticas inseridas nos jogos políticos locais, que iriam ter reflexos [e não meramente soterrariam] no pensamento político dos indígenas”.16 Estudando o desenrolar da revolução na Paraíba, Serioja Mariano argumenta que, na “perspectiva indígena, ficar de um lado ou de outro poderia garantir a posse da terra”.17 Os índios do Ceará, assim como os da maioria das capitanias envolvidas, foram recrutados na ação militar realista e se posicionaram como fieis defensores do rei. Sem se prender em perspectivas “alienantes”, a análise da documentação nos permite vislumbrar as motivações dos indígenas para se colocarem de forma tão aguerrida contra os revolucionários que visavam desmantelar o “injusto” e “desigual” corpo de súditos do monarca português. “Viva os índios do Ceará!”

Denis Bernardes apresenta três aspectos pelos quais se é possível refletir sobre as possíveis motivações das classes populares em aderir ao movimento revolucionário liberal no Recife em 1817. Em relação ao aparato judiciário do Antigo Regime, o autor afirma que

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MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817, p. 182. MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa. O trono e o altar, p. 24. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 62. 14 BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. 1817, p. 73. 15 CARVALHO, Marcus J. M. de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (1817-1848): Ideologias e Resistências. In. ALMEIDA, Luiz Sávio de. GALINDO, Marcos. Índios do Nordeste: temas e problemas – III. Maceió: EDUFAL, 2002, p. 93. GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil. Studia Historica. Historia Contemporánea, n. 27, 2009, p. 268. 16 DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro: revoltas em Pernambuco e Alagoas (1817-1848). Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2015, p. 110. 17 MARIANO, Serioja Rodrigues Cordeiro. Memórias da insurreição de 1817 na Paraíba: o diário do sargento Francisco Inácio do Vale. Anais do VI Encontro Nacional de História Cultural, 2012, p. 5.

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“todos eram desiguais perante a lei”, o que fazia com que as penas fossem bem mais truculentas para os réus de baixa condição.18 Em segundo lugar, o “poder do Estado absolutista em matéria fiscal gerou uma série de abusos que pesavam sobre a maioria da população, deles excetuados os nobres e o clero, o que tornava mais odioso e inaceitável sua imposição”.19 Por fim, o recrutamento militar, “espécie de sequestro oficial sobre a população dos homens livres pobres”, era para eles um flagelo que “atingia a força de trabalho familiar dos pequenos agricultores ou artesãos”.20 Por mais que isso fosse uma realidade para grande parte dos pobres livres da capital pernambucana, as mesmas questões eram vivenciadas de maneiras distintas pelos índios no Ceará deste período. No que se referia à justiça, o governador do Ceará à época, Manuel Ignácio de Sampaio, era muito bem quisto pelas comunidades indígenas da capitania por conta de seu combate aos abusos dos proprietários, como mostrei em trabalho anterior 21 e como veremos mais à frente. Acerca do recrutamento militar, a população indígena não era mobilizada para a tropa de linha, e, como vimos nos capítulos 5 e 6, sua atuação por meio das ordenanças era, para eles, um caminho importante de atuação política.22 Além disso, ao contrário das camadas populares de Recife, os indígenas das vilas do Ceará provavelmente tiveram muito pouco contato com as ideias liberais em 1817. Domingos José Martins, um dos líderes da revolução, chegou a fazer perguntas sobre Manuel Ignácio de Sampaio a dois índios correios vindos de Pernambuco, o que não foi suficiente para estabelecer uma relação mais permanente dos liberais com os indígenas.23 De acordo com Keile Felix, já havia intenções de inserir o Ceará no movimento revolucionário desde pelo menos 1815, a partir da nomeação de João Antônio Rodrigues de Carvalho como ouvidor da comarca da capital e a introdução das primeiras lojas maçônicas. 24 Carvalho recebia várias pessoas em sua residência em Fortaleza, com quem tratava de assuntos considerados 18

BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. 1817, p. 75. Ibid., p. 76. 20 Ibid., p. 77. 21 COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina: EDUFPI, 2015, p. 139-150. 22 No que dizia respeito aos impostos, a abolição do subsídio militar, do pagamento de selo nas patentes e dos 6% dos seus diretores, decretadas dois anos depois dos conflitos, foram tentativas fortalecimento do vínculo de vassalagem entre os índios e o rei. 23 Cf. Portaria a José Agostinho Pinheiro. Fortaleza, 24 de abril de 1817. APEC, GC, livro 21, p. 114. O Correio do Norte do Brasil, por meio dos “índios correios”, foi ferramenta importante do governo Sampaio na coleta de informações provenientes de outras vilas e províncias sobre os acontecimentos relativos à revolução. Cf. NOBRE, Geraldo da Silva. A revolução de 1817 no Ceará. In: SOUZA, Simone de. (Org.). História do Ceará. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1984, p. 132. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 237-238 24 FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”: a construção do Estado nacional brasileiro e os projetos políticos no Ceará (1817-1840). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 61 19

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“perigosos” pelos defensores da monarquia. Para Felix, já seria possível visualizar no Ceará deste período “toda uma nova cultura política que vinha pouco a pouco minando as crenças e ideias centrais típicas de sociedades do Antigo Regime”.25 A afirmação da autora é precipitada ou, pelo menos, generalizante. Os acontecimentos desenrolados anos depois em decorrência da separação política brasileira são prova de que a difusão de princípios revolucionários e liberais em 1817 ainda não havia sido suficiente para “minar” o absolutismo no Ceará. Além disso, as reuniões promovidas pelo ouvidor Carvalho certamente não agregavam representantes de todos os extratos da sociedade, muito menos os índios. Segundo Studart Filho, nem havia essa preocupação por parte dos pedreiros livres cearenses.26 Mas mesmo antes que ela surgisse, as ações preventivas do governador Sampaio, tomadas assim que soube dos acontecimentos em março no Recife, abortaram rapidamente os planos dos liberais para o Ceará. Não foi possível, portanto, o desenvolvimento em 1817 de uma “nova cultura política” que fosse capaz de ameaçar o Antigo Regime em território cearense. Segundo Guilherme Studart, desde o final de março e nos meses seguintes, “muitas e importantes medidas tomou Sampaio para sufocar qualquer tentativa de levante”.27 Vários suspeitos de conspirar contra a integridade da monarquia foram presos, destruindo prematuramente a difusão dos planos republicanos a partir de Fortaleza.28 Mandou deter embarcações, guarneceu fronteiras e estabeleceu presídios na costa, como os do litoral próximo a Itapajé, que ordenou serem protegidos pelos índios de Almofala em setembro.29 Além disso, também “armou os índios das aldeias vizinhas da capital”.30 Em 19 de maio de 1817, Sampaio expediu ordem aos diretores de Soure, Arronches e Messejana para “terem prontos em estado de defesa todos os índios daquela direção para qualquer operação”, pelos “augustos direitos de Sua Majestade e a manutenção do sossego e boa ordem da capitania”.31 No dia 23, o governador ordenou que 300 índios das três vilas, armados de arco e flecha, se dirigissem às fronteiras do Ceará com a Paraíba e o Rio Grande

25

Ibid., p. 71-72. STUDART FILHO, Carlos. A revolução de 1817 no Ceará, p. 9. 27 STUDART, Guilherme. 3 de maio de 1817, p. 111. 28 Cf. Ibid., p. 110-111. HISTÓRIA da revolução de 1817 por Muniz Tavares na parte relativa ao Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart, tomo XII, 1898, p. 259. STUDART FILHO, Carlos. A revolução de 1817 no Ceará, p. 29-32. NOBRE, Geraldo da Silva. A revolução de 1817 no Ceará, p. 134-135. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 126-127 29 De Manuel Ignácio de Sampaio a Pedro Luís Pessoa. Fortaleza, 12 de setembro de 1817. APEC, GC, livro 21, p. 175. 30 STUDART, Guilherme. 3 de maio de 1817, p. 111. 31 De Manuel Ignácio de Sampaio aos diretores de Arronches, Soure e Messejana. Fortaleza, 19 de maio de 1817. APEC, GC, livro 21, p. 132V. 26

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do Norte para se unir à companhia liderada pelo coronel Alexandre Leite de Chaves e Melo.32 Também mandou armar, no dia seguinte, mais 100 índios da vila de Monte-mor Novo para que se juntassem aos outros que rumavam aos limites da capitania.33 Ainda no final de maio, os cerca de 1.700 homens liderados por Chaves e Melo atravessaram as fronteiras cearenses, prendendo alguns liberais que se refugiavam na região do rio do Peixe, compreendendo as vilas de Portalegre, no Rio Grande do Norte, e Souza e Pombal, na Paraíba.34 As referências à participação dos 400 índios do Ceará nas ações militares de repressão à revolução nas obras dos historiadores tradicionais são muito poucas e bastante sucintas, talvez não reconhecendo nela qualquer importância. Mas a leitura da "Proclamação aos índios do Ceará quando partiram para o ataque das capitanias sublevadas", de autoria de Manuel Ignácio de Sampaio, aponta para um sentido inverso: a presença bélica indígena não era, de forma alguma, insignificante: “Índios do Ceará, é necessário cortar de uma vez esta série de desgraças que não pode deixar de ser organizada pela ignorância que tais traidores disfarçados inimigos da fé cristã têm ou afeitam ter dos heroicos fatos praticados na gloriosa restauração de Pernambuco da mão dos holandeses e flamengos pelos habitantes dessas Capitanias principalmente pelos índios, e mais que tudo pelos índios do Ceara. É necessário que tão infames traidores paguem mui caro com esta afetada ignorância dos heroicos feitos dos vossos pais e avós. [...] Índios do Ceara, nas vossas veias corre ainda o sangue dos Algodões, dos Camarões, dos Pinheiros, dos Tavares, dos Campelins e de outros muitos heróis que se distinguirão assim nos ataques sobre o gentio como na primeira restauração de Pernambuco. Mostrai a todos que sois dignos filhos. [...] Vós sois valorosos. Nada vos resistirá. Invejo-vos a glória de que todos vós ides cobrir. Viva a nossa Santa Religião, viva o nosso Rei o Senhor Dom João 6º e Toda Real Família, viva os intrépidos e valorosos índios do Ceará!”35

O governador se utilizou de elementos discursivos bastante valorizados na cultura política das comunidades indígenas desse período e frequentes em suas requisições, como no caso das referências às ações militares de seus antepassados em defesa dos interesses da Coroa portuguesa. Além disso, indo de encontro aos apelos da tradição pernambucana utilizada pelos liberais, como vimos anteriormente com Evaldo Cabral de Mello, Sampaio

32

De Manuel Ignácio de Sampaio ao diretor de Messejana. Fortaleza, 23 de maio de 1817. APEC, GC, livro 21, p. 136. De Manuel Ignácio de Sampaio José Agostinho Pinheiro. Fortaleza, 23 de maio de 1817. APEC, GC, livro 21, p. 136V. 33 De Manuel Ignácio de Sampaio a José Severino de Vasconcelos. Fortaleza, 24 de maio de 1817. APEC, GC, livro 21, p. 140. 34 Cf. STUDART, Guilherme. 3 de maio de 1817, p. 146. FEITOSA, Carlos. A descendência de Antônio Leite de Chaves e Melo. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora do Instituto do Ceará LTDA, tomo LXVIII, 1954, p. 156. STUDART FILHO, Carlos. A revolução de 1817 no Ceará, p. 64. NOBRE, Geraldo da Silva. A revolução de 1817 no Ceará, p. 137. 35 "Proclamação aos índios do Ceará quando partiram para o ataque das capitanias sublevadas", de Manuel Ignácio de Sampaio. Fortaleza, 26 de maio de 1817. APEC, GC, livro 28, p. 45V.

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inverteu os elementos dessa memória, ressaltando que a expulsão dos batavos fora protagonizada pelos índios em nome do rei lusitano. Não buscava, apenas, “forjar” uma realidade de amor e fidelidade dos soldados ao rei,36 mas ressaltar sentimentos de uma relação recíproca que, segundo ele, existia há muito tempo. Ainda que as palavras de Sampaio tenham sido utilizadas apenas com o objetivo de despertar nos índios o orgulho e a obstinação para partir para o campo de batalha, a própria necessidade de produzir a proclamação revela que a importância história da força militar indígena não era ignorada. A presença dos índios de outras capitanias nas tropas contrarrevolucionárias em 1817 também foi destacada por alguns autores.37 Mariana Dantas também segue uma linha argumentativa semelhante, supondo que os recrutamentos de índios pela Coroa em 1817 tenham sido forçados, mesmo que as fontes trabalhadas não apresentem nada a respeito.38 A autora se baseia na história das conscrições de índios no período posterior à década de 182039 – que, como vimos no capítulo 5, tinham características diferentes às do contexto analisado aqui. Apesar de reconhecer a tradicional relação de fidelidade dos índios com a monarquia, Dantas acredita que, em 1817, tinham que ser convencidos a lutar pelo rei, já que “a continuidade de uma cultura política do Antigo Regime não seria o suficiente para levá-los a pegar em armas e arriscar suas vidas”.40 Mas a documentação referente à participação das tropas de índios do Ceará fornece elementos que nos permitem rever tais interpretações. Em 24 de maio, Manuel Ignácio de Sampaio escreveu ao coronel Chaves e Melo comunicando-lhe que os “índios vão com um ânimo extraordinário” ao seu encontro nas fronteiras.41 No dia 29 o governador escreveu à câmara de Fortaleza tratando das ações tomadas em prol do combate aos liberais. Relatou o envio do sargento-mor José Agostinho Pinheiro, vereador da capital e diretor de Arronches e Soure, “à testa de um corpo de índios seus dirigidos de quem é por extremo amado e respeitado”.42 Em 31 de maio, Sampaio ordenou o coronel Chaves e Melo que atacasse a

36

COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 317. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 63. CARVALHO, Marcus J. M. de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (1817-1848), p. 77-88. Por mais que admita a histórica figura de proteção que o rei possuía entre os índios das vilas oitocentistas, o autor, também aqui, percebe o envolvimento indígena nas insurreições liberais como fazendo parte das redes clientelistas em que estavam inseridos, ou buscando vantagens em meio a “brigas de brancos”. 38 DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro, p. 100-103. 39 Ibid., p. 107. 40 Ibid., p. 116. 41 De Manuel Ignácio de Sampaio a Alexandre Leite de Chaves e Melo. Fortaleza, 24 de maio de 1817. APEC, GC, livro 24, p. 9. 42 De Manuel Ignácio de Sampaio à câmara de Fortaleza. Fortaleza, 29 de maio de 1817. APEC, CM, câmara de Fortaleza, livro sem número (1813-1818), p. 69. 37

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região do rio do Peixe, tendo em vista os regimentos que receberia e “à vista do entusiasmo com que vão os índios do Pinheiro”.43 A postura indígena na marcha contra os liberais é bem diferente do que supôs Mariana Dantas para os índios de Pernambuco. Em seu entusiasmo estava o orgulho presente nas palavras da proclamação que os enviou ao campo de batalha. Para os índios, a luta de 1817 era uma oportunidade de repetir os atos heroicos e garantir, mais uma vez, prestígio diante da monarquia que defendiam. Outras referências aos índios estão nos ofícios de 2 de junho dirigidos a diversas autoridades de fora de Ceará produzidas por Sampaio. Ao conde da Barca, relatou a fidelidade dos corpos militares da capitania, inclusive dos “índios aldeados e em geral de todo o povo inculto”, dignos “da melhor sorte” e merecedores de “que Sua Majestade tenha com eles alguma contemplação enquanto a tributos”.44 Ao governador da Paraíba, comunicou-o das súplicas de várias autoridades locais em que pediam “licença para ir atacar esses rebeldes”, e fez referência ao “corpo de índios armados de arco e flecha”, destinados “para operarem com os demais corpos” nas fronteiras.45 Para o chefe da divisão que bloqueava o posto do Recife, informou que marchavam para a capital pernambucana “tropas de linha e de milícia, de ordenanças e de índios armados com arco e flecha: ninguém quer ficar”. 46 E ao governador do Rio Grande do Norte também versou sobre os vários pedidos de “câmaras e outras corporações [...] para irem atacar e restaurar as vilas de Souza e Pombal, [...] licença que eu só concedi aos índios como mais próprios para resistirem aos incômodos do sertão”.47 As palavras de Sampaio para estas autoridades bem que poderiam ser exageradas, ditas em busca de construir uma imagem da capitania que comandava como uma terra de habitantes fiéis à monarquia, e de si, como um governante competente. Todavia, os registros não fazem nenhuma referência a tumultos ou resistência dos índios. Estes, ao contrário, teriam pedido, assim como outros grupos sociais, para se lançar contra os inimigos da Coroa. Se não fosse assim, o governador não reconheceria os indígenas como merecedores da atenção real: no caso dos tributos, as isenções tanto contrariariam as reclamações dos insurgentes liberais

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De Manuel Ignácio de Sampaio a Alexandre Leite de Chaves e Melo. Fortaleza, 31 de maio de 1817. APEC, GC, livro 24, p. 13. 44 De Manuel Ignácio de Sampaio ao conde da Barca. Fortaleza, 2 de junho de 1817. AN, 88, p. 9. 45 De Manuel Ignácio de Sampaio ao governador da Paraíba. Fortaleza, 2 de junho de 1817. APEC, GC, livro 23, p. 146V. DOCUMENTOS da revolução de 1817 (do arquivo do barão de Studart). Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXXI, 1917, p. 73. 46 De Manuel Ignácio de Sampaio a Rodrigo José Ferreira Lobo. Fortaleza, 2 de junho de 1817. APEC, GC, livro 23, p. 148. 47 De Manuel Ignácio de Sampaio ao governador do Rio Grande do Norte. Fortaleza, 2 de junho de 1817. APEC, GC, livro 23, p. 148V.

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quanto atenderiam as súplicas feitas pelos índios desde 1814, com o grande requerimento dos da Ibiapaba. Inclusive, a demora na resposta do rei em relação aos pedidos que haviam feito não impediu que os índios de Viçosa, em 30 de julho de 1817, declarassem sua fidelidade ao rei e seu desejo de defendê-lo. Como vimos no capítulo 4, mesmo não tendo sido recrutados, desejavam “pegar em armas, derramar a última gota de sangue, e dar a própria vida por Vossa Majestade”. Em 13 de agosto, meses depois do fim dos conflitos, Sampaio escreveu novamente ao conde da Barca contando detalhes do que havia acontecido nas vilas sublevadas e da repressão bem-sucedida que ele organizara. Apesar do entusiasmo dos índios que marcharam, registrado nos ofícios que vimos há pouco, não houve solenidades com a queda da revolução “nas vilas de índios de Arronches, Soure e Messejana, [...] por serem mui insignificantes, ou talvez por outros motivos de que eu não possa ainda com segurança informar”. 48 Também pode ter sido porque, no início de agosto, os que se encontravam nas fronteiras tinham acabado de voltar às suas vilas,49 e se mantiveram em alerta até o dia 23 de setembro, quando foram desarmados por conta da “boa ordem que vão tomando os negócios das três capitanias [...] que há pouco estiveram sublevadas”.50 Isso não quer dizer, de forma nenhuma, que os índios foram indiferentes aos mais de dois meses que estiveram longe de casa, a serviço do rei. Como disse acima, se o comportamento indígena tivesse sido insubordinado ou desagradado ao governador, este não os teria defendido diante de dom João VI, que em setembro de 1817 já tomava conhecimento de sua conduta.51 Em resposta à consulta do rei sobre a situação dos índios de Viçosa, Sampaio alegou, em julho de 1818, que os indígenas “não só marcharam desta capital para atacar os rebeldes com uma prontidão, uma fidelidade e um entusiasmo que muito me satisfez, mas tendo sempre feito grandes marchas forçadas, só se entristeceram quando receberam ordem para retrogradar, e chegaram a esta capital lastimando-se de não terem tido ocasião de verem a cor do sangue dos patriotas, e acrescentando que os poucos que encontraram foram tão vis que nem a mais pequena resistência lhes fizeram, não lhes tendo, por esta maneira, permitido que usassem dos seus arcos e flechas em defesa do seu rei” 52

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De Manuel Ignácio de Sampaio ao conde da Barca. Fortaleza, 2 de junho de 1817. AN, 88, p. 20-27. Cf. De Manuel Ignácio de Sampaio ao intendente da Marinha. Fortaleza, 4 de agosto de 1817. APEC, GC, livro 28, p. 58. 50 De Manuel Ignácio de Sampaio aos diretores de Arronches, Soure e Messejana e ao capitão-mor de Montemor Novo. Fortaleza, 23 de setembro de 1817. APEC, GC, livro 21, p. 176V-177V. 51 De Thomas Antônio de Vilanova Portugal a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 3 de setembro de 1817. AN, AA, IJJ9 56, p. 188. 52 De Manuel Ignácio de Sampaio a Thomas Antônio de Vilanova Portugal. Fortaleza, 2 de julho de 1818. BN, C-199, 14. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento. 49

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Sampaio não ganharia muito inventando uma imagem de fidelidade e intrepidez sobre os índios que não existisse – além, talvez, de passar a imagem de bom e eficiente governante, que sabia infundir nos habitantes de sua capitania lealdade à monarquia. Tal bravura indígena em campo de batalha era comumente registrada nas fontes coloniais, 53 inclusive nas próprias palavras dos índios, quando se reportavam aos seus antepassados mais ilustres que morreram guerreando em nome dos reis. O relato de Sampaio ressalta, mais uma vez, a importância da guerra para essas comunidades e a forma como se aliava à imagem que tinham do monarca: era usando seus arcos e flechas que garantiam o lugar que acreditavam ser de destaque diante de seu soberano. A ausência de solenidades em suas vilas pode também ter sido consequência das expectativas frustradas por não terem visto o sangue dos inimigos do rei, e que, portanto, era seu também. Essa briga também lhes pertencia. Na continuidade de seu relato, Sampaio ponderou um possível exagero: disse que os índios “voltaram contentes” de sua empreitada, “tão somente com a pena de não terem batido com os rebeldes”. Por ter mandado distribuir para eles “uma camisa e umas calças de pano de algodão da terra (que eles denominam o seu fardamento)”, os índios “ficaram por extremo satisfeitos, desejando a repetição de semelhante comissão”. As ordens de Sampaio para que se providenciassem tecidos para os índios que haviam voltado das fronteiras havia pouco tempo foram emitidas no início de agosto de 1817.54 Diferente do que afirmei em trabalho anterior,55 o ato não era, necessariamente, mais importante para o governo do que para os próprios índios. Não eram simples roupas: na concepção desses indígenas, se tratavam de “fardamentos” de guerra, símbolos do prestígio que conquistaram pelos serviços prestados ao rei. Sampaio não agia, portanto, à revelia da vontade dos índios. Estes, por sua vez, viam no governador uma autoridade que os reconhecia como dignos de atenção, a partir de atos como a proclamação a eles dirigida ou o envio de suas vestimentas. O governador também fez referência à adesão que muitos indígenas manifestavam a sua pessoa, já que não eram “poucos os que diziam [...]: ‘nós não temos medo que eles (os rebeldes) cá venham atacar o nosso governador, nós cá estamos para o defendermos’”. O receio dos índios seria apenas que armassem alguma traição contra Sampaio, “porque ele não se acautela, e então tudo está 53

Cf. CARVALHO, Marcus J. M. de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (18171848), p. 70-71. DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro, p. 102-103. 54 Cf. De Manuel Ignácio de Sampaio ao intendente da Marinha. Fortaleza, 4 de agosto de 1817. APEC, GC, livro 28, p. 58. De Manuel Ignácio de Sampaio ao capitão-mor de Monte-mor Novo. Fortaleza, 24 de setembro de 1817. APEC, GC, livro 21, p. 178. 55 COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 129-130.

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perdido”. O temor indígena não era infundado: o êxito do governador do Ceará em combater os rebeldes era bastante conhecido, e já vimos o quanto Sampaio representava para os índios em termos de proteção e luta por seus benefícios – a exemplo do decreto de 1819. É possível pensar, a priori, que isso não passava de um “autoelogio” exagerado de um administrador desejoso de enaltecer sua imagem perante os superiores por ser querido pela população que governava. Mas um ofício produzido pela câmara dos índios de Messejana, em janeiro de 1820, confirma a boa relação entre eles. Escrevendo ao próprio “Soberano e Augusto Rei e Senhor”, os vereadores da vila se lamentavam, de maneira muito poética, da “tristíssima [sic] notícia da saída” do governador da capitania e, por isso, sua “felicidade, que ia sendo tão vigorosa”, murchava “como uma flor tirada do pé”. Sampaio era, para eles, “benfeitor”, “pai”, “protetor da verdade, da justiça e da inocência”, e seu “sábio governo” e “suas brilhantes virtudes” se manifestavam em questões muito caras aos indígenas. Seriam ilimitados os “benefícios que recebem os índios desta capitania, e entre as aldeias é esta nossa uma delas, fazendo-os civilizados neste giro do correio, a que são preferidos, o pronto pagamento de seus jornais e de seus filhos, que alguns brancos pretendem negar-lhes, e que conhecida a verdade os faz pagar prontamente, a proibição de se darem índios para as vilas longe das aldeias, a que nunca mais tornavam, e por isso hoje as aldeias estão aumentadas em população, não só neste princípio, como pela escolha que faz das pessoas para diretores.”

Por tudo isso, segundo eles, chamavam Sampaio “mais nosso pai que governador”.56 Não se tratava de submissão indígena diante de seus administradores: os benefícios que descreveram atingiam demandas que estavam, havia muito, em suas comunidades, relacionadas ao bem estar de seus filhos e a condições dignas de trabalho. Por esta forma, a civilização era, inclusive, desejada pelos líderes índios porque partiam de ganhos reais, como as remunerações regulares e o crescimento de suas vilas. Os vereadores de Messejana – de onde foram enviados 100 índios de arco e flecha em 1817 – não chegaram a mencionar os eventos ocorridos nas fronteiras em sua caça aos liberais, mesmo após a isenção de impostos promulgada em 1819. Contudo, deixaram transparecer em seu texto remetido ao rei que o ânimo com que lutaram e a boa relação que tinham com o governador não eram meros “exageros discursivos”.

56

Da câmara de Messejana ao rei dom João VI. Messejana, 3 de janeiro de 1820. AN, 8J, p. 106V-107V. As políticas de combate à dispersão e de incentivo ao trabalho do governo de Manuel Ignácio de Sampaio proporcionaram o crescimento e desenvolvimento econômico das vilas de índios. Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção.

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O relatado “entusiasmo dos índios” não era, apenas, uma tentativa do governo de criar um novo “regime de verdade”, por um lado, ou uma tática indígena diante de um espaço de escolha reduzido, por outro.57 Bem mais do que isso, a secular fidelidade dos índios das vilas do Ceará em relação à Coroa se manifestava como um posicionamento político por meio do qual viam um caminho para alcançar seus objetivos comunitários. Não se trata aqui de generalizar a visão dos índios em território cearense, mas ainda que a perspectiva das lideranças nem sempre tenham sido as mesmas dos liderados, as benesses elencadas pela câmara de Messejana atingiam a todos. Em 1817, os recrutamentos indígenas no Ceará para reprimir a revolução de Pernambuco provavelmente não foram forçados, e não se pode supor ter havido violência, como característica inerente às conscrições no Antigo Regime. A fidelidade que os índios demonstravam ter com o rei não fazia deles manipulados, já que a relação era mútua e, por meio dela, ganhavam mercês das quais se orgulhavam. Fazendo parte da vassalagem pela qual compunham o corpo de súditos do monarca, a sincera vontade de muitos indígenas (e porque não dizer “da maioria”?) em querer defender o rei não excluía sua luta em prol de interesses comunitários: ambas estavam vinculadas. Sua posição de súditos da Coroa portuguesa era a garantia de poder lutar contra os abusos de proprietários e autoridades locais sobre suas terras e mão-de-obra. Escrito quase 20 anos depois da revolução pernambucana de 1817, o comentário de Francisco Constâncio sobre a postura dos índios em defesa do rei confirma esta perspectiva: “Se nesta e outras semelhantes ocasiões se mostraram os indígenas, assim como os escravos africanos, favoráveis à autoridade régia e dispostos a combater contra os habitantes sublevados, é porque, sujeitos ao pesado jugo dos proprietários do solo, só nos agentes do governo encontravam alguma proteção”.58

Neste contexto, a continuidade do Antigo Regime era muito mais importante para os índios das vilas do afirma Mariana Dantas e não se dava em detrimento de demandas cotidianas. Ao contrário, era justamente em nome de sua liberdade, da incolumidade de suas terras e de dignas condições de trabalho que amparavam suas expectativas de reciprocidade com o rei que defendiam. Ou seja, era fundamental a permanência da qualidade de vassalos do rei para a garantia de suas prerrogativas. A insatisfação das classes subalternas em relação ao soberano português não era óbvia: como nos lembra Denis Bernardes, “gente do povo, 57

COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 291-304. CONSTÂNCIO, Francisco Solano. História do Brasil, desde seu descobrimento por Pedro Álvares Cabral até a abdicação do imperador dom Pedro I. Paris: Livraria Portuguesa de J. P. Aillaud, 1839, p. 219. 58

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escravos, índios, pequenos lavradores, lutaram ao lado da legitimidade monárquica e festejaram a derrota dos patriotas. São partes, também, da história popular de 1817”. 59 Assim como no contexto da independência, as “brigas” de que tratamos não eram apenas de brancos: faziam parte de todos os que constituíam o corpo social de súditos no império luso e, no caso dos índios, sua luta extrapolava a questão da terra. A manutenção do território era fundamental, mas era uma garantia que se somava às outras mercês concedidas pela Coroa, como os cargos políticos e militares. As próprias leis indigenistas, ainda que fossem desrespeitadas muitas vezes pelos proprietários e administradores coloniais, eram caminhos na luta indígena por benefícios vindos do rei em troca de sua fidelidade.

Mapa 6: Locais de atuação dos índios do Ceará na Revolução Pernambucana de 1817

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual dos estados da região Nordeste disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Região_Nordeste_do_Brasil

8.2. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NA CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR

Apesar do curto período que separou a Revolução Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador em 1824, nele as capitanias do norte do Brasil vivenciaram intensas transformações políticas e experiências de participação popular. Após a insurreição liberal-

59

BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. 1817, p. 89.

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republicana que pretendeu se separar do corpo de súditos do rei de Portugal, os habitantes do Brasil tiveram que lidar com as transformações provocadas pelos liberais do Porto, em 1820. No ano seguinte, as Cortes reunidas em Lisboa exigiram o retorno da família real para a Europa e submeteram o monarca a uma constituição, promovendo a descentralização do poder no império. Os planos portugueses de recolonização do Brasil, no entanto, motivaram a dissolução do Reino Unido e a criação do novo Estado soberano no lugar da antiga América lusitana em 1822. Apesar disso, as ideias liberais difundidas pelas Cortes de diminuir a concentração do poder nas mãos do rei foram bem recebidas pelas autoridades provinciais brasileiras. A independência do Brasil, portanto, foi marcada por disputas de projetos e interesses locais, em que a adesão de cada circunscrição administrativa ao Rio de Janeiro se deu por motivos próprios. Em contrapartida, a concentração de poder pelas elites desagradava muita gente. Para os índios, o liberalismo provincial e o encolhimento da figura do rei podiam significar o uso abusivo e ilimitado de sua mão-de-obra e a usurpação de suas terras por parte dos poderosos proprietários rurais. No Ceará, o apoio indígena ao grupo político do interior durante a separação política brasileira não se deu necessariamente por afinidade ideológica. Em 1822 e 1823, os líderes sertanejos e os índios tinham inimigos comuns: a elite de Fortaleza e os portugueses, representantes das ideias que defendiam o acúmulo do poder nas capitais provinciais. Por isso, mal proclamada a independência do Brasil, as ações centralizadoras do recém-coroado imperador dom Pedro I passaram a provocar tanta insatisfação. Em março de 1823, a vila da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção foi erigida à categoria de cidade, 60 sendo “mais uma medida tomada pelo imperador com o objetivo de ter as capitais [...] sob seu domínio”,61 como afirma Keile Felix. Com isso, o monarca visava conquistar a adesão das câmaras mais importantes de cada província aos seus planos de concentração de poder, o que não agradou aos grupos políticos do interior cearense que, no final do ano anterior, haviam se garantido no governo da província, com apoio, inclusive, dos índios. A oposição a dom Pedro I ganhou ainda mais força quando, em novembro de 1823, ele dissolveu a Assembleia Constituinte. Entre o final deste ano e o início de 1824, o monarca propôs um novo projeto de Constituição – trazendo como novidade o famigerado poder moderador – e nomeou novos presidentes para as províncias, abolindo os governos eleitos 60

Cf. Alvará de 17 de março de 1823. Disponível em: . Acesso em: 29 de agosto de 2016. 61 FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 102.

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localmente. As crescentes tensões entre a Corte no Rio de Janeiro e as autoridades em Pernambuco culminaram, em julho de 1824, com a proclamação da Confederação de Equador, tendo a adesão do Ceará acorrida no fim do mês de agosto. Como afirma Denis Bernardes, as diferenças substanciais entre os dois movimentos insurrecionais iniciados em território pernambucano estavam no fato de que, em 1817, “ainda vigorava sobre o espaço brasileiro o poder de uma monarquia absoluta, apegada à cultura do Antigo Regime”, enquanto que, em “1824, o quadro era outro e havia conhecido profundas mudanças”. Prova disso, como Bernardes observa, é que, apesar de diversas experiências políticas, princípios e participantes terem estado presentes nestes dois momentos, muitos dos envolvidos na primeira rebelião encontravam-se em lados opostos na segunda.62 Um exemplo no Ceará foi a história da família Alencar. José Martiniano e seu irmão Tristão Gonçalves lideraram, em 1817, o movimento republicano no Crato, rompendo laços com a Coroa, e foram derrotados após oito dias por José Pereira Filgueiras. Em 1822, os antigos inimigos se aliaram para destituir a junta governativa cearense, acusada de ser excessivamente “portuguesa”, e derrotar Fidié no Maranhão no ano seguinte em defesa de dom Pedro I. Por conta da dissolução da Constituinte, os antigos defensores do rei passaram a ser acérrimos opositores do monarca. Nesses conflitos havia, segundo Bernardes, a “existência de uma dinâmica local que, embora não desvinculada dos processos políticos mais amplos, não estava, necessariamente, alinhada às decisões ou legitimações institucionais”.63 Apesar das mudanças de lado, em todos esses momentos estavam os anseios das elites locais pelo poder. O apoio ou não ao soberano ou a determinadas correntes de pensamento dependia de contra quem rivalizavam e do contexto político do Brasil. Para Denis Bernardes, a contestação do absolutismo no império português e a reestruturação do pacto que fundara a nação e dera legitimidade ao rei a partir das Cortes instauravam “uma nova ordem política e social”. Assim, “cada categoria social, cada fração da sociedade, cada identidade e interesse étnico, econômico, religioso e mais que fosse, buscou afirmar suas reivindicações, buscou assegurar um lugar no novo pacto”.64 Por isso que, como vimos, não apenas as elites político-econômicas, mas também os grupos populares participaram com intensidade das lutas políticas que marcaram a formação do Estado nacional brasileiro. Os índios de Maranguape, por exemplo – assim como os membros da família 62

BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do Equador. In: DANTAS, Mônica Duarte (Org.). Revoltas, motins e revoluções: homens livres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011, p. 133-134. 63 Ibid., p. 147. 64 Ibid., p. 137.

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Alencar – também tiveram sua condição política alterada: de presos passaram a “defensores da independência”, por conta da sua atuação neste período quando, também eles, tentavam construir seus lugares no novo pacto e garantir a permanência de seus benefícios. Após as experiências político-militares no período entre a Revolução Pernambucana e as guerras de independência no Piauí, as tropas indígenas do Ceará também estiveram presentes nos embates de 1824. Cada conflito era diferente; os contextos, ainda que temporalmente próximos, eram repletos de particularidades; e os inimigos e aliados dos soldados indígenas mudavam constantemente. Entretanto, para eles, a defesa do rei, em conexão com a manutenção de suas garantias, foi uma constante com poucas variações. A mesma postura foi notada entre os indígenas de outras províncias. Evaldo Cabral de Mello observou que durante a Confederação do Equador novamente havia índios de Jacuípe, Alagoas, entre as tropas realistas.65 De acordo com Marcus Carvalho, para os que viviam nas matas da fronteira alagoana com Pernambuco, que eram terras da Coroa, fortaleceu-se a imagem do imperador como garantidor de seus territórios.66 Denis Bernardes conta que os indígenas em 1824 reafirmaram “a já antiga tendência de apoiar o poder real”. Defendendo o rei, os índios “talvez estivessem fazendo um cálculo político e de vantagens sobre qual dos lados em disputa poderia ser-lhes mais favorável em caso de vitória”, o que não significava, entretanto, “que não existiam determinadas tendências sociais na identificação com tal ou qual projeto”.67 Mariana Dantas destaca os benefícios recebidos pelos índios de Jacuípe e de Barreiros por parte Coroa ao longo dos séculos, e conclui que “defender o imperador em campo de batalha frente às tropas confederadas significava manter e proteger as terras doadas e o usufruto sobre as matas do vale do Jacuípe, de onde tiravam seu sustento”.68 A peculiaridade dos índios do Ceará foi que, pela primeira vez, estiveram ao lado daqueles que se opuseram às políticas reais, ao menos por um momento inicial. A defesa do rei, ainda que tenha prevalecido ao final, conviveu com outras variantes, relativas à sua postura frente aos interesses das elites locais e às formas como estas se posicionavam diante de suas demandas.

65

MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 233. CARVALHO, Marcus J. M. de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (1817-1848), p. 78. 67 BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do Equador, p. 154. 68 DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro, p. 132. 66

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“Temos por brasão o arco e a flecha” Em dezembro de 1823, José Martiniano de Alencar – que passara da condição de preso político em 1817 a deputado na Assembleia Constituinte – deixou o Rio de Janeiro em direção ao Ceará. Na passagem pelo Recife, tomou conhecimento da reunião do Grande Conselho que empossara Manuel de Carvalho Paes de Andrade como presidente e que exigia uma nova Constituinte. Segundo Evaldo Cabral de Mello, Carvalho enviou Alencar ao território cearense “com a tarefa de organizar apoio à luta pela reconvocação”. 69 De acordo com Torres Câmara, as notícias foram logo difundidas, “com grande escândalo, às câmaras da província”, tomadas de uma “irritação sem limites” e do “espírito de revolta que lavrava entre os patriotas”.70 Em janeiro de 1824, as câmaras de Quixeramobim e do Icó chegaram a proclamar a república, e em outras vilas, ainda que não tenham feito o mesmo, os vereadores manifestaram sua insatisfação em relação à política adotada pelo imperador. De igual forma, o governo da província do Ceará protestou contra a centralização de dom Pedro I através de ofício em 31 de março.71 No dia 14 de abril as tensões aumentaram ainda mais quando Pedro José da Costa Barros, presidente nomeado da província, aportou em Fortaleza. Com apoio da câmara da capital, Costa Barros foi empossado, provocando a fuga do antigo governo interino para Arronches. Após alguns dias recrutando adeptos, as lideranças depostas – tendo a frente Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras – montaram um quartel general em Messejana e, no dia 29, depuseram o presidente nomeado e tomaram à força o governo da província.72

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MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 166. CÂMARA, João Eduardo Torres. A Confederação do Equador em 1824 e revolução, que a produziu, como consequência da dissolução da nossa primeira constituinte a 12 de novembro de 1823 e jamais de intuitos ou ideias separatistas. A ação de um de seus chefes, o futuro senador Alencar, decisiva a abril de 1831, para a manutenção do império e com este talvez a da unidade nacional. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Gadelha, tomo especial, 1924, p 309-310. 71 Cf. Ibid., p. 310-311. PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte relativa ao Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart, tomo XIII, 1899, p. 35-36. PEIXOTO, Eduardo Marques. Ceará: movimento político de 1824. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXI, 1907, p. 39-40. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 135-136. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 97-100. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 190. 72 Cf. PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte relativa ao Ceará, p. 35-36. NOGUEIRA, Paulino. Presidentes do Ceará, primeiro reinado. 1º presidente: coronel Pedro José da Costa Barros. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Econômica, tomo IV, 1890, p. 53. PEIXOTO, Eduardo Marques. Ceará: movimento político de 1824, p. 41-42. CÂMARA, João Eduardo Torres. A Confederação do Equador..., p. 313-317. STUDART, Guilherme. O movimento republicano de 1824 no Ceará, p. 613-614. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 136-137. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 97-104. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 190. 70

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O que a historiografia não observou é que as duas vilas que serviram de suporte militar aos liberais para a ação de retomada do poder no Ceará eram de índios. Guilherme Studart notou que a valia de Gonçalves e Filgueiras “crescera entre o povo pelos triunfos que haviam colhido na campanha contra Fidié”.73 Para os índios, entretanto, os motivos para a aliança com esses dois líderes eram bem mais profundos: Gonçalves e Filgueiras atuaram na libertação os presos de Maranguape e encabeçaram a destituição do governo que reprimira com tanta violência os amotinados indígenas. Pouco se falou sobre a composição da tropa que submeteu a câmara de Fortaleza e destituiu Costa Barros, mas era bem provável que fosse formada, em grande parte, por índios destas duas vilas.74 A postura dos índios em favor dos liberais não significava que houvesse respeito a eles ou reconhecimento por parte de todos os aliados de Gonçalves e Filgueiras. Um exemplo está no editorial da única edição conhecida da Gazeta do Ceará, de 6 de abril de 1824. O redator anônimo, opositor das medidas autoritárias de dom Pedro I, denunciou a avareza dos ricos, que construiu sua fortuna “à custa da pobreza” do povo. Entretanto, “a gente pobre, que compõe as três quartas partes da população do Brasil é naturalmente ociosa, e falível nas suas promessas. Pouco, nada se lhe dá a mudança de senhor ou de habitação [...] contanto que tenham a barriga cheia, durmam a sono solto e vivam à sua vontade”

Em seguida, explicou em nota que havia exceções. Para ele, existia “na classe comum do povo inumeráveis heróis de patriotismo; mil filhos dos Camarões, dos Mel-redondos, dos Dias, e de outras famílias brasileiras as quais vivem prostradas pelo orgulho europeu”. 75 A aparente simpatia do redator liberal aos índios, com os exemplos de lideranças antigas, na verdade colocava o elemento indígena no campo do mitológico, enquanto que os “vivos”,

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STUDART, Guilherme. O movimento republicano de 1824 no Ceará, p. 614. Na ata da sessão de 29 de abril de 1824 do governo provisório do Ceará, que decidiu pela deposição do presidente nomeado Pedro José da Costa Barros, constam as assinaturas de Francisco Joaquim da Costa Lira e Vitorino Correia de Souza Parangaba. Cf. N. 12. ATA da sessão extraordinária de 29 de abril de 1824. Apud: Parte documental: documentos para a história da Confederação do Equador coligidos pelo Barão de Studart. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Gadelha, tomo especial, 1924, p. 376. O primeiro talvez seja o capitão-mor de Soure Francisco da Costa Lira, “de nação índio”, que prestou juramento em 17 de janeiro de 1821. Cf. Termo de juramento de Francisco da Costa Lira como capitão-mor de Soure. Fortaleza, 17 de janeiro de 1821. APEC, GC, livro 61, p. 82 e 83. O segundo nome guarda, no mínimo, semelhanças com o de Vitorino Correia da Silva, “homem índio e morador do termo [...] de Arronches”, que recebeu em 26 de dezembro de 1823 patente de capitão-mor de sua vila, antiga aldeia da Parangaba. Cf. Registro de patente de capitão-mor de Arronches a Vitorino Correa da Silva. Fortaleza, 26 de dezembro de 1823. APEC, GC, livro 72, p. 120. 75 Gazeta do Ceará. Fortaleza, 6 de abril de 1824, Tipografia Nacional, p. 2. AN, J040. 74

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contemporâneos à formação do Estado brasileiro, eram categorizados como fardos de miséria e ociosidade que a nação carregava.76 Chama atenção a adoção por parte de muitas lideranças liberais de sobrenomes em tupi-guarani (como o “Araripe” adicionado a Tristão Gonçalves de Alencar). Tal manifestação procurava realçar seu sentimento patriótico brasileiro em oposição a Portugal,77 que supostamente planejava uma recolonização do país recém-independente em associação com dom Pedro I. De acordo com Denis Bernardes, o aumento das tensões, “com ampla participação das mais diversas camadas sociais, inclusive da gente do povo”, era decorrente das notícias de que na antiga metrópole “se preparava uma grande expedição para recolonizar o Brasil”.78 Tais rumores se originaram, por sua vez, do bloqueio naval no Recife imposto pelo imperador no início de maio de 1824, em represália às negativas de Pernambuco em aceitar o presidente nomeado. Segundo Evaldo Cabral de Mello, após o bloqueio, as manifestações das lideranças pernambucanas em relação a dom Pedro I expunham a “descrença quanto à sua apregoada conversão às aspirações brasileiras”.79 O governo do Ceará reagiu firmemente às ações repressivas do imperador no Recife, associando-as também a uma traição do monarca, acusado de estar voltado aos interesses do absolutismo português. Analisamos no capítulo 4 o ofício do dia 18 de maio que o então presidente Tristão Gonçalves escreveu aos diretores das vilas de índios, ordenando-os que armassem seus subordinados. Para Gonçalves, nas condições do contexto em que escrevia, não haveria “brasileiro tão infame que preferi[sse] o cativeiro à liberdade”, e estava certo de que “os índios, meus valorosos patrícios, não querem ser escravos”. Por isso, exigiu que cada indígena estivesse pronto com “50 flechas e dois arcos ao primeiro aceno da invasão da Europa, desse Portugal orgulhoso só, que nos tem abismado há mais de 300 anos no mais ignominioso estado. Vossa mercê avise aos nossos irmãos dos seus deveres, e plenamente execute o que aqui se lhe ordena”.80

“A exaltação de símbolos indígenas no discurso político da época distanciava-se das práticas concernentes a estes povos”. LOURENÇO, Jaqueline. Um espelho brasileiro: visões sobre os povos indígenas e a construção de uma simbologia nacional do Brasil (1808-1831). Dissertação (mestrado) - USP, 2010, p. 10-11. 77 Cf. ROWLAND, Robert. Patriotismo, povo e ódio aos portugueses: notas sobre a construção da identidade nacional no Brasil independente. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 380. 78 BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do Equador, p. 147-148. 79 MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 191. 80 De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe aos diretores de Arronches, Soure, Messejana, Monte-mor Novo, Vila Viçosa, Almofala, Monte-mor Velho e São Pedro de Ibiapina. Fortaleza, 18 de maio de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 2, p. 44. Diário do Governo do Ceará. Fortaleza, 2 de junho de 1824, nº. 9, p. 1V. AN, IN, caixa 742, pacote 1. 76

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Destoando do tom de desprezo do redator da Gazeta do Ceará em relação aos índios e outros setores sociais subalternos, é curiosa a maneira irmanada de Gonçalves tratar os indígenas. Há em seu texto tanto o reconhecimento pelo apoio recebido destes grupos nas duas vezes que chegara ao governo – em dezembro de 1822 e abril de 1824 – quanto a busca por consolidar essa aliança. Por isso, não é à toa que, tratando-os como irmãos da mesma pátria, o inimigo apontado é “Portugal”, que tentava novamente escravizá-los, e não o imperador, que nem ao menos foi citado. Além disso, o argumento utilizado para insuflá-los contra essa “invasão orgulhosa” da Europa era justamente algo muito caro nas demandas indígenas dos anos anteriores: a busca por sua liberdade. De fato, como aponta a historiografia, antes de proclamarem a Confederação do Equador, os líderes não falavam em “separação”, “república” ou nada que pusesse em cheque diretamente à figura do rei. Segundo Evaldo Cabral de Mello, os dissidentes pernambucanos buscavam “atingir seus propósitos sob a bandeira da reconvocação da Constituinte, não da mudança do regime”.81 De acordo com o autor, a “unidade brasileira não era posta em causa”, mas exigia-se a feitura de uma constituição que demandasse a participação de todas as províncias.82 Para Denis Bernardes, nos meses que antecederam a Confederação, havia em Pernambuco e em outras províncias próximas a reivindicação de “uma organização do Estado que contemplasse mais largamente determinados interesses locais tanto no tocante à escolha dos dirigentes provinciais quanto no referente ao controle das rendas e da força armada”. As lutas locais não foram motivadas por um “separatismo antinacional” e nem eram contrárias à unidade, mas “recusavam uma política que viam como a expressão do antigo absolutismo”. As reclamações se encontravam, portanto, muito mais nas atitudes do que na própria figura do soberano: as críticas a dom Pedro I não visavam sua deposição, mas que o mesmo agisse de acordo com uma monarquia constitucional.83 Nas comunicações feitas aos índios do Ceará, Gonçalves era bastante cuidadoso. Por um lado, não citava o rei, indicando Portugal como inimigo; por outro, sabendo da reciprocidade que havia na histórica relação de vassalagem entre essa população e a Coroa portuguesa, o presidente procurou também ele se representar como um benfeitor para os indígenas. Respondendo a ofício do diretor de Arronches, Gonçalves solicitou ao capitão-mor da vila em 21 de maio uma “relação circunstanciada dos postos vagos das suas ordenanças e

81

MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 164. Ibid., p. 182-183. 83 BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do Equador, p. 151-152. 82

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daqueles oficiais que servem sem título competente”.84 As atitudes do presidente não eram altruístas, decorrendo da lei de 1823 que estabelecera a promoção das patentes de ordenança como competência provincial. Mas serviram como estratégia para Gonçalves, que levava em conta o já conhecido apreço indígena pelo serviço militar e das lideranças por seus títulos. O presidente buscava, ao atender o ofício do diretor, beneficiar os oficiais e sutilmente substituir o rei na função de provedor. Tal medida, em atendimento aos oficiais indígenas de Arronches, ocorreu poucos dias depois do armamento geral dos índios promovido diante da possível invasão lusitana, como vimos há pouco. As ações do presidente também se somavam ao já destacado antilusitanismo indígena do período – tão evidente nas manifestações de Maranguape, no temor da constituição de Lisboa e na presença das tropas de Viçosa no Piauí. Em 1824, o “ódio aos portugueses” por parte dos índios foi aproveitado pela presidência do Ceará para estreitar os laços com essas comunidades. Em 31 de maio, Gonçalves ordenou ao juiz ordinário de Soure que executasse a prisão dos “europeus Francisco dos Santos, Custódio José de Almeida e Alberto Antônio Lopes, [...] e imediatamente os fará processar”, em atendimento à “denúncia inclusa da oficialidade e mais índios dessa vila por corpo de delito”.85 Por ainda viverem no Brasil em 1824, estes três portugueses provavelmente não tinham se submetido às Cortes de Lisboa em 1822. Entretanto, ainda que tivessem apoiado o projeto da independência do Brasil, é provável que sua convivência com os naturais da América, ao longo desse período, não tenha sido pacífica. O rápido atendimento da denúncia indígena também atingia os já comentados anseios da presidência em consolidar sua relação com essas comunidades, buscando conciliar os objetivos de cada um em torno do mesmo inimigo: o absolutismo português. Vendo o caso por outro ângulo, a atribuída agressão dos portugueses contra os índios pode nos fornecer mais elementos. Denis Bernardes chamou a atenção para o antilusitanismo popular que se materializou “em manifestações de violência, seja individual ou coletiva, contra potenciais suspeitos de apoiar a recolonização do Brasil”.86 Mas o caso de Soure mostra que os índios, assim como outras classes populares, também poderiam ser alvo de ataques. Além do antilusitanismo indígena, a denúncia revela que o apreço do governo por 84

De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe ao capitão-mor de Arronches. Fortaleza, 21 de maio de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 2, p. 50V. De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe a Antônio José de Vasconcelos. Fortaleza, 21 de maio de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 2, p. 51. Diário do Governo do Ceará. Fortaleza, 2 de junho de 1824, nº. 9, p. 2. AN, IN, caixa 742, pacote 1. 85 De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe ao juiz ordinário de Soure. Fortaleza, 31 de maio de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 2, p. 70V-71. 86 BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do Equador, p. 148.

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essa população não era compartilhado por todos, muito menos pelos proprietários que viviam em Fortaleza e nas vilas do entorno. Para estes, os índios não passavam de mão-de-obra barata, semelhantes aos escravos, por quem nutriam não mais que desprezo. Gonçalves, sem querer se desfazer desses importantes aliados (pelo menos no quesito bélico), teve de lidar com estas tensões. Em circular aos comandantes de ordenanças da província, o presidente ordenou que cada soldado estivesse municiado de arcos e flechas, como forma de contornar o problema da falta de armamentos em meio a um ataque externo iminente. “Estou antevendo que os meus patrícios e concidadãos objetarão que não são caboclos; eu responderei que nós todos temos por brasão o arco e a flecha, e mesmo lhe darei o exemplo quando a necessidade o pedir. Não escute vossa mercê escusa alguma, e faça cumprir exatamente este ofício.”87

A reação dos não-índios prevista pelo presidente remete ao que vimos anteriormente acerca dos sobrenomes em tupi-guarani adotados pelos apoiadores de Gonçalves e Filgueiras. O “arco e flecha” serviriam para eles, neste contexto, apenas como brasão, símbolo de patriotismo, que poderia se expressar na memória de lideranças do passado ou mesmo em seus nomes, mas não necessariamente instaurando uma relação de igualdade com os índios vivos, pejorativamente chamados de “caboclos”. O presidente, em contrapartida, buscava remediar diversos problemas de uma só vez. Primeiramente, chamava os índios de “irmãos” e “valorosos patrícios” pela necessidade de construir com eles uma boa relação, tendo em vista sua importância militar. Evaldo Cabral de Mello destaca que a presença indígena nas tropas realistas foi fundamental porque faziam “a guerra do país” – guerrilha nas matas – enquanto que os confederados apenas conheciam “a dos europeus ou portugueses” – ou seja, em campo aberto.88 Por isso Gonçalves, na mesma circular aos comandantes das ordenanças, buscou convencê-los de que uma “flecha despedida de uma mão destra faz quase tanto estrago como a bala vomitada das granadeiras [...] porque alcançam de longe, e por entre os matos ofendem ao inimigo e defendem o atirador”. Não podiam, portanto, “apresentar batalha em campo raso, e a grande vantagem leva[vam] das guerrilhas e dos caçadores”.89 Segundo Hugo Victor, tendo em vista a “falta de força militar” e sabendo “ser nula a resistência na capital”, Tristão “preferiu a tática (se assim se pode

87

De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe aos comandantes de ordenança. Fortaleza, 27 de maio de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 2, p. 64-65. 88 MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 233. 89 De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe aos comandantes de ordenança. Fortaleza, 27 de maio de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 2, p. 64.

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chamar) das guerrilhas do interior”.90 Conhecendo o potencial dos índios na guerra, o presidente visava, em segundo lugar, solucionar o problema da falta de armamentos implementando as táticas indígenas nas outras tropas. Consolidando sua aliança com os índios, fazendo-os conviver com os outros patrícios e contornando a carência de estrutura bélica, o governo do Ceará protegeria a província das ameaças que julgava vir dos supostos conluios entre dom Pedro I e Portugal, intensificadas no mês de julho.91 No dia 2, pela falta de posicionamento da Coroa a respeito das exigências constitucionalistas, Manuel de Carvalho Paes de Andrade proclamou a Confederação do Equador no Recife. Segundo Cabral de Mello, os revoltosos não falavam em república, tendo como principal objetivo a montagem “de uma frente de províncias do Norte para resistir ao despotismo de Portugal e do Rio”.92 Para o autor, não se tratava, entretanto, de uma “alternativa ao Brasil”, mas de uma proposta de união federal flexível entre as províncias, contrária ao centralismo do Estado.93 Enquanto a notícia não havia sido recebida no Ceará e nem se organizava um posicionamento por parte do governo, Tristão Gonçalves continuava a conclamar os habitantes da província a se oporem às ameaças externas. Entre os índios os contatos se deram de maneira semelhante, mas a definição do “inimigo” não era tão clara. Em 21 de julho, o presidente respondeu a um ofício da câmara de Arronches do dia 15 agradecendo suas “expressões de amizade”. Assegurou que até o fim conservaria seus sentimentos patrióticos “sem duvidar jamais da probidade dos valorosos brasileiros da vila de Arronches”. Alertou-os que, se quisessem ser escravos, que assinassem o projeto de constituição, mas quanto a ele “e aos liberais”, com armas na mão, preferiam morrer mil vezes do que assinar “uma só vez o selo abominável do servilismo”. Contava, portanto, com a fidelidade dos vereadores da vila e dos índios que lá viviam, “esses miserandos despojos do furor europeu”. Por fim, ordenou à câmara que procedesse a promoção dos oficiais indígenas e convidou que cada um fosse “obter (grátis) o seu título da secretaria deste governo”, bem como ao escrivão, que mandasse “requerer da secretaria deste governo (grátis) a sua provisão”.94

90

VICTOR, Hugo. A defesa marítima de Fortaleza na Revolução do Equador. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Ramos e Pouchain, tomo L, 1936, p. 39-40. 91 Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 203-204. BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do Equador, p. 148. 92 MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 211-214. 93 “Sequer o título de Confederação do Equador pode ser acoimado de regionalista, em vista da tendência retórica a denominar o Brasil de Império do Equador”. Ibid., p. 218. 94 De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe à câmara de Arronches. Fortaleza, 21 de julho de 1824. Diário do Governo do Ceará. Fortaleza, 30 de julho de 1824, nº. 15, p. 1V. AN, IN caixa 742, pacote 4.

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Percebemos que não há neste ofício qualquer referência ao imperador. O inimigo é apontado indefinidamente como o “furor europeu”, que despojara os índios ao longo de toda a colonização. Em contrapartida, Gonçalves identificava os índios com o termo “brasileiros”, destacado em itálico no original, e associava novamente o projeto de constituição à escravidão. O uso cuidadoso das palavras buscava mais uma vez construir uma relação estável com os indígenas, sem ofender o rei – que historicamente haviam defendido – e indicando o autoritarismo do governo central com o “servilismo” sempre denunciado nas reclamações e manifestações dos índios. Completando seu argumento com a oferta gratuita de títulos – ancorando-se no apreço indígena pelas patentes militares – o presidente visava solidificar ainda mais a adesão dos índios aos liberais e sua amizade recíproca, como se infere pelo início do ofício. A aliança indígena com o grupo de Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras não se dava pela conversão dos índios ao liberalismo. Em um primeiro momento, entre a repressão aos motins de Maranguape e Viçosa e a deposição da terceira junta governativa em 1822, os “liberais” eram representados especialmente pela elite de Fortaleza. Apoiando-se nas ideias vindas da Europa, as autoridades da capital visavam adquirir cada vez mais poder, configurando-se em grande ameaça às garantias das comunidades indígenas. Curiosamente, os novos “liberais” de 1824 eram, em 1822, os defensores do absolutismo. Como afirma Julio Gómez, as disputas entre “conservadores” e “liberais” desse período tinham pouco de ideológico e muito de luta pela terra e pelo controle sobre as populações provinciais.95 Em termos locais, a postura dos índios se definiu a partir de demandas cotidianas e das particularidades do contexto. Em 1824, se a câmara de Fortaleza apoiava as medidas do rei com o objetivo de barrar o poderio do interior, aos índios era mais sensato ficar do lado dos “liberais” de então que, desde o ano anterior, davam provas de boa vontade, ou, pelo menos, de que atenderiam às suas expectativas.96 Até então, a correspondência entre o governo cearense e as autoridades nas vilas de índios aqui analisada não atacava diretamente a figura do rei. Contudo, as lideranças indígenas certamente sabiam do posicionamento dos liberais e, apesar da sua histórica relação de fidelidade à monarquia, mantiveram-se aliadas a eles. As ações de Tristão Gonçalves em benefício aos índios oficiais de ordenanças sinalizavam que o liberalismo pregado por ele e 95

GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados, p. 267. Como, por exemplo, a libertação dos presos de Maranguape e o combate aos portugueses no Piauí e Maranhão, em 1823, e a utilização de Arronches e Messejana como bases militares para a deposição do governo de Costa Barros apoiado pela câmara de Fortaleza – que talvez tenha aproximado ainda mais os liberais das lideranças indígenas destas vilas – em 1824. 96

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por seus correligionários não atingiria negativamente as garantias conquistadas durante o Antigo Regime. A postura de pelo menos parte das lideranças indígenas foi confirmada com a sessão que proclamou a adesão do Ceará à Confederação do Equador em 26 de agosto de 1824. Reunindo autoridades do governo da província, de várias vilas e das câmaras do Aquiraz e de Messejana, os presentes denunciaram os “perjúrios de dom Pedro, príncipe de Portugal (chamado imperador do Brasil)”, que desrespeitara o “pacto social” e os “foros da liberdade”. O soberano teria cometido ações autoritárias como a dissolução da Constituinte, construindo “por si, como se viu, do infame projeto de constituição, que não só deu, mas também mandou arbitrariamente jurar por todas as câmaras das províncias do Brasil, reputando-nos escravos ou propriedade sua”. Por isso, foi acusado de pretender sujeitar os brasileiros “novamente ao domínio português, não cumprindo assim as condições essenciais pelas quais havia subido ao trono”. Por fim, foi proposta a criação de um Grande Conselho no Ceará – a exemplo do que se fizera em Pernambuco – e o presidente eleito, Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, jurou fidelidade “à confederação do Equador, que é a união das quatro províncias ao norte do cabo de Santo Agostinho, e as demais que para o futuro se forem unindo”. Em seguida todos prestaram juramento, prometendo fazer guerra ao despotismo imperial que pretendia “escravizar-nos e obrigar-nos a fazer união do Brasil com Portugal”.97 A historiografia cearense que abordou a sessão de 26 de agosto de 1824 destacou as denuncias contra a tendência absolutista de dom Pedro I e seus planos de unir-se a Portugal para recolonizar o Brasil.98 Não foi sequer mencionada, contudo, a presença de representantes das vilas de índios da província, como Mathias Alves de Figueiredo Rocha, José da Rocha Mota, José Felix de Freitas e Paulo Fontanelas, procuradores, respectivamente, das câmaras de Arronches, Soure, Baturité (a mesma Monte-mor Novo) e Vila Viçosa. Além deles, em meio às mais de 400 assinaturas, é possível identificar a de, pelo menos, quatro índios: Francisco da Costa Lira (capitão-mor de Soure), Atanásio Faria Maciel (capitão-mor, juiz de fora e presidente da câmara de Messejana), Vitorino Correa da Silva “Parangaba” (“capitão-

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Os juramentos e o registro foram feitos no dia seguinte. ATA da sessão extraordinária e grande conselho provincial. Fortaleza, 27 de agosto de 1824. Apud. Confederação do Equador. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXV, 1911, p. 292-294. 98 PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte relativa ao Ceará, p. 40. CÂMARA, João Eduardo Torres. A Confederação do Equador..., p. 321-322. STUDART, Guilherme. O movimento republicano de 1824 no Ceará, p. 620. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 138. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 106-108.

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mor e eleitor” de Arronches) e João da Costa da Anunciação (“sargento-mor e eleitor” de Vila Viçosa).99 A presença tão significativa de lideranças indígenas indica uma mudança de perspectiva no posicionamento político dos índios, cuja tendência à defesa da monarquia foi bastante comentada pela historiografia mais recente, como vimos anteriormente. Os motivos para esta nova postura estavam ligados aos principais argumentos levantados na sessão de adesão do Ceará à Confederação: a associação entre as atitudes autoritárias de dom Pedro I e os supostos planos recolonizadores portugueses. Para os índios, desde 1821, Portugal passou a significar uma ameaça às suas liberdades, como se de lá viessem intenções de novamente submetê-los à escravidão, assim como haviam sofrido seus antepassados.100 Por isso é curioso o acréscimo de “Parangaba” que o capitão-mor de Arronches Vitorino Correa da Silva fez ao seu nome. Apesar da contradição costumeira dos brancos desse período, o capitão Vitorino, sem medo de se associar aos costumes “bárbaros” dos ancestrais, fez referência ao antigo nome de sua vila – aldeia da Parangaba – como forma de se opor a qualquer ação escravizadora que viesse de fora. A adesão à Confederação do Equador se seguiu pelas câmaras da província, e há pelo menos um registro de sessão de juramento feita por vereadores de uma vila de índios. Apenas no dia 10 de outubro, a câmara de Monte-mor Novo reuniu seus membros e diversas outras pessoas do município para declarar apoio ao ato sufragado em Fortaleza no mês de agosto. Entre as assinaturas, que não traziam qualquer informação sobre ocupação profissional ou origem étnica, a única que identifiquei ser de um indígena é a do sargento-mor Manoel José da Rocha.101 A ata da sessão não faz nenhuma referência ao fato de a vila ser de índio, 102 mesmo porque, no início do século XIX, a maior parte da população de Monte-mor Novo, bem como de sua câmara municipal, era de extranaturais.103 99

ATA da sessão extraordinária e grande conselho provincial. Fortaleza, 27 de agosto de 1824. Apud. Confederação do Equador. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXV, 1911, p. 295-299. As nomeações dos quatro oficiais indígenas foram analisadas no capítulo 6. 100 Quando esteve no Ceará 14 anos antes da Confederação do Equador, Henry Koster observou a repugnância dos índios “no uso do vocábulo senhor”, supondo “ter começado nos imediatos descendentes dos indígenas escravos e se haja perpetuado essa repulsa na tradição. [...] os indígenas com quem tenho conversado, e tenho visto muitos, parecem saber que seus ancestrais trabalharam como escravos”. KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo/Fortaleza: ABC Editora, 2003, p. 178. 101 Cuja nomeação analisamos no capítulo 6. 102 ATA da sessão extraordinária da câmara de Monte-mor Novo, 10 de outubro de 1824. APEC, CM, câmara de Monte-mor Novo, livro 54, p. 124-129V. Apud. Parte documental: documentos para a história da Confederação do Equador no Ceará coligidos pelo Barão de Studart. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Gadelha, tomo especial, 1924, p. 412-415. 103 Cf. CARVALHO, Antônio Rodrigues de. Memória sobre a capitania do Ceará no ano de 1816. Publicações do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Arquivo Nacional, n. XXIV, 1929, p. XXVIII. “Mapa da população da capitania do Ceará extraído dos que deram os capitães-mores no ano de 1813”. BN, II-32, 23, 3.

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É de se questionar, portanto, o quanto o juramento do sargento-mor Rocha, ou o de outros indígenas mencionados anteriormente representavam os anseios da maioria dos índios de Monte-mor Novo e de outras vilas da província. Evidentemente, não temos acesso às opiniões daqueles que não ocupavam postos militares ou de câmara, mas a presença de oficiais índios em sessões de tal importância indica o direcionamento político das lideranças indígenas. À frente de suas comunidades, posicionavam-se favoravelmente ao grupo que, naquele momento, governava a província, por conta das perspectivas de respeito às suas garantias e das ameaças tidas como recolonizadoras e escravizadoras. “De grande préstimo na restauração da ordem”

Enquanto o governo do Ceará aderia à Confederação do Equador, o território sob o domínio do movimento sofria com a investida contrarrevolucionária por ordem de dom Pedro I. Ainda em julho a região da bacia do rio do Peixe, na fronteira da Paraíba com o Ceará, recebera ocupação dos regimentos imperialistas.104 Em agosto, já estavam presentes no litoral pernambucano as forças fieis à Coroa, lideradas pelo brigadeiro Francisco de Lima e Silva e pelo lorde inglês Thomas Alexander Cochrane, que lutava à época a serviço do governo brasileiro. No dia 12 de setembro entraram no Recife, e em outubro já se encontravam em Mossoró, no Rio Grande do Norte, próximo à fronteira cearense. Sabendo que a vila do Aracati havia sido tomada, Tristão Gonçalves partiu acompanhado de uma tropa de índios em 12 de outubro, conseguindo recuperá-la ao domínio confederado no dia 18.105 Entretanto, neste mesmo dia, a armada de lorde Cochrane ancorava em Fortaleza, rendendo o governo da província – deixado por Gonçalves a cargo de José Felix de Azevedo e Sá – e, de acordo com a historiografia, hasteando sem qualquer resistência a bandeira imperial.106 A fortificação que protegia e dava nome à capital do Ceará, segundo Hugo Victor,

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Cf. STUDART, Guilherme. Parte Cronológica. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Gadelha, tomo especial, 1924, p. 149-150. 105 PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte relativa ao Ceará, p. 42. GALVÃO, Sebastião de Vasconcelos. Confederação do Equador: 24 de julho de 1824. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXVIII, 1914, p. 64. STUDART, Guilherme. O movimento republicano de 1824 no Ceará, p. 621. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 138-139. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 108. Domingos Jaguaribe afirma que Luís Rodrigues Chaves, enviado ao Pernambuco junto com os índios, foi convencido a lutar pela causa contrarrevolucionária e comandou a invasão do Aracati que motivou a marcha de Tristão Gonçalves para retomá-la. Cf. JAGUARIBE, Domingos. Notas para a história das repúblicas de 1817 e 1824, p. 51. Entretanto, para Torres Câmara, Chaves seguiu para o Recife em maio, e os índios só estiveram no Aracati na companhia de Gonçalves. Cf. CÂMARA, João Eduardo Torres. A Confederação do Equador..., p. 321-329. 106 PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte relativa ao Ceará, p. 44. JAGUARIBE, Domingos. Notas para a história das repúblicas de 1817 e 1824, p. 51. CÂMARA, João

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“não oferecia vantagem para resistir a um bloqueio marítimo”. Para o autor, “não resta dúvida quanto à sua inutilidade na defesa da revolução”.107 Com a tranquila rendição, o então presidente Azevedo e Sá – perdoado e autorizado a continuar no cargo por Cochrane – ordenou ao sargento-mor indígena João da Costa da Anunciação – que estivera presente na sessão de adesão do Ceará à Confederação do Equador – que fizesse “congregar todos os índios seus subordinados” e os pusesse em marcha “logo e logo para esta capital” comandados por ele. Lá encontraria o presidente “pronto para defender os sagrados direitos de S. M. I. [Sua Majestade Imperial] o Sr. dom Pedro I Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo deste Império”.108 Sem dar maiores explicações, as ordens dirigidas a Anunciação devem tê-lo deixado, no mínimo, intrigado. Não sabemos qual foi a reação do sargento de Vila Viçosa, mas a convocação de sua tropa já indicava o pleno estabelecimento do poder imperial em Fortaleza e a importância de se ter a força militar indígena na defesa dos interesses de dom Pedro I. A medida inesperada, contudo, nos faz refletir, por um lado, sobre a inviabilidade militar daquelas províncias para resistir ao governo central e, por outro, se havia de fato obstinação por parte dos aliados de Araripe em continuar com este projeto. Nos relatos que escreveu acerca de suas atividades no Brasil, Cochrane contou como se deu a negociação para a tomada da capital cearense.109 Após o hasteamento da bandeira imperial, o lorde mandou que se “oficiasse a todas as partes da província, anunciando o regresso da cidade à obediência”. Mandou comunicações às forças revolucionárias “cujas tropas abandonaram todas”, e mesmo o “corpo sob o comando imediato do presidente revolucionário Araripe [que se encontrava no Aracati] foi reduzido a 100 homens – até os índios, sem exceção, abandonando o seu estandarte”. Atribuiu o sucesso da pacificação da província à anistia geral que ofereceu à população, inclusive ao próprio Tristão Gonçalves, “remonstrando-lhe [sic] sobre a loucura da carreira que estava prosseguindo”. Prevendo a negativa do liberal e sua consequente fuga para o interior – o que realmente ocorreu em 20 de outubro – Cochrane ofereceu “a quem o apreendesse recompensa suficiente para induzir os índios que antes haviam sido seus sustentadores a partir em busca dele, resultando a vir a ser morto, e Eduardo Torres. A Confederação do Equador..., p. 330. STUDART, Guilherme. O movimento republicano de 1824 no Ceará, p. 616. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 139. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 109. 107 VICTOR, Hugo. A defesa marítima de Fortaleza na Revolução do Equador, p. 40-41. 108 De José Felix de Azevedo e Sá a João da Costa da Anunciação. Fortaleza, 18 de outubro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 26. 109 Cf. JAGUARIBE, Domingos. Notas para a história das repúblicas de 1817 e 1824, p. 48.

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todos seus sequazes apreendidos. Os chefes indianos [sic], assim como a gente que deles dependia, foram de grande préstimo na restauração da ordem, combinando robustez corporal superior com atividade, energia, docilidade, e força de aturar que nunca falhava – formando, com efeito, os melhores padrões da raça nativa que eu vira na América do Sul”.110

O relato de Cochrane permite mais uma vez perceber a importância militar que tinham as tropas indígenas para a manutenção do governo de Tristão Gonçalves. A mesma valia foi percebida pelo lorde inglês, fazendo dessa população peça fundamental para o restabelecimento do poder imperial. Em contrapartida, os índios viram naquele momento que a aliança com a armada de Cochrane e a retomada dos laços de fidelidade com a Coroa eram o melhor caminho. A aceitação da “recompensa” – que o lorde não deixou claro do que se tratava – mostra que a rendição de Fortaleza ocorreu também pelas vantagens vislumbradas pelas lideranças, inclusive as indígenas. Mas apenas isso foi suficiente para que os índios rompessem uma relação tão estreia, da qual dependia o futuro de suas comunidades, a ponto de passarem de “sustentadores” a “perseguidores” do liberal? Em 21 de outubro, três dias depois da adesão de Fortaleza às forças imperiais, o presidente Azevedo e Sá ordenou ao capitão Manoel Cavalcante que convocasse “os índios da vila de Arronhces, e depois de ler-lhes o ofício de Cochrane de 18 de outubro do corrente”, que os enviasse para a capital.111 A Plácido Fontenelle, de Vila Viçosa, comunicou no dia 23 que dom Pedro I já havia sido aclamado imperador constitucional e defensor perpétuo do Brasil, e que mandava “pela segunda vez ao capitão-mor e diretor dos índios dessa vila” que os fizesse marchar para a capital.112 Inteirou João da Costa da Anunciação das ordens que passara “a todas as câmaras e autoridades constituídas afim desta província de jurarem e prestar obediência e fidelidade ao Augusto Sr. dom Pedro de Alcântara”.113 Não consegui encontrar o ofício de Cochrane aos índios. A ação de contatá-los, no entanto, mostra que os motivos reais da mudança de lado indígena provavelmente iam muito além da recompensa oferecida. As transformações que o cenário político lhes impunha não deixavam de estar vinculadas às suas perspectivas para o futuro. A necessidade de uma 110

COCHRANE, Thomas Alexander. Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação portuguesa. Londres: James Ridgway, 1856, p. 184-185. Extrato da narrativa de lorde Cochrane, conde de Dundonald e marquês do Maranhão, na parte relativa ao Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart, tomo XII, 1898, p. 62-63. Apud. Parte documental: documentos para a história da Confederação do Equador no Ceará coligidos pelo Barão de Studart. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Gadelha, tomo especial, 1924, p. 454-455. 111 De José Felix de Azevedo e Sá a Manoel Cavalcante. Fortaleza, 21 de outubro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 29V. 112 De José Felix de Azevedo e Sá a Plácido Fontenelle. Fortaleza, 23 de outubro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 31V. 113 De José Felix de Azevedo e Sá a João da Costa da Anunciação. Fortaleza, 23 de outubro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 32.

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segunda ordem ao sargento Anunciação indica que as novidades não devem ter sido facilmente digeridas. Contudo, diante da superioridade bélica da armada que dominara tão rapidamente Fortaleza, resistir poderia representar um suicídio, e a anistia, somada à recompensa oferecida, possibilitava uma nova representação para a figura de dom Pedro I. No início de novembro de 1824, aquele que havia pouco tempo era tido como um déspota recolonizador a serviço de Portugal já era aclamado em toda a província, e seus últimos inimigos eram perseguidos. Tristão Gonçalves, após o abandono de sua tropa – dentre eles, os índios – fugira para o sertão do Jaguaribe, onde foi assassinado no dia 31 de outubro.114 Em 3 de novembro, a câmara de Monte-mor Novo, tendo conhecimento dos acontecimentos de 18 de outubro, “visto que as tropas se achavam destroçando o povo e da mesma sorte derribando suas moradas”, juraram fidelidade ao imperador, constando também a assinatura do sargento-mor indígena Manoel José da Rocha.115 A demora na reação da vila – que ficava apenas a cerca de 100 km de Fortaleza, ou seja, possivelmente não tardara em saber da ação de Cochrane – pode indicar que a adesão de algumas câmaras no interior da província tenha sido muito mais por medo do que por reais e instantâneos sentimentos de fidelidade ao rei. No dia 8 de novembro, o presidente ordenou ao comandante de Vila Viçosa e Ibiapina que mandasse “destroçar toda a tropa de índio do seu comando” que mandara “reunir e marchar para esta capital pelo meu ofício de 19 do mês passado”. A marcha já não era mais necessária “visto que se acha[va] esta capital e província em tranquilidade pela morte do tirano Tristão Gonçalves [...] e outros sequazes republicanos, tão infiéis como desobedientes ao Augusto Imperador Defensor Perpétuo do Brasil”. 116 Se, passado um mês, a ordem para o deslocamento das tropas de índios da Ibiapaba ainda não havia sido cumprida, a nova situação política do Ceará não foi recebida com a aceitação passiva de que Gonçalves era um tirano. Mas a rápida tomada da capital e a morte do antigo líder eram sinais claros de que não havia mais condições para resistir. O inimigo vitorioso, no entanto, não eram apenas as forças imperiais. Keile Felix argumenta que a escolha de Fortaleza como sede do poder no Ceará visava barrar o grande

114

Cf. PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte relativa ao Ceará, p. 42. STUDART, Guilherme. Parte Cronológica. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Gadelha, tomo especial, 1924, p. 160. CÂMARA, João Eduardo Torres. A Confederação do Equador..., p. 333. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 139. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 110. 115 ATA da sessão extraordinária da câmara de Monte-mor Novo, 3 de novembro de 1824. Apud. Parte documental: documentos para a história da Confederação do Equador no Ceará coligidos pelo Barão de Studart. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Gadelha, tomo especial, 1924, p. 459-462. 116 De José Felix de Azevedo e Sá ao Comandante de Vila Viçosa e Ibiapina. Fortaleza, 8 de novembro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 65.

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poderio local que as elites do interior da província construíram ao longo de todo o período colonial. A luta desses poderosos do sertão cearense no século XIX sempre foi em torno de sua autonomia: em 1817 havia sido contra a monarquia portuguesa; em 1822 contra um “liberalismo” conveniente às ambições de sua rival, a elite de Fortaleza; “já em 1824, após a independência, foi motivada pelo despotismo do imperador e o centralismo representado pelo poder do Rio de Janeiro, no momento da instalação do Estado nacional”. Nesta luta entre o “litoral” e o “sertão”, a “escolha de Fortaleza como local sede do poder se coaduna justamente com a tentativa de retirar desse sertão ‘insubordinado’ o poder de mando que usufruíam”.117 O hasteamento da bandeira imperial representava, portanto, a vitória da capital, que não era mais comandada por lideranças do interior. A aceitação da mudança na situação política do Ceará por parte dos índios e de outros grupos da província não foi necessariamente fácil, como vimos pela relativa demora nas respostas da câmara de Monte-mor Novo e da tropa indígena de Vila Viçosa. Entretanto, para os índios, o poder ocupado pela elite de Fortaleza já não se desenhava mais como em 1822 – quando se baseara no liberalismo das Cortes de Lisboa, por meio do qual o exerceriam ilimitadamente na província – mas estava centralizado nas mãos do monarca. Como lembra Mariana Dantas, as “alianças e o posicionamento político dos grupos indígenas podiam ser reelaborados de acordo com as mudanças ocorridas nos cenários local, provincial e nacional”.118 Por isso, no caso aqui analisado, ao aceitar a soberania do rei, os índios evitavam o massacre pelas forças imperiais, ao mesmo tempo em que viam garantidas suas terras e outros benefícios. As ações de apaziguamento das companhias indígenas prosseguiram em novembro: no dia 9, Azevedo e Sá expediu aos índios “ordens a destronarem para as suas habitações, visto não se precisarem mais reunidas”. Ao sargento-mor José Felix de Mendonça, com quem até aquele momento os indígenas estavam reunidos, recomendara que os “fizesse ver quanto bem resultará sempre da tranquilidade e paz em que devemos todos viver”.119 Pelo que expôs o presidente, deve ter havido alguma necessidade de convencimento para que a tropa de índios – que, pelo menos até outubro, estava no Aracati – aceitasse o novo contexto político. Já em Monte-mor Velho, o governo encontrou alguma resistência para impor a ordem. Em 11 de novembro, Azevedo e Sá comunicou ao diretor da povoação que havia tomado providências FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 111-112. DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro, p. 133. 119 De José Felix de Azevedo e Sá a Manuel Moreira Barros. Fortaleza, 9 de novembro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 70. 117 118

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em relação ao índio José Francisco do Monte, “para evitar o mal que ele causa[va] a esses povos tranquilos”, e ordenou que os índios voltassem aos seus roçados.120 No mesmo dia ordenou ao comandante de Monte-mor Velho que não se descuidasse do referido índio, devendo “procurar manter a boa ordem nesses povos”.121 O comandante indígena José Francisco do Monte foi o mesmo que, em 1821, propusera junto à câmara do Aquiraz a abolição do cargo de diretor em sua povoação, como vimos no capítulo 3. Naquela ocasião, liderou uma ação que visara maior autonomia para sua comunidade, e, em novembro de 1824, se inquietava com a nova situação política na qual a elite de Fortaleza novamente assumia o comando da província obedecendo a um imperador tido por despótico. Apesar do reinado definitivamente centralizado que dom Pedro I passaria a exercer, o contexto posterior a 18 de outubro não tranquilizou facilmente a todos os índios. De acordo com Antônio Pereira Pinto, após o “encerramento da revolta no Ceará, à anarquia promovida pelos revolucionários sucedeu a anarquia das classes baixas da província, que acobertadas com o manto da legalidade cometeram toda a casta de atentados”.122 Acerca deste mesmo contexto, Manoel Ximenes Aragão relatou em sua memória as ações da “populaça lembrada dos acontecimentos desastrosos da ilha de Santo Domingos”, em que invadiam povoações e vilas “com o desígnio de matar os patriotas”, como chamavam as “pessoas que possuíssem alguma coisa” ou mesmo que tivessem “couro alvo”.123 Também o presidente Azevedo e Sá se lamentava das ações dos cabras que juntavam “campos de cadáveres daqueles que apelidam patriotas”, esperando, “em tempos tão melindrosos, que não queira essa gente tomar aos homens brancos em consideração para os matar”.124 Por isso que as ações das tropas indígenas foram tão necessárias, como já tínhamos visto no relato de Cochrane. Apesar das divergências internas, a maioria dos índios, ainda que discordassem, não tiveram como se opor à conjuntura que se desenhava e passaram a agir em prol dos interesses imperiais, do estabelecimento da ordem e da perseguição aos liberais fugitivos. Em 19 de novembro, Azevedo e Sá enviou uma tropa de “300 praças militares e 200 índios”, sob o comando de José Felix de Mendonça, ao Aracati, para se reunirem ao

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De José Felix de Azevedo e Sá a José Rodrigues Pereira. Fortaleza, 11 de novembro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 79. 121 De José Felix de Azevedo e Sá a Vicente Ferreira Ramos. Fortaleza, 11 de novembro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 79V. 122 PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte relativa ao Ceará, p. 44. 123 ARAGÃO, Manoel Ximenes de. As fases da minha vida: genealogia. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXVII, 1913, p. 71. 124 De José Felix de Azevedo e Sá a Manuel Antônio de Amorim. Fortaleza, 19 de novembro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 103V-105.

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regimento de Luis Rodrigues Chaves. Seu objetivo era encontrar o liberal José Gomes do Rego, o Cazumbá, que fugira de Pernambuco, a fim de se conhecer suas intenções em território cearense.125 No mesmo dia, ordenou ao almoxarife dos armazéns nacionais e imperiais de Fortaleza para dar assistência aos índios de Vila Viçosa, que somavam de 300 a 400 praças e lá ficariam por cinco dias, fornecendo-os “quatro matolages [sic] e seis alqueires de farinha por dia”.126 Em 22 de novembro, em resposta a um ofício do sargento-mor Mendonça, mandou soltar o capitão-mor indígena de Arronches que estava preso – de cujo nome disse não saber – e o levasse na expedição.127 O presidente provavelmente não conhecia sequer o motivo da punição ao capitão-mor, mas a necessidade de manter a ordem era urgente. A prisão de tal liderança indígena é mais uma prova de que divergências internas ocorreram, mas não impediram que a maioria da população e das tropas de índios se mantivesse obediente ao imperador e ao governo de Fortaleza. Já em janeiro de 1825, 200 índios de Viçosa foram mobilizados para vila de Granja com o objetivo de capturar o coronel João de Andrade Pessoa Anta. O historiador João Brígido contou que, no dia 22, os indígenas “se dispersaram pelas ruas e cometeram toda sorte de violências, saqueando e açoitando homens e mulheres, até de famílias importantes. Dezenove pessoas sofreram esse vilipêndio”. As “mais importantes da vila” fugiram, e “após isto os índios tomaram quartel na casa da câmara”. O grupo só teria se tranquilizado depois que Joana da Mota “tratou de ganhar o sargento-mor dos índios, chefe ostensivo deles, com fazendas e quinquilharias. Eles eram, na verdade, comandados por Gonçalo Luiz de Carvalho, inimigo rancoroso de Andrade pelo fato de este o haver processado por furto de gados”.128 Passando a imagem de desordeiros aos índios sem citar fontes – construindo seu texto a partir de relatos de sobreviventes do confronto – Brígido não informou qual seria a relação deles com Carvalho. Independentemente se havia de fato tal contato, o autor não observou que no início de janeiro de 1825 os índios já estavam, havia muito tempo, a serviço das determinações imperiais e em caça aos liberais. Além disso, as confusões decorrentes da 125

De José Felix de Azevedo e Sá a Luís Rodrigues Chaves. Fortaleza, 19 de novembro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 102. De José Felix de Azevedo e Sá a Manuel Antônio de Amorim. Fortaleza, 19 de novembro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 103V-105. De José Felix de Azevedo e Sá a José Felix de Mendonça. Fortaleza, 19 de novembro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 105-105V. 126 De José Felix de Azevedo e Sá ao almoxarife dos armazéns nacionais e imperiais de Fortaleza. Fortaleza, 19 de novembro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 105. 127 De José Felix de Azevedo e Sá a José Felix de Mendonça. Fortaleza, 22 de novembro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 114V. 128 Uma das vítimas dos índios ainda era viva quando Brígido escreveu seu texto: o “patriota” José Tibúrcio de Almeida Fortuna, que teria levado “um ferimento de seta”. BRÍGIDO João. Biografias: coronel João de Andrade Pessoa Anta. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Econômica, tomo III, 1889, p. 66. MARTINS, Vicente. Pessoa Anta (biografia). Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXXI, 1917, p. 290. STUDART, Guilherme. O movimento republicano de 1824 no Ceará, p. 627.

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perseguição a Pessoa Anta não eram fatos isolados: o comandante das armas Conrado Jacob de Niemeyer relatou ao presidente Azevedo e Sá, em setembro de 1825, “que os índios de Vila Viçosa [eram] insolentes, que os anarquistas da Granja não sossega[vam] e [estavam] em contínua rivalidade com os ditos índios”.129 A tensa situação da perseguição de Pessoa Anta foi um fragmento de um contexto muito mais complexo do que supôs João Brígido. A “anarquia das classes baixas” citada por Pereira Pinto, Ximenes Aragão e Azevedo e Sá revelava uma intensa insatisfação popular que, com o fim da Confederação do Equador, expressou sua fidelidade ao rei e sua revolta contra as elites locais ambiciosas por poder. Apesar da relutância da tropa de João da Costa da Anunciação após o hasteamento da bandeira imperial, como vimos anteriormente, os índios de sua vila também se envolveram em conflitos contrários às “famílias mais importantes”, de onde vinham muitos “patriotas” ou “anarquistas”. A “insolência” dos indígenas de Viçosa observada por Niemeyer se assemelha à “insubordinação” imputada a eles quando estiveram no Piauí em 1823. Por mais que tivessem os mesmos inimigos das autoridades imperiais, as causas de sua aversão aos “ricos liberais” e as formas de combatê-los eram próprias. Também por isso, com o término da Confederação do Equador, não tiveram o mesmo reconhecimento que haviam recebido no tempo do governador Sampaio. “Dignos da imperial contemplação”

Em 21 de maio de 1825, José Felix de Azevedo e Sá enviou ao ministro do império Estevão Ribeiro de Rezende o requerimento de João da Cunha Pereira, diretor da vila de Messejana, em que pedia aumento de ordenado. Pereira se julgava “digno da imperial contemplação” porque, desde que começara a exercer seu emprego, não tivera “a menor nota em sua conduta, e f[izera] conter os índios de sua direção nos limites de seus deveres no tempo em que tudo era desordem”.130 Em sua versão, aceita pelo presidente do Ceará, nenhum índio mereceu ser mencionado como colaborador para o posicionamento que a comunidade de Messejana assumira a partir de 18 de outubro de 1824. Curiosamente, João da Cunha Pereira dividira com Atanásio Faria Maciel, capitão-mor indígena desta vila, a sala da sessão onde foi promulgada a adesão do Ceará à Confederação do Equador em 26 de agosto de 1824. Tanto um quanto o outro estiveram à frente dos índios de Messejana em cada um desses momentos. 129

De Conrado Jacob de Niemeyer a José Felix de Azevedo e Sá. Fortaleza, 20 de setembro de 1825. AN, IN, caixa 742, pacotes 4 e 5. 130 De José Felix de Azevedo e Sá a Estevão Ribeiro de Rezende. Fortaleza, 21 de maio de 1825. AN, IN, caixa 742, pacote 5.

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Já em 15 de junho de 1825, o presidente Azevedo e Sá também remeteu ao ministro Rezende uma relação “dos indivíduos que mais se distinguiram” no combate à Confederação do Equador no Ceará. Por seus serviços, mereciam ser “atendidos por S. M. I.” ou mesmo “condecorados com mercês de hábitos”. Um deles foi Manoel Caetano de Freitas Barros, juiz de fora e diretor da vila de Soure: de acordo com o presidente, Barros “sempre fugiu da carreira dos rebeldes, e quando se levantou a bandeira imperial, moveu os índios de sua direção a pegarem em armas e unirem-se à capital, tendo feito com que até então nunca servissem ao partido rebelde”. Era, portanto, “merecedor de ser condecorado com a mercê da Ordem de Cristo”. Outro foi o padre José Felix dos Santos de Soure, por ter se prestado “à frente de 600 índios de sua freguesia no segundo dia do levantamento da bandeira imperial”, sendo, por isso, também merecedor da mercê do Hábito da Ordem de Cristo. Nenhum índio foi citado nominalmente por Azevedo e Sá.131 Comparando os períodos posteriores às derrotas da Revolução Pernambucana de 1817 e da Confederação do Equador em 1824, as menções à atuação dos índios do Ceará para a manutenção da ordem imperial (lusitana e brasileira) são radicalmente diferentes. Na primeira, quem comandava a capitania cearense era um português, minimamente comprometido com as demandas indígenas e que colaborara diretamente com a isenção de impostos de 1819, promulgada por dom João VI. Na segunda, quem passou a assumir o comando da então província era um membro da elite de Fortaleza, há muito ambiciosa das terras e do usufruto ilimitado da mão-de-obra indígenas. Por isso, convenientemente ignorou opiniões como a de Cochrane. Diante da mudança na conjuntura política do Ceará com a queda da Confederação, parecia não haver saída para os índios, a não ser manifestar apoio a dom Pedro I. Segundo Denis Bernardes, a derrota do projeto liberal e a vitória das tropas imperiais “conteve e limitou as possibilidades de ampliação de cidadania” no Brasil.132 De acordo com Julio Gómez, o Estado pós-independente marginalizou os pobres e não-brancos de qualquer chance de participação política.133 De fato, após 1824, a situação dos indígenas no Ceará só piorou: dois anos depois, os índios de Monte-mor Velho foram expulsos de sua povoação por uma ação da câmara do Aquiraz, como vimos no capítulo 4. Por outro lado, os autores não perceberam que a autoridade das elites locais ainda era limitada durante o reinado de dom 131

De José Felix de Azevedo e Sá a Estevão Ribeiro de Rezende. Fortaleza, 15 de junho de 1825. APEC, MN, MI, livro 310, p. 40V-52. 132 BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do Equador, p. 157. 133 GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados, p. 266.

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Pedro I. Somente com sua abdicação foi que o liberalismo “à brasileira” pôde, a partir da década de 1830, realmente cercear o exercício da cidadania por parte da população pobre e não-branca do país. Para os índios no Ceará, esta época significou a abolição das vilas, dos cargos políticos, das patentes militares e de mecanismos jurídicos efetivos para garantir a posse de suas terras. Segundo Bernardes, à época da Confederação do Equador, os chefes indígenas, “com alguma razão, viam na Coroa a garantia da posse de suas terras e da legitimação de uma hierarquia de poder da qual se sentiam parte”.134 Em outubro de 1824, apoiar o juramento de Fortaleza à constituição imperial não era uma opção agradável para os índios, mas era a melhor possível, tendo em vista que dom Pedro I “moderaria” a atuação dessas autoridades. Com sua partida do Brasil, o poder das elites locais não encontrou barreiras para usurpar o que pudesse das comunidades indígenas. Estes, em contrapartida, reagiram como puderam. O comandante José Francisco do Monte – que, como vimos há pouco, fora acusado de causar transtornos em Monte-mor Velho após o hasteamento da bandeira do império na capital – moveu uma ação em 1831, junto com outras lideranças, para retornar sua comunidade – que havia sido removida à força para Messejana – à povoação de origem, valendo-se da prerrogativa constitucional – e liberal – de “cidadãos”, como analisamos no capítulo 4. Outros, contrariando a afirmativa de Matos Ibiapina de que “a repressão do governo foi tão cruel [...] que, daí para cá, nunca mais se agitou outro movimento cívico de valor”, 135 seguiram caminhos distintos. Alguns índios da Ibiapaba, revoltados com os recrutamentos forçados, se juntaram em 1839 a uma rebelião bem mais longa do que as duas tratadas até aqui.

134

BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do Equador, nota 52, p. 165-166. 135 IBIAPINA, Matos. Confederação do Equador. Revista do Instituto do Ceará, p. 89.

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Mapa 7: Locais de atuação dos índios do Ceará na Confederação do Equador

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Ceará disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ceará

8.3. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NA BALAIADA

As insatisfações em torno das medidas centralizadoras de dom Pedro I não se restringiram à Confederação do Equador. Mesmo após o sucesso da repressão ao movimento, os protestos se seguiram em várias regiões do país, especialmente na capital do império. O envolvimento do monarca na disputa pelo trono lusitano com seu irmão, dom Miguel, intensificou ainda mais seu estigma de “português”. Somadas às dificuldades diplomáticas e econômicas,136 sua fama de tirano vendido aos interesses de Portugal avivou as críticas e conspirações contra seu governo, culminando em sua abdicação no dia 7 de abril de 1831.137 Enquanto o herdeiro, dom Pedro II, não atingia a maioridade, o país passou a ser comandado por uma sucessão de governos regenciais. Iniciava-se, segundo Marco Morel, um 136 137

MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 10-13. Ibid., p. 18-19.

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“grande laboratório de formulações e de práticas políticas e sociais, como ocorreu em poucos momentos na história do Brasil”. Uma série de conflitos de origem ideológica, social e étnica veio à tona, por meio dos quais diversos setores da sociedade – entre eles, os índios – manifestaram suas múltiplas expectativas. Para o autor, o período regencial “foi momentochave para a construção da nação brasileira, quando, ao custo de muitas vidas e despesas, garantiu-se a independência e o caminho de uma ordem nacional”. Morel acredita que essa época, que possibilitou tamanha agitação e novas formas de expressão política, era caracterizada pela “ausência de poder centralizado na figura do monarca e pela emergência de atores históricos variados com suas demandas sociais”.138 Segundo Almir de Oliveira, no Ceará, a conjuntura política após 1831 foi uma das mais conturbadas, quando “as disputas entre os grupos locais se acirraram profundamente”.139 Uma das mais importantes expressões desses conflitos de interesses em território cearense foi a rebelião de cunho restauracionista comandada pelo tenente Joaquim Pinto Madeira, que acreditava que a abdicação de dom Pedro I havia sido forçada e exigia seu retorno ao trono.140 A Revolta de Pinto Madeira foi uma dentre as várias que estouraram pelo país e que marcaram o período regencial, ao ponto de que, segundo Marco Morel, a grande preocupação da política da Corte ter sido “parar o carro revolucionário”.141 Com a nomeação do general Francisco de Lima e Silva – o mesmo que, ao lado de Cochrane, comandara a tomada do Recife em 1824 – como um dos membros da Regência Trina Permanente, em 17 de julho de 1831, implicava, de acordo com o autor, “a existência de uma militarização do poder político no período monárquico”.142 No mês seguinte foi criada a Guarda Nacional que, com o tempo, se voltou cada vez mais “para o fortalecimento dos proprietários e senhores locais e do poder central”.143 Como vimos no capítulo 5, iniciava-se, simultaneamente, um período de intensas ações de recrutamento como forma de controle social. A própria necessidade em combater as revoltas regionais motivou, segundo Mathias Assunção, o aumento das conscrições da população pobre e livre.144

138

Ibid., p. 9-10. OLIVEIRA, Almir Leal de. A construção do Estado nacional no Ceará na primeira metade do século XIX: autonomias locais, consensos políticos e projetos nacionais. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais: Estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará – compreendendo os anos de 1835 a 1861 pelo Dr. José Liberato Barroso [Ed. Fac-similada]. Fortaleza: INESP, tomo I, 2009, p. 22. 140 Cf. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 113-193. 141 MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840), p. 20. 142 Ibid., p. 27. 143 Ibid., p. 29. 144 ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841). In: ZARTH, Márcio. MOTTA, Márcia. (Org.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao 139

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Segundo Almir de Oliveira, após a repressão à Revolta de Pinto Madeira, assistiu-se em meados da década de 1830 no Ceará a uma “paz provincial”, especialmente com a promulgação do Ato Adicional de 1834, quando os poderes regionais foram fortalecidos por meio das Assembleias legislativas.145 Neste mesmo ano, o padre Felipe Benício Mariz promoveu “desordens” na Ibiapaba ao alertar os índios que a reforma constitucional visava recrutá-los, como vimos no capítulo 2. Em 1835, o então presidente cearense José Martiniano de Alencar – antigo líder das rebeliões em 1817 e 1824 – alegou que o interior da província estava em “perfeita paz” e que “não apresenta[va] probabilidade de um rompimento”, por ter posto “força distribuída por aqueles lugares” onde uma turbulência era possível.146 Para Mathias Assunção, ações como a de Alencar levavam a um círculo vicioso: “o recrutamento intensivo provocava, em retorno, resistência armada, o que aumentava por sua vez a necessidade de recrutamento”.147 Acreditando em uma paz permanente, o presidente não contava com a adesão, anos depois, de parte dos habitantes da Ibiapaba à Balaiada. A revolta, iniciada no Maranhão e com forte repercussão no Piauí, durou entre os anos de 1838 e 1841 e teve um saldo de cerca de 15 mil rebeldes mortos nos conflitos.148 Mathias Assunção caracteriza o conflito como uma “guerra de resistência do campesinato contra o recrutamento arbitrário e os abusos de uma elite que se considerava branca e superior”. 149 A revolta era social e etnicamente heterogênea, envolvendo amplamente a população cabocla do interior dessas duas províncias, além de índios, negros escravos e forros, brancos pobres, vaqueiros, camponeses e, em território piauiense, significativa participação de fazendeiros contrários ao barão de Parnaíba, que estava à frente do governo do Piauí desde a independência. Suas principais reivindicações giravam em torno da defesa da Constituição, da religião católica, da pátria e do imperador.150 longo da história. Concepções de justiça e resistência nos Brasis. Volume 1. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 179. 145 OLIVEIRA, Almir Leal de. A construção do Estado nacional no Ceará na primeira metade do século XIX, p. 28. 146 De José Martiniano de Alencar a Manuel do Nascimento de Castro e Silva. Fortaleza, 10 de outubro de 1835. In: CARTAS do padre José Martiniano de Alencar, presidente do Ceará, a Manuel do Nascimento de Castro e Silva, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXII, 1908, p. 59. 147 ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 180. 148 MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840), p. 64-65. 149 ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 171. 150 Ibid., p. 172. ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o Imperador”. Liberalismo popular e o ideário da Balaiada no Maranhão. In: DANTAS, Mônica Duarte (Org.). Revoltas, motins e revoluções: homens livres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011, p. 305. OLIVEIRA, Maria Amélia. A balaiada no Piauí. In: ANDRADE, Manuel Correia de. Movimentos populares no Nordeste no período regencial. Recife: FUNDAJ, Editora Massananga, 1989, p. 16-19. DIAS, Claudete Maria Miranda. Balaiada: a guerrilha sertaneja. Estudos Sociedade e Agricultura, n. 05, 1995, p. 7982. DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos sociais do século XIX: resistência e luta dos balaios no Piauí.

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Na historiografia há citações muito rápidas a respeito do Ceará como palco ou terra natal dos envolvidos no conflito.151 Claudete Dias apenas menciona a província como um local de fuga dos rebeldes a partir de 1839, ano de intensa expansão do movimento.152 Jofre Vieira e Maico Xavier vão mais além, percebendo que, na Ibiapaba, os balaios encontraram tanto resistência quando adesão por parte da população indígena local. Dentre os que se uniram à rebelião, a motivação se encontrava também no recrutamento.153 Além dessas obras, não encontrei análises mais densas sobre o envolvimento de cearenses na Balaiada,154 realidade bem diferente do que já foi produzido no Ceará acerca da Revolução Pernambucana de 1817 e da Confederação do Equador. Os autores antigos deram preferência a movimentos liderados pela elite política da província, enfatizando seu caráter separatista e republicano. A Balaiada, por sua vez, ocorreu em um momento quando o Estado nacional brasileiro já estaria consolidado – tendo sido a Revolta de Pinto Madeira a última ameaça a esse processo – além de ter sido protagonizada por grupos subalternos. Se nos ativermos à produção historiográfica a respeito do tema, talvez a conclusão seja de que a Balaiada não tenha tido maiores reflexos no Ceará, cuja participação se restringira a ter sido mero local de fuga dos rebeldes. A situação seria um reflexo da “bem-sucedida” pacificação ocorrida em meados da década de 1830, arrefecendo os últimos ânimos exaltados existentes na província. No entanto, de acordo com a memória Ximenes Aragão, a conjuntura parece ter sido ser bem mais complexa. O autor foi contemporâneo aos conflitos, e residia, à época, no Maranhão. Em uma de suas viagens de negócios no natal de 1838, encontrou em um povoado próximo a Chapadinha “um grande número de pessoas de ambos os sexos naturais da província do Ceará, principalmente da Serra Grande”. Estes contaram que estavam

In: ZARTH, Márcio. MOTTA, Márcia. (Org.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história. Concepções de justiça e resistência nos Brasis. Volume 1. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 205-209. 151 DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos indígenas no nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP: 1992, p. 448. GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil. Studia Historica. Historia Contemporánea, n. 27, 2009, pp. 273-274. 152 DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos sociais do século XIX, p. 204. 153 VIEIRA, Jofre Teófilo. Uma tragédia em três partes: o motim dos pretos da Laura em 1839. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 105-106. XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social: os índios do Ceará no período do império do Brasil – trabalho, terras e identidades indígenas em questão. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, 2015, p. 156-161. 154 Na Revista do Instituto do Ceará há, apenas, uma publicação sobre o tema – cópias de correspondências entre autoridades cearenses e do Piauí – e duas que o abordam de forma secundária: NOGUEIRA, Paulino. Presidentes do Ceará: período regencial. 10º presidente, bacharel Francisco de Souza Martins. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart, tomo XV, 1901, pp. 5-61. ARAGÃO, Manoel Ximenes de. As fases da minha vida: genealogia, pp. 47-157. DOCUMENTOS sobre a Balaiada. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo LXXX, 1966 [1968], pp. 253-276.

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envolvidos na revolução chefiada por Raimundo Gomes, e eram os mesmos revoltosos que, em 1824, haviam matado certo João de Farias na região de onde vieram. Segundo Aragão, nutriam ódio aos portugueses, mas como “caboclos e cabras eram os comandantes dessa horda de malvados”, poderiam escapar os que fossem casados com “cunhãs”.155 A “paz provincial” tinha, portanto, seus limites. Os cearenses que residiam no Maranhão ainda levavam em sua memória os acontecimentos de mais de 10 anos antes. O citado Raimundo Gomes era o vaqueiro piauiense que, em dezembro de 1838, iniciara a revolta na Vila do Manga (atual Nina Rodrigues, Maranhão), motivada pelo recrutamento de seu irmão.156 Percebemos, por um lado, que apesar de sua extensão geográfica, a revolta foi uma só, tendo em vista não apenas os contatos frequentes que lideranças de lugares distintos travavam entre si como também a semelhança dos motivos de insatisfação. Por outro, cada grupo – sejam vaqueiros, lavradores, escravos ou fazendeiros – possuía demandas distintas, tanto por suas condições de vida diferenciadas quanto por suas culturas políticas particulares. Entre as matrizes culturais que compunham a população campesina envolvida no conflito no Maranhão, Mathias Assunção cita os índios das vilas e os migrantes cearenses, que pelo menos desde a seca de 1824-1826 haviam buscado refúgio na província.157 Levando em conta o relato de Aragão, é possível supor que boa parte desses lavradores oriundos do Ceará fossem índios da Ibiapaba. Tanto estes quanto os que ainda viviam na serra recordavam sua atuação política na década de 1820. Os fatos citados por eles de 1824 se conectavam aos conflitos que se seguiram em 1825 – contra as “famílias importantes” e os “anarquistas” de Granja – e se assemelhavam às motivações étnico-raciais da Balaiada. Estas lembranças, aliadas às demandas do contexto em que viviam, serviram de base para sua participação na rebelião. “Raimundo Gomes, nosso irmão”

As primeiras notícias que encontrei sobre o envolvimento de índios do Ceará na Balaiada datam de julho de 1839. Escrevendo ao barão de Parnaíba no dia 4, o subprefeito de Piracuruca, no Piauí, José Rodrigues de Miranda, comunicava seu temor em relação à proximidade da povoação com a 155

ARAGÃO, Manoel Ximenes de. As fases da minha vida: genealogia, p. 143-146. Cf. OLIVEIRA, Maria Amélia. A balaiada no Piauí, p. 20. DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos sociais do século XIX, p. 203. ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 186. ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o Imperador”, p. 298. 157 ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 173. 156

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“serra e Vila Viçosa, lugares estes que tem grande número de índios e outros de iguais sentimentos, e onde não há homens de qualidade que contenham os impulsos desses incautos, e onde já desobedeceram ao presidente quando os mandou reunir para vir socorrer a esta província, em cujo lugar já ousam chamar a Raimundo Gomes, nosso irmão, e com a maior satisfação dizem que o que se tem praticado no Brejo é justo”158

Os piauienses, de fato, ainda não haviam esquecido a “traumática” – apesar de breve – presença indígena em seu território em 1823, cujo grande pecado havia sido a desobediência às autoridades. Ou seja, mesmo que governantes do Piauí e índios do Ceará tivessem lutado contra os mesmos inimigos, a postura destes era inadmissível para aqueles. Agindo por conta própria, revelaram sua obstinação em defender seus interesses e também as ameaças internas que os governantes do Brasil recém-independente teriam que enfrentar. Tais receios foram particularmente enfatizados durante a Balaiada: as autoridades que buscavam construir um Estado nacional unificado tiveram que lidar com uma massa popular que não aceitava ser submissa às arbitrariedades que sofriam. Este tipo de atitude “desobediente” estava presente na adesão irmanada dos índios da Ibiapaba a Raimundo Gomes e no apoio aos acontecimentos ocorridos na vila de índios do Brejo, Maranhão, tomada pelos balaios em abril de 1839.159 Em apenas seis meses após o início da revolta os índios da Serra Grande já reverenciavam o líder Raimundo Gomes Vieira Jutahy, que reivindicava a igualdade das cores, ou, como se dizia à época, das diferentes “qualidades” de homens.160 Por isso, Mathias Assunção caracterizou a Balaiada como uma expressão de “liberalismo popular”: a população subalterna se apropriou da linguagem do partido maranhense bem-te-vi (termo também adotado como autodesignação pelos rebeldes) de defensores das leis do império, opondo-se aos conservadores, os chamados cabanos. Para o autor, as classes populares adaptaram ideias divulgadas pela imprensa liberal e manifestaram seu “liberalismo” com características próprias, a exemplo da defesa da igualdade racial.161 As ideias dos revoltosos do Maranhão foram bem recebidas pelos índios da Ibiapaba em 1839 porque os conflitos étnico-sociais já faziam parte de sua memória e cultura política. O “liberalismo popular” maranhense pode ter tido uma releitura por parte da população indígena da Serra Grande. Por mais que em muitos momentos – na Revolução de 1817, no 158

De José Rodrigues de Miranda a Manoel de Souza Martins. Piracuruca, 4 de julho de 1839. APEPI, SB, livro

6. 159

Cf. ARAÚJO, João Mauro. Insurreição Balaiada. Repórter Brasil, agosto de 2006. Disponível em: . Acesso em: 7 de setembro de 2016. 160 ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o Imperador”, p. 311-313. 161 Ibid., p. 300-304.

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Piauí em 1823, nos conflitos de Granja em 1825 – tenham combatido “patriotas”, os verdadeiros alvos da gana dos índios era a elite branca e proprietária. Os que antes eram “liberais” passaram a ser, neste contexto, conservadores, associados muitas vezes aos portugueses, mas, na prática, ambiciosos em usurpar o trono do rei e privar os indígenas do exercício da cidadania. Outra questão evidente no ofício de Miranda é que, em meados de 1839, o contato dos rebeldes maranhenses com os habitantes da Ibiapaba já era frequente e, pela maneira com que se manifestavam, a região onde viviam era muito mais que um local de fuga. No dia 8 de setembro um destacamento de 20 homens estacionado no povoado de Matões (atual Pedro II, Piauí), próximo à fronteira com o Ceará, foi atacado por 56 rebeldes, que mataram alguns soldados, roubaram munições e queimaram casas. Desses, alguns que eram de Vila Viçosa seguiram para Piracuruca e, com a chegada de numerosas tropas de linha e Guardas Nacionais nos dias 16 e 17, “se abarracaram mui bem entrincheirados, armados e municiados na fazenda Bebedor”, a 38 quilômetros da vila. Em 20 de setembro os rebeldes foram sitiados, travando fogo de 5 da manhã até as 18 horas, entregando-se no dia seguinte – com um saldo de 15 mortos – e sendo remetidos presos em número de 48 a Parnaíba no dia 25. Segundo o prefeito de Piracuruca, Albino Borges Leal, muitos rebeldes que vinham da Serra Grande, ao saberem da derrota ocorrida na vila, “voltaram às carreiras”.162 No segundo semestre de 1839, a Ibiapaba já era claramente um foco de rebeldes e de onde partiam operações armadas de ataque. Escrevendo ao barão de Parnaíba, Leal relatou que, dentre os mortos, estavam o inspetor Pedro Celestino, “comandante de tal club [sic] do Ceará”, e Pedro da Costa, que dizia governar “as forças bem-te-vis dos Matões e seus arredores”. Os dois, segundo o prefeito, “eram legitimamente cabras, e até desprezíveis”.163 Maico Xavier argumenta que o aparecimento de categorias como cabras, caboclos ou “descendentes de índios” na documentação referente à Balaiada “denota certa relutância em reconhecer as identidades indígenas”.164 Entretanto, grupos identificados como “índios de Viçosa” não deixam de aparecer nos registros, mostrando que, na verdade, havia grande diversidade étnica na região e, provavelmente, interesses distintos. Cabras e índios não

162

De Albino Borges Leal a Manoel de Souza Martins. Piracuruca, 26 de setembro de 1839. APEPI, SB, livro 6. De Albino Borges Leal a Manoel de Souza Martins. Piracuruca, 26 de setembro de 1839. APEPI, SB, livro 6 [ofício produzido na mesma data do supracitado]. 164 XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social, p. 158. 163

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necessariamente se identificavam como pertencentes ao mesmo grupo étnico,165 mas a matriz indígena comum possibilitava a convivência e a partilha de alguns objetivos. Sabendo do potencial bélico dos insurrectos da serra, os governantes do Piauí e do Ceará passaram a tomar uma série providências de defesa. Em 4 de outubro, um destacamento foi montado pelo prefeito de Piracuruca em Columinquara, na estrada que seguia para Vila Viçosa, porque soubera que lá haviam passado rebeldes em 17 de setembro.166 Enquanto isso, o governador do Ceará João Antônio de Miranda informava ao ministro da Guerra, o conde de Lajes, a respeito dos cerca de 50 cearenses que haviam se reunido aos “sediciosos de Matões”. Teriam sido “seduzidos” por um tal de José Paulino e seriam “quase todos índios”. Miranda afirmou ainda que, durante o cerco de Piracuruca, os líderes do grupo afirmavam ser “chefes da religião católica de Jesus Cristo”.167 A fala do presidente se assemelha ao que fora dito sobre os índios de Viçosa em Granja no ano de 1825, quando também teriam sido “cooptados” por uma liderança da região. Para os governantes desse período, as ações indígenas, por mais enérgicas que fossem, não poderiam ter suas próprias prioridades como iniciativa. Entretanto, as falas do chefe em Matões referentes ao catolicismo podem nos fornecem outra pista acerca do posicionamento político dos índios que quiseram se agregar às lutas dos rebeldes. Nesse contexto, o governo central afastava-se da Igreja168 e, durante o processo de extinção das vilas de índios, suas antigas freguesias também não eram mais consideradas patrimônio comunitário indígena.169 Além disso, como demonstra a preocupação do prefeito de Piracuruca e de outras autoridades da fronteira entre o Piauí e o Ceará, a movimentação bélica indígena seguia por caminhos que eles escolhiam, mesmo que fosse seguindo os convites de outros revoltosos. Em janeiro de 1840 já circulavam notícias de que rebeldes da Ibiapaba tencionavam atacar Buriti dos Lopes, no Piauí, e sitiar Parnaíba,170 e em março ameaçavam marchar para

“difícil distinguir os índios [da Ibiapaba] do mais povo, principalmente estando aquela raça já tão misturada que pela maior parte só são tratados por índios os que querem ser”. Da câmara de Granja a José Maria da Silva Bittencourt. Granja, 23 de setembro de 1843. APEC, CM, câmara de Granja, pacotilha 1843-1845. 166 De Albino Borges Leal a Manoel de Souza Martins. Piracuruca, 4 de outubro de 1839. APEPI, SB, livro 6. 167 De João Antônio de Miranda a João Vieira de Carvalho. Fortaleza, 8 de outubro de 1840. APEC, GP, CO EX, livro 41, p. 12V-14. 168 MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840), p. 29. 169 As freguesias de Soure, Arronches e Monte-mor Velho foram extintas por meio das leis n. 16, de 2 de junho de 1835, e n. 32, de 27 de agosto de 1836. Cf. OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais, p. 57 e 83. A de Viçosa não foi abolida porque a vila continuou existindo, mas deixou de ser de índios na década de 1830. 170 De José Francisco de Miranda Osório a Manoel de Souza Martins. Parnaíba, 10 de janeiro de 1840. APEPI, SB, livro 12. 165

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Viçosa.171 No mesmo mês apareceram rebeldes na vila a mando de Domingos Ferreira, “pedindo pólvora e munição e juntamente notificando os índios para se lhe reunirem”.172 A partir de abril, tropas cearenses contrarrevolucionárias passaram a se organizar em defesa da vila.173 Enquanto isso, provavelmente em decorrência da ocupação da Ibiapaba pelas forças repressoras, o litoral piauiense se tornava o novo reduto dos rebeldes do Ceará. Para deter esta movimentação, o major Joaquim da Rocha Moreira mandou colocar no fim deste mês “vários piquetes [...] em cima da serra a pôr obstáculos aos índios que estão fugindo a reunirem-se nas Frexeiras, por convite de sedutores que vivem por ali os seduzindo”.174 Enquanto isso, cerca de 600 homens de Pernambuco e do Ceará seguiam para a costa do Piauí, “procurando bater na marcha os rebeldes da Vila Viçosa e Frexeiras”. 175 O lugarejo citado localizava-se próximo a Parnaíba e, apesar das barreiras impostas pelos militares, passou a receber continuamente, ao longo de maio, pessoas que desciam a Ibiapaba. Um dissidente dos insurrectos das Frexeiras relatou às lideranças contrarrevolucionárias que “da Serra Grande tem ido uma porção de índios para os mesmos rebeldes, porém uns desarmados, e outros com armas finas, e todos sem munição – que eles cometem, porém, que o terror é muito”.176 Vinha dos próprios índios, portanto, a motivação pelo combate, advinda de insatisfações particulares e que deitavam raízes em situações muito antigas. Reunidos em Frexeiras com combatentes de lugares diferentes e de outras origens étnicas, puderam trocar experiências e compartilhar expectativas. Unidos por situações igualmente opressoras, índios e outros segmentos não-brancos e pobres fundiam suas particularidades históricas em um mesmo movimento de revolta. Segundo Mathias Assunção, a violência dos rebeldes se dirigia “antes de tudo contra escravocratas ou autoridades que se tinham destacado por suas crueldades e maus-tratos [...]. Nesse sentido não é uma violência primeira, mas uma reação contra violências anteriores”. Aliando-se a outros grupos e prometendo botar o terror, os

171

De José Euzébio de Carvalho a Joaquim da Rocha Moreira. Granja, 20 de março de 1840. APEPI, SB, livro 12. De Manoel da Costa Sampaio a Joaquim da Rocha Moreira. Granja, 30 de março de 1840. APEPI, SB, livro 12. 172 De Joaquim da Rocha Moreira a José Feliciano de Moraes Cid. Ubatuba, 31 de março de 1840. APEPI, SB, livro sem número. 173 De Joaquim da Rocha Moreira a José Francisco de Miranda Ozório. Ubatuba, 1º de abril de 1840. APEPI, SB, livro 12. 174 De Joaquim da Rocha Moreira a José Feliciano de Moraes Cid. Porteiras, 28 de abril de 1840. APEPI, SB, livro 11. 175 De Luís Alves de Lima e Silva a Alexandre Manuel Vieira de Carvalho, o conde de Lajes. São Luís, 16 de maio de 1840. AN, OG, cód. 927, vol. 1, p. 31-32. 176 Relato sem data, local ou autoria, anexo ao ofício a José Feliciano de Moraes Cid. Ponto da Conceição, 5 de maio de 1840. APEPI, SB, livro 12. Também anexo ao ofício de José Feliciano de Moraes Cid a Manoel de Souza Martins. Capela do Livramento, 13 de maio de 1840. APEPI, SB, livro 11.

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índios de Viçosa faziam “um autêntico movimento de inversão, em que o perseguido de ontem virou perseguidor, e vice-versa”.177 As pendengas indígenas em 1840 não eram exclusivas deste período. Desde 1814, como vimos nos capítulos 1 e 3, o grande requerimento já expressara a percepção dos índios de Viçosa em relação aos brancos, tidos como uma presença desagradável e a causa de seus sofrimentos. Entre sua presença no Piauí em 1823 e no período posterior à Confederação do Equador, seus inimigos foram se delineando com características étnico-sociais que culminaram com sua adesão aos bem-te-vis. Ainda que não fossem escravos, reclamavam havia muito que eram tratados como tais, o que possibilitava que sua revolta se coadunasse com aqueles que enfrentavam escravocratas ou quaisquer outros exploradores da população pobre. Rebelavam-se com o fato de que o país que ajudaram a formar privilegiava exclusivamente uma pequena elite branca, proprietária e usurpadora.

Antes viver sob as armas do que o jugo das autoridades

Até então, a documentação nos forneceu elementos para refletir sobre quem eram os alvos do terror prometido pelos índios. Mas o que de fato pretendiam? O presidente do Ceará Francisco de Souza Martins esteve próximo a Frexeiras e conseguiu obter informações com alguns indivíduos presos que lá tinham estado. Em junho de 1840, Martins escreveu ao ministro Francisco Ramiro de Assis Coelho sobre a vida e as “doutrinas” dos insurrectos. Segundo ele, os rebeldes eram, “pela maior parte, descendentes de indígenas, outros são de cor mista, a que chamam cabras, e alguns negros fugidos dos seus senhores: todos de supina ignorância, e apenas algum se encontra que saiba ler. [...] Seus hábitos são muito semelhantes aos dos índios, de que quase todos descendem, e parecem que amam a mesma independência selvagem”.178

A descrição do presidente se assemelha bastante ao que sempre se disse dos índios desde o início do século XIX, como já vimos em outros momentos desta tese. Mais do que a convivência com os outros rebeldes, percebemos que a cultura indígena fazia parte da origem de parcela considerável dos amotinados das Frexeiras. Entretanto, a união entre mestiços, negros escravos e índios extrapolava a semelhança de hábitos: ainda que esta pudesse facilitar 177

ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 192. De Francisco de Souza Martins a Francisco Ramiro de Assis Coelho. Vila Viçosa, 20 de junho de 1840. Apud: NOGUEIRA, Paulino. Presidentes do Ceará, p. 31-33. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento. 178

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suas relações, o que os agregava eram os objetivos em comum e a mesma situação de subalternidade. Além disso, as necessidades bélicas no enfrentamento das tropas governamentais faziam com que adaptassem táticas de guerrilha semelhantes às dos índios, somando-as a outros recursos mais efetivos. Segundo Martins, os rebeldes faziam “exercícios de armas que têm aprendido de alguns soldados desertores ou prisioneiros, mas quase nenhuma disciplina e subordinação conservam dos chefes”. Sua guerra era de emboscada, utilizando-se de trilhas nas matas ao lado das estradas, trincheiras de pedra e “numerosos espias pelas estradas e lugares, onde existem destacamentos de nossas tropas, o que lhes é fácil conseguir por meio de outros pobres moradores desses sítios, os quais todos têm com eles relações mais ou menos simpáticas”. Nunca faziam enfrentamento em campo raso, atacando as tropas em caminhos cobertos de mato. Quando descarregavam sua munição, “somem-se de corrida pelo interior das matas, e raras vezes acontecem que alguns sejam apanhados”. A descrição reforça o argumento de que o grupo de Frexeiras, assim como outros focos de atuação dos revoltosos, era multiétnico, como bem observou Jofre Vieira. 179 Os índios de Viçosa, portanto, eram percebidos pelos observadores dos governos provinciais como elementos importantes da atuação rebelde. A Balaiada agregou elementos diferentes, vindos de uma sociedade diversificada e igualmente insatisfeitos, desde soldados desertores até espiões facilmente aliciáveis. Os recrutamentos, estopim do movimento, atingiam a todos, mas compunham um contexto de exploração e controle social muito mais complexo. Martins também tomou conhecimento de que os rebeldes rezavam o terço todas as noites, fato que o induziu a supor que o envio de missionários poderia “sem custo conseguir que eles largassem as armas e se submetessem à autoridade. Lembra-me que n’outro tempo assim se praticava com os indígenas, de quem os atuais inimigos pouco diferem”. Os insurrectos declaravam ainda “obedecer à S. M. o Imperador, e fazer guerra aos cabanos, que querem governar em nome do mesmo Augusto Senhor. Mostram-se muito pertinazes em não se sujeitarem, preferindo antes viver sob as armas, foragidos pelas brenhas [...] do que se submeterem ao jugo da autoridade legal”.

Aqui as demandas dos rebeldes são mais evidentes. O movimento não somente lutava “contra algo”, mas também a favor de reivindicações que transformassem a realidade que viviam, contradizendo parte da historiografia. Maria Amélia de Oliveira, por exemplo,

179

VIEIRA, Jofre Teófilo. Uma tragédia em três partes, p. 106.

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classificou a Balaiada como um movimento pré-político, “pois, mesmo que tenha alcançado graus inusitados de violência e de mobilização popular, foi incapaz de articular um projeto político como uma alternativa às formas vigentes de dominação”. 180 Para Claudete Dias, "a massa popular analfabeta e rude está apta para lutar e escolher seus líderes, mas não para governar". Por isso que, na Balaiada, "os índios, os escravos, os sertanejos pobres não souberam formular suas ideias, mas, na prática, agiram em sua defesa".181 Comprando o ponto de vista dos contrarrevolucionários, presente na maior parte da documentação, as autoras duvidaram da capacidade das pessoas que estudavam. Como se fossem limitados mental e politicamente, os pobres só poderiam, para elas, agir pelo uso da força. Talvez por conta do período e contexto acadêmico em que escreveram, Oliveira e Dias não questionaram as fontes a partir da origem social de seus autores. Estes nem sempre entendiam – ou não procuravam entender – as culturas e reivindicações políticas dessa população, como mostra a caracterização de “indisciplina” a respeito da maneira como lidavam com seus chefes. Para avançar na investigação, não é possível afirmar a não existência de ideias e projetos: ao contrário, é necessário examinar “a contrapelo” os documentos produzidos pelos governantes acerca dos revoltosos. No caso aqui analisado, diferente de outros grupos envolvidos na Balaiada,182 não encontrei registros escritos dos índios de Viçosa. Entretanto, é possível entrever suas ambições a partir das alianças que faziam e de seus referenciais na luta. Bem mais do que agir exclusivamente motivados por suas insatisfações – que não eram poucas e nem banais – os índios também compactuavam com exigências relativas ao fim das diferenças sociais. O Brasil ainda guardava uma série de características da sociedade do Antigo Regime, mas as garantias indígenas de quando eram vassalos portugueses passaram a ser usurpadas com muito mais violência por uma elite que, além de dona da terra, ocupara os cargos da administração pública. Como vimos ao longo deste trabalho, a “cidadania” – condição jurídica, mas nem sempre efetiva – lhes trouxera muito mais prejuízos do que benefícios. Ressaltando sua fé católica e sua fidelidade ao rei, os amotinados de Frexeiras tinham pautas muito semelhantes ao que Mathias Assunção encontrou em escritos rebeldes apreendidos no Maranhão. Estes davam vivas à religião católica, ao imperador, à carta magna 180

OLIVEIRA, Maria Amélia Freitas Mendes de. A balaiada no Piauí, p. 15. DIAS, Claudete Maria Miranda. Balaiada, p. 82-83. DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos sociais do século XIX, p. 211. Contraditoriamente, a autora diz se amparar na história social para analisar o movimento. Cf. DIAS, Claudete Maria Miranda. Balaiada, p. 77. DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos sociais do século XIX, p. 201. 182 Cf. OLIVEIRA, Maria Amélia Freitas Mendes de. A balaiada no Piauí, p. 21. ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o Imperador”, p. 306. 181

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do país e às tropas bem-te-vis, opondo-se aos cabanos que estariam “se aproveitando da tenra idade de dom Pedro para infringir a Constituição e oprimir ‘os povos’”. Segundo Assunção, a “ênfase na religião católica era complementada pela acusação de que os cabanos formavam sociedades secretas”, expressando a desconfiança da maçonaria.183 Apesar do presidente Martins não fazer referência a direitos constitucionais sobre as reivindicações dos de Frexeiras, estes também lutavam para fosse respeitada sua cidadania. Há nos anseios dos rebeldes muitos elementos da cultura política dos índios que sempre se portaram como devotos católicos e fieis vassalos. Apesar do curto período de adesão aos liberais do Ceará, os indígenas de Viçosa terminaram a Confederação do Equador perseguindo os chamados “patriotas”, vindos de uma elite proprietária e exploradora. Dom Pedro I voltara a proteger os índios da ambição dos poderes locais, mas as pressões para sua abdicação criaram uma conjuntura política de crescente privação do exercício da cidadania por parte da população pobre e, principalmente, não-branca. No que dizia respeito aos índios, o retorno da centralização do poder na figura de um rei – que estaria submetido a aproveitadores – poderia fazer com que recuperassem o que haviam pedido com a partida do imperador. Ou seja, ao contrário do que argumentou Maria Amélia Oliveira, havia demandas políticas efetivas por parte dos rebeldes que pretendiam transformar a situação de dominação em que viviam a partir do respeito à sua condição de cidadãos, que só seria possível por meio da defesa do rei. Diferente do que afirma Claudete Dias, os índios de Viçosa amotinados em Frexeiras formularam ideias e lutaram por elas, buscando a melhoria de sua realidade e baseados nas memórias de quando governavam sua vila. As características guerreiras dos índios – atuando por emboscada, sem chefias definidas, locomovendo-se facilmente nas matas – foram de suma importância para a resistência e ação do movimento. Apesar da ofensiva promovida pelas forças dos governos provinciais em 22 de junho, os rebeldes conseguiram se deslocar das Frexeiras e contra-atacar a Ibiapaba, de onde muitos índios “haviam desertado dos arrabaldes para se unirem [...] aos rebeldes”. No dia 1º de julho invadiram São Pedro, “onde assassinaram a seis ou sete pessoas, roubaram e queimaram as casas” e de lá desceram para o Ipu, matando um homem e roubando algumas casas. Em seguida subiram novamente a serra e atacaram São Benedito, onde enfrentaram paisanos liderados por Luis José de Miranda, “chefe índio da povoação”, e guardas nacionais. Após intenso combate, os insurrectos apossaram-se do lugar e “largaram fogo às casas”. No dia 12 as tropas de Ceará “atacaram os rebeldes fortificados no lugar do ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o Imperador”, p. 306-309. 183

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Buriti”, próximo à Vila Viçosa, “onde haviam feito fossos transversais na estrada, erriçados de espinhos por dentro, e por cima cobertos por folha de palmeira e terra”. Com a ofensiva, os revoltosos foram “desalojados, deixando quatro mortos vistos, além de outros que se supõem terem morrido”, contra um soldado do governo morto. De lá, se reuniram novamente em Japitaraca, termo de Vila Viçosa. De acordo com o presidente Martins, “como estes lugares ficam sobre a chapada da Serra Grande cobertas de densas e vastas matas, e estes rebeldes são em parte dos mesmos índios habitadores das povoações mencionadas, que conhecem todas as veredas e esconderijos”, era preciso que as explorações militares do governo durassem mais tempo.184 As ações violentas imputadas aos revoltosos estão presentes em toda a documentação referente ao movimento em cada uma das províncias como também em de grande parte da historiografia tradicional. Sem negar que tais atos realmente ocorreram, há de se considerar que, muitas vezes, tratavam-se de respostas a situações tanto vividas historicamente por essas populações contra a exploração quanto localizadas no decorrer dos embates.185 No caso acima, a incursão dos índios rebeldes por sua região de origem – e que era cada vez menos sua – indica, pelo menos, duas relações conflitosas. Em primeiro lugar, seu trânsito pela Ibiapaba foi um contra-ataque às “autoridades locais” que combatiam por conta da ofensiva que haviam sofrido em Frexeiras. Em segundo, os assassinatos e as queimas de casas tinham íntima relação com a atuação do índio Luis José de Miranda, o capitão de São Benedito sobre quem refletimos no capítulo 5. Eles e seus paisanos representavam uma parcela provavelmente significativa da população indígena da Ibiapaba que não apoiava a revolta, trabalhava em obediência ao governo do Ceará e, por isso, foi atingida pela represália rebelde. Era clara a heterogeneidade de posicionamentos entre os índios da Ibiapaba. Semelhante ao que se vivenciara durante a expulsão do padre Felipe Benício em 1822, havia em 1840 índios contrários aos mais radicais e dispostos a manter a ordem governamental, ainda que seja difícil conhecer as motivações dos “paisanos” de Miranda. O capitão, em contrapartida, provavelmente percebia as vantagens pessoais e prestigiosas que receberia com o sucesso da repressão, opondo-se a grupos que, como afirmou o presidente, não eram subordinados aos próprios chefes. Apesar da obstinação dos revoltosos e de suas vantagens na guerrilha, a utilidade da corporação de São Benedito cresceu ainda mais após os embates de 184

De Francisco de Souza Martins a Luís Alves de Lima. Fortaleza, 24 de julho de 1840. AN, AA, IJJ9 174. De Francisco de Souza Martins a José Paulino Soares de Souza. Fortaleza, 27 de julho de 1840. Apud: NOGUEIRA, Paulino. Presidentes do Ceará, p. 42-43. 185 Cf. ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 190194.

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julho, tanto pelo fortalecimento das forças contrarrevolucionárias quanto pela chegada da notícia da maioridade de dom Pedro II.

Amor ao soberano e adesão ao seu governo

O relatório do presidente do Ceará Francisco de Souza Martins, de agosto de 1840, descreveu o que ocorrera até o fim do mês de julho com os adeptos da Balaiada na província. Tratou das ofensivas e reforços recebidos pelo governo, das táticas de guerrilha dos rebeldes, da colaboração do índio Luis José de Miranda e do confronto no Buriti.186 Mas, diferente de comunicações anteriores, propôs uma explicação para a adesão de parte dos indígenas da Ibiapaba ao movimento. Segundo ele, os índios se revoltaram como consequência das leis que os excluíram “de todos os empregos públicos”, por serem “sempre lesados em seus contratos” e pela degradação de sua “posição social”. Suspirando pelo “antigo regime”, as 60 famílias de São Pedro se dispuseram a “tomar partido na rebelião, [...] abandonando suas casas e lavouras, das quais algumas se achavam em estado esperançoso. Julgo que, por análogas razões, eles aliaram com os partidos rebeldes no Maranhão e no Pará”.187 Ter lavouras produtivas não era o suficiente para uma população a cada dia mais explorada e que via suas prerrogativas serem abolidas: degradava-se sua posição social e política e nem sequer se concretizava seu direito à cidadania. Não adiantava ter colheitas fartas se suas terras eram gradativamente usurpadas e se eram abusados como mão-de-obra dos proprietários. Ainda que percebesse não faltarem razões para os índios se revoltarem, o presidente não esclarece quais os possíveis objetivos dos insurrectos: novamente, fala-se do contra o que lutavam, mas obscurece-se o a favor de que. Mathias Assunção vê muitas semelhanças entre o ideário dos bem-te-vis e as revoltas camponesas do Antigo Regime no mundo atlântico, que acatavam a “autoridade central do monarca” ao mesmo tempo em que pediam a “remoção das autoridades locais”. A diferença era que os primeiros “também invocavam o princípio da soberania popular e de cidadania”, ultrapassando, portanto, as intenções dos camponeses.188 De maneira semelhante, o mesmo ocorria com os índios insurrectos da Ibiapaba: sua cultura política agregava as expectativas de períodos anteriores

186

MARTINS, Francisco de Souza. Relatório que apresentou o Exm. Sr. Doutor Francisco de Souza Martins, presidente desta província, na ocasião da abertura da assembleia legislativa provincial no dia 1º de agosto de 1840. Fortaleza, Tipografia Constitucional, 1840, p. 6-7. 187 Ibid., p. 12. 188 ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 186.

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de usufruir de sua condição de cidadãos. Apesar da aparente contradição, “suspirar pelo antigo regime” não os impedia de defender a Constituição e o imperador. Mas, se a luta dos rebeldes era para que dom Pedro II assumisse definitivamente o trono, sem a interferência de regentes e livre para defender os direitos constitucionais do povo, os rumos do movimento mudaram com a chegada, em agosto, das notícias da antecipação de sua maioridade. O “golpe” – conduzido sem votação no Legislativo – foi, segundo Marco Morel, “uma solução ansiada por grupos dirigentes que, assim, buscavam retomar a coesão perdida” e a “restauração da plenitude monárquica”.189 O fato era também esperado pelas classes populares e produziu, inclusive, “perplexidade entre os rebeldes”. De acordo com Mathias Assunção, a mudança no cenário nacional levou muitos bem-te-vis a reavaliar a situação. Para a segunda metade de 1840 o autor percebeu uma “nítida mudança de tom nas cartas rebeldes”, por meio das quais vários consideravam abandonar o movimento ou até mesmo mudar de lado. Com o governo dos regentes chegando ao fim, o aferro dos combatentes perdia o sentido, principalmente após o anúncio de anistia aos que se rendessem também em agosto.190 No Ceará isso é perceptível pela escassez de registros sobre os conflitos no segundo semestre de 1840. Em referência aos índios, encontrei apenas um ofício do ministro da Justiça Antônio Paulino Limpo de Abreu ao novo vice-presidente do Ceará do mês de outubro. Segundo o ministro, já que os revoltosos diziam “obedecer à S. M. o Imperador, e fazer guerra aos que em Seu Augusto Nome governavam”, era necessário comunicar-lhes a declaração da maioridade do rei e que ele já governava “na forma da Constituição”. Abreu também recomendou que fossem informados de que um dos primeiros atos do soberano havia sido “perdoar a todos os seus súditos que a essa ocasião tenham cometido crimes políticos e estavam compreendidos neste indulto, uma vez que [depusessem] as armas”.191 Mais uma vez a figura do monarca apresentava-se aos índios como um benfeitor generoso, mas o destaque do ministro para o funcionamento “constitucional” do governo de dom Pedro II revela a importância desta contrapartida para os rebeldes. O perdão aos indígenas mediante a deposição das armas, portanto, passava a ser viável porque seu estatuto de cidadãos podia ser respeitado e efetivado. Suas ações armadas, entretanto, não deixaram de ser consideradas criminosas por terem desrespeitado as autoridades constituídas, mesmo 189

MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840), p. 68. Cf. OLIVEIRA, Maria Amélia Freitas Mendes de. A balaiada no Piauí, p. 23. DIAS, Claudete Maria Miranda. Balaiada, p. 74. DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos sociais do século XIX, p. 203. 191 De Antônio Paulino Limpo de Abreu ao vice-presidente do Ceará. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1840. APEC, MN, MJ, livro 38. 190

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anistiadas por um imperador benévolo. Menos explícita no texto de Abreu é a consciência do governo central de que, sem a antecipação da maioridade, nem a Balaiada ou outras revoltas do período poderiam ser controladas. O segundo semestre de 1840 seguiu com poucas referências aos índios insurgentes em território cearense, indicando que muitos possivelmente cederam às propostas do governo central diante das mudanças no cenário político nacional. Entretanto, novos conflitos estouraram no final deste ano. Em dezembro de 1840 já circulavam notícias de um “princípio de revolta no Ceará”, o que poderia, segundo o presidente do Maranhão Luis Alves de Lima (o futuro duque de Caxias), “reanimar o espírito da revolta nesta província, onde os habituados à rapina estão sempre prontos a seguir a quem a isto os conduza”.192 Lima repetiu dois argumentos comuns utilizados pelos governos provinciais à época: o caráter criminoso da ação dos insurgentes e a fácil cooptação de uma população mentalmente incapaz. O presidente não procurou refletir, contudo, quais seriam os motivos para que os habitantes da Ibiapaba voltassem às manifestações violentas. No Piauí e no Maranhão a luta continuara após a anistia de agosto de 1840, muito por conta dos soldados que desertavam das tropas legais pelas péssimas condições em que viviam. Com o fechamento do cerco em diferentes regiões destas províncias e o recrudescimento da violência, em janeiro de 1841 já era anunciado o fim da Balaiada em seus territórios.193 Segundo Mathias Assunção, apesar dos apelos dos insurrectos para que houvesse um cessar-fogo, “na sua última fase a guerra assumiu proporções de genocídio da população ‘cabocla’ por parte das forças da legalidade”. Mas “por que o núcleo duro dos rebeldes não se entregou”?194 Assunção acredita que muitos eram conscientes de que a “aproximação com os escravos punha ainda mais entraves a um perdão por parte da legalidade”. 195 A convivência com cativos fugidos também ocorrera nas Frexeiras, mas parece não ter impedido que a anistia prometida aos índios tivesse ocorrido com aparente tranquilidade até, pelo menos, dezembro de 1840. Em fevereiro de 1841, o então presidente do Ceará José Martiniano de Alencar – novamente à frente do governo – comunicou a Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque a presença na província dos líderes rebeldes Domingo Ferreira de Veras e o preto Antônio de 192

De Luís Alves de Lima e Silva a Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque. São Luís, 5 de janeiro de 1841. AN, OG, cód. 972, vol. 1, p. 26V-27. 193 Cf. OLIVEIRA, Maria Amélia Freitas Mendes de. A balaiada no Piauí, p. 23. DIAS, Claudete Maria Miranda. Balaiada, p. 84. DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos sociais do século XIX, p. 203. 194 ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o Imperador”, p. 319. 195 Ibid., p. 317-320.

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Souza Cabral. Segundo Alencar, eles haviam sido responsáveis por reunir “as grandes forças rebeldes no lugar Frexeiras”, que seria propriedade de Veras. Muitos revoltosos não haviam se entregado há mais tempo “temendo que algumas atrocidades se praticassem contra eles, de que infelizmente alguns exemplos houve, dados por oficiais das forças da legalidade”. O presidente julgava justa a compaixão do imperador com os insurrectos, já que haviam lutado em seu nome. O “pensamento político único” dos insurgentes era “um expressivo amor à sagrada pessoa do soberano e muita adesão a seu governo, como composto dos homens que trabalharam pela sua maioridade, pois dizem eles que quando pegaram em armas foi só para fazer com que S. M. I. subisse ao trono, persuadidos brigavam contra o partido que se opunha a que o imperador entrasse no governo do Estado. A alguns ouvi dizer que se achavam pagos de todas as fadigas e inconvenientes por que haviam passado, uma vez que viam a seu monarca no trono, único alvo a que se dirigiam seus esforços”

O próprio preto Cabral, natural do Maranhão, confidenciara a Alencar que desejava “lançar-se aos pés de S. M. I. e ter o gosto de ver ao seu soberano por quem, diz[ia] ele, tantas vezes arrisc[ara] sua vida”. Na visão do presidente, porém, sua presença no Ceará era perigosa, “pois é inegável que no oeste desta província, onde [fora] o teatro de suas façanhas, tem uma grande ascendência sobre os índios e a gente de sua cor”, de maneira que ainda poderia reunir “muitos homens capazes de pegar em armas”.196 Alencar foi um dos únicos governantes a tratar por “pensamento político” o posicionamento dos rebeldes, talvez por sua experiência com as classes populares durante as revoltas liberais que protagonizara. O entendimento da postura dos insurrectos e o diálogo travado com eles era também um reconhecimento que a nova ordem política nacional interessava a todas as partes envolvidas, possibilitando reinstaurar a “paz provincial” de que se orgulhara em seu mandato anterior. Sabia, entretanto, que ainda havia alguns entraves a superar. Índios e outros rebeldes viam com muita esperança o governo definitivo do imperador de quem eram tão devotos: a aclamação de dom Pedro II representava a vitória de seu movimento. Seus inimigos, contudo, não eram apenas os opositores à maioridade, mas também os que contra eles agiram com violência. Um retorno da ação radical por parte dos índios da Ibiapaba era algo iminente na visão de Alencar, especialmente por conta do que haviam sofrido e do que ainda poderiam sofrer. A precaução do presidente em livrar os Segundo José Martiniano de Alencar, Antônio de Souza Cabral embarcara com destino à Corte “por sua muito livre vontade como passageiro do Estado no vapor São Sebastião”. Cf. De José Martiniano de Alencar a Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque. Fortaleza, 7 de fevereiro de 1841. APEC, GP, CO EX, livro 41, p. 40-40V. 196

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indígenas de possíveis “más influências”, portanto, não teria muita serventia se fosse executada sem atentar para a convivência com outros setores mais abastados e para outras demandas presentes desde o início do movimento. Em julho de 1841, o juiz de Parnaíba José Gomes de Araújo alertou o então presidente do Ceará José Joaquim Coelho acerca de uma “porção de rebeldes da província do Maranhão” que teriam sido “acossados pelas autoridades daquela província, ou recrutamento, ou por andarem amoambados [sic] sem se apresentarem por gozarem da anistia que tão caridosamente lhe concedeu o nosso amável monarca”. Os fugitivos estariam se refugiando em Viçosa, São Pedro e outras imediações da fronteira do Ceará com o Piauí, e estariam atacando legalistas. Para o juiz, caso aparecesse um “malvado que os influa e dirija, eles estarão prontos a entrarem novamente na vida” de insurreição.197 Os temores dos antigos revoltosos continuavam já que, diante das violências, a “caridade” do soberano pouco lhes servia. Por mais que declarassem que o trono imperial era a única razão pela qual lutavam, este deveria representar, na prática, um amparo contra os abusos de seus verdadeiros inimigos: as autoridades locais. Mas, se tal proteção não fosse efetiva, as razões para a insatisfação poderiam vir novamente à tona. Segundo Mathias Assunção, a vitória das tropas da legalidade e a “pacificação” do Maranhão e do Piauí foi, na verdade, uma “paz de cemitério”.198 Como lembra Marco Morel, em 18 de julho ocorreu a pomposa coroação de dom Pedro II no Rio de Janeiro. “Ao mesmo tempo, a cerca de três mil quilômetros dali, o coronel Luís Alves de Lima e Silva erguia a espada do Império contra os rebeldes da Balaiada, em sua maioria escravos, índios e pobres livres. Os caminhos da nação ainda seriam árduos”.199 Tal futuro tenebroso também era sentido pelos pobres do Ceará. As notícias que receberam dos refugiados do Maranhão não eram necessárias para que alguns habitantes da Ibiapaba se indignassem mais uma vez. A tão esperada posse do trono imperial por dom Pedro II não impediu que os recrutamentos, estopim para o início da Balaiada, voltassem a ser utilizados pelos governos provinciais, como revelou o juiz de Parnaíba. Também em julho de 1841 o presidente Coelho recebeu notícias sobre movimentações de “grupos de índios existentes na serra, principalmente nas matas do Buriti”.200 Em agosto, ordenou ao major Joaquim Ribeiro da Silva que retomasse as conscrições que haviam sido suspensas na 197

De José Gomes de Araújo a José Joaquim Coelho. Parnaíba, 14 de julho de 1841. Apud: DOCUMENTOS sobre a Balaiada, p. 262. 198 ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 194. 199 MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840), p. 69. 200 De José Joaquim Coelho à câmara de Vila Viçosa. Fortaleza, 22 de julho de 1841. APEC, GP, CO EX, livro 48, p. 139V.

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Ibiapaba. Entre os índios do Buriti, que fizesse o recrutamento “com toda a aparência de justiça, prendendo, sobretudo, os que vivem ociosos, afim de não se persuadirem que lhes faz guerra em massa e por seus anteriores crimes no Maranhão e no Piauí”. O objetivo do presidente era que, gradativamente, fosse “desaparecendo daí essa gente avezada aos atentados que já ameaçou a tranquilidade dessa comarca, e pode para o futuro voltar a incomodar-nos”.201 Terminada a revolta e coroado o imperador, as políticas de controle social no início da década de 1840 voltaram a ser as mesmas utilizadas no decênio anterior, destruindo a esperança de muitos pobres livres. As ações orquestradas por Coelho se assemelhavam bastante com o que Vânia Moreira apontou para os recrutamentos no Espírito Santo a partir dos anos 1830 e que continuaram em meados do século XIX.202 Mas na Ibiapaba pósBalaiada, além do combate aos vadios – ou seja, à população pobre não produtora de excedentes agrícolas –, a presidência pretendia evitar o risco de novos distúrbios, destinando os índios às forças armadas. O que Coelho não percebia é que não havia como executar recrutamentos de forma tranquila, muito menos aparentando justiça, e que era justamente contra esta prática que os índios haviam se revoltado. O resultado das ações do governo provincial foi previsível. Em seu relatório apresentado à Assembleia provincial em setembro de 1841, o presidente Coelho contou que “alguns índios do Buriti, urdidos pelo temor do recrutamento a que tenho mandado proceder, em virtude de ordens mui positivas que recebi da Corte, reuniram-se em magotes armados em rumo de Vila Viçosa, mas foram logo dispersos”.203 A reação violenta dos recrutados já não tinha a mesma dimensão de anos anteriores, talvez por ter sido executada de maneira mais cuidadosa, mas, certamente, porque aí contava com o amparo da Corte, governada pelo próprio imperador. A dispersão a que se referiu Coelho não era suficiente. Em 8 de outubro de 1841, o próprio presidente respondeu a câmara de Vila Nova (atual Guaraciaba do Norte) sobre o temor da povoação ser “invadida pelos magotes de índios, outrora rebeldes no Maranhão e no Piauí”, e que neste período “infesta[vam] a vizinhança”. Para batê-los, remeteu apenas 10 praças, acreditando que “esta pequena força” poderia “intimidar os malvados” e “neutralizar201

De José Joaquim Coelho a Joaquim Ribeiro da Silva. Fortaleza, 11 de agosto de 1841. APEC, GP, CO EX, livro 48, p. 171V. 202 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Caboclismo, vadiagem e recrutamento militar entre as populações indígenas no Espírito Santo (1822-1875). Diálogos Latinoamericanos, n. 11, 2006, p. 111-118. 203 COELHO, José Joaquim. Relatório recitado pelo Ex.º Senhor Brigadeiro José Joaquim Coelho, presidente e comandante das armas da província do Ceará, na abertura da Assembleia Legislativa Provincial, no dia 10 de setembro de 1841. Recife: Typographia Santos e Companhia. 1842.

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lhes as más intenções”.204 A Alexandre Mourão, que lideraria este destacamento, ordenou que defendesse a vila “de qualquer agressão dos índios que do Piauí e do Maranhão emigraram para essas imediações”. Seu objetivo seria “capturar o maior número deles para recrutas”, conduzindo a ação “com toda a moderação, prudência e tolerância”.205 Na verdade, os índios do Buriti não eram “do Maranhão e Piauí”. Vinham das Frexeiras, próxima à fronteira destas províncias com a do Ceará. Como era comum acontecer, dificilmente a “moderação” seria seguida à risca por Mourão, ainda mais sabendo que o grupo havia praticado os atos tidos por “criminosos”. Os índios não ofereciam grandes preocupações para o governo porque eram poucos, mas não podiam deixar de ser recrutados, destino daqueles desprovidos de “importância” socioeconômica, para que se evitasse qualquer futura turbulência. Como vimos, chegaram de fato a ameaçar uma marcha para Viçosa – talvez visando recuperar um espaço que já havia sido deles – mas fugiram por cerca de 80 quilômetros até as imediações de Vila Nova. Como notou Maico Xavier, utilizaram-se de recurso recorrente para se livrarem do recrutamento,206 presente, inclusive, na memória de muitos remanescentes do “tempo do pega” entrevistados por Mathias Assunção.207 Os índios não puderam escapar por muito tempo, como vimos no capítulo 5, pois foram recrutados para a Armada imperial e remetidos para a Corte em 1842, acompanhados de seu líder, Antônio Marques da Costa. Segundo o presidente Coelho, Costa era o “chefe da rebelião do Buriti”, comandara “os índios em São Pedro quando fizeram sete mortes”, estivera no “fogo de Mumbaba” e seduzira “os índios de Tapera Acima”. 208 Presos na condição de criminosos, o destino nas forças armadas para aqueles que lutavam contra os recrutamentos forçados parecia uma ironia, como observou Silvana Jeha.209 Representava, entretanto, as condições por meio das quais se construiu a cidadania brasileira a partir da consolidação do Estado nacional.

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De José Joaquim Coelho à câmara de Vila Nova. Fortaleza, 8 de outubro de 1841. APEC, GP, CO EX, livro 49, p. 112V. 205 De José Joaquim Coelho a Alexandre da Silva Mourão. Fortaleza, 8 de outubro de 1841. APEC, GP, CO EX, livro 49, p. 113. 206 XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social, p. 160. 207 ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 178-181. 208 De José Joaquim Coelho. Fortaleza, 1842. AN, XM 14. Apud: JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar: indígenas na Armada Nacional e Imperial do Brasil. Anais do VI Encontro Estadual de História – ANPUH/BA, 2013, p. 2. 209 JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar, p. 2.

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Mapa 8: Locais de atuação dos índios do Ceará na Balaiada

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Piauí disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Piauí

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Ao longo deste capítulo, analisamos a atuação dos índios no Ceará em três momentos temporalmente bastante próximos, mas, muito distintos. Pudemos perceber que o recurso das armas era uma importante forma de manifestação política da população indígena desde o período colonial e atravessou a separação política brasileira. A característica comum de defesa da Coroa – de Portugal ou do Brasil – presente no posicionamento das diferentes comunidades e lideranças indígenas poderia até encontrar variações em meio à heterogeneidade dos e entre os grupos. Contudo, a fidelidade às monarquias era patente para a esmagadora maioria dos índios e em suas atuações armadas, porque a figura do rei sempre havia representado proteção. A caracterização dos inimigos dos índios, apesar de aparentemente confusa, agregava todos aqueles que ambicionavam a descentralização política do soberano – fossem eles liberais, portugueses, corcundas, brancos ou “membros de famílias importantes” – e, consequentemente, a usurpação das terras, força de trabalho e liberdade indígena. Tornar-se um cidadão que usufruísse plenamente de sua liberdade, para os índios, transfigurou-se em “utopia” ou mera categoria jurídica. Em pleno período regencial, lutavam com afinco pelo rei porque sua cultura política, com raízes plantadas no Antigo Regime, ainda remetia à sociedade dividida em corpos equilibrados por uma cabeça real. Conheciam também

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o novo momento constitucional que, com seus arcos e flechas, ajudaram a construir, e por isso percebiam a si mesmos como merecedores das prerrogativas de cidadãos livres que a Constituição lhes garantia. Mas as elites proprietárias se sobrepuseram, triunfando sobre a antiga ambição colonial do mando quase ilimitado e a exclusão dos pobres da política ou do exercício da cidadania. Como afirma Marco Morel, a “engrenagem nacional centralizadora, modernizante e defensora da ordem social, urdida por agentes históricos, incorpora e homogeneíza os multifacetados rebeldes, não somente eliminando-os, mas também digerindo-os e assimilando os pedaços partidos, na busca de uma nação próspera e desigual” 210

De “intrépidos e valorosos”, “fundamentais para a manutenção da ordem”, os antigos soldados indígenas passaram a ser criminosos sujeitos ao recrutamento no país pelo qual derramaram o sangue. No recém-nascido Brasil independente, “o arco e a flecha” deveria ser apenas um brasão.

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MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840), p. 65-66.

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CONCLUSÃO O Diretório dos Índios e a Carta Régia de 1798 são dois marcos da política indigenista lusitana na segunda metade do século XVIII que tiveram reflexos importantes nos oitocentos. As duas leis visavam inserir os grupos indígenas ao corpo social português na condição de vassalos livres. O Diretório, promulgado no reinado de dom José I e no ministério de Pombal, continuou a ser utilizado no multifacetado reinado joanino, convivendo com ações mais integradoras ou ofensivas, a depender da realidade de cada capitania. Seu utópico projeto de inserção dos índios na sociedade colonial permaneceu como uma das vertentes do governo de dom João VI, declarando-os livres, mas limitando a liberdade por meio da tutela, do trabalho compulsório e da presença de extranaturais em suas vilas. Por isso, a pretensa igualdade dos índios na sociedade portuguesa, ansiada pelo Diretório, nunca aconteceu. Entretanto, no auge da crise do Antigo Regime, esta população era reconhecida como importante pela Coroa e pelos seus fieis agentes administrativos na América. A função econômica dos índios no Ceará não era a mesma dos que viviam no norte do Brasil, o que explica, em parte, as diferenças na legislação vigente. A Carta Régia de 1798, que aboliu o Diretório, podia ser observada em regiões que necessitavam dos índios não mais submetidos à tutela e, portanto, que estivessem mais "livres" para atuar no povoamento de fronteiras internas e na proteção das externas. No caso cearense, com poucas áreas a serem exploradas, o Diretório era ideal para os anseios de desenvolvimento da lavoura algodoeira e de outras culturas. Havia outras razões para as distintas situações legais. No Ceará, os governadores do início do século XIX enfatizavam a necessidade de se limitar a liberdade dos índios por conta da dependência em relação à sua força de trabalho e por serem ainda “pouco civilizados”. Percebemos nos exemplos analisados nos capítulos iniciais da tese que a política indigenista muitas vezes traçava caminhos de acordo com a agência indígena, cujas prioridades frequentemente destoavam do governo da capitania e da Coroa. Apesar de todas as proteções contra eventuais abusos, a monarquia lusitana nunca atendeu aos anseios dos índios por maior autonomia em suas vilas. Além disso, militarmente, não havia dúvidas de que os indígenas eram imprescindíveis para a defesa daqueles domínios, tanto pela força dos arcos e flechas quanto pela fidelidade dos soldados indígenas. Desde o Diretório, as lideranças militares eram percebidas como peças fundamentais para o estabelecimento dos desígnios da Coroa entre os índios. Em

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contrapartida, os oficiais indígenas, amparados na lei, operacionalizavam o serviço das armas para reivindicar benefícios para suas comunidades e manifestar seus posicionamentos diante das transformações políticas pelas quais passaram o Ceará e o Brasil. A guerra e as patentes eram importantes caminhos por meio dos quais as lideranças e seus subordinados lutavam, em nome da Coroa, pela manutenção de suas prerrogativas. Os índios conheciam bem a ambiguidade de sua condição, e era a partir dessas nuances que agiam politicamente. Seus interesses muitas vezes se relacionavam a reivindicações de mais autonomia, mas geralmente tinham a ver simplesmente com a necessidade de garantir o respeito às mercês concedidas pela Coroa, registradas nas leis, como retribuição aos históricos serviços das armas. A liberdade, a mais importante das prerrogativas, nunca deixou de ser lembrada em todas as ações e solicitações e, por isso, dom José I era frequentemente referido nas petições relativas a esse tema. Contudo, mesmo tendo promulgado as leis de liberdade, este monarca instituiu o Diretório que, junto com prerrogativas políticas, trouxe a presença de brancos nas vilas de índios e criou o cargo de diretor. Por isso, a atuação política indígena, na grande maioria das vezes, não se dirigia contra a monarquia, mas contra os “extranaturais”, que geralmente não respeitavam sua condição de súditos livres e ou as patentes militares de suas lideranças. Exemplos disso são os diversos pedidos dos índios para a abolição dos cargos de diretor ou do próprio Diretório e de expulsão dos intrusos de suas terras, ao mesmo tempo em que participavam obstinadamente de guerras em nome da Coroa lusitana. Ciente disso, os reis davam os devidos retornos a vassalos tão dedicados, contanto que as medidas que beneficiassem os indígenas não atrapalhassem seu disciplinamento e a produção econômica da Colônia. Mesmo assim, era na monarquia que os índios viam proteção e reconhecimento, e eram amparados em tais premissas que se manifestaram durante a separação política brasileira. O liberalismo e o constitucionalismo português ameaçavam sua condição de vida, na medida em que subordinavam o poder dos reis aos intentos das elites locais. Com o Brasil independente, por meio de um processo no qual lutaram com seus arcos e flechas, a posição da Coroa poderia ser garantida juntamente com suas prerrogativas. A permanência do Diretório no Ceará durante o primeiro reinado, portanto, foi consequência da relação de dom Pedro I com esta população reconhecidamente fiel e economicamente importante. A manutenção da lei, neste sentido, significava a inviolabilidade de conquistas adquiridas pelos índios desde, pelo menos, o reinado de dom José I e o ministério do marquês de Pombal, como a posse das terras e cargos políticos. A Constituição de 1824, em si, não alterava essa realidade. Por outro lado, o Diretório vigente era sinal tanto do período de

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redefinições políticas quanto da operacionalização do sistema legislativo do Antigo Regime nesse novo contexto liberal, em uma sociedade ainda corporativa. O medo indígena de perda de direitos e prerrogativas se concretizou no período regencial.1 Ainda que não tivessem sido atendidos inteiramente no que solicitavam durante o período joanino, as perdas posteriores foram tamanhas que provocaram a nostalgia tantas vezes expressada por eles. Pouco antes da abdicação, dom Pedro I promulgou a lei de 1828 que, em teoria, limitava o acesso dos índios aos cargos de câmara e abolia leis anteriores referentes aos municípios, como era o caso do Diretório. Sofrendo pressões das elites locais, o imperador deixou o trono para o seu filho. Foi neste contexto que as patentes de oficiais de ordenanças foram extintas e que se decidiu abolir a antiga lei indigenista do século XVIII no Ceará. Alguns anos depois, a serviço de proprietários carentes de mão-de-obra barata, o legislativo cearense decidiu reativar o Diretório, sem, contudo, restaurar as prerrogativas indígenas do tempo dos reis portugueses e nem fornecer mecanismos jurídicos realmente comprometidos com a manutenção do pouco que lhes restava. Vimos, portanto, que a permanência do Diretório no Brasil tinha motivações diferentes, a depender da época ou da região. No Ceará do período joanino, a vigência da lei fazia parte dos planos da Coroa, não destoando do funcionamento legislativo da monarquia portuguesa. No primeiro reinado, tinha a ver, como disse acima, com a utilização de leis antigas nesse novo contexto e com os interesses do rei em manter os benefícios indígenas e o usufruto de sua mão-de-obra. O que se seguiu – a abolição e a posterior reativação – era decorrente dos interesses das elites cearenses. Para muitos índios do Ceará, o sentido da continuidade da vigência do Diretório mudou com o tempo: no reinado de dom João VI, significava limitações à sua condição de vassalos livres; no primeiro reinado, era sinônimo de um tempo bem mais favorável; em 1843, mais um mecanismo de exploração. Quando eram vassalos do rei de Portugal, a reivindicação por respeito a suas terras e por uma liberdade efetiva e sem tutela aparecia até mesmo em situações militares, seja por meio de requerimentos encabeçados por oficiais de ordenanças ou quando lutavam em conflitos armados. Já como súditos de dom Pedro II, queriam ser livres para ter, pelo menos, suas terras, uma cidadania na prática e uma igualdade que não fosse apenas na lei. 1

A este respeito, é curioso o exemplo analisado por Francieli Marinato do capitão indígena Francisco José Pinto, que teria morrido de desgosto em 1833 “pela pouca conta que dele se fazia em razão de ser índio”, mesmo sendo cidadão. Cf. MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce (Espírito Santo, 1824-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2007, p. 223.

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Durante todas essas transformações, as atuações indígenas diante da legislação e pelas armas se davam a partir da luta pela manutenção de suas prerrogativas, limadas com a consolidação do Brasil independente. Na Confederação do Equador, os índios lutaram para que seus inimigos não se apossassem definitivamente no poder; após o período regencial, isso foi inevitável. Por conta de ardis legislativos, os indígenas viram sua nova condição de cidadania se transformar gradativamente em algo que, na prática, poucas vezes se concretizava. Perderam cargos políticos, patentes militares e proteção, tanto para suas terras quanto contra a exploração de sua força de trabalho. A conjuntura de recrutamentos forçados que culminou com a Balaiada era um exemplo de que ser cidadão não garantia que sua liberdade seria respeitada. A nostalgia dos índios da década de 1840 em relação ao Diretório e ao “rei velho” não era mera ficção de sua memória nem tampouco esquecimento da exploração presente em suas histórias. Ainda que a política joanina com os botocudos tenha sido marcada pela violência, para as comunidades indígenas do Ceará a situação era bastante diferente, mesmo com os gentios que habitavam esse território. A fidelidade que os índios efetivamente demonstravam em relação a dom João VI estava baseada na mutualidade presente em suas culturas históricas e políticas. Além disso, quando se referiam a algum monarca, geralmente iam até dom José I, por meio de quem haviam garantido sua liberdade. Em cada um desses momentos, os posicionamentos indígenas não se davam por puro apego à ideologia realista: eram frutos de suas próprias experiências. As expectativas de reciprocidade dos índios no Ceará em relação à Coroa estiveram presentes em 1817 – concretizaram-se com a isenção de impostos em 1819 – e manifestaramse em todos os conflitos da primeira metade do século XIX. O curto período da Confederação do Equador, em que as lideranças indígenas aderiram aos liberais, não anulou esta tendência: em primeiro lugar, a deposição da figura do monarca não era, necessariamente, a intenção dos combatentes. Em segundo, tal “exceção” só ocorreu porque, nesta conjuntura específica, o apoio a Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras parecia ser o melhor caminho em prol da mais cara das prerrogativas: o pleno respeito à condição de cidadãos livres. Já na Balaiada, a coroação de dom Pedro II representou um trunfo para muitos combatentes e uma possibilidade de alento diante das injustiças das autoridades. As especificidades do Ceará – uma economia essencialmente agrícola com poucas regiões a povoar, com elites locais em disputas e ambiciosas por terra e trabalho e uma significativa população de índios e mestiços – podem iluminar a complexidade dos processos de crise do Antigo Regime português e de formação do Estado nacional brasileiro, sem estar

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necessariamente desvinculada de questões mais gerais. De igual forma, fornecem elementos para conhecermos a construção política desses povos, por meio de suas experiências em lidar com as leis e em guerrear por benefícios para suas comunidades.

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Passando aos dias de hoje, presenciamos no Brasil um contexto indígena marcado por uma série de conquistas. Suas garantias constitucionais, enquanto cidadãos plurais, plenos em direitos e capacidade e cuja organização social deve ser preservada, são relativamente recentes.2 A partir da Constituição Federal de 1988, os paradigmas conceituais e jurídicos da política indigenista se alteraram, extinguindo-se a figura da tutela e reconhecendo-se a autonomia e os direitos dos povos indígenas do país.3 Em decorrência desse contexto, é crescente o número de índios nas disputas eleitorais no Brasil, inclusive no estado do Ceará.4 Por outro lado, presencia-se a continuidade do pouco apoio no cenário político. Os índios ainda lutam contra ameaças vindas de setores do Congresso Nacional que tentam criar mecanismos legais para atentar contra a demarcação de suas terras.5 No que diz respeito aos territórios indígenas nas fronteiras do país, a questão da defesa e da presença militar é especialmente sensível. Apesar da tensa relação com os índios ao 2

Cf. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, capítulo VIII (Dos índios), art. 231-232. Disponível em: . Acesso em: 3 de outubro de 2013. 3 POLÍTICA indigenista no Brasil: avanços e desafios, p. 2. Disponível em: . Acesso: 11 de outubro de 2016. De acordo com o Programa de Promoção e Proteção dos Direitos dos Povos Indígenas, o “conceito de proteção não implica em tutela, rejeitada pelo texto constitucional de 1988, e que pressupunha uma incapacidade dos povos indígenas e uma natural condição assimétrica entre os superiores capazes (os ocidentais tutores) e os incapazes (os indígenas tutelados). A "proteção" diz respeito, sim, à garantia contemporânea de que os direitos dos povos indígenas não sejam violados por uma relação assimétrica de poder, historicamente observada entre esses povos e a sociedade envolvente, implicando em graves ameaças à integridade física e cultural dos índios e sobre suas terras tradicionalmente ocupadas”. Cf.. Ibid., p. 5. 4 Nas eleições municipais de 2016, o número de vereadores indígenas aumentou 30%. No Ceará foram eleitos Weibe Tapeba, em Caucaia, Erivaldo Carvalho, em Barroquinha, e Vicentinho Potiguara, o mais votado de Monsenhor Tabosa. Cf. CASTILHO, Alceu Luís. Número de vereadores indígenas aumenta 30%; PT e PSDB elegem mais, outubro de 2016. Disponível em: . Acesso em: 11 de outubro de 2016. Idem. Candidatos indígenas se elegem nas cinco regiões do país, outubro de 2016. Disponível em: . Acesso em: 11 de outubro de 2016. 5 Como é o caso da PEC 215, que pretende transferir ao poder legislativo – composto em grande parte por latifundiários – a competência na demarcação de territórios de comunidades tradicionais. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil ainda luta pelo seu arquivamento. Cf. SOUZA, Oswaldo Braga de. PIRES, Victor. “PEC 215 não é prioridade na minha agenda”, diz presidente da Câmara. Instituto Socioambiental, agosto de 2016. Disponível em: . Acesso em: 11 de outubro de 2016.

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longo dos séculos XIX e XX,6 o exército promulgou diretrizes positivas nos últimos anos acerca do relacionamento com as comunidades.7 É cada vez maior o número de índios nas fileiras militares, tendo em vista sua importância na vigilância de regiões pouco povoadas da Amazônia.8 Certamente, o debate sobre a presença de bases das forças armadas em terras indígenas necessita de maior aprofundamento, atento às ocorrências de desrespeito à autonomia e aos interesses dos índios9 e às dificuldades de seu acesso a cargos do oficialato.10 No fundo de todas as lutas indígenas – no exército, nas terras ou no Congresso Nacional –, está o combate contra o desrespeito e a incompreensão sobre seu lugar na sociedade brasileira. As motivações que impulsionaram essa pesquisa partiram da constatação de que os povos indígenas são, ainda hoje, ilustres desconhecidos para muitas pessoas. Apesar de tal distanciamento, são notáveis os avanços das pesquisas nas universidades e a presença cada vez maior dos índios em espaços como a mídia e os meios de comunicação. Suas associações cresceram em número e atuação, e novas lideranças surgiram 11 – como professores, pesquisadores, políticos ou oficiais do exército12 –, resultantes de vitórias conseguidas por seus movimentos nos últimos anos. Em meio a esta conjuntura surgiram os incontáveis frutos da nova forma de analisar os índios na história proposta, principalmente, pelo saudoso John Manuel Monteiro,13 possibilitando novas pesquisas e o nascimento de centros de estudos e investigação espalhados pelo Brasil. Todavia, faz-se cada vez mais necessário que tais produções alcancem 6

Cf. MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais. SILVA, Edson Hely. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1950-1988. Tese (doutorado) – Universidade de Campinas, 2008. MÉLEGA, Roberta. Uma crônica da relação índios e militares na Cabeça do Cachorro. Disponível em: . Acesso em: 11 de outubro de 2016. CAMPOS, André. Treinados pela PM, índios soldados reprimiam seus pares. Última Instância, 2013. Disponível em: . Acesso em: 11 de outubro de 2016. 7 Cf. EXÉRCITO define diretrizes de relacionamento com os índios. Disponível em: . Acesso em: 11 de outubro de 2016. 8 Cf. KAWAGUTI, Luís. Indígenas ajudam a defender fronteira do Brasil. BBC Brasil, agosto de 2012. Disponível em: . Acesso em: 11 de outubro de 2016. 9 Cf. RICARDO, Beto. SANTILLI, Márcio. Povos indígenas, fronteiras e militares no Estado democrático de direito. Interesse Nacional, ano 1, n. 3, 2008. 10 Cf. KAWAGUTI, Luís. Prestígio e dinheiro atraem índios para a carreira militar. BBC Brasil, agosto de 2012. Disponível em: . Acesso em: 11 de outubro de 2016. 11 Cf. PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Bons chefes, maus chefes, chefões: elementos de filosofia política ameríndia. Revista de Antropologia (USP), v. 54, n. 02, 2011, p. 876. 12 Cf. FERRAZ, Ana. Primeira mulher indígena a se tornar oficial do exército brasileiro. Folha Militar, maio de 2012. Disponível em: . Acesso em: 11 de outubro de 2016. 13 Talvez o exemplo mais importante seja o GT da Anpuh "Os Índios na História", criado em 2009 durante o XXV Simpósio Nacional de História, em Fortaleza.

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setores ainda resistentes na academia e atravessem os muros das universidades, chegando tanto aos índios quanto aos não-índios. A busca por conhecer o passado indígena pode ser um exercício de convivência e respeito em meio a um mundo tão intolerante, mas também um ato de "olhar no espelho". Compostos de distanciamentos cruéis e esquecimentos convenientes para alguns, "nós" e eles – esses índios de 200 anos atrás – compartilhamos muito mais caminhos convergentes do que imaginamos. Falar dessas pessoas, cujos descendentes atuais são vistos de maneira farsante e quase animalesca como "extintos", talvez seja um caminho para que a tal "sociedade envolvente", o mundo majoritário dos "outros", responda à pergunta: "quem somos nós”?

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FONTES E BIBLIOGRAFIA

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Arquivo Público do Estado do Piauí (APEPI) Série Independência (SI): livros 4, 7, “sem número” [correspondências recebidas], “sem número” [ofícios do governador das armas] Série Balaiada (SB): livros 6, 11, 12 e “sem número” Biblioteca Nacional – Seção de Manuscritos (BN) Códices: C-199, 14 / C-750, 29 / I-28, 8, 68 / I-28, 9, 13 / II-32, 23, 3 / II-32, 23, 63 / II-32, 24, 9

FONTES IMPRESSAS

LEGISLAÇÃO

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