Na terra dos lírios azuis: política colonial, relações interétnicas e a \"questão sul-africana\" em Jess (1887), de H. Rider Haggard

May 23, 2017 | Autor: Evander Ruthieri | Categoria: South African Literature, South African history, Rider Haggard, Colonialism and Imperialism
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Na terra dos lírios azuis: política colonial, relações interétnicas e a
"questão sul-africana" em Jess (1887), de H. Rider Haggard

Evander Ruthieri S. da Silva
Doutorando em História
Universidade Federal do Paraná
Bolsista CAPES
[email protected]

Resumo: A mobilização da literatura como fonte de subsídios para as
pesquisas históricas associa-se a um momento de expansão das abordagens que
os historiadores dispõem em seu afã de investigar a experiência humana no
tempo pretérito. Esta perspectiva encontra-se relacionada à capacidade das
narrativas literárias em expressar múltiplas vias de significação e
interpretação do mundo social, portanto, decorre a necessária mobilização
da "operação historiográfica" para conectar textos ficcionais a processos
históricos. Este posicionamento teórico-metodológico, tributário à história
cultural e da cultura escrita, orienta o objetivo e problemática central do
estudo em questão, o qual consiste na análise articulada entre relações
interétnicas e política colonial no romance Jess (1887), do literato
britânico H. Rider Haggard (1856-1925). Gestado a partir das experiências
do jovem letrado junto à administração da Colônia de Natal e na condição de
secretário de uma comissão especial enviada à república bôer do Transvaal,
o romance narra o triângulo amoroso entre um soldado inglês, o Capitão John
Niel, e duas jovens irmãs no Transvaal, a delicada Bessie e a intelectual
Jess Croft, por quem se apaixona durante um cerco militar na guerra sul-
africana de 1880-1881. Por intermédio deste microcosmo de figuras sociais,
Rider Haggard almejou abordar o período de expansão econômico-territorial,
o impacto de políticas imperialistas conflitantes nas relações afetivas e,
simultaneamente, as fragilidades e limitações dos projetos coloniais em
vigência na administração liberal. A análise integra a pesquisa de
doutorado do proponente, a qual almeja o escrutínio de visões
contraditórias e complementares a respeito do território sul-africano,
interpretado pelo romancista enquanto espaço de revitalização política,
unidade e constituição de heróis viris ou aventureiros, mas simultaneamente
de feminilização, ressentimento, declínio imperial e miscigenação racial.


Palavras-chave: África do Sul, história e literatura, Rider Haggard.


A problemática central que compõe a pesquisa de doutorado que ora
apresenta-se consiste no estudo articulado entre figurações de identidade
nacional e relações interétnicas na produção literário-intelectual de Henry
Rider Haggard (1856-1925) com especificidade na formulação de
representações textuais da nação sul-africana, do processo de sua
unificação política e ocupação territorial. Trata-se de uma literatura
ambientada no território sul-africano do final do século XIX, politicamente
dividido entre as colônias britânicas do Cabo e de Natal, as repúblicas
bôeres do Transvaal e o Estado Livre de Orange, além dos protetorados
africanos de autonomia parcial: Bechuanalândia, Suazilândia e Basutolândia.
Esta divisão instável decorre dos impactos das políticas imperialistas no
continente e desdobra-se em constantes embates e negociações entre grupos
europeus e populações africanas[1]. No cerne de tais conjunturas, as
guerras Anglo-Bôer assinalam um momento de tensão nos processos que cercam
os debates a respeito da unificação sul-africana. Os conflitos foram
travados por oficiais britânicos contra fazendeiros bôeres, descendentes de
holandeses e alemães que habitavam o Transvaal e o Estado de Orange,
situação emblemática do que se considera como uma "partilha da África".
A primeira guerra (1880-1881), ocasionada após tentativas de imposição
de uma confederação de estados por parte da administração colonial
britânica, conduz a uma série de batalhas problemáticas para os ingleses
que encerram-se com uma concordata de paz em março de 1881. Os
ressentimentos políticos, intensificados após a fracassada tentativa de
anexação do Transvaal no chamado Jameson Raid (1895), culminam na
deflagração da segunda guerra Anglo-Bôer (1899-1902). Apesar da derrota e
extinção das repúblicas bôeres e da formação da União Sul-Africana em maio
de 1910, estas situações acarretam uma série de ansiedades em meio aos
britânicos com relação à continuidade de seu império. No ínterim, as
denúncias concernentes aos campos de concentração sul-africanos e as
críticas aos sistemas coloniais em vigência na África levam a desavenças
políticas e querelas intelectuais concernentes aos rumos das administrações
ultramarinas. Constroem-se, pela cultura escrita e por meio da imaginação
literária, expressões de sentimentos de perda territorial e desarranjo
político, que urgem parte da intelectualidade a propor figurações de
unidade nacional e imperial.
A estas circunstâncias fáticas, somam-se a relativa polarização entre
ingleses e bôeres, as resistências africanas, notadamente na Guerra Anglo-
Zulu (1879), a constituição de um nacionalismo afrikaner[2], os debates a
respeito da criação de políticas de tratamento às populações nativas e a
efetivação de uma legislação segregacionista no território sul-africano[3],
as quais reverberam nas trajetórias, experiências sociais e produções
culturais de inúmeros letrados envolvidos, direta ou indiretamente, nas
discussões sobre a constituição da unidade política sul-africana,
interligados pelas "estreitas e tensas relações entre intelectuais e
política"[4]. A análise detém-se sobre as experiências coloniais por
intermédio de suas formas literárias de representação dos territórios em
conflito e dos grupos étnicos envolvidos na ocupação - ingleses, bôeres e
africanos - em suas tentativas de constituir "mitos fundadores" ou de
"unidade política", produtores de paradigmas de igualdade e exclusão[5],
nos quais sentimentos de pertencimento nacional ou étnico, identificação
política ou social, desempenham um papel importante nas relações entre
colônia e metrópole.
A temporalidade circunscrita à problemática – as visões díspares e
complementares a respeito do território colonial – está associada à chamada
"questão sul-africana", a qual vincula-se a um processo histórico no qual
as nações europeias lançam-se à corrida imperial[6] com o afã de conquistar
ou subjugar colônias ultramarinas por intermédio de estratégias políticas,
econômicas ou militares. Este entusiasmo intensifica-se entre os ingleses
no último quartel do século XIX, pois passam a deter influência sobre
vastos territórios na Ásia, na África e na Oceania. A historiografia
recente tem demonstrado que a expansão do império britânico serviu de tema
de debate a expressivos setores da esfera cultural e da intelectualidade
oitocentista[7], e se expressa de modo latente ou diretamente manifesto na
literatura oitocentista[8]. Parte desta produção literária visa reforçar a
suposta superioridade anglo-saxônica e naturalizar as distinções entre
europeus e não-europeus, associados a um estado primitivo, e, destarte,
passíveis de serem colonizados e conduzidos ao que então se compreendia
como um ideário de civilização[9]. As distinções étnicas, compreendidas em
termos raciais e explanadas por balizas fornecidas pelo cientificismo
oitocentista de vertente determinista, são mobilizadas pelo pensamento
político para legitimar o que, entre letrados e leitores no final do século
XIX, interpretava-se como um "fardo do homem branco"[10]. Investigar a
extensão destes elementos na escrita de Rider Haggard constitui o cerne do
estudo em questão, para analisar as reverberações de processos macro-
políticos na tonalidade das instâncias individuais, sobretudo na utilização
e na atualização do insidioso e pernicioso discurso biológico do racismo
enquanto artefato capaz de estruturar a política neocolonial[11].
Os fios condutores desta proposição de pesquisa derivam de três
situações emblemáticas na produção historiográfica recente: a)
complexificação das análises sobre as práticas e políticas imperialistas,
as quais, por meio de diálogos com os estudos pós-coloniais, atentam-se aos
tropos discursivos e às narrativas que legitimam ou problematizam as
atuações de sujeitos nas colônias e metrópoles; b) ampliação dos estudos
sobre a história africana no Brasil, pelo "surgimento de inúmeras pesquisas
fora do âmbito da África de colonização portuguesa" graças à "pluralidade e
diversidade das fontes, de objetos e abordagens"[12]; c) acentuado
interesse, por parte da História Cultural, pelas tessituras que ligam as
narrativas literárias a dimensões culturais, políticas e sociais, a partir
de uma concepção ampla de literatura que leva em conta todos os
protagonistas históricos e práticas letradas em torno da experiência
literária. Desta perspectiva, que considera a ficção enquanto elemento
efetivamente capaz de mobilizar formas de pensar e agir, parte a
necessidade de cercar a espessura do texto literário a partir de sua "força
integradora, bem como explicativa do real"[13], capaz de dar significado ao
mundo social e pautar ações políticas.
A formulação de uma dimensão imaginária do imperialismo na cultura
escrita mobilizou sentimentos frequentemente contraditórios de amor ao
império e, em menor escala, de repúdio à violência engendrada por tais
práticas. Com efeito, ao longo do período vitoriano, não apenas as ficções
literárias, mas também diários de viajantes e narrativas de exploradores
provocaram significativo interesse público pelas recentes descobertas no
interior da África e da Ásia, com imaginosas descrições da variação humana
localizada nas regiões limítrofes dos interesses imperiais. Além dos
romances aventurescos, dos quais muitos visavam a formação moral de seus
leitores e sustentavam-se nos relatos dos viajantes, poesias patrióticas e
publicações de missionários entrelaçavam sensibilidades religiosas e
paixões políticas, nas quais preocupações de miscigenação e degenerescência
racial conectavam-se com impasses de gênero e sexualidade tramados nas
colônias[14].
Esta literatura aventuresca, repleta de figurações românticas dos
embates interétnicos e dos encontros interculturais ambientados nos limites
dos interesses imperiais, desempenhava importante função na construção de
fulcros de identificação individual ou coletiva dos personagens
responsáveis pela conquista dos territórios coloniais. Em meio a este
contexto, emerge a figura do aventureiro, não mais como uma personagem nos
limites da legalidade, um usurpador estigmatizado ou errante, intruso no
espaço cotidiano, mas um indivíduo capaz de romper com o espaço europeu,
isto é, de evocar o domínio e a exploração de territórios distantes[15].
Por isso a necessidade de compreender estes romances enquanto parte
integrantes da cultura e da política imperial, pois mobilizam narrativas
repletas de "lógicas de ação e de situação", as quais permitem "desvelar a
coerência da movimentação dos atores presente na produção de sentidos, nas
suas tentativas de se compreenderem nas suas controvérsias, disputas e
compromissos, na resolução de seus problemas"[16]. O caso do romancista
inglês Henry Rider Haggard recebe atenção especial no estudo em questão,
não apenas devido à força de suas produções literárias no mercado editorial
do período, mas também, e sobretudo, face à sua atuação junto à
administração colonial no território sul-africano.
Uma conjuntura de particularidades históricas e traços individuais
devem ser levados em consideração ao problematizar as linhas que convergem
na vida e na escrita de Rider Haggard. Oriundo de uma família de
conservadores no interior rural inglês, Haggard migrou para a África do Sul
em agosto de 1875, para atuar na administração de Henry Bulwer, governador
recém designado para a Colônia do Cabo. No ano seguinte, o jovem foi
transferido para a comissão de Theophilus Shepstone, responsável pela
anexação da república bôer do Transvaal em abril de 1877. Na condição de
secretário de Shepstone, Haggard estivera envolvido com os conflitos entre
o Reino Zulu e as forças militares britânicas em 1879, bem como a vitória
bôer na guerra contra a administração imperial entre dezembro de 1880 e
março de 1881, entrave bélico interétnico que culminou no reconhecimento
britânico da independência do Transvaal. Estes conflitos eram emoldurados
por um contexto complexo de forças políticas adensadas a partir das décadas
de 1860 e 1870, momento em que o subcontinente sul-africano deixara de ser
um recanto de escassa atração para os interesses britânicos devido à
descoberta de campos de mineração de diamantes, situação que levou ao
escoamento de vasto número de imigrantes oriundos dos mais distintos
lugares do Império Britânico.
Entender o posicionamento de Rider Haggard neste campo político e
cultural é emblemático para pesquisa. Para tanto, é preciso lembrar, tal
qual aponta Anne McClintock, que a formação do jovem de Norfolk estava
profundamente demarcada por um contexto de recrudescimento das teorias
degeneracionistas, temores dos quais Rider Haggard, desprezado por
familiares como "apto somente a ser um verdureiro" [17], não estaria imune.
Em termos simbólicos, reafirmados posteriormente pela sua incursão à
cultura escrita, a migração para o território sul-africana representava
possibilidade de revitalização física e moral para Rider Haggard,
circunstância altamente sugestiva das táticas de construção de sua
identidade intelectual. Por outro lado, a condição de membro atuante nas
administrações coloniais na África do Sul – enfim, suas experiências de
viagens pelo interior do continente africano – permitiram ao intelectual
reflexões circunstanciadas a respeito das práticas políticas em vigência,
bem como o registro de suas impressões, afinal, ao regressar para a
Inglaterra publicou um extenso relato a respeito dos embates interétnicos,
Cetywayo and His White Neighbours (1882), e uma série de romances
ambientados nas regiões coloniais, ao exemplo de King Solomon's Mines
(1885) e She: A History of Adventure (1886). Além disso, convém frisar que,
pelo menos desde 1877, Rider Haggard desempenhava funções de correspondente
para periódicos como o The Gentleman's Magazine, e que posteriormente
tornou-se membro fundador do Anglo-African Writers' Club em Londres.
Como se vê, suas experiências sul-africanas serviram de fonte para a
produção de uma série de romances ambientados no interior do chamado
"continente negro", nos quais visões políticas convivem com uma retórica
paternalista mobilizada para justificar a hierarquia racial e legitimar o
domínio de outros territórios[18]. Contudo, observar os romances de Rider
Haggard enquanto mero esforço propagandístico de amor ao império e aos seus
agentes de efetivação impossibilita uma problematização de suas
ambiguidades, dos espaços de negociação, enfim, das formas de interpretação
de processos históricos mobilizados pelo letrado. Convém igualmente
demarcar que, entre as décadas de 1870 e 1890, intenso esforço pode ser
vislumbrado na cultura escrita para historicizar e legitimar um território
fragmentado e conectá-lo enquanto "comunidade imaginada" (expressão de
Benedict Anderson). É possível identificar, neste período, a constituição
de narrativas de interpretação histórica que visavam definir, observar e
explicar a situação contemporânea da África do Sul. John Noble, com seu
South Africa: Past and Present (1877) e George McCall Theal em Compendium
of South African History and Geography (1873-77), assim como Alexander
Wilmot e John Chase em History of the Cape Colony (1869), almejaram
produzir um passado linear que partia do período que decorre o primeiro
estabelecimento colonial europeu. Além destes escritos de caráter histórico
e geográfico, profundamente interessados em definir protagonismos
históricos responsáveis pela constituição e ocupação do território sul-
africano, destacam-se os romances aventurescos ambientados nas colônias
britânicas e, na outra ponta do espectro literário, o brilhantismo de Olive
Schreiner em The Story of an African Farm (1883), o qual, como se sabe,
constava entre as leituras de Rider Haggard no contexto de produção de seu
romance ambientado na primeira guerra Anglo-Bôer: Jess (1887)[19].
Jess foi escrito em 1885 – mesmo ano em que se iniciavam as
construções de diversas linhas ferroviárias que conectavam o interior sul-
africano e se encerravam as negociações da Conferência de Berlim, a qual
oficializou a "partilha da África" entre as potências europeias. Ambientado
no Transvaal durante o período de ocupação britânica, a obra literária
narra o triângulo amoroso entre o capitão inglês John Niel, Bessie e Jess
Croft, duas irmãs que habitam a fazenda de seu tio, o idoso e patriótico
bretão Silas Croft. A jovem e delicada Bessie é representada na trama como
uma figuração conservadora de feminilidade, movida por sentimentos suaves e
limitações intelectuais; sua irmã, de cabelos negros e feições severas, é
destacada desde o início pela inteligência e força de vontade, com
aspirações à Europa e ao mundo das letras. A trama, uma narrativa romântica
e aventuresca, de ênfase na subjetividade feminina e nos impasses
apresentados pelo impacto das políticas coloniais, é permeada pela
instabilidade derivada dos entraves interétnicos entre ingleses e bôeres.
Com efeito, o antagonista da trama, Frank Muller, fruto da miscigenação
entre os grupos étnicos, é retratado como um homem cruel e ambicioso, que
almeja usurpar as terras do fazendeiro Croft. Além disso, por suas paixões
incontroladas por Bess Croft, Frank Muller desponta como uma verdadeira
ameaça, simultaneamente sexual e racial. O romance conclui-se com a perda
do Transvaal para os bôeres, o assassinato de Frank Muller pela jovem Jess,
e a subsequente morte da jovem. A perda da fazenda, destruída durante a
guerra, força o casal Bessie e John a retornar para a Inglaterra, onde o
militar passa a exercer funções administrativas em uma propriedade rural.
O domínio de outros territórios e a posse de terras figura como
questão central em Jess, pressuposto de uma defesa de Rider Haggard do
capitalismo agrário enquanto alternativa à economia aurífera e à "febre dos
diamantes" com fôlego entrecortado pela instabilidade financeira ainda na
década de 1870[20]. Mais do que isso: o encerramento da trama, com a
independência do Transvaal reconquistada pelos bôeres em cercos militares é
metaforizada pela morte de Jess, "a alma de tudo", cujo desaparecimento
tornava "inútil reerguer algo sem vida, ao invés disso, esforcemo-nos a
seguir com as elevações do espírito"[21]. A respeito do Transvaal, Rider
Haggard já havia exposto suas opiniões em um artigo escrito para o
Macmillan's Magazine em 1877, no qual o letrado reforçava um ideário de
incivilidade em torno de sua etnia predominante – os bôeres holandeses – e
afirmava que "o governo inglês, além de ser a regra de uma raça
conquistadora, era de uma natureza demasiadamente progressiva para ser
muito popular entre os conservadores bôeres", de modo que preferiam aceitar
a morte entre "as tribos nativos selvagens além de seus limites do que
permanecerem como súditos do governo britânico". O relato do jovem Rider
Haggard, então com pouco mais de vinte anos, encerrava-se com as esperanças
imperialistas de que a flâmula do Império Britânico se erguesse sobre o
Transvaal, transformando-a na "mais nova e bela irmã"[22] das possessões
coloniais.
O Transvaal é representado na obra literária de Rider Haggard a partir
de certa "sensibilidade romântica"[23], por intermédio da qual a paisagem
sul-africana passa a ser estilizada pela óptica do letrado e incrementada
com impressões de sentimentos e razões. A protagonista Jess, por exemplo,
admira a "gloriosa tarde, tal qual por vezes ocorre na primavera africana,
embora fosse tão intensa. Por todos os lados havia evidências e provas da
vida. O inverno estava finalizado e agora, da tristeza e esterilidade de
sua época seca, erguia-se o jovem e amável verão envolto em luz do
sol"[24]. Com efeito, o Transvaal ocupava importante lugar nos escritos de
Rider Haggard e de outros letrados contemporâneos. Localizado ao norte do
rio Vaal, a república bôer do Transvaal (Zui-Afrikaansche Republiek) havia
declarado sua existência política em janeiro de 1852, momento em que o
Império Britânico assinou um tratado de reconhecimento de independência da
região. Em abril de 1877, Theophilus Shepstone anexou a república às
possessões do Império em meio aos conflitos étnicos entre bôeres e zulus,
situação que conduziu, ao final de 1880, à guerra anglo-bôer. Os problemas
políticos ganham fôlego quando tropas bôeres massacram a guarda inglesa na
batalha em Majuba Hill. Gerald Monsman afirma que devido à localização
estratégica da fazenda de Rider Haggard – na fronteira com o Transvaal –
esta foi utilizada para as negociações do tratado de paz que restabeleceu a
independência bôer. Haggard interpretava o resultado como um retrocesso,
uma "grande traição" por parte do primeiro-ministro britânico, o liberal
William Gladstone. Para Haggard, a perda do Transvaal, reimaginado como um
lugar paradisíaco em Jess – um paraíso perdido, de fato – convertia-se em
fonte de ressentimentos e assinalava o encerramento de suas experiências na
África do Sul[25].
Os ressentimentos políticos – raízes para múltiplos conflitos e
violências na passagem do século XIX para o século XX[26] – deslocam-se da
trajetória de Rider Haggard para sua ficção, sobretudo por intermédio do
personagem Silas Croft. Em primeiro lugar, seu passado, revelado ao
protagonista John Niel na primeira parte do romance, ilustra as
experiências de inúmeros homens e mulheres que abandonaram a metrópole para
tentar a vida nas colônias, situação que não implicava necessariamente em
um rompimento afetivo com a pátria-mãe. Em segundo lugar, a fazenda
africana de Silas, as referências aos campos agrícolas e aos seus
empregados nativos, deixam em evidência aquilo que Edward Said denominou de
uma "estrutura de atitudes e referências"[27] ao imperialismo britânico,
projetadas e moldadas a partir da literatura de entretenimento. Estes
sentimentos de pertencimento e de amor à nação são proferidos pelos lábios
de Silas Croft ao defender sua fazenda da insurreição bôer no clímax do
romance: "Eu sou um inglês, e não acredito que eles me tocarão, pois vivi
entre eles por vinte anos. (...) Se atirarem em mim, terão de prestar
contas com a Inglaterra". A despeito de suas esperanças reavivadas com o
envio de tropas inglesas, o eventual descaso da administração liberal e a
destruição da fazenda de Croft conduzem-no a uma acentuada sensação de
perda e derrota, explícita ao afirmar que a "Inglaterra nos abandonou e eu
não tenho uma nação", "perdi minha honra, meu lar e meu país; porque não
devo perder minha vida também?"[28].
Os insidiosos paradigmas do racialismo enquanto via de interpretação
social podem ser vislumbrados em Jess sobretudo por intermédio de seu
antagonista, o "half-breed" Frank Muller, filho de pai bôer e mãe inglesa.
Na trama, o personagem é descrito como uma figura de posses territoriais e
ambições descomedidas, apresentado como um "um homem grande e
excessivamente bonito", com "olhos azuis e frios e uma barba dourada que
recaía sobre o peito". Por intermédio deste personagem, visto como uma
ameaça racial e sexual devido aos seus constantes avanços sobre a
jovenzinha Bessie, Haggard aborda o que considerava como os falsos
patriotismos, movidos pelo puro interesse financeiro. Assim, quando lhe é
conveniente, Frank reforça sua inglesidade, afirmando que "eu não sou um
bôer. Eu sou um inglês. Minha mãe era inglesa; e além do mais, graças ao
Lord Carnarvon, somos todos ingleses", em referência ao esquema de
confederação do território sul-africano projetado em 1876 pelo então
secretário do Estado britânico para as colônias, e que resultou na anexação
do Transvaal por Shepstone. Posteriormente, Muller assume o manto de
liderança bôer e conduz seus compatriotas à perseguição de ingleses e ao
cerco às cidades do interior sul-africano, com sonhos em tornar-se "supremo
general de uma grande nação, destruindo as forças da Inglaterra com
terrível carnificina". Para Haggard, não restavam dúvidas da periculosidade
apresentada pela miscigenação racial nas colônias, o que situava Muller, a
despeito de sua fisiognomia anglo-saxônica, em uma "junção entre as águas
da civilização e do barbarismo"[29].
Ainda há muito que pesquisar: o cotejo entre os romances de Rider
Haggard no que se refere ao processo de unificação política e ocupação
territorial da África do Sul, sua produção ensaística e jornalística, bem
como as missivas do letrado – fontes já mapeadas para a pesquisa –
apresentam-se como procedimentos a serem circunscritos com maiores
minúcias. Contudo, e a título de considerações parciais, pode-se perceber
que Jess, ao enredar relações conflituosas entre microcosmos de figuras
sociais, sobretudo bôeres e ingleses, participa ativamente na construção de
narrativas a respeito de uma nação que, imaginava Rider Haggard e muitos
dos seus contemporâneos, era iminente, embora incerta. No âmago destas
produções culturais encontram-se formações ideológicas e posicionamentos
políticos que constituem o império e suas colônias enquanto tema de atenção
central. O desfecho do romance, com a morte de sua protagonista e o retorno
do herói John Niel para a Inglaterra, deixa em evidência as dúvidas do
literato com relação ao futuro da nação sul-africana, bem como seus
ressentimentos políticos, decorrentes tanto da ocupação do Transvaal pelos
bôeres no final dos conflitos, quanto das decisões políticas da
administração liberal britânica em vigência.
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[1] BARROS, Antônio Evaldo A. John Dube e os desafios da segregação na
África do Sul. In: Revista Eletrônica do Tempo Presente, v.3, n.3, 2013.
[2] Segundo Raquel G. Alves Gomes (2010), o termo afrikâner refere-se a uma
identidade social construída em torno da colonização do território sul-
africano por alemães, franceses e holandeses. No século XIX, o termo passa
a ser utilizado enquanto força política, para demarcar a distinção com os
ingleses, e era de uma notável fluidez com conceitos como bôer, dutch e
dutchman.
[3] M'BOKOLO, Elikia. As práticas do apartheid. In: FERRO, Marc (org.). O
livro negro do colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004..
[4] GOMES, Ângela de Castro. Política: história, ciência, cultura etc. In:
Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.9, nº 17, 1996, p.65.
[5] BREPOHL, Marion. Os pangermanistas na África: inclusão e exclusão dos
nativos nos planos expansionistas do império. In: Revista Brasileira de
História, v.33, n.66, 2013, p.14.
[6] O conceito de "imperialismo" torna-se fonte de contendas para
historiadores, literatos, políticos e jornalistas que, ao longo do século
XIX, engajam-se na consolidação do moderno império britânico. O termo
comumente abrangia uma vasta gama semântica que incluía, mas não se
limitava a participação estatal no estabelecimento formal de colônias e a
um conjunto de posicionamentos ideológicos, demarcados pelo ímpeto militar,
por sentimentos vagos de patriotismo e de superioridade étnica ou racial
(BRANTLINGER, 1990: x). Ciente da polissemia do termo, utilizo-o na esteira
da definição fornecida por Edward Said, para o qual o imperialismo consiste
na "prática, a teoria e as atitudes de um centro metropolitano dominante
governando um território distante" (SAID, 2011: 42), neste caso em questão,
historicamente localizado no último quartel do século, sobretudo após a
Conferência de Berlim (1884-1885), que oficializa a partilha da África. Tal
definição complexifica as elaborações de Hannah Arendt, para a qual o
imperialismo estabeleceu novas formas de economia e política global com
base na emancipação política das classes médias: "o conceito de expansão, a
exportação da força do governo e a anexação de todo território em que
cidadãos tivessem investido a sua riqueza ou seu trabalho, parecia a única
alternativa para as crescentes perdas econômicas e demográficas. O
imperialismo e a sua idéia de expansão ilimitada pareciam oferecer um
remédio permanente para um mal permanente" (ARENDT, 1989: 180).
[7] BELL, Duncan. Empire and imperialism. In: JONES, Gareth Stedman;
CLAEYS, Gregory (org.). Nineteenth-Century Political Thought. Cambridge:
Cambridge University Press, 2011, p.863-892.
[8] SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2011,
p.17.
[9] SMITH, Bonnie. Imperialism: a history in documents. NY: Oxford
University Press, 2000, p.93-96.
[10] A expressão, popularizada no final do século XIX, derivava do título
do poema de Rudyard Kipling, o "poeta do império": The White Man's Burden.
O poema foi publicado originalmente em 1899, na revista McClure's, e tornou-
se emblemático das teorias racialistas e do eurocentrismo típico daquele
momento histórico.
[11] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia. das Letras,
1989, p.88.
[12] CARVALHO FILHO, Sílvio de Almeida. Um convite à leitura do dossier
"história e historiografia da África no Brasil". In: Revista Eletrônica do
Tempo Presente, v.3, n.3, 2013, p.6.
[13] PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. Belo
Horizonte: Autêntica, 2012, p.39.
[14] BRANTLINGER, Patrick. Victorian literature and postcolonial studies.
1ª. Edição. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2009, p.2-4.
[15] VENAYRE, Sylvain. Une histoire des représentations : l'aventure
lointaine dans la France des années 1850-1940. In: Cahiers d'histoire.
Revue d'histoire critique, v. 84, 2001, pp.93-112.
[16] DUTRA, Eliana R. de Freitas. História e culturas políticas:
definições, usos, genealogias. In: Revista Varia História, n.28, dez/2002,
p.19.

[17] MCCLINTOCK, Anne. Couro Imperial. Campinas: UNICAMP, 2010, p.348.
[18] MONSMAN, Gerald. H. Rider Haggard on the Imperial Frontier.
Greensboro: ELT Press/University of North Carolina, 2006, p.17.
[19] Ao discutir as produções literárias contemporâneas em seu artigo About
Fiction (1887), Rider Haggard menciona Olive Schreiner e seu The Story of
an African Farm como uma das principais representantes do romance
finissecular (HAGGARD, Rider. About Fiction. Contemporary Review, n.51,
fev.1887). Além disso, as correspondências de Olive Schreiner deixam
perceber que o literato enviara livros para ela e a visitara em 1885 (para
transcrições das correspondências de Schreiner, cf.
https://www.oliveschreiner.org/).
[20] Cf. MEREDITH, Martin. Diamond's, Gold and War: the British, the Boers
and the Making of South Africa. Nova York: Public Affairs, 2008.
[21] HAGGARD, H. Rider. Jess. Londres: Smith, Elder & Co., 1887, p.336.
[22] HAGGARD, H. Rider. The Transvaal. In: Macmillan's Magazine, v.36, maio
de 1877, p.71-79.
[23] NAXARA, Márcia Regina. Cientificismo e sensibilidade romântica.
Brasília: UNB, 2004.
[24] HAGGARD, H. Rider. Jess. Londres: Smith, Elder & Co., 1887, p.50.
[25] MONSMAN, Gerald. H. Rider Haggard on the Imperial Frontier.
Greensboro: ELT Press/University of North Carolina, 2006, p.39.
[26] ANSART, Pierre. História e Memória dos Ressentimentos. In: BRESCIANI,
Stella; NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (Res) sentimento: Indagações
sobre uma questão sensível. Campinas: Unicamp, 2004, p. 15-36
[27] SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.
[28] HAGGARD, H. Rider. Jess. Londres: Smith, Elder & Co., 1887, p.233;
pp.280-281.
[29] HAGGARD, H. Rider. Jess. Londres: Smith, Elder & Co., 1887, p.25;
p.35; p.189; p.244.
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