Nacionalismo, mitificação e tragédia em Frei Luís de Souza de Almeida Garret

June 7, 2017 | Autor: Evanir Pavloski | Categoria: Literatura Portuguesa, Almeida Garrett, Romantismo Português, Mitificação, Frei Luís de Souza
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Nacionalismo, mitificação e tragédia em
Frei Luís de Souza, de Almeida Garrett


Evanir Pavloski(



Dentre as múltiplas facetas que compõem o pensamento romântico do
século XIX, a problematização dos ideais de nação e de identidade nacional
pode ser apontada como uma de suas marcas indeléveis. De exemplos que
variam desde o patriotismo democrático de Johann Gottfried Herder até a
valorização da paisagem e do cotidiano nacionais na poética de Walt
Whitman, apreende-se um profundo interesse em definir os conceitos, os
contornos, os espaços e os limites do espírito nacionalista.
Especificamente em Portugal, os sentimentos de frustração e de apatia
diante da realidade social da pátria plasmaram análises e discursos
críticos que encontraram na pena de autores como Almeida Garrett um
representativo meio de propagação. Na obra Frei Luís de Souza, esse impulso
questionador assume a forma de valorização de um nacionalismo atuante e
desvinculado de idealismos messiânicos considerados retrógrados.
Diante disso, constitui o escopo do presente trabalho discutir os
aspectos que viabilizam tal caracterização. É importante salientar que a
linha de análise adotada não privilegia um método analítico reducionista
diante da inegável pluralidade de elementos estéticos e retóricos passíveis
de discussão a partir do texto, mas objetiva salientar a importância
histórico-discursiva da obra de Garrett em seu contexto de produção e
primeira recepção.
A relevância dessa perspectiva de abordagem foi apontada pelo próprio
Almeida Garrett, em 1843, na memória lida diante dos membros do
Conservatório Real de Lisboa. Em tal oportunidade o autor afirmou:


Esta contínua e recíproca influência da literatura sobre a
sociedade, e da sociedade sobre a literatura, é um dos fenômenos
mais dignos da observação do filósofo e do político. Quando a
história for verdadeiramente o que deve ser ( e já tende para
isso ( há de falar menos em batalhas, em datas de nascimentos,
casamentos e mortes de príncipes, e mais na legislação, nos
costumes e na literatura dos povos. Quem vier a escrever e a
estudar a história deste nosso século nem a entenderá nem a fará
entender decerto, se o não fizer pelos livros dos sábios, dos
poetas, dos moralistas que caracterizam a época, e são ao mesmo
tempo causa e efeito de seus mais graves sucessos. (GARRETT,
2005, p. 28-29).


O século XIX, para compreensão do qual Garrett em muito contribuiu,
representou um período de marcantes transformações e rearticulações sociais
em todo o mundo. Nesse contexto, a arte literária atuou ao mesmo tempo como
registro testemunhal, espaço de reflexão crítica e elemento constitutivo
nas inúmeras renovações paradigmáticas que tomaram forma após a Revolução
Francesa. Assim, o signo que, possivelmente, melhor pode caracterizar esse
momento e suas expressões artísticas seja o da instabilidade. Como afirma
Elias Thomé Saliba,


A centelha romântica acendeu-se em meio aos anseios provocados
pela época da Revolução Francesa, a chama foi avivada pelos
inícios da Revolução Industrial, começou a perder o brilho após
o fim da aventura napoleônica, transformando-se, após o fracasso
das revoluções de 1848, apenas em cinzas funestas ( cinzas cujo
cheiro, quem sabe, ainda nos perturba e incomoda. Época,
portanto, marcada por mudanças repentinas e bruscas, por
expectativas e receios, por tensas esperanças e torturadas
frustrações. (SALIBA, 2003, p. 14-15).

O início da modernidade decretava a constante ruptura de padrões e
parecia exigir não só a renovação permanente de ideais, mas também a
multiplicidade de perspectivas a serem consideradas e analisadas. Marshall
Berman, por exemplo, entende a modernidade como um "turbilhão" de
perspectivas e perigos que envolvem os indivíduos num processo constante de
reavaliação e, consequente, renovação de conceitos tidos até então como
impassíveis de contestação e crítica. Afirma ele que "existe um tipo de
experiência vital ( experiência vital ( experiência de tempo e espaço, de
si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida ( que é
compartilhada por homens e mulheres em todo mundo, hoje. Designarei esse
conjunto de experiências como modernidade" (BERMAN, 1981, p. 15).
A queda da Bastilha, embasada pelo Humanismo Iluminista, sinalizava o
início de um novo tempo, de uma nova forma de concepção da realidade e de
organização da sociedade. A independência dos Estados Unidos e a subida ao
poder de Napoleão Bonaparte enfatizavam o poder das realizações humanas
tanto no âmbito coletivo quanto individual. A industrialização britânica
alargava o horizonte de possibilidades econômicas e progressistas,
desenhando novos rumos para o desenvolvimento das sociedades.
Todos esses eventos empolgavam a intelligentsia alemã, epicentro do
Romantismo[1], reforçando a ideia, essencialmente utópica, de que o Século
das Luzes demarcava o início de uma nova Idade de Ouro. Como exemplifica
Elias Saliba,

Os jovens alemães, Schelling, Hölderlin e Hegel, estudantes no
seminário de Tübingen, quando souberam da tomada da Bastilha,
plantaram uma árvore, batizando-a, solenemente de "árvore da
liberdade". O prosaico episódio exemplificava como o evento
revolucionário implantou-se semelhantemente a uma espécie de
sismógrafo na inteligência européia. (SALIBA, 2003, p. 20).


Entretanto, o ufanismo liberalista irradiado por toda a Europa, tendo
a França como epicentro, foi logo contraposto ao expansionismo napoleônico,
fazendo com que o pensamento romântico, que já se desenvolvia de maneira
difusa pelo continente, se tornasse ainda mais multifacetado. Dentre as
diversas perspectivas que compuseram o ideário do Romantismo, salientaremos
aquela que mais se aproxima da dicção literária apresentada por Garrett em
Frei Luís de Souza, ainda que não possamos atribuir a ela uma denominação
definitiva. Tal linha de reflexão representou, em grande medida, um
posicionamento reacionário aos novos contornos assumidos pelo espírito
revolucionário que inspirara os pensadores no final do século XVIII. Os
sentimentos de frustração e desencanto para com os ideais que povoaram o
imaginário europeu na virada do século foram paulatinamente assumindo maior
dimensão e desencadearam um processo de revalorização dos elementos
representativos da nacionalidade. Em oposição ao caráter universalista e
utópico das concepções franco-liberalistas, as especificidades culturais de
cada grupo social e os tipos humanos que constituíam a entidade abstrata
designada de Volk (povo) passaram a ser exaltados como aspectos não apenas
distintivos, mas essencialmente definidores. Consolidou-se, dessa forma, um
modelo de nacionalismo ao mesmo tempo mítico e combativo que objetivava, em
grande medida, se opor ao potencial normalizador do turbilhão da
modernidade.
Johann Gottfried Herder foi, indubitavelmente, um dos pensadores que
mais contribuíram para a estruturação dessa linha de pensamento no século
XIX. Ao discorrer sobre os estudos do filósofo alemão, Isaiah Berlin
salienta:


Herder identificou as diferenças culturais, a essência cultural
e a própria idéia de desenvolvimento histórico de maneira muito
diferente da proposta por Voltaire. O que, para ele, faz com que
os alemães sejam alemães é o fato de a maneira pela qual eles
comem ou bebem, distribuem justiça, escrevem poesia, praticam
suas devoções, dispõem da propriedade, levantam-se e sentam-se,
obtêm alimento, usam suas roupas, cantam, lutam na guerra e
ordenam a vida política possuir um caráter que é exclusivamente
alemão, assim fazendo com que essas atividades se diferenciem de
suas correspondentes entre os chineses ou os portugueses. Nenhum
desses povos ou culturas, para Herder, é superior a outros povos
e culturas ( são apenas diferentes e, uma vez que são
diferentes, buscam fins diferentes; nisso está tanto o seu
caráter específico quanto seu valor. (BERLIN, 1991, p. 44).

Nessa perspectiva, a recuperação da história como agente formador de
uma identidade cultural sólida passou a representar um caminho produtivo
para o fortalecimento dos diversos nacionalismos que se deparavam com os
conflitos e os desafios da modernidade.

Este mergulho no passado era uma espécie de compensação ao
espetáculo de quebra de continuação oferecido pelo tempo
presente: uma nostalgia das sociedades pré-capitalistas que
ansiava por retomar o fio de uma continuidade orgânica do
passado. Se, no campo político, tal atitude se desdobrou, não
raro, em posições conservadoras, no campo estético forneceu vias
de expressão peculiares, centradas no subjetivismo, no
misticismo interiorizante e na busca de liberdade de criação
artística.[2] (SALIBA, 2003, p. 15-16).

Em Portugal, a história recente do país em termos econômicos, sociais
e políticos exerceu influência aparente nas produções artísticas
oitocentistas, gerando uma tendência crítica que perduraria até o
Modernismo. As profundas cicatrizes causadas pela União Ibérica, pela
invasão napoleônica e pelos conflitos entre liberais e miguelistas tornaram-
se cada vez mais aparentes no decorrer do século. O contraste entre a
condição do país (arcaico, agrícola e ainda preso ao moralismo católico)
diante das grandes nações europeias (liberais, industrializadas e
protestantes) produziu um forte sentimento de inquietação na intelligentsia
portuguesa. Dados, fatos, lembranças, pontos de vista, superstições e
perspectivas se misturarvam em um processo constante de interpelação da
realidade e do destino de Portugal. Nesse aspecto reside o grande ponto de
ruptura da modernidade literária lusitana. Como enfatiza Eduardo Lourenço,


Não se tem reparado muito naquilo que parece constituir a
motivação mais radical e funda (pelo que significa como ruptura)
de toda ou quase toda a grande literatura portuguesa do século
XIX. O que desde Garrett a estrutura do seu âmago, é o projecto
novo de problematizar a relação do escritor, ou mais
genericamente, de cada consciência individual, com a realidade
específica e autônoma que é a Pátria. (LOURENÇO, 1988, p. 80)
[grifo do autor].


Parece-nos claro que a questão colocada ultrapassa os limites da
simples crítica político-social, abrangendo uma discussão sobre a própria
concepção de identidade nacional e de sua relação com o ideal de Pátria. A
consciência de pertencer a uma comunidade trazia não apenas segurança, mas
também a possibilidade de estabelecer algumas certezas, mesmo que utópicas,
em meio a um período no qual, segundo Marx, "tudo que é sólido se desmancha
no ar" (MARX, K. e ENGELS, F., apud HALL, 2002, p. 14).
Mas como tal processo pode se desenvolver numa nação que apresenta,
dentre seus vários sintomas, uma profunda crise de identidade alimentada
pela fantasmagoria do passado, pela melancolia do presente e pela
indefinição do futuro?
Assim, uma parcela consistente da literatura romântica portuguesa
serviu como força motriz de uma nova tradição artística que buscava
compreender não apenas a si mesma enquanto agente de transformação, mas
também a condição real e possível do país no qual tal ação deveria se
desenvolver. Nesse contexto, surgem então as marcas do pioneirismo e da
inventividade de Almeida Garrett.


Cada escritor consciente da nova era escreverá, como Fichte, o
seu pessoal discurso à nação, cada um se sentirá profeta ou
mesmo messias de destinos pátrios, vividos e concebidos como
revelação, manifestação e culto das respectivas almas nacionais.
Nenhum itinerário romântico é, entre nós, mais interessante a
esse respeito, que o de Garrett. Ele é o primeiro de uma longa e
ainda não acabada linhagem de ulisses intelectual em busca de
uma pátria que todos temos sem poder ajustar nela o sonho
plausível que nos pede e a realidade amarga que nos decepciona.
(LOURENÇO, 1988, p. 82) [grifo do autor].

É importante salientar que a importância da obra de Garrett não se dá
somente pela problematização de uma consciência criadora diante da Pátria,
mas também pela sua aguda percepção de que a própria literatura deveria
passar por um processo de autorreconhecimento e renovação. A união de tais
aspectos nos leva invariavelmente à peça Frei Luís de Souza.
Garrett vislumbrava através de sua obra a criação de uma nova forma de
tragédia, caracteristicamente nacional e que apresentasse elementos
marcadamente portugueses, dotados de profundo valor estético.[3] Assim, o
autor explicita suas críticas aos padrões do Neoclassicismo ao mesmo tempo
em que aponta para a necessidade de adaptação da arte aos tempos modernos.
Uma nova arte para uma nova era.
Durante sua já citada leitura no Conservatório Nacional, o autor
afirma:


Esta é uma verdadeira tragédia ( se as pode haver, e como só
imagino que as possa haver sobre fatos e pessoas recentes. Não
lhe dei todavia esse nome porque não quis romper de viseira com
os estafermos respeitados dos séculos que, formados de peças que
nem ofendem nem defendem no atual guerrear, inanimados, ocos e
postos ao canto da sala para onde ninguém vai de propósito (
ainda têm contudo a nossa veneração, ainda nos inclinamos diante
deles quando ali passamos por acaso. (GARRETT, 2005, p. 24).

Em diversos momentos de sua fala, Garrett enfatiza, ora de forma
notadamente irônica, ora de forma poética, o compromisso de seu texto com
um novo paradigma de escrita dramática.


Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama; só
peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger,
essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na
forma desmerece da categoria, pela índole há de ficar
pertencendo sempre ao antigo gênero trágico [...] Repito
sinceramente que não sei se consegui; sei, tenho fé certa que
aquele que o alcançar, esse achou a tragédia nova, e calçou
justo no pé o coturno das nações modernas. (GARRETT, 2005, p. 25-
26).

A proposta renovadora de Garrett tangencia uma questão abrangente: o
delineamento da própria identidade nacional valorizada na obra. Assim,
reconstruir o gênero literário significa também restabelecer uma concepção
de Pátria, à qual essa reconstrução atenda ou deva atender.


Nem pareça que estou dando grandes palavras a pequenas coisas: o
drama é a expressão literária mais verdadeira do estado da
sociedade: a sociedade de hoje ainda se não sabe o que é: o
drama ainda se não sabe o que é: a literatura atual é a palavra,
é o verbo, ainda balbuciante, de uma sociedade indefinida, e
contudo já influi sobre ela; é, como disse, a sua expressão, mas
reflete a modificar os pensamentos que a produziram. (GARRETT,
2005, p. 27-28).

A passagem acima reforça a importância de um dos signos da modernidade
a que nos referimos anteriormente: o da instabilidade. Se, por um lado, as
sociedades tinham seus contornos redimensionados pelas mudanças políticas e
econômicas que então tomavam lugar, por outro, a dicção literária buscava
uma nova configuração enquanto mímesis e teoria estética. Ao discorrer
sobre a sensibilidade romântica, Elias Thomé Saliba reconhece os
imperativos sociais e artísticos apontados por Garrett em 1843:


Captar o instável e o movediço também exigia uma nova estética,
novas formas de sensibilidade aptas a simbolizarem, ainda que
difusamente, o ineditismo das mudanças em toda a sua
efervescência. Podemos concordar com autores recentes como
Starobinski, o qual afirma que as revoluções não inventam
imediatamente a linguagem artística correspondente à nova ordem
política e social e, mesmo quando desejam proclamar a
independência do mundo antigo, utilizam formas herdadas de
sentimento e de expressão. Assim, romper com a tradição e
continuar falando a sua própria língua, com as mesmas nuanças,
os mesmos códigos e toques de identificação, significa enredar-
se nos meandros do "já visto", e é como fazer um esforço enorme
para apenas balbuciar seu tempo, sem exprimi-lo. (SALIBA, 2003,
p. 41).

À medida que novas formas de expressão artística foram sendo
desenvolvidas e propagadas, o desencantamento com a realidade experimental
potencializou a caracterização dos universos literários como abrigos
ideológicos e estéticos das agruras e as arbitrariedades das sociedades
modernas. Tal dinâmica não significa, entretanto, que a literatura
representou exclusivamente um mecanismo de fuga do real. Ao contrário, esse
distanciamento possibilitou, muitas vezes, a sublimação de ordens sociais
utópicas ou estruturas políticas alternativas que podiam ser apreendidas de
forma latente dentre os brados da crítica e da denúncia. Como salienta
Benedito Nunes,

Na época transicional de efetiva vigência da visão romântica do
mundo, quando começa a interferir, por força das classes sociais
existentes o efeito ideológico, distorsivo e encobridor das
posições e dos interesses, a literatura, ao mesmo tempo que
denuncia a insatisfação com o real, passa a oferecer, contra
ele, o abrigo do ideal decepcionado, que se constitui em
refúgio, e que transforma o refúgio em sucedâneo de aspirações
insatisfeitas. (NUNES, in: GUINSBURG, 2005, p. 54).


Diante desses aspectos, percebemos que a peça Frei Luís de Souza
concentra diferentes elementos que nutriram e impulsionaram a sensibilidade
romântica ao longo do Oitocentos. A obra não apenas se propõe a renovar a
linguagem literária dramática, mas também veicula, por meio dessa nova
dicção, a insatisfação com a realidade de Portugal na época; impulso
crítico que, ao ser potencializado pelo desfecho trágico, assume a forma de
discurso exortativo para a consolidação de uma nova ordem social e
ideológica.
Nesse sentido, a tragédia que atinge a família de Manuel de Sousa
Coutinho não constitui somente uma leitura histórica particular sobre parte
da biografia de uma figura portuguesa ilustre. O desmoronamento da casa de
Coutinho representa a decadência, o desnorteamento e a ruína em que se
encontra a própria nação, que, formada por indivíduos destituídos de uma
identidade cultural palpável ou pelo menos delineável, não consegue
reconhecer-se no presente e imaginar-se no futuro. Como afirma Eduardo
Lourenço,


O drama de Garrett é fundamentalmente a teatralização de
Portugal como povo que só já tem ser imaginário (ou mesmo
fantasmático) ( realidade indecisa, incerta do seu perfil e
lugar na História, objecto de saudades impotentes ou
pressentimentos trágicos. Quem responde pela boca de D. João (de
Portugal...), definindo-se como ninguém, não é um mero marido
ressuscitado fora da estação, é a própria Pátria. (LOURENÇO,
1988, p. 85) [grifo do autor].


Dentre os diversos aspectos que derivam dos movimentos da crítica pena
de Garrett, três deles nos parecem de suma importância para o
aprofundamento da obra na perspectiva analítica aqui proposta: o ideal de
patriotismo heroico diante da opressão, o conservadorismo cristão e o
messianismo sebastianista.
Como afirma o próprio autor da peça, Frei Luís de Souza apresenta
claramente elementos dos textos trágicos e épicos da Antiguidade, como, por
exemplo, a caracterização da personagem Manuel de Souza Coutinho como herói
virtuoso, mas impotente diante das artimanhas do destino; o amor pungente e
proibido; a epifania; o retorno homérico de D. João de Portugal.
Entretanto, a proximidade entre o cronótopo do texto e o momento de sua
primeira recepção impede que a peça seja relegada ao universo mítico,
ressaltando a sua dimensão argumentativa. Ao representar o levante da
personagem histórica contra os abusos cometidos pela corte de Filipe II, a
obra problematiza a hierarquização monárquica e a estrutura de poder que
dela deriva.


MANUEL ( Luís de Moura é um vilão ruim: faz como quem é. O
Arcebispo é... o que os outros querem que ele seja. Mas o Conde
de Sabugal, o Conde de Santa Cruz, que deviam olhar por quem
são, e que tomaram este encargo odioso... e vil, de oprimir os
seus naturais em nome de um rei estrangeiro... Oh, que gente,
que fidalgos portugueses!... Hei de lhes dar uma lição, a eles,
e a este escravo deste povo que os sofre, como não levam tiranos
há muito tempo nesta terra. (GARRETT, 2005, p. 59-60).


A face heroica de Manuel de Souza Coutinho é evidenciada, sobretudo,
no momento em que a personagem ateia fogo à sua própria casa no intuito de
desafiar os representantes da coroa espanhola. Sua atitude, sempre exaltada
como a prova do caráter de um bom português, simboliza uma tentativa de
revalorizar modelos de coragem, de tenacidade e de consciência política
aparentemente esquecidos.

MANUEL ( Meu pai morreu desastrosamente caindo sobre a sua
própria espada. Quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas
pelas minhas próprias mãos? Seja. Mas fique-se aprendendo em
Portugal como um homem de honra e coração, por mais poderosa que
seja a tirania, sempre lhe pode resistir, em perdendo o amor a
coisas tão vis e precárias como são esses haveres que duas
faíscas destroem num momento... como é esta vida miserável que
um sopro pode apagar em menos tempo ainda! (Arrebata duas tochas
das mãos dos criados, corre à porta da esquerda, atira com uma
para dentro; e vê-se atear logo uma labareda imensa. Vai ao
fundo, atira a outra tocha; e sucede o mesmo. Ouve-se o alarido
de fora.). (GARRETT, 2005, p. 64).


Eduardo Lourenço ressalta a atitude do protagonista, contrapondo-a ao
clima de incerteza e omissão que atualiza o cronótopo da peça enquanto
metáfora da decadência de Portugal no Oitocentos. O autor afirma que "o
único gesto positivo, redentor, do seu herói [Manuel de Sousa Coutinho] é
deitar fogo ao Palácio e enterrar-se fora do mundo, da História" (LOURENÇO,
1988, p. 85-86).
Indiscutivelmente, o texto é perpassado por uma profunda nostalgia dos
tempos gloriosos, quando Portugal ocupava uma posição de destaque no mundo
ainda eurocêntrico do século XVI. Uma época na qual os valores inspirados
pelo ideal da Pátria ( ainda que tal conceito fosse distinto daquele que
surgiria após a queda da Bastilha ( nutria o imaginário coletivo e guiava
os portugueses ao ritmo dos versos de Camões. Sendo respeitadas as devidas
particularidades, Manuel de Sousa Coutinho, Telmo Pais e o próprio D. João
de Portugal recuperam, por meio de atos ou palavras, a glória e a
austeridade daqueles tempos memoráveis.


TELMO ( [...] quero dizer como o Sr. Manuel de Sousa Coutinho (
que, lá isso!... acabado escolar é ele. E assim foi seu pai
antes dele, que muito bem o conheci: grande homem! Muitas
letras, e de muito galante prática, e não somenos as outras
partes de cavaleiro: uma gravidade!... Já não há daquela gente!
[...]
TELMO ( Vosso pai, D. Maria, é um português às direitas. Eu
sempre o tive em boa conta; mas agora, depois que lhe vi fazer
aquela ação, que o vi com aquela alma de português velho, deitar
as mãos às tochas, e lançar ele mesmo fogo à sua própria casa;
queimar e destruir numa hora tanto do seu haver, tanta coisa do
seu gosto, para dar um exemplo de liberdade, uma lição tremenda
a estes nossos tiranos... Oh, minha querida filha, aquilo é um
homem! (GARRETT, 2005, p. 39-40, 68-69).

Contudo, tanto o ato heroico do protagonista quanto os valores por ele
defendidos podem ser também entendidos como elementos de crítica à
realidade histórico-social de Portugal. Primeiramente, a radical decisão de
Manuel de Sousa Coutinho e, segundo os termos utilizados por Eduardo
Lourenço, seu consequente afastamento da História parecem contraditórios e
inócuos quando analisados sob a luz de uma verdadeira ação revolucionária.
Não obstante, a indiscutível força dramática da cena, o incêndio deliberado
da mansão representa nada mais do que um ato desafiador desprovido de
consequências práticas, além da irritação daqueles diretamente atingidos. A
emissão de um grito de liberdade desprovido de eco.
Assim, o idealismo conservador representado pelo protagonista se
sobressai como um elemento poético, mas infrutífero. A austeridade
impassível herdada dos ancestrais se mostra incompatível com as
necessidades imediatas do país e com um ato de contestação verdadeiramente
transformador. Nesse sentido, o fidalgo também personifica a Pátria
enquanto imagem da inadequação dos meios de afirmação da nacionalidade
diante de forças dominadoras externas e da ligação exagerada com ideais de
conduta e pensamento medievais, da qual redunda a destruição inconsequente
das próprias riquezas.[4]
Dentre esses ideais, a forte vinculação com preceitos morais e
religiosos do catolicismo representa um outro aspecto importante na crítica
desenvolvida por Garrett. Desde o final do século XVII, Portugal se
consolidara como um dos grandes expoentes da Igreja Católica contra a
Reforma Protestante. Os dogmas postulados ou rearticulados durante o
Concílio de Trento influenciaram sobremaneira os costumes e a política na
Península Ibérica nos séculos seguintes, dificultando a entrada de
tendências racionalistas e liberais que então se espalhavam por toda a
Europa. Como afirma Antero de Quental:


Para sujeitar na terra o homem, era necessário fazel-o condemnar
primeiro no céu: por isso o concílio começa por estabelecer
dogmaticamente, na sessão 5ª, o peccado original, com todas as
suas conseqüências, a condenação hereditária da humanidade, e a
incapacidade do homem se salvar por seus merecimentos, mas só
por obra e graça de J. Cristo. (QUENTAL, 1943, p. 117) [grifo do
autor].


Tal processo foi interpretado por diversos autores, dentre os quais
incluímos o próprio Garrett, como uma das causas mais importantes para o
declínio da nação portuguesa. A tragédia da Pátria, assim como aquela que
recai sobre a família na peça teatral, é em grande parte resultante de um
rígido comprometimento ético-religioso. Já no início do texto encontramos,
por meio da voz da personagem Telmo Pais, um exemplo de relativização dos
dogmas sustentados pela instituição católica diante dos princípios da nova
teologia protestante.


TELMO ( [...] Mas, minha senhora, isto de a Palavra de Deus
estar assim noutra língua que a gente... que toda a gente não
entende... confesso-vos que aquele mercador inglês da rua Nova,
que aqui vem às vezes, tem-me dito suas coisas que me quadram...
E Deus me perdoe, que eu creio que o homem é herege, desta seita
nova de Alemanha ou de Inglaterra. Será? (GARRETT, 2005, p. 40).

Sobre a discriminação arbitrária daqueles que poderiam ou não ter
acesso direto às Escrituras e sua consequente inibição do pensamento
crítico dos indivíduos, Antero afirma que


O cristianismo é sobretudo um sentimento: o catolicismo é sobre
tudo uma instituição. Um vive da fé e da inspiração: o outro do
dogma e da disciplina [...] Na sessão 4ª [do Concílio de Trento]
põem-se restrições à leitura da Bíblia pelos seculares,
restrições taes, que equivalem a uma prohibição. Ora, o que é
isto senão a suspeição da Razão humana, condenada a pensar e ler
pelo pensamento e pelos olhos de meia dúzia de eleitos?
(QUENTAL, 1943, p. 113, 119) [grifo do autor].

O resultado social dessa imposição do misticismo sobre o racionalismo
é caracterizado nos fortes conceitos alienadores da moralidade católica
percebidos em Frei Luís de Souza. Podemos sublinhar, dentre diversos
exemplos, dois eixos de evidenciação desses valores: as palavras de Frei
Jorge Coutinho e o impacto do retorno de D. João de Portugal sobre a
consciência das personagens.
Ao longo de todo o texto, as palavras de Frei Jorge simbolizam a
própria doutrina moralizante do catolicismo ortodoxo, consolidando um
discurso que tenta direcionar as personagens para um estado de completa
submissão aos desígnios inexploráveis de Deus. Assim, o uso da razão e a
ação individual são suprimidos em nome do misticismo e da prudência
desmedida. As personagens, assim como ocorre em textos trágicos e épicos da
Antiguidade, se reconhecem como marionetes nas mãos de uma entidade suprema
que traça o destino da humanidade. "JORGE ( Manuel, meu bom Manuel, Deus
sabe melhor o que nos convém a todos. Põe nas suas mãos esse pobre coração,
põe-no resignado e contrito, meu irmão, e Ele fará o que em sua
misericórdia sabe que é melhor" (GARRETT, 2005, p. 96).
Esse posicionamento fica ainda mais claro na reação das personagens
diante do retorno de D. João de Portugal e a inescapável desmoralização da
família perante uma sociedade comprometida com tais princípios católicos.
Indiscutivelmente, um erro foi cometido para com o fidalgo ausente.
Entretanto, a dor e a vergonha que se apossam de Manuel de Souza Coutinho e
Madalena ao descobrirem a identidade do romeiro demonstram a gravidade do
ato cometido para o moralismo instituído, ainda que o engano tenha gerado
um fruto tão inocente quanto a pequena Maria. Certamente, o mesmo episódio
não assumiria contornos tão trágicos caso tomasse lugar em uma comunidade
com outros valores ético-morais.


MANUEL ( Oh! Minha filha, minha filha! (Silêncio longo.)
Desgraçada filha, que ficas órfã... órfã de pai e de mãe...
(Pausa.) E de família e de nome, que tudo perdeste hoje...
(Levanta-se com violenta aflição.) A desgraçada nunca os teve. Ó
Jorge, que esta lembrança é que me mata, que me desespera!
(Apertando a mão do irmão, que se levantou após ele e o está
consolando do gesto.) É o castigo terrível de meu erro... se foi
erro... crime sei que não foi. E sabe-o Deus, Jorge, e castigou-
me assim, meu irmão [...] Mas fui eu, eu que lho preparei, eu
que lho dei de beber, pelas mãos... inocentes mãos!... dessa
infeliz que arrastei na minha queda, que lancei nesse abismo de
vergonha, a quem cobri as faces ( as faces puras da virtude e do
recato... cobri-lhas de um véu de infâmia que nem a morte há de
levantar, porque lhe fica, perpétuo e para sempre, lançado sobre
o túmulo a cobrir-lhe a memória de sombras. (GARRETT, 2005, p.
93, 94).

Nesse momento de angústia e desespero, as palavras de Frei Jorge
aparecem como a confirmação de um determinismo místico, herança do
teocentrismo medieval, contra o qual o espírito humano seria impotente.
Nesse contexto, nada resta ao casal Coutinho além de entregar-se a uma
morte em vida, passando a envergar o hábito e mergulhando permanentemente
no claustro.


JORGE ( Está ( imagina por ti ( está como não podia deixar de
estar, mas a confiança em Deus pode muito: vai-se conformando. O
Senhor fará o resto. Eu tenho fé neste escapulário (tocando no
hábito em cima da mesa) para ti e para ela. Foi uma resolução
digna de vós, foi uma inspiração divina que os alumiou a ambos.
Deixa estar; ainda pode haver dias felizes para quem soube
consagrar a Deus as suas desgraças. (GARRETT, 2005, p. 97).

Percebemos, dessa forma, que o rígido discurso religioso e a
consequente moralidade estabelecida não apenas condicionam a vida das
personagens, inibindo a ação livre e racional, mas também definem os seus
destinos, impondo uma conduta autopunitiva e acentuando as cores da
tragédia familiar.
Semelhantemente, Portugal se revela, desde o século XVI,
demasiadamente atrelado a conceitos e dogmas cristãos que dificultam o
progresso da Nação e a tornam cada vez mais atrasada em relação às
transformações e progressos do mundo moderno. Tal problema não é apenas
institucional, mas essencialmente cultural. Como afirma Antero de Quental
"ha em todos nós, por mais modernos que queiramos ser, ha lá oculto,
dissimulado, mas não inteiramente morto, um beato, um fanático ou um
jesuíta! Esse moribundo que se ergue dentro de nós é o inimigo, é o
passado" (QUENTAL, 1943, p. 126).
De maneira concomitante e complementar ao conservadorismo religioso,
chegamos ao terceiro aspecto de nossa discussão: o sebastianismo.
Primeiramente, a difusão de elementos imaginativos inerentes à religião,
como o messianismo, constitui, segundo a análise de Antero de Quental, um
aspecto importante na cultura peninsular. O autor sustenta que "os povos
peninsulares são naturalmente religiosos: são-no até d'uma maneira ardente,
exaltada e exclusiva, e é esse um dos seus caracteres mais pronunciados.
Mas são ao mesmo tempo inventivos e independentes" (QUENTAL, 1943, p. 99).
Assim, o desaparecimento do rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-
Quibir passa a fazer parte do imaginário do povo português como a
representação concreta da decadência na qual o país mergulha, sendo que seu
esperado retorno marcaria o início do processo de recuperação da pátria. A
clara aproximação das imagens de D. Sebastião e de Jesus Cristo evidencia a
força do catolicismo na sociedade portuguesa, traço que se manterá aparente
até o século XX.
O movimento não representa apenas um desdobramento ou um sintoma da
crença religiosa da população, mas um resultado direto dela. Os santos e
mártires não criam a fé católica, mas são criados por ela. Nesse contexto,
ocorre o que poderíamos chamar de mistificação messiânica do destino
político-social de Portugal, o qual aguarda pacientemente a vinda de seu
redentor. Antero de Quental apresenta essa outra faceta da religião como
responsável direta pela origem do messianismo sebastianista, o qual, para o
autor, é um aprisionamento no passado e, por isso, um dos fatores do atraso
da nação.


A política, em vez de curar dos interesses verdadeiros do povo,
de se inspirar de um pensamento nacional, traía a sua missão,
fazendo-se instrumento da politica catholica romana, isto é, dos
interesses, das ambições de um estrangeiro. D. Sebastião, o
discípulo dos jesuítas vai morrer nos areais da Africa pela fé
catholica, não pela nação portuguesa [...] Se D. Sebastião não
fosse absoluto, não teria ido enterrar em Alcacer Kebir a nação
portuguesa, as últimas esperanças da pátria. (QUENTAL, 1943, p.
125, 128-129) [grifo do autor].

Na obra de Garrett, a alusão ao sebastianismo é evidente na
caracterização de D. João de Portugal, fidalgo português que desaparece na
mesma batalha que D. Sebastião. A personagem é o agente direto de todo o
conflito da peça e a causa primeira da tragédia que singulariza o seu
desfecho. Em relação a esse aspecto, a dicção crítica do autor se evidencia
de duas maneiras complementares.
Primeiramente, a ligação excessiva das personagens com o passado,
fazendo com que a tensão no presente seja contínua e as ações sejam
moldadas por antigos laços de fidelidade. Novamente, Telmo Pais surge como
uma figura emblemática dessa valorização utópica dos tempos idos. O
escudeiro não só é o único que acredita de forma inabalável no retorno de
seu mestre, mas também aquele que sustenta sua lealdade para com o passado
e para com a personagem que o simboliza. Tal posicionamento é mantido mesmo
diante da tragédia familiar por ele testemunhada e do sacrifício, de certa
forma expiatório, da pequena Maria.


ROMEIRO ( Basta: vai dizer-lhe que o peregrino era um impostor,
que desapareceu, que ninguém mais houve novas dele; que tudo
isto foi vil e grosseiro embuste dos inimigos de... dos inimigos
desse homem que ela ama... E que sossegue, que seja feliz.
Telmo, adeus!
TELMO ( E eu hei de mentir, Senhor, eu hei de renegar vós, como
ruim vilão que não sou? (GARRETT, 2005, p. 104-105).


Além disso, o reaparecimento de D. João de Portugal não traz consigo
nada além de dor e sofrimento. Os ideais de glória, júbilo e redenção que
cercavam a volta triunfal do nobre português se revelam como quimeras
herdadas de um passado distante e destoante com a realidade presente da
família e, em sentido mais amplo, de Portugal. A própria personagem
reconhece o infortúnio que acompanha seus passos em direção ao lar e que se
distribui para todos que o rodeiam. Entretanto, a consciência da personagem
em relação aos danos causados pelo seu retorno não impede a consumação da
tragédia.


ROMEIRO ( Eu... Vai, saberás de mim quando for tempo. Agora é
preciso remediar o mal feito. Fui imprudente, fui injusto, fui
duro e cruel. E para quê? D. João de Portugal morreu no dia em
que sua mulher disse que ele morrera. Sua mulher honrada e
virtuosa, sua mulher que ele amava... Oh, Telmo, Telmo, com que
amor a amava eu! Sua mulher que ele já não pode amar sem desonra
e vergonha!... Na hora em que ela acreditou na minha morte,
nessa hora morri. Com a mão que deu a outro riscou-me do número
dos vivos [...] De mim já não há senão esse nome, ainda honrado;
a memória dele que fique sem mancha. (GARRETT, 2005, p. 106).

Diante disso, percebemos a caracterização do messianismo
sebastianista, sob a pena de Garrett, como uma idealização ufanista do
passado e uma projeção utópica de um futuro mítico a ser alcançado pela
nação. De certa forma, a mitificação coíbe ações efetivas para reconstrução
da nação, tanto no século XVII quanto no século XIX. Para autores como
Garrett e Antero, a crença cega no sebastianismo não é apenas a máscara que
impede a visão plena e consciente da decadência da pátria, mas também uma
das causas para o agravamento da "tragédia" portuguesa.
À guisa de conclusão, a peça Frei Luís de Souza representa uma
convergência de diferentes ideais românticos do Oitocentos, com o pungente
impulso de interpelação da Pátria compartilhado por vários autores
portugueses do período. Na obra, o passado, ao mesmo tempo em que fornece
exemplos e referências, restringe o imaginário nacionalista a projeções
nostálgicas e a ação transformadora a rompantes anacrônicos. O absolutismo
monárquico obriga, por meio de suas arbitrariedades e de sua dinâmica
interna de poder, o povo português a lançar um olhar relativista sobre seu
próprio passado e seu incerto futuro. Se a religião, por um lado,
possibilita laços éticos e morais que caracterizam a cultura da nação, por
outro, preenche as lacunas da história com dogmas, espectros e utopias
messiânicas.
Ao unir na peça dois momentos históricos de Portugal ( o do cronótopo
do texto e o da sua primeira recepção ( sob o signo de um novo modelo de
tragédia, Garrett insere, tanto no sentido formal quanto temático, a nação
no fluxo de problematizações e transformações que definiu a instabilidade e
a ruptura como emblemas da modernidade.




Referências bibliográficas

BERLIN, Isaiah. Limites da Utopia: Capítulos da História das Idéias. São
Paulo: Companhia das Letras: 1991.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia
das Letras, 1981.

GARRETT, Almeida. Frei Luís de Souza. São Paulo: Martin Claret, 2005.

GUINSBURG, J. (Org.). O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A, 2002.

LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da saudade: psicanálise mítica do destino
português. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988.

QUENTAL, Antero de. Prosas Escolhidas. Seleção, prefácio e notas de
Fidelino de Figueiredo. Rio de Janeiro: Livros de Portugal Ltda., 1943.

SALIBA, Elias Thomé. As utopias românticas. São Paulo: Edições Liberdade,
2003.


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( Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Professor Assistente da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-
mail: [email protected]
[1] Ainda que o Romantismo concentre suas raízes nas Alemanha, o primeiro
uso do termo "romântico", na acepção característica do movimento cultural
do século XIX, foi verificado na obra Devaneios de um caminhante solitário,
de Jean Jacques Rousseau, publicada em 1777. "As margens do lago Bienne são
mais selvagens e românticas do que as do lago de Genebra, porque nelas os
rochedos e os bosques cercam a água mais de perto, mas elas não são menos
agradáveis" (ROUSSEAU, apud SALIBA, 2003, p. 13.) [grifo nosso].
[2] Uma parte da literatura romântica não apenas promove um retorno ao
passado, mas também concentra seu foco sobre aquilo que era entendido como
o núcleo de todas as mudanças: o espírito humano. A ação individual e a
integração do sujeito com o ambiente que o circunda passam a servir como
parâmetros de discussão sobre as concepções e possíveis transformações da
realidade social e espiritual. Em alguns casos, a própria inadequação de
certas personagens ao meio no qual se incluem atua como instrumento de
problematização da constante ruptura de paradigmas. Autores como Goethe,
Fichte, Ralph Waldo Emerson, William Blake e William Wordsworth
exemplificam em algumas de suas obras essa ênfase na subjetividade e nos
processos de interiorização e mistificação do mundo experimental.
[3] É singular condição dos mais belos fatos e dos mais belos caracteres
que ornam os fastos portugueses, serem tantos deles, quase todos eles de
uma extrema e estreme simplicidade. As figuras, os grupos, as situações de
nossa história ( ou de nossa tradição ( que para aqui tanto vale ( parecem
mais talhados para se moldarem e vazarem na solenidade severa e quase
estatutária da tragédia antiga do que para se pintarem nos quadros, mais
animados, talvez, porém menos profundamente impressivos, do drama novo ( ou
para se entrelaçarem nos arabescos do moderno romance (GARRETT, 2005, p.
21).
[4] Em seu discurso intitulado Causas da decadência dos povos peninsulares
nos últimos três séculos, Antero de Quental parece recuperar a figura
metafórica de Manuel de Sousa Coutinho utilizada por Garrett ao referir-se
à expansão marítima portuguesa e à resultante decadência da nação.
"Portugal, o Portugal das conquistas, é esse guerreiro altivo, nobre e
fantástico, que voluntariamente arruína as suas propriedades, para maior
glória, do seu absurdo idealismo" (QUENTAL, 1943, p. 135-136).
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