Nakirigrafias e Currículo: territórios de atravessamentos

Share Embed


Descrição do Produto

VIIColóquio ColóquioInternacional InternacionaldedePolíticas Políticase ePráticas PráticasCurriculares Curriculares VII GrupodedeEstudos Estudose ePesquisas Pesquisasem emPolíticas PolíticasCurriculares Curriculares Grupo João Pessoa, Paraíba, Brasil

12 A 14 De Novembro De 2015

NAKIRIGRAFIAS E CURRÍCULO: TERRITÓRIOS DE ATRAVESSAMENTOS MENDES, Geoésley1

RESUMO Na tentativa de compreender o território escolar por uma perspectiva de fotografia como território de atravessamentos/interação de imagens, surge aqui uma reflexão sobre Currículo, tecida em diálogo com as narrativas imagéticas de sujeitos “que estão em deslocamentos e em diálogo”. Configurada a partir de uma narrativa do povo Baga de Guiné/África, a ideia de nakirigrafias como campo de interação de linguagens/imagens nos proporciona deslocamento da racionalidade moderna que tenta impossibilitar que enxerguemos, também no campo do Currículo, saberes/práticas cotidianos que influenciam o curso “normal” de uma ordem escolar. O fio que conduz a ideia das nakirigrafias para pensarmos o Currículo é tecido pela ideia deste como um território de travessias também das culturas negras diaspóricas, chão onde acontecem processos culturais e cognitivos desenvolvidos na interação, no diálogo, entre diferenças/outros. Palavras-chave: Nakirigrafias. Culturas negras. Território. Currículo. Diálogo.

ABSTRACT In an attempt to understand the school territory through a photography perspective as crossing territory/images in interaction, emerge here a reflection on Curriculum, woven into dialogue with imagetic narratives of subjects "who are in displacement and in dialogue". Configured from a narrative of the Baga people of Guinea/Africa, the nakirigraphies idea as a field of languages/images in interactions provides us a displacement out of the modern rationality that tries to make it impossible to see, also in the field of Curriculum, knowledges/practices of everyday life that influence the "normal" course of a scholar order. The thread that leads the nakirigraphies idea to think the Curriculum is pulled by the idea of this field as a crossing territory also of black cultures diasporics, ground where happen cultural and cognitive processes developed in interaction, dialogue, among differences. Keywords: Nakirigraphies. Black cultures. Territory. Curriculum. Dialogue.

1

Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Grupo de Pesquisa Culturas e Identidades no Cotidiano, Rio de Janeiro/RJ, Brasil, [email protected]

VIIColóquio ColóquioInternacional InternacionaldedePolíticas Políticase ePráticas PráticasCurriculares Curriculares VII GrupodedeEstudos Estudose ePesquisas Pesquisasem emPolíticas PolíticasCurriculares Curriculares Grupo João Pessoa, Paraíba, Brasil

12 A 14 De Novembro De 2015

Histórias reiniciam o mundo. Mia Couto Introdução

De que modo a diáspora negra pode trazer contribuições importantes para pensarmos o Currículo, considerando que a escola também é um espaçotempo2 de dispersão das culturas negras por conta de seu caráter fortemente político (GILROY, 2001)? Este texto retrata uma tentativa de compreensão do Currículo por meio de uma perspectiva afrodiaspórica, a qual venho chamando de perspectiva das nakirigrafias. Paralelamente a isto, amplia-se um caminho para pensarmos a Educação, a pesquisa em Ciências Humanas, e a vida. As últimas palavras de Mia Couto proferidas na aula magna ministrada no início do segundo semestre do ano letivo de 2014 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul3 são instigantes para a tarefa à qual me proponho aqui: pensar o Currículo como um espaçotempo de atravessamentos, portanto de interação que se fundamenta no diálogo entre histórias/imagens. Este acontecimento, adianto, é marcado e inspirado pelas ações políticas que acontecem no campo do Cotidiano (CERTEAU, 1998), nas fronteiras geográficas da diáspora negra (GILROY, 2001), nos Estudos da Linguagem de Mikhail Bakhtin (1997; 2006), e nos Estudos Culturais e Pós-coloniais (HALL, 2003; BHABHA, 1998). De outra forma, penso, o que o escritor moçambicano nos conta ajuda tensionar uma realidade baseada apenas em uma episteme que privilegia modelos e conteúdos reprodutores da lógica colonial/determinista/totalizante. Para Mia Couto (2014):

As guerras e as feras não devoram só a gente. Devoram nossa própria humanidade. As pequenas histórias que somos capazes de contar não fazem parar essa máquina de governação que se fundamenta na fabricação do terror, do medo. Mas as pequenas histórias podem ser o ponto de partida contra uma grande narrativa, que é a narrativa do medo. Roubaram-nos o passado e o futuro, mas não podemos permitir que nos roubem a autoria da nossa própria história de vida. As histórias reiniciam o mundo.

2

Este, entre outros termos escritos dessa forma, a indicar uma não separação, marcam aqui a escolha epistemológica e política para as pesquisas com os cotidianos, na tentativa de tensionar as dicotomias herdadas do pensamento científico moderno (ALVES, 2013; OLVEIRA, 2013). 3 Ver referências.

VIIColóquio ColóquioInternacional InternacionaldedePolíticas Políticase ePráticas PráticasCurriculares Curriculares VII GrupodedeEstudos Estudose ePesquisas Pesquisasem emPolíticas PolíticasCurriculares Curriculares Grupo João Pessoa, Paraíba, Brasil

12 A 14 De Novembro De 2015

Com base nesta imagem de Mia Couto, diria que as pequenas histórias nos humanizam, dão sentido à vida, e nos ajudam compreender o mundo de forma a perceber como Santos (2002), para quem a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que o pensamento político e filosófico ocidental conhece e considera válida. De igual modo, a concepção social e cultural do Currículo pode ser muito mais ampla e variada do que uma suposta macronarrativa diz sobre ele. Quero seguir a luz lançada por Mia Couto para o desenvolvimento desse texto, principalmente a que clareia o pensamento no qual só há uma maneira de contar uma história: contando outra história. No acaso do desenvolvimento da minha reflexão sobre o Currículo, esta tem emergido paralelamente à história do meu processo de reflexão do espaçotempo escolar com o auxílio de imagens produzidas por meio de aparelhos – imagens técnicas, segundo Flusser (1989) -, mas especificamente fotografias. É por meio dessa história que sou levado a pensar o Currículo.

O Kalum, a Escola e o Currículo: imagens de campos atravessados e em atravessamentos/interação

O estudo, como tentativa de compreensão de escola, foi realizado no diálogo com meus interlocutores na/a partir de minha pesquisa de campo do mestrado em Educação. De outra forma, diria, sem eles, muito provavelmente eu não conseguiria fazer esta reflexão. A pesquisa4 foi realizada em uma escola pública da República da Guiné, talvez mais conhecida por Guiné Conacri, em África, onde propus a produção e uso de fotografias de modo que esta fosse o laço principal de constatação/documentação de uma imagem/imaginário de escola, a colonial. Entretanto, no processo de pesquisa com o grupo de estudantes - crianças e jovens guineanos - fui percebendo que as fotografias produzidas por eles e elas estavam sendo usadas (CERTEAU, 1998) para narrar suas histórias e experiências, por meio das quais a escola aparecia resignificada. Este segundo momento passou me deslocar, política e epistemologicamente, do único ponto pelo qual eu via a escola, e a mim mesmo, e me possibilitou, embora na fase final do mestrado, adentrar com pretensa lucidez em um universo teórico-metodológico que me instiga compreender o espaçotempo escolar pela perspectiva que tensiona o discurso de completude, estaticidade e totalidade desse/nesse contexto educativo.

4

Pesquisa realizada com o apoio do CNPq (2013-2014). Ver referência (MENDES, 2015).

VIIColóquio ColóquioInternacional InternacionaldedePolíticas Políticase ePráticas PráticasCurriculares Curriculares VII GrupodedeEstudos Estudose ePesquisas Pesquisasem emPolíticas PolíticasCurriculares Curriculares Grupo João Pessoa, Paraíba, Brasil

12 A 14 De Novembro De 2015

Neste contra movimento de minha ida ao campo da pesquisa, as fotografias produzidas pelo grupo de estudantes – no curso de uma oficina de fotografias – passaram exercer um papel muito importante, de forma a potencializar esse deslocamento: enquanto tensionavam a perspectiva de imagem da escola, a imaginação política5 (DIDI-HUBERMAN, 2011) e cultural baseada apenas em uma perspectiva filosofia, política e epistemológica que conta e legitima com interesse uma única história – da qual eu não conseguia me desvencilhar traziam-me faíscas de luzes que me levaram a seguir por um caminho de pensamento do espaçotempo escolar por meio de outras imagens, onde há sujeitos com quem falo, que falam comigo, e falam uns com os outros, apontando-me que a realidade escolar é mais complexa do que o que dizem sobre ela. Baseado em Didi-Huberman (apud COSTA, 2009), diria que as fotografias passaram trabalhar nessa relação como imagens-sintomas por conta do paradoxo visual posto às claras.

O paradoxo visual é a aparição: um sintoma aparece, um sintoma sobrevive, interrompe o curso normal de uma coisa segundo uma lei – tão soberana como subterrânea que resiste à observação banal. O que a imagem-sintoma interrompe não é outra coisa senão o curso normal da representação (p. 91).

Talvez como o voo de um vaga-lume (alusão à DIDI-HUBERMAN, 2011), ou quem sabe um lampejo nas trevas de minha primeira perspectiva de observação da escola, o jogo de interação - os posicionamentos e as enunciações dos sujeitos daquela escola que marcam e inspiram a ação política que alude à igualdade de poder dos sujeitos - passou a ser percebido por mim mais fortemente no processo de escrita de minha dissertação de mestrado, e mais especificamente no diálogo com as centenas de fotografias produzidas pelos/as 12 estudantes guineanos/as. Tal acontecimento, percebido por mim na grande maioria das fotografias, parece marcar mais fortemente o que, implicando na emergência de saberes, de relações, de narrativas, por conta do afetamento experimentado, Passos (2014) chama de encontro (p. 24). O encontro é o acontecimento que se dá entre sujeitos, ou entre um sujeito e um objeto, cujo afetamento produz emergência de saberes, de linguagens. Esta experiência numa escola de Guiné, sinalizando o início de um deslocamento epistemológico e político, acende em mim - paralelamente ao interesse de pensar a escola no imaginário de estudantes brasileiros a partir de uma ideia associada à negociação cultural, pretendida pelo espaçotempo imaginado e chamado por Gilroy (2001) de Atlântico Negro 5

Para Didi-Huberman (2011), em nosso modo de imaginar jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer política. A imaginação(imagem) é política (p. 60, 61 (grifo meu)).

VIIColóquio ColóquioInternacional InternacionaldedePolíticas Políticase ePráticas PráticasCurriculares Curriculares VII GrupodedeEstudos Estudose ePesquisas Pesquisasem emPolíticas PolíticasCurriculares Curriculares Grupo João Pessoa, Paraíba, Brasil

12 A 14 De Novembro De 2015

um grande interesse de também pensar o Currículo por uma perspectiva que tem apontado para um campo em atravessamentos – e já atravessado – portanto de a interação/diálogo entre políticaspráticas6 (OLIVEIRA, 2013), redes/discursos e histórias (trans)formadas pelas condições das travessias e dos deslocamentos, sobretudo o imaginativo, que incorporam um modo de produção cultural (REIS, 2012). Mais diretamente, a perspectiva afrodiaspóricas – uma perspectiva de travessias e encontros - potencializa aqui uma reflexão do Currículo pela perspectiva nakirigráfica, que se diferencia de uma possível perspectiva fotográfica de cunho conservador cujo viés sustentador é a estaticidade, legitimação de uma imagem. Neste percurso reflexivo tenho pensado imagem para além de uma fotografia. O que não me inibe de reconhecer uma fotografia como flecha que me direciona a tentativas de compreensão de imagem. Tenho questionado uma imagem simplesmente como fotografia. De outra forma, imagem não seria aquilo que consta – em sua pluralidade - em uma ou em um grupo de fotografias? Uma fotografia não seria então um dispositivo técnico por meio do qual se quer fazer aparecer imagens (luzes) que, por assim dizer, deixam de ser absolutas, concretas, para nos conectar à outras luzes/imagens/histórias? Didi-Huberman (2011) chamaria essas imagens/luzes de lucciole, referindo-se às pequenas histórias, ao que é inventivo e criador. Já Mia Couto, no contexto da epígrafe desse texto, diria dessas luzes aquilo que é capaz de reiniciar o mundo, apontando sua incompletude. Portanto, imagens, no contexto dessa reflexão, não contam, ou reforçam, uma história; elas ajudam contar histórias relacionadas com outras histórias que interagem entre si e se transformam. De outra maneira, é como se uma fotografia nos levasse – e nos trouxesse - a outros enredos, para frasear Didi-Huberman (2013), rasgando histórias. O que me faz pensála, na esteira de Walter Benjamin (1994), como um campo de passagem. A fotografia - como um campo de linguagens, portanto de imagens - tem sido considerada como potente promotor de deslocamentos imaginativos, ao trazer os muitos sentidos que lhe constituem e dialogam entre si, dialogando conosco. Assim como a palavra é para Bakhtin (2006) um signo ideológico constituído pelo diálogo entre muitos sentidos, a fotografia também tem sido considerada aqui como um campo, uma arena de disputa/diálogo entre muitos sentidos, entre muitas imagens. Desse modo, tem sido considerada um relevante objeto que condiz tanto a uma enunciação/narrativa do sujeito que a produz quanto um território de atravessamentos – porque não estático, não

6

De acordo com Oliveira (2013), pesquisadora do campo do Currículo por uma perspectiva do Cotidiano, esses termos não se separam porque não há prática que não integre uma política, e não há política que se expresse por meio de práticas e que por elas não seja influenciada (p. 376).

VIIColóquio ColóquioInternacional InternacionaldedePolíticas Políticase ePráticas PráticasCurriculares Curriculares VII GrupodedeEstudos Estudose ePesquisas Pesquisasem emPolíticas PolíticasCurriculares Curriculares Grupo João Pessoa, Paraíba, Brasil

12 A 14 De Novembro De 2015

acabado - de interação entre enunciações/ações políticas/ideologias porque é vista como um território de passagens, travessias e interações/encontros de diferentes histórias, diversos saberes e conhecimentos. Essa ideia pode nos conectar ao campo do Currículo como espaçotempo dinâmico, ‘habitado’ e atravessado por relações/interações entre saberes e poderes. É pela perspectiva de análise da imagem fotográfica como território de movimentos/interação – na linha da abordagem transnacional de Reis (2012) onde a diáspora negra é vista como território de movimento social, porque de ações políticas e negociação cultural – que tento perceber o Currículo. Ou seja, a partir de uma orientação teórica cujas pistas dadas justificam meu interesse de pensar a escola como um território não unificado, não estático, mas ‘habitado’ por políticaspráticas (OLIVEIRA, 2013) que representam diferenças e identificações atravessadas por densas divisões (REIS, 2012) que interagem/negociam entre si. Isto mostra uma tentativa de diálogo com a miragem na qual a fotografia – o território escolar e o Currículo - está somente como campo de uma verdade, de um poder, de acabamento/fixidez de uma realidade – uma ideia supostamente hegemônica em nossa época. No ventre da perspectiva diferente pela qual venho considerando a fotografia, o Kalum dos nakirikai, apresentado por Rivière (apud MENDES, 2015, p. 25, 26), parece-me uma boa imagem para mostrar como tenho buscado pensar também o Currículo. Esta história tem me orientado também nesta reflexão por conta do grau de minha identificação com ela. Afinal de contas, nos lembra Didi-Huberman (2011) mais uma vez, as imagens/histórias que selecionamos, para trazer outras, muito dizem de nós. Assim, ao contarmos o que nos interessa com as histórias selecionadas, elas são apontadas como políticas. Pela narrativa do povo baga da Guiné Conacri apresentada por Rivière percebo o Kalum, hoje território da capital da Guiné, Conacri,

como

um território de

travessias/passagens de povos, antes da invasão europeia. Portanto um espaçotempo certamente cheio de interações. Ideia de território que me conecta ao Atlântico Negro de Paul Gilroy (2001). No Kalum, as travessias por esta península, inclusive para as ilhas que ficam à sua ponta, eram voluntariamente constantes, tanto de um lado a outro da península quanto às ilhas. E eram motivadas pelos encontros que se davam entre os povos que lá moravam/passavam celebrando a vida – inclusive a vida gerada por meio da morte – com as trocas de alimentos e experiências. Como se estivéssemos numa rede de conexões, o Kalum – pedaço de terra – me remete

VIIColóquio ColóquioInternacional InternacionaldedePolíticas Políticase ePráticas PráticasCurriculares Curriculares VII GrupodedeEstudos Estudose ePesquisas Pesquisasem emPolíticas PolíticasCurriculares Curriculares Grupo João Pessoa, Paraíba, Brasil

12 A 14 De Novembro De 2015

também ao “Kalunga” de Pereira (apud REIS, 2012, p. 15), mas com um sentido, senão oposto, pelo menos diferente. Segundo Pereira (ibid.), o termo “Kalunga”, entre outros sentidos que possui, está associado à ideia de oceano e mar. Mas um mar como local de travessias em direção somente à degradação, à morte (inexistência/silenciamento), no contexto do tráfico de escravizados. Passar “pela Kalunga” (feminino em língua banto) significava morrer, passar pela fronteira que dava acesso ao mundo dos mortos. Talvez a imagem da Kalunga se equipare à das guerras e das feras que devoram a humanidade da gente, conforme explica Mia Couto. Enquanto “a kalunga” estava sempre associada a um local de perigo, percebemos que o Kalum dos baga parece estar mais associado à vida, pelos movimentos, deslocamentos, conexões e alianças (aqui sou remetido às alianças da diáspora negra, mostradas por Gilroy (2001), como garantia de manutenção das memórias, histórias e identidades de suas populações), como condições vitais. Ideia que me traz sempre a palavra falada como principal elo permissor das interações nesses acontecimentos. Não obstante, bem nos ensina Hampatê Bâ (1977), a palavra, na tradição oral africana – permeando praticamente todas as culturas africanas -, tem conotação de força vital, de vibração e movimento dessa força que faz existir todas as coisas – visíveis e invisíveis - no universo da fala. Concordando, portanto, com Bâ (ibid.), diria que a palavra no Kalum proporcionava vida e criação (p. 185), e era o que potencializava os motivos das travessias naquele território. Na cultura sosso, a do povo que passara chegar e trazer à península sua língua e sua forma de compreender o mundo, nakiri tem sentido de “o outro lado”, com uma relação possivelmente mais voltada ao espaço. E nakirikai, “os moradores do outro lado”, com uma relação talvez mais voltada a uma história/tempo do/no espaço. Vale destacar, no encontro dos sosso com os povos do Kalum, percebemos aqui que falando/enunciando – passando a existir para os outros (FANON, 2008, p. 33) - os sosso também diziam como se compreendiam naquele mundo. Possivelmente era como nakirikai que se viam/se sentiam porque eram populações em deslocamento, em passagem – e em diálogo – vindo das terras de Krina localizadas no antigo Império do Mali, mais ao norte do Kalum. Aqui me remeto à histórica Batalha de Kirina, quando o rei Soso a perde e deve deixar a terra com parte de seu povo (NIANE, 1982). Parece perceptível que ser nakirikai, na perspectiva sosso, para todos que estavam no Kalum, não dependia apenas de onde o sujeito estava. Dependia fundamentalmente de seus movimentos e interação. Para todos os insulares, nakirikai eram as pessoas que estavam na/vinham das ilhas que ficam à ponta da península; e para quem estava na/vinha das ilhas, os

VIIColóquio ColóquioInternacional InternacionaldedePolíticas Políticase ePráticas PráticasCurriculares Curriculares VII GrupodedeEstudos Estudose ePesquisas Pesquisasem emPolíticas PolíticasCurriculares Curriculares Grupo João Pessoa, Paraíba, Brasil

12 A 14 De Novembro De 2015

insulares eram nakirikai. O que pressupõe ao Kalum não somente território de passagens, mas principalmente de diálogo/interação. Pelas suas condições culturais, e com a chegada dos sosso ao Kalum, todas as pessoas ali passaram ser vistas como nakirikai ao estarem sendo contatadas umas pelas outras em suas travessias de um lado para outro do território. Isso me leva cada vez mais crer que as travessias aconteciam principalmente com o objetivo da interação por meio da palavra – possibilitando a circulação de histórias e sentimentos - que ligava todas as coisas e todos os seres, dando sentido à humanidade daqueles povos. Nessa perspectiva, não seria então a travessia uma busca pela alteridade como condição de sua humanidade? Esta história sobre a dinâmica dos deslocamentos, travessias e interação, além de nos permitir dizer com Rivière (apud MENDES, 2015) que seria possível estender o sentido do nome nakirikai a todos os povos até os dias de hoje, no Brasil, ou em outros lugares do mundo, onde acontecimentos lhes proporcionem experiências e outros saberes com quem está em passagem, também nos permite pensar sobre fotografia na conjuntura dessa narrativa africana e dessa reflexão no campo do Currículo. Se fotografia, a partir do grego, significa “escrita/desenho/narrativa” com luz, diria então que as fotografias produzidas pelos/pelas estudantes

que

participaram

diretamente

de

minha

pesquisa

de

mestrado

são

“escritas/narrativas” de nakirikai, sujeitos“de outro lado” que estão em travessias/trânsito e interação. Assim sendo, elas passam ser consideradas, pela sua orientação e função cultural, política e epistemológica, como nakirigrafias. As nakirigrafias são, portanto, enunciações, histórias, imagens e também – como o Kalum – território de histórias que nos ajudam tecer imagens de epaçotempo de escola no Brasil e imagens do Currículo. Como lampejos (“luzes”) - e território de faíscas que se “afetam” e geram outras – as fotografias que vieram comigo da Guiné ao Brasil, vistas pela perspectiva das nakirigrafias, me convidam à reflexão do que não – não só - necessariamente estaria como absoluto/concreto no Currículo. O que este posicionamento político e epistemológico nos propõe no campo da fotografia seria também um caminho de idas e voltas aos encontros de outros - pressupostos e necessários nos territórios de travessias para a ocorrência de interações - de outras histórias partes de uma narrativa/campo maior. Assim, as imagens fotográficas – as nakirigrafias – nesse processo de reflexão, tendem a nos ajudar pensar imagem/imaginário de escola e de Currículo. Como estes campos são compreendidos? A imagem da travessia como um espaçotempo contínuo de busca pelo outro, portanto por encontros/interação/produção de linguagem é o que potencializa meu interesse pela imaginação do Currículo na mesma linha. Este território de percursos com os outros está para

VIIColóquio ColóquioInternacional InternacionaldedePolíticas Políticase ePráticas PráticasCurriculares Curriculares VII GrupodedeEstudos Estudose ePesquisas Pesquisasem emPolíticas PolíticasCurriculares Curriculares Grupo João Pessoa, Paraíba, Brasil

12 A 14 De Novembro De 2015

um território – como o Kalum, a escola e a fotografia – ao qual sou remetido por Passos (2014) também à imagem de ponte lançada entre eu e os outros (p. 113), na qual, de acordo com a autora apoiada na perspctiva bakhtiniana de palavra como território comum do locutor e do interlocutor (ibid.), há um apoio para mim em uma extremidade e na outra um apoio para o

meu interlocutor. Ao longo de sua extensão, diria, há um trajeto de/para diálogo, principalmente quando levamos em consideração que a palavra, para Bakhtin (2006), é sempre construída/o nas relações entre os sujeitos de um discurso. De outra forma, se não vermos a ponte/palavra/imagem como um território de atravessamentos, ela não teria relevância para a perspectiva da travessia. Se por um lado, penso o campo do Currículo como um território de interação, é pensando a fotografia e o espaçotempo escolar que uma ponte cultural e epistemológica é construída para que eu chegasse a tal imagem de pensamento. Neste caso, há uma ponte imaginária, portanto política, que assegura nosso interesse de compreender o Currículo, ‘caminhando’ com a alteridade/diferença. Nessa caminhada, aquilo que só o outro tem de mim – incluso minha forma de ver meu objeto de estudo - e me escapa, passa a existir na interação, no diálogo. A partir dos estudos bakhtinianos, o excedente de visão é considerado como aquilo que surge a partir da posição que cada sujeito ocupa no mundo, o que lhe permite um ponto de vista particular e singular/único. Tamanha é sua importância para pensarmos a construção do Currículo. É na travessia que passamos ver o que o outro vê - talvez não víssemos de outro lugar e sem o movimento – e olhar do que o outro olha – que talvez também não olhássemos de outro lugar e de outro modo. A minha experiência de pesquisador entre Brasil e África mostra-me que é nas travessias que reconheço os outros que formam comigo o círculo e a circularidade que a palavra e a imagem nos conectam.

Considerações Finais

Neste sentido, em que medida é possível, ou, como compreender o Currículo como território de uma dinâmica políticacultural nakirigráfica/afrodiaspórica? Atrelada a esta questão está a sempre questionável tentativa de construção e mise en pratique de um currículo que se pretende unilateral, imposto de “cima” para “baixo”, do ‘Norte’ global para o ‘Sul’, para citar a perspectiva de Boaventura de Sousa Santos (2010). Como se fundamentaria, então, a tessitura do currículo fora das interações, dos diálogos, com os sujeitos que compõem o espaçotempo escolar?

VIIColóquio ColóquioInternacional InternacionaldedePolíticas Políticase ePráticas PráticasCurriculares Curriculares VII GrupodedeEstudos Estudose ePesquisas Pesquisasem emPolíticas PolíticasCurriculares Curriculares Grupo João Pessoa, Paraíba, Brasil

12 A 14 De Novembro De 2015

Aprendemos com Amorim (2004) que sem reconhecimento da alteridade não há objeto de pesquisa e isso faz com que toda tentativa de compreensão e de diálogo se construa sempre na referência aos limites dessa tentativa (p. 29). Complementando, a mesma autora ainda diz que o próprio fato de que todo objeto de ‘estudo’ é um objeto construído e não imediatamente dado, já implica um trabalho de negociação com os graus de alteridade que podem suportar a pesquisa e o pesquisador (p. 29, 30 – ‘grifo meu’). Embora, Amorim (ibid.) desenvolva seu pensamento no campo direto da pesquisa em Ciências Humanas, não seria incoerente aportar sua perspectiva no campo específico do Currículo. Neste território também há a necessidade de outros que nos olham e dizem quem somos, passando a nos ‘habitar’, da mesma forma que olha, diz e influencia as políticaspráticas (OLIVEIRA, 2013) curriculares e o curso das atividades escolares. Não seria por outro caminho, senão pelo da interação entre outros, que um pensamento ético sobre o Currículo precisa se fundamentar. O caminho desse pensamento, portanto, vai se produzindo entre a nossa história e as histórias de outros que compõem a escola, em travessias cujos passos, olhares e escuta, estão sempre em busca de conexão, propondo uma atitude diaspórica nesse trânsito. Para copiar a ideia de sujeito diaspórico de Hall (2003), na qual o sujeito é ‘habitado’ por muitos outros que encontram-se sempre em diálogo - diria que a condição de território diaspórico do Currículo, o que quer dizer em atravessamentos, aponta para uma perspectiva de território cultural e cognitivamente “impuro”, na visão cultural dominante, porque marca seu hibridismo (BHABHA, 1998), enfatizando os muitos encontros entre imagens, saberes e culturas que aí acontecem. Esta ideia me deixa na memória a potência das criações que se dão nos/a partir dos encontros, onde o deixar-se afetar pela palavra [imagens] do outro gera a necessidade de emergência de sentidos (PASSOS, 2014) e de reinício do mundo, e do Currículo. Que as histórias que se encontram no espaçotempo do Currículo reiniciem nossa compreensão de escola e da vida!

Referências Bibliográficas

ALVES, Nilda. Possibilidades de ‘uso’ de fotografias nas pesquisas de ‘espaçostempos’ de escolas. Revista Brasileira de Educação em Geografia, v., 3, n. 6, 2013. AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Ed., 2004.

VIIColóquio ColóquioInternacional InternacionaldedePolíticas Políticase ePráticas PráticasCurriculares Curriculares VII GrupodedeEstudos Estudose ePesquisas Pesquisasem emPolíticas PolíticasCurriculares Curriculares Grupo João Pessoa, Paraíba, Brasil

12 A 14 De Novembro De 2015

BÂ, Amadou Hampaté. A Tradição Viva: as características da cultura tradicional africana, suas múltiplas facetas, a oralidade, mitologia, religiosidade e formas de expressão. In: Introdução à Cultura Africana. Lisboa: Ed. 70, 1977. BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Tradução feita a partir do francês por Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ____________. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política : ensaios sobre literatura e história da cultura. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. CERTEAU, M. De. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998. COSTA, Luciano Bernadino da. Imagem dialética/imagem crítica: um percurso de Walter Benjamin à George Didi-Huberman. V Encontro de História da Arte - IFCH / UNICAMP, 2009. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: UFMG, 2011. _______________________. Diante da Imagem: questões colocadas aos fins de uma história da arte. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. FLUSSER, V. Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Lisboa: Relógio D’água, 1989. GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Ed. 34. Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. MENDES, Geoésley José. Negreiros. Nakirigrafias como potencializadoras de compreensão da escola em/a partir de Guiné Conacri/África. 2015. Dissertação de Mestrado em Educação – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em www.proped.pro.br NIANE, Djibril Tamsir. Sundjata, ou, a epopeia mandinga. Tradução de Oswaldo Biato. São Paulo: Ática, 1982. OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Currículo e processos de aprendizagem ensino: Políticaspráticas Educacionais Cotidianas. Currículo sem Fronteiras, v. 13, n. 3, p. 375-391, set./dez. 2013.

VIIColóquio ColóquioInternacional InternacionaldedePolíticas Políticase ePráticas PráticasCurriculares Curriculares VII GrupodedeEstudos Estudose ePesquisas Pesquisasem emPolíticas PolíticasCurriculares Curriculares Grupo João Pessoa, Paraíba, Brasil

12 A 14 De Novembro De 2015

PASSOS, Mailsa C. P. Encontros cotidianos e a pesquisa em Educação: relações raciais, experiência dialógica e processos de identificação. Educar em Revista, Curitiba, n. 51, p. 227242, jan./mar. 2014. ________________. O jongo, o jogo, a ong: Um estudo etnográfico sobre a transmissão da prática cultural do jongo em dois grupos do Rio de Janeiro. Tese de doutorado – PUC. Rio de Janeiro, 2004. Disponível em http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br REIS, Marilise Luiza Martins dos. DIÁSPORA COMO MOVIMENTO SOCIAL: A Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diaspora e as políticas de combate do racismo numa perspectiva transnacional. 2012. Tese de Doutorado em Sociologia Política – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/100761/308891.pdf?sequence=1 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, p. 237-280, out., 2002. __________________________. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. Vídeo UFRGSTV. Aula Magna com Mia Couto. Disponível em: . Acesso em: 16 de agosto 2015.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.