Não cobiçarás a mulher do próximo

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[Os números entre colchetes ao longo do documento fazem referência à paginação do texto publicado no livro: Fidelis, K.; Belo, F. (2015). Não cobiçarás a mulher do próximo. In Belo, F. (org.). O ciúme dos homens. Petrópolis, RJ: KBR, pp. 157-174.] [157]Não cobiçarás a mulher do próximo Kaio Fidelis & Fábio Belo

Inspirado nos Dez Mandamentos, Krzysztof Kieslowski idealizou, escreveu e dirigiu dez episódios de curta-metragem intitulados “Dekalog”, criados originalmente como uma série televisiva e posteriormente adaptados para o cinema. De modo particular, se interconectam nos episódios as vidas dos habitantes de uma vila de Varsóvia, criando assim uma interpretação moderna da Lei de Deus. Pretende-se, a partir de uma análise do filme “Não cobiçarás a mulher do próximo”, fazer uma leitura psicanalítica acerca do masoquismo e seus desdobramentos nos ciúmes dos homens. Tendo o personagem Roman como exemplo, procura-se analisar as consequências psíquicas do ciúme na vida do sujeito como defesa para operar com o masoquismo e as contribuições da psicanálise a esse tema.

Advertência metodológica Žižek (2001), em seu livro sobre a obra cinematográfica de Krzysztof Kieslowski, se pergunta se os estudos culturais [158] atuais são um instrumento para crítica do discurso capitalista ou uma manifestação cultural da mesma lógica. O que Žižek expõe é que, contrariando a rigidez científica, no campo cultural se inscrevem uma infinidade de estilos de vida e manifestações sociais que não podem ser traduzidos uns pelos outros, mas, e aqui reside a lucidez do autor, “o que podemos fazer é garantir as condições para a sua coexistência tolerante em uma sociedade multicultural” (Žižek, 2001, p. 7). O mesmo poderia ser dito sobre os diferentes olhares teóricos possíveis sobre essas manifestações; o que defendemos aqui é que devemos sustentar os conflitos e nos posicionar de maneira que a psicanálise seja uma entre tantas outras chaves de leitura. Colocando-se claramente contra um apelo historicista ideológico, Žižek (2001) recupera o comentário de Marx acerca da poesia de Homero: que a poesia de Homero tenha emergido da sociedade grega antiga é de fácil explicação; o ponto é exatamente

elucidar o fascínio que essa obra ainda exerce universalmente. Sobre Kieslowski, a lógica é semelhante. O contexto da Europa Central, no qual o diretor está inserido, ainda que sem cair em armadilhas fáceis, fica explícito em seus filmes, é fácil identificar suas “raízes” no momento ímpar do socialismo polonês em decadência; muito mais difícil é explicar o apelo universal de sua obra, a forma como seus filmes tocam nos nervos de pessoas que não têm ideia alguma das circunstâncias específicas da Polônia nos anos 1980 (Žižek, 2001, p. 8).

Kieslowski sobrevive como um diretor contemporâneo, que resiste a uma abordagem regionalizada e datada em contextos histórico-políticos completamente diferentes dos que cria em seus filmes, em especial os da fase polonesa, contemporâneo conforme define Agamben (2009): Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é [159]capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (Agamben, 2009, pp. 58-59).

Nesse sentido, Kieslowski parece ser contemporâneo tanto de seu tempo quanto de um tempo atual. Se, imerso nos acontecimentos políticos de seu país no final dos anos 1980, conseguiu produzir uma série que ao mesmo tempo, escancara essas experiências e ainda assim produz um apelo universal, gerando uma distância necessária para enxergar a obscuridade de sua época, Kieslowski seria contemporâneo no nosso tempo, justamente, por se deslocar: “dividindo e interpolando o tempo, [o contemporâneo] está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de citá-la” (Agamben, 2009, p. 72). A psicanálise oferta uma chave de leitura que não desconsidera a origem da criação cinematográfica, mas, a partir de uma interpretação possível dos circuitos libidinais de um personagem, fenômenos que remontam também à origem do ser humano, como o masoquismo e o ciúme, podem ser analisados a partir de uma experiência particular; através da psicanálise, atravessando qualquer pretensa

historicidade, pode-se recolher elementos para a discussão dos fenômenos psíquicos em questão, inconscientemente atemporais. Em críticas culturais e apreciações individuais, os filmes podem ser considerados objetos estéticos, apartados das condições necessárias para sua concepção, produção e distribuição. Por vezes, também os tomamos como um objeto estático, concluído em si mesmo. A diferença na percepção de um filme como produto final e um filme como parte de um processo é essencial para considerarmos as aproximações entre psicanálise e cinema. Não se pode tratar uma sessão de cinema como uma sessão de análise. De acordo com Dunker & Rodrigues (2012), apesar de psicanálise e cinema terem origem temporal aproximada — ambos tentando se colocar como forças representativas ou interpretativas de meio social e cultural semelhante —, “suas [160] funções são naturalmente diferentes, pois o cinema não pretende tratar sintomas e a psicanálise não pretende estabelecer uma experiência estética” (Dunker & Rodrigues, 2012, p. 17). Os autores apontam três grandes tipos de analogia entre psicanálise e cinema construídas ao longo do tempo: a primeira compara a experiência cinematográfica à experiência onírica, alegando como condições a distorção da realidade, a passividade e uma “regressão necessária”, não sem uma censura, a edição no filme e o recalque no sonho; a segunda compara o dispositivo cinematográfico ao aparelho psíquico na fase do espelho, propondo, então, que cada película equivale à reprodução de “um ‘eu’ dotado de unidade, capacidade de antecipação e reconhecimento” (Dunker & Rodrigues, 2012, p. 19); já a terceira, de ordem estruturalista, promove a leitura de um filme como uma cadeia de significantes que se articulam a caminho de metáforas e metonímias, tirando a psicanálise do lugar de saber mestre convocado a interpretar o enredo e seus efeitos sobre os espectadores (Dunker & Rodrigues, 2012). Ainda segundo Dunker & Rodrigues (2012), o que as três analogias têm em comum é que posicionam o encontro da psicanálise com o cinema como uma teoria, seja ela do sonho, da formação do eu, ou, ainda, da articulação do desejo na linguagem. Para os autores, a psicanálise deve ser vista mais como uma prática em constante movimento, na produção de uma “sessão de psicanálise” onde os funcionamentos psíquicos tomam lugar. Se comparada a um filme como produto final, reduzir a psicanálise a uma teoria pronta seria resumir a complexa rede libidinal de um sujeito à experiência estática e pontual de um único personagem — nem a psicanálise nem o cinema se encaixam nessa relação de pretensa imobilidade.

A apreensão de ambos se encadeia numa temporalidade a posteriori: assim como uma sessão de análise não garante a continuidade do tratamento, um filme não é construído a partir de tomadas de câmera. “Nenhum filme é a expressão inteiriça das cenas filmadas. Geralmente estas são várias tentativas e reformulações que se concatenam com outras e com os inevitáveis [161] erros de continuidade, erros de montagem, erros de câmera e assim por diante” (Dunker & Rodrigues, 2012, p. 23). Produzir uma interpretação mimética de sintomas, mal-estar, sofrimentos e funcionamentos psíquicos é incorrer num erro. As demandas sociais — no nosso caso, os ciúmes dos homens — encadeiam as produções (analítica e fílmica) e suas possíveis interpretações e leituras. Se traçamos alguma tentativa de encontro entre a psicanálise e o cinema isso é feito aqui através de um fenômeno da ordem psíquica que tem implicações em seu meio social: o Roman de “Não cobiçarás a mulher do próximo” não é o paradigma do ciumento, do masoquista, mas um retrato possível, numa rede discursiva mais ampla. Com Freud (1910/ 2010), podemos defender que toda interpretação deve ser feita com cautela. Acerca da interpretação analítica com pacientes, o autor ressalta, em “Psicanálise Silvestre”, duas condições mínimas para que o analista informe algo a seu paciente via interpretação: ter o próprio paciente se aproximado do conteúdo reprimido, e ter estabelecido um vínculo transferencial com o analista que sirva de fundo emocional para a interpretação. Aqui, no entanto, também o cuidado freudiano com as técnicas analíticas deve ser remontado. Ainda que com ressalvas, podemos fazer uma analogia entre as resistências inconscientes e as resistências de textos ou obras, entendidas como não-ditos, aquilo que é cortado entre uma cena e outra, como as conexões e contextos não contidos na obra, mas passíveis de ser interpretados. Para que se lance mão de uma interpretação, devemos entendê-la como uma dentre tantas outras, e sempre suspender o lugar de verdade totalizante. Já uma obra, diferentemente de um paciente em consultório, não pode lançar mão de defesas contra uma interpretação, e nisso reside a delicadeza da interpretação de um filme. Assim, a psicanálise só se autoriza a proferir interpretações e leituras possíveis dos fenômenos sociais, se entrelaçando por vezes com o cinema, a partir de analisandos que produzem um saber subjetivo de condições psíquicas, as quais, por sua vez, [162] podem ser analisadas culturalmente, mas ainda assim atravessadas pela clínica. “A leitura que a psicanálise faz do mal-estar na cultura e do dilema ético do homem

moderno está intimamente ligada ao que ela depreende dos percursos analíticos dos sujeitos que submetem à sua terapêutica” (Pereira, 2011, p. 68). O compromisso ético de uma análise do ciúme, nesse caso, está completamente implicado com os saberes de si produzidos pelos analisandos, guardando uma relação de intimidade entre a clínica e o social.

Masoquismo Vamos nos atentar ao episódio 9 da série “Dekalog”, “Não cobiçarás a mulher do próximo”. Quando o personagem principal, o médico Roman, descobre que ficou impotente e não pode mais ter relações sexuais, encoraja sua mulher a ter um amante. Fortemente incomodada pela provocação do marido, ela responde: “O que me importa é o que já temos, não o que nos falta”. A cena seguinte, uma alegoria cinematográfica, dá a prévia de todo o conteúdo da relação de Roman e Hanka: ao ajudar um senhor a abastecer seu carro segurando um funil maleável e o posicionando na boca do tanque de gasolina, tem-se a simbologia da penetração e de sua impossibilidade, e fica clara a angústia no rosto do Roman. Apesar da dificuldade de levantar hipóteses sobre a infância do personagem, uma teoria geral sobre o masoquismo nos lembra que esse é originário, diferente do sadismo, já que a dor permite uma identificação com o outro que sofre, e posteriormente, a possibilidade de infringir dor no outro. Com base na teoria de Laplanche acerca do masoquismo, podemos tecer a hipótese de que no caso de Roman, além da condição masoquista originária à qual toda criança é submetida a partir das invasões sofridas e da identificação com o outro, as experiências da vida adulta criam um campo frutífero para que o masoquismo se instale: apoiado na impotência sexual, o inconsciente do personagem erige o pênis, órgão corporal inicialmente dessexualizado que o masoquismo erotiza. [163] A partir da desconfiança instaurada e da consumação da traição da mulher, essa angústia é traduzida psiquicamente por Roman como masoquismo; seu par pulsional, o sadismo, no ciúme masculino comumente dirigido à parceira, no caso do médico é endereçado a ele mesmo. Em seu texto “O problema econômico do masoquismo”, Freud (1924/ 1976) diferencia três principais tipos de masoquismo: masoquismo erógeno ou primário, que seria um modo de excitação sexual com base na constituição biológica; masoquismo

feminino, onde os conteúdos numa série de fantasias masoquistas levam a uma posição feminina (ser penetrado, castrado); e o masoquismo moral, em que, a partir da ressexualização da moralidade através do complexo de Édipo e da introdução da pulsão de morte, desperta-se um conflito de forças psíquicas no qual o supereu sádico dirige sua força ao eu, que por sua vez, como punição por sua posição masoquista, deseja a punição do supereu. Nessa divisão esquemática freudiana observamos que a dinâmica do masoquismo inclui todos os seus tipos, fortemente presentes no personagem Roman, que aufere para si um sofrimento masoquista a partir do ciúme que sente de sua mulher. Na leitura empreendida por Laplanche (1999a) do mesmo texto freudiano, há uma crítica que lhe atribui não apenas um erro, mas que percebe, a partir do desvio da Teoria da Sedução, um Freud marcado pela primazia do falo, que até mesmo na análise do masoquismo feminino recusa uma possível identificação feminina e sua conexão com a passividade originária. “A alusão a um estado infantil originário, no qual a feminilidade, passividade e masoquismo são sobrepostos, só pode estar fora do lugar em relação ao dogma dominante” (Laplanche, 1999a, p. 208). Roman se encontra engessado, paralisado em sua tentativa de simbolizar a impotência, o ciúme e a traição de sua mulher, e torna a acessar mais uma vez a passividade geradora de tanto conflito psíquico. Sua saída inconsciente não se dá pelo sadismo da violência, da agressão física à mulher. Trata-se, ao contrário, de uma saída depressiva: o caminho para lidar com a traição e com o ciúme é seu autoextermínio. [164] Nesse sentido, seria o masoquismo um condutor do eu à morte? Levaria a apassivação proveniente do masoquismo o sujeito ao caminho da extinção máxima do eu, onde a angústia da insatisfação de seu desejo masoquista seria apagada, assim como a vida do próprio sujeito? Em entrevista a Jacques André sobre o problema do masoquismo, Laplanche (2000) afirma que em Freud é apagada a diferença entre a sexualidade pulsional e a sexualidade instintual, ou seja, entre a sexualidade infantil pré-genital e a sexualidade genital propriamente dita: enquanto a primeira, pré-genital, funciona sob a égide do princípio de prazer, vislumbrando o abaixamento de tensão e a descarga, a segunda, sexualidade genital, opera na busca da excitação. A supressão dessa diferença esconde o fato de que o masoquismo trabalhado em análise é o do fantasma, no qual coexistem ambas as sexualidades — a que visa a descarga e a que visa a tensão. Laplanche afirma, então, que a questão biológica de Freud acerca da manutenção da vida no masoquismo

se extingue, já que, no sentido econômico, não há nada de surpreendente no fato de o masoquismo ser uma espécie de guardião da vida (Laplanche, 2000). No mesmo caminho, Laplanche (2000) ressalta ainda que esse fantasma masoquista clínico deriva do masoquismo originário, fundante de toda a sexualidade humana, mas guarda reservas quanto a uma aproximação direta entre os dois. Jacques André o questiona a respeito: se todo bebê é invadido pelas excitações em uma posição masoquista,

não

haveria

nas

origens

da

sexualidade

humana

uma

dupla

sadomasoquista? Laplanche responde que, enquanto na cena há um masoquista, o sadismo seria intrínseco à situação: a sexualidade adulta traz forçosamente, nas mensagens endereçadas à criança, um excesso que ultrapassa suas capacidades nessa posição masoquista, não se tratando, então, nem de um sadismo perverso nem de um sadismo desejado (Laplanche, 2000). Ainda na mesma entrevista, Laplanche (2000) ressalta que o masoquismo poderia ser pensado no infans somente depois de uma primeira tentativa de tradução dessa invasão de [165] mensagens enigmáticas, quando então se poderia pensar em fantasma, e em fantasma masoquista, já que a existência deste supõe uma capacidade tradutiva inexistente nos primeiros meses de vida. Apesar de a localização do momento da aparição desse fantasma ser inconclusiva, supomos com Laplanche que só podemos falar desse masoquismo clínico — que deriva da posição masoquista originária amplamente trabalhada pelo autor — a partir do contato com a alteridade que constitui o eu e nele implanta conteúdos. André afirma que no masoquismo moral o prazer da dor cede lugar ao prazer da infelicidade, e que num simples anúncio de felicidade estaria incluída uma promessa de infelicidade maior. A partir disso, questiona Laplanche sobre a leitura do masoquismo moral como um agravamento da posição masoquista originária. Laplanche (2000) responde que a tarefa do analista é localizar a dor moral — em última instância, a dor sexual — e desvelar que na busca da infelicidade há uma busca pela dor que a origem da infelicidade fomenta, sendo fonte do masoquismo. Para Laplanche, “a repetição do mal-estar é justamente uma vontade de não dialetizar a dor” (Laplanche, 2000, p. 29). Então, o ciúme é um desses lugares de mal-estar claramente não dialetizáveis, isto é, que parecem não ceder à conversa ou à elaboração. Se, por um lado, trata-se de um sofrimento interno, por outro trata-se de uma tentativa de dar forma e lugar à dor e à passividade. É nesse sentido, como nos lembra Rosenberg (2003), que o masoquismo é

guardião da vida, na medida em que estabelece um arranjo possível para se vivenciar a passividade e a dor. Sustentamos a hipótese de que o ciúme é uma defesa que faz esse tipo de masoquismo funcionar. Ao invés de viver prazerosa e angustiantemente a passividade, o sujeito a projeta no outro, mas ao fazer isso, na medida em que não controla o desejo do outro, volta a apassivar-se. O ciúme, portanto, produz um distanciamento entre o sujeito e sua própria passividade, via projeção. O masoquismo ainda está em questão, mas um pouco mais dialetizado. [166] Observamos isso claramente no filme de Kieslowski, na cena em que Roman convida a mulher a traí-lo. Fantasiando, e por vezes comprovando as traições de sua esposa Hanka, Roman projeta toda a passividade pouco acolhida em seu psiquismo, e com isso consegue um arranjo sadomasoquista no qual a passividade da mulher — tanto ao ser submetida à penetração de outro homem quanto à culpa recorrente da traição —, é melhor recebida como sua passividade projetada. De alguma forma, o masoquismo que seria vivido de forma interna dá lugar à sua erotização, elegendo o ciúme como defesa. Por vezes essa defesa falha — como na cena da bicicleta, a que aludiremos mais abaixo —, mas esse arranjo de alguma forma funciona para o casal: Roman reatualiza seu masoquismo originário na parceria amorosa com Hanka, e essa repetição projetiva da passividade, por assim dizer, pode ser considerada uma das fontes defensivas de muitos tipos de ciúme. No caso dos ciúmes dos homens, essa defesa desempenha papel bastante importante. A busca pelo prazer da dor/ infelicidade, tão explícita nas cenas em que Roman segue Hanka para comprovar sua traição, remonta a uma imposição inconsciente de submissão aos desígnios apassivantes do outro. Segundo Laplanche, essa necessidade de remontar ao outro das origens é justamente o que alimenta o masoquismo, quer o chamemos de moral, clínico, masoquismo do adulto ou masoquismo de tensão, mas sempre aquele que se apoia no outro para sua conservação. Com Laplanche, “o verdadeiro masoquismo é quando ele mesmo procura uma novidade no outro para manter a tensão” (Laplanche, 2000, p. 24).

Passividade a posteriori

Ao longo de sua obra, Freud trata o problema da escolha da neurose sob diferentes perspectivas. Uma primeira hipótese na qual o autor acredita é que experiências sexuais passivas na tenra infância gerariam uma histeria, enquanto experiências [167] sexuais ativas predisporiam o sujeito a uma neurose obsessiva. Mas logo descarta essa teoria, levantando então a ideia de que a escolha da neurose se dá a partir da idade do indivíduo na ocasião do trauma sexual, criando assim uma espécie de linha cronológica das neuroses, sendo a histeria a mais primitiva de todas, vindo logo após a neurose obsessiva e em seguida a paranoia e a esquizofrenia, sendo as (psico)neuroses geradas a partir de experiências traumáticas em idades mais tardias. Posteriormente, Freud altera alguns pontos, passando a defender pontos de fixação e regressão que sustentam a escolha de uma neurose. Em seu artigo sobre a neurose obsessiva, Freud afirma que os determinantes para a escolha de neurose são unicamente constitucionais, livres da experiência e tendo caráter de disposições; em nota de rodapé, o editor define o sentido especificamente nesse texto como “algo puramente constitucional ou hereditário” (Freud, 1913/ 2006, p. 341, n. 1). Já na Conferência 23, “Os caminhos da formação do sintoma”, Freud (1916[1917]/ 2006) acrescenta, às já creditadas disposições inatas, experiências casuais traumáticas, tanto na infância quanto na vida adulta, como determinantes para a escolha da neurose. Como modelos de neurose o autor apresenta um primeiro tipo, no qual a fixação funda-se na retenção da libido, e um outro protótipo no qual os conflitos posteriores têm maior relevância, sendo as recordações infantis provenientes da regressão — dois modelos extremos, entre os quais Freud acredita haver possibilidades infinitas de combinação. Em texto sobre o a posteriori, Laplanche (1999b) demonstra dois principais usos que Freud faz desse conceito: uma concepção determinista, que opera do passado ao futuro, e uma concepção hermenêutica, que procede do presente para o passado de forma retrospectiva. Apesar de apontar algumas concessões na obra freudiana, Laplanche afirma que Freud “nunca hesitou em sua convicção de o que vem antes determina o que acontece depois” (Laplanche, 1999b, p. 266). Ao resgatar uma passagem de A Interpretação dos Sonhos, na qual um adulto observa uma criança sendo amamentada, [168] Laplanche (1999b) aponta para o caráter de sedução da cena e para o abandono por Freud da teoria da sedução. A partir das duas concepções presentes em Freud acerca do a posteriori, é possível interpretar a cena de duas maneiras: na primeira, o homem adulto vê a criança no seio da ama de leite e,

retrospectivamente, imagina tudo que poderia ter investido eroticamente naquela situação, se ele ao menos soubesse; na segunda interpretação, a sexualidade do adulto é despertada pela cena de amamentação, retendo e preservando os traços de sua própria sexualidade infantil. Na primeira análise, a interpretação recai de uma maneira progressiva sobre a situação presente da amamentação; na segunda, o passado tem relevância retroativa, na reatualização da sexualidade adulta. São determinantes as consequências do abandono da teoria da sedução para o conceito de a posteriori, como afirma Laplanche (1999b). Apesar de as duas interpretações serem possíveis, elas se mantêm isoladas e independentes uma da outra. Laplanche (1999b), aponta, então, para uma análise na qual a ênfase recai sobre a ama de leite. Com sua Teoria da Sedução Generalizada, retoma a abordagem de Freud, na qual este trata o seio como um objeto para a criança, e não como uma zona erógena para a mulher; a introdução da ama de leite — e sua própria sexualidade — seria o terceiro termo que uniria as duas concepções freudianas. O a posteriori carregaria, então, a mensagem passada do adulto para a criança, da ama de leite para o bebê faminto. Como o autor postula, o modelo tradutivo necessário para se compreender a complexidade contida no conceito de a posteriori engendra algo proferido pelo outro, no qual o a posteriori retraduz e reinterpreta. O que Laplanche (1999b) chama de “implantação da mensagem enigmática” é justamente o que liga o passado ao futuro, o sujeito ao outro, o adulto ao bebê. Conforme Laplanche: Mesmo se concentrarmos toda a nossa atenção na direção temporal retroativa, no sentido de que alguém possa reinterpretar [169] seu passado, esse passado não pode ser considerado puramente factual, não processado, cru, estabelecido. Ao contrário, ele contém de forma imanente algo que veio antes — uma mensagem do outro. É impossível, portanto, adiantar uma posição puramente hermenêutica a esse respeito, quer dizer, o fato de que todo mundo interpreta seu passado de acordo com o seu presente, já que o passado tem algo ali guardado que demanda ser interpretado, que é a mensagem do outro.1 (Laplanche, 1999a, pp. 265)

Então, traçar a hipótese de um passado para Roman seria apenas especulação. Podemos, de toda forma, supor que três momentos presentes são essenciais na leitura do masoquismo do personagem: a descoberta da impotência, o convite à traição e as 1

Tradução dos autores.

autoagressões que se infringe — algo depositado em sua infância pode ser reinterpretado e retraduzido de forma a que o sintoma acolha as novas defesas. O ciúme vem amarrar esses três momentos para que, além do sofrimento presente em cada um deles, a situação como um todo possa ser erotizada. Com a psicanálise, poderíamos ir muito além de uma regressão imaginária a uma cena infantil específica; ouviríamos as soluções e defesas encontradas pelo personagem como uma forma de recontar sua história, repetindo-a. No ciúme, fantasia inconsciente e sintoma se articulam para fazer repetir uma história de passividade não elaborada.

Destinos pulsionais da anatomia

A cena da bicicleta é importante para discutirmos uma última associação trazida pelo filme. Roman anda de bicicleta em terrenos irregulares para impactar fortemente no selim a região genital. Segue por um tempo nessa autoflagelação até que despenca de uma ponte. Roman já sabe que o ciúme, assim como sua impotência anteriormente, não é suficiente para traduzir [170] sua passividade originária. A tentativa de ferir seus genitais gravemente equivale ao desejo de castração: mais uma vez, Roman tenta traduzir de forma anatômica o conflito psíquico entre o desejo e a angústia da passividade originária. A expressão “anatomia é destino” (Freud, 1924, p. 199) diz exatamente o quanto a própria teoria psicanalítica pressupôs um tipo de estado natural do corpo anterior a qualquer significação libidinal que viesse a ter. Trata-se, por exemplo, da crença de que a simples visão da diferença anatômica produzisse, nos meninos, a angústia da castração, e, nas meninas, a inveja do pênis. A impressão que se tem, ao ler Freud, é de que esses destinos pulsionais são garantidos naturalmente, mas gostaríamos, acompanhando as pesquisas de Ribeiro (2000), de criticar fortemente essa ideia. A “exclusão do desejo de castração” (Ribeiro, 2000, p. 195) é um dos sintomas mais eloquentes do que se pode chamar de “recalcamento do desejo de passividade”, sendo tal desejo oriundo da própria situação originária. De forma geral, a identificação com a mãe gera também no menino o desejo de ser como ela. Devemos pressupor como presente o desejo de ser uma mulher, não apenas no que diz respeito à sua capacidade produtiva (o leite e os bebês), mas também na posição sexual que ela ocupa (ser penetrada, desejar ser penetrada).

Para que tal desejo se constitua, não é indispensável que haja uma mãe nesse tempo originário. Traduzir a passividade originária em termos de uma identificação com a mulher, ou com uma posição sexual ligada à passividade, são traduções apenas possíveis, nunca necessárias. Uma das razões para essa tradução da passividade em termos da posição da mulher penetrada é o que podemos chamar de “via de facilitação da cultura para o recalcamento” — que aparece, por exemplo, em Além do Princípio do Prazer: Pode-se supor que, ao passar de determinado elemento para outro, a excitação tem de vencer uma resistência e que é a diminuição da resistência assim alcançada que deixa um [171] traço permanente da excitação, isto é, uma facilitação. No sistema Cs., então, uma resistência dessa espécie à passagem de determinado elemento não mais existirá. (Freud, 1920, p. 36)

Obviamente, não mantemos esse biologismo de Freud, mas temos que acolher a lógica dessa operação psíquica: há arranjos pulsionais que são mais facilitados que outros, isto é, que encontram menos resistência que outros. Do ponto de vista laplancheano, é interessante supor que essas vias de facilitação são provenientes do outro, de maneira específica, e da cultura, de maneira geral. Diremos, então, que a articulação dos termos pênis/ falo é uma via facilitada, e que Freud a traduziu de maneira direta em sua obra. A partir de uma discussão sobre metáfora e metonímia e os sentidos de derivação desses termos, Laplanche (1985) aponta o caráter de autoconservação que a sexualidade infantil encontra a partir do apoio, ao se desprender de atividades nãosexuais. A pulsão da função instintiva surge nos diferentes momentos desse apoio, ligados por contiguidade e semelhança. Segundo Laplanche (1985), os dois tempos constitutivos do apoio são: a metaforização do alvo, que, “da ingestão alimentar, no nível do instinto de autoconservação, nos faz passar para a incorporação fantasmática e a introjeção como processos psíquicos reais”, não mais no nível do instinto, mas no da pulsão; e a metonimização do objeto, que, a partir das considerações lacanianas, Laplanche define como aquilo “que, substituindo ao leite o que está em contiguidade direta com ele, o seio, introduz essa defasagem que permite dizer, sem contradição, que ‘encontrar o objeto é reencontrá-lo’, já que, na realidade, o objeto reencontrado não é o objeto perdido, mas sua metonímia” (Laplanche, 1985, p. 142).

No caso do nosso personagem, isso se reproduz individualmente. Podemos supor que também a anatomia está destinada a ser colonizada pelo pulsional; ali onde deveria haver um pênis, há um órgão investido de significações inconscientes e conscientes, o que o torna um tanto autônomo em relação ao sujeito. Quando Roman [172] recebe a notícia da disfunção sexual, parece não haver outra via possível: a anatomia cumpre seu destino pulsional. Mortificada e/ou impotente, torna-se o objeto através do qual as fantasias de passividade de Roman podem ser realizadas. Nesse sentido, a cena da bicicleta é importante para tornar ainda mais visível o que pode ser chamado de “fuga para a genitalidade” (Klein, 1957/ 1991, p. 227), isto é, a tradução de conflitos psíquicos arcaicos para a linguagem da genitalidade. Ora, não é o pênis que precisa ser destruído, mas o que ele representa na vida psíquica de Roman. A anatomia está, pois, submetida ao pulsional. Para que funcione de acordo com os modelos biológicos e sociais, é preciso que as fantasias através das quais o sujeito se relaciona com o outro estejam em consonância com esses modelos. Se houver conflito entre os ideais que propõem (o sexo como reprodução, a heterossexualidade como norma, principalmente) e as fantasias inconscientes do sujeito, aparecerá o sintoma para denunciá-lo, e a impotência é um sintoma desse tipo. Pode querer dizer, por exemplo, que o desejo de passividade não foi projetado na parceira, como é comum no homem heterossexual, mas tal passividade é vivida no corpo, para que seja redobrada — no caso de Roman, com o pedido de que a mulher seja apassivada por outro enquanto ele vê. A anatomia, nesse caso, é o destino através do qual um desejo inconsciente de passividade se realiza. Mesmo que a impotência do personagem tenha de fato causas biológicas, é acolhida apenas por essa via da fantasia de impotência, de passividade: a anatomia poupa Roman do conflito psíquico mais explícito. Diante do fracasso do ciúme como defesa, seu investimento na crença de um corpo não atravessado pela fantasia, um corpo biológico puro, é o álibi ideal para a realização do desejo inconsciente de passividade.

Referências bibliográficas Agamben, G. (2009) O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos.

[173] Dunker, C. I. L. & Rodrigues, A. L. (2012). Fazer Cinema, Fazer Psicanálise. In:

C. I. L. Dunker & A. L. Rodrigues, (Orgs.). Cinema e Psicanálise. (Vol. 1, A criação do desejo). (13-30) São Paulo: nVersos.

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