Não lugares virtuais: as cidades segundo o Instagram

July 27, 2017 | Autor: Gabs Leal | Categoria: Cyberculture, Free instagram followers
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Descrição do Produto

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FACULDADE CÁSPER LÍBERO

Gabriela Pereira de Oliveira Leal

Não lugares virtuais: as cidades segundo o Instagram

São Paulo 2013

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GABRIELA PEREIRA DE OLIVEIRA LEAL

Não lugares virtuais: as cidades segundo o Instagram

Trabalho de conclusão de curso de PósGraduação

lato

sensu

apresentado

à

Faculdade Cásper Líbero como requisito parcial para a especialização em Teorias e Práticas da Comunicação.

Orientador: Prof. Dr. Edilson Cazeloto

São Paulo 2013

3

1.1.1.1

Leal, Gabriela Pereira de Oliveira

Não lugares virtuais: as cidades segundo o Instagram / Gabriela Pereira de Oliveira Leal. -- São Paulo, 2013.

Orientador: Prof. Dr. Edilson Cazeloto Monografia (lato sensu) – Faculdade Cásper Líbero, Pós-Graduação em Teorias e Práticas da Comunicação

1. Instagram. 2. Tecnologia da Informação. 3. Cibercultura. 4. Ressignificação do Urbano. 5. Realidades Híbridas

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GABRIELA PEREIRA DE OLIVEIRA LEAL

Não lugares virtuais: as cidades segundo o Instagram

Trabalho de conclusão de curso de PósGraduação

lato

sensu

apresentado

à

Faculdade Cásper Líbero como requisito parcial para a especialização em Teorias e Práticas da Comunicação.

Orientador: Prof. Dr. Edilson Cazeloto

_____________ Data da Aprovação

Banca examinadora:

São Paulo 2013

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RESUMO Vivemos em um mundo onde os paradigmas estão em constante ebulição: a revolução tecnológica é contínua e transforma a estrutura social e a apreensão simbólica do mundo. Se, de um lado, as tecnologias emergentes inserem elementos novos no contexto simbólico; de outro lado, o seus usos também as transformam e provocam ressignificações. São através dos usos das novas tecnologias digitais que signos e significados são fabricados, cada vez mais de forma individual. Assim, o mundo se torna híbrido, coabitado por homens e máquinas. Mas, mais do que isso, as máquinas tornam-se próteses, que estendem e extrassomatizam capacidades humanas. A hipótese deste trabalho é que esta hibridização sensória dá origem a realidades outras, que estão dissociadas e muitas vezes tomam lugar do substrato real. Para refletir acerca deste aspecto, foi realizada uma análise teórica sobre a representação simbólica das megacidades a partir do uso do aplicativo Instagram. Palavras-chave: Instagram. Tecnologia da Informação. Cibercultura. Ressignificação do Urbano. Realidades Híbridas

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ABSTRACT We live in a world where paradigms are constantly boiling: the technological revolution is continuous and transforms the social structure and symbolic apprehension of the world. If, in one side, the emergent technologies insert new elements in the symbolic context; in the other side its usage also transforms and provoke resignifications. Through the social application of the new technologies, signs and significations are manufactured, increasingly individually. Therefore, the world becomes more hybrid, co-habited by humans and machines. But, more than that, the machines become prosthetics, that extend human capabilities. The hypothesis of this work is that the sensory hybridization gives rise to other realities, which are dissociated and often take place of the real substrate. To think about these aspects, a theoretical analysis was performed about the symbolic representation of the urban cities from the use of Instagram. Key-words: Instagram. Information of Technology. Cyberculture. Redefinition of Urban. Hybrid Realities

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

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2 A EBULIÇÃO DOS PARADIGMAS

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2.1 O capitalismo informacional

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2.2 As origens da revolução da tecnologia da informação

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2.3 A rede das redes e a origem da cibercultura

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2.4 A comunicação interativa e as comunidades virtuais

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3 DILÚVIOS DA PÓS-MODERNIDADE

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3.1 A autoformação da identidade

35

3.2 Desconstrução das categorias de espaço e tempo

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3.2.1 Espaço

38

3.2.2 Tempo

41

3.3 As megacidades e o espaço enquanto suporte material

45

3.4 A intensificação das imagens: a sociedade do espetáculo pós-moderna 48

4 ESTUDO DE CASO: O INSTAGRAM

51

4.1 Considerações metodológicas

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4.2 O Instagram

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4.3 Cidades fotografadas: construção do não lugar na virtualidade

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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6 REFERÊNCIAS

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6.1 Livros e artigos

73

6.2 Portais de notícias e informações retiradas da Internet

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6.3 Verbetes

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1 INTRODUÇÃO

Vivemos em um mundo onde os paradigmas estão em constante ebulição e onde entender as transformações não se trata somente de um devir acadêmico, mas de uma reflexão sobre a identidade e a individualidade de cada um neste novo contexto. A revolução tecnológica é contínua e transforma a estrutura social e a apreensão simbólica do mundo. Mas, se por um lado, entendemos que a tecnologia da informação introduz mudanças profundas, também compreendemos que os indivíduos, instituições, companhias e a sociedade por meio de seus usos, também a transformam. Em grande parte da literatura corrente procurou-se enfatizar o impacto das tecnologias sobre as pessoas e instituições, no entanto, elas também podem e devem ser pensadas sob o ponto de vista de serem produtos de uma sociedade e de uma cultura. (LÉVY, 1999, p. 22) Os trabalhos que investigaram e analisaram as transformações que foram introduzidas pela revolução tecnológica foram substanciais para a composição do contexto e o entendimento da origem histórica das novas tecnologias. Eles foram o subsídio básico para o capítulo 2, “A ebulição dos paradigmas”, onde lanço olhar e procuro reconstituir a transformação da estrutura social, com o surgimento do que se chamou de capitalismo informacional; a origem da revolução da tecnologia da informação; e, por fim, me debruço sob duas dimensões caras ao foco analítico deste trabalho: a cibercultura e a comunicação interativa. O capítulo 3, “Dilúvios da pós-modernidade”, também traz reflexões sobre as transformações oriundas da revolução tecnológica, mas nesta seção procurei analisá-las de outros pontos de vistas: em termos dos desdobramentos simbólicos dos novos usos da tecnologia e também das mudanças que estes usos provocam nas representações simbólicas de tais tecnologias. Assim, neste capítulo procurei lançar luz à formação da identidade individual, às categorias de espaço e tempo, às novas formações urbanas e à intensificação das imagens na pós-modernidade. Embora estas reflexões sejam fundamentais, no presente trabalho o foco analítico encontra-se sob o ponto de vista dos usos que os indivíduos fazem dessas novas tecnologias e, mais especificamente, o que eles fabricam com esses usos. Neste sentido, entramos no capítulo 4, que antecede as considerações finais, onde realizei uma reflexão teórica sobre o uso do Instagram do ponto de vista da

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fabricação de uma nova representação simbólica da cidade pós-moderna, contida apenas na dimensão da virtualidade da vida real. Vale, por fim, fazer uma breve consideração de que esta análise lança um olhar sob a forma de provocação e ponto de partida, pois, fazendo minhas as palavras de Castells (1999, p. 442): “a comunicação mediada pela Internet é um fenômeno social recente demais para que a pesquisa acadêmica tenha tido a oportunidade de chegar a conclusões sólidas sobre seu significado social”.

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2 A EBULIÇÃO DOS PARADIGMAS

Ao acordar, ainda sonolenta, desliga o despertador que soa no seu smartphone1

multiuso-multicoisa-multitudo.

Antes

mesmo

de

levantar,

se

espreguiçar ou olhar pela janela, checa a previsão meteorológica, através daquele mesmo smartphone: tática para otimizar (ou economizar) tempo, afinal, durante o banho poderá pensar na roupa mais adequada para vestir para ir ao trabalho. Toma banho. Arruma-se. Ainda em jejum sai de casa e caminha para o ponto de ônibus. No trajeto, ainda com o smartphone em mãos, checa, através de um app2, se seu ônibus está próximo. Saca da bolsa o seu iPod3, repleto de músicas no formato mp34, que baixara na noite anterior através do Soulseek5. Em meio a tantos estímulos na rua, escolher a própria trilha sonora lhe dá uma pequena sensação de liberdade e segurança. O ônibus chega. Outras pessoas com trilhas sonoras próprias e individuais se posicionam nos espaços vagos. Ela se dirige para o fundo do veículo, ao mesmo tempo em que analisa o ambiente para checar a “segurança”, seu olho já está treinado e condicionado pela realidade urbana. Constata que o ambiente está seguro o suficiente para sacar novamente o seu smartphone e iniciar a navegação habitual, como se folheasse as páginas de um jornal, pelo Facebook6 e, em seguida,

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“Smartphone (telefone inteligente, numa tradução livre do inglês) é um telemóvel com funcionalidades avançadas que podem ser estendidas por meio de programas executados por seu sistema operacional. Os sistemas operacionais dos smartphones permitem que desenvolvedores criem milhares de programas adicionais, com diversas utilidades, agregados em sites como o Google Play. Geralmente um smartphone possui características mínimas de hardware e software, sendo as principais a capacidade de conexão com redes de dados para acesso à internet, a capacidade de sincronização dos dados do organizador com um computador pessoal, e uma agenda de contatos que pode utilizar toda a memória disponível do celular – não é limitada a um número fixo de contatos”. (SMARTPHONE, 2013) 2 “Um aplicativo móvel é um software desenvolvido para ser instalado dispositivo eletrônico móvel, como um PDA, um telefone celular, um smartphone ou um Leitor de MP3. Este aplicativo pode ser instalado no dispositivo, logo que os respectivos modelos ou, se o aparelho permite que ele, baixado pelo usuário através de uma loja online, tais como Google Play ou App Store”. (APP, 2013) 3 “iPod é uma marca registada da Apple Inc. e refere-se a uma série de tocadores de áudio digital projetados e vendidos pela Apple”. (IPOD, 2013) 4 “O MP3 (MPEG-1/2 Audio Layer 3) foi um dos primeiros tipos de compressão de áudio com perdas quase imperceptíveis ao ouvido humano. O seu bitrate (taxa de bits) é da ordem de kbps (quilobits por segundo), sendo 128 kbps a taxa padrão, na qual a redução do tamanho do arquivo é de cerca de 90%, ou seja, o tamanho do arquivo passa a ser 1/10 do tamanho original. A taxa de bits pode chegar a até 320 kbps (cerca de 2,3 MB/min. de áudio), gerando a qualidade sonora máxima do formato, na qual a redução do tamanho do arquivo é de cerca de 75%, ou seja, o tamanho do arquivo passa a ser cerca de 1/4 do original.” (MP3, 2013) 5 “Soulseek é uma rede introduzida para troca de músicas em 2002, acessível pelo software de mesmo nome. Caracteriza-se pelo grande número de arquivos raros e principalmente música alternativa”. (SOULSEEK, 2013) 6 “Facebook é um site e serviço de rede social que foi lançada em 4 de fevereiro de 2004, operado e de propriedade privada da Facebook Inc. [...] Os usuários devem se registrar antes de utilizar o site, após isso, podem criar um perfil pessoal, adicionar outros usuários como amigos e trocar mensagens, incluindo notificações

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pelo Instagram7, para checar as “notícias” e novidades de sua rede pessoal. Desliza, metodicamente, cinco vezes o dedo por cada timeline8. Feita a checagem, acessa o WhatsApp9, e manda uma mensagem coletiva para um grupo de conversas que criou com os colegas de trabalho...

Há alguns poucos anos a leitura da narrativa acima provavelmente seria feita sob a égide de uma ficção futurista. O entendimento do texto seria dificultado pela falta de vocabulário capaz de torná-lo inteligível. Os conceitos do passado já não conseguem dar conta do futuro que se aproxima em uma velocidade cada vez mais rápida, “vivemos a era da inovação galopante” (KENDE, 1971 apud SANTOS, 2012, p. 179). Os paradigmas são colocados em voga, e a própria noção de tempo e espaço carecem de redefinição para dar conta e se apropriar das mudanças do instante eterno. Torna-se necessário o desenvolvimento de novas categorias intelectuais capazes de compreender as mudanças oriundas da nova estrutura social que se consolida. (CASTELLS, 1999, p. I) No segundo milênio da era Cristã, um complexo padrão interativo entre descobertas científicas, inovação tecnológica e aplicações sociais provocou uma avalanche de transformações, afetando todas as dimensões da vida social (CASTELLS, 1999, p. 43). Já não se trabalha como antes. Já não se estuda como antes. Já não se compra como antes. Já não se sociabiliza como antes. Já não se faz transações financeiras como antes. Já não se comunica como antes. A nova estrutura social está organizada em redes em todas as dimensões da organização e prática social, redes estas que ganharam um poder de expansão e reconfiguração com as novas tecnologias, o que as diferencia dos rizomas do passado. E é esta estrutura social que irá solidificar o processo de globalização. Como resultado, as economias estabelecem relações de interdependência e assim emerge uma nova forma de relação entre economia, Estado e sociedade. A flexibilização do gerenciamento das empresas e as novas formas de organização automáticas quando atualizarem o seu perfil. [...] O Facebook permite que qualquer usuário que declare ter pelo menos 13 anos possa se tornar usuário registrados do site”. (FACEBOOK, 2013) 7 “Instagram é um aplicativo gratuito que permite aos usuários tirar uma foto, aplicar um filtro e depois compartilhá-la em uma variedade de redes sociais, incluindo o próprio Instagram”. (INSTAGRAM, 2013) 8 Timeline é o nome comumente utilizado para denominar a lista de atualizações das conexões pessoais nas redes sociais. Desta forma, a timeline é individual, de acordo com as conexões de seus usuários. 9 “WhatsApp Messenger é uma aplicação multi-plataforma de mensagens instantâneas para smartphones. Além de mensagens de texto, os usuários podem enviar imagens, vídeos e mensagens de áudio de mídia”. (WHATSAPP, 2013)

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econômica readéquam a formação capitalista para os novos tempos. Neste processo, a geografia da desigualdade econômica e social ganha mais um elemento: a desigualdade tecnológica. (CASTELLS, 1999, p. II) Este terreno de transformações estruturais da formação capitalista se torna particularmente fértil para a eclosão da revolução tecnológica. A nova formação social é capitalista, mas, sobretudo, informacional (CASTELLS, 199, p. 50), sendo ressignificada e apropriada de acordo com as realidades locais. Como Milton Santos (2012, p. 181) nos alerta: a tecnologia atual se impõe como praticamente inevitável. Essa inevitabilidade se deve tanto ao fato de que a sua difusão é comandada por uma mais-valia que opera no nível do mundo e opera em todos os lugares, direta ou indiretamente, como em razão da formidável força do imaginário correspondente, que facilita a sua inserção em toda parte.

Nos próximos capítulos procurarei explicar e descrever facetas destas dinâmicas de transformação e estabelecimento de novas realidades.

2.1 O capitalismo informacional

Na década de 1980, a revolução da tecnologia da informação foi um vetor essencial para a reestruturação da formação capitalista, ao mesmo tempo em que foi moldada por ela. Como Castells (1999, p. 55) coloca, “pode-se afirmar que, sem a nova tecnologia da informação, o capitalismo global teria sido uma realidade muito limitada”. Desta dinâmica surge uma estrutura social associada a um novo modo de desenvolvimento, o informacionalismo, que irá rejuvenescer e expandir o capitalismo industrial (CASTELLS, 1999, p. 51). E, assim como o modelo fordista, ao qual veio substituir, foi responsável pela construção de uma visão de mundo, sobrepondo-se à experiência vivida, uma vez que o modo como os indivíduos entendem o mundo está alicerçado pelo “know-how do dia-a-dia”. (BAUMAN, 2001, p. 69) O que caracteriza um modo de desenvolvimento é o elemento que promove a produtividade. No modo informacional a fonte da produtividade encontra-se na “tecnologia de geração de conhecimentos, de processamento da informação e de

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comunicação de símbolos” (CASTELLS, 1999, p. 53). Deste modo, se, o industrialismo voltava-se para o crescimento da economia como fonte de aumento da produtividade; o informacionalismo busca o acúmulo de conhecimento e a complexificação do processamento da informação. Cria-se assim um círculo virtuoso entre produção de conhecimento e a aplicação da tecnologia para melhorar o processamento e o conhecimento da informação, o que caracterizará o que foi denominado por Castells como capitalismo informacional (Ibid., p. 54-55). A informação, neste contexto, torna-se moeda corrente (HAYLES, 1996 apud SANTAELLA, 2003, p. 19), e a principal característica que a diferencia dos bens duráveis é a possibilidade de ser replicada e ser apropriada como forma de acesso, no lugar da posse individual. (SANTAELLA, 2003, p. 19) As

tecnologias

e

técnicas

desenvolvidas

sob

a

orquestração

do

informacionalismo penetram por todas as dimensões das relações e estruturas sociais, transformando a experiência vivida e remodelando o comportamento social, a comunicação e, por consequência, a produção e a recepção simbólica. Com a ascensão do capitalismo informacional, a velocidade é que tem que ser conquistada. O poder, assim, deixa de se constituir sob a forma de domínio de território, passando a figurar sob o domínio das técnicas que possibilitam a supressão do tempo. Com isto, o Estado, detentor das técnicas de domínio territorial perde a sua força, havendo um processo de privatização do poder público. O avanço tecnológico traveste-se, então, como uma forma de militarização para garantir o status quo da parcela da população que detém o poder. (VIRILIO, 1996, p. 29) Como consequência da privatização do poder, a ação política foi retirada da agenda da reestruturação capitalista. A fluidez foi eleita em detrimento da solidez das instituições precedentes (BAUMAN, 2001, p. 12), as amarras deveriam ser desfeitas para que não houvesse possibilidades de restrição e regulamentação estatal na formação do capitalismo informacional. E esta dominação livre do capital sob as transformações que sucedem a sua reestruturação irão marcar as características da revolução tecnológica e das formas de comunicação emergentes.

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2.2 As origens da revolução da tecnologia da informação

Ao final do século XX vivemos um daqueles intervalos raros de eventos importantes que ajudam a estabelecer a próxima era. Este momento, que teve como pano de fundo a formação do capitalismo informacional, foi responsável pela transformação da cultura material da sociedade através do estabelecimento de um novo paradigma tecnológico que tem suas origens na tecnologia10 da informação. (CASTELLS, 1999, p. 67) Em sua detalhada descrição das origens da revolução tecnológica, Castells (1999, p. 68) nos mostra que as narrativas sobre a mesma estão carregadas de “exageros proféticos e manipulação ideológica”. O que o autor irá nos mostrar é que estamos diante de um evento histórico de importância equivalente à Revolução Industrial do século XVIII, pois insere uma descontinuidade no padrão material da economia, da sociedade e da cultura. O que esta revolução tecnológica carrega de sui generis é estar baseada na tecnologia da informação, processamento e comunicação. Isso não quer dizer que as revolução precedentes não estavam baseadas em informação, no entanto, o que diferencia o uso da informação na atual revolução é a aplicação desta informação para a geração de novos conhecimentos e para o desenvolvimento de novos dispositivos de processamento e comunicação. Trata-se de algo quase compulsivo, que é explorado de forma mercadológica pelas empresas de tecnologia e pelo varejo. O processo se retroalimenta com a informação para produzir e comunicar um elemento novo, de maneira cada vez mais rápida. A difusão se acelera e se torna capaz de penetrar nas dimensões sociais na medida em que são apropriadas e redefinidas pelos usuários, que se tornam também criadores. Para Castells (Ibid., p. 69), “pela primeira vez na história, a mente humana é uma força direta de produção, não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo”. A velocidade das tecnologias e da produção de conhecimento acaba por formar mais um elemento de diferenciação entre a revolução presente e as antecedentes: a rápida difusão das transformações ao redor do mundo. A Revolução 10

No presente trabalho, utilizamos o conceito sugerido por Castells (1999, p. 67), que por sua vez o emprestou de Harvey Brooks e Daniel Bell, a respeito da tecnologia “o conjunto convergente de tecnologias em microeletrônica, computação (software e hardware), telecomunicações/radiodifusão”.

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Industrial demorou cerca de dois séculos para se espalhar ao redor do globo, partindo da Europa Ocidental; enquanto a Revolução Tecnológica demorou vinte anos, entre as décadas de 1970 e 1990, para difundir-se mundialmente. Segundo Castells (1999, p. 70), o vetor desta difusão é a velocidade de aplicação prática das descobertas que fazem com que o mundo as utilize para se conectar. No entanto, como ele também nos lembra, esta difusão não é sinônimo de inclusão: existem grandes áreas no globo ainda desconectadas, pois a tecnologia é seletiva social e funcionalmente. Apesar das diferenças latentes, as revoluções precedentes nos deixam lições que auxiliam no entendimento das dinâmicas da revolução atual. A primeira delas é que “a inovação tecnológica não é uma ocorrência isolada” (CASTELLS, 1999, p. 73), ela está intimamente ligada ao estágio de conhecimento, à disponibilidade de talentos, a um ambiente institucional favorável e a um suporte econômico. A segunda característica é que, quanto mais próximos estiverem os locais de inovação, produção e utilização, mais rápido será o seu impacto sobre a dinâmica social do entorno. O embrião da Revolução Tecnológica tem sua origem no pós Segunda Guerra Mundial, com as primeiras descobertas em eletrônica; contudo, foi somente na década de 1970 que houve uma ampla difusão das descobertas da tecnologia da informação. Castells (1999, p. 76) divide este período de inovação em três principais campos: microeletrônica, computadores e telecomunicações. Abaixo, destaquei os principais trechos, do livro de Castells (Ibid., pp. 76-82), que descrevem e ilustram esse período e esses campos: (1) O campo da microeletrônica: O transistor, inventado em 1947 na empresa Bell Laboratories em Murray Hill, no estado de Nova Jersey, pelos físicos Bardeen, Brattain e Shockley (ganhadores do Prêmio Nobel pela descoberta), possibilitou o processamento de impulsos elétricos em velocidade rápida e em modo binário de interrupções e amplificação, permitindo a codificação da lógica e da comunicação com e entre as máquinas: esses dispositivos tem o nome de semicondutores, mas as pessoas costumam chamá-los de chips. [...] Contudo, o passo decisivo da microeletrônica foi dado em 1957: o circuito integrado (CI) foi inventado por Jack Kilby, engenheiro da Texas Instruments (que o patenteou) em parceria com Bob Noyce, um dos fundadores da Fairchild. Mas foi Noyce que fabricou CIs pela primeira vez, usando o processo plano. Essa iniciativa acionou uma explosão tecnológica. [...] Então, o movimento acelerou-se na década de 1960: à medida que a tecnologia de fabricação progredia e se conseguia melhorar o design dos chips com o auxílio de computadores, usando dispositivos microeletrônicos

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mais rápidos e mais avançados, o preço médio de um circuito integrado caiu de US$ 50 em 1962 para US$ 1 em 1971. [...] O avanço gigantesco na difusão da microeletrônica em todas as máquinas ocorreu em 1971 quando o engenheiro da Intel, Ted Hoff [...], inventou o microprocessador, que é o computador em um único chip. Assim, a capacidade de processar informações poderia ser instalada em todos os lugares. Começava a disputa pela capacidade de integração cada vez maior dos circuitos contidos em apenas um chip, e a tecnologia de produção e de design sempre excedia os limites de integração antes considerada fisicamente impossível sem abandonar o uso do silício. (CASTELLS, 1999, pp. 76-77)

(2) O campo do computador: Os computadores também foram concebidos pela mãe de todas as tecnologias, a Segunda Guerra Mundial, mas nasceram somente em 1946 na Filadélfia, se não considerarmos as ferramentas desenvolvidas com objetivos bélicos. [...] Todavia, os Aliados concentravam a maior parte de seus esforços em eletrônica nos programas de pesquisa do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), e a verdadeira experiência da capacidade das calculadoras ocorreu na universidade da Pensilvânia com o patrocínio do exército norte-americano, onde Mauchly e Eckert desenvolveram o primeiro computador para uso geral, em 1946, o ENIAC (calculadora e integrador numérico eletrônico). [...] Porém, a primeira versão comercial dessa máquina primitiva, o UNIVAC1, desenvolvido em 1951 pela mesma equipe e depois com a marca Remington Rand, alcançou tremendo sucesso no processamento de dados do Censo norte-americano de 1950. [...] Mas foi somente em 1964 que a IBM, com o mainframe 360/370, conseguiu dominar a indústria de computadores, povoada por novas (Control Data, Digital) e antigas (Sperry, Honeywell, Burroughs, NCR) empresas fabricantes de máquinas comerciais. [...] A microeletrônica mudou tudo isso, causando uma “revolução dentro da revolução”. O advento do microprocessador em 1971, com a capacidade de incluir um computador em um chip, pôs o mundo da eletrônica e, sem dúvida, o próprio mundo, de pernas para o ar. Em 1975, Ed Roberts, um engenheiro que criou uma pequena empresa de fabricantes de calculadoras, a MITS, em Albuquerque, Novo México, construiu uma “caixa de computação” com o inacreditável nome de Altair. [...] O Altair foi a base para o design do Apple I e, posteriormente, do Apple II. Este último foi o primeiro microcomputador de sucesso comercial, idealizado pelos jovens Steve Wozniak e Steve Jobs. [...] Uma saga verdadeiramente extraordinária que acabou se tornando uma lenda sobre o começo da Era da Informação. [...] A reação da IBM foi rápida: em 1981 ela introduziu sua versão de microcomputador com um nome brilhante: Computador Pessoal (PC) que, na verdade, se tornou o nome genérico dos microcomputadores. Todavia, por não ter sido criado com base na tecnologia de propriedade da IBM, mas na tecnologia desenvolvida para a IBM por terceiros, ele ficou vulnerável à clonagem, que logo foi praticada em escala maciça, em especial na Ásia. [...] Uma condição fundamental para a difusão dos microcomputadores foi preenchida com o desenvolvimento de um novo software adaptado a suas operações. O software para PCs surgiu em meados dos anos 1970 a partir do entusiasmo gerado pelo Altair: dois jovens desistentes de Harvard, Bill Gates e Paul Allen, adaptaram o BASIC para operar a máquina Altair em

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1976. Ao perceber o potencial, eles prosseguiram e fundaram a Microsoft. (CASTELLS, 1999, pp. 78 – 80)

(3) O campo das telecomunicações: Nos últimos vinte anos do século XX, o aumento da capacidade dos chips resultou em um aumento impressionante da capacidade dos microcomputadores. [...] Além disso, desde meados da década de 1980, os microcomputadores não podem ser concebidos isoladamente: elas atuam em rede, com mobilidade cada vez maior, com base em computadores portáteis. Essa versatilidade extraordinária e a possibilidade de aumentar a memória e os recursos de processamento, ao compartilhar a capacidade computacional de uma rede eletrônica, mudaram decisivamente a era dos computadores nos anos 1990, ao transformar o processamento e armazenamento de dados centralizados em um sistema compartilhado e interativo de computadores em rede. Não foi apenas todo o sistema de tecnologia que mudou, mas também suas interações sociais e organizacionais. [...] É claro que essa capacidade de desenvolvimento de redes só se tornou possível graças aos importantes avanços tanto das telecomunicações quanto das tecnologias de integração de computadores em rede, ocorridos durante os anos 1970. [...] As telecomunicações também foram revolucionadas pela combinação das tecnologias de “nós” (roteadores e comutadores eletrônicos) e novas conexões (tecnologias de transmissão). [...] Avanços importantes em optoeletrônica (transmissão por fibra ótica e laser) e a tecnologia de transmissão por pacotes digitais promoveram um aumento surpreendente da capacidade das linhas de transmissão. [...] Essa capacidade de transmissão com base em optoeletrônica, combinada com arquiteturas avançadas de comutação e roteamento, como ATM (modo de transmissão assíncrono) e o TCP/IP (protocolo de controle de transmissão/protocolo de interconexão), é a base da Internet. (CASTELLS, 1999, pp. 80 – 82)

A trajetória histórica, acima descrita, indica uma importante perspectiva que não pode ser obliterada: os avanços tecnológicos ocorreram em um contexto onde a antiga sociedade possuía uma necessidade latente de se aparelhar para servir a tecnologia do poder, da economia e da guerra (CASTELLS, 1999, p. 98). Entender as origens desta Revolução Tecnológica torna-se também importante para evidenciar que ela não se isenta de um discurso e uma prática ideológica. Foram as necessidades reais de uma organização social em ebulição que construíram o cenário favorável para o seu pleno desenvolvimento, para o qual ela serviu como vetor e não como causa. Emerge, assim, um paradigma próprio da tecnologia da informação11, que irá operar uma transição de uma tecnologia baseada em insumos baratos de energia

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Entendendo aqui como paradigma tecnológico “um agrupamento de inovações técnicas, organizacionais e administrativas inter-relacionadas cujas vantagens devem ser descobertas [...] sobretudo na dinâmica da estrutura de custos relativos de todos os possíveis insumos para a produção”. (1998a apud CASTELLS p. 107)

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(resultantes da segunda Revolução Industrial) para uma tecnologia baseada em insumos baratos de informação. Carlota Perez, Christopher Freeman e Giovanni Dosi (1998a apud CASTELLS, 1999, p. 108) elaboram o conceito de paradigma tecnológico com base na análise de Thomas Kuhn acerca das revoluções científicas, a fim de compreender melhor a essência desta transformação. Os aspectos centrais deste paradigma constituem a base material da sociedade da informação.

Os

autores

destacam

cinco características do paradigma tecnológico emergente: informação enquanto matéria-prima; velocidade de difusão dos efeitos das inovações tecnológicas; lógica das redes (as novas tecnologias realizam uma objetivação desta configuração topológica, seja em processos ou organizações); flexibilidade como base (que se traduz em um poder de reversibilidade de instituições e organizações antes estáticas); e tecnologias cada vez mais integradas e híbridas. Como coloca Lunenfeld (1999 apud SANTAELLA, 2003, p. 20), o computador que, em princípio, foi elaborado para lidar com números, “passou a mastigar tudo: da linguagem impressa à música, da fotografia ao cinema. Isso fez da ‘cibernética a alquimia do nosso tempo e do computador seu solvente universal’”, resultado da união entre computador e telecomunicações.

2.3 A rede das redes e a origem da cibercultura

Os microcomputadores pessoais começaram a penetrar no domínio doméstico nos anos 1980, iniciando a transformação dos espectadores em usuários. E, na medida em que os usuários melhoravam as suas habilidades de interação, tornavam-se compositores, escritores, produtores, apresentadores e difusores de uma produção própria, inserindo uma lógica de distribuição difundida em uma sociedade onde a distribuição era predominantemente piramidal (SANTAELLA, 2003, p. 82). Esta difusão, no entanto, somente foi possível porque estes microcomputadores pessoais estavam ligados em redes que os conectavam a outros microcomputadores que, por sua vez, eram utilizados por outros produtores. Se a tecnologia da informação pode ser comparada à eletricidade da Era Industrial, a Internet pode encontrar correspondência na rede e no motor elétrico: “a Internet

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passou a ser a base tecnológica para a forma organizacional da Era da Informação: a rede” (CASTELLS, 2003, p. 7). Ela transformou-se em um dos vetores das transformações na estrutura social da sociedade pós-moderna, permitindo, pela primeira vez, a comunicação de muitos com muitos, inaugurando o que Castells (Ibid., p. 8) chamou de Galáxia da Internet, fazendo uma alusão à Galáxia de Gutenberg, de McLuhan. Compreender a história e origens da Internet não ajuda somente a compreender a sua forma atual, mas nos ajuda a delinear os possíveis caminhos que ela poderá seguir no futuro muito próximo. Apesar do seu boom nos anos 1990, a Internet teve suas origens em uma rede de computadores montada no ano de 1969 pela Advanced Research Agency (ARPA), a Arpanet. A ARPA foi uma agência montada pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria, com objetivo de acumular e alcançar uma superioridade tecnológica em relação à União Soviética. A principal fonte da ARPA eram as pesquisas conduzidas no mundo universitário. A Arpanet foi então montada com o objetivo de “permitir aos vários centros de computadores e grupos de pesquisa que trabalhavam para a agência compartilhar online tempo de computação” (CASTELLS, 2003, pp. 13-14). Durante o primeiro ano, 1969, os nós da Arpanet estavam na Universidade da Califórnia em Los Angeles, no Stanford Research Institute (SRI), na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara e na Universidade de Utah. No entanto, a expansão foi rápida: três anos depois, a rede já contava com 15 nós, grande parte em centros universitários (CASTELLS, 2003, p. 14). Assim, o passo seguinte foi tornar possível a conexão Arpanet com outras redes de computadores, a começar pelas redes de comunicação que a ARPA estava administrando, a PRNET e a SATNET. Isso introduziu um novo conceito: uma rede de redes. (CASTELLS, 2003, p. 14, grifo meu)

Após seis anos, a administração da Arpanet foi transferida para a Defense Communication Agency (DCA) que, a fim de possibilitar uma comunicação em rede com outras agências do governo, criou uma rede operada pelos protocolos TCI/IP. Com o uso ainda muito atrelado aos centros universitários a DCA desmembrou a Arpanet, criando a MILNET, para uso exclusivo militar. Com isso, a Arpanet tornouse ARPA-INTERNET, dedicando-se à pesquisa. Com esta transformação, a Internet saiu do domínio militar, passando a ser administrada pela National Science

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Foundantion. No entanto, a gestão pública da Internet durou pouco e logo foi privatizada. Em 1990, a maior parte dos computadores no Estados Unidos já possuía a capacidade de conectar-se a Internet, contribuindo para a sua rápida difusão (CASTELLS, 2003, p. 15). Embora a origem estrutural e arquitetônica da Internet remonte à Arpanet, seu formato atual está intimamente ligado à tradição e modos de fazer dentro da rede. Um dos elementos desta tradição foi o bulletin board systems (BBS), um sistema de quadro de avisos que emergiu em 1970 com o início do uso pessoal dos computadores por parte dos pesquisadores e estudantes. Outro uso que teve início nas origens da Internet e que pode ser apontado como ancestralidade da forma de comunicação dentro da rede é a comunidade de usuários UNIX (um sistema operacional liberado para as universidades nos anos 1970) que permitiu a criação de redes comunicação entre computadores fora da Arpanet. A congregação destas redes, realizada por alunos da Universidade da Califórnia em Berkeley, deu origem a Internet. Em 1991, este sistema operacional sofreu alterações e foi renomeado para Linux, que carrega em si as práticas culturais de compartilhamento de informação, sempre aberta e passível de ser aperfeiçoada pelos seus usuários. No entanto, o boom da Internet veio com o desenvolvimento da www em 1990. Em 1994 era lançado o primeiro navegador comercial, o Netscape Navigator, possibilitando a captação e distribuição de imagens na rede. Em 1995, a Microsoft desenvolveu um navegador e o atrelou ao sistema operacional Windows 95, era lançado o Internet Explorer. (Ibid., p. 16-18) Assim, a origem da Internet repousa em duas fontes principais: establishment militar/científico e a contracultura computacional pessoal, ambas baseando-se no mundo universitário, fator decisivo para o desenvolvimento e expansão da comunicação mediada por computador (CMC), que teve início em grande escala entre pós-graduandos e docentes das universidades americanas dos anos de 1990. E esta lógica de difusão é semelhante no mundo inteiro, isto porque as universidades são as principais fontes de inovações sociais, pois há uma sucessão geracional ininterrupta, todas imersas nas inovações e tornando-se hubs de difusão. (CASTELLS, 2003, p. 25) Os primeiros produtores, e também primeiros usuários, moldaram a Internet conforme as suas práticas. A cultura da Internet que emergia era, assim, a cultura dos produtores da Internet. A ideologia da liberdade que permeia a Internet tem sua

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origem em práticas culturais que foram divididas por Castells (2003, p. 34) em quatro camadas: a cultura tecnomeritocrática, a cultura hacker, a cultura comunitária individual e a cultura empresarial. O autor ainda nos mostra que há uma relação hierárquica na distribuição destas camadas: a cultura tecnomeritocrática especifica-se como uma cultura hacker ao incorporar normas e costumes a redes de cooperação voltadas para projetos tecnológicos. A cultura comunitária virtual acrescenta uma dimensão social ao compartilhamento tecnológico, fazendo da Internet um meio de interação social seletiva e de integração simbólica. A cultura empresarial trabalha ao lado da cultura hacker e da cultura comunitária, para difundir práticas da Internet em todos os domínios da sociedade como meio de ganhar dinheiro. Sem a cultura tecnomeritocrática, os hackers não 12 passariam de uma comunidade contracultural específica de geeks e nerds . Sem a cultura hacker, as redes comunitárias na Internet não se distinguiriam de muitas outras comunidades alternativas. Assim, como sem a cultura hacker e os valores comunitários, a cultura empresarial não pode ser caracterizada como específica da Internet. (CASTELLS, 2003, p. 35)

A arquitetura da rede, da cultura de seus usuários e dos padrões reais de comunicação foram moldados pelo processo de formação e difusão da CMC. Do ponto de vista tecnológico, a arquitetura da rede é aberta (com amplo acesso público e com baixa influência de restrições governamentais e comerciais), consequência do desenho do projeto inicial (a serviço de estratégias militares) e do processo de inovação constante e da livre acessibilidade imposta pelos primeiros hackers e dos usuários que utilizam a CMC como hobby (CASTELLS, 1999 p. 441). A comunicação mediada por computadores, dentro e fora da Internet, assumiu atributos

de

penetrabilidade,

descentralização

multifacetada,

flexibilidade

e

interatividade. (Ibid., 1999, pp. 441-442) Contudo, vale lembra que, obliterados por seu alcance universal e por seu discurso democrático de acessibilidade, encontram-se desigualdades que são reproduções das desigualdades incrustadas no próprio sistema capitalista informacional. A desigualdade de acesso é regional, sexual, etária e espacial. Esta última é um dos maiores paradoxos da Era da Informação, dada a suposta independência entre tecnologia e espaço. Lévy (1999, p. 23) nos lembra que as técnicas carregam consigo projetos, esquemas imaginários, implicações sociais e culturais bastante variados. Sua presença e uso em lugar e época

12

Segundo a definição de Castells (2003, p. 35): “Geeks são peritos ou especialistas em computadores; nerds são pessoas exclusivamente voltadas para atividades científicas e, em geral, socialmente ineptas”.

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determinados cristalizam relações de força sempre diferentes entre seres humanos.

Ser excluído das redes é uma das formas mais nocivas de exclusão no mundo pós-moderno, pois significa estar fora de atividades econômicas, sociais, políticas e culturais que estão sendo produzidas e consumidas sob a lógica da Internet e na Internet (CASTELLS, 2003, p. 8). Uma das dimensões desta desigualdade de acesso pode ser evidenciada pelos dados divulgados no Censo 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo o órgão, 31% dos domicílios brasileiros possuem computador com acesso a Internet, no entanto, este acesso encontra-se intimamente ligado com a renda domiciliar (gráfico 1) que, por sua vez, carrega as heranças históricas das diferenças por sexo, raça e região.

Proporção de domicílio com acesso à Internet segundo a faixa de renda da família

78%

85%

90%

60%

21% 4% Até 1 salário mínimo

Mais de 1 a 5 Mais de 5 a 10 Mais de 10 a 15 Mais de 15 a 20 Mais de 20 salários mínimos salários mínimos salários mínimos salários mínimos salários mínimos Microcomputador com acesso à Internet

Tabela 1. Domicílios com acesso à Internet conforme a faixa de renda (Censo 2010, IBGE)

Mas, se por um lado, a Internet reproduz a desigualdade socioeconômica do capitalismo informacional, por outro lado é o meio de comunicação com maior velocidade de difusão na história: “nos Estados Unidos, o rádio levou trinta anos para chegar a sessenta milhões de pessoas; a TV alcançou esse nível de difusão em quinze anos; a Internet o fez em apenas três anos” (CASTELLS, 1999, p. 439). Mas esta mesma velocidade de difusão acaba por tornar-se outro elemento de desigualdade, pois o momento de inclusão digital tem impactos sob a forma de produzir e consumir conteúdo para a rede. A Internet é o meio de comunicação interativo universal que melhor caracteriza a Era da Informação, “é a espinha dorsal da comunicação global mediada por computadores (CMC)”. (Ibid., 1999, p. 431)

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Os bits estabeleceram uma relação antropofágica de assimilação das linguagens “analógicas”, engolindo os outros suportes materiais de comunicação e proclamando uma certa independência da informação em relação ao meio, agora “os dados independem do lugar e tempo de sua emissão original ou de uma destinação determinada, pois são realizáveis em qualquer tempo e espaço. [...] O modem é a sinapse universal do sistema nervoso planetário” (SANTAELLA, 2003, p. 84). O resultado desta complexa interação entre microcomputadores, telecomunicação em rede e formas de comunicação é o nascimento do ciberespaço, caracterizado por paradigmas e valores congregados sob o nome de cibercultura. O termo cyberspace tem sua origem na obra ficcional de William Gibson, Neuroromancer, de 1984, e foi definido como “uma alucinação consensual experienciada diariamente por bilhões de operadores legítimos. [...] Uma representação gráfica de dados abstraídos dos bancos de dados de cada computador no sistema humano” (SANTAELLA, 2003, p. 99). Nos anos 1990 o termo, antes de ser explorado comercialmente, adquiriu status acadêmico, passando a ser entendido como “uma realidade multidimensional artificial ou virtual globalmente em rede, sustentada e acessada pelo computador” (Ibid., 2003, p. 99). Mas nesta mesma década ele foi apropriado por jornais e pela televisão, passando a ser explorado comercial e ideologicamente. Atualmente, o ciberespaço é definido como “um conjunto de tecnologias diferentes, algumas familiares, outras só recentemente disponíveis, algumas sendo desenvolvidas e outras ficcionadas. Todas tem em comum a habilidade de simular ambientes dentro dos quais os humanos podem interagir” (Ibid., 2003, p. 99). Santaella (2003, p. 124), através das categorizações de William Mitchell e Bruce Sterning, sumariza as quatro camadas (e subcamadas) nas quais o ciberespaço se realiza: a) Nível físico e estrutural: trata-se de uma camada de bits armazenados em nós que se interligam em redes telemáticas computacionais e móveis; b) Nível da programação: trata-se de uma estrutura complexa de sites, endereços e conexões; c) No nível da interface: reinventa o corpo, a arquitetura e as relações de sociabilidade. Este nível pode ser desdobrado em três subcategorias: c1) Espaço de trabalho virtual corporativo c2) Ciberespaço dos brinquedos

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c3) Arena consumista

2.4 A comunicação interativa e as comunidades virtuais

A invenção do alfabeto, em 700 a.C., na Grécia, preencheu uma lacuna entre o discurso oral e o escrito, “separando o que é falado de quem fala e possibilitando o discurso conceitual” (CASTELLS, 1999, p. 413). Mas foi somente com a expansão da imprensa e da fabricação do papel, muitos séculos mais tarde, que a alfabetização se difundiu, proporcionando, no ocidente, a infraestrutura base para o conhecimento: a comunicação cumulativa. Como resultado da difusão e emergência da produção escrita, houve uma separação entre esta e o sistema audiovisual de símbolos e percepções, culminando em uma hierarquia social entre ambas as produções, relegando a última ao mundo das artes. Esta lógica foi subvertida pela primeira vez no século XX, com o cinema, o rádio e, sobretudo, a televisão, provocando uma quase inversão na hierarquia social até então estabelecida (CASTELLS, 1999, 414). O conceito de mass media, que nascera com a massificação dos jornais, se consolidou com a televisão, através da lógica de uma comunicação de mão única, sem haver interação e sistema de feedback entre emissor e receptor. Embora esta comunicação de massa seja feita de forma unilateral, Umberto Eco (1977 apud CASTELLS, 1999, p. 420) alerta para a impossibilidade de haver uma audiência passiva diante da mensagem, o que não há é feedback para o emissor, no entanto, sempre haverá uma ressignificação da mensagem por parte do receptor: Existe, dependendo das circunstâncias socioculturais, uma variedade de códigos, ou melhor, de regras de competência e interpretação. A mensagem tem uma forma significante que pode ser completada com diferentes significados... Assim, havia margem para a suposição de que o emissor organizava a imagem televisual com base nos próprios códigos, que coincidiam com aqueles da ideologia dominante, enquanto os destinatários a completavam com significado ‘aberrantes’ de acordo com seus códigos culturais específicos. (1977 apud CASTELLS, 1999, p. 420)

Nos anos 1980, com a televisão amplamente difundida, mídias digitais surgem para dar continuidade às transformações: walkman, videocassete, filmadoras caseiras, máquinas fotográficas com preços acessíveis. Dispositivos

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estes que permitiram a criação de conteúdo por parte dos até então espectadores, iniciando uma profunda modificação no fluxo unilateral de produção de mensagens com a reintegração entre experiência de vida e tela. Outro vetor de mudança neste período foi a multiplicação e especialização dos canais de televisão. Como Françoise Sabbah (1985 apud CASTELLS, 1999, p. 424) coloca: Em resumo, a nova mídia determina uma audiência segmentada, diferenciada que, embora maciça em termos de números, já não é uma audiência de massa em termos de simultaneidade e uniformidade da mensagem recebida. A nova mídia não é mais mídia de massa no sentido tradicional do envio de um número limitado de mensagens a uma audiência homogênea de massa. Devido à multiplicidade de mensagens e fontes, a própria audiência torna-se seletiva. A audiência visada tende a escolher suas mensagens, assim aprofundando sua segmentação, intensificando o relacionamento individual entre emissor e receptor.

No âmbito comercial, no entanto, o movimento é o contrário: enquanto a audiência é segmentada, as corporações de mídia e entretenimento iniciam um grande movimento de fusões e aquisições, delineando um cenário oligopolista de produção da comunicação. Este sistema de comunicação emergente, que sucede a cultura13 de massas e antecede a cultura digital, foi classificado como cultura das mídias, por Santaella (2003, p. 13). Para a autora, a cultura das mídias ajuda a entender o processo de transição para a cultura digital, pois adianta muitas das características que dominarão o sistema de comunicação sucessor, “quer dizer, a cultura digital não brotou diretamente da cultura de massas, mas foi sendo semeada por processos de produção, distribuição e consumo comunicacionais a que chamo de ‘cultura das mídias’” (Ibid., p. 13, grifo meu). A cultura das mídias rompe a lógica da cultura de massa com a diversificação da emissão e recepção da mensagem, que irá dar origem a receptores mais diversificados, seletivos e individualizados. Ela irá também adiantar algumas características chave da comunicação digital interativa: inicia o convívio de suportes e linguagens, introduz a mobilidade dos meios, principia o consumo individual de mídia, em oposição ao massivo, e, por fim, começam a treinar os indivíduos a buscar informações e sair da inércia do fluxo unilateral da comunicação de massa. (Ibid., pp. 15-16)

13

Nesta passagem o conceito de cultura não é empregado no sentido antropológico, mas como sinônimo de sistema de comunicação.

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A segunda subversão da hierarquia social das modalidades de produção da comunicação, por fim, resulta do impacto da aplicação social dos suportes digitais introduzidos pela revolução da tecnologia da informação, ao final do século XX e início do século XXI. Nasce, assim, um hipertexto e uma metalinguagem que provocaram a integração, em um único suporte, das modalidades escrita, oral e audiovisual da comunicação humana (CASTELLS, 1999, pp. 413–414). Para Packer e Jordan (2001 apud CASTELLS, 2003, p. 165) esta dinâmica emergente pode ser caracterizada, então, por cinco operações simultâneas: Integração: a combinação das formas artísticas e da tecnologia numa forma híbrida de expressão. Interatividade: a capacidade do usuário de manipular e afetar diretamente a experiência da mídia e de se comunicar com outros através dela. Hipermídia: a ligação de elementos separados da mídia uns com os outros para criar uma trilha de associação pessoal. Imersão: a experiência de ingressas na simulação de um ambiente tridimensional. Narratividade: estratégias estéticas e formais que derivam dos conceitos acima e que resultam em formas não lineares de história de apresentação da mídia.

O que Castells (2003, p. 186) irá colocar de forma bastante coerente é que, mais do que uma objetivação em forma de aparatos digitais, o hipertexto na verdade é uma das formas pelas quais a própria cultura opera, ou seja, é a “nossa capacidade interior de recombinar e atribuir sentido dentro de nossas mentes a todos os componentes do hipertexto que são distribuídos em muitas esferas diferentes da expressão cultural”. O hipertexto, desta maneira, é produzido por nós a partir da Internet como forma de apreensão das expressões culturais nas diferentes multimídias. Trata-se de uma composição prioritariamente individual e não dada exteriormente. Cada indivíduo produz o seu hipertexto. Para Santaella (2003, p. 12), o nascimento da cultura digital é o sexto elemento da classificação que ela desenvolveu para analisar e entender as formas culturais das modalidades de produção da comunicação, a saber: cultura oral, cultura escrita, cultura impressa, cultura de massas, cultura das mídias e, por fim, cultura digital. Para a autora, estas divisões estão pautadas na convicção de que os meios de comunicação, desde o aparelho fonador até as redes digitais atuais, embora, efetivamente, não passem de meros canais para a transmissão de informação, os tipos de signos que por eles circulam, os tipos de mensagens que engendram e os tipos de comunicação que possibilitam são capazes não só de moldar o pensamento e a sensibilidade dos seres

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humanos, mas também de propiciar o surgimento de novos ambientes socioculturais. (SANTAELLA, 2003, p. 13)

Embora haja uma sucessão com relação à hegemonia da cultura vigente, todas as culturas convivem simultaneamente, a transição não indica a supressão, há sim um reajuste no papel social que ela ocupa. (SANTAELLA, 2003, p. 78) Esta divisão nos ajuda a compreender melhor o processo de transição e de simbiose, pois é próprio das formas de comunicação a acumulação e a complexificação na era subsequente, não suprimindo por completo as características da era precedente. Foi assim com a forma impressa, que não nasceu diretamente da oral, neste ínterim foi desenvolvida uma forma escrita não alfabética, que auxiliou na formação de um contexto favorável ao surgimento da forma impressa de comunicação. Mas a maior inovação desta forma de classificação proposta por Santaella (2003, p. 14) está na introdução de uma era intermediária, entre a cultura de massas e a cultura digital, pois a contribuição da cultura das mídias é essencial para compreender holisticamente a própria cibercultura. Apesar de muitas características da cibercultura terem tido o seu embrião na cultura das mídias, o que irá cravar o ponto de diferenciação entre ambas será a convergência das mídias, na primeira, versus a convivência das mídias, na segunda era (SANTAELLA, 2003, p. 17). Este movimento vem provocando mudanças profundas na própria percepção e apreensão do mundo, e na própria teia de significados da cultura (GEERTZ, 2000, p. 4), pois “como a cultura14 é mediada e determinada pela comunicação, as próprias culturas, isto é, nossos sistemas de crenças e códigos historicamente produzidos são transformados de maneira fundamental pelo novo sistema tecnológico”. (CASTELLS, 1999, p. 414) A Internet, que apresentou expansão exponencial nos anos 1990, é o primeiro destaque, enquanto vetor desta integração e dos impactos na cultura, entre os suportes materiais introduzidos pela revolução da tecnologia da informação (CASTELLS, 1999, p. IX). A velocidade de expansão das redes, o seu poder simbólico e também o potencial de lucro oferecido por suas oportunidades comerciais, provocou uma corrida entre empresas de todo o mundo para a instalação e adoção do novo sistema. Como consequência, foram as empresas e

14

Empregada aqui no sentido antropológico.

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não os governos que moldaram o novo sistema multimídia. (CASTELLS, 1999, p. 450) Atualmente, estima-se uma população de internautas de 2.405.518.376 pessoas ao redor do mundo, sendo 88.494.756 pessoas somente no Brasil. Ou seja, estamos falando de cerca de 34% da população mundial e 46% da população brasileira conectada15. O segundo destaque entre os suportes materiais da Era da Informação são as redes sem fio, que apresentaram ao mundo a objetivação da ubiquidade e uma maior possibilidade de simultaneidade. Também nos anos 1990 a telefonia celular se difundiu pelo mundo, “literalmente invadindo a Ásia com pagers não sofisticados e a América Latina com telefones celulares, usados como símbolo de status”. (CASTELLS, 1999, p. 82) Estima-se, atualmente, que no mundo existam 6.3 bilhões de celulares em uso – se considerássemos um celular por pessoa, seria quase a própria população mundial. No Brasil, a posse de celular já ultrapassou o número de habitantes: estima-se que em 2012 eram cerca de 261,8 milhões de celulares em uso, ou seja uma densidade de 132,69 celulares a cada 100 habitantes. O acesso à Internet no celular também vem mostrando um crescimento exponencial, em 2010, em países como o Japão, quase 100% dos celulares encontravam-se conectados a rede; no Brasil, até dezembro de 2012, 25,2% dos aparelhos estavam conectados à rede 3G16. Nos

anos

2000,

a

convergência

tecnológica

marca

outra

grande

movimentação da expansão do hipertexto com o aumento dos pontos de acesso à Internet trazendo um outro sentido à conectividade. A noção de virtualidade passa a ocupar um lugar de destaque na dimensão do real com a realização histórica do tempo real e a ubiquidade das redes telemáticas. O que a integração digital dos meios de comunicação introduz de novo é a construção e objetivação da realidade virtual, pois, como nos ensina Castells (1999, p. 459): ‘virtual’ é o que existe na prática, embora não estrita ou nominalmente, e ‘real é o que existe de fato’. Portanto a realidade, como é vivida, sempre foi

15

Dados extraídos do porta Internet World Stats em 11 de janeiro de 2013. Estatísticas mundiais disponíveis em ; estatísticas do Brasil disponíveis em . 16 Dados extraídos do portal Teleco disponível em .

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virtual porque sempre é percebida por intermédio de símbolos formadores da prática com algum sentido que escapa à rigorosa definição semântica.

Castells (2003, p. 187) completa então, em outra obra, a respeito da cultura da virtualidade real: ela é virtual porque construída basicamente através de processos de comunicação virtuais, eletronicamente baseados. É real (e não imaginária) porque é nossa realidade fundamental, a base material sobre a qual vivemos nossa existência, construímos nossos sistemas de representação, exercemos nosso trabalho, vinculamo-nos a outras pessoas, obtemos informação, formamos nossas opiniões, atuamos na política e acalentamos nossos sonhos. Essa era da virtualidade é nossa realidade. É isso que caracteriza a cultura na Era da Informação: é principalmente através da virtualidade que processamos nossa criação de significado.

Com o crescimento da penetração de celulares e dispositivos sem fio, inaugura-se uma segunda onda de inclusão digital, feita através destes dispositivos. A ubiquidade da conexão, potencializada pela convergência tecnológica e hibridização dos suportes de comunicação das diferentes eras culturais, faz com que o sistema multimídia penetre em todas as dimensões da vida social: trabalho, casa, rua, deslocamentos. A Internet, a World Wide Web e a comunicação sem fio ultrapassam a fronteira classificatória de mídia para adentrar no conceito de comunicação interativa. A convergência não somente se dá com as mídias digitais, mas também com as mídias de massa, como ilustra Castells (1999, p. XI): Como um volume de provas demonstrou, a Internet, e a sua variada gama de aplicações, é a base das comunicações em nossas vidas, para trabalho, conexões pessoais, informações, entretenimento, serviços públicos, política e religião. A Internet é cada vez mais usada para acessar os meios de comunicação de massa (televisão, rádio, jornais), bem como qualquer forma de produto cultural ou informativo digitalizado (filmes, música, revistas, livros, artigos de jornais, base de dados).

A emergência das mídias digitais não ocasionou na perda da hegemonia da televisão, no entanto, vem provocando reinvenções e ressignificações neste meio que se torna cada vez mais individualizado, customizado e interativo (pelo menos em potência ou em tese). A plataforma de difusão começa a modificar-se, assim como ocorrido com os jornais. A interface é a grande ferramenta da era da convergência que irá interpelar e integrar a relação entre homem e máquina que se processa através de uma

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linguagem não linear, composta por nós e conexões, a qual foi chamada de hipertexto ou hipermídia (SANTAELLA, 2003, p. 92). Na definição de Theodor Nelson (2001 apud SANTAELLA, 2003, p. 93), a hipermídia é “uma nova forma de mídia que utiliza o poder do computador para arquivar, recuperar e distribuir informação na forma de figuras gráficas, texto, animação, áudio, vídeo, e mesmo mundos virtuais dinâmicos”. A capacidade da linguagem binária de tratar as diferentes linguagens audiovisuais dá à comunicação interativa o status de esperanto das máquinas (Ibid., p. 71). Os meios de comunicação se interpenetram, criando uma nova realidade midiática oriunda da convergência, tornando-se uma ponte entre produções autônomas e fluxos comunicacionais responsáveis pela composição do imaginário social. Contudo, vale aqui ressaltar que, estas produções autônomas, assim como as produções das grandes corporações, neste grande meio de comunicação híbrido, não são neutras – a comunicação em si não é uma instituição neutra – “suas mensagens, explícitas ou subliminares, são trabalhadas, processadas por indivíduos localizados em contextos sociais específicos” (CASTELLS, 1999, p. 421), o que implica em um discurso sempre tomado de um ponto de vista específico. Castells (1999, p. 458) destaca cinco características principais do padrão social/cultural do sistema de multimídia que se estabelece: (a) alta segmentação dos usuários/produtores das informações por conta da diversificação cultural e social; (b) crescente segmentação social entre os usuários favorecendo àqueles que tem tempo, dinheiro, acesso à cultura e à educação e que possui as características socioeconômicas favorecidas (renda, sexo, idade, raça) culminando em dois perfis de população digitalmente incluída: a integrante e a receptora; (c) integração de todas as mensagens em um padrão cognitivo comum; (d) a última característica, e a mais importante segundo o autor, é a capacidade de captação das diferentes expressões culturais (suprimindo dicotomias históricas como a separação entre mídia audiovisual e mídia impressa, cultura popular e cultura erudita, entretenimento e informação, educação e persuasão), construindo um ambiente simbólico que traz para o real a dimensão do virtual.

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Este terreno fértil e com infinitas potencialidades de comunicação, e de suportes digitais, incentiva a criação de espaços de sociabilidade na rede. O caso mais ilustrativo dos espaços de sociabilidade na rede são as atuais comunidades virtuais que, através de formatos como o do Facebook, alongaram as modalidades de sociabilidade e fazem parte do cotidiano de milhões de pessoas no mundo inteiro, que adotam formas de interação cada vez mais híbridas (CASTELLS, 1999, p. XIV). Como colocado por Biocca (1997 apud SANTAELLA, 2003, p. 123), as comunidades virtuais servem “para discutir, para viver papéis, para exibir-se, para contar piadas, para procurar companhias ou apenas olhar, como voyeurs, os jogos sociais que acontecem nas redes”. Para Stone (1991 apud SANTAELLA, 2003, p. 122), a ancestralidade das comunidades virtuais está contida em tempos muito distantes da própria concepção dos microcomputadores. Para ele, as comunidades virtuais passaram por quatro fases, modificando-se junto com as formas de comunicação: a) Comunicações no papel, 1669: Robert Boyle inventou um método de testemunho virtual que permitia a validação de trabalhos por parte de uma comunidade de cientistas; b) Comunicações elétricas, 1900: o surgimento do telégrafo, telefone, fonógrafo, rádio e televisão abriram a possibilidade da criação de vínculos virtuais, formando comunidades de espectadores; c) Comunicações digitais, 1960: os primeiros microcomputadores e os primeiros BBs deram origem às primeiras comunidades virtuais no formato mais próximo da maneira como é concebida hoje; d) Comunicações em rede: surgem as comunidades virtuais das redes telemáticas a partir da emergência do ciberespaço. Para Barry Wellman (1996 apud CASTELLS, 1999, p. 444), importante pesquisador em sociologia da Internet, a hibridização não ocorre somente entre os suportes, entre categorias sociais o mesmo acontece, criando uma nova realidade que

também

é

híbrida.

Assim,

as

comunidades

virtuais

não

precisam

necessariamente colocar-se em oposição das comunidades reais, elas se integram, em grande parte das ocasiões. Neste sentido, ele prefere falar do surgimento de comunidades pessoais: “a rede social do indivíduo de laços interpessoais informais, que vão de meia dúzia de amigos íntimos a centenas de laços mais fracos... Tanto

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as comunidades de grupo quanto as comunidades pessoais funcionam tanto online quanto off-line”. As comunidades virtuais objetivam e tornam acessíveis fenômenos já antes observados na composição da grande cidade. Como aponta Simmel (2005, p. 587), em sua análise sobre as grandes cidades modernas que se solidificavam, uma das contrapartidas para a atomização do habitante da cidade grande, era a volta deste indivíduo para si, para a sua subjetividade. Decorrendo daí dois desdobramentos: primeiro, a indiferenciação em meio à multidão gerou uma busca por fazer valer a própria personalidade, de forma que o homem se agarra à particularização qualitativa, a fim de, por meio do excitamento da sensibilidade de distinção, ganhar de algum modo para si a consciência do círculo social: o que conduz finalmente às mais tendenciosas esquisitices, às extravagâncias específicas da cidade grande, como o exclusivismo, os caprichos, o preciosismo, cujo sentido não está absolutamente no conteúdo de tais comportamentos, mas sim em sua forma de ser diferente, de se destacar e, com isso, de se tornar notado. (SIMMEL, 2005, p. 587)

O segundo desdobramentos é o estabelecimentos de laços fracos de sociabilidade: “pois dessa forma a tentação de se apresentar do modo mais característico, gracioso, concentrado fica muito mais forte do que onde um se encontrar longa e frequentemente propicia aos outros uma imagem inequívoca da personalidade” (SIMMEL, 2005, p. 587). Estes laços fracos objetivam as relações de sociabilidade características da sociedade contemporânea, sublinhadas por Pierre Bourdieu (1997 apud BAUMAN, 2001, p. 184): precariedade, instabilidade e vulnerabilidade. E, como Bauman (2001, p. 184) aponta, estes conceitos traduzem a combinação das experiências de “falta de garantias (de posição, títulos e sobrevivência), da incerteza (em relação à sua continuação e estabilidade futura) e de insegurança (do corpo, do eu e de suas extensões: posses, vizinhança, comunidade)”. As comunidades virtuais, em realidade, reproduzem muitos aspectos das comunidades reais. Os usuários não fazem, necessariamente, uma distinção racional entre o uso e a mobilização das duas, a Internet é utilizada para agregar as suas possibilidades de comunicação e mobilização dos laços, que podem ter sido estabelecidos virtualmente ou fisicamente. Desta forma, as comunidades virtuais tornam-se verdadeiros portfólios pessoais, preenchidos com laços especializados e

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diversificados, vínculos estes congregados através de interesses e valores em comum (CASTELLS, 1999, p. 444). Como observou Hobsbawn (1998 apud BAUMAN, 2001, p. 196): “a palavra ‘comunidade’ nunca foi tão utilizada tão indiscriminadamente quanto nas décadas em que as comunidades no sentido sociológico se tornaram difíceis de encontrar na vida real” e também na dimensão virtual do real. O que se busca é o estabelecimento de laços, mesmo que fracos, em qualquer dimensão para que haja um sentimento de pertencimento que contribuirá para a autoformação da identidade individual (que será explorada no capítulo seguinte). A possibilidade de conectar-se segundo grupos de interesses pessoais, também virtualmente, segue a lógica de privatização da composição da identidade, há a necessidade de conectar-se à rede, aos pontos nodais, para criar a noção individual de identidade. Desta forma, os indivíduos lançam-se ao palco público da Internet, muito menos em busca de um bem social comum, mas muito mais para suprir esta necessidade de ligar-se a rede, desta forma “compartilhar intimidades [...] tende a ser o método preferido, e talvez o único que resta, de ‘construção da comunidade’”. (SENNETT, 1995 apud BAUMAN, 2001, p. 47) Em realidade, a Rede é especialmente favorável para o estabelecimento e manutenção dos laços fracos, àqueles “úteis no fornecimento de informações e na abertura de novas oportunidades a baixo custo” (CASTELLS, 1999, p. 445), como indicações para vagas de empregos, por exemplo. Algumas comunidades virtuais especializadas em relações profissionais, como o Linkedin, se apropriaram desta propriedade e a exploram indicando, nos anúncios das vagas de empregos, as pessoas da sua rede que podem indica-lo na empresa contratante. A contrapartida é o alto índice de mortalidade destas ligações, por possuíram um caráter altamente frágil e transitório. Em suma, as comunidades virtuais carregam em sua essência a relação híbrida entre a dimensão do real e a virtualidade, funcionam em outro plano da realidade e possuem a sua própria dinâmica que incorpora a dinâmica da Rede: “transcendem a distância, a baixo custo, costumam ter natureza assincrônica, combinam a rápida disseminação da comunicação de massa com a penetração da comunicação pessoal, e permitem afiliações múltiplas em comunidades parciais” (CASTELLS, 1999, p. 446). Elas corroboram para uma tendência que vem sendo anunciada como característica da pós-modernidade: a organização das redes

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sociais ao redor do indivíduo, permitindo a ampliação do círculo social de indivíduos aos quais somente seria possível uma relação social limitada, dada a dispersão espacial de seus vínculos. (Ibid., p. 446) As novas tecnologias vêm sendo moldadas de acordo com os usos e necessidades pessoais e o mesmo ocorre com a comunicação mediada por computadores, que vem sendo utilizada de diferentes maneiras e finalidades, reforçando os padrões sociais já existentes.

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3 DILÚVIOS DA PÓS-MODERNIDADE

Neste capítulo debruçarei o olhar sobre os desdobramentos das inovações introduzidas pela revolução da tecnologia da informação e das mudanças na estrutura social em quatro dimensões, a saber: da identidade individual, das categorias de espaço e tempo, da formação de uma nova configuração urbana e da intensificação e do novo status quo adquirido pelas imagens.

3.1 A autoformação da identidade

Em uma perspectiva mais geral das transformações da supermodernidade (em parte resultante da formação do capitalismo informacional, em parte desdobramento da revolução da tecnologia da informação e em parte consequência histórica de lutas políticas e sociais), o que observamos, como nos mostra Bauman (2001, p. 12), é o derretimento das instituições sólidas da modernidade, para o estabelecimento de um estado de fluidez dos laços que ligavam escolhas individuais e ações coletivas. Passamos de um cenário onde as referências estavam localizadas, para um cenário onde as referências surgem de comparações individuais, os referenciais simbólicos não estão mais dados e a construção simbólica dos indivíduos fica ao seu próprio encargo. Os hipertextos audiovisuais digitais contribuem para esta liquefação das instituições na medida em que incluem uma gama diversificada de expressões culturais, cooperando com o enfraquecimento do poder simbólico dos emissores tradicionais, que estão fora do sistema digital integrado. (CASTELLS, 1999, p. 461) Ao se engajarem na estrutura simbólica complexa que emerge com a revolução tecnológica e com o capitalismo informacional, os seres humanos de certa maneira sincronizam as suas próprias simbolizações com esta estrutura (STONE, 1996 apud SANTAELLA, 2003, p. 125), pois é através da linguagem que eles se formam como sujeito e adquirem significância cultural. Chega-se assim ao extremo da liberdade filosófica individual:

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A perplexidade de Marcuse está ultrapassada, pois o ‘indivíduo’ já ganhou toda liberdade com que poderia sonhar e que seria razoável esperar; as instituições sociais estão mais que dispostas a deixar à iniciativa individual o cuidado com as definições de identidades, e os princípios universais contra os quais se rebelar estão em falta. (BAUMAN, 2001, p. 30)

Neste mundo que se modifica com velocidades jamais vistas, a busca por uma identidade17, individual ou coletiva, passa a ser a fonte primária de significação social, instala-se uma condição de esquizofrenia entre função e significado (CASTELLS, 1999, p. 41), uma vez que, como coloca Augé (1994, p. 39), “nunca as histórias individuas foram tão explicitamente referidas pela história coletiva, mas nunca, também, os pontos de identificação coletiva foram tão flutuantes”. Estamos em um estado de privatização da ação social, a sociedade pós-moderna deve a sua existência às atividades dos indivíduos, assim como as atividades dos últimos se deve à reconfiguração diária dos entrelaçamentos dos nós da sociedade em rede (p. 39). As instituições que antes homogeneizavam se liquefizeram, fica a cargo agora do indivíduo uma autodeterminação obrigatória e compulsória (BAUMAN, 2001, pp. 39-41). Busca-se um pertencimento, busca-se um estilo de vida, uma segmentação multifacetada que se traveste em forma de realização pessoal, fugir da anomia social não mais significa ligar-se às instituições, mas a status sociais, a indivíduos, a grupos de pertencimento. Como resultado, “a maneira como se vive torna-se uma solução biográfica das condições sistêmicas”. (BECK, 1995 apud BAUMAN, 2001, p. 43, grifo de Bauman) E mais do que isso, com a formação e imposição da lógica do capitalismo informacional sob todas as dimensões sociais, este indivíduo, que busca formar a sua identidade, se relaciona e age como consumidor em todas estas dimensões. Trata-se de consumir, possuir, tornar seu algo efêmero. E, em um mundo de possibilidades instáveis e infinitas a mais custosa e irritante das tarefas que se pode pôr diante de um consumidor é a necessidade de estabelecer prioridades: a necessidade de dispensar algumas opções inexploradas e abandoná-las. A infelicidade dos consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha. (BAUMAN, 2001, p. 75).

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Por identidade utilizamos aqui o conceito empregado por Castells (1999, pp. 57-58): “o processo pelo qual um ator social se reconhece e constrói significado principalmente com base em determinado atributo cultural ou conjuntos de atributos, a ponto de excluir referência mais ampla a outras estruturas sociais”.

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Desta forma, vamos às compras ao buscar exemplos para a formação da identidade, mas muito mais do que um ato para suprir uma necessidade ou saciar um desejo, queremos algo, que por seu turno é volátil, então estamos sempre querendo (BAUMAN, 2001, p. 88). Como Ferguson (1996 apud BAUMAN, 2001, p. 89) coloca, a noção de desejo liga o consumo à autoexpressão, e a noções de gosto e discriminação. O indivíduo expressa a si mesmo através de suas posses. Mas, para a sociedade capitalista avançada, comprometida com a expansão da produção, esse é um quadro psicológico muito limitado, que, em última análise, dá lugar a uma ‘economia’ psíquica muito diferente. O querer substitui o desejo como força motivadora.

Neste cenário, ter recursos (capital social e financeiro) implica em uma maior liberdade em relação às consequências de um querer errado, desta forma, a autoexpressão da liberdade também se traveste na forma de segregação. A conexão global das economias e dos meios de comunicação não implica em uma totalidade sociocultural, mesmo que no âmbito local. A segmentação da “audiência” reflete a individualização da formação das identidades que não mais estão pautadas nas instituições, mas em grupos de interesses, de afinidades, aos quais o indivíduo pode ligar-se em número ilimitado. Como Bauman (2001, p. 45) nos ensina, acerca desses nós aos quais nos conectamos nas sociedades em rede: “o que aprendemos antes de mais nada da companhia de outros é que o único auxílio que ela pode prestar é como sobreviver em nossa solidão irremível, e que a vida de todo mundo é cheia de riscos que devem ser enfrentados solitariamente”. As ancestralidades e origens da sociedade em rede parecem indicar para uma preeminência da identidade como princípio organizacional. As comunidades virtuais tornam-se um suporte material que responde a uma necessidade funcional de formação de identidade individual. Elas modificam o contexto e ampliam as possibilidades dos indivíduos nesta busca de autoformação. Grupos de interesse são objetivados na dimensão virtual da vida humana, o que corresponde à busca da identidade que é tornar sólido o fluído, dar forma ao disforme. As comunidades virtuais tornam-se verdadeiros supermercados de identidades. (BAUMAN, 2001, pp. 96-98) Bauman (2001, p. 45) recorre então a outro importante autor para pensar as consequências desta liberdade de formação da identidade individual: Tocqueville nos ensina que “libertar as pessoas pode torná-las indiferentes”. A privatização da

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ação coletiva suprime o cidadão e empodera o indivíduo, pois “o ‘cidadão’ é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade – enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético e prudente em relação à ‘causa comum’, ao ‘bem comum’, à ‘boa sociedade’ ou à ‘sociedade justa’” (BAUMAN, 2001, p. 45). O privado coloniza, então, o espaço público18. O espaço público toma o caráter de uma tela que exibe as angústias privadas, sem cessar, e que conforta o espectador/produtor ao se deparar com narrativas de indivíduos solitários, assim como ele. (BAUMAN, 2001, p. 50)

3.2 Desconstrução das categorias de espaço e tempo

O espaço e o tempo são dimensões fundamentais da vida humana culturalmente construídas e, como tal, também sofreram fortes impactos em suas definições e maneiras de serem apreendidos simbolicamente. O espaço de fluxos substitui o espaço de lugares, na medida em que o significado histórico-cultural das localidades se esvai na rede. O tempo se torna nulo em um ambiente comunicacional onde passado, futuro e presentes encontram-se imbricados, o tempo torna-se assim, intemporal. (CASTELLS, 1999, p. 462)

3.2.1 Espaço

Da Grécia Antiga ao Século das Luzes, o conceito de espaço sempre esteve diretamente relacionado com o de tempo, estando mais próximo da cosmologia do que da filosofia (FERRARA, 2008, p. 25). É em Newton, no século XVII, que encontramos o embrião do conceito de espaço que se firmou nos séculos XX e XXI. Newton, ao invés de uma abordagem metafísica, introduz uma abordagem física, invertendo a direção do conhecimento: passa-se da intuição para a observação. No entanto, será Einstein que irá consolidar a noção de espaço atrelado ao tempo, 18

“Aquele lugar intermediário, público/privado, onde a política-vida encontra a Política com P maiúsculo, onde os problemas privados são traduzidos para a linguagem das questões públicas e soluções públicas para os problemas privados são buscadas, negociadas e acordadas”. (BAUMAN, 2001, p.. 49)

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falando, na relatividade, “do movimento em expansão, atingindo o espaço e o tempo como um conjunto interinfluente e interdependente” (Ibid., p. 28). Contudo, serão as formas de representação do espaço que constituirão o discurso ideológico e simbólico e que terão grande influência sobre a maneira como este espaço é apreendido e resignificados pelos indivíduos. No Renascimento, assistimos o estabelecimento da perspectiva como primeira mediação comunicante do espaço na figura de formas ortogonais, uniformes, planas, lineares, tomadas em ângulos visuais que favorecem o ponto de vista do observador, para obter a magnitude da exatidão que caracteriza mais a figura do que a imagem. (FERRARA, 2008, p. 30)

O espaço era tido como algo exato, previsível e homogêneo, medido pela técnica e cronometrado pelo relógio. A perspectiva, desta forma, constrói intelectualmente o espaço e reflete a visão cartesiana hegemônica da época, de maneira que não se constituía somente como técnica de desenho, mas também enquanto valor simbólico, tornou-se “ao mesmo tempo pedagogia do olhar e colonização do ver” (FERRARA, 2008, p. 32). O mundo proporcional e organizado refletia a visão de mundo do homem das luzes, estabelecendo uma visão antropocêntrica do espaço. O contraponto da visão ordenada e simétrica do espaço irá emergir somente no século XVII com o Barroco, que introduz a tridimensionalidade e a imprevisibilidade. Passa-se da figura à imagem, o espaço assemelha-se agora ao corpo e suas dimensões falíveis. Esta mudança de paradigma vem sendo apontada como embrionária da concepção moderna. (FERRARA, 2008, p. 40-41) Na Revolução Industrial acontece uma nova modificação na concepção do espaço, que carrega as características daquele tempo: a produção em série inspirou a constituição de espaços em módulos, passíveis de reprodução. Mas Ferrara (2008, p. 42) chama atenção: se essas características permitem desenhar, programar, produzir e reproduzir o espaço físico, foi a concentração populacional em cidades que permitiu e impulsionou o desenvolvimento de outra modalidade, reconhecida e comunicada como espaço social.

Ao final do século XIX, a dimensão social do espaço passa a ser considerada enquanto categoria científica, pois passa a redimensionar o espaço de forma cada

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vez mais significativa. Neste mesmo século surgem as ciências que irão se debruçar sob a dimensão emergente: sociologia, urbanismo e comunicação. Esta dimensão foi adquirindo maior status, até atingir um caráter hipersocial, com a emergência da cibernética, na pós-modernidade (FERRARA, 2008, p. 43). O espaço é o suporte material para a prática social, está entre a comunicação e a cultura (FERRARA, 2008, p. 8), qualquer mudança em sua apreensão e experiência simbólica implica em uma modificação nas demais dimensões da vida e da prática social, pois é ele que “define o quadro temporal das relações sociais” (CASTELLS, 1999, p. XVII). O “espaço é tempo cristalizado”. (Ibid., p. 500). A transformação da apreensão e experiência vivida dos espaços, na Era da Informação, acontece com a introdução da simultaneidade oriunda da comunicação digital baseada na microeletrônica. A sociedade de redes está organizada em torno de fluxos: “fluxos de capitais, fluxos da informação, fluxos da tecnologia, fluxos de interação organizacional, fluxos de imagens sons e símbolos” (CASTELLS, 1999, p. 501). Mas mais do que isso, os fluxos são expressões de processos econômicos, políticos e simbólicos que dominam a vida social. Esta nova configuração dá origem a uma forma espacial também baseada em fluxos, o espaço de fluxos, que é a expressão material de tempo compartilhado destas práticas e processos de fluxo. O espaço de fluxos é composto por três camadas de suporte material (CASTELLS, 1999, pp. 501-504), a saber: (1) circuito de impulsos eletrônicos, que suportam as práticas simultâneas: os lugares não desaparecem, mas sua lógica é absorvida pelas redes; (2) nós e centros de comunicação; (3) organização espacial das elites gerenciais dominantes, elites tecnológicas e financeiras que são os atores sociais que definem a lógica espacial dominante do espaço de fluxos, as elites são cosmopolitas e as pessoas são locais, as elites dominam os códigos sociais desta estrutura. O espaço de fluxos não impõe limites às ações humanas. Se, como Simmel nos ensinou, é através do fetichismo do valor que o valor das coisas está relacionado aos obstáculos e tensões que enfrentamos para obtê-las, se não mais tem que se enfrentar a barreira do tempo para conquistar o espaço, estes espaços passam a ser destituídos de valor, pois “como todas as partes do espaço podem ser atingidas no mesmo período de tempo (isto é, em tempo “nenhum”), nenhuma parte

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do espaço é privilegiada, nenhuma tem um ‘valor espacial’” (BAUMAN, 2001, p. 137). No entanto, vale ressaltar que o espaço de fluxos não é a única forma de apreensão e prática simbólica do espaço na experiência humana. O espaço de lugares também convive com a forma dominante da Era da informação (CASTELLS, 1999, p. 512). Os lugares contribuem para a formação de comunidades, mas são essencialmente formações espaciais dotadas de significados simbólicos individuais. Os lugares são identitários, relacionais e históricos, definindo-se por uma estabilidade mínima, que aos poucos vão sendo reduzidos às residências das pessoas (AUGÉ, 1994, p. 53). Com a aceleração da história, o presente ganha status na pós-modernidade, e os monumentos e traços da cidade tornam-se antigos demais para serem integrados à identidade das gerações que nasceram e foram integradas rapidamente à lógica pós-moderna. As cidades também crescem e trazem traços que são globais e não locais, deixando de estabelecerem como referencial histórico da formação da identidade individual e coletiva, porque trata-se da história do mundo e não do lugar. O espaço de lugares está para o espaço de fluxos, assim como a o local está para o global. Como a estrutura dominante é a do espaço de fluxos, a apreensão e prática do espaço de lugares sofrem alterações. Em realidade, esta relação culmina em uma esquizofrenia estrutural entre estas lógicas que se contradizem, pois a lógica aistórica do espaço de fluxos tenta impor sua lógica aos lugares de forma a anular seus códigos culturais. (CASTELLS, 1999, pp. 517-518)

3.2.2 Tempo

As nossas sociedades, assim como nós, são tempo personificado (CASTELLS, 1999, p. 523). As formas de apreensão e práticas simbólicas do tempo tem variado ao longo da história, localização e da cultura, “indo da determinação do destino humano nos horóscopos babilônicos à revolução newtoniana do tempo absoluto como princípio organizador da natureza” (WHITROW, 1988 apud Ibid., p. 523). A prática, o ritmo e a percepção de tempo de uma dada sociedade é resultado da interação entre organização social, tecnologia e cultura.

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Foi com a introdução da tecnologia mecânica, e também de uma necessidade funcional latente, que o tempo passou a ser fracionada em partes cada vez menores (horas, minutos, segundos...). A história do tempo começou com a modernidade (BAUMAN, 2001, p. 128), antes disto a sequência de tempo era parcamente percebida. A era industrial organizou a produção em torno do controle do tempo, e modificou a percepção e a prática social do mesmo: “a jornada de trabalho definia o tempo da vida” (CASTELLS, 1999, p. XXV). Paralelamente, a concepção de tempo também era abalada com a introdução de meios de transporte cada vez mais velozes. O tempo “se tornou o problema do ‘hardware’ que os humanos podem inventar, construir, apropriar, usar e controlar”. (BAUMAN, 2001, pp.129-130) Contudo, esta lógica de tempo linear, mensurável e previsível está sendo desconstruída pela sociedade em rede e pelo capitalismo informacional. Como Castells (1999, p. 526) indica, trata-se de um movimento histórico e profundo: é a mistura de tempos para criar um universo eterno que não se expande sozinho, mas que se mantém por si só, não cíclico, mas aleatório, não recursivo, mas incursor: tempo intemporal, utilizando a tecnologia para fugir dos contextos de sua existência e para apropriar, de maneira seletiva, qualquer valor que cada contexto possa oferecer ao presente eterno.

O tempo torna-se, então, software, um tempo instantâneo e sem substância. (BAUMAN, 2001, p. 129) No capitalismo informacional, o tempo equivale ao dinheiro, pois a velocidade emerge como um elemento chave das transações financeiras. O tempo passa a ser comprimido através de computadores cada vez mais poderosos e de redes de telecomunicação mais velozes. O tempo do relógio é então substituído pelo tempo atemporal: o tipo de tempo que acontece quando há uma perturbação sistêmica na ordem sequencial das práticas sociais desempenhadas no âmbito de um determinado contexto, como a sociedade em rede. (...) O tempo atemporal é isso: não se trata da única forma de tempo, mas é o tempo do poder na sociedade em rede. (CASTELLS, 1999, pp. XXVI; XXVII)

É o tempo simulado pelo espetáculo, que por sua vez é a falsa consciência do tempo. (DEBORD, 1997, p. 108) A resposta a esta necessidade funcional do capitalismo informacional, como que numa fuga de uma das suas últimas restrições, é possibilitada pelas novas

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tecnologias da informação. Nos fluxos financeiros transacionais, a velocidade da transação gera o ganho, ou a perda, “é apropriado dizer que tempo gera dinheiro, à medida que todos apostam no/e com o dinheiro futuro previsto nas projeções dos computadores” (CASTELLS, 1999, p. 528). A outra face da moeda da compressão do tempo pelo capital é a velocidade também atingida pela dispersão de crises financeiras, que em pouco (ou nenhum) tempo, atinge todos os países interligados pelo sistema financeiro. (Ibid., p. 529) A supressão do tempo também está presente e serve como base das novas formas organizacionais da economia: a empresa em rede. O gerenciamento tradicional dos trabalhadores (jornada de trabalho versus produtividade), não mais se aplica; em seu lugar tornou-se necessário uma mão-de-obra mais qualificada capaz de gerenciar a flexibilidade de seu próprio tempo, com jornadas de trabalhos mais extensas e flexíveis. O tempo passa a ser controlado e modificado também no que concerne ao ciclo de vida humano, através dos avanços tecnológicos da biomedicina. A reprodução é estendida, assim como o tempo de vida dos indivíduos. O controle do tempo de reprodução relaciona-se com a emancipação econômica e social das mulheres, responsável pela alteração da estrutura demográfica e dos ritmos biológicos. O aumento da expectativa de vida provoca modificações na própria concepção de terceira idade e na interação geracional. (CASTELLS, 1999, p. 539) Todos tentam controlar e aniquilar o tempo, e a velocidade é a ferramenta utilizada. O tempo agora constitui superfície (VIRILIO, 1993, p. 11). Vivemos em um estado de emergência, próteses cada vez mais sofisticadas são desenvolvidas para garantir essa supressão, e os detentores de poder e dinheiro são os primeiros beneficiários das novas tecnologias (VIRILIO, 1996, p. 12-13). Busca-se fugir do tempo que virou história, ao mesmo tempo em que há uma fuga coletiva do envelhecimento (DEBORD, 1997, p. 109). Todos correm para realizar o maior número de atividades em um menor espaço de tempo possível, a vida organiza-se em torno das unidades de tempo que “determinam o que podemos fazer dentro de limites cronológicos em espaços separados” (CASTELLS, 1999, p. XXVII). Instala-se então a necessidade da realização de tarefas simultâneas como forma de atingir o tempo atemporal, a ponto de atingirmos a anulação do mesmo através das nossas práticas virtuais, que instauram uma presença constante no mundo (Ibid., p. XXIX). Ser pós-moderno, adaptando as palavras de Bauman (2001, p. 37), passou a

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significar ser incapaz de parar e de ficar parado, isto porque, como revela Augé (1994, p. 29; 31), a mudança paradigmática do tempo acelera a história, o que acabamos de presenciar e realizar, tão logo vira história, rapidamente a nossa história individual passa a pertencer à história coletiva. A aceleração da história, por sua vez, desdobra-se em uma superabundância de acontecimentos. A instantaneidade e a intemporalidade do tempo pós-moderno recebem uma contribuição profunda da virtualidade inserida no real, resultado dos usos sociais das novas tecnologias da informação. A instantaneidade atual não tem precedentes históricos, atualmente é possível assistir em tempo real acontecimentos do outro lado do globo, bem como comunicar-se com pessoas aí localizadas. A intemporalidade é uma característica do hipertexto de multimídia, onde a ordenação dos eventos perde seu tempo cronológico e organiza-se de acordo com o contexto social de sua utilização. Emerge assim, a cultura do eterno e do efêmero: “eterna porque alcança toda a sequência passada e futura das expressões culturais. [...] efêmera porque cada organização, cada sequência específica, depende do contexto e do objetivo da construção cultural solicitada”. (CASTELLS, 1999, p. 554) O começo e o fim, que antes eram separados por uma distância medida em tempo, já não tem mais distinção, o que existem agora são momentos, sem dimensão. O modo como se vive e como se apropria esse momento, faz dele uma experiência imortal. (BAUMAN, 2001, pp. 138-144) No entanto, o tempo intemporal, assim como o espaço de fluxos é apenas a forma dominante do tempo social e convive com outras formas de percepção e apreensão do tempo. A disciplina tempo, o tempo biológico e a sequência socialmente determinada são outras formas de tempo que convivem com o tempo intemporal e que estão contidos no o espaço de lugares. Desta forma, vemos a inversão da lógica estabelecida historicamente: o tempo passa a ser moldado de acordo com a característica do espaço social. O espaço de fluxos dá ao tempo a lógica da efemeridade e do eterno; o espaço de lugares dá ao tempo características diversas, determinadas pela dimensão biológica, pela disciplina ou pela sequência socialmente determinada. E, em realidade, grande parte da população mundial vive sob a determinação do último espaço sobre o tempo. (CASTELLS, 1999, pp. 527; 557-559). A sequência dos fenômenos é, assim, determinada por interesses sociais.

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3.3 As megacidades e o espaço enquanto suporte material

As cidades, enquanto suporte material da sociabilidade e das práticas sociais, representam por si só um sistema de comunicação que permite uma contiguidade física, potencializando as chances de se comunicar. Elas constituem-se em espacialidades dos espaços de fluxo, que agem como vetores e modelam as mudanças de caracterização dos veículos de comunicação e emissão de signos, “a espacialidade cria uma teoria do espaço enquanto representação e, em consequência, como comunicação supõe o resgate das manifestações presentes nas suas constituições históricas” (FERRARA, 2008, p. 47). As representações carregam um duplo, signos do objeto e do indivíduo e, por isso, tratam-se de uma mimese ou sombra. (Ibid., p. 47) As tecnologias avançadas de comunicação, ao contrário do que os futurólogos previam, permitiram uma maior concentração de pessoas em um número pequeno de áreas no planeta, capaz de se conectar com o resto do mundo através de redes de computadores com larguras de banda cada vez maiores e velozes. No entanto, se a concentração de pessoas se assemelha com a formação social anterior, a forma urbana contraria esta tendência, isto porque possui de sui generis a característica de uma arquitetura espacial que conecta através de redes globais regiões metropolitanas e suas áreas de influência (CASTELLS, 1999, pp. XVII-XVIII). A região metropolitana é a forma espacial característica da sociedade em rede. Como Castells (1999, p. XVIII) explica: A característica mais importante desse processo acelerado de urbanização global é que estamos vendo o surgimento de uma nova forma espacial que chamo de região metropolitana para indicar que, embora essa unidade espacial seja metropolitana, não se trata de uma área metropolitana porque, geralmente, nela estão incluídas várias áreas. A região metropolitana surge de dois processos entrelaçados: ampla descentralização das grandes cidades para as áreas adjacentes e interconexão das pequenas cidades pré-existentes cujos territórios se tornam integrados por meio de novas capacidades de comunicação.

Como Paul Virilio (1993, pp. 9-10) chama a atenção, se, por um lado, a cidade ainda é localizável, possuindo uma geografia, o mesmo não mais ocorre com as dicotomias que faziam parte da sua definição, a antiga ruptura entre cidade-campo e

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entre centro-periferia foi rompida. A emergência da interface com as novas tecnologias elimina os obstáculos físicos e as grandes distâncias de tempo. A nova estrutura social, baseada no capitalismo informacional e na globalização, tem uma forma espacial característica, que são as megacidades, que são os nós da economia global, concentrando “as funções superiores direcionais, produtivas e administrativas de todo o planeta; o controle da mídia; a verdadeira política do poder; e a capacidade simbólica de criar e difundir mensagens” (CASTELLS, 1999, p. 493). As megacidade concentram o que há de melhor e de pior: das últimas inovações à mais degradante forma de miséria. Contudo, o que há de sui generis nestes aglomerados urbanos é estarem física e socialmente conectadas com o globo e desconectadas com o local. Por fim, elas são os pontos nodais do espaço de fluxos. Os novos suportes digitais de comunicação dão origem, desta forma, à cidade informacional, que deixa de ter uma forma para tornar-se um processo estruturado pelos espaços de fluxos, baseando-se em conhecimento e organizando-se em rede. No entanto, não é somente a objetivação das redes que as novas tecnologias introduzem no espaço, elas também inscrevem a lógica binária e matemática no território: na metrópole somos empurrados feito máquinas, comandadas por um relógio onipresente. É instaurada uma racionalidade instrumental e funcional no espaço (SANTOS, 2012, p. 187). A cidade, na forma de megalópole é “um assentamento humano em que estranhos tem chance de se encontrar”, como colocado por Richard Sennett (1978 apud BAUMAN, 2001, p. 111). E, completa Bauman (2001, p. 114), o encontro entre estranhos é um evento que não tem passado e nem futuro, somente o presente. As cidades servem então como suporte material para tais encontros, disponibilizando lugares onde os indivíduos possam exercer a prática social do encontro entre estranhos, mas também apresentar-se como um bem comum, que não pode ser reduzido completamente aos interesses individuais. Os lugares para tais encontros são de dois tipos: os urbanos (os de passagem) e os de consumo. Os lugares contidos na segunda categoria, como os shoppings centers, são “higienizados” (sem mendigos e sem pobreza aparente) e possuem um ritmo próprio, a parte do ritmo que se passa além dos portões. Desta forma, “o templo do consumo [...] pode estar na cidade, mas não faz parte dela” (BAUMAN, 2001, p. 115), ele fornece um equilíbrio entre liberdade e segurança que só pode ser ali encontrado. A

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homogeneização instantânea, fornecida por uma identificação relacionada ao objetivo de estar lá, traz o sentimento reconfortante de pertencimento, de comunidade. E “a ‘comunidade’ é, hoje, a última relíquia das utopias da boa sociedade de outrora; é o que sobra dos sonhos de uma vida melhor, compartilhada com vizinhos melhores, todos seguindo melhores regras de convívio”. (BAUMAN, 2001, p. 108) O espaço físico, e não somente o seu conceito, vem sendo reordenado e sofrendo alterações em sua própria configuração física (seja na dimensão real ou virtual da experiência humana). Como Augé (1994, p. 37) nos ensina: “O mundo da supermodernidade não tem as dimensões exatas daquele no qual pensamos viver, pois vivemos num mundo que ainda não aprendemos a olhar. Temos que reaprender a pensar o espaço”. Se, por um lado, a tradução física do conceito de espaço de lugares está sendo cada vez mais reduzida aos domicílios, por outro lado, uma das traduções físicas dos espaços de fluxo, é o que Augé denominou de não lugar, que se opõem aos lugares por não serem históricos, relacionais e identitários, e que se proliferam com a formação das megacidades. Os não lugares são definidos no âmbito do indivíduo, pois dependem da relação simbólica e de identidade deste com o espaço físico. A existência de uma relação simbólica e de identidade representa o lugar, a não existência destas relações define o não lugar. Para Augé (1994, p. 74) trata-se de um conceito-chave da pós-modernidade e que auxilia no entendimento das dinâmicas sociais atuais, pois em Um mundo onde se nasce numa clínica e se morre num hospital, onde se multiplicam, em modalidades luxuosas ou desumanas, os pontos de trânsito e as ocupações provisórias [...], onde se desenvolve uma rede cerrada de meios de transporte que são também espaços habitados, onde o frequentador das grandes superfícies, das máquinas automáticas e dos cartões de crédito renovado com os gestos do comércio “em surdina”, um mundo assim prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero, propõe ao antropólogo, como aos outros, um objeto novo cujas dimensões inéditas convém calcular antes de se perguntar a que olhar ele está sujeito.

Como Milton Santos (2012, p. 96) nos ensina: as mudanças nas dinâmicas de trabalho e de sociabilidade também marcam o espaço geográfico, é assim “que as épocas se distinguem uma das outras”, pois cada padrão espacial não é somente

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formal, mas funcional. O conjunto do espaço é que irá determinar os objetos e técnicas que lhe servem (Ibid., p. 97).

3.4 A intensificação das imagens: a sociedade do espetáculo pós-moderna

As reflexões de Guy Debord acerca da sociedade do espetáculo, apesar de estarem baseadas nas transformações da sociedade moderna, podem lançar luz sobre a exacerbação da mediação da imagem na sociedade pós-moderna, já que se trata de uma continuidade da dinâmica moderna. O excesso de representações e mediações resulta no que Debord (1997, pp. 13-14) define como um acúmulo de espetáculos. Estas representações, em forma de imagem se descolam do seu substrato real, fragmentando-o. O espetáculo enquanto representação imagética da sociedade traveste-se como falsa consciência, definindo-se na relação mediada por imagens entre pessoas, trata-se, então, de uma ideologia objetivada, “uma visão de mundo que se objetivou”. (Ibid., p. 14) Este excesso de imagens que mediatiza as relações de sociabilidade refletem o próprio capitalismo informacional, de onde se originam, intensificando- se através das transformações introduzidas pelos suportes materiais pós-modernos. A iconografia que organizava a visão moderna se intensifica e ganha novas dimensões com as novas tecnologias, como mostra Parente (1993, p. 13): O princípio organizador da visão moderna é a icnografia do ponto de vista. [...] Sob a calma aparência da objetividade e da neutralidade científica, o espaço é fruto da iconografia moderna com seus jogos de permutações e comutações que substituem a imagem justa em sua transparência por uma imagem luminosa em sua potência. Posteriormente, as novas tecnologias vão transformar essa transparência num valor cujo vetor será a velocidade, o cinematismo e a potência de luminosidade. Por uma lado, elas se tornam o espaço e os corpos transparentes, por outro lado, elas não param de fazer nascer o visível, através de circuitos cada vez mais complexos que formam uma interface luminescente.

A revolução tecnológica transformou o tempo, a história e a velocidade. A capacidade de processamento de informação e a aceleração da história culminam em um boom factual, traduzidos nos consumo e produção de imagens que integram e compõem o processo de comunicação da cultura (CASTELLS, 1999, p. 459).

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Prossegue assim, uma alienação recíproca entre espaço e realidade, de forma que “quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico”. (DEBORD, 1997, p. 18) O habitante da cidade pós-moderna experiencia, com o boom imagético, o encontro com o passado, mas também o encontro de si mesmo, transmutado, mas identitários. A metrópole que ele habita é coabitada por imagens que se multiplicam, configurando uma espécie de simulacro do mundo, criando espaços que invadem o campo do privado, transformando-os em públicos (FERRARA, 2008, p. 66). Como consequência desta exacerbação, há uma desvalorização da imagem, pois “enfraquecendo sua força apelativa e tornando os olhares cada vez mais indiferentes, progressivamente cegos, pela incapacidade da visão crepuscular e pela univocidade saturadora das imagens iluminadas e iluminadoras”. (BAITELLO, 2011, p. 2) A abundância de imagens produzidas pelos meios de comunicação substituíram as mediações institucionais de outrora, contribuindo para a liquefação das referências sociais estáveis (AUGÉ, 2006, p. 106). São a contrapartida necessária do capitalismo informacional. Como consequência, a dependência da imagem isola o indivíduo e lhe propõe simulação do próximo. Quanto mais estou na imagem, menos invisto na atividade de negociação com o próximo, que é, na reciprocidade, constitutiva de minha identidade. [...] O fato novo hoje em dia, e aqui reside o problema, é que com frequência a imagem já não representa um papel de mediação com o outro, mas sim, se identifica com ele. (AUGÉ, 2006, p. 114).

O dilúvio da imagem ajuda a instaurar a instabilidade da identidade do sujeito. Há assim, um processo ao qual Baitello (2011, p. 3) irá chamar de iconofagia, que ocorre a partir do momento que o olhar, enquanto gesto do corpo, passa a servir de alimento para as imagens: Quanto mais vivemos, menos vivemos, quanto menos vivemos, mais necessitamos de visibilidade. E quanto mais visibilidade, tanto mais invisibilidade e tanto menos capacidade de olhar. Assim, o primeiro sacrifício desse círculo vicioso termina por ser o próprio corpo, em sua complexidade multifacetada, tátil, olfativa, auditiva, performática e proprioceptiva. (BAITELLO, 2011, p. 3)

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A comunicação interativa vem assumindo, desta forma, uma relevância crescente para a constituição da identidade do sujeito, pois insere a experiência simbólica e material (ou seja, a realidade) em um hipertexto virtual, onde as imagens também são apreendidas como experiências reais pelo sujeito. Estão imersos neste cadinho de experiências o passado, o presente e o futuro da humanidade. A perda da alma da imagem, sugerida por Walter Benjamin (1996, p. 169), resultado da profusão e reprodução incontida das mesmas, traduz esta aistoricidade, a representação e as presenças de imagens que não possuem mais um tempo representável, trata-se de um tempo maleável que se adapta ao contexto de apreensão da mesma. Como consequência, vemos que “as máquinas sensórias povoaram o mundo de imagens e sons, saturando a biosfera de réplicas do visível e do audível” (SANTAELLA, 2003, p. 222). O indivíduo se reduz, então, como observador da observação, perdendo o sentido de percepção de si mesmo, para encontra-lo no exterior, nas imagens, a experiência do corpo é extrassomatizada (BAITELLO, 2011, p. 3). Trata-se assim de um “triunfo do olho sobre os outros sentidos humanos”. (KAMPER, 1995 apud BAITELLO, 2011, p. 4) No processo de mediação entre a percepção do homem sobre o mundo, as imagens servem como filtros, mas o homem “ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função das imagens” (FLUSSER, 2011, p. 23).

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4 ESTUDO DE CASO: O INSTAGRAM

Nos capítulos anteriores, dediquei-me aos principais acontecimentos que culminaram na transição de Eras que observamos no final do século XXI: passamos da Era Industrial (modernidade) para a Era da Informação (supermodernidade / pósmodernidade). Voltei-me para alguns comportamentos e objetos sociais que sofreram modificações profundas com esta transição, transformando paradigmas e a própria estrutura de relações e práticas sociais. Esta recapitulação é essencial para construir o cenário (e compreender de maneira mais holística) o objetivo deste trabalho: debruçar o olhar sobre o uso social dos suportes digitais emergentes da revolução da tecnologia da informação. Para tal, elegi o aplicativo Instagram como estudo de caso, uma vez que ele reúne em sua essência muitas das características deste novo tipo de comunicação (interativa) da supermodernidade. Buscarei entender o que o indivíduo fabrica19 durante o seu uso dando um enfoque para a apreensão simbólica do espaço urbano através do Instagram. Não se trata, desta forma, de entender a representação do ponto de vista do usuário, mas sim a produção simbólica da imagem enquanto comunicação. Busquei manter um olhar distanciado, evitando julgamentos morais e discursos futurologistas. O objetivo é lançar um olhar crítico para contribuir com o entendimento de uma das dimensões das profundas mudanças do mundo contemporâneo. Trata-se assim de um ponto de partida ou continuidade para o estudo da produção simbólica através do Instagram. São as apropriações, os usos e as fabricações simbólicas que dão existência à técnica, sem uma teia de signos, a técnica não existe socialmente (SANTOS, 2012, p. 100). Como ensinado por Certeau (2012, p. 39), A ‘fabricação que se quer detectar é uma produção, uma poética – mas escondida, porque ela se dissemina nas regiões definidas e ocupadas pelos sistemas de ‘produção’ (televisiva, urbanística, comercial etc.) e porque a extensão sempre mais totalitária desses sistemas não deixa aos ‘consumidores’ um lugar onde possam marcar o que fazem com os produtos. A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de ‘consumo’: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo

19

CERTEAU, 2012, p. 38.

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tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante.

4.1 Considerações metodológicas

A análise aqui composta foi fruto de um levantamento bibliográfico extenso (mas não finito) das produções acerca da pós-modernidade, da revolução tecnológica e de seus desdobramentos e de um longo período de observação das fotografias marcadas com a hashtag20 #sp21 no Instagram, além da experiência de usuária. Procurou-se aplicar os aprendizados das reflexões e análises acadêmicas realizadas no âmbito mais geral ou em particularidades outras da pós-modernidade, de maneira a trazer luz para este tema que possui uma produção acadêmica ainda tímida: o uso do Instagram. Apesar desta análise não se deter na cidade de São Paulo, a hashtag foi escolhida para facilitar uma comparação informal entre a representação no Instagram e a apreensão visual direta dos lugares fotografados. Esta comparação foi feita como forma de amparar e alimentar a reflexão teórica sobre o tema, não seguindo um rigor metodológico e por tal não sendo formalizada no presente trabalho. A intensão aqui é refletir a cerca de um novo paradigma da representação da cidade, que emerge com as práticas e modos de fazer dos usuários do Instagram, acabando por criar na dimensão da virtualidade uma narrativa de cidades que na realidade são não lugares virtuais, pois já não estabelecem mais uma ligação com o substrato real da imagem. Trata-se, desta forma, de um primeiro olhar sobre o tema que deverá ser posteriormente

estudado

nos

seus

desdobramentos

locais,

que

revelarão

apropriações simbólicas singulares. Neste sentido, a falta de um levantamento extensivo de dados primários não deve ser levada como enfraquecimento da análise 20

As hashtags tiveram origem no Twitter, passando a ser utilizadas em outras comunidades virtuais. Segundo a definição da Wikipédia: “Tags são palavras-chave (relevantes) ou termos associado a uma informação. Hashtags são palavras-chave antecedidas pelo símbolo "#", que designam o assunto o qual está se discutindo em tempo real no Twitter. As hashtags viram hiperlinks dentro da rede e indexáveis pelos mecanismos de busca. Sendo assim, usuários podem clicar nas hashtags ou buscá-las em mecanismos como o Google para ter acesso a todos que participaram da discussão”. (HASHTAG, 2013) 21 Até 16 de janeiro de 2013, a #sp contava com 556.070 fotos no Instagram. (INSTAGRAM, 2013)

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e do argumento, mas como um passo a ser dado para a continuidade de exploração do tema.

4.2 O Instagram

No século XXI, vemos nascer um aparelho multitudo, uma evolução do aparelho celular que atualmente integra uma máquina digital, acesso à Internet, reprodução de mp3, GPS, videoconferência, televisão e deverá integrar outras funcionalidades ainda não inventadas. Tecnicamente estes aparelhos são chamados de smartphone, genuíno resultado da convergência dos suportes digitais de comunicação e do paradigma hipermidiático. São microcomputadores ultraportáteis que evidenciam o sentido de ubiquidade. No Brasil, como mostrado anteriormente, 25,2% dos aparelhos celulares estão conectados a rede 3G, o que, em tese os classifica

como

smartphone.

As

funcionalidades

destes

aparelhos

são

potencializadas ou estendidas através de aplicativos, pagos ou gratuitos, disponíveis para download nas lojas virtuais específicas de cada sistema operacional. Atualmente há uma hegemonia de dois sistemas operacionais, o Android e o iOS. O Instagram é um desses aplicativos que amplificam propriedades dos smartphones, disponível para estes dois principais sistemas operacionais. Para compreendê-lo, vale uma recapitulação da sua breve história22. Entre fevereiro e março de 2010, Mike Krieger, um brasileiro, e Kevin Systrom, criaram o embrião do aplicativo que daria origem ao Instagram, o Burbn. Em realidade, este último era muito complexo (envolvendo fotos, check-ins e planos para o final de semana) e acabou sendo vendido para investidores por US$ 500 mil. Em outubro de 2010, a partir da reformulação do modelo do Burbn, nasce o Instagram, um aplicativo mais simples, que permite fotografar, aplicar filtros à fotografia e compartilha-las no Facebook e Twitter. Até então disponível somente para os usuários do sistema operacional iOS, da Apple, o Instagram virou também uma comunidade virtual, permitindo comentários e interação entre os usuários. Já em novembro de 2010 os fundadores começaram a ter retornos financeiros, conseguindo financiamentos em torno de US$ 20 milhões. E em 22

G1, 2013

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dezembro do mesmo ano, com apenas três meses de atuação, o aplicativo atingiu 1 milhão de usuários. Um ano depois, em dezembro de 2011, o aplicativo atinge o topo da lista de favoritos na Apple Store, sendo eleito o aplicativo do ano para iPhones, pela própria Apple. Neste mesmo período, seus criadores anunciam o desenvolvimento do aplicativo para o sistema Android, do Google, visando aumentar o número de usuários para rentabilizar o negócio através de publicidade. Em Janeiro de 2012, Obama passa a utilizar o aplicativo como meio de divulgação e campanha política, corroborando para a sua popularização. Em março de 2012, o Instagram anuncia que possui mais de 27 milhões de usuários no mundo. Em abril do mesmo ano, a versão para Android é lançada, ao mesmo tempo que vem à tona o anúncio da vendo do aplicativo para o Facebook, em uma negociação estimada de US$ 1 bilhão. E em janeiro de 2013, por fim, anunciam 90 milhões de usuários ativos na rede23. Como dito anteriormente, o Instagram permite fotografar, aplicar filtros e compartilhar as fotos em uma comunidade virtual – a do próprio Instagram, ou no Facebook ou no Twitter – além de poder compartilhar a imagem por e-mail, Tumblr e Flickr. Atualmente, o aplicativo disponibiliza 20 filtros e molduras, com inspiração inicial nas máquinas fotográficas pessoais Kodak Instamatic e Polaroid.

4.3 Cidades fotografadas: construção do não lugar na virtualidade

Os

smartphones

acompanham

os

seus

usuários-funcionários

em

praticamente todos os momentos do dia. Atualmente fala-se até de nomofobia24, vocábulo pós-moderno criado para caracterizar uma fobia de ficar privado da comunicação via aparelho celular25. Estes aparelhos, constantemente conectados à Internet, tornaram-se extensões do corpo e da mente. Para não se esquecer de algo, basta utilizar apps desenvolvidos para tal função. Para explicar, buscar, 23

OLHAR DIGITAL, 2013. “é um nome recente que designa o desconforto ou a angústia causados pela incapacidade de comunicação através de aparelhos celulares ou computadores”. (NOMOFOBIA, 2013.) 25 Aqui vale uma ressalva de que, no contexto da convergência das mídias e aumento da capacidade de conexão, a comunicação via celular não é caracterizada somente pelo ato de falar com alguém, reproduzindo ubiquamente a função do telefone, mas significa também o acesso a um microcomputador de bolso, repleto de aplicativos e que possibilita a conexão com a rede telemática. 24

55

procurar qualquer tipo de informação, basta acessar o Google. Para registrar uma paisagem, basta fotografar e para aqueles que possuem o Instagram, basta fotografar-e-compartilhar. As interações com o mundo ao redor são intensificadas, modificadas e registradas através deste microcomputador portátil. Para Merlin Donald (1991 apud SANTAELLA, 2003, p. 217), esta relação simbiótica entre homem e máquina faz parte de mais uma etapa evolutiva da espécie humana, pois estende a capacidade simbólica e externaliza a memória. Neste processo, a divisória do que é cultural e natural, bem como do que é biológico e tecnológico, perde a sua nitidez. Santaella (2003, p. 219) nos mostra que por uma questão de limitação físico-biológica da caixa craniana, o néocortex, que é o depositário dos processos sígnicos, não pode acompanhar a complexificação das culturas comunicacionais, de forma que “a capacidade simbólica humana sempre esteve fadada a crescer fora do corpo humano”. Essa extrassomatização do cérebro não é exclusividade da era da cultura digital, mas vem se complexificando e se intensificando desde a cultura escrita. Cada uma das eras culturais, desde a escrita, correspondeu à extrassomatização de uma determinada habilidade da mente humana: assim, por exemplo, com a invenção da escrita, que significou uma perda da memória individual, mas ao mesmo tempo funcionou como uma extensão da memória individual da espécie. Sem a escrita a memória correria sempre o risco de se perder com a morte do indivíduo. (SANTAELLA, 2003, p. 222)

Com os suportes comunicacionais introduzidos a partir revolução industrial e eletrônica, foram os sentidos humanos, especialmente o olho e os ouvidos, que se extrassomatizaram. Na revolução tecnológica, por sua vez, a extrassomatização dos sentidos se intensifica e a inteligência também se expande para fora do corpo humano com a capacidade das máquinas de processar informações (SANTAELLA, 2003, p. 222). Como consequência, assinala Santaella (2003, p. 224): o que se pode afirmar no presente é que os meios, instrumentos e máquinas de produção de linguagens, como extensões de nossas capacidades sensórias e cerebrais, e os signos por eles produzidos, como amplificadores e multiplicadores dessas capacidades, foram dando ao nosso corpo dimensões correspondentes aos níveis crescentes de extrassomatização do cérebro. De fato, tão crescentes tem sido os níveis dessa extrassomatização a ponto de podermos hoje afirmar que o corpo humano já não apresenta mais a forma nem a dimensão que aparece no espelho do nosso quarto.

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As tecnologias da linguagem tornam-se, assim, próteses que ampliam os sentidos do corpo humano e produzem signos, e por isso são simbólicas e semióticas, aderindo ao nosso corpo e também ao nosso imaginário, individual e coletivo. A ideia da tecnologia como prótese pode ser encontrada já em Galileu e Leibiniz, que em suas defesas das tecnologias da época defendiam o uso das mesmas como uma prótese da razão, capaz de corrigir a visão, “ou melhor, que fundam uma nova visão, ensinando aos nossos olhos a ver: a visão é a melhor ‘faculdade’ do conhecer quando ela é determinada pelas leis da geometria e da luz”. (PARENTE, 1993, p. 12) A difusão de tais tecnologias na entranha social é tão dispersa a ponto de provocar o efeito fetiche: diante delas “tudo o mais parece se apagar”. Por se tratar de linguagens é difícil de identificar a sua ação, pois o que elas fazem é “estruturar a própria visão”. (SANTAELLA, 2003, p. 115; 125) Os smartphones são, desta forma, como próteses do sentido humano que acompanham o indivíduo em seu contexto diário. Os seus usos obliteram a mediação existente na relação homem-máquina. Os smartphones oferecem uma gama de aplicativos, que se renovam na mesma velocidade dos avanços tecnológicos. Os aplicativos, ou apps, são especializados e segmentados funcionalmente. Alguns destes aplicativos oferecem apenas interfaces especiais para páginas na Internet, como é o caso do Facebook, outros aplicativos são feitos exclusivamente para funcionarem nos smartphones, como é o caso do Instagram, o objeto de estudo do presente trabalho. Para aqueles que possuem o Instagram, de certa forma, o mesmo se tornou sinônimo da própria câmera fotográfica do smartphone. O Instagram, enquanto máquina fotográfica do smartphone, tornou-se uma prótese do olho humano, sempre pronto para registrar os estímulos visuais em uma memória extrassomática localizada na rede telemática, tornando-se um exemplo de interface de boa qualidade, que segundo Santaella (2003, p. 92) “permitem cruzamentos inconsúteis entre os dois mundos, facilitando assim o desaparecimento da diferença entre eles e, consequentemente, alterando o tipo de ligação entre o humano e o maquínico”. Mais do que um do olho, tornou-se também uma extensão da memória humana enquanto captação de espacialidades. Uma memória que, no entanto, encontra-se congelada no presente, pois recebe seus insumos de uma mediação ausente de passado; como resultado, esta memória não mais pertence ao tempo,

57

mas ao espaço que se constrói através da mediação do Instagram. Neste sentido, Ferrara nos auxilia: “essa memória-presente de natureza produtiva porque se apoia na troca de informações e conhecimentos, supera a característica centrípeta da lembrança, para fazer da própria comunicação a natureza organizativa do espaço” (FERRARA, 2008, p. 136). Enquanto técnica, o Instagram auxilia na produção sociocultural e, por sua vez, são resignificadas pelos seus usuários através das maneiras de fazer, ou seja, consumos combinatórios e utilitários (CERTEAU, 2012, p. 41). Pois as técnicas, como nos explica Milton Santos (2012, p. 29), são “um conjunto de meios instrumentais e sociais com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço”. Esta dinâmica de apropriação simbólica da técnica por parte de seu usuário é ao mesmo tempo de consumo e produção. É de consumo na forma de apropriação, própria da relação que estabelecemos com a cultura material na sociedade contemporânea; mas é de produção no sentido de que este consumo produz algo que já não é próprio da técnica em si. Como ensinado por Walter Benjamin, e bem sumarizado por Santaella (2003, p. 55), a cultura é um tipo de produção humana, organizada em quatro níveis: a produção em si; à memória e conservação dos produtos culturais; a circulação e difusão; e a recepção desses produtos. O Instagram é apropriado por seus usuários para a construção de poéticas e narrativas pessoais que contribuem para a formação da identidade individual, constantemente buscada no contexto da supermodernidade. Esta identidade individual traduz-se em fotografias de pessoas e paisagens, tiradas por elas ou pelos usuários que seguem. Enquanto suporte da formação da identidade individual, o Instagram, que sumariza a fotografia, a sua manipulação estética e o compartilhamento da mesma em uma comunidade virtual, torna-se um fim em si mesmo, modificando a experiência direta com o que é observado. Estas maneiras de fazer com o Instagram fabricam visões de mundo e é isto que interessa aqui: o conteúdo fabricado nesta interação homem-aparelhoaplicativo, mais especificamente, a fabricação das metrópoles. Nos anais desta comunidade virtual, podemos encontrar uma quantidade infinda de fotografias tiradas do cenário urbano de cidades ao redor do mundo todo, produzindo uma apropriação e produção simbólica do espaço urbano. Através da técnica deste app,

58

uma visão da cidade e espaço urbano é construída e concebida no imaginário coletivo de seus usuários. Por meio do Instagram a cidade passa a integrar uma topologia eletrônica, renovando a sua própria concepção. (VIRILIO, 1993, p. 10) Nesta mediação entre o indivíduo e a cidade, através do Instagram, dá-se um processo de artificialização do mundo que origina um novo quadro simbólico para aquela cidade. Utilizando e adaptando um exemplo utilizado por Certeau (2012, p. 164), o ato de fotografar através do Instagram tem uma função enunciativa dupla: é um processo de enunciação do cenário urbano e uma realização espacial do lugar na virtualidade. O Instagram enquanto técnica empiriciza o tempo e o espaço. (SANTOS, 2012, p. 54) Decorre desta dinâmica, uma modificação na forma de como a cidade é experienciada pela grande maioria de seus usuários. Trata-se de uma experiência sempre mediada pelo Instagram, que por sua vez, produz signos selecionados nas potencialidades previamente programadas. Para esta gama de usuários, a cidade passa a ser vivida e reproduzida simbolicamente através do uso da prótese. A apreensão da cidade passa a ser prioritariamente estética, através de um sentimento estético imediato, pura sensação, desprovido de conceito ou finalidade. (PARENTE, 1993, p. 25) Destarte, o Instagram, de certa forma, contribui para intensificar um processo sinalizado pelo geógrafo Pierre George (1974 apud SANTOS, 2012, p. 33, grifos de Santos), já em 1974: “a cidade está a caminho de se tornar muito rapidamente, no mundo inteiro, um produto técnico. [...] A cultura era nacional ou regional, a técnica é universal”. A técnica torna-se também um meio. O sistema de práticas que envolve a relação indivíduo-Instagram-cidade não podem mais ser dissociado, um já não pode mais ser entendido sem o outro (SANTOS, 2012, p. 103). Desta maneira, o Instagram enquanto técnica possibilita dois processos de consumo simultâneos: na dimensão do real, o consumo da cidade através da prótese do olhar (emissor); e, na dimensão virtual, o consumo do que é compartilhado nas timelines individuais (receptor). Na dimensão do real, o flâneur, de Benjamim, foi substituído pelo passageiro de Simmel que, agora, dá lugar ao Instagramer. O flâneur, de Walter Benjamin, fruto da cidade pós-Primeira Revolução Industrial, é o ícone do habitante da cidade grande em formação. Ele se deixa levar de forma prosaica pela cidade, sob a qual se deleita com o olhar, “transforma a

59

ociosidade em valor, porque a realiza produtivamente quando transforma as ruas, pavilhões, os grandes magazines, que atendem à necessidade coletiva da multidão, em instrumentos indiciais que referencializam o labirinto emocional despertado pela cidade moderna” (FERRARA, 1990, p. 7). Caminha na linha tênue entre o público e o privado, mas ainda pode fruir a cidade, chocar-se e surpreender-se com a imagem urbana. Ele compõe uma lírica da cidade. Com a Segunda Revolução Industrial, surge o passageiro enquanto alegoria que caracteriza o homem da cidade moderna estabelecida. A cidade moderna estabelecida provoca na dimensão psicológica do seu habitante uma intensificação da vida nervosa (2005, p. 577). Em meio aos inúmeros estímulos exteriores, o habitante da cidade moderna desenvolve dispositivos para preservar a sua subjetividade frente à multidão (Ibid., pp. 577–582). Como dispositivo de proteção aos estímulos nervosos emerge o que Simmel (Ibid., p. 582) denominou de caráter blasé: “nesse fenômeno peculiar de adaptação que é o caráter blasé, em que os nervos descobrem a sua derradeira possibilidade de se acomodar aos conteúdos e à forma da vida na cidade grande renunciando a reagir a ela”. Se, do ponto de vista individual, o passageiro da cidade grande estabelecida se adapta através do caráter blasé, do ponto de vista da sociabilidade, surge a reserva. Não quer mais deixar-se chocar e surpreender-se como o flâneur. Como forma de sociabilidade da reserva, a antipatia se estabelece, realizando “as distâncias e os afastamentos, sem o que esse tipo de vida não se poderia realizar” (Ibid., p. 583). Em nenhum lugar alguém se sente tão solitário e atômico como em meio a multidão da cidade moderna estabelecida. Na cidade pós-moderna, nas megacidades, as características do passageiro se intensificam. O caráter blasé e a reserva ganham reforços tecnológicos como os aparelhos de mp3 e os celulares. O habitante das megacidades continua na solidão urbana, mas encontra ecos de companhia nas redes telemáticas que o acompanham no bolso. Chamarei estes habitantes de Instagramers26. Trata-se de um passageiro que agora se traduz na imagem de um viajante-espectador, conectado ao mundo.

26

Não se quer aqui generalizar enquanto categoria do habitante da cidade pós-moderna em geral, mas faremos aqui um recorte, debruçando o olhar sob os usuários do aplicativo, aos quais chamaremos aqui como Instagramers. Esta palavra não é inovadora, sendo aplicada inclusive para designar comunidades dentro do aplicativo, no entanto ela é bastante ilustrativa e fala por si mesma, por isso a utilizarei aqui como sinônimo de usuários heavy users do Instagram.

60

O

excesso

de

cenários

urbanos

e

imagens

proporcionados

pelas

megacidades impede que o Instagramer encontre aí um lugar (AUGÉ, 1994, p. 79). A fruição da cidade não mais ocorre nos termos de Benjamin e a atomicidade do indivíduo, ao encontrar ecos de sociabilidade nas redes telemáticas, o impulsiona a compartilhar o que ele vivencia na solidão da multidão como forma de objetivação do que é experienciado, como processo de construção da identidade individual. O excesso de estímulos, no entanto, leva a uma visão sempre parcial, a qual ele fotografa, modifica e compartilha. Estes instantâneos são gravados confusamente na sua memória física, mas registrados na sua forma modificada em sua memória estendida (no smartphone). Estas imagens de memória são recompostas e encadeada em seu perfil no Instagram, construindo uma relação fictícia entre o real e o virtual, tornando-se um arquétipo do não lugar (AUGÉ, 1994, p. 80). Sempre em trânsito, ele vivencia uma nova experiência da solidão na multidão. O Instagramer consome a cidade de forma antropofágica e a transforma em iconofagia (BAITELLO, 2005 apud FERRARA, 2008, p. 68) ao compartilhar a imagem modificada. A visibilidade da imagem torna invisível o processo que a tornou possível e modifica a relação entre o indivíduo e a cidade, trata-se, sobretudo, do processo de esquecimento do substrato real e da fixação da imagem fabricada. Não se observa mais diretamente os fenômenos, esta contemplação é sempre mediatizada, o observador deixa de ter contato direto com a realidade observada (VIRILIO, 1993, p. 23). A contemplação sem a prótese fica em segundo plano, a captação e compartilhamento da imagem tornam-se um fim em si mesmo. Faz-se esquecer “uma maneira de estar no mundo”. (CERTEAU, 2012, p. 164) Na dimensão do virtual, os não lugares fotografados pelos Instagramers vão dar origem a não lugares virtuais, existentes somente ali e passíveis de uma polissemia no hipertexto que o modificará constantemente. Estes não lugares virtuais possuem camadas de virtualidade que se sobrepõem: a) Camada 1 – captação da imagem: os Instagramers vivem a cidade através de sua prótese que ao captar a imagem já insere nela signos que são próprios da técnica, já transformando o substrato original e inserindo-o na primeira camada da virtualidade; b) Camada 2 – adição de filtros: ao adicionar os filtros, os Instagramers realizam mais uma modificação que afasta ainda mais a imagem do real;

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c) Camada 3 – compartilhamento no perfil: o compartilhamento compõe um primeiro ponto de vista no relato daquela imagem que irá formar um patchwork da cidade junto com as demais fotografias do Instagramer que a tirou; d) Camada 4 – compartilhamento na timeline: a última camada acontece quando a imagem-modificada é compartilhada nas timelines dos seguidores, que por sua vez, irão compor narrativas próprias de uma cidade que também lhes é própria. A cidade assim representada afasta-se do real a cada camada e irá dar origem a não lugares virtuais que servirão de substrato para a composição polissêmica dos relatos da cidade por parte dos Instagramers. A imagem deixa de ser metáfora, para se tornar uma metamorfose do substrato real (COUCHOT, 1985 apud PLAZA, 1993, p. 77). O imaginário da cidade para estes usuários ocorre então, através de camadas de mediação simbólica, dando origem a uma cidade que é hibrida e individualizada. Trata-se da formação de uma narrativa que deverá compor o contexto urbano daquela individualidade que necessita de substratos para ser composta e reinventada, acompanhando a forma líquida da pós-modernidade. A imagem assim apreendida através do Instagram instaura uma instabilidade entre o real e o virtual, como coloca Julio Plaza (1993, p. 88): Com o realismo conceitual e sintético, criam-se signos verossímeis que atuam por semelhança e definem seus próprios referentes. As imagens de síntese são cocriadoras do que chamamos de “realidade”. Mostram outras facetas do “real”, colocando em crise a noção de verdade e sobretudo de “referente”, pois o conceito de “realidade” torna-se tributário da linguagem e de seu instrumento produtivo.

Os Instagramers confrontam-se assim com uma imagem de si mesmos que, de certa forma, traz conforto a partir da estabilidade estética fornecida pelos filtros. Contudo, o que Augé (1994, p. 95) irá assinalar é que na relação com os não lugares virtuais o único rosto que se esboça, a única voz que toma corpo, no diálogo silencioso que ele prossegue com a paisagem-texto que se dirige a ele como aos outros, são os seus – rosto e voz de uma solidão ainda mais desconcertante porque evoca milhões de outras. [...] O espaço do não lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas sim solidão e similitude.

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Os ecos de sociabilidade das redes telemáticas ubíquas são simulacros, o que elas permitem é o compartilhamento da solidão em meio a multidão. A história individual é assim composta por elementos de uma cidade espetacularizada e aistórica, localizada no instante eterno da pós-modernidade. É em Augé (1994, p. 97) que também podemos encontrar os sinais para os desdobramentos futuros desse processo de criação do não lugar virtual: por um lado, essas imagens tendem a constituir um sistema; elas esboçam um mundo de consumo que todo indivíduo pode fazer seu porque é nele incessantemente interpelado. A tentação do narcisismo é, aqui, ainda mais fascinante, porque parece expressar a lei comum: fazer como os outros para ser você mesmo. Por outro lado, como todas as cosmologias, a nova cosmologia produz efeitos de reconhecimento.

Ao compor a narrativa individual de cada timeline, combinando-se com outros não lugares virtuais de outros Instagramers, estes não lugares virtuais formam histórias narradas a partir de substratos reais perdidos criando um espaço de ficção, ou seja, mais do que descrever uma paisagem, cria-se um novo imaginário coletivo do urbano (CERTEAU, 2012, p. 142). Um imaginário que simboliza o simbólico e que extrai as bases do paradigma que irá instaurar a partir da virtualidade. A cidadesonho, a cidade-imaginada, a cidade-modificada passa a ser a cidade dos Instagramers. Como resultado, “as redes dessas escrituras avançando e entrecruzando-se compõem uma história múltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços” (CERTEAU, 2012, p. 159). A cidade, que a este ponto já tornou-se uma ciber-cidade, é assim “produzida por massas que fazem desaparecer a cidade em certas regiões, exageram-na em outras, distorcem-na, fragmentam e alteram sua ordem no entanto imóvel” (Ibid., p. 169). A comunicabilidade do espaço carrega as relações sociais e os códigos e suportes que o caracterizam e são capazes de causar profundas modificações nas relações entre os homens e na sociedade que ajudam a construir (FERRARA, 2007, p. 13). Os processos mediados pelo Instagram, seja na dimensão do real ou do virtual, são porosos a mitos e a sonhos, constituindo-se como práticas inventoras de espaços. Estes relatos de espaço são bricolagens feitas com resíduos e detritos do mundo (CERTEAU, 2012, p. 174). Os Instagramers vão vivenciando o mundo, desta forma, como um conjunto de espaços em forma de paisagem, trata-se da alienação do homem por seus próprios instrumentos e técnicas (SANTOS, 2012, p. 103). A aparente objetividade das imagens técnicas faz com que o receptor as

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tome como uma janela para o mundo e não como uma representação mediada per se por signos imanentes da própria técnica (FLUSSER, 2011, p. 30). Estas narrativas, para os Instagramers, exercem função semelhante às pinturas medievais ou renascentistas, que pintavam as cidades a partir de um ponto de vista que jamais existira até aquele momento. O texto urbano é descrito a partir de uma pretensa totalidade por quem não pode apreendê-la completamente. Como Certeau (2012, p. 159) bem coloca e que bem se aplica ao contexto analítico: essas práticas do espaço remetem a uma forma específica de ‘operações’ (‘maneiras de fazer’), a ‘uma outra espacialidade’ (uma experiência ‘antropológica’, poética e mítica do espaço) e a uma mobilidade opaca e cega da cidade habitada. Uma cidade transmutante, ou metafórica, insinuase assim no texto claro da cidade planejada e visível.

Nas timelines, os Instagramers tornam-se então, voyeurs, aproximando-se da figura do flâneur de Benjamin, vivenciando liricamente uma cidade que é em sua essência produto da dimensão virtual da experiência simbólica. Os voyeurs virtuais, no processo de consumo destes não lugares virtuais, tornam-se produtores de suas cidades individuais, processo que pode ser ilustrado pela descrição metafórica de Certeau (2012, p. 48): à maneira de um apartamento alugado. (...) Os locatários efetuam uma mudança semelhante no apartamento que mobíliam com seus gestos e recordações; (...) os pedestres, nas ruas por onde fazem caminhar a floresta de seus desejos e interesses. Da mesma forma, os usuários dos códigos sociais os transformam em metáforas e elipses de suas caçadas. A ordem reinante serve de produção inúmeras, ao passo que torna os seus proprietários cegos para essa criatividade.

Através da hipermídia tecem um caleidoscópio que reflete suas escolhas, dando origem a uma mensagem em circuito que adquire uma objetivação continuamente aberta e passível de variações. E é nesta dinâmica que a mensagem perde a sua conexão com o substrato. Durante a composição do caleidoscópio, há uma apropriação simbólica que faz com que cada um se sinta coautor das imagens e informações com as quais interage (SANTAELLA, 2003, p. 94). Apesar da pretensa composição colaborativa, os caleidoscópios são cada vez menos coletivos e cada vez mais individuais. As fotografias modificadas do espaço urbano irão se encaixar nas práticas sociais e simbólicas daqueles que as consomem. As timelines, que são compostas

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por conjuntos de signos distintos, serão diferentes para cada indivíduo, de acordo com a seu sexo, escolaridade, renda e idade. No entanto, existe uma unidade que é estética e também técnica e que corrobora para esta formação de visão de mundo, ao mesmo tempo em que oblitera o processo de apreensão da cidade através da caixa preta do Instagram. Eles obliteram uma prática ideológica que padroniza a criação dos não lugares virtuais e a visão de mundo dos Instagramers, #withfilter ou #nonfilter27. Nesta dinâmica, duas, das quatro dimensões da metrópole, são extraídas e reconstruídas na imagem, acrescentando-se uma quarta camada atribuída pelos filtros (FLUSSER, 2011, p. 21). Embora haja uma reconstrução automática, esta reconstituição será somente feita na síntese entre percepções e intencionalidade do emissor e receptor, uma vez que as “imagens oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo: símbolos ‘conotativos’” (Ibid., p. 22). Na representação imagética, os eventos são substituídos por cenas, servindo-se de mediação entre o homem e um mundo totalmente imerso na dimensão do virtual. Enquanto as imagens tradicionais são mediatizadas pela produção humana – por pintores, desenhistas – a mediação da imagem técnica é feita pela interação entre homem e máquina, que por sua vez, já se tornou simbiótica. Este processo de input e output, como Flusser (2011, pp. 31-32) nos ensina, encobre o processo codificador que existe nesta caixa preta que é o Instagram, pois jamais poderá ser desvendado por completo. Os aparelhos carregam os signos da cultura e do contexto ideológico que os produziram, são feito pelos homens e como tal, obedecem certas intenções humanas. Os aparelhos, ao contrário dos instrumentos e máquinas, não são empregados para o trabalho, não tem a intencionalidade de transformar o mundo, mas modificar a vida dos homens. O ato de fotografar é o ato de simbolizar o mundo, de produzir e armazenar mensagens, são desta forma categorias do universo simbólico da pós-modernidade, do pós-industrialismo. E o ato de fotografar e compartilhar com o Instagram adiciona duas camadas novas ao processo: a modificação racional da foto e o compartilhamento imediato. (FLUSSER, 2011, pp. 38-41)

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Esta hashtag é comumente utilizada pelos usuários do Instagram para sinalizar que naquela foto não houve a aplicação de filtros de efeito.

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Sob este ponto de vista, temos que considerar o aparelho fotográfico como já programado,

ou

seja,

como

contendo

potencialidades

simbólicas inscritas

previamente por aqueles que o programaram. Assim, o número de potencialidade é finito, o fotógrafo. O homem que manipula tal aparelho torna-se homo ludens, o qual procura jogar com o seu brinquedo, esgotá-lo. O homo ludens torna-se o funcionário do aparelho por encontrar-se dentro dele, confundindo-se. O aspecto lúdico, de brinquedo, carregado pelo aparelho está contido nas virtualidades que ele carrega. As potencialidades referem-se tanto aos filtros, mas também às possibilidades de ângulo e abertura da lente contidas no smartphone e no app. (FLUSSER, 2011, pp. 42-47) O poder está, na realidade, nas mãos de quem programou o aparelho e não nas de quem o manuseia. Está na mão da corporação e da intenção ideológica que ela inscreve no aparelho. A dimensão lúdica, assim, se traduz em jogos de poder: o fotógrafo exerce poder sobre o Instagramer que irá apreciar as suas fotos; o Instagram exerce poder sobre o fotógrafo; os programadores e a indústria de entretenimento exercem poder sobre o Instagram. Em suma, o Instagram é uma caixa preta “que simula o pensamento humano, graças a teorias científicas, as quais, como o pensamento humano, permutam símbolos contidos em sua ‘memória’, em seu programa”. (FLUSSER, 2011, p. 48) O Instagramer, assim como um fotógrafo, age como um caçador em meio aos estímulos simbólicos e visuais oferecidos pela metrópole. Contudo, a imagem compartilhada e modificada não permite ver o contexto cultural no qual a fotografia foi tirada, exerce um processo de obliteração das teias de significados do substrato original; o que fica visível são as categorias pré-programadas no Instagram. O ponto de vista do fotógrafo acaba por ser limitado pelas potencialidades contidas no programa, o fotógrafo não pode transgredir as regras ali impostas, mas estabelece um jogo de adivinhação com o aparelho, onde tenta desvendar as suas possibilidades, pois as cenas somente se tornarão reais após serem captadas, modificadas e compartilhadas. (FLUSSER, 2011, pp. 49-50) A relação entre homem e aparelho-aplicativo, entre Instagramer e Instagram, vai assim se aproximando de uma relação maníaca e viciosa. O Instagram e a sua lógica de compartilhamento incitam o seu funcionário a capturar imagens constantemente, chegando a um ponto “a partir do qual o homem-desprovido-de-

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aparelho se sente cego. Não sabe mais olhar, a não ser através do aparelho” (FLUSSER, 2011, p. 78). Desta forma, como bem ilustra Virilio (1993, p. 10): A representação da cidade contemporânea, portanto, não é mais determinada pelo cerimonial da abertura de portas, o ritual das procissões, dos desfiles, a sucessão de ruas e das avenidas; a arquitetura urbana deve, a partir de agora, relacionar-se com a abertura de um ‘espaço-tempo tecnológico’. O protocolo de acesso da telemática sucede o portão. Aos tambores das portas sucedem-se os dos bancos de dados, tambores que marcam os ritos de passagem de uma cultura técnica que avança mascarada, mascarada pela imaterialidade de seus componentes, de suas redes, vias e redes diversas cujas tramas não mais se inscrevem no espaço de um tecido construído, mas nas sequências de uma planificação imperceptível do tempo na qual a interface homem/máquina toma lugar das fachadas dos imóveis, das superfícies dos loteamentos...

Esta mania-vício se desdobra em uma acumulação de fotografias, que eterniza esta relação automática, contida no inconsciente do Instagramer. Contudo, o que se vê nas timelines e nos perfis são os registros da “memória de um aparelho, não a de um homem”. (FLUSSER, 2011, pp. 78-79) Os filtros, aplicados às fotografias são exemplos disso. Eles simulam os efeitos, talvez à época menos intencionais e mais limitados pela tecnologia, das máquinas caseiras Kodak Instamatic e da Polaroid. Partindo desta premissa, identificamos, de antemão, a instauração de um simulacro de passado, de lembrança e sonho em cenas do presente, acrescentando mais uma camada de aistoricidade à imagem compartilhada. Os filtros não alteram somente a percepção do espaço, mas promovem uma alteração pretensamente objetiva do tempo (SANTOS, 2012, p. 55), visam objetivar o tempo intemporal da pós-modernidade na forma de paisagens que, diferentemente do espaço presente, a “paisagem é transtemporal, juntando objetos passados e presentes, uma construção transversal” (Ibid., p. 103). Esta representação simbólica, no entanto, esconde a objetividade da programação do aplicativo. As memórias registradas travestem-se de memórias humanas através de artifícios lúdicos com os filtros, no entanto, eles acabam por corroborar a ideia de um registro da memória da máquina e não da memória humana. As camadas (e também as molduras) que são sobrepostas às fotos não existem no mundo, são imagens de teorias sobre o mundo, a sua beleza está por revelar o “pensamento conceitual abstrato” (FLUSSER, 2011, p. 60). A missão do Instagramer, desta forma, traveste-se na busca por uma eternização de conceitos

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exteriores; a intenção do Instagram, por sua vez, é “programar os homens para que lhe sirvam de feedback para seu contínuo aperfeiçoamento” (Ibid., p. 63). Além dos filtros, o compartilhamento oferece uma unificação em um mesmo processo de uma etapa já existente na dinâmica do fotógrafo. Contudo, este compartilhamento do Instagramer, diferentemente do ato do fotógrafo, é feito diretamente em uma comunidade virtual; não é pura difusão, mas sim um ato de sociabilidade. O Instagramer lança as suas imagens em um espaço habitado, para comporem a polifonia das timelines. Desta forma, o Instagram superou a dimensão arcaica da distribuição da fotografia eliminando a sua subordinação a um suporte material físico. Por ser parte do aparelho do Instagramer, o compartilhamento também tem no usuário um funcionário. Nesta dinâmica, o Instagramer insere-se por completo no universo das imagens, o que implica viver, conhecer, valorar e agir em função delas, viver em uma bricolagem, em um caleidoscópio, em um mundo-mosaico. Assim, como Flusser (2011, p. 93) assinala: Vivenciar passa a ser recombinar constantemente experiências vividas através de fotografias. Conhecer passa a ser elaborar colagens fotográficas para se ter ‘visão de mundo’. Valorar passa a ser escolher determinadas fotografias como modelos de comportamento, recusando outras. Agir passa a ser comportar-se de acordo com a escolha. Tal forma a existência passa a ser quanticamente analisável. Toda experiência, todo conhecimento, todo valor, toda ação consiste em bits definíveis.

As imagens assim compartilhadas e experienciadas igualam acontecimento, pessoas e obliteram a distinção entre real e ficção (AUGÉ, 2006, p. 113). Operam uma padronização de visão de mundo entre os funcionários do app. A lógica contida na captação, filtros e compartilhamento torna tudo belo, nada mais é feio. A cidade é magicizada, fantasiada. Junto com o “homem-médio” fabrica-se também a “metrópole-média”. O não lugar virtual é a objetivação imagética desta metrópolemédia, e enquanto mensagem da comunicação – “tecido simbólico de nossa vida” (CASTELLS, 1999, p. 422) – ele afeta a experiência real, pois torna-se insumo do cérebro dos Instagramers. O desdobramento ideológico que aqui podemos apontar enquanto tendência é a criação de um paradigma estético da metrópole que reforça a posição da elite dominante. Pois, a difusão dos objetos técnicos é heterogênea, dada a forma desigual como se inserem na história e no território (SANTOS, 2012, p. 39). Uma vez

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que o acesso aos smartphones e ao Instagram está atrelado, principalmente, ao acesso aos aparelhos de entretenimento, à educação e à renda, há uma tendência de reforçar modelos e valores de redes sociais culturalmente dominantes, moldadas segundo o modo de produção vigente. Como aponta Castells (1999, p. 449): as redes eletrônicas em geral, no entanto, apesar da possível utilidade para movimentos sociais, sua influência no domínio cultural pode muito bem ser a de reforçar o cosmopolitismo das novas classes profissionais e empresariais que simbolicamente moram em uma estrutura social de referência global, ao contrário da maioria da população de qualquer país. Portanto a CMC pode ser um meio poderoso para reforçar a coesão social da elite cosmopolita, fornecendo um apoio importante ao significado de uma cultura global, que vai da elegância de um endereço de correio eletrônico à circulação rápida das mensagens da moda.

Por serem mediadas e estarem restritas às redes do Instagram, esta visão do mundo e formação de não lugares virtuais que servem de substrato para a concepção simbólica da cidade estão restritas e difundem-se de forma seletiva. Além disso, é preciso conectar-se aos nós que as produzem para concebê-las nas timelines, o que insere uma dimensão que agrava o acesso a este caleidoscópio. Para fazer parte da rede, mesmo através do estabelecimento de laços fracos, é preciso compartilhar afinidades que, por sua vez, assim como o acesso à rede, estão condicionadas, sobretudo, ao acesso aos aparelhos de entretenimento, à educação e à renda. Novamente recorro a Castells (1999, p. 506) para corroborar o raciocínio: “a distinção cultural das elites na sociedade informacional é a de criar um estilo de vida e de projetar formas espaciais para unificar o ambiente simbólico da elite em todo o mundo, consequentemente substituindo a especificidade histórica de cada local. [...] Além disso, há um estilo de vida cada vez mais homogêneo na elite da informação, que transcende as fronteiras culturais de todas as sociedades. [...] Tudo isso são símbolos de uma cultura internacional cuja identidade não está ligada à nenhuma sociedade específica, mas aos membros dos círculos empresariais da econômica informacional em âmbito cultural global.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se, por um lado, vivemos um momento de plena ebulição dos paradigmas, por outro, vivenciamos a emergência e consolidação de tantos outros. A velocidade das mudanças promovidas pela revolução tecnológica acelera progressivamente e não cessa. A tríade “descobertas científicas, inovações tecnológicas e aplicações sociais” promove assim transformações em todas as dimensões da prática social. Observamos, então, o nascimento de uma nova estrutura social associada a um novo modo de desenvolvimento, o informacionismo. Trata-se da transição do capitalismo industrial para o capitalismo informacional. A produtividade passa a alicerçar-se na inovação tecnológica e na sua aplicação prática, buscando o acúmulo do conhecimento e a complexificação do processamento da informação. A informação tornou-se uma moeda corrente. Em termos de poder, a conquista da velocidade substitui a busca pela conquista do território. Os avanços tecnológicos tornaram-se um modo de militarização para a manutenção do status quo das elites dominantes. Assim, a revolução tecnológica, ao mesmo tempo em que serve de vetor para a consolidação do capitalismo informacional, por ele é moldado, carregando em sua essência os valores e instituições (mesmo que liquefeitas) deste modo de produção. A topografia social que vai sendo delineada com estas transformações e mutações é de caráter rizomático, consiste em redes. Com as novas tecnologias estas redes ganharam poder de expansão e reconfiguração. O acesso à rede, ou a falta de acesso, é uma das fontes de dominação e poder na nova estrutura social. Estas mudanças são equiparadas às inovações e rupturas estabelecidas pela Revolução Industrial, pois elas modificam o padrão material da economia, da sociedade e da cultura. Assim, ao final do século XX observamos uma mudança de era, passamos da Era Industrial para a Era da Informação. As inovações tecnológicas irão se desenvolver em um contexto onde a antiga sociedade possuía uma necessidade latente de se aparelhar para servir a tecnologia do poder, da economia e da guerra. Foram as necessidades reais de uma organização social em ebulição que construíram o cenário favorável para o seu pleno desenvolvimento, para o qual ela serviu como vetor e não como causa.

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Uma das principais, se não a principal, invenções da revolução tecnológica foi o computador pessoal. Em 1980 ele começava a penetrar nas casas dos americanos e nos anos de 1990 já se espalhara pelo mundo inteiro. O computador, primariamente projetado para calcular números, passa a estabelecer uma relação antropofágica com todas as variações da linguagem e do audiovisual. Os espectadores, agora interligados em redes de computadores, tornaram-se também produtores. A comunicação de muitos com muitos inaugura o que Castells (CASTELLS, 2003, p. 8) chamou de Galáxia da Internet. Contudo, vale aqui pontuar que a Internet não carrega em sua essência somente as práticas e valores do modo de produção do capitalismo informacional. Os usos e práticas a que foi empregada desde o início da difusão, marcam a sua dinâmica até hoje, sobretudo no que concerne à comunicação mediada por computadores. Os primeiros produtores da Internet eram também seus usuários e foi nesta dinâmica que se observou a consolidação e emergência de um discurso libertário em torno da rede. A comunicação mediada por computadores, dentro e fora

da

Internet,

assumiu

atributos

de

penetrabilidade,

descentralização

multifacetada, flexibilidade e interatividade. Embora a liberdade e a democracia façam parte do discurso ideológico da Internet, o seu acesso e difusão é seletivo social e funcionalmente. A desigualdade de acesso é regional, sexual, etária e espacial. Não estar na rede é o equivalente ao analfabetismo na modernidade. A Internet não traz somente liberdade para as elites, mas acrescenta mais uma camada à exclusão socioeconômica, típica do modo de produção capitalista. A outra face desta moeda é a sua capacidade de difusão: trata-se do meio de comunicação com mais rápida difusão ao redor do mundo, compondo assim a espinha dorsal da Era da Informação. A rápida difusão da internet traz à tona o processo antropofágico e de simbiose que ela estabelece com outros suportes da comunicação e com as outras expressões audiovisuais. Na Internet tudo cabe, tudo é passível de reprodução. O resultado da interação entre microcomputadores, telecomunicação em rede e formas de comunicação é o nascimento do ciberespaço, caracterizado por paradigmas e valores congregados sob o nome de cibercultura ou a cultura digital. A aplicação social das formas de comunicação digital da cultura digital deu origem ao hipertexto e uma metalinguagem que congregou em um único suporte

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todas as modalidades de comunicação. O hipertexto enquanto operação cultural de assimilação de signos é produzido por nós a partir da Internet como forma de apreensão das expressões culturais nas diferentes multimídias. Trata-se de uma composição prioritariamente individual e não dada exteriormente. Cada indivíduo produz, então, o seu hipertexto. O que vivenciamos, então, é uma convergência de mídias e uma objetivação da operação cultural simbólica através das redes e do hipertexto da rede telemática. As transformações das dinâmicas de comunicação com as novas tecnologias inserem um processo de modificação na maneira como o mundo é apreendido e ressignificado pelos seus habitantes. A Internet, em sua evolução meteórica, aliou-se então aos dispositivos móveis, subvertendo o conceito de ubiquidade e tempo real. Antes da Internet móvel estes conceitos não conseguiam encontrar objetivação clara. O celular e outros dispositivos móveis emergentes começam a substituir e complementar os computadores, contrariando e dando novos significados aos paradigmas recémestabelecidos. A noção de virtualidade passa a ocupar um lugar de destaque na dimensão do real. O conceito de interface vai ganhando traçados cada vez mais claros com a ubiquidade e a intensificação do uso dos aparelhos móveis para conectar-se à Internet. Trata-se da membrana que interpela a relação homem-máquina, uma relação cada vez mais simbiótica e ambígua. Esta relação entre homem-máquina não é só corpórea, mas penetra em todas as dimensões da prática social. A máquina se torna prótese que alonga partes do corpo humano, extrassomatiza e amplia capacidades. A ubiquidade da Internet, levada no bolso, através de um smartphone, é também a extrassomatização da memória e do olho humano. Desta forma, o Instagram, com as suas funções de extrassomatização da visão e da memória, não nasce sem história. Ele se insere em um contexto de discurso ideológico, manutenção do status quo e inovações tecnológicas. Ele incorpora a missão das novas tecnologias, mas carrega em si não somente os valores do informacionalismo, mas de seus criadores e patrocinadores. Ele fornece signos para a captação e criação de um novo lugar e de uma nova representação do urbano. Ele funda a cidade na virtualidade, através do não lugar virtual. Após penetrar como prótese na vida do Instagramer, a cidade

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dificilmente será concebida e percebida sem ele. Para seus usuários ele é significação, é sociabilidade e é objetivação da experiência. O caleidoscópio necessário para a virtualização compartilhada da imaginação, virtualização que por mais paradoxal que seja funciona sob a lógica da racionalização. Em realidade, o que seus usuários pensam criar e imaginar, na realidade já está contido enquanto potencia no aplicativo e o que é apreendido pela fotografia e modificado pelo usuário é uma memória de máquina, pois ela que manteve contato visual direto com o substrato real. O Instagram, através de seus filtros e compartilhamento, cria uma narrativa de visão de mundo que é ideológica, uma visão de mundo padronizada e homogeneizada. Uma padronização estética e também de pretensa fruição. A relação entre Instagram e Instagramer é, assim, uma relação de alienação.

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6 REFERÊNCIAS

6.1 Livros e artigos

AUGÉ, Marc. Não lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. ___________. “Sobremodernidade: do mundo tecnológico de hoje ao desafio essencial do amanhã”. In: MORAES, Dênis de (org.). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006, pp. 99-117. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BAITELLO, Norval. O olhar do furacão: A cultura da imagem e a crise da visibilidade. Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, São Paulo, 2011. Disponível em . Acesso em: 20 out. 2012. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras Escolhidas I – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1996. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. ___________. A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. FERRARA, Lucrécia D’Alessio. As máscaras da cidade. Revista da USP, São Paulo, n. 5, março/abril e maio. 1990. Disponível em . Acessos em 17 out. 2012. ___________. Comunicação Espaço Cultura. São Paulo: Annablume, 2008. FERRARA, Lucrécia D’Alessio (org.). Annablume; Grupo ESPAAC, 2007.

Espaços Comunicantes.

São

Paulo:

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume, 2011. GEERTZ, Clifford (1978). Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

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LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. PARENTE, André. Introdução: Os paradoxos da imagem-máquina. In: PARENTE, André (org). Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: ed. 34, 1993. PLAZA, Julio. As imagens de terceira geração, tecnopoéticas. In: PARENTE, André (org). Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: ed. 34, 1993. SANTAELLA, Lucia. Cultura e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003. SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, out. 2005 . Disponível em . Acessos em 10 dez. 2011. VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. ___________. Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

6.2 Portais de notícias e informações retiradas da Internet

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75

Wikipédia. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2013.

6.3 Verbetes

APP. In: Wikipédia. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2013. FACEBOOK. In: Wikipédia. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Facebook>. Acesso em: 26 jan. 2013 HASHTAG. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Hashtag>. Acesso em: 26 jan. 2013. NOMOFOBIA. Disponível em: . Acesso em: 27 jan. 2013. INSTAGRAM. In: Wikipédia. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Instagram>. Acesso em: 26 jan. 2013. IPOD. In: Wikipédia. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2013. MP3. In: Wikipédia. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2013. SMARTPHONE. In: Wikipédia. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2013. SOULSEEK. In: Wikipédia. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2013. WHATSAPP. In: Wikipédia. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2013

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