Não se perde o que nunca se teve (II)

May 27, 2017 | Autor: A. Pereira | Categoria: Neoliberalismo
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Publicação no site Debates em Rede:
Disponível em: http://www.debatesemrede.com.br/materia/2768/nao-se-perde-o-que-nunca-se-teve-ii. Acesso em: 21 nov. 2016.
Não se perde o que nunca se teve (II)
André Ricardo Valle Vasco Pereira, professor do Departamento de História/UFES
Continuando minha reflexão sobre o artigo de George Monbiot para The Guardian, vale notar que, no Brasil, o neoliberalismo, ao contrário do Reino Unido ou os EUA, precisa de um forte inimigo comum para se legitimar, como foi o caso da inflação na época de Fernando Henrique Cardoso ou do combate à corrupção e ao "comunismo" na fase do PT. Trata-se de uma adesão passiva ou reativa, mas não pró-ativa, como nos casos estudados pelo articulista. O texto dele não discute o que houve para que a adesão desse certo além da propaganda e da colonização dos partidos social-democratas pelo ideário, o que tem a ver com a dinâmica da economia de países capitalistas avançados, nos quais os setores miseráveis não têm cidadania (imigrantes ilegais) e os ganhos dos que conseguem ascender no mercado de trabalho são reais e conformam uma classe média significativa em termos eleitorais, tendo em vista o voto não obrigatório.
Já o Brasil, ao longo do século XX, passou por um processo de modernização conservadora e constituição de cidadania regulada. Isto significa que os processos de empoderamento e ampliação de direitos (enfranchisement), abordados por Monbiot, foram muito controlados de cima para baixo. Nos momentos históricos nos quais houve pressão significativa de baixo para cima, houve intervenção autoritária. Ao mesmo tempo, a constituição de um modelo capitalista com alto nível de exploração do trabalho e baixo grau de integração dos assalariados no mercado de trabalho e de consumo contribuíram sobremaneira para este resultado. Tais fatores combinados nos levam a uma trajetória histórica de empoderamento bem relativo dos setores com maior capacidade de organização, acompanhando de um "anti-empoderamento" dos que nunca tiveram a possibilidade de expressar suas opiniões na esfera pública (o subproletariado, os trabalhadores assalariados que não contam com sindicatos fortes e os que vivem no mercado informal). Ao mesmo tempo, em termos formais, o marco legal da ampliação dos direitos civis, sociais e humanos (enfranchisement) se deu na Constituição de 1988. Mas eles foram produto da militância justamente daqueles poucos setores empoderados, que falaram em nome do resto da população. Logo depois, a partir do governo Collor, a implantação do neoliberalismo e a brutal transformação no plano das relações sociais de trabalho, levou a um grande bloqueio destes direitos, que foram conquistados legalmente, mas que não se efetivaram na prática.
Para Monbiot, o esvaziamento dos direitos nos países centrais veio depois do desempoderamento. No Brasil, tivemos a implantação do Estado de Bem-Estar Social Intervencionista pela ação das elites, como antecipação e controle, e não por uma trajetória autônoma de elites dirigentes de trabalhadores, de baixo para cima. Ele funcionou de maneira bem distinta do que se deu no centro do sistema capitalista, no qual houve empoderamento e ampliação de direitos, vividos na prática como tais. Não se perde o que nunca se teve. O que houve foi um processo histórico de esgotamento do Estado de Bem-Estar Social Intervencionista no Brasil, substituído pela intervenção neoliberal como a resposta capitalista para sua crise. Ou seja, no Reino Unido e nos EUA, um projeto – o neoliberalismo - se mostrou vencedor, destruindo o seu adversário – a social-democracia. No Brasil, o primeiro necessita de um travestimento para se impor, sem que os valores e noções associados ao reformismo tenham conformado uma base social sólida que o preservasse das investidas.
Ou seja, o anti-empoderamento e o bloqueio dos direitos impediu que os maiores beneficiários do reformismo social-democrata o identificassem como sendo a expressão do seu interesse. Tratou-se de uma adesão passiva a resultados concretos de políticas públicas enquanto funcionaram bem. Se o reformismo sumiu no centro do capitalismo, sendo substituído por formas mais ou menos radicais de receituário neoliberal, ele não chegou a representar uma alternativa real de projeto político para os mais pobres. Como não se perde o que nunca se teve, o abismo social vai se abrindo cada vez mais, com frações amplas aderindo à subcultura do crime, ao seu contrario (o populismo carcerário), ao individualismo feroz e a formas militantes de alienação, principalmente religiosas.
Monbiot conclui seu texto afirmando que o egoísmo não é natural do ser humano, de forma que fica com a expectativa de uma reação contra o elogio aos ricos e à destruição da ética pública e do Estado. No Brasil, por sua vez, a oposição ativa contra o governo Temer e sua virada feroz para o neoliberalismo se baseia em três eixos: a) quem deve pagar pela crise são os ricos (empresas incluídas); b) políticas públicas que desconcentrem renda devem ser mantidas (e ampliadas); c) os direitos, particularmente sociais e humanos, devem ser mantidos (e ampliados). Trata-se de uma pauta associada a valores do reformismo social-democrata que o PT implantou apenas em parte, após uma fase de desempoderamento dos setores mais mobilizados socialmente (CUT e seus sindicatos), de anti-empoderamento e o bloqueio dos direitos.
É por esta razão que, apesar das formas grosseiras de manipulação que foram usadas pela imprensa, por setores do Judiciário e das elites dirigentes (políticas, econômicas e sociais), seguidas de medidas duríssimas de austeridade e retração de direitos concentrados (quotas em universidades públicas, benefícios para setores LGBT, etc.), a reação popular ao governo é fraca. Muitos observadores ficam impressionados com a falta de reação a um ataque tão espúrio e buscam culpas variadas. O texto de Monbiot nos fala de uma insatisfação semelhante no centro do capitalismo. Ele não enxerga saída, tem apenas uma esperança. Sua reflexão, aplicada ao Brasil, nos ajuda a entender porque a oposição fala e não é ouvida para quem se dirige. Os que respondem são os que já estão do outro lado. Eles são uma minoria, mas se expressam de maneira agressiva, apoiados pela retórica do populismo carcerário e da direita religiosa. Por esta via indireta, a adesão passiva dos mais pobres foi para eles. É por isso que alternativas sólidas, de longo prazo, precisam ser construídas em um diálogo com os que nunca tiveram nada. A direita soube fazer isso ao elaborar fantasias persecutórias. O PT no poder soube fazer isso ao distribuir benefícios materiais concentrados (rapidamente esgotados na crise do seu modelo). O atual lado vencedor foi pela via do medo, o reformismo moderado foi pela via do estômago. A atual oposição condena a perda do que os pobres não têm (direitos e políticas que já se esgotaram) e defende alternativas que implicam em formas de ação coletiva que eles não podem exercitar. A direita e o PT no poder souberam lidar com a passividade dos pobres e alimentá-la. Já a atual oposição consegue apenas propor formas de intervenção (ocupações, greves, passeatas, protestos) que fazem sentido para os setores organizados da classe trabalhadora. Pelo menos, uma coisa é certa: não existe adesão ativa da maioria ao neoliberalismo. E, em pouco tempo, o discurso do medo vai se esgotar.



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