Não tão elementar, meu caro Watson: ensaio de antropologia crítica sobre o discurso da eHealth e da medicina de precisão

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Não tão elementar, meu caro Watson: ensaio de antropologia crítica sobre o discurso da eHealth e da medicina de precisão José Costa1 1

CRIA/FCSH-NOVA

Resumo A eHealth, ou saúde digital, e a medicina de precisão são dois conceitos maiores no discurso da nova medicina. São vários os sinais da implementação de uma política pública gerada à volta desses conceitos. Neste texto apresenta-se alguns desses sinais, partindo-se da experiência da frequência de um curso sobre saúde digital e medicina de precisão dirigido a formar futuros líderes nesta área. A reflexão sobre os efeitos desses sinais na vida das populações e dos indivíduos sugere a presença de uma ambivalência nas motivações que sustentam a discursividade das políticas públicas sobre a eHealth e a medicina de precisão que se traduz na sobrevalorização dos aspectos económicos da gestão dos sistemas de saúde e a subvalorização do fornecimento de serviços de saúde flexíveis e ajustados à natureza inevitavelmente ecológica da vida dos indivíduos e das populações que dita os caminhos das experiências pessoais, familiares e sociais da doença. Palavras-chave: eHealth; medicina de precisão; políticas públicas de saúde; antropologia crítica Introdução Os discursos sobre a saúde pública, em particular sobre a saúde digital e a medicina de precisão, são inevitavelmente sustentados por motivações ideológicas (Horton & Lamphere, 2006; Dubey, 2015) reveladas na “intercepção da informática médica, da saúde pública e dos negócios” (Kwankam, 2004) Apesar de as políticas públicas focadas na saúde digital e na medicina de precisão terem já alguns anos, a inclusão do tema na agenda de investigação da antropologia é muito recente (Ahlin & Nichter, 2015). Apoiados essencialmente por uma perspectiva crítica (cf. Lupton, 2014), que opta pela realização de uma antropologia da saúde pública, ao invés de uma antropologia na saúde pública, como era tradição, (cf. Castro & Singer, 2004), os antropólogos começam a precupar-se em compreender a ligação dos efeitos materiais das recentes reformas na saúde pública às premissas ideológicas que as orientam. Uma das vias maiores para fazer isto, cremos, é analisar os discursos sobre a saúde digital no contexto discursivo mais amplo da saúde pública (Lupton, 1992). Numa recente análise sociológica crítica desse percurso no NHS (National Health Service), no Reino Unido, Ela Klecun (2016) descobriu que os discursos focam-se em dois aspectos fundamentais: o desenvolvimento das IT e a retórica do cuidado centrado no paciente. Segundo a autora, estes dois aspectos dividem o discurso oficial sobre a saúde digital em duas motivações que funcionam em concomitância, i.e., a motivação para a inovação tecnológica, com a inerente inculcação da ideia da transformação dos indivíduos em empreendedores e a institucionalização das novas tecnologias como elementos fundamentais do aparato de governação da saúde; e a motivação para a (re)organização dos cuidados pela transformação das interacções profissional de saúde – paciente ao longo da trajectória deste último, transformando-se também, por arrastamento, o locus de trabalho dos 1

profissionais de saúde. O empoderamento do paciente é a pedra angular da retórica de ambos os discursos. Com efeito, o Plano de Ação para a Saúde em Linha1 2012-2020 (COM(2012)736 final, de 6 de Dezembro), reitera que “a utilização das TIC nos produtos, serviços e processos de saúde, combinada com uma mudança organizativa nos sistemas de saúde e novas qualificações” melhora “a saúde dos cidadãos, a eficiência e a produtividade dos cuidados prestados e o valor económico e social da saúde”. A análise da forma como a ambivalência entre valores para o paciente (“saúde dos cidadãos”) e valores para a indústria (“valor económico da saúde”) é gerida no seio do discurso político sobre a saúde digital e a medicina de precisão é uma das minhas principais preocupações de investigação neste momento. Foi neste contexto que me inscrevi num curso com o nome sugestivo de Leaders in Digital Health & Precision Medicine. O objectivo deste texto é levantar algumas questões preliminares sobre a forma como o discurso da saúde digital e da medicina de precisão é transmitido enquanto via de motivação para o empreendedorismo. São apresentadas algumas das impressões que tive enquanto frequentador das três primeiras sessões do curso, onde é enfatizada uma retórica centrada na provocação de entusiasmo e no apelo à aceitação das maravilhas do novo milagre tecnológico, à boa maneira neoliberal (cf. Han, 2015). A intenção deste texto não é enfrentar o status do discurso neoliberal – é muito cedo para poder reunir dados suficientes que o permitam, até porque o discurso sobre a saúde digital está em elaboração até 2020 – nem é provocar os defensores da industrialização dos cuidados de saúde, mas sim provocar os antropólogos para reflectirem sobre os perigos de se ignorar os efeitos da entrega do papel de dramaturgos dos desempenhos institucionais da saúde aos economistas, que teimam em perceber os indivíduos como se estes fossem actores racionais totais (Horton & Lamphere, 2006). Perigos, esses, que a antropologia parece ter negligenciado desde a monumental crítica da razão prática (leia-se, utilitarista), feita por Sahlins (1976). Potenciar a inovação na nova era da saúde e do bem-estar A potenciação da inovação caracteriza-se, entre outros aspectos, pela emergência de tecnologias de monitorização dos sinais orgânicos e da consequente geração de quantidades significativas de dados biométricos e antropométricos que importa incluir nos processos de tomada de decisão clínica, nomeadamente, nos processos de determinação dos diagnósticos e de definição dos planos de tratamento associados a condições de saúde de indivíduos tomados na sua particularidade. Enquanto tendência emergente no seio dos cuidados de saúde, a saúde digital e a medicina de precisão desafiam profissionais de saúde, investigadores e 1

A designação “saúde em linha” foi assumida como a tradução oficial da de eHealth, no discurso do diploma oficial da Comissão Europeia sobre o tema (cf. COM(2004)356 final, de 30 de Abril). Grosso modo, a eHealth consiste na utilização das técnicas de informação e comunicação (TIC) no âmbito da saúde. A Organização Mundial de Saúde define-a como “o uso economicamente eficiente e seguro das tecnologias de informação e comunicação no apoio à saúde e áreas relacionadas, incluindo os serviços de saúde, a vigilância em saúde, a literatura de saúde e a educação para a saúde” (http://www.who.int/healthacademy/news/en/). Nesta definição estão incluídas as utilizações móveis (também conhecida como mHealth), a telemedicina e as técnicas biomédicas de precisão e personalização dos tratamentos e dos cuidados.

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empreendedores a responderem ao problema maior de se aperfeiçoar os processos e os sistemas tradicionais de prestação de cuidados, caracterizados pela uniformização dos procedimentos, de modo a transformá-los num novo sistema, inteligente, isto é, dotado de uma racionalidade de ajustamento dos recursos (que são escassos) às necessidades (que são abundantes), em concordância com as premissas da economia formal. A introdução das novas tecnologias nos cuidados de saúde é vista como a oportunidade que faltava para se pensar este ajustamento. Neste processo, é necessário mobilizar os meios que estiverem ao alcance para que tal suceda. Este é o leitmotiv subjacente à formalização do curso Leaders in Digital Health & Precision Medicine, e que foi oficialmente invocado pelo presidente dos Estados Unidos da América, Barak Obama, em 30 de Janeiro de 2015. O meio para o ajustamento dos recursos às necessidades baseia-se numa premissa simples, aparentemente tão óbvia como fundamental: tal como cada indivíduo é único, isto é, herda e desenvolve um património genético específico, também as suas condições de saúde são únicas, já que, para além de elas estarem relacionadas àquela especificidade genética, também resultam de interacções específicas entre indivíduos únicos com ambientes socio-ambientais particulares. Inerentemente, a filosofia da eHealth e da medicina de precisão defende que os tratamentos médicos devem, também eles, ser únicos e ajustados à particularidade individual das condições de saúde. O desenvolvimento da genómica, e das diversas ómicas consigo associadas (o transcriptoma, o proteoma, o metaboloma, o microbioma e o epigenoma), ou complementares (o exposoma, ou a exposição ambiental, potenciada por estilos de vida específicos), bem como o desenvolvimento e aperfeiçoamento de tecnologias de descrição orgânica por imagem ou por biosensores e mesmo de descrição gráfica do exposoma através de grafos e de redes de sociabilidade, contribuíram decisivamente para a inevitável visualização de uma panorómica (cf. Topol, 2014) integral do indivíduo cujas reais possibilidades de utilização estão ainda a ser exploradas. A necessidade de explorar estas necessidades tornou-se uma razão básica para a mobilização de políticas dirigidas a este propósito. O discurso fundador desta necessidade no âmbito da agenda política norte-americana proferido por Obama viria a provocar a reacção que as políticas incluídas no American Recovery and Reinvestment Act, de 2009, em especial o estímulo do pacote financeiro HITECH (Health Information Technology for Economic and Clinical Health), tinham já sugerido (cf. Kocher & Roberts, 2014). Com menor impacto mediático, no contexto europeu, esta mesma intenção havia sido proferida já em 2004, através da Comunicação da Comissão COM(2004)356 final, intitulada “Saúde em linha – melhorar os cuidados de saúde para os cidadãoes europeus: Plano de acção para um espaço europeu de saúde em linha”. Como refere o título, esta Comunicação definiu um plano de acção em eHealth para o espaço da União Europeia, o qual se encontra na fase de interoperabilidade – 2012-2020 (COM(2012)736final) –, após a fase de estandardização – 2010-2013 (ENTR/D/4/CA/cmD(2010)8861). Estes estímulos políticos situam-se simultaneamente a jusante e a montante de investigações focadas na potenciação dos benefícios da Semantic Web no âmbito da saúde, como, aliás, o inventor do projecto W3, Tim Berners-Lee (Berners-Lee et al., 2001) idealizou, e como Gunther Eysenbach, um dos impulsionares da eHealth, devidamente compreendeu, ao dar corpo ao seu ideal (e.g. Eysenbach, 2001, 2003).

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Se o know-how de Berners-Lee e o sentido prático de Eysenbach situaram o problema da saúde digital e da medicina de precisão na agenda da investigação, será justo dizer então que, sem estes impulsos pioneiros não teria havido possibilidade de mobilizar estratégias políticas e instrumentos financeiros que permitissem desenvolver de forma consistente uma verdadeira medicina individualizada apoiada na digitalização do self e no consequente desenho de um iPOP, ou um integrative Personal Omics Profile (Chen & Snyder, 2013), já que este empreendimento foi estimulado pela mobilização de recursos por via do enquadramento político de uma necessidade que a própria ciência tornou possível satisfazer. É neste contexto que o curso Leaders in Digital Health & Precision Medicine adquire a sua razão de ser. O desafio que ele pretende confrontar implica precisamente transferir know-how aos seus frequentadores de modo a estes poderem introduzir esta nova medicina no tecido social por intermédio da incubação de novos projectos empresariais que, simultaneamente, dinamizem o mercado da eHealth, aproveitando o estímulo emanado das políticas nacionais e comunitárias para o efeito, e cumpram com o imperativo antropológico de melhorar a vida das pessoas, informando-as, concedendo-lhes, deste modo, e aparentemente, a possibilidade de serem soberanas dos processos de monitorização e de tratamento da sua própria saúde. Do gene ao comportamento, passando pelo corpo Após a primeira sessão do curso, que nos deu o contexto da sua implementação e as diversas possibilidades de aplicação da medicina de precisão, a segunda sessão trouxe dois exemplos concretos dessa aplicação. O primeiro, permitiu perceber as novas possibilidades que a medicina de precisão acrescenta à biomedicina “tradicional” na determinação de perfis genómicos em doenças crónicas, no caso concreto da espondilite anquilosante; o segundo mostrou alguns aspetos da utilização das tecnologias de medição e de monitorização de sinais fisiológicos no desenho e na manutenção de programas de exercício físico. Nos próximos parágrafos são resumidas as ideias retidas por nós nas duas apresentações. Na primeira apresentação, foi exemplificado, com um estudo de caso, como a definição de um perfil genómico dos pacientes que sofrem de espondilite anquilosante pode ser fundamental para determinar com exactidão o diagnóstico desta doença. Apresentando um estudo de sua autoria, onde aplicou uma metodologia centrada na revelação da expressão genética por recurso a microrraio, o formador defende que este meio de diagnóstico, associado ao meio tradicional de RX, contribui para se discernir sobre a especificidade individual da revelação da doença, e, deste modo, poderá ajudar a determinar o perfil individual de cada paciente, que motivará a realização de uma medicina precisa, ou individualizada. Tratando-se de uma doença crónica progressiva que desafia a comunidade científica a descobrir as suas causas, a opção pela introdução das análises do genoma, bem como das várias ómicas interrelacionadas, na descrição da sua fisiopatologia pode revelar-se uma via privilegiada para se definirem planos de tratamento e/ou de prevenção eficazes. A identificação dos genes com maior expressão na revelação da doença, como o caso do B27+ sugere que este caminho está a ser percorrido, embora ainda na sua fase inicial. Como nos demais casos de morbilidade, a definição de uma farmacoterapia ajustada à especificidade individual das manifestações da espondilite anquilosante aparece como objectivo maior das aplicações da medicina de precisão. Para além do aumento da eficácia 4

médica, defende-se que os ganhos na racionalização dos meios de diagnóstico das doenças permitidos por uma abordagem baseada na medicina de precisão provoca uma evolução na investigação sobre as causas da espondilite anquilosante que torna os anteriores meios de diagnóstico obsoletos. Uma metodologia de diagnóstico envolvendo a técnica de microrraio e a análise da sequência do RNA (e já não do DNA, como antes) permite fazer “uma fotografia do que se passa no organismo a nível genético”. A segunda parte da sessão centrou-se nos impactos do exercício físico no combate ao aumento de casos de doenças não comunicáveis em todo o mundo. A problemática da relação entre exercício físico, ou melhor, entre vida activa, e a condição de saúde tem ocupado desde há décadas os investigadores, e remete, para além da (re)educação dos estilos de vida, para questões de ordem ocupacional, associadas na maior parte das vezes com o sedentarismo e a manutenção de posturas inactivas prolongadas. O formador começou por descrever os aspectos sócio-demográficos e dietéticos grandemente associados à manifestação de condições de saúde deficientes, como a obesidade, a qual está relacionada com valores alarmantes de estados pré-diabéticos que evoluem para diabetes tipo 2, ou ainda com o aumento de risco de crises a nível cardiovascular. Factores como a inactividade, dietas com excesso de sal e/ou de açúcar, associados com hábitos de vida pouco saudáveis, como o tabagismo ou o alcoolismo, reflectem-se em condições de saúde que absorvem uma fatia importante dos recursos económicos do Serviço Nacional de Saúde português (entre 8 e 10%) e mesmo do orçamento geral do Estado (cerca de 1%). A este quadro, acrescenta-se o facto de, há uma décadas para cá, as pirâmides etárias virem conhecendo uma inversão nas taxas de crescimento natural, que, gradualmente, se vêm reflectindo no aumento da população idosa e na diminuição da população jovem. Se esta última realidade não é problemática em termos de saúde, já a primeira é deveras preocupante. Quando associado a estilos de vida pouco saudáveis, muitas das vezes prolongados durante décadas da vida dos idosos, o aumento da esperança média de vida e da assunção da quarta idade, a qual vive naturalmente dependente da omnipresença de cuidados médicos, revela um quadro que importa evitar. É nesta tentativa que a estimulação da actividade e da promoção de estilos de vida saudáveis encontra a sua maior justificação. E é nesta mesma tentativa que se revela necessário desenvolver sistemas que permitam monitorizar os indicadores cujo impacto na saúde das pessoas é mais nocivo. Projectos promovidos pela Organização das Nações Unidas, como o “25 by 25”, que pretende reduzir a morte prematura associada a estilos de vida não saudáveis em 25% até ao ano 2025, ou o “Life’s Simple 7”, promovido pela American Heart Association e que também incide nas idades mais jovens (“Life’s Simple 7 for Kids”) assentam as suas orientações no pressuposto de que existe uma relação positiva entre actividade física e a diminuição de algumas doenças, e até mesmo da manifestação de neoplasias, como alguns estudos e revisões sistemáticas com metanálise revelam. O padrão recomendado em diversos ensaios clínicos controlados de amostragem aleatória (Randomized Controlled Trials, ou RCTs) consiste na realização de pelo menos 150 minutos de actividade moderada por semana ou 75 de actividade vigorosa no mesmo período, isto para idosos; para crianças, estes níveis devem aumentar. Os resultados dos estudos sugerem ainda que a associação de um programa de exercício físico com a regulação da dieta resulta em benefícios mais significativos do que se se intervir unicamente em um dos factores.

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Apesar de diagnosticadas as causas do problema, ainda resta muito por fazer, especialmente na área do sensoring dos indicadores biométricos e fisiológicos de maneira a desenhar-se programas de intervenção personalizados. O problema centra-se na rigidez dos programas, os quais são desenhados não por ajustamento ao indivíduo em questão, mas em referência a um padrão abstracto. É neste campo que a personalização dos programas se apresenta como um imperativo que urge realizar, uma vez que as condições físicas, mentais e de saúde são diferentes de pessoa para pessoa. A variabilidade destas condições é uma das grandes defesas da própria medicina de precisão, revelada pela análise dos vários níveis ómicos da vida dos indivíduos. No caso particular da relação entre actividade e saúde, ou antes, entre inactividade e doença, a descrição e análise efectiva do epigenoma e do exposoma é fulcral. Criação de valor em saúde A terceira sessão submeteu-se ao tema dos cuidados de saúde baseados no valor e na sustentabilidade dos sistemas de saúde. O apresentador começou por descrever, a traços largos, o contexto em que o sistema público de saúde portguês opera actualmente, focando alguns indicadores demográficos e financeiros. O aumento da esperança média de vida à nascença e a diminuição da taxa de mortalidade infantil indicam uma melhoria no índice de desenvolvimento humano e revelam que o sistema de saúde português tem tido um comportamento satisfatório e, portanto, tem contribuído para a criação de valor, considerando que o indicador central desta criação é a satisfação dos utentes/beneficiários face ao comportamento do sistema, a qual se manifesta de forma latente nesses valores. Adicionalmente, o bom comportamento do sistema na criação de valor é igualmente visível na diminuição do número de casos de HIV, um indicador que, indubitavelmente, remete para a eficácia do sistema, designadamente no que concerne ao tratamento dos casos existentes e à prevenção de novos casos e/ou à promoção de comportamentos saudáveis que evitem o risco de contracção do síndroma. Os resultados encontrados neste três indicadores fundamentais colocam Portugal, e, por correspondência, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) português, num lugar cimeiro das estatísticas da avaliação dos sistemas de saúde tanto no contexto geográfico europeu, como mesmo em comparação com os valores encontrados para os Estados Unidos da América. A evolução positiva dos resultados assume maior impacto se incluirmos o facto de Portugal ter vivido num Estado de excepção devido ao resgate de que foi alvo entre os anos de 2011 e 2014. Por esta altura, o contexto de funcionamento do SNS fazia confluir a herança de uma máquina pesada e onerosa para os cofres do Estado (com uma dívida acumulada de 3,7 mil milhões de euros, em 2010), a imposição de uma crise económica e financeira grave, que motivou o referido pedido formal de assistência internacional, e a manifestação de condições económicas e financeiras difíceis a nível global, cuja maior representação era o aumento galopante dos preços do petróleo. A redução brutal do investimento público durante os anos da troika fez emergir os prestadores privados de cuidados de saúde como actores essenciais, por exemplo, por via do contrato de associação do SNS com as misericórdias. Devido às diversas medidas de contenção e mesmo de austeridade, no final do programa de assistência internacional, o SNS atingia o equilíbrio financeiro. Estes resultados apresentam-se, 6

simultaneamente, como o final de um período de ajustamento, que acontece como resposta a uma situação estrutural grave, e como o ponto de partida para o redireccionamento das políticas de saúde para um futuro centrado na eficiência do sistema. A centralização dos cuidados de saúde no indivíduo, tornando este no protagonista da sua “carreira de saúde”, apresenta-se como o fulcro das políticas desenhadas para o futuro do SNS. Concomitantemente, a necessidade de gerir melhor os recursos, tanto os humanos como os logísticos em geral, nos hospitais e nos centros de saúde apresenta-se como os outros dois vectores de intervenção estratégica para melhorar a eficiência do sistema. Procura-se que, no conjunto, o foco do sistema no paciente e a gestão eficiente dos serviços de saúde contribuam para a sustentabilidade do SNS e para a concretização de cuidados baseados no valor. As 60 normas dirigidas a melhorar a eficiência do SNS através da intervenção na gestão dos hospitais incidem principalmente na regulação da cultura de prescrição seguida pelos médicos. A intenção é evitar o desperdício de recursos e de tempo na realização de exames de diagnóstico desnecessários e na aquisição de fármacos cuja prescrição não se justifique ou que permita considerar alternativas, como as marcas genéricas. Como se disse, a poupança de recursos a partir de um planeamento de gestão centrado do paciente constitui o mote do plano estratégico do SNS para o futuro. A concentração de meios de diagnóstico e a liberdade de aquisição de medicamentos genéricos são duas formas de concretizar este mote na realidade do cuidado. Pela concentração de meios, os serviços de saúde regulam melhor as vias de subcontratação com empresas exteriores ao sistema ao mesmo tempo que permitem ao paciente realizar os exames no mesmo local onde se faz a consulta clínica. Pela adopção de medicamentos genéricos, ajusta-se a estratégia de suprimento dos serviços de fármacos com base no critério puramente clínico – o princípio activo do medicamento – e não pelo critério marca, apoiando-se, assim, a prescrição nas guidelines clínicas resultantes de metanálises da efectividade dos fármacos; ao mesmo tempo dá-se a oportunidade ao paciente de poder optar pelo tipo de medicamento que prefere, uma vez que ele acede a informação sobre as diferenças de preço entre diversos fármacos com o mesmo princípio activo e, portanto, ajustados ao tratamento da sua condição clínica. No contexto dos cuidados primários, a estratégia foca-se essencialmente na melhoria da gestão dos recursos humanos. Olhando à globalidade do território, observa-se um défice de profissionais de saúde nos cuidados primários, porém, uma observação mais atenta revela que o número de médicos por habitante é superior em Portugal ao número médio registado na OCDE. O défice de médicos é, portanto, aparente. O problema é que eles estão concentrados na região de Lisboa, onde esse número é superior à média da OCDE. Em contrapartida, as restantes regiões do país possuem um rácio médico/habitante inferior a essa média. A questão passa, portanto, por melhorar a distribuição da população de médicos pelo território. Já no que respeita ao número de enfermeiros, estes estão em menor número relativamente ao número de habitantes do que o que se verifica em média no conjunto dos países da OCDE. A melhoria da gestão dos recursos humanos nos cuidados primários associa-se, assim, às medidas desenhadas para os cuidados especializados nos hospitais. Em ambas as escalas de cuidado pretende-se substituir a prestação com base na lógica da cura, responsável pela emergência de silos especializados em determinadas condições clínicas

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que produzem elevados custos de manutenção, pela prestação com base na criação de valor, que, em última análise, é a satisfação do utente/beneficiário. Considerações finais: não tão elementar, Mr. Watson A complexidade das constelações de interacções entre o indivíduo e o ambiente extrapola o nível orgânico e dilui-se no tecido sócio-político e cultural, que acaba por determinar o nível patogénico do meio no qual o indivíduo vive. Para criar valor social, a eHealth e a medicina de precisão devem gerar as suas actividades no real ajustamento à interacção indivíduo-meio, sob pena de, se não o fizerem, caírem no mesmo erro de Procrustes, “ajustando” o conteúdo ao contentor, e não, como é correcto, o contentor ao conteúdo. Ao nível das intervenções junto do indivíduo (e já não na população, a qual remete para o desenho de planos abstractos e indiferenciados), as políticas devem concentrar-se, de facto, na prevenção da doença e na promoção de comportamentos saudáveis. Porém, a intervenção ao nível individual é praticamente impossível em termos logísticos, logo, é necessário intervir fundamentalmente através da dotação de informação e de educação para a saúde, o que concorre com a necessidade de fornecer competências aos cuidadores informais para prevenirem e tratarem a doença dos seus outros significativos, tendo-se sempre em conta que não existe tal coisa de sujeitos hiper-racionais. A literacia em saúde constitui a pedra angular para se conseguir este efeito – e, por isso, o maior problema a enfrentar pela discursividade das políticas públicas da eHealth e da medicina de precisão. É neste âmbito que surge a necessidade de informar os indivíduos por recurso a vias de comunicação simultaneamente generalistas e interactivas, que permitam associar num mesmo princípio de gestão da informação tanto os planos globais de intervenção como as situações específicas de preocupação com a saúde reveladas em percursos e comportamentos de procura de ajuda. Esta associação é absolutamente necessária em qualquer arquitectura informacional. Aqui surge a incontornável utilidade da web semântica, que permite associar à ontonómica do plano a folksonómica da situação e da vivência pessoal, isto é, permite acrescentar palavras-chave geradas pelo utilizador do sistema aos táxones que constituem as ontologias digitais e que foram introduzidos pelo programador (ver, por exemplo, Trant, 2009). A necessidade de relacionar numa mesma lógica de inteligibilidade a produção popular e a produção especializada do conhecimento foi sobejamente analisada na antropologia (Suchman, 1985; Fiore-Gartland & Neff, 2015). A questão passa precisamente por dotar os sistemas de informação da flexibilidade necessária para incluírem nos seus raciocínios a produção prática e ecológica das infraestruturas informacionais, que, necessariamente, sustentam as ontologias informáticas (Star & Ruhleder 1996; Nafus et al., 2016). Este é o problema mais importante a resolver para que seja possível falarmos de uma efectiva medicina de precisão e até de uma efectiva saúde digital. Devido a esta questão central da discrepância entre a construção algorítmica do cuidado e a efectivação social e cultural deste último, a computação cognitiva falha em atingir o objectivo maior de dotar as pessoas com a informação necessária para elas poderem ser empossadas como cuidadores à imagem do que o quadro formal entende por “cuidado”. Porém, esta dotação deve ser vista como um pressuposto para os indivíduos usarem extensivamente as plataformas digitais como instrumentos de ajuda realmente úteis. Estamos, portanto, perante um dilema: 8

por um lado, é necessário dotar os indivíduos com competências para cuidarem, por outro, é necessário dotar os indivíduos com competências para acederem a informação fidedigna para o fazer. Neste ciclo define-se toda a intenção social da implementação do conceito “medicina personalizada”, por isso, a gestão desta dinâmica deve constituir a preocupação básica desta medicina, sob pena de estarmos unicamente a colocar vinho velho em garrafas novas. Com efeito, a centralização da medicina de precisão no iPOP e nos relatórios clínicos a partir dos quais o Watson da IBM constrói a sua decisão terapêutica não inclui essa produção popular nos processos de gestão da saúde e da doença. Arthur Kleinman há muito que mostrou que a gestão da saúde e da doença não é um empreendimento exclusivo da biomedicina. Pelo contrário, segundo ele, apenas cerca de 20% dos casos de doença são tratados na arena biomédica, e o sector popular, onde se encontram o cuidado centrado no indivíduo, a família – a primeira arena de cuidado –, o grupo social e a comunidade agregam cerca de 80% dos cuidados prestados (Kleinman, 1978). Para além disso, a biomedicina é parte da cultura, e, por isso, o discurso biomédico é um produto cultural, da mesma forma que o discurso popular (e.g. Kleinman, 1978; Burri & Dumit, 2007). Qual a razão, então, para suprimir os discursos populares dos esquemas de inteligibilidade sobre a saúde e a doença? Mais, como podemos tornar a medicina precisa sem explorar e compreender definitivamente os aspectos decisionais subjacentes aos comportamentos de procura de ajuda especializada? Referências citadas: Ahlin, T. & Nichter, M. (2015). Critical Anthropology for Global Health (CAGH) Takes a Stand: e/m-Health and Telemedicine. Em linha. Disponível em: http://www.medanthro.net/cagh/take-a-stand-policy-statements-by-cagh/takes-a-stand-emhealth-and-telemedicine/ Berners-Lee, T.; Hendler, J. & Lassila, O. (2001). The Semantic Web: A new form of web content that is meaningful to computers will unleash a revolution of new possibilities. Scientific American (May), 35-43. Burri, R. & Dumit, J. (Eds.) (2007). Biomedicine as culture: instrumental practices, technoscientific knowledge, and new modes of life. New York, London: Routledge. Singer, M. & Castro, A. (2005) Introduction – Anthropology and Health Policy: A Critical Perspective. In: Arachu Castro & Merrill Singer (Eds)., Unhealthy health policy: A critical anthropological examination (pp.xi-xix). New York: Altamira Press. Chen, R. & Snyder, M. (2013). Promise of Personalized Omics to Precision Medicine. Wiley Interdisciplinary Reviews: Systems Biology and Medicine, 5(1), 73–82. Dubey, (2015). Beyond traces: Towards a socio-anthropology of digital health. eä Journal, 7(1), 29-41. Eysenbach, G, (2001). What is e-health? Journal of Medicine Internet Research. 3(2), e20. Eysenbach, G. (2003). The Semantic Web and healthcare consumers: A new challenge and opportunity on the horizon. International Journal of Healthcare Technology and Management 9

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