Narrativa e experiência: elas contam...

June 1, 2017 | Autor: Carmen Queiroz | Categoria: Walter Benjamin, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Mulher E Arte
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Universidade Federal Fluminense
Instituto de Letras
Carmen Lúcia Alves de Carvalho Queiroz

Narrativa e experiência: elas contam...
Em seu célebre ensaio "O narrador", Walter Benjamin descreve a derrocada desta figura central nas sociedades orais do ocidente. Para além do reservatório de saberes de uma determinada comunidade, o narrador (existiriam narradoras, para Benjamin?) desenvolvia também, em consonância com o uso das mãos para o trabalho, uma habilidade do próprio narrar, do envolver, que combinaria uma porção de entretenimento com o domínio dos saberes pragmáticos, funcionais, organizados para que o ouvinte pudesse dali extrair um conhecimento aplicável em sua própria realidade. Por um lado, "a narrativa não se entrega": ela é por vezes elíptica, encriptada, de onde muitas vezes resulta sua polissemia; por outro lado, em sua economia narrativa, ela é suficientemente nítida, a ponto de ter ampla aplicabilidade.
Para Benjamin, o declínio do narrador e das narrativas se dá pelas mudanças na organização do trabalho - marxista que é. Assim, o trabalho que antes era organizado em torno do saber ancestral, bem partilhado por toda uma comunidade, passa a ser a repetição incansável de gestos maquínicos que não requerem, por parte do operário, qualquer tipo de saber. Para além disso, a acelerada produção de novas tecnologias transforma a paisagem, inserindo nela automóveis, arranha-céus, velocidade e guerra. Os sujeitos nela inseridos não conseguem apreendê-la em toda sua estrutura, e muito menos organizá-la em unidades narrativas capazes de eficazmente inserir novos sujeitos neste mundo. Não à toa, Benjamin observa que é no declínio das narrativas que surge um novo meio de se contar histórias, o romance, e a figura do escritor isolado, incapaz de aconselhar, bem como de ser aconselhado. Isolado consigo mesmo, o escritor é o paradigma do sujeito no capitalismo, incomunicável.
Dado o caráter imperialista deste modo de produção, é compreensível que o avanço territorial das potências capitalistas tenha sido ameaçador para culturas eminentemente orais em contextos coloniais. Todavia, o próprio colonialismo carrega contradições, que resultariam naquilo que Silviano Santiago concebeu como o entrelugar: na ausência das condições materiais que propiciam certos elementos da cultura ocidental, as tentativas de transposição para seus contextos coloniais gera, sim, destruição e apagamento, mas também gera polissemia e hibridizações. Ideias como "pureza", "fontes" e "alta cultura" se deslocam, e especialmente nos contextos de descolonização africana, diante da ascensão de novos sujeitos a lugares de poder que lhes foram historicamente negados, resultam também no aparecimento de novas formas artísticas.
Tal seria, por exemplo, o caso daquilo que se veio chamar de oratura. Trata-se de uma literatura produzida em países africanos que carrega muitos traços de culturas locais marcadamente orais, como o apreço à sabedoria dos mais velhos ou a reprodução dos ritmos da fala (como se observa em João Vêncio: os seus amores) na escrita. Especialmente nos casos da produção em língua portuguesa, a hibridização se faz ver também nas interlocuções que os autores e as autoras estabelecem alternadamente com o universo do cânone ocidental e com estruturas narrativas próprias da tradição oral, ou mesmo de personagens como griots.
Em "Os olhos da cobra verde", Liliam Momplé traz muitos destes elementos. Trata-se de um conto breve, e que tem por fato narrado tão somente a história do encontro entre Vovó Facache e uma cobra verde que atravessa seu caminho certa manhã. Todavia, o conto se desenrola em espirais, visitando memórias da protagonista e retornando sempre ao encontro com o animal improvável, "cobra boa", personagem das histórias de seu pai. Este, marinheiro, tem bastante em comum com os narradores viajantes de que fala Benjamin, como sujeitos que incrementam tradições locais com o conhecimento adquirido alhures, codificado em suas narrativas. A primeira memória de Facache, pois, é a de seu pai entre as crianças, narrando, gesticulando, envolvendo as crianças ao mesmo tempo em que lhes transmite conhecimentos pertinentes à vida naquele local. Está aqui presente, portanto, a figura do griot.
A terra é um elemento constante nesta pequena narrativa. A cobra, descrita como "fada rastejante", está ligada à terra que, aqui, tem uma forte ligação com a ancestralidade. A mãe de Facache, descrita como uma mulher gorda, de pés largos cujos dedos se espalham como um leque, pende toda ela para a terra, e é dessa simplicidade austera que o pai de Facache se enamora. Do pai, macua, Facache herda o olhar doce e algo ingênuo, capaz de se posicionar como observador e aprendiz. Aqui pode-se, também, estabelecer uma interlocução com Benjamin, no que diz respeito à posição do narrador também como ouvinte. Facache, diante da cobra, não é detentora de um saber enciclopédico que categoriza o animal. É, antes, uma leitora-ouvinte que cria as devidas leituras a partir de múltiplos conhecimentos de mundo, tenham sido eles adquiridos pela experiência própria, sejam eles adquiridos através da escuta.
A centralidade da figura feminina nesta narrativa pode frustrar certas expectativas em relação a tradições africanas falocêntricas. Facache é uma mulher trabalhadora, que não depende de seus maridos para sobreviver. O primeiro, mencionado brevemente, é para ela fonte de alegria, tanto sentimental quanto sexual. Já com o segundo, Fachache estabelece uma relação funcional que tem, por objetivo, a geração de um rebento masculino, plano que não se concretiza. Ela, porém, aceita os filhos gerados fora do matrimônio como seus, o que diverge bastante das noções de maternidade e parentalidade ocidentais, baseadas nos laços consanguíneos. Todavia, em dada altura, parece que o adultério - e não a geração de filhos fora do casamento - incomoda a mulher, que sem o dramalhão tipicamente ocidental, tira o homem de sua vida.
Sempre retornando ao momento do encontro com a cobra verde, a vida de Facache vai sendo contada de modo a construí-la como uma personagem "mais velha", sujeito de grande importância e notoriedade nas comunidades tradicionais orais em função do seu acúmulo de conhecimento. É importante observar que o início do conto frisa o cansaço e a privação de sono da mulher, bem como o aspecto estranho da cobra à fauna de onde está Facache. Terá visto a cobra realmente, ou terá pensado vê-la, em estado de vigília? De uma forma ou de outra, tocada pela fada rastejante, a mulher se apercebe do fim da guerra, que será confirmado por um militar logo em seguida. Um fato importante aparece já ao fim: ao comunicar a um jovem homem que soubera o fim da guerra por intermédio da cobra verde, aquele pensa consigo própria que a velha não está mais sã. Aqui fica evidente que a guerra não tem consequências puramente materiais ou econômicas, mas também desestabiliza organizações ancestrais do saber e do viver locais.
Mesmo se passando no mesmo país, a história de Rami, narrada em Niketche, é bastante diferente da de Facache. Rami é esposa de Tony, um homem adúltero que passa a maior parte de seu tempo fora de casa, seja pelas amantes, seja por conta de seu trabalho, ligado ao governo. Logo nas primeiras páginas, o espaço fica demarcado rigidamente entre privado e público, sendo o primeiro reservado às mulheres, o segundo, aos homens. Pode-se mesmo considerar o episódio da janela sendo quebrada pelo filho de Rami como uma figura para o movimento que a mulher faz em seguida: sair em busca da amante do marido e confrontá-la. Todavia, após um breve embate físico (em que Rami sai derrotada), fica evidente que as mulheres têm muito mais em comum do que imaginam, inclusive a condição de esposa. Tony não apenas é amante de Julieta, como lhe faz filhos, provê casa, sustento e o mesmo abandono. Parece, assim, que a divisão dos trabalhos em público e privado, sendo um remunerado e o outro não, dá muito mais autonomia aos homens, que as escolhem arbitrariamente, do que às mulheres, que limitadas à casa e aos filhos, ficam também sentimental e sexualmente limitadas.
Rami, que narra em primeira pessoa sua história, deixa logo evidente que as noções de amor, sexo e conjugalidade a que foi apresentada são todas bastante cristãs e ocidentais. A narradora acredita no amor eterno, na fusão de almas, ocupando a monogamia um espaço fundamental neste ideário. Em princípio, buscando reconquistar Tony, Rami procura outras mulheres que lhe possam aconselhar. É interessante observar que a "professora" que a instrui no "amor" alerta-a para o fato de que, apesar da idade e dos filhos, Rami ainda é criança: não tem conhecimento da própria sexualidade ou do próprio corpo. Ao procurar a mãe, Rami logo vê que esta também é incapaz de aconselhá-la, por ter vivido um casamento de moldes bastante parecidos. Fica assim implicado que o casamento ocidental aliena as mulheres em relação aos próprios corpos, bem como umas em relação às outras, e a poligamia de Tony tende, na verdade, para o adultério ocidental, em que a conquista sexual do macho sobre a fêmea denota virilidade, mas não o obriga a qualquer tipo de compromisso ético e moral em relação às mulheres.
No entanto, Rami não poupa certas tradições locais a uma crítica que se aproxima do feminismo:

Em matéria de comida, não há norte nem sul. Todos os homens são gulosos e inventam mitos só nas carnes, peixes e ovos. Não há mitos de couves nem alfaces. (CHIZIANE, 2004. p.44)

Desta forma, Rami acaba por concluir que, se as práticas ocidentais são limitantes e insatisfatórias, o retorno às tradições em estado puro é impossível, e pode muito bem não ser desejável. Assim, buscando uma mediação, surge a decisão de Rami, esposa legítima, de realizar um casamento oficial, trazendo à qualidade de legítimas as demais esposas. A instituição escolhida para conferir legitimidade ao concubinato, todavia, não é o matrimônio, seja o legal ou o cristão, mas o lobolo, uma tradição que precede a chegada do colonizador português. Ainda assim, o ritual tira o concubinato da sombra da dupla moral, dignifica as mulheres e os filhos dessas mulheres. Aqui, a invenção da tradição de que fala Hobsbawn fica patente, bem como um deslocamento das relações de poder de sexo e gênero:

Nos lobolos todos introduzimos uma inovação: a certidão de lobolo, com todas as cláusulas contratuais, menos aquela parte que fala de assistentes conjugais em caso de incapacidade do marido. (CHIZIANE, 2004. p.125)


Para a feminista Carole Pateman, a divisão entre o público e o privado é estabelecida no imaginário ocidental através do mito do contrato original. Tal como elaborado por diversos pensadores do ocidente, tais como Hobbes e Voltaire, o contrato de casamento faz parte do contrato social e relega ao espaço privado as atividades realizadas no seio da família, o que reproduz relações patriarcais de poder de uma sociedade anterior à burguesa e liberal. Ao tornar o lobolo um contrato de casamento, a tradição se inscreve em um discurso ocidental e se hibridiza, sem contudo perder a qualidade de tradição que lhe é própria. Contudo, quando é redigido por mãos femininas, alça a mulher ao espaço público como gestora, capaz de tomar decisões e interferir na ordem vigente.
Este poderia ser o final feliz: a conciliação entre os sexos estabelecida através de um casamento público e oficial. Contudo, as escapadelas de Tony continuam, e ao casamento coletivo se segue a descoberta de uma nova amante. Esse evento coloca em questão a relação de poder entre homens e mulheres enquanto um fenômeno de ordem legal. Os hábitos e tradições sexuais começam aqui a emergir como fatores de dominação em si mesmos: é na demarcação do corpo masculino enquanto público, parte do espaço, e no da mulher como privado, parte da propriedade e do trabalho, que repousa a dicotomia.
Segundo Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade, este período histórico é marcado por diversos fatores, entre eles as lutas anticoloniais em África e o feminismo. Não se trata aqui de apontar as escritoras ou personagens como feministas, mas compreender que a desestabilização das relações de gênero em países centrais em termos econômicos, políticos e culturais acaba por também atingir os países periféricos, estes fazendo os devidos ajustes nas pautas e sobretudo nas práticas políticas. Em Da diáspora, Hall argumentará ainda que o resgate às tradições locais não se dá em um panorama neutro e de puro interesse estético, mas de resistência política, em que a tradição é sempre estrategicamente acionada, sem ignorar as hibridizações sofridas pelos processos históricos, tanto de colonização como de independência. Assim, tanto em Niketche como em Os olhos da cobra verde, encontramos esse movimento pendular, que oscila entre a voz da mulheres como escritora, construindo narradoras femininas que transmitem sua experiência de mundo, e o resgate cultural e histórico de práticas (inclusive sexuais) tradicionais. Especificamente em Niketche, ainda que Rami se filie a uma noção ocidental e romântica de amor, fica registrada a vontade de ruptura, que a leva a criticar tanto as práticas herdadas dos portugueses quanto as práticas tradicionais de seu povo. No encontro com mulheres de toda a sua terra, inicia-se um diálogo sem precedentes que permite um balanço, ainda que ficcional, do ser mulher, entre práticas tradicionais e coloniais, entre as novas formas de narrar e transmitir a experiência e as antigas formas. Já em "Os olhos da cobra verde", a narrativa centrada em Facache nos mostra uma mulher sexual e materialmente emancipada, profundamente ligada à cultura local e à capacidade de narrar; todavia, a dificuldade em transmitir sua experiência não está centrada em sua experiência de mundo como mulher, mas em um choque geracional, ocasionado, entre outros fatores, pela própria guerra de independência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. "O narrador". Magia e técnica, arte e política.

CHIZIANE, Paulina. Niketche. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

HALL, Stuart. Da diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.

____________. A identidade cultural na po´s-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2002.

LEITE, Ana Mafalda. "Pós-colonialismo, um caminho crítico e teórico". Oralidades & Escritas Pós-Coloniais. Rio de Janeiro: EdUerj, 2012. p.129-157

LORDE, Audre. "There is no hyerarchy of opressions". In: LORDE et. al. Homophobia and Education . New York: Council on Interracial Books for Children, 1983. (mimeo)

MOMPLÉ, Liliam. "Os olhos da cobra verde".

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Editora Contexto, 2012. p.153



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