NARRATIVAS DA APARÊNCIA: A MATERIALIZAÇÃO DO GÊNERO NO DESIGN DE MODA

September 7, 2017 | Autor: Leo Soares | Categoria: Gender Studies, Fashion Theory, Estudos de Gênero (Gender Studies)
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NARRATIVAS DA APARÊNCIA: A MATERIALIZAÇÃO DO GÊNERO NO DESIGN DE MODA Carol Barreto1 Leandro Soares2

Resumo: Este trabalho visa tecer considerações acerca das relações entre os Estudos de Gênero e os Processos Criativos empreendidos na criação de obras artísticas e de design, no tocante à expressão das identidades, construção de pensamento político e reconhecimento da materialidade das linguagens escolhidas ao compor narrativas que, a partir de um pensamento contra-hegemônico, componha de modo estratégico outras representações. A argumentação se baseia na análise da produção e dos processos criativos envolvidos no design de moda, considerando sua presença como um suplemento ao corpo e à materialidade do gênero em suas várias posicionalidades. A análise demonstra ainda como o engajamento performático possibilitado pela moda atribui novos usos para o sentido comum imposto ao vestuário, deslocando sua funcionalidade enquanto produto para ser consumido para o do espaço (des)articulador de noções sobre corpo, identidade, arte e indústria cultural. Palavras-Chave: Estudos de Gênero, Design de Moda, Processos Criativos. Historicamente se começa a pensar em roupa, não necessariamente em moda. Algumas (uns) autoras (es) vão trazer três funções para a utilização da roupa na pré-história: pudor, adorno ou proteção. Hipóteses essas que podem ser facilmente aceitas por quem não visualiza, por exemplo, a interlocução entre o termo pudor e as imposições religiosas que apenas passam a existir muito depois dessa época. A ligação do termo adorno com a noção atual e popularmente atrelada ao enfeite ou acessório, por exemplo, se esvazia quando imaginamos que nesse período, sem a existência de um padrão estético comum, não haverá “enfeite”; e por último, a tão bem aceita 1

Carol Barreto é Designer de Moda, Docente do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade – Departamento de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (UFBA/NEIM), Mestre em Desenho, Cultura e Interatividade (UEFS). Contato: [email protected] 2 Leandro Soares é Docente de Literatura Brasileira na Universidade do Estado da Bahia, Campus XVIII (UNEB), Doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Contato: [email protected]

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hipótese de que a roupa passa a ser utilizada com intuito de proteção, argumento que coaduna com o imaginário que se pretende desde já uma representação de um padrão hegemônico de ser humano, que é o “homem de Neandertal”. Como o próprio termo traz, esse homem branco, de estatura pequena e cabelos lisos, aparece nos livros de história da indumentária coberto de peles de animais para aquecer o corpo, num clima que obviamente não se encontra em todas as localidades do planeta. Não obstante, podemos ver, numa breve leitura comparativa, que indígenas brasileiros não se vestem por pudor, nem por adorno e nem por proteção, mas compreendem a aparência como linguagem e nesse caso ligada à expressão de suas culturas tradicionais. Mais adiante na história, a utilização das vestes no Ocidente passa a classificar grupos sociais por períodos que duravam à vezes 500 anos sem alteração, segundo Lipovetsky (1989, p 22), “Inteiramente centrada no respeito e na reprodução minuciosa do passado coletivo, a sociedade primitiva não pode em nenhum caso deixar manifestar-se a sagração das novidades, a fantasia dos particulares, a autonomia estética da moda.” Atrelado à tradição e reprodução de normas coletivas, o espaço para interferência na ordem das aparências não era fato, e vale ressaltar que o termo primitivo ali empregado não se refere ao sentido de “níveis de civilização” costumeiramente atribuídos ao termo, mas se aplica à um percurso cronológico que se vale para expressão de sua teoria. No século XV foi dizimado um terço da população europeia com a peste bubônica, vista como um castigo divino aos hábitos pecaminosos daquela sociedade. Desconhecendo as origens biológicas da doença, muitos culpavam os grupos sociais marginalizados da Baixa Idade Média por terem levado a doença à Europa. Nessa fase conhecida como Idade Média Gótica, por conta de ditames do catolicismo, as mudanças eram pequenas variações do uso da toga e da túnica. Observase um aprimoramento nas técnicas investidas na elaboração da aparência por parte da nobreza italiana, por exemplo. As roupas que já possuíam desde o século XII um corte acentuadamente vertical passam a ter maior investimento, uma vez que integrantes da nobreza, ao sobreviverem à doença, passam a se comportar como ainda mais superiores às pessoas comuns. Assim, bicos dos sapatos masculinos chegam a medir 25 cm, as mulheres usam o hennin, “um chapéu de ponta acompanhado de um véu engomado que adicionava às vezes cerca de 20 cm à sua estatura” (Laver, 1989, p 67), estratégias de verticalização que também se expressavam na arquitetura Mas, além da superioridade de classe,

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outro aspecto inédito desde o Império Bizantino, século I, passa a definir a construção da aparência: expressões de disponibilidade sexual. Uma vez que as normas para o parecer eram via de regra heteronormativas, os grupos passam a portar marcas como o codpiece, “Aba ou saco ornamental que cobria a abertura na frente dos calções masculinos” (Laver, 1989, p.68). Adorno que destacava o órgão sexual masculino justificado pelo encurtamento do casaco que compunha a veste. Com o tempo o codpiece passa a ser enfeitado, estruturado e cada vez mais destacado. Segundo Laver (1989), às mulheres, que sempre se vestiram de maneira mais simples que os homens, cabia um destaque especial ao ventre, numa simulação de uma barriga de gravidez - para isso, muitas vezes saquinhos com enchimento eram utilizados por baixo do vestido - acompanhada por seios achatados num decote alto, além da pele alvíssima e testa alta. Marcas ainda inéditas de intencionalidade, expostas nas aparências que passam a extrapolar as costumeiras expressões que até então diferenciavam nobres e plebeus. Lipovetsky (1989) pôde visualizar na Idade Média Gótica o nascimento da moda no sentido do uso intencional da aparência e distanciada da exclusividade da luta de classes e assim compreender a aparência a priori como linguagem, como nos provoca a seguir: As modificações na estrutura do vestuário masculino e feminino que se impõem a partir de 1350 são um sintoma direto dessa estética preciosista da sedução. O traje marca, desde então, uma diferença radical entre o masculino e o feminino, sexualiza como nunca a aparência. (...) O traje de moda tornou-se traje de sedução, desenhando os atrativos do corpo, revelando e escondendo os atrativos do sexo, avivando os encantos eróticos: não mais apenas um símbolo hierárquico e signo de estatuto social, mas instrumento de sedução, poder de mistério e de segredo, meio de agradar e de ser notado no luxo, na fantasia, na graça amaneirada. (...) A sedução afastou-se da ordem imemorial do ritual e da tradição; inaugurou uma longa carreira moderna individualizando, ainda que parcialmente, os signos do vestuário, idealizando e exacerbando a sensualidade das aparências. (LIPOVETSKY, 1989, 65-66)

As aparências feminina e masculina nunca foram tão diferenciadas desde Bizâncio, mas o centro da argumentação do autor se pauta na leitura do discurso, ou seja, na interpretação da elaboração intencional de um texto que ao invés de grafado foi visualmente registrado. A individualização parcial dos signos do vestuário citada por Lipovetsky explicita um fato analisado no século XIX pelo filósofo Georg Simmel (1905) que se dedicou ao entendimento do comportamento da burguesia daquele século. Como novos ricos, passado o tempo áureo dos aristocratas vencidos na Revolução Francesa, agora era possível aos ricos comerciantes a compra daquela tão sonhada peruca branca que a nobreza usava no século XVII, assim como o uso da

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maquiagem, do salto alto, das rendas, fortes perfumes, tecidos com brilho e bordados, ou seja, passados quase duzentos anos, símbolos de hierarquia, mesmo que não mais em voga, eram reproduzidos mimeticamente num padrão de expressão do gênero masculino que muito se assemelha ao que se interpreta hoje como feminino. Na segunda metade do século XIX, com a Revolução Industrial, registra-se a imposição da redefinição do padrão de masculinidade – que no século anterior se assemelhava muito ao que hoje entendemos como feminilidade por conta do uso da maquiagem, saltos altos, babados – quando por conta do fator trabalho - novidade na vida das altas classes – substituem-se os “excessos” pela sisudez do terno de alfaiataria. Assim, transferem-se as responsabilidades de expressão de poder e status da aparência masculina para a feminina no padrão heteronormativo. As mulheres brancas e ricas passariam a ter a obrigação de parecer cada vez mais brancas e pálidas, signo de fragilidade e expressão oposta à imagem da mulher trabalhadora da época e devem usar cerca de quatro vestidos por dia, cumprindo as regras sociais para expressão da “riqueza” do marido. O terno e suas três únicas peças de roupa que comporão a partir de então, com algumas variações, a indumentária masculina, configuram uma nova fase em que se empobrece de tal maneira a aparência máscula que, destacando sua fragilidade pela repetição de um padrão que até hoje precisa continuamente ser reiterado, se torna fácil de subverter. No século XX, a indústria cultural por meio da alta costura coopta um público já preparado pelo contexto supracitado: as mulheres ricas, que não deveriam expressar qualquer signo de trabalho, e portanto de conforto, precisam se manter belas para expressar a vida privilegiada que levam. A questão central é que, independentemente do quantitativo real do público acima descrito, a publicidade, o cinema e demais meios de comunicação e mídia passam a comunicar e impor cada vez mais o padrão de representação social definido pelas altas classes para si a para os demais, constituindo diversos grupos étnicos, sociais, geracionais e de gênero à sua semelhança, processo que não muda de modus operandi até os dias atuais como escreve Louro (2007):

Distintas e divergentes representações podem, pois, circular e produzir efeitos sociais. Algumas delas, contudo, ganham uma visibilidade e uma força tão grandes que deixam de ser percebidas como representações e são tomadas como sendo a realidade. Os grupos sociais que ocupam as posições centrais, “normais” (de gênero, de sexualidade, de raça, de classe, de religião etc) têm possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros. (LOURO, 2007, p 23)

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Com a intenção de explicitar o papel da roupa, da indumentária e da moda na elaboração estratégica dos padrões de classe social, gênero, raça/etnia, geração, sexualidade/identidade sexual dentre outras categorias, apresentamos aqui um breve apanhado histórico que expõe essas “realidades” produzidas cultural e socialmente, bem como pretendemos destacar o caráter discursivo dessas representações, que mudam de modelo com o passar dos anos, mas nem sempre de intencionalidade ou de ideologia. Um exemplo disso é que as poucas imagens de negras, negros e indígenas presentes na bibliografia disponível para análise dos produtos da história da moda e da indumentária no Brasil quando os retratam são como “selvagens e primitivos”. De modo geral, não se encontram registros de variações no padrão branco e heterossexual, por esse motivo a linha cronológica aqui explorada perpassa também pela exposição dessa lacuna.

A moda como campo de estudo As ligações entre a moda, como processo criativo, e a moda como um ramo econômico – mesmo considerando que ambas servem à necessidade cultural de cobrir o corpo – tornam problemática e de certo modo impedem a conceituação da moda como um campo epistemológico. O fato de os produtos de moda serem dependentes do mercado, regulados por ele e direcionados inclusive para um nicho de luxo não podem ser impeditivos de um pensamento sobre a moda por considerá-la, por este motivo, frívola; é preciso muita ingenuidade para acreditar que um mercado bilionário não tem importância fora das redes de crítica ou análise do consumo. Como produto exemplar do capitalismo tardio, onde os artefatos perdem valor histórico e ganham em efemeridade, a moda nos apresenta um campo fecundo de estudo das culturas metropolitanas modernas (como Walter Benjamin registra em suas Passagens) por causa de sua relação simbiótica com a cultura e com o corpo. De fato, pensar sobre o corpo sem pensar naquilo que o torna civilizado é deixar-se seduzir pela cantilena fácil da moda como um subproduto nocivo e banal do capitalismo. Não podemos confundir os seus produtos mais conhecidos ou destacados com a sua importância como Fato Social Total (Baudrillard, 2008) ou Fenômeno Cultural característico do Ocidente Moderno (Lipovetsky, 1989). Esta dupla inscrição da moda – criatividade e consumo – são marcas próprias de sua constituição que são também, e não por acaso, marcas estruturantes da condição pós-moderna. A contemporaneidade da moda, conforme a fórmula de Giorgio Agamben (2009), reflete essa necessidade contínua de renovação para um novo que traz em si traços intensos de um passado e um

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futuro. A moda opera sempre no tempo presente: ela joga com a temporalidade de um “presente passado” assim como a de um “presente futuro”. Isto é possível porque a moda se faz como um ato performativo (Austin, 1975), isto é, cuja efetividade se dá num vir-a-ser que irrompe já no “presente atual”. A moda, para ser o que é, precisa trabalhar contra a pulsão de destruição que promove sua própria renovação: para avançar, transformar, propor novos produtos e tendências, não é preciso somente atender as exigências de mercado, é preciso acima de tudo colocar sua própria história como bem cultural à prova, apresentando reviravoltas contínuas. É esta condição de pôr sob questionamento sua própria razão estruturante que impede à moda o estatuto de um conceito nãocontraditório a si. Contudo, e isto é importante deixar claro, não constituir-se num ramo epistêmico não diminui sua importância para a compreensão de seu papel nas posicionalidades várias como gênero, raça, classe ou origem. Diante disso, para além da roupa, é imprescindível compreender que de modo independente da materialidade das vestes, diversos elementos compõem o desenho da aparência sobre o corpo: cabelos com seus cortes e cores, sobrancelhas, comprimento de unhas, barbas e bigodes, tônus muscular, gestual, postura corporal e outras minúcias que expressam muitos dos marcadores acima descritos, reforçando padrões ou confundindo-os. Como modo de gerenciamento da aparência em consonância ou contraposição à sua cultura, o caráter discursivo da aparência se constitui por meio da moda: (...) “moda é conjunto atualizável dos modos de visibilidade que seres humanos assumem em se vestir com o intuito de gerenciar a aparência, mantendo-a ou alterando-a por meio de seus próprios corpos, dos adornos adicionados a eles e da atitude que integram ambos pela gestualidade, de forma a produzir sentido e assim interagir com o outro.” (GARCIA & MIRANDA, 2005, p.16).

A partir dessa citação, destacamos a centralidade do gestual na produção de sentido que, por meio dos elementos materiais, produzem sentido a partir de parâmetros que são continuamente atualizados a partir do momento histórico, contexto sociocultural, econômico, geográfico, dentre outros fatores, que possibilitam o funcionamento e interpretação de determinado comportamento estético. No sentido material e comercial da palavra, de fato, a moda tem muitas vezes uma função normativa ou descritiva que precisa deixar de ser ignorada, pois mesmo como fruto capitalista, é por meio dela que padrões de gênero, do normativo e do expressivo são sintonizados. Como exercício e expressão da sociabilidade, moda e vestuário são esferas distintas:

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A moda e o vestuário, mesmo intrinsecamente ligados, não podem ser confundidos. O vestuário proporciona o exercício da moda, e essa atua no campo imaginário, dos significantes; é parte integrante da cultura. (...) A moda, por sua vez, está situada num campo indefinido de materialidade, pois se ela se apresenta por meio de toda essa expressividade do vestuário, se dá sentido às semioses que são estabelecidas com as cores, formas, textura e ritmo das roupas não pode ser confundida com os processos que desencadeia. Mesmo quando estes processos são tão fundamentais à sociabilidade, sejam como mecanismos de distinção e hierarquização social ou como instrumentos indispensáveis à constituição das relações de poder. (SANT’ANNA, 2007,74:86)

Diferenciar moda e vestuário, atrelando a primeira palavra ao imaterial e a segunda ao material pode ser um caminho coerente, mas no meio do percurso encontramos a palavra modismo, responsável por cooptar os sentidos das duas palavras para si, mas que não deixa explícita a sua noção cujo sentido é de adoção passageira e coletiva de determinado objeto, atitude ou forma de parecer. Essa repetição que o modismo impõe, no entanto, não pode ser confundida com a noção de “repetição estilizada de atos” defendida por Judith Butler (1990), para delinear gênero. Como algo temporário e performativo, para a autora, as possibilidades de interferência nos padrões de gênero por meio da linguagem são diversas; e compreendendo a aparência como linguagem, sendo a moda elemento constitutivo desta, a análise sob a perspectiva Queer se pauta no entendimento do caráter arbitrário da relação entre os atos, na possibilidade de alterar ou impedir tal repetição, ou de parodiá-la de modo a expor sua precariedade. Assim, ao desnaturalizar as práticas de significação dos discursos hegemônico,s expõem-se os engendramentos das relações de poder sobre as aparências, suas estratégias de revalidação dos ditames de gênero, suas formas de definição e reiteração de padrões de excelência de feminino e masculino, sobretudo pautados na heteronormatividade, bem como, em contrapartida, por meio da moda atitudes transgressoras e de ressignificação sejam possíveis e factíveis. Uma vez que ao pensar na categoria gênero se vai compreender a construção cultural não apenas da diferença entre os sexos, mas também do que é ser homossexual, heterossexual, lésbica ou transexual; ser homem, ser mulher, transgênero, negra, indígena, branco, latino-americano, urbana ou rural, dentre outros fatores de ordem política, econômica, social, étnica e histórica; desconsiderar a aparência e a moda nos estudos de gênero como esferas de expressão dessa “repetição estilizada de atos” aludida por Judith Butler (1990), seria no mínimo ingênuo. Na contemporaneidade a moda ocupa um lugar de centralidade não apenas no âmbito do consumo material ou discursivo, mas principalmente passa a reger o modo de funcionamento das nossas relações sociais. Voltando ao século XIX, na análise feita por Georg Simmel (1905), ele defendia que somente no espaço urbanizado e industrializado, a moda se desenvolveu de fato,

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supondo que com o surgimento das grandes cidades se acentuava a individualidade e as pessoas passam a dar novo status à aparência, elegendo a moda como um elemento primordial na exteriorização da personalidade de cada um. Na atualidade, moda e corpo se relacionam de modo não intrínseco pois a moda passa a suplementar o corpo por diversas vezes, especialmente no momento exato em que sem as vestes e outras marcas de associação aos grupos no qual participam os corpos não podem nem transitar. Assim pensamos, qual o papel do corpo e qual o papel da moda? Qual o limite ou a feição do natural e do artificial?

A moda como suplemento do corpo

Para Derrida, (Gramatologia, 2011) o suplemento é perigoso porque, em última análise, ele substitui aquilo que visa suprir. O suplemento não é um aditivo ou um substituto no sentido comum desta palavra, como aquilo que serve às vezes de outra coisa em caso de ausência. O suplemento atua como um excesso cuja abundância é sentida como uma falta: sem o suplemento uma coisa é e não é si-mesma. A moda, como suplemento do corpo, é aquilo sem o qual o corpo não pode se constituir como um corpo, mesmo que sem ela o corpo ainda continue sendo o que é. Ainda assim, por cobrir o corpo, criar sobre ele um espaço onde o significado se impõe, a moda suprime o corpo como uma entidade de sentido. Como aparato da sexualidade, o corpo precisa da moda como suplemento, onde só o corpo nu falha como objeto de desejo. Como inscrição de uma característica étnica, por exemplo, a moda é a moldagem sobre o corpo que o re-confirma numa cultura, ao mesmo tempo que, sem o corpo, de quem é serva, a moda seria apenas um conjunto de variações sobre a corporeidade.

Gênero, linguagem e discurso

A hipótese de que tanto o gênero quanto o sexo são construtos sócio-linguísticos, ou seja, cujas efetividades são ditadas por um discurso, tem seus limites na ideia de que basta uma alteração na ordem do discurso para que ocorra uma transformação. Essa ideia, contudo, despreza que o discurso possui uma materialidade que define a experiência, e esta, por sua vez, produz o sujeito. A diferenciação entre natureza e cultura, que marca a experiência ocidental, tende a imputar uma superioridade do artefato em relação ao natural, da ordem sobre o caos, do civilizado sobre o animal. Esta perspectiva ignora que o próprio conceito de natureza é definido culturalmente, e,

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portanto, mina a hierarquia que pretende sustentar. A esse respeito, Eduardo Viveiros de Castro escreveu sobre o perspectivismo indígena sugestivas observações para nossa própria sociedade (Castro, 2007). Ao imputar a natureza como o campo onde as noções de sexo e gênero são regidas, esconde-se que a própria natureza é produto de um discurso. Daí que as materialidades do corpo, do sexo e do gênero são definidas por um discurso que as condicionam como “natural” ou “cultural”, onde o primeiro caso marca uma suposta autenticidade. O problema que tal hierarquia falseia é que o argumento a favor da natureza como evidência de uma autenticidade essencialista é sempre invocado quando se pretende impor outra hierarquia, métodos de opressão ou continuidade de injustiças como: “as mulheres são naturalmente mais fracas”, “é da natureza dos negros serem inferiores” e “a ordem natural das coisas é a lei do mais forte”, exemplos de argumentos cuja validade nem é preciso questionar neste espaço. A moda participa desse jogo em sua dúplice ação, como atividade criativa e bem de consumo. Sua dualidade é a de se situar tanto nos espaços onde os discursos são instituídos quanto nos sujeitos onde esses discursos far-se-ão materialidade. Ela atua sobre os corpos engendrando-os enquanto gênero. As possibilidades de subversão de gênero são possibilidades abertas pela moda em seu estatuto de narrativa da aparência. Como narrativa da aparência entende-se o processo em que o indivíduo se constitui e também é constituído pelo olhar do outro, um processo carregado pelos predicados da identidade, estereótipo e diferença (Hall, 2004). Ao contrário da narrativa do eu, ou da alteridade, as narrativas da aparência não pretendem nenhuma identidade cultural ou comunidade imaginada, mas o agrupamento sob a força coletiva do bem de consumo como insígnia. Sob outros nomes reconhece-se essa insígnia: marca, grife, brand, label. Mas não só no sentido de ser definido por um emblema corporativo, a narrativa da aparência potencializa a identificação discursiva de traços étnicos, históricos, religiosos ou culturais como bens de consumo trans-valorados pelo mercado. Neste sentido, a materialidade da moda não disfarça sua construção como discurso sobre o sujeito ao mesmo tempo em que aponta sua condição de ser citacional, isto é, subtraída de seu contexto originário para ser ressignificada. Seu papel na produção do gênero pode ser averiguado na própria construção dos aparatos que definem o feminino e o masculino no cotidiano, que vão das cores (rosa para meninas, azul para meninos) até a postura que rege os corpos. Simultaneamente, a normatividade da moda em relação ao gênero é solapada pela sua própria característica de ser constantemente contemporânea, quer dizer, sempre instaurada por uma repetição que atualiza o presente atual e altera as formas de sua composição. É por este motivo que ela abre a chance da paródia de gênero, da subversão e da

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igualdade de gênero, como, por exemplo, nos diversos casos onde ela ultrapassa ou borra as fronteiras do masculino/feminino nos processos criativos individuais, nas diversas expressões da identidades sexuais e identificações; por meio dela passamos a existir no ocidente contemporâneo, mesmo como fashion victms, alternativos ou os grupos anti-moda. Referências AUSTIN, J. L. How to do things with words. Harvard: Harvard University Press, 1975. BAUDRILLARD, J. O Sistema dos Objetos. Trad. Zulmira Ribeiro Tavares. 5. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. de Irene Aron. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006. BUTLER , Judith. Gender trouble. New York: Routledge, 1990. CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac&Naify, 2007. GARCIA, Carol; MIRANDA, Ana Paula de. Moda é Comunicação: experiências, memórias e vínculos. Ed. Anhembi Morumbi, 2005. HALL, Stuart. Identidade cultural na pós – modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. Ed. Companhia das Letras, 1989. LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero: A moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. SANT’ANNA, Mara Rúbia. Teoria da Moda, São Paulo, Ed. Cia das Letras, 2007.

Abstract This paper proposes some thoughts on the relations between Gender Studies and Creative Processes engaged in design and arts that express identity, political thought and that assure the materiality of a chosen language that composes non-hegemonical narratives for a strategic representation. The argument is based on an analysis of the crative process and production of fashion design as a suplemente to the body and gender materiality in their various positionalities. The analysis also demonstrates that the performatic engagement of fashion design resignifies the commom knowlegde on fashion as displacing its mercadological functionality to a place where it dearticulates notions of body, identity, art e culture industry. Keywords: Gender Studies, Fashion Design, Creative Processes.

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