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May 30, 2017 | Autor: Priscila Vaz | Categoria: Narrativas, Audiovisual, Fairy tales, Contos De Fadas, trajetória histórica
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Narrativas de contos de fadas, das histórias aos produtos.1

VAZ, Priscila Mana (Mestranda)2 Universidade Federal Fluminense / Rio de Janeiro

Resumo: As narrativas de contos de fadas sofreram muitas transformações ao longo de sua trajetória

e foram apropriadas e re-apropriadas em diferentes contextos. Desde os contos orais, conhecidos como folktales até a inserção dessas narrativas em produtos seriados televisivos, essas histórias percorreram uma enorme trajetória, e foram sendo contadas por diversos autores em diferentes suportes, entre eles o livro, o cinema e a televisão. Esse artigo, apresenta a trajetória que essas narrativas percorreram ao longo de todos esses anos, desde os indícios da palavra falada até sua apropriação por produtos televisivos. Como proposta, faremos um breve histórico sobre a formação do termo “contos de fadas”. Indicaremos seus principais autores e suas contribuições para a formação do gênero narrativo. Passaremos pelos Irmãos Grimm e a consolidação dessas narrativas como contos para criança. Também revisitamos as discussões em torno do século XX e as subversões nos contos (ZIPES, 2006). E finalizamos com Walt Disney, as princesas e a permanência dos contos de fadas nos dias de hoje e na televisão.

Palavras-chave: audiovisual; trajetória histórica; narrativas; contos de fadas;

Introdução

As narrativas sobre contos de fadas versam de uma época anterior a escrita. Elas estão apoiadas no ato de narrar, isto é, o ato de “contar uma história”. O costume de contar histórias é anterior ao que hoje chamamos de literatura. Segundo Walter Ong, “expressões orais existem e surgiram sem nenhum apoio da escrita, já as expressões escritas, nunca existiriam sem o suporte oral” (ONG. 1982, p.8) ou seja, essa histórias já eram contadas antes da literatura surgir. Os contos orais eram o meio pelo qual a sociedade pré-escrita tinha para transmitir conhecimento, já que, ainda segundo Ong, “culturas orais não conseguiam gerar categorias [de conhecimento] então, eles precisavam usar histórias de humanos para guardar, organizar e 1

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Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Audiovisual e Visual, integrante do VI Encontro Regional Sudeste de História da Mídia – Alcar Sudeste, 2016. Graduada em Estudos de Mídia pela Universidade Federal Fluminense, atualmente é Mestranda, bolsista CAPES do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. [email protected]

comunicar tudo que eles sabiam” (ONG. 1982, p.138). Com a transposição desses contos para a literatura, esse função educativa e moralizante permaneceu viva, sendo o principal traço das histórias de contos de fadas. Porém, as histórias de contos de fadas, desde os contos orais até chegarem ao cinema, passaram por diversas transformações, e se aproximaram e se afastaram de sua “função inicial” ao longo dos anos. As re-apropriações e inserções de novos elementos e a inserção das histórias em novas mídias fizeram com que houvesse diversas alterações na narrativa, e com que mudassem a maneira como essas narrativas são construídas e recebidas pelo público. No entanto, a essência “contar histórias” nunca foi perdida. Na trajetória de formação dos contos de fadas, o processo se iniciou com os folktales (como eram chamados os contos orais) e ao longo dos séculos, essas histórias foram sendo inseridas na literatura, sendo apropriadas por diversos autores até tomarem forma e conquistarem o status de gênero narrativo, que acabaria se fixando como gênero infantojuvenil. Para compor esse histórico e a teorização a respeito dos contos de fadas foram selecionadas, principalmente, as obras do autor Jack Zipes, que é professor de alemão da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, e a maior referência atual sobre o tema contos de fadas. Zipes dedicou sua vida a estudar a formação dos contos de fadas, tendo publicado seu primeiro livro sobre o tema no ano de 1979, onde ele discorre sobre teorias radicais a respeito dos contos. Sua coletânea possui mais de 15 livros sobre o tema, além de diversos artigos publicados3 onde ele busca descrever diversos aspectos relacionados aos contos, desde suas origens até elementos mais técnicos inerentes aos textos, como é o caso do livro Why Fairy tales stick (2006), onde ele foca na construção textual do gênero e no processo de mimetização 4 associado a essa histórias. O principal livro mencionado neste trabalho foi escrito por ele no ano de 1985, e atualizado em 2006 para uma segunda edição. Fairy Tales and the Art of Subversion, Contos de Fadas e a Arte da Subversão, traz um riquíssimo histórico de formação social do tema, 3

Lista dos livros publicados por Jack Zipes. (http://www.surlalunefairytales.com/bookstore/jackzipes.html) Acessado em 22/11/2014 4

Zipes fala do potencial das histórias de permanecer por décadas no imaginário das pessoas.

explorando como cada autor, em seu tempo foi se apropriando dos contos, de acordo com as funções sociais que lhes eram atribuídas. O autor não possui obras traduzidas para o português, por isso, todas as citações que lhe serão atribuídas são traduções livres da autora deste trabalho.

Contos Folclóricos

Muito antes dos contos de fadas serem o que conhecemos hoje, muitas histórias já eram contadas em diferentes civilizações de várias partes do mundo. Essas histórias, identificadas pelo termo folktales, atravessaram gerações literalmente, de boca em boca, até se tornarem os contos de fadas modernos. O termo folktale, folk= povo e tale= conto/história, é utilizado para designar as histórias que eram contadas oralmente e que traziam consigo uma função comum que era a de civilizar e educar o povo e fazer com que determinadas regras e tradições fossem mantidas vivas. Cada civilização, a partir do momento em que começou a desenvolver sua própria literatura, buscou maneiras de distinguir suas histórias das de outros povos. Por isso, apesar de existirem várias histórias parecidas em diversas partes do mundo, em cada local onde ela é contada, a história apresenta suas peculiaridades e conta com a inserção de novos elementos. Como já foi dito, uma questão forte que está presente nesses contos é a oralidade. Os traços de oralidade unem os folktales de diferentes países e faz com que essas histórias consigam ser reconhecidas e categorizadas mesmo que escritas em diferentes línguas por diferentes civilizações. Além disso, o uso de temáticas semelhantes, geralmente relacionados a acontecimentos triviais do cotidiano, também faz com que eles sejam facilmente identificados quando comparados. Os estudos sobre as origens dos contos de fadas, principalmente desenvolvidos na Europa, apontam que, inicialmente os contos orais, que depois deram origem a literatura, tinham uma função moralizante para a sociedade (ZIPES, 2006). Eles relatavam histórias de pessoas que tinham passado por situações inusitadas no cotidiano e traziam sempre algum ensinamento que facilitassem o convívio social. Além disso, também eram responsáveis por manter determinados assuntos em pauta e excluir o que era proibido de ser discutido.

Até o século XVII, nas sociedades não se fazia distinção entre adultos e crianças e por isso, não se falava ainda em histórias que fossem direcionadas para determinada faixa-etária. É comum ouvir em relação aos contos de fadas, que eles teriam sido feitos primeiro para adultos e depois para crianças. Porém, essa afirmação é uma falácia, já que até determinado ponto da história essa distinção entre adultos e crianças não existia. Então não se podia pensar em uma literatura que fosse direcionada a um público. Com a invenção da infância no século XVIII, houve também uma radical mudança no conteúdo dessas histórias e na maneira como elas eram contadas. Veremos isso, mais adiante. A evolução desses contos está diretamente relacionada às mudanças que a sociedade foi sofrendo ao longo dos séculos. Jack Zipes (2006) comenta sobre essa influência as novas possibilidades de participação na ordem social (...) são a razão para que em cada novo estágio da civilização, em cada novo período histórico, os símbolos e configurações dos contos foram ganhando novos sentidos, sendo transformados e eliminados de acordo com as necessidades e os conflitos do povo frente a nova ordem social (ZIPES, 2006. p. 6)

Esse trecho também nos sugere um dos motivos pelos quais as histórias e os contos de fadas sobreviveram ao longo de tantos anos. Ao evoluir e se adaptar as necessidades sociais, e ao mesmo tempo manter sua essência, esses contos garantiram um lugar especial não só na literatura, mas como no imaginário e formação individual das pessoas. Zipes (2006) também fala da essência temática desses contos e de sua influência com histórias mitológicas da Idade Média, ele cita como alguns desses elementos foram transformados as deusas viraram bruxas, uma fada má ou madrastas; a jovem princesa, foi transformada em um herói; laços familiares e matriarcais tornaram-se patriarcais; a essência dos símbolos, que eram baseados em rituais matriarcais ou pagãos, foi retirada ou então eles foram transformados em símbolos benignos e o padrão de ações que era sobre amadurecimento e integração aos poucos foi ficando fortemente relacionado a dominação e riqueza. (ZIPES, 2006. p. 7).

O autor acrescenta ainda que os folktales orais eram aqueles simbólicos atos onde as pessoas anunciavam suas aspirações e projetavam possibilidades mágicas e imaginativas para resolvê-los e isso poderia envolver se tornar um bravo cavalheiro ou uma amada princesa. (ZIPES, 2006. p.7)

Esses contos foram sofrendo tantas alterações que deles derivaram diversos tipos de outras histórias. De acordo com a função social que eles precisavam desempenhar, “eles

foram se subdividindo e se transformando em contos eróticos, filosóficos, ou mesmo pedagógicos, função que mais tarde foi atribuída aos contos de fadas.” (ZIPES, 2006. p.9).

Contos de fadas na literatura

Originados em uma matriz oral e a partir dos folktales, os fairy tales ou contos de fadas, começaram a ser registrados por diversos autores a partir do século XVI e formaram a base do que se tornaria a literatura infantil. Inicialmente os autores que mais se destacaram nesses registros foram os italianos, Giovan Francesco Straparola e Giambattite Basile. Straparola e Basile são dois autores importantíssimos na história da literatura dos contos de fadas. Eles, não só, foram reconhecidos por inaugurar essa vertente literária, como também foram grandes influenciadores das histórias de origem francesas, atribuídas principalmente a Charles Perrault. Straparola, lançou seu primeiro livro em 1508, sua literatura, que não era exclusivamente feita de contos, continha muita obscenidade e pornografia, demonstrando claramente, uma questão que é sempre levantada: que em sua origem os contos de fadas não eram infantis (ZIPES, 2006). Outra característica presente em seus textos, era uma pouca preocupação em relação a questões moralizantes. A obra de Basile também foi baseada na cultura oral, mas acredita-se que ele teve também influência nos textos de Straparola. Lançado em 1634-36, “The Tales of Tales”, trouxe em sua temática poder, civilização e transformação, e também uma questão muito importante para o gênero, que é a magia. As histórias de Basile traziam a ‘lady fortuna’, a sorte, representada como uma fada. Em italiano, fata, que vem de fé, acreditar. E assim, contos de fé, contos de fada. Onde a figura da fada, significava a única chance de mudança de vida, ou situação social. Charles Perrault foi na França, um dos nomes mais expressivos dos contos de fadas. Um dois primeiros a voltar seu trabalho literário para o público infantil, principalmente porque na época em que ele começou a escrever seus textos, a noção de infância, como uma fase especial da vida, começava a tomar forma.

No século XVII, uma forte tendência foi tomando forma de utilizar esses textos como opção moralizante e educacional para a sociedade. E nada melhor do que começar essa inserção o quanto antes na vida das pessoas, ou seja, apresentando-os para crianças. Esse modelo, no entanto, só foi consolidado de fato, no século XIX em grande parte da Europa e na América do Norte. Mas a contribuição de Perrault e, de alguns autores contemporâneos a ele na França, foi bem maior. Eles não só especificaram melhor para que público estavam falando os contos de fadas, como também trabalharam para construção de um gênero específico que englobasse essas histórias. Zipes (2006) defende, que grande parte do crédito que foi dado a Perrault pertence na verdade a algumas escritoras francesas cuja sociedade altamente machista da época fez questão de abafar. Segundo ele, essas escritoras teriam sido as reais responsáveis por estabilizar o gênero no universo infantil. Entre essas autoras, há um destaque especial para Marie-Catherine d’Aulnoy, que foi a primeira autora a utilizar o termo conto de fadas para especificar seus contos. Na verdade, vários termos são utilizados aqui no Brasil, que são traduções de traduções, o termo original em francês, ‘conte de fées’ não se referia diretamente a primeira tradução que lhe foi atribuída, ‘fairy tale’. D’Aulnoy cunhou o termo para falar de histórias sobre fadas, tema que dominou os contos da época. Apenas mais tarde que o termo foi sendo utilizado de forma cada vez mais genérica para denominar contos de diferentes características e que não necessariamente continham a presença de uma ou mais fadas. De qualquer forma, os textos de Perrault ficaram famosos por se apropriar de várias folktales e mesmo de outros contos de fadas, como aqueles escritos por Straparola, e incluírem uma função moralizante que serviu tanto para educar adultos como crianças. Os conto franceses, principalmente em razão de todo o processo da Revolução Francesa, tiveram um papel importantíssimo no processo de civilização de diversos povos do Ocidente. Zipes (2006) afirma que, “os contos de Perrault foram tão importantes para a sociedade monárquica da época quanto os filmes de contos de fadas da Disney foram essenciais para a cultura industrial.” (ZIPES, 2006. p. 34) A literatura de contos de fadas para crianças, foi sendo construída ao longo dos séculos XVIII e XIX, com uma dupla função: entreter e moldar ideologicamente. Conforme a noção

de infância ficava mais forte, também a necessidade de educar e impor modelos sociais a ser seguidos também aumentava. Mas antes de se consolidar de vez para crianças, os contos de fadas ainda tiveram alguns autores que contribuíram muito para o gênero. E se até o século XVII, o passado dos contos de fadas é meio incerto e pouco preciso, não se tem dúvida que no século XVIII, tudo muda. Na Alemanha, dois irmãos, começaram a colecionar folktales e a escrevê-los de forma estilizada para transformá-los em contos de fadas. Seus textos contribuíram tanto para a consolidação do gênero, que muitos estudiosos atribuem a eles a invenção dos contos de fadas. Como já vimos, não foram eles que inventaram o gênero, mas sem dúvida, a contribuição deles, é uma das razões pelas quais ainda hoje conhecemos diversos contos de fadas. Publicado pela primeira vez em 1812, o livro “Children’s and Household Tales” foi o primeiro volume da coleção de contos dos Irmãos Grimm. Com 86 contos, o livro inaugurou o que viria a ser uma coleção de 3 volumes e mais de 200 contos. Jacob e Wilhelm Grimm dedicaram suas vidas a literatura e ao estudo da língua alemã. Entre suas produções, além dos contos, está também um dicionário de alemão. Os outros volumes da coleção, foram publicados nos anos de 1814 e 1815. Em sua primeira publicação, os contos continham uma linguagem menos apropriada para crianças, fato que foi modificado em 1819 com o lançamento da “edição educacional”. Os Irmãos Grimm foram, não só, consagrados por seus contos, como também viraram referência do que seriam os “clássicos” dos contos de fadas. Mais tarde, Hans Christian Andersen, também viria a fazer parte desse cânone dos contos devido a importância de seus textos. Esse culto aos contos clássicos foi mantido, como nos informa Zipes (2006), até a metade do século XX, quando novos autores, não só na literatura mas no cinema também, passaram a se apropriar dos contos e escrevê-los sobre outra ótica, livrando-os um pouco da função moralista e trazendo mais elementos da sociedade industrial e das relações capitalistas. O trabalho de vida dos Irmãos Grimm, foi muito maior do que apenas recolher contos que já eram contados nas camadas burguesas, na maioria dos casos, “eles fizeram muito mais do que apenas simples mudanças, e melhorias no estilo: eles expandiram e fizeram profundas mudanças nos personagens e no sentido” (ZIPES, 2006. p.61). Segundo Zipes (2006) aponta,

eles contribuíram para o processo de “burguesificação” dos contos orais, retirando grande parte do caráter popular que essas histórias continham. Mas essa mudança não foi realizada no sentido de excluir da cultura essa camada da sociedade, muito pelo contrário, o maior desejo deles era de contribuir para o enriquecimento da literatura alemã, e ainda mais, fortalecer o sentimento nacionalista, e espalhar parte dessa cultura pela Europa. Outra questão muito forte para essas histórias terem se consolidado, foi o momento em que foram lançadas. Com o fortalecimento da sociedade burguesa e da noção de família, eles lançaram uma literatura feita para mães lerem para crianças e para as próprias crianças lerem, fato que era possível com o avanço da ideia de educação mais formal. Na verdade a questão era mais profunda, era um livro para pessoas de boa educação lerem. Zipes (2006) destaca que eles viram uma missão para os contos de fadas, e os burgueses da época eram os missionários. Wilhelm Grimm, que era dos dois o irmão mais moralista, acreditava em uma limpeza moral dos homens, e via na obra que eles construíram, um apoio para a educação. De fato essa ideologia foi tão forte que foi seguido durante muitos anos por educadores, e até hoje está presente na mentalidade de muitos escritores de livros infantis. Algo importante a ser destacado, é que a maneira como os Irmãos Grimm construíram sua obra não foi inaugurado por eles, e tão pouco parou neles. Como já foi dito, muito autores se influenciaram em obras dos outros e se influenciam até os dias de hoje. Muitas editoras inclusive apoiaram o movimento de recontar essas histórias e manter essa função socializante dos contos. Essa talvez seja a característica mais forte do gênero, que carrega em sua formação histórica desde o início a noção da subversão e da adaptação (ZIPES, 2006). No entanto, o caso de Hans Christian Andersen, outro autor muito relevante na área, é pouco diferente do que foi descrito. Ele tem muita importância histórica porque basicamente completou o trabalho dos Irmãos Grimm, ao contribuir para a formação de um cânone da literatura de contos de fadas para adultos e crianças. Seus livros foram lançados na Dinamarca nos anos de 1835 e 1874. Um pouco diferente dos Irmãos Grimm, Andersen desenvolveu seus próprios contos, misturando a linguagem popular e linguagem clássica, e seu esforço foi para sintetizar um estilo que pudesse ser bem recebido por ambas as classes. Ele também tentou sintetizar a

temática dos contos. Andersen era de origem pobre, e durante sua vida, foi inserido na sociedade burguesa. Suas histórias refletiam parte de seu próprio esforço pessoal, que era de repetir algo que ele ouviu nas classes populares mas de uma forma que pudesse ser aceito na sociedade burguesa e que fosse “limpo” o suficiente para ser apresentado para as crianças burguesas. Outra questão fortemente apresentada na obra de Andersen, era a religião. Seus contos conservam referências a Deus, que não podem ser encontradas nas obras de outros autores da época. Um outro ponto que também o diferencia dos demais, é que sua produção começou sendo direcionada para o público infantil, e gradativamente foi sendo escrita para adultos. Na verdade, a sua primeira publicação para crianças, em 1837, foi lançada dentro de livros para adultos. Seu desenvolvimento passou da apropriação de alguns contos populares, para a escrita de contos basicamente originais, onde dificilmente era possível identificar a marca de outros contos orais. A temática dos contos também evoluiu, passando de animais e objetos, para lendas, histórias sobrenaturais e filosóficas. Um pouco antes de Walt Disney entrar na mente e nas casas da crianças de várias partes do mundo, com suas versões dos “clássicos contos de fadas”, outros autores também apresentaram histórias de relevância para a literatura dos contos de fadas. Zipes (2006) indica alguns autores, na Inglaterra, que começaram a dar uma nova forma para os contos de fadas. Entre os mais conhecidos, Lewis Carrol e Charles Dickens, foram responsáveis por introduzir nos contos de fadas, questões mais atuais, relacionadas ao processo de industrialização e urbanização. Porém, foram os autores, George MacDonald, Oscar Wilde e L. Frank Baum os responsáveis por manter o legado dos “contos clássicos”, apenas alterando sua função social de acordo com as novas demandas da sociedade. Nessa época, os contos de fadas passaram por uma grande modificação, deixando de serem vistos como um instrumento para facilitar o processo civilizatório e de socialização, e passando a ilustrar um modelo de sociedade imaginada e alternativa, que trazia uma crítica para diversos problemas encontrados na sociedade da época. É também nesse momento que o conceito de utopia é associado aos contos de fadas. O mundo dos contos de fadas passa a ser um mundo inventado e invertido em relação o mundo real (ZIPES, 2006). Essa mudança está fortemente associada ao desconforto dos autores frente a questões sociais da época. Com o

aumento da industrialização e o reforço dos grandes abismos sociais e desigualdades. Os novos mundos funcionavam então como uma fuga para os problemas e representavam um local onde as pessoas podiam modificar sua realidade e até inventar uma nova. Presentes principalmente na obra de Lewis Carrol e Frank Baum, respectivamente com os livros, “Alice no país das maravilhas” e “O mágico de Oz”, esses traços de um mundo ‘melhor’, diferente do que era a realidade na época, marcaram o conteúdo dos contos de fadas no final do século XIX. É a partir desse ponto, na formação dos contos de fadas, que Zipes (2006) enquadra seu conceito de ‘arte da subversão’ que é essencial para compreender não só as mudanças nos contos como também toda a sua relação de adaptação para novas mídias. Ele chama atenção para uma completa mudança na função social dessas histórias através da construção de universos utópicos, ao invés de funcionarem como instrumentos educacionais, passam a ser pontos de fuga da realidade. Nesse momento várias elementos são modificados, como por exemplo questões religiosas são incluídas em várias narrativas e traços de violência e sexualidade são totalmente expurgados dos contos. Um dado importante também nesse momento, é que as obras atingem além das crianças, os jovens que estão inseridos na lógica industrial, e que estão insatisfeitos com a realidade. E mais uma vez, os contos de fadas deslocam seu público-alvo, só que desta vez, sem deixar de atingir as crianças.

Contos de fadas no audiovisual A tendência que se formou a partir do século XIX é seguida e sustentada por vários autores da época, até que, no início do século XX, Walt Disney traz os contos para o cinema, realizando uma subversão da subversão, e resgatando em seus filmes as funções moralizantes dos contos de fadas. Com Disney, os contos são, de uma vez por todas, higienizados e infantilizados. Apesar de nem sempre ficar claro os autores que serviram de referência para compor os filmes de animação, tendo algumas filmes sido creditados e outros, esses filmes retiram das obras todo o conteúdo considerado sujo e inadequado para crianças, e re-inserem as questões moralizantes e de sociabilidade, só que atendendo agora a uma lógica capitalista e individualista.

Zipes (2006) considera que Disney subverte a subversão que tinha sido feita por Lewis, Baum e outros autores, ao inserir questões moralizantes nos universos utópicos que haviam sido criados. Mas o que faz com que os contos de fadas Disney se destaquem bastante de todos os outros apresentados até então, envolve não só as questões do suporte e meio pelo qual as histórias são apresentadas a sociedade, como também da lógica de consumo e recepção dessas narrativas. A partir dos filmes, começa a ser construída a noção de expansão do universo da narrativa, em outros suportes que não o que está sendo contado a história original, além da grande disseminação de produtos relacionados aos filmes, que vão sendo cada vez mais consumidos pela sociedade, e ganham potencial expansão a partir da década de 1970, com a inauguração dos parques temáticos de Walt Disney e com a expansão do VHS possibilitando o consumo repetido dessas histórias. A esse processo, o autor Alan Bryman (1999), dá o nome de “Disneyzação”, que é a maneira pela qual os produtos e os princípios disseminados pela Disney marcaram gerações em diversos setores da sociedade. Esses elementos são de grande importância para entender como os filmes da Disney serviram de referência para compor o universo diegético da série Once Upon a Time, que se destaca como produto televisivo por se apropriar dos contos através da lógica das narrativas comerciais. Além disso, a contribuição de Walt Disney para o gênero, é inegável. Ele trouxe à vida as imagens do que até então eram personagens imaginados ao longo de diversas gerações e através da tecnologia da imagem e som do cinema, e consolidou a temática no imaginário das pessoas. A contribuição de Disney não só consolidou a temática como abriu as portas para a consolidação da temática em um novo suporte, o audiovisual. Walt Disney, é o nome mais forte relacionado a inserção dos contos de fadas no cinema, apesar de ele não ter sido o primeiro a fazer as adaptações das histórias para o cinema. Desde o início do século XX, alguns filmes, principalmente curtas-metragens foram lançados utilizando contos de fadas como temática. Mas o grande marco do gênero no cinema é do ano de 1937 quando Walt Disney lança o primeiro longa-metragem animado, Branca de Neve, usando como inspiração a história homônima dos Irmãos Grimm. A partir daí uma sequência de filmes foram lançados, compondo a coleção de 15 filmes que são livremente inspirados nos clássicos contos de fadas.

Toda essa coletânea de filmes foi responsável por consolidar ao longo do século XX o gênero contos de fadas como sendo diretamente direcionado para o público infantil. A expansão do VHS e mais tarde do DVD fizeram com que essas obras audiovisuais pudessem ser assistidas e re-assistidas milhares de vezes, resgatam a função de entretenimento familiar que já podia ser encontrada na obra dos Irmãos Grimm. Mas, se até a década de 1990, os contos de fadas estavam basicamente representados apenas no cinema, o que vemos com a chegada do século XXI é um novo movimento mais forte de apropriação dessas histórias, para um outro meio, a televisão. Durante as duas últimas décadas do século XX, algumas obras televisivas surgiram trazendo a temática dos contos de fadas, porém, eram produções de baixa duração, no formato de minisséries e que não tiveram grande expressão de audiência e aderência de público como os filmes da Disney. No entanto, o que vemos com a chegada do século XXI é o surgimento de obras de mais expressividade na televisão, focadas principalmente na lógica da ficção seriada. Também, nesse mesmo momento, no cinema e agora não só nas produções da Disney, essa temática também ganha destaque mais uma vez, porém, compartilhando das mesmas características que estarão presentes nas séries, a saber: a inserção de narrativas flexi-genérica, ou seja, a junção de dois ou mais gêneros narrativos, a mudança no direcionamento de público-alvo, que perde mais uma vez o foco nas crianças e passa a ter mais interesse no público mais velho, e novamente a ressignificação dos contos, trazendo novas versões e alterações às histórias clássicas. Como exemplo máximo de inserção do gênero na televisão, uma série em específico, se destaca porque segue essa nova tendência de adaptação observada a partir do século XXI, mas que além de utilizar das estratégias acima descritas, também insere um novo artifício para recontar essas histórias e fidelizar novos públicos. A série, Once Upon a time, ao invés de ser uma série que tem como gênero os contos de fadas, ela é uma série sobre o gênero, ou seja, seu fio condutor é o gênero, e em cima dele, são contadas as histórias e inseridos novos elementos. Outra grande característica que diferencia essa produção de outras, é o fato de ela não contar as histórias separadamente, conto por conto, como pode ser visto no filmes da Disney e em outras histórias. O artifício narrativo que a série utiliza é de unir todos os contos em um mesmo fio narrativo. Além disso, e o que talvez seja a característica mais interessante da série, é a maneira como ela se apropria de todo o conhecimento prévio que o público tem

sobre as histórias de contos de fadas, para poder inserir novos elementos, despertar curiosidade e subverter o que é contado. Já no primeiro episódio da série é possível perceber que a estrutura narrativa escolhida traz uma proposta diferenciada. A história se passa em dois mundos paralelos, seguindo a estrutura de apresentação das personagens em ambos os universos. Em Once Upon a Time, todas as personagens de contos de fadas foram banidas para uma terra sem magia - o nosso mundo - onde eles não se lembram quem são e nem como foram parar lá, eles vivem uma rotina repetida diariamente, sem que envelheçam ou percebam que estão presos. A história que dá o fio condutor da narrativa, e na qual todas as outras estão conectadas é justamente a mesma que há décadas atrás trouxe o gênero para o audiovisual. Branca de Neve é o conto que rege a narrativa da série. Essa personagem é a razão principal para que todas as outras personagens estejam fora do mundo dos contos de fadas. E algumas das personagens do seu conto, como a Rainha Má e o Príncipe Encantado, formam o núcleo principal de personagens da série que tem sua narrativa composta em torno da tensão entre Branca de Neve e a Rainha Má. Mas para além da Branca de Neve, a série, que se iniciou em 2011, em suas 4 temporadas já apresentou diversos personagens de muitos contos de fadas conhecidos. Entre elas, basicamente todos os filmes lançados pela Disney. Há, no entanto, destaque para algumas histórias, como a de Rumplestiltiskin e a de Chapeuzinho Vermelho, que apesar de serem amplamente conhecidas, a primeira com menos força no Brasil, não foram adaptadas por Disney, mas tem papel importante na narrativa da série.

Conclusão

Apesar da construção histórica do gênero, ao longo dos anos ele poderia ter sido apropriado por outros e ter ser perdido na história. Algumas das razões para ele permanecer vivo até os dias de hoje é que um conto de fadas carrega múltiplos significados e é ressignificado a cada nova versão que é feita dele. Características essas que também estão presentes nos filmes da Disney e na série Once Upon a Time e são essenciais na sua formação narrativa, já que é a partir de ressignificações dos contos que a narrativa se constitui. Jan

Ziolkowski (2009) comenta que além dessa característica, outra grande razão que mantém o gênero vivo é também relacionada a nostalgia. Ele sugere que alguns adultos se aproximam dessas histórias e do próprio gênero, para relembrarem sentimentos da infância. Mas não é só isso, ainda segundo Ziolkowski (2009), uma das maiores características desse gênero é sua interpretabilidade e elasticidade, ou seja, sua capacidade de ser readaptado e manter sua essência. O autor sugere que essa seja, talvez, a principal razão para que essas histórias tenham sobrevivido ao longo de milhares de anos e que também é a resposta para tantas histórias se repitam em diferentes culturas e países. O autor também cita a questão da persistência dos contos de fadas nos dias atuais, e como foi alterada a relação da informação e da palavra escrita. Nesse sentido, ele destaca a questão da adaptação desse gênero para outras formas de entretenimento que não o livro, leiase televisão e cinema. Ele fala também que os contos sobreviveram não por causa das mensagens que carregam, mas por causa da sua capacidade de ser construído em diferente formas. Para entender melhor a maneira como os contos de fadas persistiram durante tantos anos e estão vivos até hoje em diferentes plataformas, Zipes (2006) também nos indica que a recepção desses contos clássicos foi muito influenciada por diferentes situações ao longo dos anos como variantes culturais, diferenças de tradução e ideologias que influenciaram a maneira como as pessoas liam os contos ao longo do tempo. Fato que é de extrema relevância para entender a durabilidade dessas histórias. Ele destaca ainda que, para existir, tanto contos populares e folclóricos quanto os contos de fadas, sempre dependeram de customizações, rituais e valores das sociedades as quais estão atrelados, conservando assim, uma relação direta com a sociedade em que estão inseridos. E por isso, eles podem ser utilizados como fortes indicadores dos níveis de civilização de determinado povo, o que quer dizer, indicar elementos que possam traduzir como é a cultura e ordem social daquela sociedade. Por isso, o sucesso de suas adaptações e reutilizações não depende apenas do conto, como também de seu uso e sua distribuição na sociedade.

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