Narrativas de mulheres a partir do mundo da vida

July 24, 2017 | Autor: M. Paola Mittica | Categoria: Law and Literature, Anthropology of Law, Feminism and Law
Share Embed


Descrição do Produto

DIREITO & LITERATURA Discurso, Imaginário e Normatividade

1

2

André Karam Trindade Roberta Magalhães Gubert Alfredo Copetti Neto (Organizadores)

DIREITO & LITERATURA Discurso, Imaginário e Normatividade

Porto Alegre / 2010 3

© André Karam Trindade, Roberta Magalhães Gubert e Alfredo Copetti Neto (Organizadores)

Capa:

Montagem de capa: André Ressel Editoração eletrônica: Formato Artes Gráficas A revisão final desta obra é de responsabilidade dos autores.

D598

Direito & literatura : discurso, imaginário e normatividade / André Karam Trindade, Roberta Magalhães Gubert, Alfredo Copetti Neto, (organizadores) ; [Ada Bogliolo Piancastelli de Siqueira ... [et al.]. – Porto Alegre : Núria Fabris Ed., 2010. 416 p. ; 16 x 23 cm. ISBN 978-85-60520-66-4 1. Direito na Literatura : Coletânea. 2. Literatura : Aspectos Jurídicos. I. Trindade, André Karam, org. II. Gubert, Roberta Magalhães, org. III. Copetti Neto, Alfredo, org. IV. Siqueira, Ada Bogliolo Piancastelli de. CDU –34:82(082.1) Bibliotecária Responsável : Inês Peterle, CRB-10/631.

Reservados todos os direitos de publicação, total ou parcial, a NÚRIA FABRIS EDITORA Rua Gen. Caldwell, 814 – Menino Deus CEP 90130-050 – Porto Alegre – RS Telefone: (51) 3231-9321 Fax: (51) 3013-3339 E-mail: [email protected] Site: www.livrariafabris.com.br

4

SUMÁRIO

Apresentação .................................................................................................... Direito e a literatura infantil: uma abordagem a partir dos contos de fadas ................................................ Ada Bogliolo Piancastelli de Siqueira, Letícia Garcia Ribeiro Dyniewicz, Marina Delgado Caume e Sandro Vieira de Paula A Teoria do Direito após Auschwitz: notas a partir de “O leitor”, de B. Schlink............................................................... André Karam Trindade “Jura que não dirá a ninguém!” .................................................................... Eligio Resta O tempo e as dificuldades de contar o Direito: a refiguração da experiência temporal através da narrativa identitária............................ Fabiana Marion Spengler

7

9

27

101

113

O que é o narcisismo jurídico? ....................................................................... Fabio Caprio Leite de Castro

133

Direito Penal, literatura e representações ..................................................... Fabio Roberto D’Avila

155

Unrecht [não Direito] ...................................................................................... Faustino Martínez Martinez

165

5

Visões humanistas da justiça em ensaio sobre a cegueira ............................. Joana Aguiar e Silva A controvérsia fática: contribuição ao estudo da quaestio facti a partir de um enfoque narrativista do Direito ............................................ José Calvo González

209

237

Imaginação literária e “Justiça poética” – um discurso da “área aberta”? José Manuel Aroso Linhares

269

Narrativas de mulheres a partir do mundo da vida...................................... Maria Paola Mittica

307

Emoções Racionais........................................................................................... Martha Nussbaum

345

Direito & Literatura: o discurso literário como proposta pedagógica do saber jurídico .......................................................................... Melina Girardi Fachin e Rafael Corrêa

379

Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar: direito ................................................................................ Vera Karam de Chueiri e Carolina Ribeiro Santana

403

6

NARRATIVAS DE MULHERES A PARTIR DO MUNDO DA VIDA* Maria Paola Mittica** Trad. de André Karam Trindade***

1 Por que as narrativas? “O mundo da vida, outro mundo do mundo, conserva a distinção [de sentido e não sentido] como um a priori puramente formal e, por isso, é justo sustentar que, nele, estão contidas todas as possibilidades – toda a ordem e toda a desordem do mundo. Qualquer um que se disponha a ouvir as vozes que vêm daquelas profundezas caóticas deve acertar as contas com o limite que ele mesmo impõe. O limite é a linguagem. Que é idêntica ao mundo: por isso que se pode pensar em *

**

***

Este texto foi lido por Domenico Corradini H. Broussard, a quem agradeço pelas preciosas sugestões. Parte dos argumentos propostos foram apresentados na conferência “La storia delle nozze di Pelopia”, proferida no primeiro congresso da Italian Society for Law and Literature (ISLL), intitulado “Diritto e letteratura. Prospettive di ricerca”, ocorrido na Universidade de Bolonha, nos dias 27 e 28 de maio de 2009. Pós-doutorada em Sociologia (Urbino/Itália). Doutora em Sociologia delle Istituzioni Giuridiche e Politiche (Macerata/Itália). Graduada em Direito (Bolonha/ Itália). Professora e Investigadora da Faculdade de Sociologia da Universidade de Urbino (Itália). Coordenadora da Italian Society for Law and Literature (ISLL) (www.lawandliterature.org). E-mail: [email protected] ou [email protected]. Doutorando em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Italia). Mestre em Direito Público (UNISINOS). Membro Fundador e Pesquisador do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ). Membro da Italian Society for Law and Literature (ISLL). E-mail: andre @ihj.org.br.

307

uma limitação mais drástica e em um silenciar mais profundo, para além do limite”1.

É assim que Sergio Givone introduz a distinção entre linguagem-mundo e mundo da vida, em que a vida é expressa como um oceano infinito e silencioso. E continua: “Também são águas agitadas, aquelas. Em contínuo movimento. As ondas deste oceano tocam as margens da linguagem-mundo e redefinem os seus contornos. Agitação [...] é o incessante trabalho da erosão e da recomposição do limite. Mas agitação também é a impossibilidade de manter o limite”2. Então, por que as narrativas? Porque, embora também sejam uma articulação da linguagem-mundo, elas não temem conservar a inquietude que agita o mundo da vida3. Apenas a arte pode restituir, através das suas narrativas, a dimensão sentimental da existência, criando fendas sobre o movimento aberto e infinito que é a própria vida, e nos induzir a reinventar constantemente o mundo. Neste incessante processo de estruturação das formas, o homem é parte mais ou menos ativa conforme a sua sensibilidade estética. Quer dizer, de acordo com a sua capacidade de acessar e conviver com a inquietude, de se fazer artista de uma nova combinação4. Ao lógos da linguagem-mundo, o mundo da vida conjuga, então, o mýthos, mais problemático e, por isso, mais explicativo, mesmo que nem sempre traduzível em termos de coerência lógica. A narrativa explica, mas também consola do insuprimível silêncio. Une e compensa. É um instrumento de elaboração identitária, individual e coletiva. Assegura, para isso, que o passado não será esquecido e que a possibilidade futura não deixará de ser vislumbrada. O contar histórias proporciona o tempo para a vida, (entre)tendo o tempo do mundo. O mundo da vida é linguagem e narrativa. É uma estrutura certa, mas aberta à inquietude da incerteza, que é a possibilidade de modificação, embora arriscada. Se a linguagem – da filosofia de Wittgenstein em diante – identifica o limite do mundo, à história corresponde a impossibilidade de manter este limite rígido. É bem verdade que este raciocínio não está longe de um pensamento sobre o direito e da ambição pela medida que o direito traz consigo. O direito, entre as instituições do mundo, é a maior respon308

sável por responder às exigências da vida, desde aquelas puramente ligadas à sobrevivência até aquelas ditadas pelo universo das relações. Certamente, o mundo da vida contempla tanto o ius e a lex quanto o não-direito, mas é precisamente nesta juridicité – na qual reside a possibilidade de observar as articulações do direito e do nãodireito também como histórias jurídicas – que se deve buscar a matriz passional da extensão da sua inquietude5. A consciência disso induz a desconstruir criticamente muitas das convicções que sustentaram o pensamento ocidental moderno – que hoje chegou à deriva –, reavaliando outras possibilidades de inteligência que se atenham a perspectivas futuras, na observação do mundo da vida, como da vida no direito e através do direito. Pouco importa que tais perspectivas sejam consideradas científicas no sentido mais ou menos ortodoxo. Do nosso singelo ponto de vista, é suficiente o fato de que estudiosos de muitas disciplinas especializadas que se ocupam do direito – como ordenamento positivo, mas também como ele espontaneamente emerge do tecido social – estejam interpretando-o, cada vez mais, como uma linguagem entre outras e comecem a levar em conta também o não-direito, precisamente porque ele é um silêncio rumoroso da vida que se impõe escutar. Um silêncio que é o mesmo que reside nas escolhas trágicas que o direito deve fazer. Mais que a certificação de ciência, portanto, nos interessa percorrer um caminho com o método rigoroso de quem pode contemplar também as feridas da lucidez, para satisfazer as exigências de uma compreensão capaz de sugerir possilidades para a vida.

2 O mýthos A escolha por contar mais uma vez, aqui, a saga dos Pelópidas é decorrente principalmente da atualidade das instigações que esta suscita no pensamento jurídico e político contemporâneo. Se somente é possível imaginar o significado e as funções deste mito na antigüidade e na sua tradução mais célebre, reconstituída por Ésquilo na Orestéia, podemos ao contrário tentar investigar com maiores esperanças de sucesso o valor que este mito tem atualmente, enquanto assistimos às 309

leituras que dele são feitas, em particular através das Eumênides, volume no qual os estudiosos do direito encontram as origens do processo ou do princípio da individualização da culpa, ou ainda onde alguns filósofos políticos buscam as origens do lógos cidadão. O objetivo é analisar esta narrativa do passado aproveitando as sugestões e as dimensões cognitivas que oferece ao público nos dias de hoje, descontextualizando-a e, assim, restituindo-lhe a intrínseca autonomia temporal e espacial que é própria dos mitos e, ao mesmo tempo, relendo-a na medida do possível em sua inteireza, sem desconsiderar a reconstrução esquileana acerca da última geração. Nesse contexto – é bom destacar – não se esquece a lição hoje clássica de Kirk sobre a falácia de quem tenta universalizar as características da narrativa mítica e, da mesma forma, que os mitos gregos são fruto particular de uma cultura que é aquela da Grécia Antiga. Mais ainda: tomando emprestada de Kirk a definição de mito como “narrativa tradicional”, observamos que não apenas os mitos são narrativas narradas predominantemente em sociedades fundadas sobre a tradição (o que significa, sobretudo, em sociedades arcaicas), mas também que conseguiram se tornar tradicionais. Não é qualquer narrativa, nem mesmo numa sociedade narradora de histórias e arcaica, que irá se tornar tradicional e ser transmitida de geração em geração. Para que isso ocorra, uma narrativa deve possuir alguma característica especial, alguma qualidade duradoura que a distingua da anônima massa das narrativas perecíveis. Em suma, muitas narrativas que se inserem em uma sociedade tão solidamente a ponto de se tornarem tradicionais devem possuir sejam dotes narrativos excepcionais, seja uma clara relevância funcional em face de algum aspecto importante da vida, que ultrapasse o simples entretenimento6. Eis, aqui, o ponto: o mito dos Pelópidas ainda não exauriu a sua tradição, ao menos não na cultura ocidental e, em particular, no campo jurídico e político. Este é o motivo pelo qual é preciso entender por que, ainda hoje, o mito continua a atormentar. A história é longa7. Começa com Tântalo, que reina sobre a Lídia, a Frígia, o Monte Ida, a planície de Tróia e a ilha de Lesbos. Não contente com as suas imensas riquezas nem com o fato de ser protegido por Zeus e poder participar dos banquetes no Olimpo, um dia decide 310

convidar os deuses à sua mesa, como se fossem seus pares. O rei mortal quer desafiar os numes. Não é, portanto, por zelo excessivo, mas sim para colocar à prova a onisciência de Zeus, que Tântalo corta em pedaços o filho Pélops, o ferve em um caldeirão e serve a sua carne à mesa, violando explicitamente a proibição divina de oferecer sacrifícios humanos. Horrorizados, mas compreendendo a natureza da comida que lhes foi servida, todos os deuses se abstêm de comer, exceto Deméter que distraidamente consome a carne do ombro esquerdo de Pélops. Por este e por outros delitos, Tântalo é punido com a destruição de seu reino e condenado, após a sua a morte, a ser lançado no Tartaro, vítima de um suplício eterno8. Todavia, o fato que realmente dá início à narrativa não é a danação de Tântalo, mas as particulares circunstâncias que dizem respeito ao modo como o menino retorna à vida. O pai do Olimpo, preocupado com a situação e ordenando um rito aos deuses, manda construir para Pélops uma espádua de marfim sólido, que possa substituir o ombro comido por Deméter. O menino renasce com tão esplendorosa beleza que Posídon se apaixona por ele, o leva consigo e o torna seu amante, nutrindo-o com ambrosia. Não se dá conta de que o menino tem um ombro de marfim até o dia em que morre Niobe, a irmã, e ele desnuda o peito para chorar por ela. Uma vez de volta entre os mortais, após herdar o trono do pai, o filho de Tântalo é perseguido por Ilo, rei de Tróia e seu tio, que o considera responsável pelo rapto do filho Ganimedes. Assim, é constrangido a retirar-se para além do mar Egeu, chegando a Élide, onde decide estabelecer-se e fundar seu próprio reino. Mas ali já existe um rei, Enomau, com quem deve se confrontar. As circunstâncias deste evento apresentam-se muito interessantes em relação à conquista e à conservação do poder. Enomau tem três filhos homens e apenas uma mulher, a belíssima Hipodâmia, a quem condena permanecer solteira. Um oráculo previu que seu genro o mataria, mas Enomau não a deixou casar porque estava apaixonado por ela e a queria somente para si. Para impedir seu casamento, Enomau – famoso por possuir os cavalos mais velozes da Élide, presente de Ares – desafia cada pretendente numa disputada corrida de bigas e sempre 311

vence. A cada corrida, ele coloca em disputa a própria vida e seu poder. Quem conseguisse tirar-lhe Hipodâmia, assumiria o trono. Quando Pélops chega, sobre as portas do palácio, estão pregadas as cabeças dos doze (alguns dizem treze) pretendentes que desafiaram Enomau. A imagem introduz o fio condutor – que se manifestará cada vez mais no transcurso da narrativa – entre o poder soberano e a posse sexual, freqüentemente violenta, do corpo feminino, precisamente pelo fato da supremacia de Enomau, explicitamente ilustrada através do símbolo da vitória sobre os pretendentes de Hipodâmia, colocado sobre as portas do palácio como advertência a cada um que tentasse ameaçar o equilíbrio do seu poder. Os excessos de Enomau – que violenta a filha, extermina seus pretendentes e com isso se compraz “loucamente”, a ponto de querer construir um templo de crânios humanos – não agradam, porém, aos deuses. Assim, o pedido de Pélops a Posídon da biga mais veloz do mundo, apelando à memória do amor entre eles, é feito no momento mais oportuno. Desnecessário dizer que rapidamente o nosso protagonista se encontrará na posse de uma biga de ouro, puxada por incansáveis cavalos alados, capazes de correr inclusive sobre o mar. Não obstante isso, ele decide enfrentar a prova recorrendo também a uma fraude. E, aqui, entra em jogo Mirtilo, o auriga de Enomau que está secretamente apaixonado por Hipodâmia e que não apenas jamais ousou opor-se ao soberano, mas foi, de fato, o seu maior cúmplice e rival, uma vez que é ele quem cuida da biga e a conduz durante os desafios. Percebendo a fraqueza de Mirtilo, em troca de ajuda, Pélops lhe promete a metade das terras e a primeira noite de núpcias com a esposa. Ocorre que, paralelo a este pedido a Mirtilo, concorre outro feito por Hipodâmia, que se apaixonou por Pélops e, para que este possa vencer seu pai, promete uma notável recompensa ao auriga a fim de que encontre um modo de perder a corrida. Cercado pelos dois lados, Mirtilo procede à sabotagem da biga. E, durante a corrida, antes que Enomau possa golpear Pélops, a biga se desmonta, e o rei é arrastado pelos seus próprios cavalos. Depois da morte do soberano de Élide, os três cúmplices preparam-se para uma viagem pelo mar. A noite está por chegar e, com ela, o prêmio de amor de Mirtilo. O pacto feito entre os homens não 312

agrada, porém, à filha de Enomau. Com um estratagema (diz-se que havia sete), a mulher afasta Pélops e, quando ele retorna, acusa Mirtilo de ter tentado violentá-la durante a sua ausência. Isto o quanto basta para que Pélops se desembarece do novo rival, não obstante o auriga lhe exigisse o cumprimento do acordo que fizeram. Hipodâmia, portanto, trai o pai e Mirtilo, escolhendo de fato o seu esposo. Por outro lado, Pélops usa o rancor das mulheres para instaurar seu próprio poder, a partir, mais uma vez, simbolicamente da exclusiva posse sexual do corpo femino. A história de Pélops continua com a conquista de boa parte do território da península que receberá seu nome, mais precisamente Peloponeso. Não faltam episódios de crueldade como o assassinato à traição de Estinfalo, rei da Arcádia, ao qual segue o massacre do corpo, que é partido em pedaços e espalhado por todo lugar, provocando a penúria na Grécia. Mais interessante é, todavia, observar como da união entre Pélops e Hipodâmia, cujos corpos foram ambos violentados por seus pais, resulte uma descendência que, desde a primeira geração, é marcada pelo delito entre consagüíneos. Diz-se que deste casamento nasceram muitos filhos. Aqueles que, em sua grande parte, tocam à nossa história são Tiestes, Atreu e Crisipo, dos quais apenas os dois primeiros são legítimos, enquanto o terceiro nasce fora do casamento. Crisipo morre talvez por força dos dois irmãos, instigados pela mãe, que teme que o marido possa nomeá-lo seu sucessor no lugar dos filhos legítimos9. Os dois Pelópidas encontram asilo em Micenas, graças a uma irmã deles que se casou com Estenelo, rei da cidade. Com a morte do soberano e do seu sucessor, Euristeu, uma vez deserto o trono, um oráculo indica aos miceneus o possível novo soberano entre os dois Pelópidas. A disputa pelo poder daqui em diante é caracterizada por uma luta sem limites. Nas tramas da rivalidade pelo trono de Micenas, surge a história do velocino de ouro, cuja posse se torna símbolo de uma virtude superior, que serve para o reconhecimento do domínio sobre a cidade. Atreu prometeu sacrificar para Atena o carneiro mais lindo do seu rebanho. E, assim, é colocado à prova. Por meio de Pan, mais provavelmente da própria Atena, um carneiro com lã de ouro é introduzido 313

no rebanho que Atreu e Tiestes herdaram do pai. O primeiro, Atreu, o reivindica. Todavia, para demonstrar sua fidelidade, ele sacrifica a carne do animal, guardando para si a parte mais preciosa, isto é, o velocino. Desse modo, Atreu não cumpre a promessa feita à deusa, porque o seu desejo é mais forte, e de fato a desafia, convencendo-se estupidamente de que Atena não se dará conta do logro ele lhe fez. Na origem da luta fratricida pelo trono de Micenas está, portanto, a punição divina pela pretensão de desafiar os deuses, tal como ocorrera com Tântalo. O comportamento de Atreu é, freqüentemente, representado como excessivo e, ainda, como estúpido. Ele se exibe com o velocino em público, provocando uma tal inveja, sobretudo no irmão, que Tiestes o trairá para tomar-lhe a posse. O ponto central é o modo como isso ocorre. Tiestes seduz a mulher de Atreu, Aerópe – descrita como uma mulher de passado ambíguo –, e com a ajuda dela, que lhe provém por tê-la possuído sexualmente, Tiestes conquista o velocino. Tal velocino está, assim como é descrito no mito, intimamente conexo ao trono de Micenas10. Em seguida, Tiestes é submetido à prova por Zeus, o qual lhe propõe que aposte ter o poder de desviar o curso do sol. Em disputa, está a abdicação do trono em favor de Atreu. Seguro da própria força, Tiestes aposta, pecando incautamente pelo excesso. Assim, resta-lhe perder e deixar o reino de Micenas novamente para o seu irmão. Daqui em diante, a disputa deixada à esfera humana torna-se uma guerra privada entre os dois Pelópidas. Não satisfeito com o trono, assim que Atreu percebe a traição que se consumou na sua cama, inicia um plano de extermínio de todos os filhos homens de Tiestes, legítimos e ilegítimos, por vingança, mas também para evitar qualquer repercussão sobre a sua descendência e assegurar-se do domínio pacífico de Micenas. Repetindo, então, o delito de Tântalo, o mito narra que Atreu mata todos os filhos de Tiestes e, ao convidá-lo para um encontro, sob o pretexto de fazerem as pazes, os serve à mesa, reservando-lhe também um banco sob o qual havia um vaso com as cabeças, as mãos e os pés de seus meninos sangrando, a fim de que Tiestes pudesse reconhecer a carne daqueles que havia comido. Contudo, a saga dos delitos está recém no seu início. Tiestes, de novo exilado de Micenas, retira-se para Sicione, onde vive Pelópia, uma 314

das suas filhas, que é sacerdotisa de Atena11. Sedento pela vingança, Tiestes soube através do oráculo de Delfos que esta filha poderia dar-lhe um novo vingador. Uma nova violência se consuma, então, entre um pai e uma filha, passando pela posse de um corpo feminino que deverá ser instrumento para a conquista do poder soberano. O fato é apresentado rapidamente, mas é interessante mencioná-lo em razão de alguns detalhes que servem para compreender o desenvolvimento desta complexa narrativa. Tiestes violenta Pelópia com o rosto escondido sob uma máscara; ela rouba-lhe a espada e a guarda. Quando se dá conta do furto, Tiestes foge, temendo ser descoberto pela filha. Nesse mesmo período, Atreu também consulta o oráculo, preocupado com as repercussões que poderia sofrer por parte do irmão em conseqüência do seu delito. O conselho é de que também ele se retire para Sicione, onde deveria interceptar Tiestes, caso este não houvesse fugido, e onde deveria esperar por um destino “reflexo” àquele do irmão: apaixonar-se pela sobrinha e esposá-la sem conhecer nem a sua verdadeira identidade, nem o seu estado de mulher grávida12. Com a chegada ao término natural da gravidez, Pelópia dá a luz ao filho de Tiestes e o abandona, sorrateiramente, para não pertubar o casamento. Trata-se de Egisto, que não apenas escapa da morte, mas é restituído por seus salvadores a Atreu, que, convicto de que este seja seu filho, o cria junto aos dois filhos que teve em seu casamento anterior: Agamêmnon e Menelau, os Atridas, cujas histórias constituem muita matéria do canto épico e da tragédia. Passados alguns anos, no caminho de Delfos, Tiestes é capturado por Agamêmnon e Menelau, enviados à procura do tio porque uma série de más colhetias resultou graves problemas em Micenas. Uma vez preso, sem saber do vínculo entre Tiestes e o seu presumido último filho, Atreu ordena a Egisto, de apenas sete anos, que mate Tiestes enquanto este está dormindo. A tal ato, todavia, está reservado o fracasso, e não poderia ser diferente, em face do destino ao qual Egisto está fadado. Tiestes desarma o menino e, ato contínuo, reconhece a espada com a qual está prestes a atravessá-lo: é a sua derrota em Sicione, o longínquo dia em que violentou a filha para ter dela seu próprio vingador. Assim, percebe que Egisto é seu filho ainda antes que este lhe revele ter pegado a arma da sua mãe, Pelópia. Para se certificar 315

disso, sem revelar-lhe a própria identidade, Tiestes o manda chamar sua mãe, que ao chegar ao local descobre a verdade e se mata por ter sido filha, amante, mulher legítima e mãe de uma mesma estirpe, voltada à autodestruição. O mito também se concentra sobre Egisto – o filho colocado no mundo para matar –, que está aprendendo a violência através do medo e da dor. Medo de Atreu, que lhe manda matar; medo de Tiestes, que o ameaça de morte; dor e horror diante do suicídio da mãe. Mas a conquista do poder continua. Tiestes ordena a Egisto, ainda, que leve a arma suja com o sangue de Pelópia até Atreu, de modo que este se convença de que o irmão foi morto pelo menino. Depois, revela a sua identidade ao filho e o recorda do seu dever. Assim, Egisto mata o tio e restitui o trono de Micenas ao seu verdadeiro pai, Tiestes. Alguns anos mais tarde, quando chegam à idade adulta, Menelau e Agamêmnon matam Tiestes, fazendo com que Egisto fuja. Aqui, conclui-se a primeira parte da narrativa, que se reabre sobre o cenário da última geração, quando o governo de Micenas está nas mãos dos Atridas13. Na segunda parte do mýthos dos Pelópidas, muito mais conhecida graças à reconstrução esquileana que a imortaliza com a trilogia da Orestéia, nos limitaremos a descrever os principais fatos do enredo. Agamêmnon e Menelau casam-se com duas irmãs, filhas do rei de Esparta. O primeiro casa-se com Clitemnestra, após matar seu marido, e com ela terá Orestes, Electra, Ifigênia e Crisotemi; o segundo, por sua vez, casa-se com a irmã Helena, ainda virgem, herdando assim o reino de Esparta. Durante a guerra de Tróia, a prolongada ausência de Menelau e de Agamêmnon, oferece a Egisto a possibilidade de tramar a sua vingança contra a casa de Atreu e retomar a posse plena de Micenas. Mais uma vez, a conquista do poder coloca-se de modo habitual. Egisto torna-se amante de Clitemnestra e, com a ajuda dela, projeta o homicídio de Agamêmnon, que é morto quando retorna da guerra de Tróia. Orestes, o único filho de Agamêmnon, é afastado da sucessão pelos novos soberanos, e as duas filhas são impossibilitados de procriar outros vingadores. 316

Todavia, por trás do pedido de Apolo, o filho de Agamêmnon retorna e vinga a morte do seu pai, para depois se retirar em Delfos, onde encontrará proteção e lhe será indicado o caminho da purificação. Como sabemos, existem diversas tradições narrativas14. Aqui, seguimos aquela de Ésquilo que conta a história introduzindo algumas reelaborações significativas. Antes de tudo, em Agamêmnon, somente Clitemnestra é quem mata Agamêmnon, porque o destaque é conferido sobre a qualidade de homicida da mulher. No que diz respeito, por sua vez, à vingança de Orestes sobre sua mãe, Ésquilo utiliza a versão do matricídio combinada com a encenação de um dilema jurídico que é apresentado através da instituição do primeiro e mais célebre tribunal popular nas narrativas da cultura jurídica ocidental: o Areópago. As personagens deste processo estão impressos na nossa memória: Orestes é o imputado; as Erínies assumem o papel da acusação; Apolo desempenha a função da defesa; o júri dos sábios, escolhido por Atena, deve julgar o mérito do delito. A busca da verdade realiza-se através de um inflamado contraditório entre as Erínies e Apolo, do qual emergem as razões de uma velha ordem, que legitima a violência ilimitada, em contraste com as razões da nova ordem cidadã, que defende a possibilidade de limitar tal excesso. Encerrado o contraditório, os jurados dão o seu voto para decidir se Orestes deve ser punido, e o voto de Atena – que se manifesta em favor da inocência do imputado – será determinante para o deslinde final. Então, o filho de Agamêmnon é absolvido, podendo voltar para casa e governar, finalmente, seu reino em paz, eis que a polis assumiu para si o monopólio da violência, estabelecendo um novo culto para as Erínies, que, deste momento em diante, serão evocadas como Eumênides. 3 O corpo do soberano Em um recente trabalho, Eligio Resta reconstrói aquela que poderemos definir como a idéia originária do direito vivente15. Nele, resgata as origens do direito; para os gregos, o nómos é èmpsychos, ou é o “corpo” que incorpora a “alma”. Esta alma é aquele componente do mundo que vive de “autonomia” no que diz respeito à sua determinação “material” e contingente16. 317

Se o mundo é corpo, a alma é o vivente do mundo. “O mundo da vida, outro mundo do mundo”, conforme referido no início17, parece, portanto, uma idéia muito próxima a esta do corpo que incorpora a vida. Colocando o nómos no interior da relação entre corpo e alma – continua Resta –, a filosofia antiga definia uma dialética complexa entre direito e vivente, que o pensamento auto-imunizante do direito foi perdendo, na tentativa de reduzir o direito, primeiro, “àquele corpo mortal que exclui toda relação com a sua alma” e, sucessivamente, na modernidade, em virtude de uma transformação mimética, à “alma sem corpo”. É preciso voltar a assumir consciência desta complexidade, para compreender as contradições que “animam” o direito, a partir daquelas mais manifestas que interessam à soberania da lei e à relação desta com a justiça e a política18. É possível fazer isso através de um testemunho filosófico propriamente, mas, tratando-se de um pensamento do mundo da vida, pode-se apreendê-lo talvez ainda melhor mediante uma narração. O mito dos Pelópidas nos conta as origens mais remotas do nómos èmpsychos, quando ainda não existe uma idéia abstrata de nómos, e o momento em que se forma o conceito de lei soberana, da qual a pólis é portadora e instrumento. Mas nos conta também algo mais, concentrando-se sobre o universo feminino, que a filosofia não contempla. E é precisamente em torno deste ponto que se adensam os prenúncos do nómos èmpsychos, acompanhados da consciência da impossibilidade para o nómos de compreender de uma vez por todas e para sempre o vivente. Nas várias vicissitudes da narrativa, evidenciam-se duas dimensões fundamentais. Uma consiste no desafio entre homens e deuses, que, cada vez que se coloca, resulta sempre na derrota dos mortais e na sua condenação a acertar as contas com o excesso que os fez ousar ultrapassar o seu limite. A outra dimensão diz respeito à posse sexual das mulheres como meio através do qual se conquista e se conserva o poder, além do acesso à soberania. Retomemos a história em suas passagens mais significativas. Na origem está o excesso. Não contente em ser tratado quase como um igual, Tântalo desafia os deuses superando a medida concedida a um mortal. Mas perde, provocando nos deuses uma reação que condicionará para sempre a sua descendência, pois, embora seja ele quem é 318

condenado ao suplício eterno, a verdadeira danação é aquela que sofre seu filho, no qual estará encarnado o sagrado (a espádula de marfim): uma parte excedente, fonte da contínua ambição por superar o limite. Então, Zeus “recoloca no mundo” Pélops, atribuindo-lhe o excesso reservado por Tântalo aos deuses, que se perpetuará de geração em geração19, reproduzindo-se nas relações entre os homens – e não somente entre consagüíneos – sob a forma de loucura, de violência incontida e autodestrutiva. A narrativa dos Pelópidas está entre as mais antigas da cultura ocidental a respeito dos homens e a sua relação com a medida, começando a partir de um corpo sagrado que “dá a vida” encarnado no corpo de um mortal. O homem sai derrotado da relação com o divino porque não pode ver mais longe do que seu próprio olhar. Para além do seu campo visual, da sua capacidade de dar formas e significados, ele torna-se cego, enlouquece. O sagrado é mistério. É percebido como aquela vida que está no interior do mundo sem que possa ser vista, que não é compreensível nem pode ser retida. Trata-se de uma dimensão insuprimível do mundo, uma atração fatal que se deseja a qualquer custo e, ao mesmo tempo, se teme e se precisa controlar. Para fazê-la sua, o homem deveria individualizá-la, contê-la, compreendê-la; mas, ao contrário, ele não a acessa, assim como dela está impregnado e a ela não pode renunciar. Então, tende ao excesso e se torna violento assim que ultrapassa os limites das próprias referências, adentrando ilusioriamente no território do sagrado, que não pode revelar-se a ele senão como reflexo da sua própria violência20. Na reelaboração deste caráter do humano no curso da história dos Pelópidas, chegamos ao capítulo de Enomau e do seu casamento com Hipodâmia. O mýthos nos conta o modo como a violência se expande nas relações entre os homens; o modo como, frustrado no próprio desejo de resolver o enigma da vida, o homem dá vazão à avidez insaciável que desenvolveu nos confrontos com seus semelhantes; e o modo como o sentimento de falta e a violência que dele advém são idênticos em qualquer um, provocando potencialmente a luta de todos contra todos. Os protagonistas do evento são os homens. No centro da disputa pela conquista das terras de Enomau, está a posse sexual de Hipo319

dâmia, na qual se encontra encarnado o poder do pai sobre Élide (perpetuado por ele mesmo que se deita com a filha), e que Pélops deve fazer seu. O ponto é que Hipodâmia não é somente um objeto-símbolo. A personagem é construída de modo a introduzir sobretudo alguns dos traços do feminino em relação ao masculino. Hipodâmia é descrita como uma mulher de caráter autônomo, capaz de escolher o próprio destino, subtraindo-se à posse masculina – primeiro, nos confrontos com o pai; depois, com Mirtilo; e, por fim, em certa medida, também com Pélops –, e desse modo limitando o poder dos homens que, na verdade, também a violentam. Outro destaque recai sobre a forma da sua inteligência, que se serve de estratégia que não é percebida nem compreendida pela inteligência masculina, que é precisamente “contornada” através de subterfúgios, enganos, argumentos persuasivos21. Por meio desta figura, começa-se a delinear, rapidamente, uma tipificação do feminino como “outro” em relação ao masculino. Ou melhor, como o “outro” do masculino. Disso resulta o caráter evasivo do feminino, que justamente por ser incompreensível para os homens se traduz como limite do masculino, atraindo sobre si o desejo de posse até mesmo pela violência. Este é o início – tendo em vista o que ocorre no transcorrer da narrativa – da narração de um progressivo aparentamento do sagrado com o feminino. Do mesmo modo que o sagrado é irredutível ao homem, o feminino se coloca como irredutível ao masculino. E mais: o sagrado e o feminino, em face desta impossibilidade de ser reduzido ao masculino, representam o limite contra com qual se confronta o homem e, paradoxalmente, amplificam o seu potencial violento. Dito isto, o mito não explica, todavia, o vínculo entre o feminino e o poder. Por que no centro de uma disputa pelo domínio sobre um território existe uma mulher? Por que Enomau, para conservar o seu poder, deve continuar a possuir o corpo de Hipodâmia? Na narração dos eventos da geração sucessiva, a narração se complexifica, oferecendo elementos que consolidam as hipóteses já expressas e introduzindo novas iniciativas para reflexão. Na verdade, com os temas do desafio nos confrontos com os deuses, da disputa pelo poder entre homens – feita através do corpo das mulheres –, aparece, embora apenas esboçada, a dimensão da soberania. 320

A geração é aquela de Atreu e Tiestes, que, fugidos de Élide, lutam pelo reino de Micenas. Como vimos, o mýthos elabora o mais iluminante das intrigas: o desafio entre deuses e homens é, ora, entre Atena e os Pelópidas. Ao verificar a devoção de Atreu, Atena decepciona-se e “devolve” o excesso ao circuito dos dois irmãos, que passam a se ultrajar violentamente. O centro da disputa é o carneiro com lã de ouro: o corpo sagrado introduzido no rebanho dos Pelópidas pela deusa, que não lhe é sacrificado completamente e se torna, “via reflexa”, o objeto do desafio entre Atreu e Tiestes. Este desafio não é uma luta que se limita à apropriação de um domínio: é finalizada com a conquista de um reino. Ao contrário do que ocorre na disputa entre Pélops e Enomau – em que o poder está todo dentro da ordem familiar do sangue, expresso também simbolicamente no incesto entre pai e filha –, aqui emerge a necessidade dos cidadãos de Micenas de estabelecer um novo rei que seja guia e protetor dos interesses comuns. A dimensão da disputa se desloca, então, da ordem familiar àquela comunitária. Quem possuir o velocino será reconhecido como soberano. Todavia, também aqui, como já vimos, Tiestes não conhece outro caminho para vencer Atreu senão aquele que passa pela conquista da sua mulher. No centro da disputa pela soberania existem, portanto, dois corpos: o velocino e o corpo de Aerópe. Ambos são objetos de conquista e meio para a soberania. A narrativa cria, em outras palavras, uma explícita ligação entre sagrado, feminino e soberania, contando como o poder soberano está em jogo na conquista destes corpos. Trata-se, nesse contexto, de uma conquista violenta e de um controle meramente ilusório em cada detalhe da narrativa. O velocino é desde a origem um presente envenenado, ambíguo: mesmo com a investidura real, ele é destinado a provocar o excesso de Atreu e a disputa entre os dois irmãos. A mesma característica marca Aerópe, descrita como “uma mulher de passado ambíguo”. São corpos que não podem ser possuídos completamente e em via exclusiva. Por isso, a soberania caracteriza-se pela instabilidade e provisoriedade, justamente porque funda o seu poder sobre a pretensão de controlar aquilo que não pode conter nem compreender. 321

Não obstante a ulterior definição do vínculo entre sagrado, feminino e poder soberano, o mýthos ainda não responde ainda à pergunta fundamental: o que soberano não pode compreender, mas tem a pretensão de controlar? Sobre este pano de fundo, verifica-se a impossibilidade de evitar esta tensão, que conduz a uma violência que aumenta progressivamente, levando a uma hemorragia fraticida, que não permite a existência da cidade. Na luta dos dois irmãos que se matam pelo poder estão simbolizados, na verdade, tanto o sistema vingativo, próprio da ordem familiar, que não foi superado, quanto o vínculo “fraterno” que caracteriza as relações entre os cidadãos: unidos no interior da comunidade e iguais em relação ao exterior em virtude desse co-pertencimento que os identifica. Isto fica claro e se compreende bem na trama dos eventos sucessivos, quando Atreu retoma o comando, manda massacrar todos os filhos de Tiestes e se expõe, ele mesmo, ao revide do irmão. E, aqui, surge outra mulher: Pelópia, filha e sobrinha consanguínea, feita objeto de posse sexual de ambos e por meio de quem nasce um novo homicida, predestinado à cadeia dos delitos familiares. A disputa pela soberania é resultante de uma vingança fraticida que não tem sentido no contexto comunitário. No centro, existe sempre uma mulher a ser possuída. Mas, dessa vez, o quadro se complica ainda mais. A começar porque o nome “Pelópia” é sinal da vontade de reforçar a identidade da mulher como uma Pelópidas. O elemento da consanguineidade fortalece a imagem de uma violência que se amplifica “no interior” de uma cidade, ainda impregnada na ordem familiar, assim como a principal função atribuída à mulher, ou seja, aquela de dar a luz a um novo vingador de Tiestes. O primeiro êxito que parece sugerir o mito está nesta imagem de um caminho sem saída a que chega a possibilidade da comunidade quando a disputa se torna vingança sem chance de composição. Outros dados mais interessantes que versam sobre o lado feminino decorrem da história pessoal de Pelópia, apresentada como uma personagem completamente diferente das mulheres que a precederam. Em primeiro lugar, Pelópia sofre a violência sem, posteriormente, utilizar-se 322

de “artifícios”22. Do mesmo modo, ela não escolhe e nem escapa. É, ainda, uma sacerdotisa que sofre violência para dar vida a um vingador, sendo obrigada a abandonar o templo após seu casamento com Atreu. O primeiro traço remete à idéia de que Pelópia não tenha um caráter em forte contraste com o masculino porque não quer ser relacionada com o “outro” do masculino nem representar um limite para o homem, talvez já superado. O excesso sobre Pelópia manifesta-se através de dois eventos entre eles fatalmente cruzados: o fato de ser violentada com a finalidade de colocar no mundo uma vida que advém para ser a continuidade do pai (Tiestes) – e somente nisso encontra o próprio significado –; e o fato de ser afastada do templo com o casamento, embora por amor. Neste evento absurdo, em se mesclam a vingança de sangue entre os dois Pelópidas com a disputa pela soberania – colocando no centro, mais uma vez, uma mulher –, o mýthos começa a formular uma resposta sobre “aquela coisa” que o soberano não pode compreender, mas deve controlar para poder exercitar o seu poder. O vivente, o enigma do sagrado, passa pelo corpo das mulheres, que, por isso, deve se tornar objeto de controle por parte do soberano; e o modo como isso se concretiza na narrativa, no caso de Pelópia, é o casamento, que a obriga a abandonar o templo. As núpcias servem, em outras palavras, para controlar o vivente, ao qual os homens têm acesso somente através das mulheres. Nesta representação, Atreu e Tiestes são duas faces do caráter masculino, e o casamento surge, sobretudo, pela exigência masculina de estabilidade na relação com o feminino, em virtude da sua regeneração. A questão é que se trata de excesso, pois o homem constrange o vivente no interior de uma moldura artificial; empossa-se do corpo das mulheres, fazendo dele o “seu” caminho para o sagrado; e se legitima através de um pensamento que se torna progressivamente unívoco. Um último dado narrativo: tomada pelo horror em face de toda a violência que tem diante dos olhos, Pelópia se mata e não por acaso com a espada que tinha sido do pai, ora nas mãos do filho, destinada pelos Pelópidas ao seu próprio sangue. Este pareceria o fim natural deste evento. Todavia, o fato de Pelópia se matar não é pouco significativo e é em torno deste último ponto que talvez haja alguma coisa a mais para ser entendida. 323

A própria personagem de Pelópia, que tem todas as características que permitiriam ao masculino se apoderar finalmente daquilo que não domina, no momento em que parece desaparecer, introjetada pelo masculino, realiza o maior ato de autonomia ao tolher a própria vida. Suicidando-se, Pelópia “elimina” o corpo feminino e deixa o homem sozinho, sem limite, à mercê do seu excesso, que envolve qualquer ordem, seja a da familia, seja a da comunidade, enquanto persegue, paradoxalmente, a vida. Assim, restitui ao sagrado o próprio enigma e ao feminimo o fato de ser alteridade e limite visível para os homens no mundo da vida. Através de Pelópia, o mýthos desvela a única verdade que pode ser dita, ou seja, que a aposta fundamental pela sua vida e da sua cidade, a ser feita pelos homens, está na capacidade de mensurar o próprio excesso. É isto que os Pelópidas não compreenderam e, então, após a morte de Pelópia, voltam a se confrontar diretamente com o sagrado sem que o seu limite possa ser estabelecido. Nos templos sem proteção o homem não pode senão se autodestruir.

4 O matricídio oportuno Uma vez que os Pelópidas confrontam-se com o sagrado, o mythos está pronto para contar um nova narrativa, que é aquela da soberania da lei e da cidade. É Ésquilo quem conduz a obra nesta direção com a trilogia da Orestéia23. O ciclo da vingança recomeça quando o filho de Tiestes, o vingador nascido de Pelópia, torna-se adulto. A disputa tem como objeto o governo de Micenas. A alteridade reencarna no feminino, mais uma vez no corpo de uma mulher aparentada com o sagrado, Clitemnestra, caracterizada como o demônio24. A conquista do reino se coloca, agora, segundo o esquema canônico da posse sexual da esposa do soberano, que o trairá, favorecendo os planos de seu amante. Todavia, o poder que é atribuído ao feminino se transforma. Na Orestéia, em particular em Agamêmnon, Clitemnestra não recorre ape324

nas às armas habituais das mulheres, movendo os fios atrás dos bastidores, mas assume para si uma violência que é igual àquela masculina, tanto que mata com as próprias mãos o esposo soberano. Às estratégias de Hipodâmia e à rebelião final de Pelópia, acrescenta-se na personagem de Clitemnestra a capacidade de valer-se das mesmas armas de quem a violentou, matando-lhe, primeiro, o marido e, depois, a filha (Ifigência) para sacrificá-la a Atena. Em outras palavras, surge uma espécie de mímese entre feminino e masculino como violência que não oferece mais caminhos de saída. O corpo do soberano se subtrai, se rebela e, ao final, mata o próprio soberano. A mulher não é mais o limite da violência, mas se torna ela mesma violência. Após o suicídio de Pelópia, não existe mais espaço para a possibilidade da medida. O homem fracassou; então, morre. E, com ele, morre a cidade. Ao matar Agamêmnon, Clitemnestra conduz até o ápice a impossibilidade da polis, uma vez que, na representação de Ésquilo, Agamêmnon não é somente o esposo que a violentou para assumir o trono, mas é a encarnação do bom soberano para a cidade: aquele que respeita uma lei superior e, por isso, percebe o sentido do limite. Em torno deste núcleo narrativo, sob a escolta da necessidade de impor distância do insondável sagrado e lançar a aposta de limitar a violência, Ésquilo introduz a tese fundamental segundo a qual a soberania não é a conseqüência “material” do reconhecimento do poder conquistado pelos homens, assim como se configura na saga dos Pelópidas, mas é atributo de uma idéia de lei superior aos homens e aos deuses. Quem se torna soberano é não o mais violento dos homens, mas aquele que respeita esta lei. Soberana, em Ésquilo, é apenas a lei. Toda a Orestéia é permeda pela imagem do nómos basileus oferecida por Pindaro, contemporâneo do tragediógrafo: “A lei soberana a qualquer coisa,/a mortais e imortais,/guia a violência extrema/tornando-a justa com mão poderosa”25. Não se trata do desvelamento do sagrado, mas da elaboração de um artificium que permite manejá-lo à distância, sobretudo em vista da articulação de uma função fundamental para a sobrevivência dos homens – aquela de limitar a violência – que graças à idéia do nómos basileus é atribuída a uma lei “superior” e improrrogável26. 325

Ésquilo sabe muito bem disso. O sagrado resta escondido no fatum, cujo plano pode ser interpretado e explicado aos mortais apenas através de duas divindades – Febe, na origem da primeira geração dos deuses, e Apolo, entre os deuses do Olimpo –, e tal interpretação/explicação é apenas uma representação. O nómos basileus é, em síntese, a “representação do sagrado”, e é essa representação que preside as ações dos homens e dos deuses. O instrumento desta lei soberana, a ser seguida pelos homens, são, na origem, as Erínies, as antigas divindades terrestres, irracionais e violentas, que fomentam a vingança de sangue mesmo no interior do grupo de consangüíneos. Sucessivamente, é Zeus, pai dos numes olímpicos, que, após ter vencido os velhos deuses, faz-se instrumento de uma orientação da violência a partir de uma nova lógica, que constrange os homens a crescer em sabedoria e a compreender a necessidade de limitar a violência, compelindo-os a suportar o sofrimento (pathei mathos). Nisso é que consiste a justiça de Zeus27. A partir desta base, Ésquilo dramatiza uma contraposição nítida entre a lei da ordem familiar, fundada precisamente sobre a vingança e protegida pelas antigas divindades terrestres, que são as Erínies; e a nova lei da cidade, fundada sobre a justiça olímpica de Zeus, cujas razões são explicadas aos mortais e, portanto, legitimadas pelo novo protetor do sagrado e do seu mistério, que é Apolo. A mesma oposição atravessa a diferença entre o feminino e o masculino, resultando que tudo aquilo que é antigo, obscuro, violento de modo irracional e obstáculo à cidade identifica-se com Clitemnestra e sua fúria homicida, enquanto, por outro lado, existe uma idéia de soberano que conhece a medida, guiado pelo nómos basileus através de Zeus, mas não consegue ter vida28. Neste ponto de não retorno, busca-se o sentido do matricídio cometido pelo último vingador dos Pelópidas, bem como da sua absolvição. Para que a história possa recomeçar e a violência ser orientada nesta nova relação com o sagrado – agora filtrada pela justiça de Zeus –, Orestes, nascido da união de Agamêmnon e Clitemnestra, deve vingar a morte do pai e matar a mãe. Observa-se, aqui, o refinamento deste paradigma. No matricídio, apresenta-se a intenção de se liberar da ordem precedente do genos simbolizado no feminino e da vingança familiar que obstaculiza a vida da 326

comunidade. Todavia, o mesmo matricídio é justificado como vingança do pai na nova ordem da cidade. A violência de Clitemnestra é condenada, enquanto a violência de Orestes é absolvida. Esta é a única diferença substancial diante de um sistema vingativo que apresenta uma forte continuidade em relação a dois modelos de convivência. Aquilo que muda de modo radical é, precisamente, “a diferença” que é introduzida entre as duas ações violentas, tornando uma ilegítima e a outra legítima, em virtude da elaboração de um artifício que consiste na idéia da existência de uma lei soberana, superior a deuses e homens: um nómos basileus que, através de Zeus, “guia a violência extrema/tornando-a justa com mão poderosa”, permitindo, assim, distinguir a violência justa. A violência em que se espelham os mortais desde a origem dos tempos se torna, assim, uma lei soberana correspondente à justiça de Zeus. O nómos basileus deve ser traduzido, no entanto, em uma lei ao alcance dos homens, que lhes permita dosar a violência. Para isso, são chamados os dois filhos de Zeus: Atena, que cria as formas e os procedimentos a fim de que se realize a vontade do pai; e Apolo, que pode explicar as razões necessárias para sustentar a justiça, pois é o único que compreende as razões do sagrado. Daqui, portanto, a atribuição da soberania à cidade e à sua lei, que encontrará a sua expressão fundamental na instituição de um tribunal popular. Através de um processo regular poder-se-á estabelecer aquilo que é justo e aquilo que não o é, constatando, assim, o excesso. A história do direito – e da sua principal e originária função, correspondente à necessidade vital de “dosar” a violência nas comunidades humanas – está toda inscrita nesta aposta voltada a “diferenciar” a violência legítima daquela ilegítima29. A questão é que, para esta aposta – e é isto o que nos interessa aqui –, é necessário enfrentar o problema da violência desde a sua raiz, partindo da impossibilidade humana de dominar o vivente, e da relação entre masculino e feminino. Não é por acaso que o dilema fundamental escolhido é aquele que impõe decidir entre um matricídio e a justiça feita ao pai. O principal argumento da defesa de Apolo durante o julgamento, para sustentar as razões da vingança de Orestes, move-se, na verdade, sobre o vivente reconduzido ao masculino, que pode con327

trolá-lo através de uma relação estável e regulada com o feminino. Impossível não escutar o eco do destino conferido à Pelópia. Impossível não ver – na confirmação deste argumento a ser dada por Atena mais adiante – que o domínio masculino é, ora, parte do caráter abstrato da lei soberana. E, ainda, como sobre estas mesmas razões se fundam as instituições da cidade permeadas pela lei soberana da polis, cujo fim é garantir o equilíbrio da comunidade e conter a violência. É aqui que se pode ver o início daquele processo de abstração em que se cruzam a soberania da lei, a justiça e a política: nos discursos dos dois filhos prediletos de Zeus, Apolo e Atena, em que é forte a tensão para construir um nómos abstrato voltado a controlar o vivente, tentando – ao modo masculino – fazer precisamente aquilo que não se pode possuir. E, paradoxalmente, ao tentar “fazer justiça” ao vivente, o homem volta a perdê-lo. Em socorro a tudo isso vem Ésquilo, que sabe muito bem que um nómos artificial não pode regulamentar e controlar o mundo da vida. Assim, ele desvela as implicações trágicas da lei soberana da polis, destinada a ficar permeada pelo vivente; aquilo que a torna nómos èmpsychos; ou melhor, lei que incorpora o vivente, que no vivente deve saber reconhecer o próprio limite.

5 O matrimônio reparador Chegamos, portanto, à análise das dimensões até aqui evocadas como são dramatizadas através do processo que está no centro da última tragédia da trilogia: Eumênides. Voltamos a observar, entretanto, os atores que participam do episódio que chegam diante de Atena, não por acaso em Atenas. O imputado é Orestes, pois é aquele que cometeu materialmente o fato. Representando as razões de Clitemnestra, estão as Erínies, a acusação. A defesa é sustentada, além do próprio Orestes, principalmente por Apolo, que se declara, todavia, mandante da vingança pela morte de Agamêmnon30. A questão, no primeiro momento exposta à Atena – que exerce o papel de árbitro e busca uma desejável composição –, é destinada ao júri de sábios, eleitos por ela para a função de julgar o mérito do caso, após 328

ter ouvido os argumentos das partes e ter chegado ao seu próprio veredicto. A filha de Zeus funda, assim, o Areópago, o primeiro tribunal popular, delegando aos jurados uma decisão que não quer assumir pessoalmente porque – como ela mesma afirma – é perigosa para a cidade31. Destaque-se a explícita referência à impossibilidade de proceder a uma mediação – precisamente pela natureza dilemática do evento, que exige uma decisão que torne “diversa” a violência da velha ordem daquela da nova ordem – e o próprio caráter desta decisão que não pode resultar senão através de procedimentos formais voltados à construção de uma verdade sobre a qual se funda a justiça. Interessante, para este propósito, o mecanismo de construção da prova. Não obstante Atena faça referência várias vezes à circuntância das regras para a comprovação dos fatos, na questão em curso, a construção da prova limita-se aos argumentos oferecidos pelas partes32. Por outro lado, o problema fundamental não é verificar se Orestes cometeu o fato, mas se o homicídio de Clitemnestra deve ser reconhecido como delito a ser condenado ou como ação legítima, para, somente a posteriore, estabelecer se Orestes é ou não é culpado33. Então, as duas dimensões que se destacam sob o ponto de vista analítico são: a definição de delito e a relevância que têm neste processo as razões que são argumentadas pelos atores e que remetem ao nosso discurso. A tentativa de resolver a questão através de uma simples mediação se encerra com a expressa intenção de Atena no sentido de constituir o tribunal, não antes, porém, que Apolo introduza o tema central da sua argumentação. Nestes termos, Lóxias volta-se às Erínies, que levam adiante, insistentemente, as razões da acusação de matricídio: vv. 213-219 Tu consideraste sem honra nem valor o pacto de Hera Perfectiva e de Zeus. [...] O leito para o marido e mulher destinado velado por justiça é mais que juramento34.

A tese que se apresenta é, portanto, aquela segundo a qual a relação entre o feminino e o masculino é estabilizada com a instituição do casamento e com suas regras de lealdade entre os cônjuges. A 329

referência às núpcias de Zeus e Hera serve para legitimar, ulteriormente, o modelo da relação e caracterizá-lo como “protegido da justiça”, ou da lei soberana que se aprende graças ao pai do Olimpo. Vejamos o contraditório entre Apolo e as Erínies no transcorrer do processo. vv. 622-630 Co.

Zeus, como dizes, deu este oráculo prescrevendo a Orestes vingar o pai sem ter em conta a honra à mãe?

Ap. Não é o mesmo: o varão nobre ser morto honrato com cetro outorgado por Zeus e morto por mulher, não com furioso arco longetimente como de Amazona, mas como ouvirás, Palas, e vós ao lado que no voto decidirei esta questão35.

É emblemático o questionamento das Erínies em relação ao oráculo. Sabemos que Lóxias é o único a ter o poder profético dos deuses; portanto, o único que pode interpretar o plano do fatum. A pergunta, embora colocada de modo provocatório, é portanto muito significativa, pois é como perguntar se o sentido mesmo do nómos basileus tivesse mudado. Mais interessante ainda é a resposta de Apolo: a morte de uma mulher não é comparável a de um homem e, sobretudo, de um “rei entronizado por Zeus”, ou daquele soberano que assume para si o poder somente à medida que ele próprio se submete a uma lei superior. A figura do rei que respeita as regras – e por isso “mesurado” – , construída no curso de toda a trilogia, e particulamente em Agamêmnon, na fase do debate, manifesta completamente a própria função de contraste no que diz respeito ao modelo “material” de soberania, do qual trata, a propósito, a história dos Pelópidas. Nas entre as linhas, nota-se a indicação do fato de que a cidade se rege sob o poder dos homens e de que não se pode dar maior valor ao universo das mulheres, eis que potencialmente danosas. 330

Na seqüência, Apolo reconstrói a história da morte de Agamêmnon, com todos os detalhes, buscando convencer os jurados e as pessoas presentes a seu favor. vv. 631-639 Ap. Na guerra o mais das vezes prosperou e na volta ela o recebeu com benévolas palavras, ofereceu banhos quentes em banheiras de prata, e ao terminar recobriu-o com manto e no intérmino árduo manto prende e golpeia o varão. Esta morte vos é contada do varão venerado por todos, chefe da armada. Tal foi minha fala para que morda os varões dispostos a dar a sentença36.

A narração parece dirigida por duas idéias principais. A primeira é caracterizar o feminino de modo negativo, reconduzindo as artes típicas das mulheres na construção semântica do homicídio do soberano: a “face alegre”, que esconde o engano e a traição; o véu, fruto da tecelagem, que se torna a “rede inextricável” de Clitemnestra, tecelã como uma moira, na qual Agamêmnon encontra a morte. A segunda idéia é ligar explicitamente a figura do soberano àquela do comandante da frota37 e à cidade, colocando-a em contraposição com aquela da mulher que o assasinou, para depois inserir discursivamente os jurados e o tribunal no espaço da cidade, privada do seu soberano. O último elemento – mas não por isso menos significativo – é o fato de o júri ser reconhecido por Apolo como um organismo através do qual a cidade como um todo está a fazer justiça. vv. 640-651 Co. Dizes que Zeus honra o lote do pai, mas ele prendeu o velho pai Crono. Como isto não contradizo que falas? Invoco vosso testemunhodo que ouvis. Ap. Feras odiosas a todos, horror dos Deuses, cadeias se soltariam, isso tem remédio

331

e muitos saos os meios da libertação. Mas quando o pó bebe sangue de homem, uma vez morto, não há ressureição. Para isso meu pai nao fez encantações tudo o mais para cima e para baixo ele revira, e sem ofegar faz como quer38.

Observe-se a posição especular das Erínies, que como Apolo chamam a atenção dos jurados para o desenvolvimento do seu argumento. A velha ordem ataca a nova no coração do problema, que remete à definição de delito, ou à legitimidade da justiça de Zeus, da qual deve persuadir Lóxias. Uma vez ofendido, Apolo ataca. Não é da violência do pai que se precisa dizer, mas da necessidade de limitar o máximo possível a vingança. O fato de também a justiça de Zeus ser violenta deve restar no pano de fundo, porque aquilo que é mais importante – sublinha Lóxias – é conceber que existem meios para desfazer as cadeias, quer dizer, existe um modo de subtrair a regra da reciprocidade, que pede sangue por sangue; porque somente para a morte não se tem remédio. vv. 652-657 Co. Vê como defendes que o deixem solto: verteu no chão o sangue da mesma mãe e em Argos possuirá o palácio paterno? Que altares públicos poderá usar? Que água lustral receberá da fratria?39

Como é possível encontrar uma solução para o homicídio de um consagüíneo – parecem dizer as Erínies –, como será a vida, entre os outros homens, daquele que restou marcado pelo matricídio? Não se trata de simples retórica. Durante o contraditório, manifestam-se os diversos aspectos do problema de encontrar um novo significado para aquela lei soberana que – até o matricídio de Orestes – regula a ordem familiar presidida pelas Erínies. O homicídio de um consangüíneo é, por excelênica, o ato que provoca impureza porque infringe toda e qualquer ordem concebível e 332

atinge diretamente o princípio vital que encarna o sagrado. Não é por acaso que o sangue é o ponto central do argumento usado pelas Erínies. O homicídio de consangüíneo é punido com uma perseguição que não permite rotas de fuga da violência que, como no caso dos Pelópidas, conduz à autodestruição. Mas é precisamente esta a lei que deve ser superada. O nómos basileus deve produzir um novo significado para permitir que o impuro se purifique e, assim, seja readmitido na cidade. A justiça de Zeus, re-velada por Apolo e realizada nas formas de Atena, deve enfrentar o problema da purificação da violência para salvar a polis da contaminação. Esta estrada também é iniciada por Apolo, ainda antes que as partes se encontrem no contraditório40. O argumento das Erínies, na verdade, é contrastado sem problemas na consciência de que a questão nodal é estabelecer o fato típico delituoso. Para tal fim, é necessário tratar uma matéria fundamental, que é justamente aquela da relação entre homens e mulheres no que se refere ao vivente. Eis o argumento: vv- 657-661 Ap. Isso direi e sabe que direi verdade. Não éa denominada mãe quem gera o filho, nutriz de recém-semeado feto. Gera-o quem cobre. Ela hóspeda conserva O gérmen hóspede, se Deus não impede41.

A réplica de Apolo é seca e confere ao homem o poder de gerar a vida. O vivente se encarna, portanto, no homem que dá a vida através do corpo da mulher, deslocando, assim, o eixo da simetria entre o feminino e o sagrado para uma nova simetria entre o masculino e o sagrado. Com a mulher, o homem está em uma relação biológica necessária, mas que deve encontrar uma regra. Lóxias a sugere mediante a semelhança da relação entre os hóspedes que recebem o sêmen masculino e o corpo feminino; e é aqui que se vislumbra mais de um traço da relação entre corpo e alma, na qual o corpo é a mulher, e a alma é o princípio criador do masculino. Em outras palavras, macho e fêmea, alma e corpo, são relações hospitaleiras e, como tais, devem seguir as regras. Estas regras são ditadas, como vimos, pela ins333

tituição do casamento, que difunde a relação de fidelidade recíproca dos cônjuges, garantindo que a potencial hostilidade proveniente do ser “diferente” não resulte em violência, impedindo o vivente. O que está em jogo, portanto, é a dimensão de uma solidariedade que chega até a polis. A relação entre hóspedes encarna, na verdade, na relação entre “outros” – marcados pelo ser “diferente”, de modo irredutível –, que está na base da comunidade política. O fato de que os hóspedes sejam amigos, mas, ao mesmo tempo, potenciais inimigos, torna instável a comunidade que, precisamente por isto, recorre ao direito. Em poucas palavras, Apolo recapitula a ordem de todo o problema, fazendo-o convergir para a necessidade de o masculino regulamentar a sua relação com o feminino para conseguir controlar a vida de um modo melhor. Por que é o masculino, e não o feminino, que dá a vida? Eis aqui a prova: vv. 662-666 Ap. Eu te darei uma prova desta palavra: o pai poderia gerar sem mãe, eis por testemunha a filha de Zeus Olímpio, não nutrida nas trevas do ventre, gérmen que nenhuma deusa geraria42.

Zeus pariu Atena sem necessidade de recorrer a nenhuma mãe. A verdade de Apolo é aquela da justiça de Zeus, que dá a vida precisamente porque realiza a possibilidade de os homens limitarem a violência. Zeus é, particularmente, o pai biológico de Atena. O nascimento da deusa é marcado pelo fato de não ter sido gerada no ventre “escuro” de uma mulher, pois uma mulher nunca poderia tê-la gerado. Isto coloca em evidência a luz que se irradia em Atena, recebida diretamente ao ter nascido do intelecto de Zeus, introduzindo-se aqui uma visão da deusa como ser abstrato do corpo e marcado por uma inteligência “clara” e “racional”. Mas isso não é tudo: Atena é virgem. Impossível não pensar em uma ligação posterior entre a “pureza” da deusa abstrata, o risco de contaminação ao qual se expõe a cidade quando um homem versa o sangue de um concidadão e a instituição do tribunal que através dos procedimentos impostos por Atena oferece um artificium para tornar a violência justa. 334

Assim, Apolo explicou em que consiste a justiça de Zeus, na substância e na forma, mostrando, em particular, como neste artifício já existia a idéia de alma que se abstrai do vivente, precisamente porque é inteligência que se nutre de si mesma e não se contamina com a carne. À Atena não resta nada além de dar seqüência à apreciação dos argumentos por parte dos jurados, que levará à decisão, mas antes completa as razões de Apolo, explicando que a existência do Areópago se funda no temor da lei imposta por Zeus, da qual o tribunal se faz instrumento. vv. 690-703 At. [...] Aqui Reverência e congênere Pavor dos cidadãos coibirão a injustiça dia e noite do mesmo modo, se os cidadãos mesmos nao inovam as leis. Quem poluir a fonte límpida com maus afluxos e lamas, não terá donde beber. Aconselho aos cidadãos não cultar nem desgoverno nem despotismo; nem de todo banir da cidade o terror. Que mortal é justo, se não tem medo? Se com justiça temêsseis tal reverência, teríeis defesa da terra e salvação do país como ninguém dentre os homens a tem, nem entre os citas, nem no Peloponeso43.

Para confirmar aquilo que foi dito até então a respeito da mímese e da distinção formal entre uma violência legítima e outra ilegítima – que é elaborada através do artifício do processo judicial –, observe-se a semelhança entre as palavras de Atena e aquelas das Eríneis, pronunciadas um pouco antes do início do contraditório: vv. 517-527 Co. Há onde o terror está bem e vigia de pensamentos deve permanecer sentado: é proveitoso ser prudente por coerção. Que mortal ou cidade 335

sem nutrir de temor o coração ainda veneraria do mesmo modo a Justiça? Nem desgoverno nem despotismo44.

O medo não deve mudar porque ele tem a precisa função de induzir os homens à sabedoria, isto é, de constranger os homens a se controlarem. “Quem dos mortais pode ser justo se não teme nada?” A justiça é, desde sempre, uma medida imposta pela força. Dá-se início, portanto, ao procedimento dos votos. Enquanto exprimem o seu próprio juízo (cada um é uma diké), os jurados ainda são instados pelas partes em litígio. As Eríneis ameaçam a cidade, Apolo as observa atentamente e destaca que “os seus oráculos são também os oráculos de Zeus”, manifestando-se, explicitamente, como o “porta-voz” de Zeus45. Depois de todos votarem, Atena pronuncia o próprio voto a favor de Orestes, determinando sua absolvição e argumentando sua escolha, coerentemente, com base na tese principal da defesa apresentada por Apolo: vv. 735-740 At. Depositarei este voto a favor de Orestes. Não há mãe nenhuma que me gerou. Em tudo, fora núpcias, apóio o macho com todo ardor, e sou muito do Pai. Assim nao honro o lote de mulher que mata homem guardião da casa. Vence Orestes, ainda que empate46.

Todavia, há uma diferença que merece atenção. Enquanto Apolo sustenta a necessidade da regra para “dosar” a relação entre os hóspedes que regula o feminino e o masculino no que diz respeito ao vivente, Atena faz a regra ela mesma, abstraindo-se completamente do corpo. Neste processo, ela se afirma como masculino, e não se interessa pelo casamento, senão do ponto de vista do esposo, colocando igualmente o homem como o único protetor da casa. Definitivamente, Atena não somente rejeita a idéia da mãe, caracterizando Clitemnestra 336

como uma simples assassina da qual não se deve cuidar, mas também impõe a lei de Zeus como uma lei necessária e de caráter masculino. Tal lei está se implantando sobre o abandono do corpo e se afirmando como princípio abstrato: a referência à dimensão do coração, cindida da dimensão corporal da união conjugal, é a sua marca e confirmação, que surge a partir do problema da purificação. E, obviamente, a vitória de Orestes somente é possível em virtude do voto de Atena. Com o seu voto, alcança-se, na verdade, o mesmo número entre os votos a favor da absolvição e da condenação, confirmando-se, assim, o valor impositivo da justiça47.

6 As máscaras da convivência Com o voto de Atena, que absolve Orestes, a passagem da velha à nova ordem está completa; a nova relação dos mortais com o sagrado é, agora, mediada pela lei soberana que se manifesta na justiça de Zeus. O sacerdote e protetor desta lei são a polis e as suas instituições. O templo deixado por Pelópia não está mais deserto. Não importa que a nova ordem tenha sua origem numa imposição violenta, do masculino sobre o feminimo, movida pela necessidade de controlar o vivente. Graças ao caráter abstrato da lei, que regula as instituições – antes de todas, o casamento –, e à justiça, a violência originária pode ser limitada. O primeiro elemento sobre o qual se pode concluir é, portanto, que a lei e a justiça devem ter um caráter abstrato. O elemento seguinte é que se trata de uma abstração masculina, pois este remédio origina-se de uma necessidade somente dos homens e se impõe na tentativa de reconduzir tudo aquilo que é o “outro” do masculino às formas que são suas. Assim, o homem canaliza a relação entre masculino e femino nas regras do casamento que somente ele estabeleceu e, mais sutilmente, tenta atribuir apenas para si o princípio criador da vida, doa qual se faz o único instrumento. Nesta desvaloração do “outro” está contido o germe do excesso, que torna o direito – sempre em jogo na busca de uma medida – falível e provisório. 337

A lei definitivamente não esgota o vivente, embora o presuma. Ela simplesmente tenta controlá-lo. Mas é o coração – nos diz Atena – que não ama o corpo. Nisso tudo, a maior aposta do direito é explicada por Apolo, quando reconduz a relação entre masculino e feminimo à relação hospitaleira, movendo-se do plano puro e abstrato das regras àquele político, e permite vislumbrar que o direito tem possibilidade de ser nómos èmpsychos à medida que mais conseguir contemplar um equilíbrio entre as diferenças. A convivência comunitária, assim como aquela conjugal, fundase sobre um vínculo de solidariedade entre hóspedes, amigos e potenciais inimigos, que são as máscaras da convivência, do mesmo modo como a justiça é a máscara legítima da violência, e aquela das Eumênides é a máscara boa das Erínies. A própria Atena, virgem e pura emanação do intelecto de Zeus, também conhece os aspectos ferinos da existência, pelos quais conhece os limites e a potencialidade da lei, fazendo-a instrumento para aqueles capazes – como ela – de proteger a cidade com a consciência de quem conhece a selva48. Por isso, Atena convence as Erínies – que saem derrotadas do processo – a aceitarem a famosa composição que as transformará em deusas benevolentes. vv. 795-799 At. Não fostes vencidas, mas houve deveras justo empate sem nenhuma desonra vossa. Provieram de Zeus claros testemunhos e a testemunha mesma era mesmo oráculo de que Orestes agindo assim não teria dano49. vv. 831-836 At. Mitica o ímpeto amargo de negra onda, já que és veneranda e resides comigo. Terás desta vasta região as primícias ofertas antes de nascimentos e de núpcias e cada vez louvarás esta minha palavra50.

338

vv. 862-866 At. nos meus cidadãos, nem instales Ares nas tribos, audácias recíprocas. Externa seja a guerra, não escassa, Onde houver terrível amor de glória, e não digo briga de ave doméstica51. vv. 902-915 At. O que vise a vitória não maligna. Soprando ventos, vindos da terra e do orvalho marinho do céu, em dia sereno cheguem ao solo. Farto, fruto da terra e do gado nunca cesse de florir aos cidadãos, salvação para a semente de mortais. Sejas tu mais produtiva dos pios pois à maneira de um pastor de plantas viris amo que não sofra a família destes justos. Tanto é teu. Nos conspícuos combates de Ares, eu não suportarei não honrar esta cidade com a vitória entre mortais52.

Os termos do acordo são que as Erínies se preocupem em proteger o interior da cidade, defendendo as regras e as instituições que evitam as disputas fratricidas, enquanto Atena presidirá a única guerra admitida, aquela no exterior, fazendo de modo que Atenas sempre vença. O pacto é político: a regulamentação jurídica da relação das novas Eumênides com a polis será baseada sobre o seu novo status de metecos53. A aposta do nómos èmpsychos está toda aqui: na possibilidade pronunciada por Atena de conceber o estrangeiro como hóspede e no interesse em, com ele, manter uma relação equilibrada e solidária, mesmo em sentido funcional. Trata-se, definitivamente, de uma aposta do próprio direito em conseguir manter a consciência da diferença para poder limitar o seu excesso, conceber o “outro” e desenvolver a função de tutela do vivente, sem se afastar, progressivamente, do mundo da vida. 339

O preço a pagar compreende a coerência, a certeza, a segurança nas escolhas de um pensamento universalizável. Mas é assim que se dá o jogo da existência dos mortais, feita de mundo e de uma incompreensível vida.

Notas 1

2 3

4

5

6 7

8

9

Cf. GIVONE, S. Il bibliotecario di Leibniz. Filosofia e romanzo. Torino: Einaudi, 2005, p. 122 (tradução livre). Id., ibid., p. 123. Identificamos, portanto, as histórias com combinações estruturais (escritura) derivadas da dimensão lingüística e simbólica do mundo, diversamente da conclusão à qual chega Givone, que reconduz à linguagem-mundo a racionalidade lingüística e ao mundo da vida a escritura (id. Ibid., p. 126). Sobre a relação entre arte da combinação e sujeito individual, ver MITTICA, M. P. Raccontando il possibile. Eschilo e le narrazioni giuridiche. Milano: Giuffrè, 2006. Nesse sentido, buscamos socorro em CARBONNIER, J. Flexible droit. Pour une sociologie du droit sans rigueur. Paris: LGDJ, 2001. Destaca-se, aqui, a particular atenção de Carbonnier à dimensão literária do direito, assim como se verificou no recente Colloque Jean Carbonnier. Le droit, les sciences humaines,sociales et religieuses, ocorrido na Paris Nanterre, em novembro de 2008. Para uma resenha acerca do ateliê dedicado ao Direito e Literatura em Carbonnier, ver CAPPELLETTI, R. Dentro e oltre la letteratura. Un atelier inedito in un convegno in onore di Jean Carbonnier, ISLL Papers-Reviews. Disponível em: www.lawandliterature.org. Acesso em 06/03/09. Cf. KIRK, G. S. The nature of Greek Myths. Harmondsworth: Penguin Books, 1974. Para uma reconstrução do mito, utilizamos predominantemente os materiais colhidos e ordenados por GRAVES, R. Greek Myths. Harmondsworth: Penguin Books, 1955, embora haja, como é invitável, uma versão ulterior, fruto de uma seleção de elementos narrativos entre os vários conservados nas diversas fontes e pertencentes a diferentes tradições. Atormentado pela fome e pela sede, Tântalo se encontra pendurado em uma árvore de frutos cujos ramos se alongam sobre o pântano. A água do pântano, às vezes, lhe chega até a boca, mas se ele se inclina para beber um gole, logo se vê na lama. Do mesmo modo, a árvore está carregada de frutas, mas assim que Tântalo tenta colhê-las para matar a fome, uma rajada de vento o empurra para longe. A reconstrução do mito de Crísipo é complexa, dada a fragmentaridade e as diversas versões da história. Há quem sustente que depois de ter sido raptado por Laio, que o leva consigo a Tebas e faz dele o seu amante, Crísipo se mata por vergonha (talvez esta seja a hipótese menos crível). Outros dizem que é Atreu e Tiestes que matam o irmão, pressionados por Hipodâmia. Outros, por fim, afirmam que a própria Hipodâmia o assassinou na cama de Laio, depois que os seus filhos se recusaram a cometer o fratricídio. Nesse sentido, ver GRAVES, op. cit. De todo modo, à morte de Ganimedes segue, em Élide, a caçada de Tiestes e Atreu, eis que responsáveis por um novo crime entre consagüíneos, destinado a perpetrar-se entre estes dois irmãos.

340

10

11

12

13

14

15 16 17 18 19

20

21

22

Em uma discussão que se dá na sala do Conselho, Atreu reivindicou o trono de Micenas, seja por direito de primogenitura, seja porque ele possuia o carneiro com a lã de ouro. Então, lhe perguntou Tiestes: ‘Tu afirmas publicamente que quem possui o carneiro deve ser o rei?’. ‘Eu afirmo’, respondeu Atreu. ‘E eu estou de acordo’, disse Tiestes com um sorriso maligno. Em seguida, um arauto convocou o povo de Micenas para que aclamasse o novo rei. Mas Tiestes, inesperadamente, levantou-se para acusar Atreu de vangloriar e conduziu os magistrados à sua casa, onde mostrou-lhes o carneiro, reivindicando a sua legítima propriedade e, assim, sendo eleito o rei de Micenas. Cf. GRAVES, op. cit. É Calasso quem oferece uma reconstrução do mito segundo a qual Pelópia é uma sacerdotisa de Atena, dado não menos importante se ligado à centralidade desta personagem no contexto da história e às particulares funções da deusa em face da realização da justiça de Zeus, como sustentaremos mais adiante. Para o mito dos Pelópidas, ver CALASSO, R. Le nozze di Cadmo e Armonia. Milano: Adelphi, 1988, pp. 202-221. Atreu pode ter novas núpcias legítimas porque mandou executar Aerópe por traição. Assim, pede a mão de Pelópia ao rei de Sicione, Tesproto, que acredita seja o seu pai. Este último, vislumbrando uma boa aliança deixa ele acreditar que a mulher seja sua filha e, assim, as núpcias acontecem (id., ibid., p. 373). Tal cisão não é arbitrária. Como se compreenderá mais adiante, além das circunstâncias que o emprego desta narrativa tradicional na literatura grega faz acerca da distinção entre os eventos dos Pelópidas e aqueles dos Atridas, o ponto central neste estudo é ver o modo como Ésquilo trata esta narrativa no que diz respeito ao tema específico que aqui nos interessa. A vingança ocorre segundo duas versões diferentes que vêem, de um lado, Orestes matar a mãe e, de outro, ele se limitar a entregá-la a um tribunal. Conforme Graves, a mais fiel das versões é aquela de Servio, que respeitaria a lenda segundo a qual Orestes, depois de ter matado Egisto, limitar-se-ia a entregar Clitemnestra aos juízes. Além do fato de as histórias míticas poderem mudar apenas pela razão de ser continuamente recontadas, a hipótese de Graves é de que, neste caso, tenha ocorrido uma manipulação do mito por parte dos sacerdotes da nova religião olímpica, que difundiram esta versão para terminar de uma vez por todas com o primado da culto matriarcal herdado do passado. Cf. GRAVES, op. cit.. RESTA, E. Diritto vivente. Roma-Bari: Laterza, 2008. Id., ibid., p. 5. Cf. supra, n. 1. Cf. RESTA, op. cit., pp. 3-36. Um detalhe não menos significativo, como resulta em algumas tradições do mito, é que todos os descendentes de Pélops levam a “marca” da espádula forjada pelos deuses, inscrita no corpo. Cf. GRAVES, op. cit. A convicção de que o sagrado seja violência é apenas o êxito da reflexão sobre a impossibilidade de dar significado ao sagrado: uma projeção da inteligência humana frustrada, que se mede com o mistério. Sobre a inteligência e o caráter feminino em relação ao masculino e ao político na cultura grega, ver REDFIELD, J. L’uomo e la vita domestica. In: VERNANT, J.-P. (Org.). L’uomo greco. Roma-Bari: Laterza, 1991. pp. 153-185. A única ação fraudulenta de Pelópia é aquela de esconder a gravidez e de abandonar Egisto recém nascido. Mas se trata também sempre do fruto de uma violência sofrida. A sua é uma escolha obrigada.

341

23

24 25

26

27

28

29

30 31

32 33

34

35

Sobre as intenções de Ésquilo e o valor hipotético da Orestéia no contexto citadino da primeira metade do século V a.C., já se disse, aqui, nos limitaremos a aprofundar a representação do feminino na narrativa. Cf. MITTICA, op. cit. Cf. ÉSQUILO, Agamennone, vv. 1500-1504. Cf. PINDAR. Nemean Odes. Isthmian Odes. Fragments. Ed. William H. Race. Loeb Classical Library. Cambridge Ma.-London: Harvard University Press, 1997, p. 395, frag. 169a 1-4 (tradução livre). A análise deste fragmento é bastante discutida, e muitos problemas ainda permanecem em aberto. Para uma síntese das questões que interessam à perspectiva filosófico-jurídica, consultar, principalmente, D’AGOSTINO, F. Bia. Violenza e giustizia nella filosofia e nella letteratura della Grecia antica. Milano: Giuffrè, 1983, pp. 70-78. O nómos basileus, ingovernável e incognoscível, torna-se, assim, violência necessária ordenada por Zeus como instrumento colocado à disposição dos mortais, a fim de que estes possam, em parte, limitar a violência, embora sob a orientação de um deus; ou ainda melhor, de “uma idéia de deus”. Cf. Hino a Zeus, em ÉSQUILO, Agamennone, vv. 160683. A respeito do mérito do Hino, ver, por todos, DI BENEDETTO, V. L’ideologia del potere e la tragedia greca. Ricerche su Eschilo. Torino: Einaudi, 1978. Ainda sobre o nómos basileus, consultar OTTO, W. F. Gesetz, Urbild und Mythos. Stuttgart: J.B.Metzler, 1951; e, também, GIGANTE, M. Nomos Basileus. Napoli: Glaux, 1956. Para a análise do modelo de dramatização empregado por Ésquilo, ver, particularmente, NAQUET, P. Eschilo. Il passato e il presente. In: VERNANT, J.-P.; NAQUET, P. Mythe et tragédie deux. Paris: La Découverte, 1986. Entre os versos mais interessantes nos quais consta essa contraposição, ver o diálogo de Agamêmnon e Clitemnestra em ÉSQUILO, Agamennone, vv. 810 e segs. Aqui, mais uma vez, tem razão Eligio Resta, quando fala em termos de esperança. Ver, para tanto, RESTA, E. La certezza e la speranza. Saggio su diritto e violenza. Roma-Bari: Laterza, 1992. Cf. ÉSQUILO, Eumenidi, vv. 84, 198-205, passim. Independente do modo como se decida, arrisca-se o bem da comunidade, tanto endossando a ordem da vingança, quanto não o fazendo, em face do risco de se tornar inimigo das Erínies. Cf. ÉSQUILO, Eumenidi, vv. 470-472. Ver, para tanto, ÉSQUILO, Eumenidi, vv. 485-489,. 436-442 e, em geral, o curso do debate. Existe uma considerável literatura sobre a tese de que, no processo das Eumênides, podese vislumbrar uma primeira manifestação do princípio da imputabilidade. Para os estudos do Law and Literature, ver OST, F. Raconter la loi. Aux sources de l’imaginaire juridique. Paris: Odile Jacob, 2004, cap. II, p. 83 e segs. Mesmo confrontanto este elemento na definição da responsabilidade de Orestes, já destacamos em outra oportunidade que não menos importante do que o processo é a definição de delito, da qual depende a própria imputabilidade, que se apresenta apenas como um artifício na individualização daquilo que é “justo” para a cidade. Cf. MITTICA, op. cit., p. 105 e segs. Na versão original do artigo, especificamente para este trecho, a autora faz referência a outra edição: ESCHILO. Orestea. Trad. de E. Severino. Milano: Rizzoli Milano, 1985. Nesta tradução, contudo, a versão bilíngue à qual se recorreu foi ÉSQUILO. Orestéia III. Eumênides. Trad. de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2004, p. 91. Cf. ÉSQUILO, Eumênides, op. cit., p. 119. Destaque-se que, na versão original do artigo, onde não expressamente indicado, a autora utilizava a seguinte edição: ESCHILO. Orestea. Trad. de M. Valgimigli. Milano: Rizzoli Milano, 1980.

342

36 37

38 39 40

41 42 43

44 45 46 47 48

49 50 51 52

53

Cf. ÉSQUILO, Eumênides, op. cit., p. 119 e 121. É conhecida a relevância da função, visto que, nos mesmos anos em que a Orestéia é representada, Atenas torna-se uma potência naval que domina o mar Egeu. Ver MUSTI, D. Storia greca. Roma-Bari: Laterza, 1989. Cf. ÉSQUILO, Eumênides, op. cit., p. 121. Cf. ÉSQUILO, Eumênides, op. cit., p. 121. O processo de purificação de Orestes ocorre, precisamente, sob a orientação de Apolo, que particularmente impõe ao imputado viajar até que apreenda pela experiência a dor e a necessidade de observar o limite humano, circunstância que leva diretamente ao conceito de pathei mathos, sobre o qual se funda a justiça de Zeus. Orestes chega “preparado”, nesse sentido, ao processo que o espera e ao tribunal que verá fundado. A narração encontra correspondência histórica na lei draconiana que regula os processos de purificação do homicida, promovidos junto às cortes especiais para o julgamento do homicídio – colocadas significativamente fora da cidade – e tesmunha, ademais, como a lei da pólis identifica como “impuros” todos os tipos de homicídio entre cidadãos, tratados do mesmo modo dos consangüíneos, superando nesta disciplina a ordem familiar. Sobre as referências ao texto da Orestéia, ver ÉSQUILO, Eumenidi, vv. 276-286. Para uma reconstrução crítica da lei de Dracon, ver CANTARELLA, E. Diritto greco antico. Milano: Cuem, 1994. Para o papel de Apolo, ver GARNER, R. Law & Society. In: Classical Athens. London-Sidney: Croom Helm, 1987. Cf. ÉSQUILO, Eumênides, op. cit., p. 121. Id., ibid., p. 121. Id., ibid., p. 123. Registre-se que, na versão original do artigo, a própria autora traduziu, livremente, a passagem citada. Id., ibid., p. 111 e 113. Id., Eumenidi, op. cit., vv. 713-714. Id., Eumênides, op. cit., p. 125 e 127. Id., Eumenidi, op. cit., vv. 748-753. Sobre a duplicidade de Atena, ver VERNANT, J.-P. La mort dans les yeux. Paris: Pluriel, 2002. Cf. ÉSQUILO, Eumênides, op. cit., p. 131. Id., ibid., p. 133. Id., ibid., p. 135 . Id., ibid., p. 139 e 141. Destaque-se, mais uma vez, que a própria autora traduziu, livremente, a passagem citada na versão original do artigo. Id., Eumenidi, op. cit., pp. 1003-1011.

343

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.