Narrativas distópicas na literatura portuguesa atual. Atas IV Congresso Seeplu

May 18, 2017 | Autor: M. Fernández García | Categoria: Portuguese Literature, Literatura Portuguesa, Literatura portuguesa contemporânea
Share Embed


Descrição do Produto

Actas del IV Congreso Internacional SEEPLU Cartografías del portugués Cáceres, 11-13 noviembre 2015

O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea Mª Jesús Fernández Universidad de Extremadura [email protected] Resumo Apresentamos neste trabalho um percurso por alguns romances da literatura portuguesa contemporânea que ficcionalizam o desaparecimento do espaço português e, com isso, do estado-nação, devido a diversas causas: invasão militar, venda do território, inundações... Podemos ler este desaparecimento como expressão metafórica de um temor sociológico do fim de Portugal, enquanto entidade política independente. Neste sentido, a literatura acompanha outros discursos, do filosófico ou do político, que indagaram neste medo ontológico, e propõe espaços distópicos fictícios, nos quais se concretiza o fim do país. Palavras-chave: distopia, desaparição do estado, literatura portuguesa contemporânea.

Resumen Presentamos en este trabajo un recorrido por algunas novelas de la literatura portuguesa contemporánea que ficcionalizan la desaparición del espacio portugués y, con ello, del estado-nación, por diversas causas: invasión, venta del territorio, inundación… Podemos interpretar esa desaparición como expresión metafórica de un temor sociológico del fin de Portugal como entidad política independiente, interpretado a través de la destrucción del espacio. En este sentido, la literatura acompaña otros discursos - del

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

341

filosófico al político -, que indagaron este miedo ontológico, y propone espacios distópicos fictícios en que se concretiza la desaparición del país. Palabras clave: distopía, desaparición del estado, literatura portuguesa contemporánea.

1.INTRODUÇÃO Como já assinalaram alguns historiadores e críticos da cultura e da literatura portuguesas, a preocupação por definir, explicar ou caracterizar a nação é recorrente na atividade das elites intelectuais da cultura lusa, pelo menos, desde o século XIX (Cunha 2011: 19). Eduardo Lourenço, no seu muito citado ensaio O Labirinto da Saudade (1978), teria diagnosticado não um problema de identidade, mas a posse de “uma vértebra supranumerária”, uma tendência para a “autogénese” (Lourenço 1978: 18), um modo de existir determinado pela “hiperidentidade”. A investigação é, de igual modo, muito abundante do ponto de vista historiográfico. Para Matos (2002), ao longo do tempo histórico, determinados desafios internos e externos puseram em causa a própria existência do estado independente e explicam “que um pequeno Estado europeu periférico e marginal como o português tenha, em diversos momentos, incentivado os estudos históricos e a publicação de fontes relevantes para o conhecimento do seu passado.” (Matos 2002: 123-124) Para Boaventura de Sousa Santos cabe falar de “um excesso de diagnóstico” em relação ao problema do passado histórico português. (Santos 2012: 38) Transformado Portugal em problema (ou equação) que se pensa e debate1, também a ficção literária o assume como tema e Ao longo do século XX, poderia assinalar-se uma comprida produção bibliográfica de ensaios de teor filosófico, dedicados à reflexão sobre a identidade nacional portuguesa, a começar por Teixeira de Pascoais (Arte de Ser Português, 1915), 1

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

342

contribui, com outros discursos culturais, para criar uma certa representação da nação que irá engrossar o imaginário nacional (Cunha 2011: 19). Quer seja em “termos críticos” ou “legitimadores” (Cunha 2011: 17), uma importante parte da literatura escrita em Portugal acompanhou, e continua a acompanhar, a história nacional (Quadros 1989: 21; Real 2012: 59-63). Partindo da ideia de a literatura portuguesa estar interessada em representar acontecimentos históricos que marcaram Portugal enquanto estado-nação, chamou a nossa atenção a publicação no início do século XXI de uma série de narrativas que ficcionalizam o futuro de Portugal imaginando o seu desaparecimento como país. Trata-se do conto de Rui Zink, Amanhã chegam as águas (2005) e dos romances Despaís de Pedro Sena-Lino (2013) e O último europeu de Miguel Real (2015).2 A maneira escolhida nos três casos para representar a destruição de Portugal é o molde do relato distópico, entendida a distopia como a versão negativa da utopia.3 Assim, enquanto o

Agostinho da Silva (Educação em Portugal, 1970), Eduardo Lourenço (O Labirinto da Saudade, 1978), Boaventura de Sousa Santos (Pela Mão de Alice, 1994 ; Portugal. Ensaio contra a Autoflagelação, 2011), José Gil (Portugal Hoje. O Medo de Existir, 2004), João Medina (Zé Povinho sem Utopia, 2004 ; Portuguesismos, 2006), Guilherme d’Oliveira Martins (Portugal. Identidade e Diferença, 2007), Miguel Real (A Morte de Portugal, 2007 ; A vocação histórica de Portugal, 2012) 2 Em outras obras, que poderiam ser igualmente consideradas distópicas, não se realiza um contrato toponímico que permita identificar o lugar em que se desenvolve o conflito com Portugal como estado-nação. Estamos a referir-nos a romances como Ensaio sobre a cegueira (1995) de José Saramago ou Um Piano para Cavalos Altos (2012) de Sandro William Junqueira. 3 Existem outros termos com os quais é possível matizar o significado, tanto da distopia (utopias negativas, contra-utopias, anti-utopias…), como da utopia positiva (heterotopia, eucronia…). Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

343

pensamento utópico apresentou desde as suas origens4 modelos bemsucedidos, a fim de ilustrar reformas possíveis e desejáveis para o presente dos leitores, a distopia, pelo contrário, encaminha-se pela descrição de sociedades infelizes, desumanizadas e submissas a um poder totalitário. O sentimento de insatisfação com o presente (Trousson 1979: 16) e o desejo de promover mudanças na vida em sociedade são comuns aos pensamentos utópico e distópico, embora tome, em cada caso, direções diferentes para o mesmo propósito crítico. O primeiro, afastando-se espacialmente5, apresenta a possibilidade da existência de um lugar, em que se realizou a harmonia social sonhada e que conseguiu permanecer estável, afastado e secreto (Riot-Sacey et alii 2009: 251-257); a distopia, por sua vez, continua o tempo histórico presente, persistindo nos seus defeitos, magnificando-os até atingir um grau insuportável: A distopia seria a descrição de um mundo futuro onde as coisas correram mal a partir da exacerbação nociva de um traço da nossa sociedade (Riot-Sarcey et alii 2009: 126)

Partindo das circunstâncias do tempo da escrita (os totalitarismos, a Guerra Fria, as guerras mundiais, a mudança climática, o poder crescente da tecnologia, a manipulação genética, entre outros), o relato distópico projeta o mundo presente para um cenário futuro extremamente negativo, no qual as condições de vida Acerca da origem do termo e do conceito é muita a bibliografia existente, em continua revisão. Como género narrativo, considera-se iniciado por Thomas More na obra Utopia (1515), embora seja consensual a opinião de que existem precedentes de narrativas utópicas anteriores a essa data. Remetemos para a obra fundamental de Trousson (1979), nomeadamente para o capítulo « À la recherche d’une definition » (pp. 13-28), assim como para os dicionários especializados da bibliografia final. 4

5

Quando a utopia se projeta no tempo futuro, a crítica especializada prefere o termo eucronia. Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

344

evoluíram, agravando os problemas até dificultar a supervivência dos cidadãos. Este cenário perverso funciona como profecia, que pretende alertar, mostrando o caminho que se não deve seguir, embora possa existir igualmente uma feição fundamentalmente satírica em algumas distopias. Em qualquer caso, a ficção futurista procura a reação da parte do público leitor. Assim sendo, cabe perguntar-se, como funciona esta lógica que subjaz ao relato distópico no caso dos romances portugueses. Qual é o traço negativo do tempo presente português que vai ser desenvolvido até causar o desaparecimento da nação? Qual é o aviso que se quer dar aos leitores portugueses? 2. NARRATIVAS DO DESAPARECIMENTO DE PORTUGAL 2.1. No conto de Rui Zink, Amanhã chegam as águas6 (2005), o mar avança, alagando territórios da Europa, onde já não há países. As decisões são tomadas pela Nova Bruxelas. Portugal é no momento da narração apenas uma estreita “fímbria de terra”: O que terá sido Portugal, nomeadamente, já não existe, ou quase não existe. Uma fímbria de terra, de norte a sul, com algumas dezenas de quilómetros de largo. Nós aqui pela Covilhã fomos durante anos a ponta mais ocidental da Comunidade. (Zink 2005: 120)

O avanço do mar é impedido por muros que protegem as povoações, mas, uma vez que a manutenção do sistema de barragens é cara, e as águas continuam o ascenso, as portas devem ser abertas, deixando que se inundem casas e campos, até ao seguinte muro, Incluído no volume A Palavra Mágica e outros contos (2005) e, posteriormente, na coletânea de contos de vários autores Onde a Terra Acaba (2006). As citações do texto são feitas de acordo com esta segunda edição. 6

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

345

afogando toda forma de vida. Servindo-se de um complexo aparelho tecnológico, o jovem Artur, única personagem narradora, regista reflexões, memórias e acontecimentos, enquanto chega o dia da temida inundação. Existe a salvação para além do seguinte muro, mas esta passagem é proibida e grupos armados evitam o “salto”7. As alternativas oferecidas pelo governo central da Nova Bruxelas são a eutanásia mediante injeção ou uma operação que proporciona guelras ao indivíduo e transforma as pessoas numa espécie de mutante aquático: Quatro incisões, duas de cada lado do pescoço, lancetadas com o cuidado suficiente para não nos rasgarem a traqueia. Depois injectam um produto qualquer, um misto de poderoso cicatrizante e coagulante, de efeito imediato, com hormona anabólica extraída de ovas de salmão… e pronto, eis-nos com guelras, concebidas expressamente para nos permitir uma RSO (Respiração Subaquática Optimizada). (Zink 2005: 125)

No entanto, entre algumas personagens, cresce a suspeita de que esta solução é uma forma de assassinato promovido pelo poder. Apesar das dúvidas, o jovem Artur, personagem-narradora, quer acreditar que é possível esta forma de continuar a existir. Neste relato o desaparecimento de Portugal liga-se a uma catástrofe de alcance global: a mudança climática que está a provocar a elevação do nível do mar, mas sobretudo a uma causa de tipo Este salto evoca a passagem que os emigrantes ilegais deviam fazer através de Espanha a caminho da França, e que foi registado na literatura da emigração portuguesa em obras como Cinco dias, cinco noites (1975) ou Fronteiras (1998) de Manuel Tiago. 7

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

346

político: a União Europeia, com um critério economicista, sacrifica os cidadãos dos países periféricos como Portugal. Assim, os portugueses, no extremo mais ocidental da Europa, pagam com a vida a invasão das águas de que todos são culpados. 2.2. Em Despaís, cujo subtítulo é Como suicidar um país (2013), Pedro Sena-Lino propõe uma ficção que avança até um futuro próximo, o ano 2023, para mostrar o quadro apocalíptico, em que o autor imagina que Portugal se irá transformar, consequência das decisões políticas adotadas durante a crise económica, que começou em 2007. Apresentado pelo autor como um romance-provocação, atitude visível do próprio título, trata-se duma obra contextualizada no ambiente de oposição às intervenções da Troika,8 e cuja antecipação temporal em relação ao momento da publicação é realmente curta. A dívida económica assumida pelo estado português é neste romance sublinhada em vários momentos, como causa fundamental para o desaparecimento de Portugal como estado: “A dívida do país tinha desaparecido, e Portugal com ela” (Sena-Lino 2013: 323). O principal recurso desta narrativa é a pluralização dos narradores, de modo que o discurso aparece repartido entre personagens representando cidadãos comuns, jornalistas, historiadores, entre outros, com destaque para aqueles que encarnam políticos responsáveis pelas decisões que levaram ao caos social e político.9 Cria-se assim um romance polifónico que pretende mostrar A onda de protestas deu no movimento cidadão espontâneo que ficou conhecido com a expressão : « Que se lixe a Troika ! », descrito no livro de João Camargo com o mesmo título : Que se live a Troika, Porto, Deriva, 2013, com prefácio de Boaventura Sousa Santos. 9 Há uma estratégia facilmente reconhecível na caracterização das personagens: conferir-lhes nomes evocadores da história de Portugal. Uma criança chamada 8

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

347

uma multiplicidade de perspetivas em relação aos acontecimentos, se bem que a tonalidade crítica assumida pela maior parte das vozes narrativas limita a suposta complexidade do conflito a uma única linha. O efeito puzzle, atingido através da multiplicação das personagens e dos discursos, consegue um quadro final disperso, com acontecimentos a desenvolver-se em vários espaços, protagonizados por diferentes personagens. É evidente uma tendência para a divisão maniqueia entre vítimas e carrascos, patriotas e antipatriotas, para além de uma lógica bipolar que vai alternando acontecimentos dramáticos e outros esperançados. Tudo isto resta verosimilhança ao relato. No topo da caracterização negativa encontra-se a classe política portuguesa, adornada com todos os defeitos possíveis (corrução, interesse pelo enriquecimento pessoal, depravação sexual, etc.) e ainda acusada de ser a responsável do sofrimento do povo. Perante a situação de crise generalizada e a completa desintegração do tecido social, o governo português só tem planos de sacrificar o território nacional, conseguindo benefícios pela venda dele ou deixando que outros o ocupem. Por sua vez, o povo, guiado por Bartolomeu Henrique, improvisa barcos chamados Crísias, e, evocando épocas históricas do passado português em que o mar foi a saída natural a pressões económicas e políticas, vai embarcando e navegando pelo Atlântico, à espera de uma reação salvadora da Europa comunitária que não chega: Afonso, um jornalista chamado Bartolomeu Henriques, o primeiro-ministro, Sebastião Afonso, o Presidente da República, Luís Vaz da Gama, Judas da Silva, ministro responsável pela debacle política. Existem também personagens tipos identificados pela profissão (gestor, senhora idosa, banqueiro, comentador televisivo, historiador, a multidão que intervém a modo de coro trágico…)

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

348

Estamos há mais de três dias no mar. Mas porque é que ninguém nos vem salvar? (Sena- Lino 2013: 327)

Em conclusão, o mapa de Portugal que cartografa este romance mostra a imagem dum país “desmembrado” por diversos meios: o Sul e o Alentejo são vendidos para exploração turística e agrícola: vender os terrenos a grandes companhias; falava-se mesmo em hortas asiáticas, em venda de pedaços de território para cultivo. Portugal, a nova horta da Ásia, noticiava-se a 26 de Setembro no Berliner Time. (Sena-Lino 2013: 212)

O norte, até ao Porto, é invadido por Espanha, a pedido do governo português: O Presidente do Conselho espanhol, numa breve declaração, afirma estar a ocupar transitoriamente o Norte a pedido do Primeiro-Ministro e do Presidente da Constituinte. Manter-nosemos acima do Mondego até à nossa fronteira até que Portugal deixe de ser um país pária. (Sena-Lino 2013: 292) A televisão repetia imagens do caos, (…) as movimentações do Exército espanhol, tanques a entrar em Braga e Coimbra, milhares de pessoas a colocarem-se em frente aos soldados castelhanos no Porto. (Sena-Lino 2013: 293)

O romance visualiza o fim do Estado do Bem-estar para a grande maioria da população e, para alguns, o regresso às formas tribais de organização no meio rural. Mostra, pois, um caso de involução social, que inclui o massacre e o canibalismo, o surgimento de grupos de bandidos e de ultranacionalistas que se atacam,

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

349

esquecidos quaisquer preceitos morais ou éticos. Do outro lado, aqueles que querem reagir em prol de uma solução digna e coletiva resolvem uma saída simbólica pelo mar, que os transformará em náufragos contemporâneos, à espera do salvamento da Europa10. 2.3. Em 2015, Miguel Real, filósofo, crítico literário e escritor, publicou O último europeu. 2284.11 O autor projeta o tempo deste romance para um futuro muito afastado do presente da leitura e descreve o planeta como um território distópico, em que o desenvolvimento tecnológico aprofundou as diferenças económicas, acentuou a distância cultural e promoveu a inimizade política entre os estados. Neste mapa global, os continentes surgem divididos em grandes impérios inimigos, como acontecia na distopia orwelliana 1984: O Americano, o Sulamericano (dos coronéis), o Africano (controlado colonialmente pelo asiático), o Asiático (ou Dos Mandarins), os Baldios do Norte (Velha Europa capitalista e individualista) e a Nova Europa (separada da antiga em 2084) e, segundo se deduz, único espaço de paz e segurança no planeta. É nos territórios desta Nova Europa que se localiza inicialmente a ação do romance. O único narrador, bibliotecário e membro do conselho de sábios que regem o jovem e avançado império, encontrase refugiado na biblioteca da cidade por causa duma dupla invasão: O que fica de Portugal é, pois, o povo embarcado. Encontramos a imagem de Portugal como « navío-nación » no ensaio de Eduardo Lourenço, Nosotros como futuro (Lisboa, Pabellón de Portugal, Expo’98, 1998, traducción de J. León Acosta) : « ese navío-nación al que llamamos Portugal. Ningún barco europeo está más cargado de pasado que el nuestro » (p.18) 10

11

Segundo o próprio autor, a data do subtítulo quer ser uma homenagem ao grande romance distópico de George Orwell 1984, embora outras narrativas utópicas e distópicas ecoem nesta obra, a começar por Utopia de Thomas More.

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

350

por terra, dos bárbaros do norte, e por ar, de naves asiáticas. Nesse contexto adverso, o bibliotecário, conhecedor das antíguas técnicas de escrita a mão, começa a redação de uma crónica em que vai descrever pormenorizadamente a organização social e política da Nova Europa, consciente do perigo de desaparecimento em que se encontra. Nesta primeira parte do romance, é evidente na imaginação da Nova Europa a intertextualidade como obras utópicas clássicas como a República de Platão o a Utopia de More. São evocadas através de elementos herdados de aquelas: o governo dos sábios, a relevância das leis e dos legisladores, a anulação da propriedade privada, das classes sociais tradicionais, do trabalho como obrigação, a identificação do ego individualista como fonte de conflitos, entre outros.12 Nesta Nova Europa, o desenvolvimento tecnológico resolveu as questões fundamentais para a preservação da espécie, permitindo a reprodução extrauterina por meio de máquinas nodriças, a alimentação por meio de um composto energético igual para todos e a comunicação telepática. O problema energético foi resolvido com uma tecnologia que consegue a energia do núcleo candente do interior da terra. A segurança é garantida por uma espécie de cúpula de energia que impede a entrada de invasores. Mas o mais relevante dos avanços tecnológico é a ligação de todos os cidadãos a um cérebro central (o Grande Cérebro Electrónico) que, devido a ser uma máquina, está livre de pensamentos arbitrários e egoístas. No entanto, esta sociedade, que o bibliotecário descreve como o modelo civilizacional mais perfeito dos modelos existentes e com orgulho considera “humanista” (Real 2015: 17), é composta por indivíduos felizes mas infantilizados, dependentes das soluções que proveem do cérebro central e incapazes de resolver sem ele a situação A maior parte destes elementos pode ser encontrada dispersa em relatos utópicos europeus dos séculos XX e XIX (Riot-Sarcey et alii, 2009; Vilas-Boas, 2002). 12

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

351

de vida ou morte em que se encontram ameaçados pela invasão. A Nova Europa, num entorno distópico, pode parecer uma ilha, em que foi possível a realização da utopia tecnológica, mas, apesar das bondades descritas pelo narrador-personagem, o leitor percebe a tonalidade crítica que subjaz ao retrato do novo-europeísmo em alguns aspetos: a tecnocracia todo-poderosa, a anulação do sentido crítico e especulativo ou a uniformização dos indivíduos.13 Na segunda parte do romance, consumada a invasão do Império asiático, este ambiciona conhecer os segredos tecnológicos da Nova Europa, nomeadamente os avanços relativos às fontes de energia. O conselho de sábios nega-se a revelar a maior descoberta científica alcançada pelo jovem império e, em consequência, todos os europeus irão ser massacrados. A fim de evitar a aniquilação completa, o conselho planeia salvar unicamente cinquenta indivíduos que, em segredo, são deslocados para uma ilha escondida no Atlântico, antes pertencente ao Arquipélago dos Açores.14 Neste espaço, sob a direção do bibliotecário, escolhido como guia, conselheiro e guardião dos princípios morais e éticos da Nova Europa, os cinquenta cidadãos escolhidos terão a oportunidade de recriar uma sociedade harmoniosa e perfeita, ao modo da sociedade desaparecida, mas sem o controlo que a tecnologia exercia.

Neste ponto, também a utopia novo-europeísta imaginada por Miguel Real segue um dos traços comum ao género : « le strict dirigisme » do Estado. « Au nom d’une bonheur coercitif, l’homme est partout enchainé, comptable à l’État de ses actes et même de ses pensées ». (Trusson, 1979 : 23) 14 Também aqui a simbologia da ilha é evidente. Desde a Atlântida platoniana, as ilhas tem sido o espaço privilegiado pelas narrativas utópicas, pois representam melhor do que qualquer outro território o espaço separado, isolado, desligado do decorrer do presente, de onde provém o viajante que as visita. 13

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

352

No tempo futuro em que se projeta esta narrativa, Portugal já não existe.15 À semelhança de todos os países da Europa, desapareceu na nova entidade que abrangia o espaço geográfico compreendido da Polónia à Península Ibérica.16 Por sua vez, num tempo impreciso do passado, o Arquipélago dos Açores foi separado de Portugal e invadido por espanhóis: (…) quando Portugal, o país europeu a que o arquipélago pertencia, foi integrado no território do clã andaluz de Pablo Hernández, conhecido por El Matador, a restante população açoriana emigro em botes para o Império Americano. (Real 2015:127)

No entanto, na nova distribuição do espaço mundial o Oceano Atlântico passou a ser o mar americano e o arquipélago português pertence-lhe. A ilha do Pico, isolada e secreta, traços próprios de um “não lugar” como a ilha Utopia de More, será o espaço apropriado para tentar reviver um novo programa utópico: O arquipélago dos Açores evidenciara-se aos olhos dos Pantocratas como um dos mais isolados refúgios do mundo, terras perdidas no meio do mar, a quem nem o Império Americano nem o Impérios Asiático concediam a mínima importância.” (Real 2015: 122)

Na segunda parte do romance, o sábio idoso que dirige o salvamento dos cinquenta cidadãos escolhidos vai narrar todo o processo de construção duma nova sociedade: a novíssima Europa. O primeiro ensaio de uma cidade novo-europeia, denominada “conglomerado”, foi realizado em Portugal, “numa região inóspita e semidesértica de Portugal chamada Baixo Alentejo” (Real, 2015: 40) 16 Alemanha e Inglaterra representam a Velha Europa capitalista e individualista do norte que fica de fora desta Nova Europa de tradição clássica. 15

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

353

Estes indivíduos, desligados do cérebro comum e habitando um espaço natural inóspito, sem meios técnicos, terão que regressar a soluções pré-tecnológicas tais como a reprodução natural ou o cultivo da terra para a produção de alimentos. Ao tempo, começam a surgir os problemas derivados do nascer do eu individualista: a pertença dos filhos paridos novamente pelas mulheres, os casais abandonam o sexo livre, renasce o desejo de propriedade privada, entre outras dificuldades. Procedente duma sociedade eutópica, perfeita aos olhos do narrador (nem tanto aos do leitor), o pequeno grupo irá passar por várias crises que consegue ir resolvendo, até que a comunidade é finalmente descoberta pelos donos do território, o Império Americano e são obrigados a sair da ilha, a caminho do continente da América do Norte, onde os espera um futuro escuro e adverso. O sábio, um velho centenário nesta altura, é dispensado do desterro e fica na ilha. Com a morte dele, desaparece o último “verdadeiro” europeu. Como podemos observar, o longo testemunho do ancião bibliotecário descreve dois momentos: em primeiro lugar, oferece o retrato duma sociedade que aproveitou positivamente o desenvolvimento tecnológico, colocando-o ao serviço do bem-estar de todos os cidadãos, libertando-os do trabalho de subsistência, de doenças, constrangimentos. No entanto, os indivíduos da Nova Europa tiveram de renunciar à liberdade, para criar esse espaço de convívio harmónico sob o controlo das máquinas. Ligados por meio do hipercórtex a um cérebro eletrónico que produzia juízos objetivos, orientava e aconselhava, homens e mulheres tinham atingido um estado de aparente perfeição, extirpados os sentimentos e a consciência do eu individual. A tecnologia tornou possível a proteção férrea do espaço e, mantendo a Nova Europa dentro de uma bolha de

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

354

vidro, aproximou-a da realização utópica da sociedade feliz.17 A impossibilidade de uma sociedade justa e igualitária novo-europeia, cujo principal garante só parece ser a biotecnologia, relaciona-se com o contexto mundial contra-utópico, manifesto nas várias invasões que sofre. Na segunda parte do romance, assistimos a uma nova oportunidade de construir a utopia, agora sem o controlo da tecnologia, unicamente com o tesouro dos conhecimentos e da tradição herdados. A pequena comunidade mantém-se com dificuldade, mostrando como é custoso realizar um programa social equânime e consensual, mas é novamente o entorno hostil que acaba com esta possibilidade, extirpando a pequena mostra que os novoeuropeus representam perdidos na imensidão do oceano. Não há, portanto, espaço para a esperança, visto que não existe um “não lugar” onde experimentar a utopia. Pelo contrário, a distopia prevalece num mapa global dividido em blocos de poder com tensões que, mesmo projetadas num futuro longínquo, são reconhecíveis no presente da leitura. 3. AS DIFERENTES FORMAS DE FAZER DESAPARECER PORTUGAL Seguindo, pois, alguns dos modelos do género distópico, o Portugal do futuro é representado nestas narrativas como parte de um mundo que assiste à desintegração das entidades políticas clássicas e à criação de novos agrupamentos supra-estatais, A impulso que leva o sábio bibliotecário a escrever sobre a Nova Europa tem como finalidade tirá-la da categoria de utopia, conceito que considera sinónimo de irrealidade : « A Nova Europa fora uma realidade, não uma utopia » (Real 2015 :115) 17

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

355

resultantes de alianças necessárias para a supervivência económica. Neste contexto, Portugal está condenado ao desaparecimento físico e político. Este apagamento é representado literariamente mediante processos diferentes em cada obra. No conto do Rui Zink, sob a metáfora da inundação que está a acabar lentamente com todas as formas de vida no espaço que antes tinha sido o estado luso, pode ler-se o desmantelamento duma economia fraca e arrasada pelas diretrizes políticas do poder central da Nova Bruxelas. O artifício do engano governamental com que se tenta fazer crer aos indivíduos que é possível uma vida aquática oferece uma imagem crítica do governo europeu, pronto inclusive a mentir aos cidadãos ao oferecer miragens de progresso e evolução. Na atitude crédula do narrador é representada a atitude confiante da sociedade portuguesa perante o seu aniquilamento. Por trás da ideia da impossibilidade de vida no mar são evidentes o ceticismo europeísta e a ideia de ser impossível para Portugal existir no seio da Europa rica. Em Despaís, a ocupação do território por outros povos priva os portugueses do espaço que sempre lhes pertenceu, transformando-os em imigrantes, semelhantes a refugiados, marginais, expostos aos perigos duma viagem sem destino: De facto, a noção de um povo sem terra é fértil na história da Humanidade. Da Bíblia aos Hunos. Mas falar de um povo sem terra no século XXI parece um retrocesso. Ou uma estranha forma de perceber que todas as estruturas civilizacionais são a maior mentira de segurança do mundo. (Sena-Lino, 2013: 319)

A narrativa de Sena-Lino culpabiliza, em primeiro lugar, a classe política portuguesa que antepõe os interesses privados ao bem comum e é incapaz de promover o progresso do país; a sociedade

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

356

portuguesa, acusada de ser facilmente manipulável, sem capacidade para reagir à procura do benefício coletivo (fora de alguns grupos), sectária e tribalista. Mas para além de estes culpados, o romance assinala também a União Europeia, como responsável pela desproteção dos cidadãos, sublinhando uma relação perversa entre centro e periferia. Continuando com a evocação histórica, recurso constante ao longo do romance, um novo velho do Restelo quer abrir os olhos de todos: “(…) aiii estamos sozinhos, ai a União Europeia não vai fazer nada, gritava um velho que descia sem ar…” (Sena-Lino 2013: 311) Neste sentido, a obra de Sena-Lino partilha com o conto de Rui Zink um certo ceticismo europeísta. Em relação ao tempo presente da escrita e da leitura, em Despaís, a vivência da crise económica em Portugal, época de resgates, de recortes nos salários, de despedimentos e extinção de numerosos serviços públicos, que começou com a assinatura do Memorando da Troika em 2011, é transformada em ficção distópica. Os anos seguintes conheceram diversas formas de contestação popular, nomeadamente grandes manifestações encenando o divórcio entre a sociedade portuguesa e os seus dirigentes políticos, aspeto que aprofunda o romance de Sena-Lino e que o autor faz derivar para uma situação apocalíptica de instabilidade social. A ideia que o país está a “ser destruído” é o alicerce desta narrativa que sintetiza, em geral, uma imagem muito negativa da classe política portuguesa. Por um lado, as narrativas assinalam, enquanto agentes do desaparecimento de Portugal, outras nações, nomeadamente Espanha, que ocupa com o seu exército o norte de Portugal em Despaís e que anexou Portugal ao Clan do cigano Pedro Hernández, antes de ser criada a Nova Europa, no romance de Miguel Real. Mediante esta representação de Espanha como estado inimigo, é Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

357

evocado um dos mitos traumáticos da cultura portuguesa: o mito da invasão espanhola, alimento habitual de um antiespanholismo histórico, “mito tão entranhado na nossa herança cultural que quase parecia inscrito no código genético da nossa nacionalidade”. (Medina 2006: 40) Para além de Espanha, a nova ameaça do poder chinês surge nestes dois romances. Em Despaís, a China compra parte do território de Portugal para o transformar em hortas e em O último europeu, a Nova Europa sucumbe perante o poder violento do Império dos Mandarins, ávidos de conhecimento tecnológico. Por outro lado, a Europa, unidade supranacional, é considerada responsável do desaparecimento de Portugal, tanto físico como político: é o novo poder centralizado da Nova Bruxelas que impõe a política de inundações e oferece o engano duma vida híbrida no mar; é também Bruxelas que apoia os planos ilegítimos dos políticos portugueses de venda do território nacional. A representação da Europa em O último europeu é mais complexa18, visto que surge fragmentada em dois espaços no futuro imaginado por Miguel Real: A Velha Europa do Norte, habitada pelos “bárbaros” que mantêm formas de vida idênticas àquelas do princípio do século XX, e a Nova Europa, de que Portugal faz parte desde o início, sendo inclusive território de experimentação das primeiras cidades tecnologicamente avançadas. Esta Europa, espacialmente sediada no sul mediterrânico, reconstruída sobre a tradição de valores filosóficos clássicos e humanistas, sublinhando a diferença civilizacional entre bárbaros e novo-europeus, é um projeto Ultrapassa os objetivos de este trabalho o confronto deste romance com o ensaio de Miguel Real A Vocação Histórica de Portugal (2012), nomeadamente os capítulos iniciais dedicados a analisar o espírito da Europa, a decadência e a ressurreição (3159). A complexidade da imagem (e da conceção) da Europa tornar-se-ia mais evidente. 18

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

358

de utopia positiva em comparação com outros impérios, mesmo que na sua construção os países tivessem de apagar, voluntaria ou involuntariamente, os traços de uma identidade própria. Embora diluído na Nova Europa, a existência de Portugal, como antigo estado, é evocada repetidamente; aquilo que foi o seu território (os Açores) é escolhido para experimentar um renascimento do novoeuropeísmo. Para a supervivência do grupo, será fundamental a ajuda duma família portuguesa que nunca abandonou as ilhas. No entanto, como dizíamos, este programa utópico também é imaginado como uma realização impossível em O último europeu. 4. A DIMENSÃO CRÍTICA DAS DISTOPIAS Como acontece nalgumas das distopias literárias mais conhecidas do século XX19, também em relação a estas narrativas disfóricas da literatura portuguesa pode afirmar-se que “são feitas não para fugir da história que se aproxima mas para a explorar” (Riot-Sarcey et alii 2009: 89). Embora se apresentem como projeções do futuro do país, a relação com a história recente de Portugal é visível em quaisquer dos três casos. O contexto histórico presente que merece ser criticado e, a seguir, vestido com o disfarce futurista ligase às relações atuais de Portugal com a União Europeia, ao descrédito dos governos nacionais (no romance de Pedro Sena-Lino, especialmente durante a última crise financeira), e ao surgimento, no âmbito da globalização, de macros-espaços de influência económica, em que os estados-nação, como Portugal, ficam diluídos.

Estamos a pensar em alguns dos mais conhecidos romances do género distópico: Nós (1924) de Evgueny Zamiatin, Admirável Mundo Novo (1931) de Aldous Huxley, 1984 (1949) de George Orwell ou Farenheit 451 (1953) de Ray Bradbury. 19

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

359

A crise económica e as políticas de austeridade impostas a Portugal pelo poder central europeu desde 2011 estimularam a produção deste tipo de discursos críticos, muito frequentes no âmbito ensaístico e jornalístico, menos presentes na produção literária. O conto de Rui Zink, anterior a este período de crise, refletia um certo ceticismo europeísta que teve igualmente um lugar próprio no pensamento cultural português20 e exemplos literários de relevo21. A conexão com a sociologia permitiria criar um diálogo entre o retrato ficcional da sociedade portuguesa, que estes relatos oferecem, e o factual que, grosso modo, confirma uma importante mudança na imagem inicial da União Europeia e um deterioro considerável na imagem das instituições políticas entre 2005 e 2013. 22 Eduardo Lourenço, num artigo de 1992, intitulado “A Europa no imaginário português”, considerava o caráter “não-pensado da nossa aventura europeia”, apoiado numa imagem da “Europa euforizante”. A falta de reflexão e “interiorização” produziriam deceção e desencanto, segundo o autor. (Lourenço, 2005: 114) 21 Por exemplo, o romance A Jangada de Pedra de José Saramago, publicado em 1986. 22 Parece que estes romances acompanhavam a evolução da opinião pública portuguesa em relação ao crescimento do “desencanto” com as instituições europeias. O Eurobarómetro, que testa semestralmente a opinião dos cidadãos europeus, confirmava na primavera de 2005 (63.4) que os portugueses eram os europeus mais confiantes na União Europeia, mas, ao mesmo tempo, Portugal era o único país dos estados membros da união que avaliava negativamente as instituições políticas nacionais. (European Comission 2005, 12-14). Esta perceção manteve-se desde “os anos 80, e até ao início do século XXI, mais de metade da população portuguesa considerava a UE uma “coisa positiva”, e acreditava que Portugal tinha beneficiado com a adesão. Esse apoio de Portugal à UE era dos mais entusiastas de toda a EU (…)” (Lobo, 2016, s/p). Com o início da crise, as percentagens dos entusiastas vão decrecendo: “No inquérito Eurobarómetro 77, realizado em 2012, apenas 30% considerava que a UE agia eficazmente para combater a crise económica, uma queda de dez pontos percentuais em relação a 2011. (…) Do mesmo modo, 36% dos inquiridos concordavam que Portugal estaria melhor fora da União Europeia. Esta última percentagem é simbólica da mudança profunda nas percepções sobre os 20

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

360

Além da crítica do presente, costuma assinalar-se o propósito de advertência e de estímulo para a reflexão, para a assunção de posturas éticas e, inclusive, para impelir à acção como inerente ao relato distópico. É patente nas obras aqui apresentadas um objetivo provocador ou, no mínimo, interpelador, que os próprios autores declaram ter sido conscientemente procurado, convictos da capacidade da leitura de textos literários para estimular a ação individual. Assim, Sena-Lino concebeu o seu romance como ponto de partida para o debate: “O objectivo é desencadear a discussão a partir da obra literária”, diz, salientado que a obra de arte não pode ficar fechada em casa, mas tem que provocar discussão, ser provocadora, tanto na forma como no conteúdo. Despaís quer um leitor inconformado e perturbado no fim da leitura, quer que o leitor se pergunte o que pode fazer para evitar o cenário extremo de crise financeira, social e de identidade nacional que o livro descreve. (Entrevista ao autor de Catarina Moura, Público | 18 de julho de 2013)

Por sua vez, Miguel Real atribui ao romance O último europeu a função primeira de motivar a reflexão e, por meio dela, insinua-se a capacidade do discurso literário para influir nas decisões individuais intervindo, assim, na realidade:

benefícios da UE para Portugal, que porventura estarão relacionadas com a associação da pertença ao Euro e ao pacto assinado em 2011.” (Lobo 2016, s/p) Por último, em relação ao Eurobarómetro nº 78, realizado no final de 2012, o inquérito mostra que em Portugal, “59 por cento dos inquiridos sentem que são cidadãos europeus – uma proporção ligeiramente inferior à média da UE (63 por cento)” (Comissão Europeia 2012: 3)

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

361

Sociedades ferozmente e tecnologicamente regulamentadas, vivendo em ditaduras eventualmente felizes, com um número de habitantes tal que não é possível a democracia, mas uma invenção política rebuscada e audaciosa. Este é um futuro para o Ocidente… O futuro está em aberto. Não proponho nem uma nem outra solução. Quero que o leitor pense sobre o futuro e apresento-lhe cenários alternativos. Ele, com o seu voto, que decida em que partidos deve votar para que se concretize uma boa solução de futuro. Cabe-lhe escolher, a mim cabe-me motivá-lo a reflectir. (Entrevista a Miguel Real: sobre o romance: http://deusmelivro.com/entrevistas/miguel-real-9-4-2015/)

Os autores representam as suas preocupações éticas, políticas e sociais através da imaginação distópica. Partilham-nas com os leitores e contribuem para criar imagens do tempo presente, dos acontecimentos e dos protagonistas, reconhecíveis sob o disfarce futurista. Neste sentido, chama a atenção a negatividade com que é retratado o futuro de Portugal e a falta de confiança nas reações coletivas. Embora os autores manifestem este desejo de mexer nas consciências e estimular a ação, os romances não oferecem modelos para a resolução dos conflitos. Os que são apresentados, como a Novíssima Europa “Açoriana”, ilustram o insucesso das tentativas. Nos três relatos estudados, o processo histórico conclui-se com a destruição do país e a morte do povo. Não há lugar para a esperança, não há espaço para a utopia. BIBLIOGRAFIA Camargo, João (2013), Que se lixe a Troika! Porto, Porto Editora. Cunha, Carlos (ed.) (2011), Escrever a nação: literatura e nacionalidade (uma antologia). Ponte-Guimarães, Opera Omnia.

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

362

Kalewska, Anna (2016), “Miguel Real’s O Último Europeu. 2284” or a utopian questioning of our individual and collective freedom”, Maria do Rosário Monteiro, Mário S. Ming Kong, Maria João Pereira (eds.), Utopia(s) – Worlds and Frontiers of the Imaginary, Leiden, CRC Press, pp. 25-40. Lobo, Marina Costa (coord.) (2016), Portugal e a Europa: novas cidadanias. Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos e União Europeia. Lourenço, Eduardo (2001), O Labirinto da Saudade, Lisboa, Gradiva. (1ª ed. 1978). Lourenço, Eduardo (1984), Nós e a Europa ou as Duas Razões, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Lourenço, Eduardo (1998), Nosotros como futuro. Lisboa, Pabellón Expo’98. Lourenço, Eduardo (2005), A Europa Desencantada. Para uma mitologia europeia. Lisboa, Gradiva. 1ª ed. 1994. Matos, Sérgio Campos (2002), “História e identidade nacional. A formação de Portugal na historiografia contemporânea”, Lusotopie, pp. 123-139. Medina, João (2006), Portuguesismos. Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa. Real, Miguel (2015), O Último Europeu. Lisboa, Caminho Riot-Sarcey, Michèle; Bouchet, Thomas; Picon, Antoine (2009), Dicionário das Utopias. Lisboa, Edições Texto&Grafia. Tradução ao português de Carla Bogalheiro Gamboa e Tiago Marques. Santos, Boaventura de Sousa (2012), Portugal. Ensaio contra a Autoflagelação. Lisboa, Almedina (1ª edição 2011) Sena-Lino, Pedro (2013), Despaís. Como suicidar um país. Porto, Porto Editora. Trousson, Raymond (1979), Vogages aux pays de nulle part. Bruxelles, Université de Bruxelles. Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

363

Vilas-Boas, Gonçalo (2002), “Utopias, distopias e heterotopias na literatura de expressão alemã”, Cadernos de Literatura Comparada 6/7: Utopias, orgs. Fátima Vieira e Jorge Miguel Bastos da Silva. Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, pp. 95118. Zink, Rui (2006), Onde a Terra Acaba- Contos Portugueses. Lisboa, 101 Noites, pp. 118-130.

Mª Jesús Fernández, “O desaparecimento de Portugal: narrativas distópicas na literatura portuguesa contemporânea”, Cartografías del Portugués: Lengua, Literatura, Cultura y Didáctica en los Espacios Lusófonos. Actas del IV Congreso Internacional de la SEEPLU, 2016, pp. 341-364.

364

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.