Narrativas do Espólio: Uma Etnografia Sobre o Fandango e a \"Perda\" Cultural Caiçara

June 23, 2017 | Autor: Gabriel Bertolo | Categoria: Ethnography, Cultura Popular, Património Cultural Imaterial, Fandango, Fandango Caiçara
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

GABRIEL BERTOLO

Narrativas do Espólio: Uma Etnografia sobre o Fandango e a “perda” cultural caiçara (Cananéia – SP)

São Carlos 2015

GABRIEL BERTOLO

Narrativas do Espólio: Uma Etnografia sobre o Fandango e a “perda” cultural caiçara (Cananéia – SP)

Dissertação

apresentada

ao

Programa

de

Pós-

Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos para a obtenção do título de Mestre em Antropologia Social

Orientador: Luiz Henrique de Toledo

São Carlos 2015

Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar

B546ne

Bertolo, Gabriel. Narrativas do espólio : uma etnografia sobre o fandango e a “perda” cultural caiçara (Cananéia – SP) / Gabriel Bertolo. -- São Carlos : UFSCar, 2015. 165 f. Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São Carlos, 2015. 1. Antropologia. 2. Fandango. 3. Etnografia. 4. Cultura popular. 5. Patrimônio imaterial. I. Título. CDD: 306 (20a)

Aos meus pais, meu irmão e a toda família Bertolo, pelo amor, compreensão e carinho, indispensáveis, tanto para a elaboração deste trabalho, quanto da minha pessoa.

Agradecimentos Agradeço primeiramente à FAPESP, pela bolsa que me permitiu realizar este trabalho. Ao professor Luiz Henrique de Toledo, pela fantástica orientação, que permitiu que esta dissertação tomasse a forma que tomou. Aos professores Geraldo Luciano Andrello, Marina Denise Cardoso, Piero de Camargo Leirner, Felipe Vander Velden, Clarice Cohn, Simone Diniz e Gabriel Feltran, que tanto me auxiliaram em minha formação intelectual. E aos amigos de Barravento e agregados, e da turma de 2008 das ciências sociais, que me permitiram que, para além do aspecto intelectual, pudesse crescer como pessoa. Não os nomeio todos na certeza de cometer alguma injustiça ao esquecer alguém. Vocês sabem quem são vocês. Agradeço ainda a Flávia Carolina da Costa e Dayana Zdebsky de Cordova que contribuíram de forma essencial e de diferentes formas no desenvolvimento deste trabalho. E agradeço de maneira especial à Gabriela Braga Loreti, cujo companheirismo, amor e dedicação são o motor de minha vida. Devo muito – se não tudo – a você. Sou grato também a Isabel e Fernando, meus sogros, que me aceitaram com muito carinho e compreensão em sua família. Agradeço especialmente à Amir Oliveira Filho, José Marques e Felipe Santana, meus anfitriões em Cananéia, pela hospitalidade, pela amizade e pelo apoio essencial na formulação das ideias aqui propostas. Não é preciso dizer, este trabalho não seria possível sem a ajuda de vocês. Agradeço também a Rodolfo Vidal, pelas conversas sobre o fandango e a cultura caiçara. Por fim, devo agradecer a todos os fandangueiros e caiçaras, além das pessoas envolvidas pelo fandango, com quem tive o prazer de travar diálogo. Este trabalho é de vocês.

Canção Caiçara “De onde vens, patrício, camarada, amigo? Salta da canoa, vem pousar em paz. És dos Alcatrazes ou do Bom Abrigo? De uma das Queimadas ou dos Sanzalás? Vens de Vila Bela, do Montão de Trigo? Vais a Cananéia, vais aos Craguatás? Venhas de onde vieres, com prazer te sigo, Vás para onde fores, tu comigo irás. É que em toda costa, paulistanamente, Há uma só família, de tão boa gente, Que em qualquer momento teu irmão sou eu. Sem saber teu nome, dou-te o meu afeto, E, no comunismo do meu pobre teto, A farinha é tua, todo o peixe é teu.” Martins Fontes.

Queromana Hoje estou cantando aqui Amanhã já vou m’embora Hoje estou cantando aqui Amanhã já vou m’embora Amanhã já vou m’embora Como não irei chorando Como não irei chorando Por este caminho afora Queromana tudo bem Muito padece quem ama Muito padece quem ama Quem no mundo amores tem Meus senhores com licença Despedida ‘imo dar Meus senhores com licença Despedida ‘imo dar Despedida ‘imo dar Nossa licença são poucas Nossa licença são poucas Nessa, sim, vai acabar Queromana vou e voto Quero saber de quem amo Quero saber de quem amo Que dos outros não me importo (Queromana – Fandango Caiçara)

Agradecimentos

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Sumário

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Resumo

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Introdução: Narrativas do Espólio

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Capítulo 1: Apresentando o Fandango Caiçara

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1.1 – O fandango do passado e o fandango do futuro

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1.2 – Encontros e Desencontros entre o Estado e a Cultura: o Fandango e a política de editais 1.3 - “Revelando” o Fandango

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Capítulo 2: Outros elementos para uma sociologia da transformação caiçara: Parentesco, espaçotempo e cismogênese

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2.1 – Parentesco

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2.2 – Fandango e Parentesco

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2.3 – Território, Fandango e Parentesco Caiçara – Preservacionismo vs Conservacionismo 2.4 – Cismogênese, intimidade cultural e o “tornar-se-passado”

80 93

Capítulo 3 – Patrimonialização da Cultura (I)material: Um Olhar Crítico sobre a visada Patrimonial

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3.1 – Introdução e breve histórico das políticas de patrimonialização

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3.2 – Patrimônio Imaterial como bem: “materialidade” vs “imaterialidade”

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3.3 – Culturas Populares: Elos do Passado “Perdido”

123

Conclusão

134

Bibliografia

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Resumo Esta dissertação tem como objetivo empreender uma análise, baseada em etnografia realizada entre fandangueiros do litoral sul do estado de São Paulo, no município de Cananéia, que busque acompanhar o fluxo em que se entremeia o fandango caiçara nas redes estabelecidas pelos agentes que se envolvem com a cultura caiçara em uma forma objetivada, isto é, que se envolvem com a cultura caiçara como um objetivo político e como um “objeto”, a um só tempo. Dessa maneira, a partir da etnografia, a análise aqui empreendida buscará, em vez de “explicar” o fandango caiçara em referência a um pano de fundo cultural, mostrar como o próprio fandango transforma e atua sobre a cultura (se transformando reciprocamente), em sua forma objetivada ou não. Será, assim, essencial para o trabalho realizado uma análise sobre o pessimismo – que chamamos de estrutural – com o qual os fandangueiros encaram as próprias transformações engendradas em sua cultura, alegando (quase) sempre que o fandango “se acabará”. Estarão também sob escrutínio as ações de órgão públicos e agentes privados que buscam “revitalizar” e “resgatar” o fandango, como as políticas de patrimonialização crescentes nas últimas décadas no Brasil, processo pelo qual o fandango foi transformado em Patrimônio Imaterial Cultural do Brasil, em 2011. Palavras chave: Fandango Caiçara – Etnografia - Cultura Popular – “Perda” Cultural – Patrimônio Imaterial

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Abstract This dissertation aims to undertake an analysis, based on ethnography between fandangueiros of the southern coast of the state of São Paulo, in the municipality of Cananéia, who seeks to follow the flow as it interweaves Fandango caiçara in the networks established by the agents who engage in the Caiçara culture, in an objectified way, that is, engage with caiçara culture as a political objective and as an "object", at the same time. Thus, from the ethnography, the analysis undertaken here will seek, instead to "explain" the caiçara fandango in reference to a cultural background, show as its fandango transform and act on culture (transforming itself reciprocally), in a objectified way or not. It will therefore be essential for the work done an analysis of pessimism – that we call structural – with which fandangueiros face their own transformations engendered in their culture, claiming (almost) always that the fandango "it will be over". Will also be under scrutiny the public actions and private agents seeking "revitalize" and "rescue" Fandango, as the increasing heritage policies in recent decades in Brazil, the process by which the fandango was transformed into Intangible Cultural Heritage of Brazil, in 2011. Keywords: Fandango Caiçara – Ethnography - Popular Culture – Cultural “Loss” – Imaterial Heritage.

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Introdução: Narrativas do espólio

O intuito desta dissertação é, partindo de etnografia realizada entre fandangueiros caiçaras de Cananéia, município localizado no litoral sul do estado de São Paulo, no Baixo Vale do Ribeira, vertente marítima sul do complexo estuarino Lagamar, elaborar uma discussão sobre alguns temas que cerceiam a mais exaltada das manifestações culturais caiçaras: o fandango. Sendo uma etnografia, buscar-se-á apresentar o fandango como encarado atualmente pelos fandangueiros, em suas relações contextuais que acabam por escapar, muitas vezes, do escopo dos estudiosos da chamada cultura popular, incluindo nestes os trabalhos realizados por instituições e agentes públicos e privados, cujas ações e idealizações sobre a cultura dita popular ou tradicional, afetam diretamente as relações em que o fandango se envolve e, deste modo, também acabam por ser afetadas pelo próprio fandango. Desta maneira, na tentativa de emular o “espírito” do fandango sobre a forma desta dissertação, os temas que serão apresentados, por mais abrangentes que possam parecer, são interligados, a um só tempo, pelo próprio fandango e por aquilo que aparentemente é o cerne das preocupações fandangueiras, tanto em relação ao contexto em que o fandango se imiscuí, mas principalmente com relação ao próprio fandango: a chamada perda cultural, o temor de que o fandango se acabará, fim este sempre localizado em um futuro (muito) próximo. O fandango é encarado pelo caiçara como em constante processo de desaparecimento, e um dos objetivos desta dissertação é mostrar como esse discurso que se volta para o fim de sua cultura, antes de assumir tons fatalistas, representando uma reação dos fandangueiros às transformações que afetam o fandango e sua cultura, é o modo pelo qual os fandangueiros engendram essas mesmas transformações, deste modo (re)inventando o próprio fandango e servindo como filtro das ações que o envolve, seja ela proveniente dos próprios caiçaras e fandangueiros, ou de agentes do governo e de organizações não-governamentais, turistas e pesquisadores. Nesse sentido, o título da dissertação serve ao mesmo tempo como ilustração de uma espécie de linguagem própria relativa ao discurso da perda cultural, como também serve como uma pequena provocação ao discurso antropológico sobre o mesmo tema. Provocação não no

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sentido de polemizar algo, mas em seu sentido literal, o de provocar uma reflexão sobre um assunto que, a despeito de estar no centro das preocupações de alguns antropólogos é geralmente tomado ou como um dado inexorável sobre o destino das culturas tradicionais e/ou populares (as culturas tradicionais irão acabar) ou como uma ilusão sobre esse destino (eles acham que irão acabar, mas não irá), por sua vez, fruto de uma percepção aguçada sobre as transformações de uma cultura dita popular ou tradicional quando contraposta aos ditames da modernidade. É para repensar esses dois pontos de vista que utilizo a imagem do espólio. Repensálos não como meio de “superar” a distância entre os dois tipos de formulação, mas antes, como uma tentativa de potencializá-las, multiplicá-las em termos de sentido e assim estabelecer uma distância (em si, também uma forma de relação) entre o ponto de vista da perda cultural como entendida por quem fala sobre as culturas tradicionais e/ou populares e por aqueles que a vivem efetivamente, no caso presente, os fandangueiros caiçaras de Cananéia. Espólio, em sentido dicionarizado, significa patrimônio, isto é, todos os bens, direitos e obrigações deixadas por alguém que veio a falecer. Esta imagem pode nos ser útil para entender (pelo menos, em um primeiro momento) a eminência das considerações do fim do fandango em sua própria reprodução, se levarmos em consideração a afirmação, recorrente entre os fandangueiros, de que o fandango no fim dos anos 1990 acabou-se. Em outro sentido, a palavra espólio também pode evocar um sentimento muito corrente entre os caiçaras, sentimento esse que compartilham com grande parte do que chamo de agentes culturais, de maneira um tanto simplória, aqueles que trabalham ou se envolvem de alguma forma com a cultura caiçara no presente caso. É o sentimento de que o que se “perdeu” (culturalmente) não foi uma “simples” perda, mas fora também, tirado, arrancado deles, por motivos como a grilagem de suas terras, ou a transformação delas em unidades de conservação ambiental, a intrusão das coisas da modernidade, como a tecnologia e músicas de forte apelo midiático, a conversão de fandangueiros ao neoprotestantismo, entre outros fatores, que contribuiriam com o eminente fim próximo do fandango. Mas, se é um espólio no sentido de que é uma herança de um passado que não existe mais, e no sentido de que algo lhes fora tirado (mais do que perdido), é também um espólio do futuro. A peculiaridade da concepção de perda cultural para os fandangueiros é justamente o fato de que uma elaborada visão sobre os motivos que desembocaram na situação atual do fandango não se localiza apenas no passado, mas é lançada no presente e no futuro, como um

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meio de garantia de que não ocorra com o fandango o que acontece com ele no discurso. É assim uma espécie de estado constante de alerta, uma percepção sobre o passado que a despeito de “não ser mais o que era” é a própria garantia de que existirá um futuro. No primeiro capítulo serão lançados dados etnográficos com o intuito de se desenhar um panorama de como esse pressentimento da perda e do fim dão a tônica das discussões em torno do fandango. Como afirma, Stuart Kirsch, o conceito de “perda cultural” se prefigura em um problema face o conceito antropológico de cultura contemporâneo, visto mais como um processo dinâmico e transformativo, em vez de algo que possa ser perdido ou danificado (KIRSCH, 2001: 168). Critica, desse modo, Marshall Sahlins, que postula que

definir a cultura nos termos da perda tem como efeito apagar continuidades lógicas e ontológicas envolvidas nos diferentes jeitos que as sociedades interpretam e respondem à conjuntura imperialista. Se a cultura deve ser concebida como e sempre e apenas em mutação, a fim de que não se cometa o pecado mortal do essencialismo, não pode haver algo como identidade […] fora da continuidade (SAHLINS, 1993: 4 apud KIRSCH, 2001: 168, tradução livre)

Kirsch afirma então que “ao naturalizar completamente a mudança, também se obscurece o que é perdido ou esquecido” (idem ibidem). O que se deixa de lado, entretanto, é que “cultura”, como afirma Manuela Carneiro da Cunha (2009), é um termo que fora “importado”, digamos assim, da antropologia, e nesse sentido, um termo híbrido como “perda cultural” só pode ser lido com referência ao segundo termo. Se desmembrarmos o conceito, pode-se chegar a conclusão de que, se cultura, ao ser “importada”, ganha contornos e contextos diferentes daqueles imaginados pela antropologia (seu contexto “original”), então, como indica Christopher Ball (2005), a noção de “perda” também ganha novos significados, ou ainda evoca outros que não necessariamente tenham a ver a cultura, ou pelo menos, com a cultura como imaginada pelos antropólogos. Assim, no segundo capítulo, discutirei como a noção de cultura caiçara, se comparada com outros modelos de cultura (não só antropológicos) pode ser encarada como um quadro de referência que abarca mais ou menos (geralmente mais) elementos do que os postulados sobre sua cultura feitos por agentes “externos”. Se cultura é, dessa maneira, encarada de maneira polissêmica, a “perda” também deveria sê-la. Ao estabelecer um quadro de referência para a cultura que contrapõe visões distintas sobre uma determinada cultura (no caso a caiçara), notei que, para os agentes envolvidos com 12

a cultura caiçara as definições de “interno” e “externo”, no contexto discutido, não se referiam tanto aos marcadores identitários ou étnicos que poderiam contrapor o caiçara com o “moderno”, na figura de pessoas da “cidade grande”, em suma, representantes de um tipo de estilo de vista contraposto ao tradicional (note-se a extrema vagueza com as quais se definem essas pessoas). Os vocativos “interno” e “externo” dizem mais respeito às ações que se realizam em torno e pelo fandango, sendo assim reservado o primeiro termo para os estilos de fandango e ações que se voltam para “dentro”, voltado para o próprio fandango ou cultura caiçara, e “externo” para aqueles que se voltam para fora (como, por exemplo, para os turistas). Nesse sentido, um fandangueiro ou um fandango pode assumir um ponto de vista “externalista”, no sentido de que se volta para fora e um agente estatal um ponto de vista “internalista”, quando toma ações que podem ser entendidas como beneficiárias para a realização do fandango na e para a comunidade. Ressalto, novamente, que tal distinção diz menos sobre os marcadores identitários caiçaras do que das redes formuladas pelo fandango, uma vez objetivado, isto é, quando o fandango, junto com a cultura caiçara é posto como objetivo e é tornado objeto de ações por parte dos envolvidos. No capítulo 3, portanto, discutirei algumas ações voltadas para dentro do fandango, encarnadas principalmente nas políticas de patrimonialização que, não obstante carregarem consigo definições e parâmetros distintos da concepção que caiçaras fazem de sua cultura, tem efeitos práticos importantes na sua realização, como a já citada objetivação da cultura e inferências sobre sua temporalidade. Sobre essa temporalidade, acredito ser esse um dos principais pontos sobre os quais encontram-se em desacordo os pontos de vista em jogo na análise. Isto porque muitas vezes, imprime-se uma concepção de cultura popular que a cola com um passado remoto idealizado, que deriva um modelo de transformação que é entendida somente na chave de uma ruptura negativa. Não diria, nem ao menos que esse é um ponto de vista “hegemônico” quando se trata das relações envolvidas pelo fandango, mas é um que gera consequências importantes para o conjunto de práticas derivado do fandango. Digo que não é hegemônico, pois do mesmo modelo, que relaciona as culturas populares com passado, de forma estática, pode se depreender uma noção sobre o passado (diria idealizado, seguindo Michael Herzfeld [2005]) que, de maneira diversa, são utilizados em outros construtos que enxergam esse mesmo passado idealizado como forma de derivar o futuro, isto é, o passado deixa de ser apenas memória, e a memória se torna um artefato de manipulação do presente e do futuro. Ademais,

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o que é generalizado seria o próprio ato de idealização do passado, sendo o papel que é dado a este passado o termo que varia. O que argumento nesta dissertação é que o papel que é dado a esse passado, a função que ele exerce dentro de uma concepção sobre o fandango (e a cultura caiçara) assume a forma de um pessimismo sobre suas condições de continuidade e sobre seu estado atual, pessimismo esse que chamo de estrutural, em, pelo menos, dois sentidos: primeiro, no sentido de sua replicabilidade geracional, isto é, o discurso pessimista é um discurso que estrutura as relações intergeracionais, na medida em que se baseia em uma inferência sobre a ruptura entre os meios de transmissão entre gerações, e os motivos que levaram a ela; e em segundo lugar, porque estrutura as transformações internas (agora sem aspas) do próprio fandango, como aquela que fez surgir o que chamo de fandango de apresentação, em oposição (complementar) ao baile fandango, encarado como a forma tradicional. Essa nova constituição do fandango, na forma de apresentação, corresponde, ou melhor, encarna, em um sentido forte, as transmutações técnicas e contextuais que o fandango – inseparável das relações que perpassam o parentesco, a natureza (na forma da lida com a terra) e outros “aspectos” de sua vida social – passou, e, mais importante passará. Representa, deste modo, aquilo que, tomando emprestado o termo de Mauro Almeida (2007), chamarei de encontros e acordos pragmáticos. Nesse acordos e encontros, os agentes envolvidos em um certo contexto no qual dialogam noções diferentes sobre um mesmo assunto (e/ou fato e/ou fenômeno), onde (pode) haver uma incomensurabilidade entre pontos de vista distintos, elaboram determinados acordos de modo a resolver um impasse, não sendo totalmente irrelevante a posicionalidade de cada agente envolvido. O fandango de apresentação seria um tipo de acordo pragmático, pois representa a própria constituição de um novo jeito de se apresentar sua cultura, que a despeito de ser culturalmente informada, se articula em uma forma (o próprio formato da apresentação) até recentemente estranha aos formatos tradicionais (que na verdade só podem ser chamados de tradicionais quando contrapostos a uma forma não tradicional). Verifiquemos, então, alguns dos pressupostos metodológicos, que embasam as análises aqui propostas, no sentido de explicitar os argumentos aqui expostos. Antes de mais nada, é preciso ressaltar que conjunto teórico aqui utilizado não é realmente o mais tradicional em estudo que trata de manifestações da cultura popular e tradicional brasileiras. No Brasil, o interesse pelo popular e pelo tradicional pode ser traçado (“academicamente” falando) desde

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o início do século XX, no modernismo de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, passando pelos chamados “estudos de comunidade”, no Brasil dos anos 1940 e 1950, fundamentalmente ligados às figuras de Charles Wagley, Donald Pierce, pela crítica destes estudos por Florestan Fernandes, Antônio Cândido e Gioconda Mussolini e, (a partir desta crítica) pela sociologia brasileira dos anos 1960 e 1970, representada por Otávio Ianni e Maria Sylva de Carvalho Franco (Jackson, 2009)1. Um ponto comum que une essas diferentes vertentes acadêmicas (e que veio culminar no conjunto de práticas denominado de políticas de patrimonialização) é o interesse pela transformação e pela mudança social pelas quais passavam (e passam) as culturas tradicionais/populares. A partir de diferentes perspectivas teóricas, a preocupação se dava por um lado, com a chamada aculturação, o avanço de visões de mundo e práticas “modernas” em detrimento de seus elementos “rústicos”, e, por outro lado (mas seguindo a mesma linha de raciocínio), nas relações dos grupos “camponeses” com a então chamada “sociedade envolvente”. Tal visão sobre as culturas populares ainda é vigente, tanto no aspecto acadêmico, quanto entre alguns agentes culturais de Cananéia, ou seja, a visão da cultura sujeita a uma transformação invariavelmente classificada como negativa encontra ressonância entre pessoas que estão diretamente ligadas ao fandango (sendo elas fandangueiras ou não). Assim, em vez de procurar replicar esse ponto de vista sobre a transformação da cultura caiçara, a etnografia foi um meio de tentar seguir o fluxo das próprias relações que ela (a cultura), através de discursos como esse (o de uma transformação negativa, na forma de uma perda), engendram, se engajam com outras visões de cultura e da mudança cultural, em maior ou menor “grau” de diversidade, como meio de transformar a si mesma e, na visão caiçara (pelo menos, a dos fandangueiros de cananeenses) um meio de fortalecer e/ou revitalizar a cultura. O fandango aparecerá de maneira dispersa, como consequência, pois a etnografia não foi um método de observação do fandango em si, mas antes, um método de observação dos relacionamentos envolvidos pelo fandango objetivado, como colocado como causa. 1

Luiz Carlos Jackson caracteriza esta resposta à brasileira aos estudos de comunidade como uma crítica “uspiana”, relacionando-a a uma disputa política entre o viés conservador da Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) e o viés crítico dos acadêmicos da Universidade de São Paulo, em uma linha um tanto marxiana. Afirma ainda que, no caso de Antônio Cândido e Gioconda Mussolini, apesar da forte crítica, sua orientação teórica não estava assim tão distante dos “estudos de comunidade” (Jackson, 2009: pp. 278).

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Para uma melhor elaboração, utilizo-me da interpretação de Geraldo Andrello sobre uma teoria de Tim Ingold sobre o método etnográfico. A proposta caminha no seguinte sentido:

a antropologia, em vez de análise comparativa apoiada pela observação etnográfica, seria em si mesma ‘uma prática de observação fundada no diálogo participativo’. O autor sugere algo como uma inversão na ordem usual de nossos procedimentos analíticos, situando a etnografia como um momento posterior da observação quando o ‘campo’ é constituído como um mundo imaginado retrospectivamente, o que permite uma descrição separada, por assim dizer, do momento da observação. Este último, por sua vez, corresponde a um inquisitivo modo de habitar o mundo, de ‘ser com’, marcado por uma atitude comparativa em relação às variadas condições e possibilidades da vida humana em um mundo compartilhado (ANDRELLO, 2013: 501)

Dito isto, a proposta aqui seria a de elaborar uma etnografia que em vez de coletar dados sobre uma cultura e explicá-la sob os parâmetros desta cultura como entendida pelo antropólogo (Wagner, 2010), tenha por objetivo “seguir os passos” dessa cultura antes de “explicá-la”, elaborando um mapa das relações estabelecidas em volta e pelos discursos e ações culturais. Tentarei mostrar, como, em Cananéia, o discurso sobre o fandango e a cultura caiçara (uma separação inexistente para meus interlocutores) constitui relações que acabam por transformar continuamente o fandango. Entremos assim, na etnografia, como modo de expor os dados que nos possam fornecer uma imagem da rede de relações que se configura por e pelo fandango.

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Capítulo 1

Apresentando o fandango caiçara

Alguns dos temas tratados nessa dissertação podem ser condensados em palavraschave muito comuns em estudos antropológicos, como cultura, tradição, modernidade, Estado entre outros. O que me interessa aqui são os processos que envolvem tais categorias ou aquilo que pode ser delimitado pela “invenção”, seus manejos dentro do jogo político que atravessa as diversas percepções sobre o fandango e as diversas definições de “cultura”. O que interessa, então, é o fandango visto pelas lentes da cultura e não uma “fria” análise conceitual sobre cultura que tem o fandango como um mero exemplo.

O

fandango

caiçara

consiste, primordialmente, nas palavras dos próprios caiçaras, em sua música e dança tradicional, compreendidas no baile e na festa típica. “Símbolos” daquilo que efetivamente os “representam” (mas não apenas) quando questionados sobre o que é ser, em contexto, um caiçara. Não obstante, o fandango não é considerado por eles mesmos como uma “simples” festividade (levando ainda em conta que nenhuma festividade é efetivamente “simples”), mas também um mecanismo de integração social, de produção e manutenção de laços de parentesco, como forma de reciprocidade de atividades de subsistência e de atividades rituais. Nesse sentido, antes de ser considerado uma manifestação meramente “artística”, como descrito em diversas instâncias, o fandango é um fenômeno social de ampla abrangência, podendo ser descrito pelo que Marcel Mauss chamou de “fato social total” (MAUSS, 2005). Mas antes de adentrarmos nas inflexões teóricas que este modo de encarar o fandango proporciona, cabe antes o apresentarmos ao leitor, até mesmo para que fique mais claro o porquê do fandango ser considerado, de acordo com o que escrevi acima, um “fato social total” nas devidas consequências que advém desse fato. Os instrumentos apontados como tradicionais no fandango caiçara consistem, geralmente, na viola caiçara (tendo de preferência um par de violeiros, que geralmente também são os cantores), a rabeca e o adufo ou adufe. Podem ser adicionados a estes, ainda que ocasionalmente, o machete e a caixa-de-folia 2. Em cada baile ou em cada grupo de 2

Todos os instrumentos do fandango citados aqui são construídos artesanalmente, utilizando-se, especialmente (mas não exclusivamente) da madeira da caixeta (tabebuia cassinoides). Esses instrumentos, cuja origem é remontada pelos próprios caiçaras à chegada dos ibéricos, tem seus “correlatos” em

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fandango, a presença desses instrumentos varia, sendo uma constante apenas a viola caiçara e a rabeca (sendo que há ainda algumas ocasiões em que esta última não se encontra presente). A afinação também varia de acordo com cada localidade, sendo as mais encontradas, no caso da viola caiçara a intaivada3, similar a afinação padrão do violão, só que uma oitava acima; e no caso da rabeca a afinação D-A-D (ré-lá-ré). Marcas, modas ou métricas de fandango são como os fandangueiros denominam e diferenciam as músicas e danças correspondentes a cada tipo de fandango (sendo que o termo nativo métricas está mais relacionado às danças). Entre essas distinções, há ainda a que existe entre o fandango batido e o fandango bailado ou valseado, sendo que o primeiro conta com coreografias pré-determinadas ensaiadas e o segundo é mais “solto” e, como o próprio nome diz, se dá na forma de um baile, sem coreografias pré-determinadas. Entre as marcas ou métricas de fandango mais conhecidas estão a Anu, Sinsará, Tiraninha, Feliz, Serrana, Caloado, Tonta, Andorinha, Pega-Fogo, Graciosa, Queromana, Cana-verde, Dandão e Chamarrita ou Chamarrita de Louvação, sendo que estas duas últimas correspondem ao fandango bailado. Quanto ao estilo das danças: o fandango batido apresenta danças coreografadas em pares, geralmente até oito pares por coreografia. A dança é circular e os homens utilizam tamancas4 de madeira para a execução de seus passos, enquanto as mulheres se apresentam com saias longas de pano de algodão. Os movimentos coreográficos, com os homens batendo as tamancas no chão e as mulheres abanando suas saias, sempre em movimentos circulares, tem sua origem, segundo meus interlocutores, em uma forma de tornar o trabalho de descascar o arroz mais divertido. A dança se realizava em cima de um tablado de madeira com uma pequena brecha (algo em torno de milímetros) para o arroz descascado pela batida das tamancas masculinas caírem por ela; o movimento das saias “varria” o arroz para que eles

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instrumentos mais conhecidos do público mais amplo, como o adufo, similar ao pandeiro, porém com a pele mais “solta” para produzir uma afinação mais baixa; o machete é similar ao cavaquinho, e a caixa-de-folia é um tambor de tamanho médio ou pequeno com duas mebranas de couro esticadas por cordas. A viola caiçara e a rabeca também são muito similares à viola caipira e ao violino; entretanto as semelhanças acabam no aspecto físico; tudo o que envolve estes instrumentos (construção, materiais utilizados, afinação, e no caso dos instrumentos de cordas, o número das cordas) difere, e muito, de seus correlatos, em especial, na maneira de tocar. Intaivada, provavelmente é um termo que deriva da palavra oitavada, indicando a característica dessa afinação. É a afinação mais utilizada no fandango, sendo encontrada em Paranaguá, Cananéia, Guaraqueçaba e Iguape. São encontradas ainda as afinações pelas três (em Morretes e na Barra do Ararapira) e a pelo meio (na Ilha de Valadares). A primeira utiliza-se mais de cordas soltas na formação dos acordes, enquanto a segunda é mais parecida com a afinação da viola caipira. (PIMENTEL, GRAMÂNI , CORRÊA, 2006). Apesar de ser comum quando se fala de fandango se falar em tamancos no masculino, o termo nativo correto é tamanca, no feminino.

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caíssem através dos vãos do tablado em direção a um armazém. Seguem abaixo duas ilustrações (Figura I e Figura II) dos movimentos do fandango batido, sendo o segundo de um movimento característico dessa modalidade, o “passo do oito”, (GRAMANI, 2009, p. 26-27). Meus interlocutores indicam ainda que a dança do fandango, em sua modalidade de fandango batido, não acompanha apenas a música; as batidas de tamanca e de palmas são também instrumentos do fandango, marcando o ritmo e se aliando ao adufo e a caixa-de-folia (quando esta está presente) como instrumentos de percussão.

FIGURA I - Esquema coreográfico do movimento “passo batido” (“Fandango na escola”, 2008, apud GRAMANI, 2009, p.12)

Figura II - Esquema coreográfico do “movimento oito” (AZEVEDO, 1978 apud GRAMANI, 2009; p. 8)

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Quanto ao fandango bailado ou valseado, as danças se dão em pares também, porém, livremente pelo salão, ocorrendo a troca constante dos parceiros. Sua estrutura coreográfica procura acompanhar a estrutura rítmica, havendo classificações internas sobre a qualidade dos dançarinos, com relação à sua leveza ou peso (dançar arrastado, difícil de se acompanhar). Entretanto, isso não se configura como uma restrição, sendo que qualquer um que esteja presente no baile está apto a bailar o fandango. Estes são os aspectos “técnicos” do fandango caiçara (batido e bailado ou valseado). No entanto, longe de querer se distanciar de tais aspectos, o que mais nos interessa aqui é a história e importância do fandango na região de Cananéia de acordo com os próprios fandangueiros, como vista por eles. O que quero aqui é trazer à tona as problemáticas existentes nessa história do fandango como contada por eles, não com o intuito de polemizar com as assertivas nativas sobre ela, mas sim como forma de demonstrar e refletir sobre o que Mauro Almeida (1999, 2003 e 2007) chama de encontros pragmáticos, isto é, como diferentes ontologias que estão em contato intermitente elaboram acordos pragmáticos, que podem ser mais ou menos conflituosos (e também, mais ou menos hierárquicos). Antes, porém, de adentrarmos a seara teórico-metodológica, cabe ainda entrarmos mais profundamente nessa história do fandango, sempre delimitada pela etnografia realizada. Por isso mesmo, em vez de expormos de maneira objetiva tal história (no limite, uma história de historiadores), deixaremos ela “surgir” no texto como ela “surgiu” para mim em campo. Devo insistir que se trata de uma escolha metodológica, de modo a deixar as tais problemáticas citadas acima serem expostas no ritmo das falas dos próprios caiçaras e seus fandangueiros.

1.1 – O fandango do passado e o fandango do futuro

Estive na região por cerca de quatro meses, intercalados desde agosto de 2010, sendo que a estadia mais longa se deu durante o mês de agosto de 2012. Podemos separar a etnografia em duas etapas: a primeira parte foi realizada na área urbana do município de Cananéia, localizada no litoral sul do Estado de São Paulo; a segunda, no Parque Estadual da Ilha do Cardoso (PEIC), reserva ambiental desde 19625. A Ilha integra o Complexo Estuarino 5

Criado pelo Decreto Estadual No 40.319/62, o Parque Estadual da Ilha do Cardoso (PEIC) está situada no extremo sul do estado de São Paulo, no município de Cananéia, e conta com grande diversidade ecológica, contando com um dos mais complexos ecossistemas da Floresta Atlântica encontrados ainda hoje. Limita-se ao norte com a Baia de Trapandé, a leste com o Oceano Atlântico, ao Sul com o Oceano Atlântico, Barra e

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Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá, que se estende pelo litoral desde Peruíbe (SP) até Paranaguá (PR). A etnografia realizada nesta etapa se ateve à Vila do Marujá, cujo acesso se dá através de barco pela cidade de Cananéia. Segue abaixo um mapa (Figura III) para situar o leitor, sendo que a Vila do Marujá encontra-se indicado no ponto 13. Posteriormente, já em junho deste ano (2014) estive novamente na região urbana de Cananéia, onde pude travar contato com agentes públicos (governamentais e não-governamentais) que trabalham com a questão da cultura caiçara e de seu fandango, além de acompanhar algumas atividades do Grupo de fandango Batido São Gonçalo. Este grupo, coordenado por Amir Oliveira Filho, Rodolfo Vidal e José Marques6, foca suas atividades no ensino do fandango – sua música e dança, bem como sua história, sua tradição – aos jovens caiçaras (entre 10 a 17 anos aproximadamente) da região urbana de Cananéia, realizando também apresentações de fandango por todo o estado de São Paulo.

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Mar do Ararapira e a Oeste com o Canal do Ararapira, com área de 22.500 hectares. “Os parques constituem unidades de conservação, terrestres e/ou aquáticas, normalmente extensas, destinadas à proteção de áreas representativas de ecossistemas, podendo também ser áreas dotadas de atributos naturais ou paisagísticos notáveis, sítios geológicos de grande interesse científico, educacional, recreativo ou turístico, cuja finalidade é resguardar atributos excepcionais da natureza, conciliando a proteção integral da flora, da fauna e das belezas naturais com a utilização para objetivos científicos, educacionais e recreativo. Assim, os parques são áreas destinadas para fins de conservação, pesquisa e turismo. Podem ser criados no âmbito nacional, estadual ou municipal, em terras de seu domínio, ou que devem ser desapropriadas para esse fim.” (fonte: Sistema Nacional de Unidades de Conservação Lei 9.985 de 18 de julho de 2000; Áreas Especialmente Protegidas no Espaço de São Paulo: Levantamento e Definição de Parâmetros para administração e Manejo) Note-se que as Unidades de Conservação (Ucs) são de “propriedade” estatais. Dos três, apenas José Marques não se considera caiçara, tendo vindo morar na cidade de Cananéia a cerca de 15 anos atrás. Sua participação no grupo, inclusive, se dá mais na parte de auxílio e não tanto da coordenação propriamente dita, tendo participação mais efetiva na Rede Cananéia o conglomerado de Organizações Não-governamentais que trabalham voltados às mais diversas questões relacionadas a vida caiçara.

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Figura III - Mapa da Ilha do Cardoso – SP (retirado do site da Prefeitura Municipal de Cananéia)

A pesquisa atual é resultado de um processo que se iniciou na iniciação científica, em 2010 e contava, inicialmente, com a proposta de saber o que os jovens caiçaras (em especial os “urbanizados”, aqueles que vivem na região urbana de Cananéia) tomavam como sendo “sua” tradição, quais os sentidos que eles atribuíam a ela. De todo modo, a tentativa de descobrir qual era essa visão dos jovens sobre uma tradição que muitas vezes era atribuída a eles por outros (sejam caiçaras mais velhos, ou turistas, pesquisadores acadêmicos ou agentes estatais) se mostrou inócua num primeiro momento: os jovens muito pouco falavam ou até mesmo sabiam sobre o fandango. Mesmo entre os que participavam cotidianamente de atividades ligadas ao fandango o assunto era pouco tratado ou refletido, sempre indicando que o pesquisador deveria se dirigir aos (falar com os) mais velhos, os que entendiam do assunto. E assim foi feito: comecei a ir atrás desses fandangueiros – chamados por vezes de “mestres” 7 7

O título de “mestre” do fandango merece um escrutínio maior. Apesar de ser, atualmente um vocábulo corrente, alguns interlocutores me indicaram que talvez esta categoria não faça muito sentido, levando em consideração a estrutura do fandango. Segundo afirmam, este seria uma palavra importada do discurso de agentes culturais que refletem em sua visão sobre a cultura caiçara uma visão generalizada da cultura, ao

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– para saber mais sobre o fandango e do que eles achavam da participação dos jovens, lembrando que este era o objetivo da pesquisa inicial. Foi então que aconteceram os primeiros “choques” por parte do pesquisador, onde todo o romantismo com o qual eu encarava a questão começou a desabar: já na primeira entrevista, com o Sr. Agostinho Gomes, artesão e fandangueiro reconhecido na região, na época com 82 anos, ao perguntar-lhe sobre a importância do fandango na sua vida este laconicamente me responde: “O fandango nunca me deu nada. Tudo o que tenho na vida foi o artesanato e o trabalho na roça que me deu, mas o fandango nunca me deu nada.” Não podemos, no entanto, atribuir ao Sr. Agostinho Gomes um certo “materialismo” que a sua fala isolada poderia suscitar. Pois, do que se seguiu de nossa conversa, pude entender que, o que a primeira vista entendi como um ressentimento em relação ao próprio fandango, se dava mais nos termos de um pessimismo com relação ao futuro: para o Sr. Agostinho, o fandango, em mais ou menos tempo, desapareceria. Isso pode ser entrevisto nas diversas conversas que tive com outros fandangueiros8: quase todos compartilhavam da opinião do Sr. Agostinho, alguns ainda com a ressalva de que “se não fosse feito nada” o fandango iria “se acabar”. A percepção de que o “fandango vai se acabar” se deve muito a percepção que os fandangueiros e caiçaras em geral tem de sua própria história. Darei mais exemplos. Ao questionar o sr. João Firmino, à época 73 anos, construtor e tocador de rabeca também muito conhecido na região de Cananéia, sobre o que o fandango significava para ele, sem muitos rodeios ele me indicou que o “fandango de hoje não era mais o mesmo. Isso mudou muito com o fim das roças, com o fim dos mutirão, sem mutirão, o fandango não é mais a mesma coisa. Vai se acabar.” O fim dos mutirões a que ele se refere é um evento intrinsecamente ligado às leis ambientais da década de 1960. Naquela época, a maior parte da população ainda vivia na região da Ilha do Cardoso, mas com o enrijecimento das leis ambientais e a transformação da ilha em uma Unidade de Conservação Ambiental (o Parque

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importar uma categoria que só faz sentido em outros contextos chamados populares ou tradicionais. Isto porque a palavra mestre seria importada da capoeira e/ou outros contextos culturais atrelados às populações tradicionais nordestinas e afro-brasileiras, segundo as informações obtidas. Devido a uma certa vagueza nas afirmações e pelo fato de ter ouvido sobre a importação de tal categoria apenas muito recentemente, sem poder contar com um aprofundamento nesta questão, opto por suprimir o vocativo e utilizá-lo somente quando indispensável. A propósito, tal percepção só foi possível devido ao conselho de Amir Oliveira Filho, que apesar de não ser considerado um mestre de fandango por unanimidade na região, é como se fosse um mestre para mim: ele me pediu/aconselhou que perguntasse aos velhos fandangueiros o que eles achavam que o fandango seria dentro de dez ou vinte anos. As respostas foram as citadas acima. Amir também foi a pessoa que me guiou e me apresentou a maior parte de meus interlocutores em campo. Devo toda a minha gratidão a ele.

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Estadual da Ilha do Cardoso, PEIC), várias atividades consideradas cotidianas e vitais pelos caiçaras, como a extração de algumas madeiras (notavelmente a caixeta, tabebuia cassinoides), da qual se fabricam a rabeca, a viola caiçara, as tamancas e o aro do adufe), a produção das roças e a caça, foram controladas e/ou proibidas. Todo esse quadro acrescido pela grande especulação imobiliária que assolou (ou tomou) a região de Cananéia. Este seria o “evento-chave”, o ponto nevrálgico das explicações do início do “desaparecimento” do fandango, seu período de seca ou aperto, como nos dizem os caiçaras. Isto porque, como afirmei no início do capítulo, o fandango não é uma “simples” celebração, apenas uma festividade. Para melhor elucidação sobre este propósito do fandango, vejamos o que as pessoas envolvidas com ele tem a dizer sobre seu caráter. Segundo os relatos nativos, o fandango é principalmente caracterizado pela sua função, um grande evento onde os valores a serem destacados eram a reciprocidade entre vizinhos e parentes, e os laços de afinidade e consanguinidade formados a partir daí. Os mutirões – que foram proibidos ou reduzidos de maneira drástica – aconteciam quando uma família, na realização de um trabalho na roça ou qualquer outro que não conseguiriam sem o apoio de seus vizinhos, os chamavam para a realização desta atividade (roça, colheita, transporte de uma canoa “de um pau só”, e similares). Como forma de pagamento pelos serviços prestados, a família anfitriã oferecia um baile de fandango, com música, dança, comida, café e cataia 9 “até o dia raiar”, como gostam de dizer os caiçaras. Ao que tudo indica, além dos mecanismos de reciprocidade que podem ser entrevistos já nessa breve explanação, outro fator de grande importância nesses eventos é a produção de laços de parentesco, seja ele consanguíneo ou ritual. Era (e talvez ainda seja, em alguns casos) nos bailes de fandango em que se conheciam possíveis parceiros matrimoniais e onde se arranjavam os compadres e as comadres que poderiam ser padrinhos e madrinhas do casamento e dos futuros filhos. Não que fosse o único meio de se conseguir construir tais laços, claro que não, mas era um momento importante onde a proximidade entre os vizinhos propiciava tal ocasião. Um “causo” interessante indica essa tendência. Foi me contado por Felipe Augusto Santana10, que apesar de não se afirmar um caiçara “nativo” (nascera na 9

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Cataia é uma bebida típica da região, onde são deixadas as folhas desta planta típica da Mata Atlântica, em infusão em uma garrafa de cachaça, o tempo suficiente para ficar “da cor do uísque” (daí o apelido da cataia, o uísque da praia). Segundo relatos, tal bebida tem propriedades afrodisíacas, alucinógenas, e curativas, tudo ao mesmo tempo. É também, a única bebida alcoólica a que se remetem os caiçaras, de modo geral. Felipe é um grande amigo que tive a oportunidade de conhecer em Cananéia. Sendo uma espécie de empreiteiro, fazendo todo tipo de serviços ligados à construção civil e serviços domésticos em geral, Felipe vive no mesmo terreno que José Marques e Amir Oliveira, onde fui muito bem recebido durante minhas estadias em campo.

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cidade de São Paulo, capital), tinha avós por parte de mãe e de pai caiçaras. Deixo a palavra com ele, de forma a ser mais fiel ao “causo”:

Era local (o baile de fandango) de arranja namoro também. Meus avós se casaram por causa de um. Meu avô era apaixonado pela minha avó, mas o pai dela não gostava dele. Então teve um baile de fandango organizado por ele, e ele proibiu meu avô de entrar. Disse pra todo mundo 'se vocês virem aquele sujeito por aqui, num deixa ele entra de jeito nenhum!'. Quando meu avô chegou, de chapéu na cabeça e no lombo de um cavalo, e viu que não iam deixa ele entra, ele disse assim 'ah, não vou entra, é? Vamo vê só…' e entrou com o cavalo e tudo! Depois disso, ele ganhou o respeito do meu bisavô e pode casar com minha vó. (entrevista concedida em 17/06/2014)

Apesar do caráter extraordinário e jocoso do causo, o evento mostra que o avô de Felipe conseguira o respeito de seu sogro por mostrar bravura em um baile de fandango, onde todos encontravam-se reunidos, e onde se estabeleciam os laços desse tipo. A partir de então, mesmo que a contragosto, teve de aceitar o casamento dos dois. Este tipo de história demonstra a importância que os bailes de fandango tinham na construção dos laços parentais, não como meio exclusivo de formá-los, mas como o mais (ou um dos mais) propícios. O leitor deve notar aqui que os mutirões e os bailes de fandango nos parágrafos acima foram colocados no tempo passado. Isto ocorre não porque acredito que estes façam parte de um passado longínquo, mas porque muitos caiçaras o fazem. Este seria, o tempo verbal (com relação ao fandango) nativo, por assim dizer. As falas de grande parte dos fandangueiros e de muitos caiçaras, quando se remetem a sua própria cultura, são sempre voltadas ao que era, ao passado, sempre de forma nostálgica, ao “tempo que era bom”, e, quando se remetem ao futuro, ao que poderá ser, o que virá a ser a cultura e o modo de vida caiçara, estes geralmente o fazem em um tom pessimista. Foi a partir dessas falas (repetidas quase à exaustão por grande parte dos fandangueiros) que o trabalho começou a ganhar os contornos atuais, partindo de algumas percepções sobre o que o fandango significava para essas pessoas. Pois, ao me referir ao fandango como um “evento”, uma “manifestação” até certo ponto à parte das experiências desses atores em outras esferas de suas vidas, recebia, em contrapartida, respostas que não o separavam desse todo, e que, por isso, sofria das mesmas consequências, sociais e lógicas, de 25

estar em continuidade com outras esferas da vida caiçara; o fato de estar embebido em um pessimismo representava, dessa maneira, uma percepção histórico-social dos eventos que, de uma maneira ou de outra, transformaram sua vida social. A partir disso, comecei a problematizar a noção de pessimismo e a reposicioná-la no interior do próprio fandango, aludindo a um determinado pessimismo estrutural que permeava as relações desses agentes, não nos termos de um fatalismo histórico que via o fim inexorável de suas práticas e costumes, uma resignação com relação ao seu futuro, mas nos termos de algo que parecia perpassar todo o discurso caiçara sobre sua própria vida e cultura, como um modo de agir e se colocar diante da sua própria história, frente aos discursos que o constroem e que o reificam, sobretudo a partir de outras instâncias, como setores do Estado, Organizações Não-Governamentais e diversos outros agentes que frequentam e interagem com o campo da então concebida “cultura tradicional”. Evito aqui atribuir os vocativos “exterior” e “interior” para classificar os espaços de atuação desses agentes a partir da cultura caiçara – dos fandangueiros que representariam o núcleo interno de produção dessa experiência e de tantos outros que gravitariam ao seu redor a partir de vários exteriores. Tal cuidado se deve ao receio de congelá-los em categorias, pois mesmo um fandangueiro de longa data pode ser considerado como virtualmente “exterior” em relação à atuação (e com relação à atualidade) cultural do fandango, e um agente do Estado ou de uma Organização Não-Governamental – como aqueles que trabalham juntos dos caiçaras nas elaborações de políticas públicas e preenchimento de editais para pleitear recursos destinados à “cultura” também pode ser tomado como alguém do “interior”, dada a inserção na rede de práticas que efetuam o fandango11. Mas no que consiste este “pessimismo estrutural”? Essa proposta, um conceito derivado igualmente de Marshall Sahlins, Michael Herzfeld e dos próprios caiçaras, seria o modo pelo qual os caiçaras embasam seus encontros pragmáticos, o modo como encaram o estado da arte do fandango frente as transformações sociais pelas quais passaram. Não significa que reduzirei toda cultura e ontologia caiçara ao fatalismo ou ao próprio pessimismo, o que seria absurdo, já que congelaria tanto culturas quanto ontologias em entidades monolíticas, e, se me fiz entender nos parágrafos acima, o objetivo é justamente o contrário. Este pessimismo se dá em forma de replicabilidade temporal – isto é, cada geração replica o pessimismo da geração anterior – e da “retórica da perda”, perda da reciprocidade, da 11

Retomaremos este ponto em breve.

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gentilidade, da comunidade, etc. Herzfeld fala, na verdade, em nostalgia estrutural (HERZFELD, 2005, p. 196). A diferença entre os autores se dá pelo fato de que a nostalgia de que fala Herzfeld assume como objeto apenas o passado. O pessimismo estrutural, em sua retórica, se volta ao futuro também. E é aqui que podemos, assim, introduzir o pessimismo emprestado dos escritos de Sahlins (1997a; 1997b), já que, voltando-se ao futuro, há um teor nessa retórica da perda que replica sobre ele. Frente aos chamados “processos modernizadores”, não é incomum os caiçaras redirecionarem a “perda” ao futuro, tornando assim “pessimistas” suas inferências sobre o futuro do fandango caiçara. E quais são esses “processos modernizadores”? Estes processos podem ser exemplificados como o deslocamento territorial de caiçaras (RODRIGUES, 2013, p.19-33) e a proibição das roças em áreas que se transformaram em reservas de proteção ambiental 12. Soma-se a isso a introdução dos meios contemporâneos de comunicação tecnológica, como a televisão, o rádio, a internet, e a proliferação das religiões neo-pentecostais em detrimento do catolicismo “popular” - isto é, não “institucionalizado” - e temos uma lista das principais questões aos quais os caiçaras atribuem as transformações pelas quais passaram nos últimos cinquenta anos. Essas queixas caiçaras com relação à chamada modernidade não se restringem apenas ao contexto urbano de Cananéia. Durante o período de campo em que estive na Ilha do Cardoso, mais especificamente na Vila do Marujá13, várias reclamações com relação à transformação do modo de vida tradicional circundam a problemática do fandango, isto é: quando o assunto é fandango, é inevitável, para eles, não deixar de tocar no assunto que tange à modernidade. A chamada modernidade é o cerne, a pedra de torque das transformações pelas quais o fandango passou. Espero exemplificar melhor isto nos parágrafos que seguem. Contando novamente 12

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Há uma curiosa passagem na página de informações sobre o PEIC (Parque Estadual da Ilha do Cardoso), no site da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Transcrevo-a por inteira: “A cultura caiçara e a história do PEIC não são menos importantes. Inúmeros sítios arqueológicos denominados sambaquis provam a passagem humana pela Ilha há cerca de 6000 anos. Além destes, há ruínas que testemunham sua ocupação desde o período colonial, época em que a Ilha abrigava mais moradores do que a própria sede do município de Cananéia. Até a década de 1960 esses moradores praticavam a roça de subsistência, sob influência indígena, utilizando o método de corte-queima-pousio para o plantio de mandioca (com a qual fazia-se farinha destinada à comercialização) e outros produtos voltados ao consumo familiar. Atualmente são poucas as famílias que praticam a agricultura, mas as festas que acompanhavam o processo de plantio naquela época, chamadas pelos caiçaras de “mutirões”, continuam acontecendo, recheadas de muita música e dança regional: o fandango. A administração do Parque incentiva esse tipo de evento, uma vez que, além de auxiliar no resgate cultural dessas comunidades, atrai diversos turistas que vêem ao Parque em busca, não apenas das belezas naturais, mas também desses eventos regionais.” (SECRETARIA DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO, grifos meus). Analisaremos mais adiante as implicações deste discurso. A Vila do Marujá pode ser identificada no ponto 13 do mapa acima(Figura III).

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com o apoio de Amir Oliveira Filho14, obtive os principais contatos a serem realizados na Vila do Marujá, a saber, o Sr. Ezequiel Oliveira, uma espécie de “líder” da comunidade do Marujá, e Salvador das Neves, o “Baduca”, integrante do grupo de fandango Família Neves e figura proeminente do fandango na região. Ao chegar à ilha na Vila do Marujá, sem muitas dificuldades, identifico a casa de Ezequiel e já travo os primeiros contatos, me hospedando inclusive na pousada de sua filha, Dona Elma, já que sua própria pousada estava lotada, devido a uma excursão escolar vinda de Botucatu - SP, aparentemente o mais relevante do contingente turístico naquele momento. Já no dia seguinte a minha chegada, D. Elma me passa as localizações básicas na ilha: trilhas, praias, restaurantes, pousadas e os contatos de quase todos os fandangueiros da vila, se encontrando ou não em atividade. D. Elma me informa também que grande parte dos moradores da vila é, de alguma maneira, parente, integrantes da família Neves, explicando-me de modo sucinto a rede de parentesco de sua família. Na época, por estar com outros objetivos em mente – sem perceber o quão seria importante para a pesquisa – e por estar, durante o café da manhã, em um (primeiro) momento bastante informal, não me incomodei em delinear esta rede de parentesco de maneira objetiva. Analisando retrospectivamente, considero que seria um passo importante, para uma pesquisa posterior, delinear o parentesco da família Neves, já que o principal grupo de fandango da localidade é o desta família. Ao perguntar a D. Elma o número de habitantes da Vila do Marujá, obtive a resposta “de 50 a 60 pessoas”. Esta informação é importante aqui, pois, de acordo com Carmen Lúcia Rodrigues, em defesa de sua tese de doutorado, ocorrida no mês de maio de 2013, haveria na Vila cerca de 170 famílias (RODRIGUES, 2013, p. 128) morando ao longo do canal de Ararapira, que separa o continente da restinga, onde se localiza a Vila. Isso me chamou a atenção devido à discrepância entre os números; a autora, proponente de uma longuíssima pesquisa de campo, beirando os 17 anos, trata a Vila desde sua parte central, logo onde se chega de barco e encontram-se construções de alvenaria mais elaboradas (possibilitadas pelo e visando o turismo) até a região conhecida como “Sossego”, com suas construções distintamente mais simples e com menor atenção voltada ao turismo (RODRIGUES, 2013, p. 129). Assim, podemos inferir que D. Elma esteja visualizando outra Vila do Marujá, talvez (e somente talvez) uma noção de espacialidade da vila sobreposta à rede de parentesco de sua 14

Amir Oliveira Filho, conforme mencionado acima, é um de meus principais interlocutores na região, sendo também figura central para o fandango na cidade de Cananéia, movimentando diversos grupos de fandango, junto a iniciativa pública e privada.

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família.15 Conforme seguimos conversando, chegamos a um assunto que me chamou atenção por estar diretamente relacionado ao modo de subsistência atual do caiçara: o turismo. Atualmente, o lado da pesca é a principal atividade rentável dos habitantes da vila. Com a proibição das roças e da caça, devido ao enrijecimento das leis ambientais do PEIC (Parque Estadual da Ilha do Cardoso), o turismo surgiu como uma possibilidade de renda para substituir suas atividades agrícolas anteriores, hoje proibidas ou dificultadas pelas leis. É um novo – já não tão novo assim – meio de vida e de sustento que ainda abriga palavras extraídas da antiga configuração rural, tais como safra e entre safra para falar das temporadas de turismo, bem como a expressão “carregamento de turistas”, como também aponta Carmem Lúcia Rodrigues (2013, p.129). Buscando os fandangueiros da região, já atrás dos objetivos principais deste trabalho, consegui contato com mais de dez deles, nem todos em atividade, para além de seu Ezequiel Oliveira, que, apesar de não ser fandangueiro, exerce grande influência na cena como um todo16, ao modo de um “líder” da região. Entre estes contatos, encontram-se fandangueiros bem conhecidos da região (e da bibliografia sobre o tema), como seu Izidoro das Neves, Valdemir Camargo, o Vadico, Salvador das Neves, o Baduca, entre outros. Conheci também dois grandes (e famosos) irmãos fandangueiros do Rio dos Patos (próximo a região, porém já no Paraná), seu Leonildo Pereira e seu Zé Pereira, que na ocasião ministravam uma oficina de construção e aprendizagem de rabeca, instrumento típico na condução do fandango. Deste modo, posso dizer que meus principais interlocutores e guias neste período que passei em campo foram Salvador das Neves, o Baduca, e Seu Leonildo Pereira, devido ao tempo que passei na Vila ter coincidido com o período da oficina de artesanato de rabecas que estava ministrando. Seu Leonildo, inclusive, em algumas brincadeiras é até conhecido por outros fandangueiros da região como o “pop star do fandango”, devido ao seu jeito extrovertido e brincalhão, e pela fama largamente reconhecida de exímio construtor 17 e 15

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Segundo fontes oficiais, como o sítio do Sistema Ambiental Paulista do Governo do Estado de São Paulo, a Ilha do Cardoso inteira conta com aproximadamente 400 habitantes. (SISTEMA AMBIENTAL …., S/D) O que é um fandangueiro então se alarga e se espraia para além de alguns traços diacríticos comuns como tocar, fabricar instrumentos, dançar… Ou seja, seu Ezequiel também não seria um fandangueiro? Isso não nos parece evidente e devemos nos interrogar a respeito de quem é ou não fandangueiro, sendo uma categoria que deve ser construída analiticamente e não tomada a partir das fronteiras reificadas do uso da palavra; fandangueiro é o que deve ser explicado e não aquilo que faz parte da explicação. “Construtor” está sendo usado aqui como categoria nativa, isto é, construtor é o vocativo pelo qual os caiçaras se referem aos que fabricam instrumentos (luthier) característicos do fandango. Faz parte do “artesanato” caiçara a construção de seus próprios instrumentos musicais. Ainda assim, o próprio vocativo “artesão” também é bastante utilizado.

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tocador de rabeca. Foi em torno dessas duas figuras que a etnografia (pelo menos no que diz respeito à parte da etnografia realizada na Ilha do Cardoso) “girou”, por assim dizer, pois foram com eles que travei a maior parte dos diálogos sobre o fandango. Nunca foi difícil trazer o tema à tona porque a maior parte dos caiçaras da Ilha do Cardoso que atuam no fandango tem orgulho de falar sobre ele. Nesse sentido, o sentimento de perda e o discurso de resgate da cultura caiçara sobressaem em uma intricada fala que posiciona o fandango dentro da cultura local perante os fatores “externos” que influenciam a vida da comunidade, como, por exemplo, as leis ambientais, o avanço de Igrejas Evangélicas e o “predomínio” do rádio e da televisão 18 e algumas Organizações Não-Governamentais19, além do turismo Ou seja, no discurso sobre o fandango podemos entrever o posicionamento do caiçara perante o que é a representação do Estado na região e do “olhar estrangeiro” (turistas, Organizações Não-Governamentais, agentes e produtores culturais), sobre o fandango e o caiçara, sendo que não raras vezes as posições emaranham e veiculam os mais diversos sentidos, nas mais diversas direções. Foi devido a esses fatores “externos” que iniciou-se um período de seca ou de aperto do fandango (seguindo as definições dos próprios fandangueiros). Segundo informações locais (confluentes com as informações dos fandangueiros que vivem na cidade) o fandango “caiu no esquecimento” durante quase duas décadas, entre o início dos anos 1990 e começo dos 2000. A explicação para este período é sempre a mesma (e a de seu Leonildo Pereira e Salvador das Neves não é diferente): com o enrijecimento das leis ambientais e a proibição das roças e outras atividades extrativistas, “acabaram-se os mutirões”. Sem os mutirões não havia o fandango, ou seja, durante essas quase duas décadas o solapamento de um dos vértices do modo de ser caiçara (suas atividades econômicas de subsistência) culminou no “fim temporário” de sua principal “manifestação cultural”. Isso apenas indica que o caiçara não encarava de maneira separada nenhum dos aspectos de seu modo vida, suas atividades econômicas, religiosas e artísticas estavam imbricadas em um mesmo plano, ou ainda, em 18

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A despeito de, pelo menos dentro da Ilha do Cardoso, a energia elétrica depender principalmente de geradores. Um dos motivos para não reiterarmos a lógica “interno” e “externo” é, por exemplo, a formação e atuação dessas Organizações Não-Governamentais. Muitas delas, como a ACUCA – Associação de Cultura Caiçara, a ARTECA – Associação dos Artesãos de Cananéia - e o Grupo de Fandango Batido de São Gonçalo (com o qual realizei minha primeira pesquisa de campo) são formadas pelos próprios caiçaras, não obstante os agentes “externos” também fazerem parte de tais coletivos. O contrário também é verdadeiro, onde Organizações Não-Governamentais fundadas por agentes “externos”, como IPeC – Instituto de Pesquisas Cananéia, o IPÊ – Institutos de Pesquisas Ecológicas - e o Ponto de Cultura “Caiçaras” (que é gerido pelo IPeC), além de contar com atuação relevante na região (ou só na região, como no caso do IPeC) conta com participantes caiçaras.

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planos que convergiam para um modo de vida específico, e a intervenção externa em suas atividades materiais indicava mudanças nos outros aspectos de sua vida cotidiana também. Neste ponto, o ressentimento dos fandangueiros da região é com o modo como foram implementadas as leis e políticas ambientalistas, que por sua vez afetaram e transformaram os aspectos econômicos (que por sua vez estavam emaranhados com diversos outros aspectos do modo de vida caiçara) e que raramente contemplava o ponto de vista caiçara, se é que de fato isso alguma vez ocorreu, pelo menos no que diz respeito às questões territoriais e ambientais, como aponta Rodrigues (2013). O que nos traz a história de como o fandango “voltou” a ser intensamente praticado e divulgado na região. O “ressurgimento” do fandango se deu por volta dos primeiros anos da virada do milênio, devido principalmente à influência por parte do projeto “Museu Vivo do Fandango” iniciativa da Associação Cultural Caburé e da Petrobrás, que visava “mapear e registrar” o fandango de todo o litoral sul paulista e norte paranaense. Ou seja, na opinião geral sobre o tema, para pesquisadores (DIEGUES, 2006; GRAMANI, 2009; PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006; RODRIGUES, 2013, p.135), bibliografia e, principalmente, para os prórpios fandangueiros, o fandango só veio ser “retomado” por influência “externa” também, a partir do interesse de pesquisadores e músicos no fandango da região e incentivos de empresas como a Petrobrás2021. Vemos aqui então que a dicotomia aventada antes entre “externo” e “interno”, como modos de ação e pontos de vista relativos ao fandango, não se dá de maneira simples e dualista. Seria também simplista afirmar que ela se dá de maneira complementar, sendo que o posicionamento de quem é “externo”, especificadamente, é o que muda de acordo com a circunstância – ora vistos como sendo ponto nevrálgico da história do fandango (a atuação dos pesquisadores do “Museu Vivo” como exemplo), ora vistos como 20

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A seleção de projetos de um edital funciona, em linhas gerais, da seguinte maneira: Uma instituição pública ou privada lança um edital (cultural) com recursos oriundos de patrocínio direto (de órgãos como o Ministério da Cultura (MinC), a Funarte, ou setores específicos de bancos públicos e privados voltados para a área da cultura) ou via renúncia fiscal (p.ex. Petrobrás, Eletrobrás, empresas de telefonia privada, etc.), majoritariamente através da Lei Rouanet, e, no estado de São Paulo, do ProAC ICMS. Uma vez lançado o edital, pessoas físicas e jurídicas e entidades culturais (com ou sem fins lucrativos) inscrevem suas propostas, que serão avaliadas por uma curadoria ou por uma equipe de avaliadores. Assim que divulgados os resultados, as entidades ou pessoas contempladas devem realizar o projeto com as devidas prestações de contas para os patrocinadores, programas de incentivo e órgãos públicos de controle (como o Tribunal de Contas da União ou a Controladoria-Geral da União) (Em: , acessado pela última vez em 03/02/2015). Com relação aos editais patrocinados pela Petrobrás, destaco o seguinte trecho de sua Política de Patrocínio: “Consolidar o trabalho de resgate, recuperação e organização do acervo material e imaterial da cultura brasileira, priorizando aqueles em situação de risco, e buscando ampliar a oportunidade de acesso público a esses acervos” (PETROBRÁS, 2014)

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simples “espectadores” do fandango, em sua modalidade de apresentação (o caso da maior parte dos turistas); enfim, o posicionamento de cada agente envolvido com o fandango, no que diz respeito à lógica “externa” depende de que tipo de fandango que se está se falando e do lugar (tanto no sentido geográfico quanto no posicionamento em relação ao fandango) e de quem está falando. Exemplos etnográficos não nos faltarão nesse sentido. Comecemos pelas Organizações Não-Governamentais, das quais falamos brevemente em uma nota de rodapé acima (cf. nota 5). Há em Cananéia uma extensa rede desse tipo de organização da sociedade civil, conhecida como Rede Cananéia. Esta Rede conjuga 13 Organizações Não-Governamentais, sendo elas, em sua maioria, fundadas por moradores do município de Cananéia, algumas delas sendo organizações de moradores propriamente dita, e outras direcionadas diretamente ao fandango e à cultura caiçara. Tais organizações não excluem a participação de agentes “externos”, mas só a participação em um desses grupos não os fazem agentes “internos”. Ainda assim, torna-se particularmente complicado atribuir os adjetivos “externo” e “interno” a grupos formados heterogeneamente. Assim, o que parece definir se são “externos” ou “internos” não é exatamente a procedência de cada um dos integrantes desses grupos e/ou coletivos, mas sim o seu proceder, isto é, a direção da ação tomada pelos agentes. Isso significa que um grupo de agentes, um coletivo, ou uma associação podem ser definidos como “interiores” no sentido de que agem em direção às preocupações imediatas dos caiçaras. Isto torna “interiores” uma boa parte das Organizações Não-governamentais (e algumas governamentais) que atuam em acordos pragmáticos com as proposições e preocupações dos caiçaras, sendo o que seria considerado “externo” seriam as ações que derivam na direção “oposta”. Isto não significa, de todo modo, que as pessoas que se consideram caiçaras não se diferenciem, com base em marcadores diacríticos identitários, de pessoas consideradas estrangeiras. A inferência sobre o interno e o externo exposta aqui diz mais sobre a atuação de certos grupos locais em relação com o fandango e/ou à cultura caiçara, e, deste modo, pode ser lida como a maneira que a população local – caiçaras ou não, envolvidos com os temas políticos considerados importantes na região – delimitam e expõe as redes de que fazem parte. Deste modo, podemos ter aqui uma chave explicativa para o que os caiçaras determinam como sendo as “influências externas”. Estas seriam todas aquelas ações que são tomadas - por parte de setores do Estado, algumas Organizações Não-governamentais (em especial as estritamente “ambientalistas”), instituições neopentecostais e (alguns) turistas –

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em uma direção que não contempla o que os caiçaras consideram importantes para si mesmos. Quando caiçaras falam sobre o fandango e sua cultura de modo geral, eles listam, geralmente, os seguintes motivos para sua “decadência”22: a influência externa da “modernidade” e dos meios de comunicação de massa; o avanço das igrejas evangélicas (igualmente “externas”); a falta de interesse por parte dos jovens. Mas mesmo onde poderíamos entrever uma motivação “interna” para o “fim” do fandango, o que prevalece é o seu caráter “externo”: os jovens não se interessam pela cultura local devido a influência mesma do primeiro motivo citado, a “modernidade”, que toma aqui a forma de valores estranhos aos caiçaras e aumento da criminalidade e uso de drogas; tudo isto seria devido ao avanço do “moderno” em detrimento de sua (a do caiçara) “tradição”. Sendo assim, enxergamos essa dicotomia “interno” e “externo” menos como grade explicativa e mais como dinâmica reguladora, condição de possibilidade mesma, da discussão sobre cultura a partir da chave nativa. Ela não explica nada por si só, mas nos dá alguma visualização, um mapa de interação de agentes, de como esses elementos “internos” e “externos” entrariam no jogo da retomada do fandango, a despeito do pessimismo encarnado no discurso fandangueiro, e que, posteriormente, oferecerá um jogo de conceitualizações sobre o próprio termo cultura, jogo esse que envolve agentes “internos” e “externos” como redefinidos acima. Neste sentido, de acordo com as noções de “interioridade” e “exterioridade” como formuladas acima, existe a possibilidade de um caiçara se colocar nessa posição de externalidade. Um exemplo são fandangueiros de longa data que, desiludidos ou frustrados (categorias nativas) com a situação atual do fandango, em uma espécie de pessimismo exacerbado, se distanciam do fandango, deixando de tocá-lo por um tempo, ou mesmo de fazer parte do circuito do fandango. Note-se: por um tempo, na complexa trama que se constitui

a

partir

do

fandango,

derivando

posicionalidades

não

necessariamente

intrinsecamente relacionadas com marcadores identitários diacríticos, tais posições nunca são definitivas. Na primeira pesquisa de campo realizada, conheci Seo Ângelo “Tambor” Ramos, um senhor com mais de 80 anos de idade, mais de dois terços deles tocando fandango. Fandangueiro conhecido na região por sua exímia técnica na rabeca e por uma extensa produção de letras de fandango, da primeira vez em que travamos diálogo, seo Ângelo me afirmara que estava quase desistindo de tocar de vez, devido aos problemas na vista que o 22

Nos termos dos próprios caiçaras. Os motivos da “decadência do fandango”, não necessariamente seguem esta ordem de importância.

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prejudicavam e pelo fato de “ninguém dar mais importância para o fandango”. Entretanto, dois anos depois (2014) encontrei-o em um baile de fandango, com a vista mais deteriorada ainda, tocando rabeca em um baile organizado em um salão de uma igreja, e encontrei-o uma vez mais tocando junto com o grupo de fandango Vida Feliz, do bairro Acaraú, de Cananéia. Casos como de seo Ângelo não são incomuns. E, mais importante ainda, é frisar que seo Ângelo não necessariamente mudou de opinião sobre a situação do fandango na região. Para muitos fandangueiros, apesar de toda a desilusão com relação a essa situação, é extremamente difícil simplesmente parar, cortar o fluxo de relações com o fandango e outros fandangueiros. E mesmo os que o fazem, o fazem por tempo limitado, pois acabam voltando a tocar posteriormente, ou ainda, praticam em casa, como me afirmou Laurinei das Neves, pescador e fandangueiro da Vila do Marujá, na Ilha do Cardoso, com idade por volta dos 30 anos, e que, no momento em que travamos diálogo, me afirmara não fazer parte de nenhum grupo de fandango no momento (justamente por conta de uma desilusão com relação ao quadro do fandango na Vila do Marujá) 23. Ainda assim, não se pode excluir a possibilidade de tal posição se tornar algo permanente, na medida em que, enquanto as posições e atitudes em relação ao fandango vão se transformando, o discurso pouco altera-se, ressaltando sempre os motivos da “derrocada”, do possível fim do fandango para justificar a posição atual (“interior” ou “exterior”). Uma posição que não permite muitas variações, nessa chave de pensamento, é a posição do turista e do próprio turismo, que, nesse caso, é visto como “de fora”, pelo menos em um primeiro momento24. O advento do turismo é recorrentemente utilizado para dar conta de algumas transformações que afetaram o caiçara e sua cultura. Primordialmente, ele é utilizado para explicar como os caiçaras “abandonaram”, em certa medida, a pesca para se dedicar a atividades turísticas, como hospedagem e restaurantes. No entanto, o aumento exponencial da atividade turística – aumento esse constatado pela população da Vila do Marujá, especialmente - provocou também uma alteração no jeito de se fazer o fandango. A percepção não é minha, mas sim dos próprios fandangueiros da Vila do Marujá. Segundo Laurinei Antônio Neves, 33 anos, ex-integrante do grupo da Família Neves, que, a despeito de estar se referindo apenas aos “valores caiçaras” de modo geral, indica que com o crescimento do turismo esses valores foram sendo deixados de lado, já que o turismo “dava mais 23 24

Analisarei o caso de Laurinei com relação ao fandango logo mais adiante. Em um primeiro momento porque, como os próprios caiçaras gostam de provocar, há uma grande (em sentido literal) parcela de turistas que acaba por ficar e se instalar na região, embora esse tipo de prática seja mais atribuída aos pesquisadores.

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dinheiro”. Ao tocar no assunto do fandango, me conta como aprendeu a tocar a viola caiçara com o tio, e como aperfeiçoou sua técnica com a formação do grupo Família Neves. E então, reverbera uma fala que já tinha ouvido antes da boca de outros fandangueiros: “O fandango antigamente era uma coisa… hoje é outra”, indicando ainda que o fandango de hoje é apenas de “apresentação”, voltado para os turistas. Temos então uma pista para entender a diferença entre o fandango como praticado antigamente25 e o atual. Retomando a discussão sobre “interno” e “externo”, afirmei antes que a atribuição de tais vocativos se dava mais em termos da direção que as ações tomavam do que papéis fixos ou lugares de procedência dos integrantes propriamente ditos. O receio com que vários fandangueiros – e não apenas Laurinei das Neves – encaram o fandango de “apresentação” é menos devido ao fato de ele ser efetivamente diferente “em si” do que ele estar voltado aos turistas, como meio de apresentação da cultura local. Alguns, inclusive, acusam tais grupos de serem “materialistas”, de só estarem se preocupando com o dinheiro que receberiam de tais apresentações. Criou-se, assim, uma distinção entre o fandango de “apresentação” e o fandango “genuíno”, “verdadeiro”, voltado para a própria comunidade, sendo este o principal foco das assertivas pessimistas: é o fandango “verdadeiro” que está sob risco de extinção. Nesses termos, o vocabulário utilizado para expressar essas preocupações com relação ao fim do fandango, ou com uma “extinção” de determinada cultura, se encontra em um certo paralelismo com relação às preocupações externalizadas sobre o desaparecimento das línguas (de algumas línguas, diga-se) e a conexão desse desparecimento com a cultura em que “residem” estas línguas (e com o subsequente desaparecimento da cultura que a envolve). Cristopher Ball (2005, p 207), indica, em um artigo voltado à compreensão da diversidade da ideologia da perda linguística, que existem diferentes modelos de compreensão da perda linguística e cultural, abarcando diferentes pontos de vista sobre a perda. Ancorado em estudos da antropologia linguística, o autor elabora diferentes modelos, com base em casos etnográficos, dos quais podemos fazer uma aproximação com, pelo menos, um deles, no nosso caso etnográfico. Isto porque, como parece ser a tônica dos discursos sobre a perda cultural, no caso das “línguas em extinção”, a ideologia da perda de que Ball fala parece se desenvolver a partir de uma distinção similar àquela qual os fandangueiros nos informam, entre uma expressão (linguística ou cultural) pura, verdadeira, genuína e uma falsa, 25

Novamente, uma categoria nativa.

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quebrada, corrompida (BALL, 2005, p. 212-214), sendo que no caso etnográfico desta dissertação este lugar é ocupado pelo termo “de apresentação”. O exemplo que quero trazer aqui relaciona-se com a concepção da perda linguística do dialeto Kiksht, do povo Wasco-Wishram do Upper Chinookan, no noroeste estadunidense. Seguindo os relatos e as teorizações de Robert E. Moore (MOORE, 1988 apud BALL, 2005) sobre o tema, entre os falantes do Kiksht, existe uma distinção dos registros Kiksht 26, baseada em uma ideologização particular que Moore chama de artefatualização, entre o Kiksht puro e o Kiksht quebrado. Essa distinção tem duas características marcantes:

“Em primeiro lugar, o modo de falar que o marca vem de um processo resultante da situação particular em que [essa] comunidade de fala […] se encontrou, facilitando a mistura de elementos morfossintáticos de Kiksht com elementos da língua vizinha, o Sahaptin. Em segundo lugar, a racionalização dos membros da comunidade ignora as transformações no sistema gramatical já que a formulação da teoria local é que a diferença entre o Kiksht verdadeiro e o quebrado está apenas na quantidade de palavras, ou seja, na riqueza da coleção de artefatos (MOORE, 1988)” (BALL, 2005, p. 212)

No que concerne aos pontos trabalhados pelos autores, a aproximação com a distinção entre as expressões verdadeiras e “não-verdadeiras” (o Kiksht quebrado e o fandango de apresentação) se dá por uma semelhança, no que diz respeito ao primeiro ponto e uma espécie de inversão no que diz respeito ao segundo. No primeiro ponto, se a língua Kiksht encontravase em uma situação peculiar (que a bem da verdade, o autor não explicita) que facilitou a mistura de elementos que vieram a transformar a língua Kiksht de maneira interna, foi também uma certa mistura de elementos que facilitou ou incentivou os fandangueiros a criarem um novo estilo de fandango, que mistura os seus elementos considerados tradicionais 26

Nesta artefatualização o que ocorre é um extensiva objetivação das próprias palavras Kiksht como objetos do patrimônio local, que criou tensões com o regime de propriedade particular desse coletivo. Como argumenta Silverstein (SILVERSTEIN, s/d apud Ball, 2005, p. 211) considerar nomes, por exemplo, como propriedade não era exatamente uma novidade para a cultura Wasco, a novidade foi considerá-la como patrimônio público (coletivizado) em um regime de propriedade que envolvia uma hierarquia de status, pagamento e prestígio, a secrecidade dos nomes pessoais que só eram expostos através de uma complexa ritualização (embasada em disputas internas). Tudo isso derivado de uma ideologia local que enfatiza a perda de palavras como indicativo da mudança linguística (idem ibid).

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com os elementos de apresentações característicos das demandas de turistas (eles pedem para ver a cultura local, sob uma forma específica, a da apresentação; eles (os turistas) pedem por uma apresentação da cultura local). O que pode ser visto como mistura de elementos morfossintáticos entre a língua Kiksht e a Sahaptin, pode ser visto como uma mistura de estilos, o próprio do fandango e o estilo de apresentação. O segundo ponto e, creio, o mais importante, diz que a comunidade Wasco, de certa maneira, ignora as transformações no sistema gramatical (as transformações “internas”), postulando que a distinção é mais quantitativa do que qualitativa (a riqueza dos artefatos é o que marca a diferença de um para o outro), resultando que a forma pura não se encontra em relação de anterioridade em relação à outra, “em termos de um padrão de uso cosmologicamente centrado ou ritualmente autorizado” (MOORE apud BALL, 2005, p. 212). No caso do fandango o que há é uma inversão de sentido deste postulado, já que a diferença entre o fandango de apresentação e o genuíno é dada nos termos de uma relação de anterioridade e até de superioridade; o fandango genuíno é considerado melhor que o de apresentação, justamente por conta da maior riqueza com relação ao seu par: o fandango de apresentação, além de ser voltado “para fora”, contém menos modas e danças, ou abdica da dança, reduzindo o fandango a “uma meia dúzia de (modas e danças) batidos(as)”, como me afirmara uma vez seo Ângelo “Tambor” Ramos. Mas, então, o que acham os fandangueiros que fazem parte dos “grupos de apresentação”? Meus principais interlocutores na Ilha do Cardoso, Salvador das Neves e Leonildo Pereira27 são integrantes de grupos desse tipo, sendo que pude acompanhar algumas atividades do grupo Família Neves. Assim como meu anfitrião em Cananéia, Amir Oliveira Filho, também coordena um grupo de fandango batido 28, o Grupo de Fandango Batido São Gonçalo. A partir das atividades desses grupos podemos entrever como eles dialogam com a distinção entre o fandango de “apresentação” e o “genuíno”. A saber, todos eles compartilham com os fandangueiros “críticos” ao fandango de “apresentação” a visão geral sobre os motivos que levaram às transformações do fandango: de certo modo, a “invasão” de valores “modernos” que culminaram em transformações sociais e econômicas que alteraram o modo de ser caiçara. Mas a própria motivação pela qual se 27

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Salvador das Neves faz parte do grupo Família Neves, como violeiro e primeira voz. Já Leonildo Pereira é “rabequista”, como dizem os caiçaras, e toca esporadicamente com a Família Neves, sendo seu grupo “principal” o da Família Pereira. Não é incomum a maior parte dos grupos de fandango batido, contando com a coreografia “tradicional” em pares limitados, serem “encaixados” junto às categorias de “fandango de apresentação”.

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criaram os grupos de fandango nos mostra que há um tipo de inversão prática do discurso pessimista. Por mais que compactuem com os motivos que levaram o fandango ao seu “estado atual” e alguns até compartilhem das assertivas sobre seu futuro – especialmente os mais velhos – eles desenvolveram os grupos como modo de apresentar a sua cultura aos turistas, cada vez mais presentes na vida caiçara. Ou seja, o pessimismo que poderia culminar em uma certa resignação se tornou o próprio motivo da necessidade de se apresentar a cultura local – através do fandango – àqueles que outrora só visitavam a região por suas belezas naturais. E mais: segundo Salvador das Neves, um dos motivos para essa “reação fandangueira” foi o fato de que os fandangueiros da região perceberam que boa parte dos turistas não estavam atrás apenas das belezas naturais da região. “Eles vinham e perguntavam também sobre a nossa cultura, sobre a nossa música, por que já tinham ouvido falar. Por isso se criaram os grupos” (Salvador das Neves, entrevista concedida em 15/09/2012). Então, as ações tomadas por tais grupos, mesmo que possam ser consideradas como sendo de sentido “externo”, de acordo com a (re)formulação proposta aqui, são vistas como essenciais para que o pessimismo estrutural que emana do discurso fandangueiro não se concretize de fato, não se atualize à realidade do próprio fandango, e num certo sentido, à realidade da própria cultura caiçara. O pessimismo é o qualificativo da memória, ele recoloca a memória para a frente e não se volta para o passado. Podemos, dessa maneira, traçar um paralelo entre o caso etnográfico aqui presente, dado o lugar da memória para os caiçaras, e o lugar da memória entre os tupinambás, como elaborado por Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro (2009) a partir de relatos de cronistas sobre a instituição da vingança entre os tupinambás. Nestes dois casos, memória não implica passado, mas antes uma atuante especulação sobre o presente e o futuro: “Nesse sentido, a memória não é resgate de uma origem ou de uma identidade que o tempo corroeu, mas é ao contrário fabricação de uma identidade que se dá no tempo, produzida pelo tempo, e que não aponta para o início dos tempos mas para seu fim” (CARNEIRO DA CUNHA; VIVEIROS DE CASTRO, 2009, p. 92) Porém, se no caso tupinambá o nexo que constitui a memória – assim como também é constituída pela memória – é a vingança (op. cit, p. 93), no caso do fandango caiçara o nexo é o pessimismo com o qual encaram esse futuro do próprio fandango e de outros aspectos ditos tradicionais de sua cultura. A memória, torna-se assim um artefato utilizado como meio de manejo da própria cultura, quero dizer, a construção do passado é uma forma de lançar um

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conteúdo – o pessimismo (estrutural) – sobre o futuro e o presente do fandango, como meio de salvaguardar o próprio fandango. Considerar o fandango como sempre em vias de desaparecimento – confrontando sua situação atual com um passado um tanto idealizado e, algumas vezes, romantizado (a nostalgia estrutural de Herzfeld [2005]), é o modo pelo qual se impede que ele venha a desaparecer. Considerar a memória, nesse caso, como um artefato não implica em reduzi-lo a um tipo de estratégia política, ou a um artifício retórico (embora atue como ambos). Pelo contrário, penso que considerar a memória um artefato amplia o sentido da memória, na mediada em que ela assim atua como uma espécie de “filtro” (na forma do pessimismo estrutural) pelos quais passam as transformações sociológicas que afetam os caiçaras e o fandango, as ações que envolvem o fandango (de “dentro” e de “fora”) e a própria memória de um passado que é construído em relação com uma perspectiva de um futuro um tanto quanto distópica. Os elementos que constituem o que é uma cultura (tradicional) e, no nosso caso, os elementos que constituem o que é o fandango só podem ser validados com referência a um passado que, por sua vez, só pode se constituir como discurso face às transformações pelas quais passam sua cultura tornando-se, portanto, um passado que só pode estar em constante transformação. Em permanente transformação porque os fatores considerados como disruptivos do fandango se localizam no passado, mas nunca tiveram um fim, eles também são constantemente atualizados, tornando o trabalho de delimitar o que e quando começou o “fim” do fandango algo puramente especulativo. O fim do fandango é constante e sempre realocado no futuro, porque ele é inerentemente presente. Disso decorrem duas coisas: de um lado, a questão da “validação” de uma cultura vista como tradicional pode ser lida como uma demanda intrinsecamente “externa”, na medida em que ela faz parte dos processos de editais e na própria interlocução com agentes, como turistas e alguns pesquisadores. Diante disso, o caiçara utiliza-se da memória como um fator de qualificação, e uma memória que encontra-se deslocada do presente, já que a concepção de cultura embutida nos editais culturais, bem como no pensamento de alguns turistas e pesquisadores reduz o “tradicional” ao passado, sendo que ao sinal do primeiro deslocamento de uma categoria em relação a outra, a cultura perde sua “autenticidade”. Ao participar de maneira ativa dos processos de angariamento de recurso com vistas à “revitalização cultural”, o caiçara proponente de um certo projeto acaba por “jogar o jogo” nas “regras do jogo” como delimitadas pelas instâncias governamentais e privadas das quais derivam os recursos. Já ao

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dialogar com um turista ou um pesquisador sobre sua cultura, apesar de existir (por vezes) a mesma demanda de “autenticação” de sua cultura (embora mais sutil), há uma maior liberdade para que o pessimismo – construído pela e construtor de memória – se sobressaia. Explico: enquanto em um diálogo informal 29 com um turista/pesquisador um fandangueiro expõe o pessimismo como algo que se localiza no tempo presente e atual, grande parte das vezes, ao confrontar-se com definições legais de cultura contidas nos editais, o pessimismo é subvertido em ação política, sendo que os fatores considerados como causa desse pessimismo são jogados como fatos do passado: a expropriação de terras, as leis ambientais, a modernidade, chegou e transformou, fazendo-se necessário no momento um resgate. É como se esses fatores não continuassem ativos, como se tivessem deixado de transformar, por que já “fez o que tinha para ser feito”. Por outro lado, o pessimismo estrutural pode ser visto como sendo fruto de uma análise sociológica caiçara, uma análise do próprio contexto de sua cultura. Nesse sentido, é como se, com o pessimismo, buscassem temporalizar os fatores (“internos” e “externos”, em um sentido local) que julgam como influentes nesse contexto. Mas essa temporalização, ocorre em dois sentidos distintos; quando seu discurso sobre o fandango é voltado para “dentro”, para a própria comunidade, esses fatores são sincronizados, são lançados no presente e, especialmente, no futuro (“se continuar desse jeito, vai acabar [o fandango]). Um outro sentido é adquirido quando essa análise social se encontra em relação com as concepções de cultura encontradas em editais de cultura e outras políticas públicas. Nesse caso, o pessimismo estrutural é invertido, lançando os mesmos fatores sociais no passado, bem como alguns elementos de sua própria cultura. Antes, porém, de pensarmos essa inversão de sentido como uma subserviência da percepção cultural caiçara à percepção embutida nessas políticas públicas, julgo ser mais profícuo pensar esse movimento como um acordo pragmático (ALMEIDA, 2007), onde duas (ou mais) concepções à primeira vista incomensuráveis, em busca de um objetivo ou causa comum (que, diga-se de passagem, também encontram-se em disputa) negociam certos elementos para que se possa encontrar uma espécie de chão comum, um entendimento sobre as ações a serem tomadas30. 29

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Tenho minha dúvidas sobre essa informalidade, já que ao dialogar com um turista ou pesquisador, eles (os fandangueiros) tem completa consciência de que estão, para seu interlocutor, “representando” a cultura caiçara. Discorrerei mais sobre os acordos pragmáticos, como elaborados por Mauro Almeida (2007 e alhures) na seção seguinte. Por enquanto, uma fala de Marcos Terena pode exemplificar o argumento: “Dependendo a maneira que vocês quiserem abordar este assunto, nós abordamos. Isso também é uma virtude indígena então, se vocês quiserem abordar o assunto do ponto de vista econômico, holístico, histórico ou do jeito que vocês quiserem nós o abordamos” (Marcos Terena, apresentação na mesa redonda “Alternativas de proteção

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É importante frisar aqui que Amir Oliveira Filho, meu anfitrião e coordenador do Grupo de Fandango São Gonçalo, não compartilha da visão generalizada sobre o futuro do fandango, nessa forma pessimista. Uma vez me afirmara: “O pessoal vive falando de 'resgate' da cultura caiçara. Mas como você pode resgatar aquilo que está vivo? Só se pode resgatar aquilo que está morto, ou quase morto. O fandango está vivo, está por aí” (comunicação pessoal, 27/07/2011). É interessante esta analogia sobre vida e morte do fandango, como chave explicativa para as atividades deste grupo de fandango. Este grupo tem o trabalho voltado para jovens e crianças de até – mais ou menos – 17 anos, sendo que os participantes mais velhos contribuem mais na parte musical. O fato de se voltar especificadamente aos jovens e a fala transcrita acima indicam que Amir tem uma visão do fandango voltado para o futuro – visão essa que tenta incutir nos jovens participantes deste grupo. Assim ele não se volta somente ao espectador forasteiro (os turistas), mas se volta internamente também para uma visão vitalista do fandango, ele tenta transmitir aos jovens a visão de que o fandango está vivo, e continuará, conquanto os próprios caiçaras continuem praticando-o. O fandango “está aí” e está vivo, e assim continuará, esta é a mensagem de Amir. Sobre essa diferenciação interna fandangueira, entre fandango de apresentação e fandango genuíno ou verdadeiro, há algo mais a ser discorrido. Tal distinção diz respeito aos grupos de fandango que se formaram nas últimas duas décadas com o objetivo de apresentar a “cultura local” aos turistas que vinham em contingentes cada vez maiores (ou constantes), grupos estes que são geralmente formadas por famílias que dão e carregam seus nomes. Contudo, esta não é uma regra generalizada, sendo que mais de uma vez alguns de meus interlocutores afirmaram que grande parte desses grupos de fandango se formam como as bandas de outros estilos musicais (como o forró ou rock) formadas pelos jovens “de hoje em dia”. O fandango “verdadeiro” seria aquele que se faz voltado para a própria comunidade, livre de embaraços e formas rígidas, descrito como uma festa corriqueira, ou melhor, o jeito caiçara de se fazer festa. Grosso modo, poderíamos dizer que, no contexto atual, o fandango batido vem se “encaixando” melhor na categoria de apresentação, enquanto o fandango classificado como “verdadeiro” corresponde aos bailes de fandango. Isso pode ser explicado por alguns dos processos que mencionei acima, em especial a proibição da roça e, por conseguinte, dos mutirões. Sem esse tipo de trabalho, o fandango havia ficado restrito aos bailes, e por isso sua forma batida foi “desaparecendo”, na visão dos aos conhecimentos tradicionais”, no Seminário Quem Cala Consente; [Lima & Bensusan (orgs.), 2003:102] in COELHO DE SOUZA, 2009, p. 167).

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caiçaras. Com o “revivalismo” pelo qual passou o fandango caiçara no início dos anos 2000, inclusive sendo esse um dos fatores que contribuíram para a formação dos grupos de apresentação, o fandango batido “volta” a ganhar força, o que gerou um certo paradoxo, percebido na fala dos mais antigos. Estes, reclamam pelo fato de que os grupos de fandango classificados como de apresentação não tocam todas as modas, apenas algumas (o dandão e a chamarrita, os estilos do fandango batido) questionando sua genuinidade. Reclamam, também, que não há mais a prática da dança do fandango batido, justamente esta que vem sendo praticada pelos novos grupos de fandango batido. Sobre estes grupos de fandango de “apresentação” é possível falar ainda que são através deles que se dão boa parte dos encontros com setores do Estado. Pois é através deles que se obtém os recursos de editais de empresas como a Petrobrás e de setores estatais como o Ministério da Cultura e a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Estes grupos entram assim em complexas tramas burocráticas junto a esses setores para adquirir recursos não só para a criação e manutenção dos próprios grupos, mas para a gravação de CDs e DVDs, de portfólios fotográficos, materiais de divulgação, e apresentações fora do município de Cananéia. Não pude acompanhar esses processos durante a sua produção, mas pude acompanhar a participação de Amir e de José Marques, representando a ACUCA – Associação de Cultura caiçara, no Revelando São Paulo, evento que se denomina Festival de Cultura Paulista Tradicional. Pude acompanhá-lo alguns dias em agosto de 2011, na edição da capital São Paulo, e em junho deste ano, na edição de Iguape, no Vale do Ribeira. Tentarei descrever aqui uma implicação para os argumentos aqui discutidos. Este evento é organizado conjuntamente entre a Abaçaí Cultura e Arte e a Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo e visa “expor” a diversidade cultural do Estado de São Paulo em forma de Festival, isto é, em estandes que representam cada cultura regional de São Paulo, e onde cada representante pode vender e/ou expor seus “artefatos culturais”. Conta ainda com apresentações musicais, desde grupos de cultura caipira a grupos de cultura cigana, passando pela cultura japonesa e outros imigrantes (e.g. bolivianos e peruanos) e pela cultura indígena (da etnia Tupi-Guarani das Aldeias Karagwá e Pyhau de Barão de Antonina, e Djaikoa-ty de Miracatu; Etnia Kariboka da Aldeia Tupãnaé de Pariquera-Açu e Etnia Fulni-ô). Mas se a diversidade cultural “representada” em cada estande era imensa, os participantes constantemente reclamavam da “não-diversidade” dos

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espectadores/compradores31. Ouvi mais de uma vez que os “clientes/expectadores” se preocupavam mais em pechinchar preços e inquirir sobre a qualidade dos “produtos” como se estivessem em um grande “shopping center cultural”32. Não só Amir – que ali estava apresentando a cultura caiçara33 – mas diversos outros “representantes” de diversas outras culturas reclamavam que as pessoas não pareciam realmente interessadas na cultura que os artefatos representavam, a menos não de um modo “mais profundo”: tudo o que pareciam querer saber era de onde vinha tal e qual “produto”. Obviamente, não é o caso de se dizer que os representantes culturais que ali estavam não tinham interesse no dinheiro proveniente desses “cliente/expectadores”, seja para levá-lo de volta à comunidade de que fazem parte ou para uso pessoal mesmo, pouco importa. Mas esse certo “ressentimento” que pude entrever é mais relativo ao caráter atribuído a estes artefatos culturais do que ao comércio deles em si. Este “ressentimento” atinge um estatuto diferente, atribuído aos objetos em jogo e não à forma do comércio. Voltaremos a analisar posteriormente este ponto.

1.2 – Encontros e Desencontros entre o Estado e a Cultura: o Fandango e a política de editais

Mencionei a pouco sobre um ponto de encontro entre as políticas públicas estatais, como recursos obtidos através de editais e os objetivos com os quais os fandangueiros utilizam estes recursos. Os fandangueiros geralmente utilizam estes recursos como meio de divulgar a cultura caiçara, através do fandango. Essa luta por visibilidade se insere num contexto onde esta seria a “solução” para um problema existencial: se não se divulgar o fandango ele pode deixar de existir (bem como sua cultura), assim afirmam os caiçaras (exceção feita a alguns grupos, como o Grupo São Gonçalo). Só que os editais mencionados acima e as políticas públicas voltadas à cultura também contém uma definição do que é 31 32

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O comércio de “artefatos culturais” é uma das principais atrações do festival. Curiosamente, o evento foi realizado no espaço de um antigo shopping em São Paulo, na Vila Guilherme, zona norte de São Paulo. Nesse ano, não houve apresentação de fandango, sendo que só havia o estande de Amir representando a cultura caiçara. Mas ele mesmo me contou que não é incomum a participação – em forma de apresentação – de fandangueiros neste festival.

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cultura, o que é uma cultura tradicional, o que é uma cultura popular. Estas concepções de cultura por vezes encontram-se em acordo com a concepção de cultura, e, mais ainda, com os objetivos dos fandangueiros (e de outros agentes que “trabalhem” com a cultura caiçara). Outras vezes, no entanto, elas podem estar em profundo desacordo (o que não significa, se esse for o caso, que os editais que contenham essa discordância com relação ao que é cultura sejam deixados de lado...). Se focarmos “apenas” na agência de setores de Estado podemos encontrar tal (in)congruência também, seja com relação a área cultural ou com relação a áreas que ultrapassam esse campo, como a do meio ambiente, cujas políticas voltadas a esse setor influenciaram tanto a vida dos caiçaras (ver RODRIGUES, 2013, capítulo 1). O “setor ambiental”, tão múltiplo quanto o campo que tentamos cobrir aqui, o da cultura, já que envolve agentes das mais diversas origens e que agem nos mais diversos sentidos, por vezes encontra-se com o “setor cultural”, digamos assim, no sentido de que uma das características geralmente atribuídas aos caiçaras (por eles mesmos, em primeiro lugar) é sua conectividade com o meio ambiente. Contudo, nos ateremos aqui às políticas públicas destinadas ao “setor cultural”, em especial às políticas de patrimonialização, já que recentemente, no final de 2012, o fandango caiçara foi declarado patrimônio imaterial cultural do Brasil. Assim é definido o fandango pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional):

O fandango caiçara é uma expressão musical-coreográfica-poética e festiva, cuja área de ocorrência abrange o litoral sul do estado de São Paulo e o litoral norte do estado do Paraná. Essa forma de expressão possui uma estrutura bastante complexa e se define em um conjunto de práticas que perpassam o trabalho, o divertimento, a religiosidade, a música e a dança, prestígios e rivalidades, saberes e fazeres. O fandango caiçara se classifica em batido e bailado ou valsado, cujas diferenças se definem pelos instrumentos utilizados, pela estrutura musical, pelos versos e toques. Nos bailes, como são conhecidos os encontros onde há fandango, se estabelecem redes de trocas e diálogos entre gerações, intercâmbio de instrumentos, afinações, modas e passos viabilizando a manutenção da memória e da prática das diferentes músicas e danças. O fandango caiçara é uma forma de expressão profundamente enraizada no cotidiano das comunidades caiçaras, um espaço de reiteração de sua identidade e determinante dos padrões de sociabilidade local” (IPHAN, 2013)34 34

Esta definição assemelha-se muito com o corpo de trabalhos e dissertações que os acadêmicos escrevem sobre qualquer assunto, trata-se de uma “clássica” definição externalista: começa localizando geográficamente, depois o insere em um conjunto de práticas contíguas; em seguida visualiza algumas especificidades do fenômeno (e aqui dá lugar para a fala nativa e visões internalistas) e acaba por dizer que o fenômeno extrapola a prática em si e se situa no terreno da sociabilidade cotidiana. Porém, as definições

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Note-se que, antes de tudo, o fandango caiçara é definido como uma expressão cultural (sendo registrado, desse modo, no livro “formas de expressão”, do IPHAN 35). Tal expressão reaparece nas definições nativas, onde, para além de ser o seu gênero musical e seu estilo de dança, o fandango aparece como sendo a expressão por excelência de sua cultura, aliado à pesca e à ligação com a terra36. Porém, como afirmei, o fandango, para seus praticantes, não é “apenas” uma expressão37. Está ligado, intrinsecamente, ao modo de ser caiçara; deriva daí a extrema preocupação com que os mais velhos encaram o processo de esquecimento que afirmam estar passando o fandango. No que concerne ao fandango como uma expressão cultural, como algo que representa a cultura caiçara, podemos abordar a questão através de uma significativa mudança em suas estratégias de autorrepresentação com relação a contextos mais amplos. A mudança de que falo é uma mudança qualitativa nas estratégias políticas desses atores e agentes em relação à sua cultura, isto é, de uma mudança da estratégia de “invisibilidade cultural” para uma que enfatize justamente o contrário, a visibilidade de suas culturas e seus agentes. Tal mudança vai no sentido de “figurar” a cultura, dar-lhe contornos, estabelecer valores diferenciados que sejam reconhecidos pelas pessoas imiscuídas nessas culturas, como estratégia de diferenciação de contextos que se vão se tornando mais abrangentes. Esta mudança estratégica pode ser considerada, por sua vez, i) do ponto de vista nativo, como uma resposta às transformações ocorridas no que chamam de modo de vida dito tradicional, devido a inserções de pensamentos e práticas outras geralmente atribuídas à modernidade ou à modernização; ii) como um meio, um método mesmo, um método de apresentação da cultura, como modo de angariar benefícios através de políticas públicas e lutar contra os

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podem se nativizar e, então, é a própria noção de nativo que perde significância. Evocando Geertz (1989), são nativas as definições e arranjos argumentativos dos antropólogos e do IPHAN, também (Luiz Henrique de Toledo, comunicação pessoal). Sobre a questão da patrimonialização do fandango, discorreremos mais adiante, no capítulo 3. Essa ligação com a terra adquire sentidos ambíguos nos discursos nativos; pode ser entendido como uma ligação no sentido territorial, no sentido mais estrito, perfazendo a definição mais abrangente do que é ser caiçara como sendo “aquele que vive no litoral”, como bem pode ser entendido como a ligação com as técnicas agrícolas tradicionalmente concebidas ,como a coivara ou corte-queima-pousio (c.f. nota 1), sendo que esta definição só pode ser concebida acompanhada da primeira. Esta também corresponde à concepção mais “estreita”, por assim dizer, do que é ser caiçara. Para uma melhor elaboração sobre a territorialidade caiçara ver QUEIROZ (2006), RODRIGUES (2001 e 2013). Apesar dos termos “expressão cultural” serem recorrentes entre alguns fandangueiros (e agentes culturais envolvidos), tais categorias são acionadas quando colocadas em um contexto de apresentação do fandango para aqueles que são de fora, “forasteiros”, turistas e pesquisadores (das mais diversas áreas) principalmente. Trabalharei a questão do fandango como indo além da “expressão cultural” no capítulo final desta dissertação.

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efeitos negativos (termo local) de outras políticas públicas e da própria modernização ou modernidade. Este movimento pode ser percebido claramente com relação ao fandango caiçara, tido como a principal “expressão cultural” desta população. O fandango, como afirmei antes, é uma festa intrinsecamente relacionada aos mutirões, sendo o fandango a festa que era dada como retribuição aos serviços prestados por vizinhos e parentes, em serviços que não podiam ser trabalhados apenas com a família nuclear; atividades como o transporte de um tronco de árvore para a confecção das “canoas de um tronco só” e a feitura e a colheita das roças. O fandango também se fazia quando de datas religiosas e festas de aniversário, sendo um importante “instrumento” de socialização caiçara. Como “expressão cultural” ele é entendido como sendo a manifestação que congrega em si mesmo os mecanismos de sociabilidade mais caros ao caiçaras, o seu fato social total (MAUSS, 2003), imbricando deste modo o próprio ser caiçara. O problema desta leitura do fandango como “expressão cultural” é que ela deixa de subscrever as principais mudanças que ocorreram dentro e a partir do próprio fandango. A meu ver, uma das principais, seguindo a linha da mudança estratégica citada acima, é a distinção, já mencionada anteriormente, entre o fandango genuíno38 e o fandango de apresentação. Sendo o fandango genuíno utilizado para se remeter ao fandango em seu sentido mais tradicional, o de “expressão cultural” de uma tradição encarnada nos próprios pressupostos ontológicos caiçaras, o fandango de apresentação seria, por um lado, uma resposta caiçara ao “desaparecimento” de sua cultura, e por outro, uma espécie de reação caiçara a uma demanda “externa”, derivada do crescimento e aprofundamento do turismo e das práticas caiçaras no recebimento do turismo. Como disse, segundo os fandangueiros Vila do Marujá, na Ilha do Cardoso, foi a partir de um interesse externo, de pesquisadores e turistas, que visitavam a vila perguntando sempre pela cultura local (em tipo de contraposição ao fundo “natural” da ilha, o principal motivador do crescimento turístico). Como efeito, surgiram assim os grupos de apresentação, que apresentam uma lógica distinta do fandango praticado tradicionalmente. Nestes, são formados grupos com fandangueiros relativamente fixos (o que não acontecia nos 38

“Genuíno” está sendo usado aqui como categoria nativa. Nesse sentido poderíamos utilizar também os vocativos “tradicional” ou “verdadeiro”, sendo que a escolha do “genuíno” deve-se a dois fatores: primeiro, como meio de, na medida do possível, não contrapô-lo a um fandango que seria “falso”; e, também, como meio de não confundir o leitor, já que o vocativo “tradicional” invoca outros sentidos diversos e outros contextos.

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bailes de fandango, onde os instrumentistas e cantadores se revezavam até o “raiar do dia”) que se apresentam, majoritariamente, para agentes “externos” (turistas e pesquisadores, excursões escolares, etc.), ou ainda em “ambientes externos”; neste caso, os próprios grupos são deslocados de seu contexto original para um outro, relativamente mais ou menos tradicionais, dependendo de onde se localiza o fixativo de cada tradicionalidade. De todo modo, não foi apenas nas formas de se praticar o fandango 39 que ele transformou-se. Outra mudança qualitativa foi no próprio posicionamento da cultura caiçara em relação a outros contextos (como a “cultura brasileira”, ou ainda, com relação ao Estado e suas várias facetas) e dos próprios agentes em relação a essa cultura. Devido à própria abertura de diálogo com alguns setores do Estado (principalmente, nos primeiros anos do governo Lula, na gestão do Ministério da Cultura de Gilberto Gil) e do enrijecimento de outros setores (principalmente o “ambientalista”) a população caiçara sentiu a necessidade de dar os contornos de sua cultura, e delimitar suas demandas, sendo estes movimentos, em larga medida, mediados pelo fandango, já que este é definido como a mais precípua das “expressões culturais” caiçaras. Desta maneira, a mudança de que quero falar é justamente do fandango (e da cultura caiçara) como apenas uma expressão para o fandango (e a cultura caiçara) como objetivo. Como causa em, pelo menos, dois sentidos: a) causa como objetivo, como luta, que necessita de estratégias específicas, que passa pelo critério da visibilidade e de que tipo de visibilidade; b) como causa em relação causa/efeito, sendo estes efeitos esperados ou não, efeitos na própria forma de se praticar e apresentar o fandango, que divide a opinião 40 dos próprios agentes culturais. O fandango seria, assim, para além de uma “expressão cultural”, um operador de transformações da própria cultura caiçara, que regula sua imagem e sua prática de acordo com determinados pressupostos ontológicos que se posicionam em diversos contextos, locais ou não, textuais ou práticos. Dessa perspectiva, devemos entender a relação entre a autorrepresentação dos caiçaras e do fandango com as representações realizadas pelos órgão públicos e outros agentes “externos” como mais um vetor de transformações, de extrema importância para a prática fandangueira. Entramos, assim, na seara onde a “cultura encontra o Estado” e vice-versa. É justamente onde o “Estado encontra a cultura” para onde voltaremos nosso olhar etnográfico. 39

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Formas, é importante notar, que não são excludentes, sendo os tradicionais bailes de fandango (apesar da constante reclamação fandangueira) ainda realizados, mesmo que com menor frequência. Isto porque o fandango de apresentação, como já foi dito, não é bem visto pelos fandangueiros de idade mais avançada. Mas isto não significa dizer que eles se excluem da participação nestes próprios grupos.

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A despeito de se pretender como uma etnografia do fandango caiçara, é crucial para nosso ponto de vista entender como se dá esse encontro, já que é nesse ponto que reside parte dos esforços dos caiçaras de definir, delimitar e apresentar sua própria cultura. Não é minha intenção, contudo, reduzir tais esforços ao “simples” (que, de fato, não são nada simples) contato com a máquina estatal, já que as relações entremeadas pelo fandango caiçara envolvem agentes que não necessariamente estão ligados tanto ao Estado, quanto aos caiçaras (agentes estes representados pelas Organizações Não-Governamentais, principalmente). Se trata antes, de entender como se dão, nos termos de Mauro Almeida (2007), esses encontros pragmáticos, entre os diversos conceitos de cultura (imagens da cultura, diria Herzfeld) presentes no contexto do fandango caiçara41. Ainda sobre o “Estado”, doravante estarei me referindo a seus agentes e multiplicidades de relações que representa como setores do Estado, seguindo indicação de Cimea Bevilaqua e Piero de Camargo Leirner (2000, pp. 127). Segundo estes autores, a definição de setores do Estado é utilizada “para enfatizar que o Estado não é uma instituição monolítica. Ao contrário, comporta diferentes dimensões e agências que não são homogêneas e, muitas vezes, chegam a constituir grupos com contornos bastante particulares.” (BEVILAQUA; LEIRNER, 2000; p. 127). Nesse sentido, tal definição vai ao encontro da visada etnográfica que Herzfeld propõe, assim sendo, adotarei esta definição ao longo do texto. Voltando aos encontros pragmáticos, acredito que caibam aqui algumas considerações sobre este conceito cunhado por Mauro Almeida. Mais ainda, no que se refere à nossa temática, acredito ser possível através deste autor, aliado ainda às teorias de Roy Wagner (2010) elucidar alguns pontos que surgiram na etnografia, a saber: a) o ponto de encontro entre as diversas concepções de cultura, e todos os adjetivos que a acompanham, como por exemplo, tradicional, popular e moderna, como modo de eliminar todos os divisores pré concebidos e delimitar qual adjetivo é atribuído a quem e ao quê e o seu porquê e; b) como a questão do dado e do artificial se articula nessas definições, trazendo como pano de fundo uma já clássica questão antropológica, a das relações entre natureza e cultura, sendo que aqui 41

Se seguirmos os termos de Michael Herzfeld, deveríamos dizer em confrontos entre uma imagem oficial da cultura (que corresponde ao Estado) e uma imagem local, que seria inferida etnograficamente (ver HERZFELD, 2005, especialmente capítulos II, III, e IV). No entanto, de agora em diante evitaremos os termos confronto e oficial, na medida em que, enquanto o primeiro termo pressupões o conflito e a hostilidade pelas partes envolvidas (o que não podemos afirmar, de acordo com a etnografia), o segundo termo pode nos levar a um entendimento confuso quanto aos estatutos de cada concepção e a um dualismo entre imagens oficiais e nãooficiais, relegando um peso secundário, e as vezes até mesmo pejorativo às concepções não oficiais.

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estou mais em débito com a maneira como esta questão é formulada por Roy Wagner, em sua obra A Invenção da Cultura (1975 (2010)). Iniciemos então com os encontros pragmáticos. Esta definição, cunhada por Mauro Almeida (1999, 2003, 2007), está diretamente ligada ao modo como o autor rechaça o relativismo cultural, principalmente em sua forma mais radical, como concebida, por exemplo, na hipótese de Sapir-Whorf, onde há uma incomensurabilidade entre as culturas, ou seja, cada cultura corresponderia a um universo próprio, que seriam impossíveis de se traduzir um ao outro (ALMEIDA, 2003; pp. 14). Este ponto de vista tem consequências práticas. Ao afirmar que não há um “chão-comum” para o entendimento entre as culturas, o autor afirma que uma dessas consequências é

A perda de argumentos para apoiar no espaço público demandas dos grupos sociais que politicamente são demasiado fracos para contratarem advogados e para formarem lobbies formadores de opinião. Sem o argumento da objetividade etnográfica que ambiciona a verdade, ancorada em uma comunidade científica regida por regras mínimas de estabelecimento de fatos e de confronto de argumentos, estamos atirando discussões sobre territórios indígenas, sobre identidades de minorias como base de direitos, sobre dominação e exploração – para uma zona de ninguém de retórica e manipulação. Tudo é ‘invenção’, tudo é ‘construção social’, ‘tudo é relativo’. Pode então o mais forte ou o mais ‘eloquente’. (ALMEIDA, 2003, p. 12-13)

A alternativa proposta por Mauro Almeida 42 passa também pela noção de verdade e de objetividade etnográfica. Tais palavras, verdade e objetividade, podem soar estranhas a antropologia recente (como o próprio autor admite, embora ele esteja se dirigindo à antropologia pós-moderna; cf. ALMEIDA, idem ibid), porém, essas noções tem um peso relevante em sua proposta. Ao defender uma certa objetividade etnográfica, o autor está defendendo um “chão comum”, a possibilidade de tradução entre ontologias distintas, o que garante a intersubjetividade, e consequentemente, a objetividade” (ALMEIDA, 1999; p. 5). Por mais que haja a indeterminação da tradução, no sentido em que não é possível produzir traduções não-distorcidas entre um ou mais contextos (POVINELLI, 2001; p. 320 apud ALMEIDA, 2003, p. 20), “ela não exclui a possibilidade de diferentes traduções que sejam 42

Alternativa essa que passa, principalmente, por dois autores, o filósofo da ciência Newton da Costa (1992) e Lévi-Strauss de O Pensamento Selvagem (2008 [1962]). É com base neles que o autor (ironicamente, até) relativiza a noção de verdade que surge no trecho acima destacado.

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‘corretas’ no sentido de que suas consequências pragmáticas serão as mesmas” (idem ibid). Podemos, assim, entrever o que o autor quer dizer com a “verdade”, o que na realidade, baseado em Newton da Costa, é para ele uma “quase-verdade” 43. Uma “quaseverdade” seria um acordo pragmático entre ontologias 44 distintas, ontologias estas que podem ser incompatíveis (incompatibilidade por vezes mais aguda, por outras mais amena), mas que, como parte de um mundo englobante e abrangente, estão em relação. A incompatibilidade entre distintas ontologias – que implica em certa indeterminação da tradução – não exclui a possibilidade de acordos pragmáticos, bem como esses acordos não eliminam a pluralidade (anarquismo) ontológica (ALMEIDA, 2007, p. 12-13). O autor, portanto, baseado no relativismo estrutural lévi-straussiano, rechaça o relativismo cultural por um relativismo ontológico, como formulado por Willard Quine e Newton da Costa (idem ibid). Porém, Mauro Almeida – por causa mesmo de sua postura política em relação ao relativismo cultural – se remete apenas ao conceito de cultura no sentido de desviá-lo do foco central da antropologia que propõe; além disso, se refere ao termo invenção de maneira um tanto pejorativa, como podemos ver no trecho citado acima. Por isso, pode soar meio estranho a referência anterior à obra de Roy Wagner, em especial A Invenção da Cultura. Poderia parecer uma tentativa de conjugar duas visões fundamentalmente opostas. Cabe, portanto, uma última explicação de cunho teórico, antes que passemos à etnografia. De meu ponto de vista, as propostas de Mauro Almeida e Roy Wagner 45 conjugam em mais de um aspecto, sendo de certo modo até similares, em termos de críticas e objetivos. Os dois autores buscam, de certo modo, uma saída para o “beco” - político e teórico – que se instituiu com a guinada pós-moderna que antropologia tomou. Mas afirmar isto desta maneira, seria levianamente anacrônico, já que, enquanto Mauro Almeida escreve nas últimas duas décadas, o livro de Roy Wagner foi escrito em 1975, ou seja, enquanto Mauro Almeida escreve sobre um rumo que parte da antropologia tomou efetivamente, Wagner estava escrevendo em um contexto onde se embasava teoricamente o pós-modernismo antropológico (GOLDMAN, 2011, p. 198-201). Não vamos nos ater aqui aos pormenores da obra de Roy Wagner, já que suas reflexões servirão de inspiração para muitas das que virão subsequentemente embutidas nesta 43 44

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Ou ainda “verdades parciais”, ou “verdades pragmáticas” (ALMEIDA, 2007, p. 12) Seguindo as definições de Almeida (2007), ontologia é o conjunto de pressupostos sobre o que existe, que dão sentido às experiências pragmáticas e vão além delas. Voltaremos a esse ponto. E aqui, nossa leitura deste autor estará profundamente enviesada pela leitura de Márcio Goldman (Goldman, 2011)

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dissertação. Foquemos então, nas construções teóricas e críticas que efetivamente “unem” as visões de Mauro Almeida e Roy Wagner, em vez de apartá-los, já que estes serão aportes teóricos cruciais para nosso ponto de vista. Adicionando ainda a esse “caldeirão teórico”, Marshall Sahlins e Michael Herzfeld, cujos escritos serão fundamentais para a elaboração do que vim a chamar de pessimismo estrutural, conceito também fundamental para o nosso ponto de vista46. Primeiramente, o que Roy Wagner chama de invenção é muito distinto do teor negativo que o termo adquiriu na antropologia como posta pelo pós-modernismo (sendo que a crítica de Mauro Almeida é direcionada a este tipo de invenção; cf. ALMEIDA, 2003). Se no sentido pós-moderno o termo invenção adquiriu o sentido de “falso”, de “invencionice”, muito próximo da mentira, para Roy Wagner o termo diz muito mais sobre o processo criativo pelos quais as pessoas denominam, conceitualizam e constituem a realidade à sua volta. Uma invenção contínua e dialética, uma dialética aberta, “uma tensão ou alternância, ao modo de um diálogo, entre duas concepções ou pontos de vista simultaneamente contraditórios e solidários entre si” (WAGNER, 2010, p. 96-100), onde os termos deste diálogo se dão sempre entre os distintos controles convencionais (como o autor chama os processos de coletivização simbólica) e controles diferenciantes (como Roy Wagner chama os esforços de diferenciação e particularização). Estes controles correspondem, respectivamente, aos reinos do feito, do “artificial”, do construído; e do inato, do dado, do natural (WAGNER, 2010). Afirmando ainda que a dialética existente entre esses dois controles é o “cerne de todas as culturas humanas” (id ibid), Roy Wagner também “estende” o ato inventivo para além das fronteiras “ocidentais”, e “(re)coloca-as” em relação, o que havia sido perdido com os autores que advogam em favor da incomensurabilidade das culturas; desse ponto de vista, o do pós-moderno, além da impossibilidade de tradução entre as culturas, elas mesmas (as culturas) não eram invenções; elas tinham uma existência que só estava sendo “arranhada” pelas etnografias, estas sim, invenções repousadas sobre relações de poder perniciosas47. O autor, ao contrário, afirma que as diferenças entre as diversas culturas provém não do fato de serem intrinsecamente irredutíveis umas às outras, mas de repousarem seus esforços em um 46

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Nesse ponto, o leitor poderá achar que esta dissertação é mais uma elucubração teórica em cima de uma etnografia caiçara, e que, tanto um quanto o outro estão apartados, não só geograficamente como intelectualmente. Nada poderia ser mais distante do objetivo desta dissertação, sendo que, se for esse o caso, espero sanar tal “distância” em breve, ao trazer a etnografia como forma de colocar em diálogo o ponto de vista caiçara e o acadêmico, representado aqui pelos autores citados e por este que vos escreve. Para uma crítica contundente e (muito) bem-humorada sobre a predominância do “poder” como categoria analítica antropológica (bem como uma crítica ao relativismo cultural aqui citado) ver Marshall Sahlins (2004).

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dos tipos de controle citados acima. A diferença se dá, não nos elementos culturais em si – sejam eles “tradicionais” ou não – mas no modo como operam esses elementos entre si, como cada cultura encaixa, de acordo com seus próprios pressupostos (estes também em constante processo de diferenciação e convencionalização) os elementos “novos” ou “velhos”. O que Wagner afirma, assim, é que também as culturas são inventadas, mas ao “desfocar” a invenção das relações de poder para o aspecto positivo da criatividade e da motivação humanas, ele também recoloca a etnografia e a antropologia em posição de se (re)criar continuamente. Deste modo, a etnografia e o trabalho de campo (re)tomam a relevância no trabalho antropológico, não só como possibilidade acadêmica, mas também como de se entrever e operacionalizar realidades distintas, criando também a possibilidade de uma “antropologia reversa”, onde os nativos também são capazes de atos criativos em relação à sua (própria) cultura e a cultura dos outros, de acordo com os próprios modos de diferenciar e coletivizar os elementos em jogo. Aponto aqui então a semelhança entre Mauro Almeida e Roy Wagner neste sentido: uma defesa da etnografia e do trabalho de campo como essenciais ao trabalho antropológico, como modo de entrever as relações (incluindo as relações de poder, mas não apenas) e as (re)elaborações das mesmas. Se para Almeida a etnografia é mais um meio para se atingir a intersubjetividade entre as culturas, e assim, um modo de se atingir uma certa objetividade no trato dos encontros pragmáticos, os “resultados” práticos de um encontro entre ontologias distintas (ALMEIDA, 2003, 2007), para Wagner a etnografia seria um meio pelo qual antropólogos e nativos podem (re)inventar sua própria cultura e a cultura do outro, ou seja, do ponto de vista trabalhado aqui, elaborar um acordo pragmático sobre o que são “culturas”48. Onde Mauro Almeida fala de ontologias como um conjunto de pressupostos sobre o que existe (ALMEIDA, 2007, P. 13-14), creio que Roy Wagner estenderia essa definição como um conjunto de pressupostos sobre o que existe e o que não existe, e entre o que é dado (afinal, o que existe) e o que é feito, o que é artificial (WAGNER, 2010). Se lermos, então, os encontros pragmáticos de Mauro Almeida sob uma ótica wagneriana, estaríamos adicionando às ontologias que produzem tais acordos a distinção entre ontologias que se diferenciam em um contexto coletivizante (convencionalizante) e ontologias que convencionalizam os contextos diferenciantes49. 48

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Dado que “a antropologia é o estudo do homem mediante a presunção da cultura, um pensamento que abarca os pensamentos e ações do antropólogo e dos seus objetos de estudo como variedades do mesmo fenômeno” (WAGNER, 2010, p. 75). Lembrando, ainda, que os processos de diferenciação e coletivização ocorrem também internamente às

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Retomemos, portanto, o fandango caiçara. O que poderia ter a ver o fandango caiçara com as teorias que aventamos de forma resumida acima? Tomei este viés teórico no sentido de colocar em diálogo as concepções sobre a “cultura”, como conceito antropológico e como conceito caiçara, já que nossos interlocutores, aqui, adotam uma postura culturalista quando se dão os encontros pragmáticos de que falamos acima. Quando defrontadas pelas ações e políticas públicas por parte dos mais diversos agentes (e, portanto, das mais diversas ontologias), os caiçaras falam de cultura, a definem e a delimitam, a diferenciam e também a convencionalizam, em suma, eles criam (e não apenas recriam, como se estivesse apenas aludindo a um passado amorfo) sua cultura. Esta, por sua vez, também não é monolítica e imutável (dado que os próprios caiçaras também “possuem” diversidade ontológica), mas está sempre envolvida em um processo dialético indefinido e irrestrito, conformando os “novos” elementos com os elementos “tradicionais” de seu modo de vida. As escolhas teórico-metodológicas aqui tomadas deram preferência (para além da bibliografia atinente ao tema) para autores contemporâneos que visam problematizar os processos de construção e invenção da Cultura e dos conceitos que a permeiam, em vez de reificá-la ou de “simplesmente” desconstruí-la ou relativizá-la, à maneira pós-modernista 50. Essa escolha se deu por dois motivos, principalmente: o primeiro é o de que a reificação da cultura não se dava somente na bibliografia, na antropologia inclusive, mas também a cultura é reificada pelos meus interlocutores em campo, sejam eles caiçaras ou não. Assim, em vez de simplesmente descartar este processo como sendo nativo, ou um viés teórico de parte da bibliografia (no caso da antropologia), preferi tomar tal reificação como instrumento de invenção cultural (WAGNER, 2010; HERZFELD, 2005). O que indicamos aqui como reificação faz parte de estratégias práticas intrínsecas à constituição de uma poética social, de acordo com Herzfeld. Segundo este autor, uma visada diferenciada da antropologia sobre o uso de essencialismos e estereótipos e, portanto, das reificações que constituem o tecido social nos permitiria encarar esses elementos como “narrativas estratégicas que conferem uma condição identitária às distinções linguísticas”

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culturas, de maneira sempre dialética (GOLDMAN, 2011). O mesmo pode ser dito para as ontologias mauro-almeidianas, no sentido de que, para além de não serem imutáveis, podem “ser encontradas” em um mesmo interlocutor; utilizando um exemplo “científico”, “o físico é newtoniano de manhã cedo ao planejar lançamento de foguetes; à tardinha é quântico ao fazer experimentos de colisão de partículas; e à noite é relativista ao olhar as vastidões estreladas e sonhar com a expansão do universo. E muitos deles ainda encontram tempo para serem taoistas” (ALMEIDA, 2003, p. 15). Sobre o relativismo cultural e seus problemas, principalmente em sua roupagem pós-moderna, ver Mauro Almeida (1999, 2003, 2007). Mais adiante, discutiremos alguns conceitos deste autor, bem como sua crítica à “incomensurabilidade das culturas”

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(FURTH, 1995, p.998 apud HERZFELD, 2005, p.47), sendo que Herzfeld pretende estender tal definição para além do domínio linguístico, delimitando assim o que seria a poética social. Mais ainda, nas palavras do autor,

A vida social consiste em processos de reificação e essencialismo assim como em desafios a esses processos. Esse é o corolário de reconhecer o caráter estratégico do essencialismo. Desconfiar do essencialismo na teoria social não deve toldar a nossa percepção da sua presença disseminada na vida social. É inútil essencializar o essencialismo. Nesse momento, também, as ciências sociais são escrutinadas pelas suas próprias lentes comparativistas. Tal como Richard Handler e eu defendemos, reconhecer os essencialismos partilhados pelo nacionalismo e pela antropologia proporciona visão histórica e distância crítica. (HERZFELD, 2005, p. 47)

Essa é a definição do que Herzfeld chama de essencialismos práticos, algo que seria crucial, no seu entendimento, para a compreensão antropológica das práticas pelas quais criamos os conceitos (e também as realidades) de Estado, nação, cultura, sociedade, em suma, a forma como os agentes representam a si mesmos diante das imagens “oficiais” de uma cultura e/ou nação. Herzfeld nos indica, assim, um viés analítico pelo qual o Estado – e as multiplicidades de agentes que o constituem – não ficam subsumidas na etnografia, como se o fato de se estar imerso numa relação com o Estado (tanto nativos, quanto antropólogos) não fizesse diferença (GOLDMAN, 1998). Nas palavras de Márcio Goldman,

na medida em que o antropólogo, que encara esse Estado-nação em seus planos de existência mais concretos – aqueles das experiências vividas pelos indivíduos e grupos que nele habitam –, percebe imediatamente que o que se denomina com esse nome consiste, na verdade, em um conjunto aberto de agentes e operações, possuindo como denominador comum o fato de estarem voltados para uma 'despoetização' da vida social, ou seja, para a essencialização, naturalização e literalização de experiências sociais sempre múltiplas e polifônicas. E aqui, de fato, o Estado encontra a cultura. (GOLDMAN, 1998, p. 151)

A discussão aqui gira em torno de duas – ou mais, talvez bem mais – perspectivas diferentes de “cultura”, ou, melhor dizendo, dos processos e contextos em que se dão as relações entre duas – ou mais – perspectivas distintas sobre o que é a cultura. Enquanto para o 54

caiçara o seu fandango não se encontrava dissociado do restante dos aspectos que o nutriam e que compunham o quadro geral de sua vida – de modo que teve seu “fim” junto com o “fim” de uma de suas atividades econômicas – para os pesquisadores que vinham de fora e para alguns setores estatais, por meio de políticas públicas e editais, estes manifestavam interesse em construir, junto com os próprios caiçaras outras concepções de “cultura”, dita mais autônoma, se bem que ainda não de todo dissociado do “quadro geral” da vida caiçara. Ainda assim, no sentido que Manuela Carneiro da Cunha (2009) empresta ao termo “cultura” com aspas, que é abarcada dentro de uma concepção mais abrangente de Cultura. Esta concepção mais abrangente de Cultura, com c maiúsculo, seria uma proposição que abarca de maneira sistemática o conceito de “cultura” com aspas, numa espécie de sistema interétnico. “Cultura” com aspas seria um modo de metalinguagem, quando se fala de “cultura” como categoria ela mesma, “uma noção reflexiva que de certo modo fala de si mesma” (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p.356). Neste caso, um “pedaço” da cultura caiçara, um pedaço que foi valorizado e tomado como totalidade, seria a reconstituição de outra totalidade agora negociada com os de fora, posicionados no “exterior” da prática fandangueira. Ou seja, é uma espécie de processo metonímico, tomar uma parte pelo todo, onde esta parte estaria dentro de um quadro maior da cultura caiçara como um todo, que por sua vez, também, estaria inserido no quadro mais geral da cultura popular brasileira. Entretanto, neste aspecto, Manuela Carneiro da Cunha se diferencia em um ponto crucial de Roy Wagner. Metonimização não é a mesma coisa que diferenciação; esta última se daria de outro modo, quer dizer, o processo diferenciante é plasmado na ação e na invenção mesma, no próprio ato criativo, em ato; o processo de metonimização parece mais discursivo, e por isso um tanto consciente (um parte, de um todo, valorizado e tomado como o todo); Insinua-se de maneira mais política nesse sentido e menos poética ou invencionado pela prática. Tentarei aliar os dois tipos de processo, na medida em que seja possível, como chave explicativa para os movimentos que a noção de cultura realiza e como ela mesma é posta em movimentação (sendo, creio eu, o segundo movimento mais proeminente que o primeiro).

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1.3 - “Revelando” o Fandango

Fornecerei mais um exemplo etnográfico, de modo a esclarecer o que vem sendo dito até aqui. Mencionei acima que estivo junto com o Grupo de Fandango Batido São Gonçalo, grupo que mais acompanhei na região, no festival de cultura tradicional Revelando São Paulo51. Amir Oliveira Filho e José Marques, dois de meus principais interlocutores durante meu período de campo e integrantes do Grupo São Gonçalo, são presenças constantes nas edições do Revelando, sendo que Amir conta que participou desde a primeira edição do evento (realizada em 1996). O Grupo São Gonçalo se apresentou nesta edição do Revelando São Paulo, realizada em junho deste ano (2014) na cidade de Iguape, onde ocorreram também as apresentações de outros grupos de fandango da região, como o grupo de Fandango de Tamancos de Itaoca (Itaoca), o grupo Sandália de Prata (Iguape) e o grupo Jovens da Juréia (Iguape), todos eles do Vale do Ribeira. O Revelando São Paulo é um festival que se organiza em três vertentes: apresentações de grupos de cultura tradicional, feira de artesanato tradicional e feira de culinária tradicional, tudo ao mesmo tempo. Enquanto as apresentações acontecem ao longo do dia no palco, as feiras de artesanato e de culinária acontecem em espaços separados, dispostos em estandes que correspondem a cada cidade representada. Segundo o sítio oficial,

No Festival participam mais de 300 grupos de cultura tradicional, como batuques, folias, jongos, congos, grupos folclóricos de comunidades de imigrantes, cururus, comunidades indígenas, trança fitas, bandas e fanfarras, irmandades religiosas, quilombolas, violeiros e orquestras de violas, ciganos, fandangos, além da rica culinária paulista e também seu rico artesanato, em mais de 180 estandes. (REVELANDO SÃO PAULO, 2012)

Nos estandes de artesanato, os artefatos considerados tradicionais são acompanhados, geralmente52, de explicações “culturais” sobre o significado e o contexto de cada objeto. Fiz uma distinção entre artefatos “considerados” tradicionais e não tradicionais, pelo fato de 51

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Note-se que, apesar do nome do festival na realidade ser “Festival da Cultura Paulista Tradicional”, sendo o nome Revelando São Paulo reservado ao programa voltado à cultura tradicional paulista do Abaçaí Cultura e Arte, uma instituição sem fins lucrativos e de direito privado, que organiza, junto da Secretaria de Cultura do Governo do estado de São Paulo, o festival. E não obstante, todos os participantes, sem exceção, incluindo assim seus organizadores, se referem ao festival como Revelando São Paulo. Por esse motivo, manterei este mesmo nome. Obviamente, nem todos os objetos vendidos acompanham a explicação. Esta só vem quando há uma “troca de ideias” entre os participantes da negociação. Falarei sobre isso logo adiante.

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haver alguns objetos que não são categorizados como tais. Há inclusive estandes inteiros que não se remetem ao categórico tradicional, se definindo como apenas “artesanato”. No caso do estande de Cananéia, organizado por Amir e por José Marques, por exemplo, tudo é categorizado como tradicional, desde os brinquedos pedagógicos, que incluem o manégostoso e a catapulta, todos eles trabalhados na madeira, bem como, é claro, os instrumentos de fandango53 e o saquinho de folhas secas de cataia, planta típica da região, utilizada principalmente para curtir na cachaça, transformando-se na bebida que leva esse nome. Observei que, quando possível, isto é, quando há interesse do comprador, os artefatos culturais vendidos acompanham uma explicação geral, desde seu modo de usar até seus significados (e diferentes usos) na cultura caiçara. E é nesse momento em que podemos ouvir a maior parte das reclamações, destinadas sempre ao descompasso característico de uma conversação onde um quer falar e outro não quer ouvir. Inclusive, este tipo de transação não se resume ao ritmo do festival referido aqui. Podemos avistar esse mesmo tipo de encontros pragmáticos (ALMEIDA, 1999, 2003, 2007) em situações mais corriqueiras, mais cotidianas de meus interlocutores. Através desses encontros, podemos entrever o processo criativo, inventivo (WAGNER, 2010) pela qual se transforma o qualificativo tradicional em um marcador identitário, e como o tradicional transforma a própria cultura que se define por esse qualificativo. Citei anteriormente a fala de Laurinei das Neves, caiçara e fandangueiro residente da Vila do Marujá, na Ilha do Cardoso. Nessa primeira fala citada ele nos indica como o fandango se transformou no que é hoje, através de importantes mudanças no contexto socioeconômico da vida caiçara. Nesse sentido, o turismo aparece com um lugar destacado nesse processo, vindo a se transformar em uma das principais atividades dos residentes da vila. De acordo com Laurinei,

Antes a gente tinha a roça e a pesca pra tirar nosso sustento. Agora não pode mais fazer roça, mais ainda pode pescar. Por isso muita gente tem trabalhado com o turismo hoje, deixando de lado um pouco as atividades do caiçara. Eu mesmo já trabalhei com turista um tempo, alugava pra camping aqui o meu quintal. Mas nunca deixei a pesca de lado. Aliás foi por isso que parei de trabalhar com turista. Fazia muita bagunça, muita zona e eu tinha de deixar de lado a pesca. Mas pra quem aguenta, o pessoal faz bastante negócio com os turistas. Mas esse não é nosso modo 53

Especialmente a viola caiçara e a rabeca, que atraem maior atenção e são mais “bem vendidos”, principalmente na questão do preço.

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de vida. Não é coisa de caiçara. (Laurinei das Neves, entrevista concedida em agosto de 2013, grifos meus)

Trago aqui a fala de Laurinei para enfatizar a importância do turismo na região. Notem que ele não se sente confortável com a substituição das atividades caiçaras pelo turismo. Apesar de já ter trabalhado nesse ramo, desistiu, por não ser o modo de vida caiçara, dando preferência à pesca. E, contudo, apesar de não podermos colocar a fala de Laurinei como sendo isolada, muita gente na região (na Ilha do Cardoso ou na região urbana de Cananéia) tira do trabalho com os turistas grande parte de seu sustento.

Correndo o risco de uma

generalização, diríamos que mesmo os que trabalham com essa atividade concordam com Laurinei em mais de um sentido: 1) esta não é uma das atividades tradicionais caiçara (por mais que as envolva, e na opinião de Laurinei, as afete de maneira negativa); e 2) “o pessoal faz muita bagunça, muita zona”. Essas duas assertivas vêm geralmente acompanhadas uma da outra. Não quero dizer, no entanto, que o tradicional não tem nada a ver com o turismo, muito pelo contrário. O tradicional, grosso modo, é a forma que a cultura caiçara assume perante o contingente turístico, sendo este contingente responsabilizado pela “bagunça, pela zona”. Esta “bagunça” se dá principalmente na chamada alta temporada, quando a cidade (e a Ilha do Cardoso em especial) fica “cheia de turistas, há filas para tudo, muito lixo, falta água, e o esgoto (que não é tratado) fica a céu aberto” como me afirmou certa vez D. Elma, minha anfitriã na ilha 54. Não há rede de energia elétrica na região da Vila do Marujá, sendo que esta é conseguida através de geradores, que são poucos na vila (o que atrai ainda mais o chamado turismo “roots”, aquele de pessoas que geralmente estão atrás de situações “mais adversas” e “maior contato com a natureza”). Entretanto, segundo afirmam meus interlocutores, o mesmo se passa na região urbanizada. Explico o que quis dizer com a frase “o tradicional é a forma que a cultura caiçara assume perante o contingente turístico”. Como tinha dito, um dos motivos do chamado “ressurgimento” do fandango foi o fato do crescimento turístico estar atrelado ao crescente interesse por parte desses turistas na cultura local. Sem chegar a afirmar (como alguns de meus interlocutores) que foi devido apenas a esse fato que se deu essa “retomada”, é clara a importância do crescimento do turismo nesse evento. Como me afirmou Salvador das Neves, 54

Infelizmente, não pude estar em campo em nenhuma oportunidade de alta temporada, que para os caiçaras começa em dezembro e se estende até o fim do carnaval.

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o Baduca,

O pessoal vinha cada vez mais pra cá, por causa da beleza do lugar, tudo conservado, tudo bonito. E cada vez mais eles perguntavam: 'cadê os moradores? O que eles fazem? Eu ouvi fala de um tal de fandango…' e por aí vai. Eles começaram a demonstra mais interesse pela cultura daqui, não só pela natureza. Daí a gente começou a formar grupos pra apresentar o fandango pra esse pessoal, pra eles poderem ver um pouco do que a gente faz… (entrevista concedida em agosto de 2012)

Delinearei a situação da seguinte maneira, distinguindo em três momentos: 1) durante os anos 1990, aproximadamente, os fandangueiros da região afirmam que o fandango acabou-se. Devido às pressões da fiscalização ambiental, da grilagem de seus territórios, da especulação imobiliária e do próprio turismo (que “substituiu” a atividade agrícola), as roças foram deixando de ser feitas, os mutirões tornaram-se mais escassos, e, como consequência, o fandango, deixando de ser praticado. 2) Há um interesse crescente, por parte do contingente turístico, não apenas na “natureza” conservada do lugar, mas pelas práticas culturais de seus moradores, as práticas locais tradicionais, essa concepção sendo claramente embasada naquela que distingue a natureza como um fato dado e a cultura como um dado construído, artificial com relação à natureza, mas paradoxalmente “natural” com relação à diferença intercultural (do tipo “é natural que eles façam algo de diferente”). E, por fim, 3) com base nesse interesse crescente, os caiçaras da região criam um interesse cada vez maior em tornar visível, mostrar, divulgar sua cultura, suas práticas, seu “algo de diferente”. Criam-se assim grupos de fandango, oficinas voltadas para turistas, pacotes turísticos específicos voltados à inclusão de elementos da história e da cultura caiçara. Surge assim uma distinção e uma demanda. Separam-se, primeiramente, entre os turistas, aqueles que “só querem saber de bagunça” e os interessados na cultura local. Logo, surge uma demanda pelo turismo de base comunitária, o turismo voltado para o desenvolvimento da comunidade: este tipo de turismo emprega os recursos adquiridos pelo turismo no desenvolvimento econômico da comunidade anfitriã, através da divulgação da cultura e história local, a utilização do patrimônio material e imaterial como fonte de renda e do aprendizado por parte do turista de um modo de vida diferente. 59

É o que me afirma Maria Rita Basso, diretora do Departamento de Cultura Municipal. Explicando-me algumas das atividades do Departamento, ela me diz que uma das principais demandas caiçaras é o foco na educação dos turistas:

Eu mesma já vi muito turista destratando e desrespeitando os caiçaras. Reclamando que o serviço é lento, é ruim... Essas pessoas vêm aqui e não ligam pra cidade, pra cultura tradicional, pro patrimônio histórico-social. Então um de nossos trabalhos é educar o turista que vem aqui pra respeitar o caiçara, a cultura local e ensinar os caiçaras a lidar com os turistas, aprender inglês, que é importante nesse mundo globalizado, sem esquecer o lado tradicional. (entrevista concedida em julho de 2014)

Não vou me estender aqui na questão do turismo 55. O interessante para nosso argumento é que temos aqui um exemplo do processo criativo, no sentido wagneriano (WAGNER, 2010) operado pela tradição: o caiçara se diferencia de seu interlocutor (o turista) colocando-se como tradicional; ele ou ela vivem de maneira diferente de seu vistante, e é importante mostrar isso para eles, já que é do interesse de todos (do turista e dos nativos). Para operar essa diferenciação ele ou ela coletiviza certas práticas cotidianas da região, e as coletivizam como tradicionais em si mesmas: a pesca, a agricultura (mesmo que prejudicada), o artesanato etc., são práticas exercidas de acordo com seus próprios pressupostos, de uma maneira tradicional, que é própria da cultura caiçara. São, desse modo simbolizadas como marcadores identitários, são símbolos de sua própria diferença. Assim, no afã de tornar visível o tradicional, a diferença aos olhos do turista executa-se mais uma transformação no fandango (que é um dos principais “marcadores identitários” disponíveis à apresentação): a criação dos grupos de apresentação, que como vimos antes, não é exatamente bem-vista por todos. No seio desta própria transformação ocorrem outras: a cada grupo de fandango que surge, surgem também distinções entre as batidas, os ritmos, as marcas e as danças, acompanhadas das inevitáveis disputas em torno de qual é a mais tradicional de todas elas. 55

Sobre a questão do turismo e suas várias distinções, como turismo de massa, o gran tourism e o turismo patrimonial como alternativa a esse turismo considerado predatório ver Flávia Roberta Costa, Turismo e patrimônio cultural: Interpretação e Qualificação (São Paulo, 2009, Editora Senac e Edições Sesc). Para um olhar mais voltado ao turismo de base comunitária ver Turismo de base comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras organizado por Roberto Bartholo, Davis Gruber Sansolo e Ivan Bursztyn (Rio de Janeiro: Letra e Imagem, 2009).

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Voltando ao festival Revelando São Paulo, creio que temos mais alguns exemplos de como esse processo acontece. Pois bem, uma primeira leitura, uma realizada aqui mesmo nesta dissertação, pouco acima (cf. p. 19), poderia ver o festival como uma espécie de “ajuntamento” de culturas, onde o que ditaria o seu ritmo seria o descompasso entre os transeuntes (e consumidores) e espectadores e os representantes das diversas culturas prestigiadas no festival. Tal leitura se mostra equivocada, se levarmos em consideração a experiência etnográfica prestes a ser exposta. Se é verdade que há um descompasso entre as (várias) concepções de cultura entre as pessoas presentes e as (várias) concepções de cultura dos “representantes tradicionais” (sem levar em conta, por enquanto, aquelas dos organizadores e trabalhadores do evento) esse descompasso pode ser visto em algumas negociações sobre objetos expostos no festival. Como dito anteriormente, ouvi algumas reclamações quanto à natureza do objetivo de cada participante



levando

em

conta

como

participantes,

os

“expositores”

e

os

espectadores/compradores. Enquanto se diz que os espectadores/compradores não veem os objetos expostos como mais do que simples “artefatos culturais”, aplicando uma racionalidade econômica nas negociações, os “expositores”, por sua vez não estão ali apenas para venda de seus artefatos, de acordo com uma prospecção de lucro, similar a uma (suposta) racionalidade econômica dos compradores, procurando calcular a maior margem de vantagem possível em qualquer negociação. Eles estão ali para “expor” e, mais do que isso, transmitir o conhecimento sobre tais objetos como forma de transmitir a própria cultura para os transeuntes. Há, então, um certo ressentimento com relação ao valor dado aos artefatos culturais pelos consumidores do local e o valor atribuído a esses objetos pelos seus construtores. Contudo, seria um exagero atribuir a esse ressentimento demasiado valor, na medida em que não são todas as negociações que são mal vistas, muito pelo contrário. Afinal, a feira de artesanato “cultural” é um dos principais atrativos não só para os visitantes, mas para os “expositores” também. Embora os objetivos, o valor e o significado de cada artefato seja diferenciado, parte de seu objetivo foi concretizado, a saber: a divulgação de sua cultura, a transmissão de um certo conhecimento imbricado em tal objeto (cuja explicação sobre seu significado e utilidade acompanha cada negociação), enfim, um tornar-se visível, através dos objetos, aos olhos daquelas pessoas que não conhecem suas culturas, suas tradições. As reclamações acontecem mais por parte da percepção de que este objetivo em específico não é

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alcançado na totalidade das vezes. Um outro exemplo da (suposta) incomensurabilidade das “visões” de mundo tradicionais e a do festival e transeuntes são as próprias apresentações que acontecem no palco principal. Um artigo que demonstra esse ponto de vista é o de Mônica Carvalho (2010), socióloga que, neste artigo trabalha com a Folia de Reis do bairro da Freguesia do Ó, em São Paulo e sua participação no referido evento (e sua posterior recusa). Para deixar clara a visão da autora sobre o evento Revelando São Paulo, convém antes esclarecer o ponto de vista sobre o evento daqueles que são os realizadores da Folia de Reis da Freguesia do Ó. Estes fizeram sua última apresentação no evento em 2008, alegando que, as ações tomadas pelo evento e, no limite, a própria apresentação da Folia de Reis tinha como efeito o contrário do desejado, isto é, em vez de preservar a manifestação, ao descontextualizá-la, se perdiam os parâmetros necessários para sua avaliação como tradicional, ou seja, a própria manifestação tradicional, apesar de ser “a mesma”, deixava de ser tradicional, deslocada do contexto. Aqui são necessárias algumas distinções. Primeiramente, há aqui uma clara distinção entre a natureza de “apresentação”, de “espetáculo” do evento em oposição à de ritual, por parte dos nativos (bem como aquela inscrita na formação dos grupos de fandango atuais, em Cananéia). Um dos motivos que os levaram a não se apresentarem mais no evento foi o de que, fora da Freguesia, de seu contexto mais amplo, a Folia não fazia sentido, perdia seu caráter, e por isso mesmo não se sentiam contemplados pelo Revelando. Essas afirmações vão ao encontro do postulado de Florestan Fernandes, que após entrar em um debate com os folcloristas, que viam no folclore uma disciplina autônoma, viu nessa necessidade folclorista uma necessidade burguesa de “progresso”. Florestan explica que os folcloristas viam a cultura popular como o passado no presente, as representações da sociedade arcaica, rural e supersticiosa persistindo face aos ditames da modernidade. Daí a necessidade dos arquivos folcloristas, similares a museus, cuja descontextualização de seus objetos de seu contexto social mais amplo, torná-los-ia em simples objetos mesmo, sem significado e sem história. A autora vê no Revelando São Paulo uma forma de coleção, de “museu” da cultura popular, em um sentindo equitativo ao de Florestan Fernandes. Mônica de Carvalho chega assim, através da leitura de Florestan Fernandes (ver FERNANDES, 2003, 2004), em uma concepção de que a tradição (na forma folclore) seria apenas uma esfera social, recaindo sobre a cultura, área de estudos de sociólogos e

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antropólogos, que deve sempre remeter-se a dinâmica social mais ampla do que aquela definida simplesmente como folclore. Não vou deter-me aqui nas postulações de Floresta Fernandes, que por sinal, desembocam em uma análise que visa sempre às transformações materiais e econômicas da sociedade. Interessa aqui dizer que o autor insiste no uso da categoria “sobrevivência” e “permanência” da cultura tradicional. Categorias essas que a autora também insiste em preservar, em sua visão sobre o evento citado. Quando diz que o Revelando São Paulo assemelha-se a uma coleção de “culturas”, a autora deixa de lado um aspecto muito importante do evento: o que acham aqueles que se apresentam? É fato que, a favor de sua visão, tem a visão de “seus” próprios nativos, o que pesa, e muito. Mas ao colocar como “museu” o evento, a autora coloca em questão, mesmo que sem perceber, todos aqueles que fazem parte do “museu” e não só seus “curadores”. Concordo que o trato dado pelos realizadores do evento – que além do governo, conta também com o apoio de ONGs – é semelhante a um mostruário, e que grande parte dos visitantes passam de estande em estande comparando fragmentos de “mundos” que apreenderam através de um boneco de pano ou de um prato de comida. Porém, esse mesmo prato de comida, e o mesmo boneco de pano – e, por conseguinte as apresentações, os “espetáculos” também – são muito mais significativos para aqueles que “mostram” sua cultura no evento. São artefatos que representam um modo de experimentação, é parte efetiva de sua cultura, e não apenas produtos comerciais ou museolíticos (conquanto podem o ser também). O turista, o visitante, leva “apenas” anéis, braceletes, a dança na memória, e, como afirma a autora, pode ter a impressão de que, se viu uma apresentação, viu todas (CARVALHO, 2010, p. 230). Mas esses anéis e braceletes, todo o artesanato, as apresentações, toda a música, toda comida servida, tem gostos, sons, cores e sentidos muito distintos (ou não) daqueles de seus “consumidores”. Para além de categorizar os “consumidores” como uma unidade discreta (os modernos), ou seja, como se todos experimentassem o evento da mesma maneira, a autora trata a própria experiência do festival e de todos que participam dele de maneira prédeterminada: não há negociação possível, não há diálogo entre uns (tradicionais) e outros (modernos), pois uma visão de mundo, para além de ser muito diferente da outra, é irredutível a outra. Nesse sentido, elas não são apenas irredutíveis, como do próprio contato entre as visões de mundo só são possíveis “frutos estragados”, descaracterizados, a síntese da situação só pode ser inautêntica.

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De certo, se é como dizem os foliões da Freguesia, que aquilo não é sua folia, não é seu ritual, que “fora” de sua cultura ele perde o sentido, cabe então perguntar: O que é que se vê, que se vende, que se experimenta? O que vêm circulando nesse tipo de festival? Quero dizer, quais são os sentidos implicados no “novo sentido” adquirido? Passamos aqui então da crítica da descontextualização das culturas tradicionais para a percepção de que o que ocorre, de fato, é uma nova contextualização (e não uma recontextualização, já que isso poderia implicar que há uma perda da contextualização original; ora, não é por que as culturas tradicionais se apresentam em um contexto outro que eles deixam seus contextos “originais” de lado). Quando acompanhei o Grupo de Fandango Batido São Gonçalo neste festival, o horário marcado para a apresentação era às 19:30 de um sábado. A apresentação estava marcada numa espécie de “bloco do fandango”, isto é, aconteceriam seguidas apresentações de grupos de fandango da região, de forma a contextualizar o fandango no festival, e de contrapor as diferenças (que são muitas) entre os grupos. Entretanto, o horário era ruim para as crianças, que ao contrário de Amir e Zé Marques, voltariam no mesmo dia de Iguape para Cananéia. O horário prejudicava pois ficaria muito tarde para elas chegarem em casa (tendo em vista ainda todos os atrasos intrínsecos a festivais de grande porte). Assim, Amir não teve dúvida nenhuma quando pediu à organização do festival para que mudasse o horário da apresentação do grupo para as 14:30, logo depois da apresentação de Rodolfo Vidal, que apesar de ser parte do grupo e também participar da apresentação como violeiro principal, também iria se apresentar sozinho, antes, com algumas músicas próprias inspiradas na viola caiçara e caipira. Perguntei se não ia ficar fora de contexto. Ele me respondeu “nada, bobagem, o que importa é a apresentação, e o bem-estar dessa molecada”. Vemos então que o critério utilizado por Amir para a mudança de horário foi estritamente pragmático (sensu MAURO ALMEIDA, 2007), já que os objetivos mais importantes da viagem – em especial, a apresentação do grupo, a visibilidade – não estavam sendo preteridos em favor desta mudança. Indica, mais ainda, que a própria contextualização junto a outros grupos de fandango era menos importante do que a própria visibilidade almejada. Isto não significa dizer que o único objetivo almejado seja a visibilidade, que tudo se fará por ela, não importando muito o que será visto. Pelo contrário: nesta busca por uma visibilidade importa mais o que será mostrado, mais até que onde ou quando será mostrado. O festival era contextualização “suficiente” para a apresentação, já que a sua hyper-

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contextualização, quero dizer com isto, uma outra contextualização no “bloco do fandango” iria prejudicar um dos outros objetivos da viajem: o bem-estar dos participantes do grupo 56. Caso contrário, duvido muito que alguma objeção fosse colocada (embora seja pura especulação). Objeções estas que aparecem em outras instâncias. Como, por exemplo, o grande número (para mim) de reclamações que foram geradas pela música escolhida pela organização em uma solenidade programada em homenagem a figuras históricas tradicionais já falecidas da região do Vale do Ribeira, nomeada na programação como “Conexão com o Sagrado”. A música que tocava era de Wagner ou Bethoven, não sei dizer (foi Rodolfo que a havia identificado, meus conhecimentos em música clássica são parcos). O sentimento geral era de que a música não combinava com o festival, e o que deveria tocar era “alguma música de viola ou algo assim”, segundo meus interlocutores. Nesse caso temos um ótimo exemplo de uma descontextualização operada de forma negativa, pelo menos aos olhos e ouvidos dos espectadores. Contudo, os mais “experientes” no festival me avisaram que todo ano é assim, e que muito disso representa a personalidade de Toninho “Abaçaí” Macedo, o grande organizador do evento57. Do meu ponto de vista, esses pequenos excertos etnográficos nos trazem de volta para aquilo que Mauro Almeida chamou de encontros pragmáticos. Isto significa dizer que, apesar do já notado (por mim e pelos meus interlocutores) descompasso entre concepções diferentes – no linguajar “mauroalmeidiano”, entre diferentes pressupostos ontológicos (ALMEIDA, 2007) - sobre os eventos em que estão envolvidos, sobre a cultura como um todo e sobre sua própria cultura, sendo todos esses “fatores” operacionalizados pelo qualificativo tradicional (que acaba por se transformar em si mesmo também neste processo); como dizia, apesar do descompasso, no próprio evento e na própria confrontação entre esses pressupostos, surgem nessas situações outras situações; isto equivale a dizer que, do próprio encontro entre estes pressupostos é que as pessoas tiram o material pelo qual vão se transformar (seria melhor dizer, estão se transformando) o que quer que seja: as culturas, as tradições, bem como as concepções sobre as culturas e as tradições. É importante frisar que o tipo de transformação de que estou falando aqui é o tipo de 56

Apenas a mãe de uma das crianças se encontrava viajando com o grupo; portanto, é de se questionar se por “bem-estar dos participantes do grupo” não estaria melhor colocado se fosse pelo “bem-estar das mães das crianças do grupo”… 57 As fontes de campo me informam ainda que muito de sua atuação é marcada pela “falta de abertura” nas decisões do festival. No entanto, como não o conheci, muito menos sua atuação em todo este trabalho, não posso afirmar nada.

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transformação de que fala Eduardo Viveiros de Castro, no texto “'Transformação' na antropologia, 'Transformação' da antropologia” (2012; pp. 151-171). Neste artigo, o autor esboça, de maneira ao mesmo tempo sucinta e consistente, três esquemas sobre o conceito de transformação como entendidos pela antropologia, sendo um deles reservado ao que seria a transformação para uma antropologia pós-estruturalista ou radicalmente estruturalista (VIVEIROS DE CASTRO 2012: pp. 162)58. De certo modo, se é como o autor afirma, historicamente, os mais proeminentes desses esquemas para a disciplina são a teoria da transformação estrutural-funcionalista e a da transformação “estrutural-culturalista”. Os dois esquemas, de uma forma ou de outra, já deram suas caras ao longo dessas páginas. O primeiro sob a forma do discurso da “preservação” da cultura tradicional, portanto, oriundo tanto do discurso nativo quanto acadêmico, um dos presentes temas desta dissertação; o segundo, através de Marshall Sahlins, que, como afirma Viveiros de Castro, é a figura acadêmica mais fortemente ligada a este tipo de análise (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 160). Esses dois esquemas dizem respeito apenas à transformação como processos inerentes aos coletivos estudados, sem consequências para o ponto de vista analítico, isto é, a própria teoria antropológica, nesses casos não é transformada pelas transformações de que fala (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 160). No que consiste a transformação de acordo com a teoria estrutural-funcionalista? É aquela que visa as transformações incutidas às populações tradicionais pela tão famigerada “modernidade”, um tipo de transformação que obvia toda e qualquer ação e concepção dos coletivos não-”modernos” tendo em vista somente a “perda” do que as caracteriza como tradicionais frente a processos “modernizantes”. Elas são, desse modo, apenas “objeto e paciente” e, segundo o próprio autor,

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Segundo Flávio Gordon (texto em versão digital, sem ano): “O prefixo –pós pode estar marcando uma sucessão no tempo; neste caso, ele fixa, na direção contrária, o estruturalismo como fim de uma etapa. Dentro desta alternativa, o prefixo é posto como índice de uma superação, dentro de um quadro de ‘progresso do conhecimento’. Os pós-estruturalistas, deste ponto de vista, são aqueles que reagiram contra possíveis insuficiências da abordagem estruturalista e que, supostamente, desenvolveram melhores soluções. [...] A outra alternativa possível é entender o estruturalismo não como o fim de uma etapa, mas como um conjunto vivo de idéias, como campo fecundo de problemas a serem aprofundados ou deslocados. O modelo aqui não seria mais o de uma história das idéias mas, na expressão de Chatêlet (cf. Goldman, 1994: 24), o de uma “geografia das idéias”, onde é possível lançar mão de certos campos de ideias, estabelecer conexões entre diversos espaços conceituais. Neste último caso, seria possível, inclusive, re-explorar alguns temas do estruturalismo.”. Sobre as conexões do pós-estruturalismo aqui exposto com as ideias estruturalistas, em especial as de Lévi-Strauss, estas serão discorridas na conclusão desta dissertação.

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Poderíamos chamá-lo de esquema 'nominativo-acusativo': o coletivo-sujeito A faz o coletivo-objeto B passar de seu estado inicial (muitas vezes concebido como um estado primigênio) a um estado B’, que contém dentro de si “partes” ativas de A (efeitos ou índices de A). O coletivo-ativo A normalmente termina por absorver o coletivo-passivo B como um estado a’ de si mesmo (de A), isto é, como uma transformação duplamente “parcial” de A, uma variante empobrecida do coletivosujeito que é incluída como parte sua: as partes que A inoculou em B terminam por fazer de B uma parte de A. A muda B; B é mudado por A; B vira A. Tudo isso segundo uma concepção de sociedade, de história e de mudança definida nos termos em vigor no coletivo A. No mais das vezes, essa concepção, para além de apenas descritiva, é crítico-normativa; ela lamenta a transformação de B, e se acompanha de um generoso desejo de emancipação de B em face de A. Sempre de acordo, porém, com as normas teóricas do discurso de A, entre as quais está a definição de A do que seja emancipação. (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 160, grifos meus)

Já o esquema estrutural-culturalista muda consideravelmente no que concerne a participação dos coletivos estudados, é inclusive este o cerne da questão nesta teoria. Neste tipo de análise, os coletivos não são mais tratados como objetos-passivos de processos exteriores a eles; eles possuem agência, há sempre uma necessária refração simbólica operada por esses coletivos, transformando a transformação a que foram submetidos de acordo com sua própria ordem simbólica. Entretanto, vemos aqui o problema desse paradigma: elas ainda são submetidas à transformação, estas são induzidas; ainda lhes é negado o “direito” de se transformar “por si mesmas”, ou melhor dizendo, é negada a transformação como um processo imanente desses mesmos coletivos – a transformação só ocorre como uma ação exterior (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 161-162). Utilizo-me, mais uma vez, das palavras do autor, que praticamente “desenha” o esquema para nós:

B se transforma em B’ por ocasião e intermédio da entrada de A em seu horizonte de eventos. No decorrer do processo, B-B’ contra transforma A em A’, na medida mesma de sua participação em A (que pode, aliás, ser muito pequena — ou não). Isso transforma o sistema formado por A, B e outras “letras” em um superobjeto C. (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 162, grifos meus)

O esquema pós-estruturalista é uma variação radical deste paradigma, e, sem deixar de lado a questão da agência indígena (tampouco a não-indígena), propõe uma noção de transformação que já não pode ser vista como a ação direta de “coisas” umas sobre as outras; 67

isto advém da concepção de que a necessária, e, portanto, universal (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p.162) refração simbólica operada nos coletivos acaba por dissolver, nas palavras do autor, a dualidade entre estrutura/evento, que postula uma pré-determinação de um objeto a vir a ser modificado por outro objeto pré-determinado. Não há forma inicial ou forma final, as transformações engendram umas às outras a partir de outras transformações – o modelo acionado aqui, então, é o de um fluxo de transformações: “[…] as transformações históricas estão em continuidade com as transformações estruturais […]. A dialética entre estrutura e evento é interior à estrutura, que é ela própria um evento para outra estrutura e assim por diante.” (idem, p. 162). (Vale notar que essa inferência serve na mesma media para as noções de interior e exterior discutidas até aqui nesta dissertação) Neste ponto, gostaria de chamar a atenção para uma semelhança entre as teorias traçadas a pouco e aquelas de que fiz uso anteriormente: todas elas, a seu modo e de pontos de partida e objetivos muito distintos, operam contra uma noção estática da vida social (e de tudo o que a “envolve”). Portanto, penso que é hora de expandir este trabalho nessa direção, trazendo não apenas mais suporte teórico nesse sentido, mas também, junto de outros aportes etnográficos realizados na região do Vale do Ribeira, introduzir dentro da teoria as transformações da cultura caiçara, sempre tendo como horizonte o fandango como praticado e concebido pela população caiçara. Para dar conta desta tarefa, será de suma importância que se tenha sempre em mente que o modelo conceitual de transformação com o qual muitos caiçaras enxergam o fandango e o mundo é um que poderíamos ver como correlato do modelo do estrutural-funcionalismo. Digo “correlato” porque seria pelo menos equivocado dizer que os dois modelos são iguais. Por mais “semelhantes” que sejam estas duas teorias – a caiçara e a aqui chamada estruturalfuncionalista – elas partem e chegam (ao mesmo tempo em que não tem um ponto de partida e de chegada pré-estabelecidos) de pontos diferentes, a saber: enquanto as teorias estruturaisfuncionalistas postulam com o fim das culturas a transformação do tradicional no moderno, um processo homogeneizante, esta vertente teórica caiçara “correlata” tenta dar conta, com o mesmo tom de lamento, apenas do fim de sua cultura; isto é, as teorias estruturaisfuncionalistas partem do fim, lamentando-o; as teorias caiçaras chegam no fim também lamentando-o. Para alguns caiçaras59 o fandango – simbolizado aqui como um de seus mais 59

Relativizo aqui esta vertente teórica caiçara pois ela não é a única teoria sobre as transformações pelas quais passaram; Há outras, e espero, se já não tiver deixado isto explícito, falar sobre elas mais adiante.

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importantes, se não o mais, marcador identitário – já acabou; as transformações pelas quais passaram, tanto aquelas a que foram submetidos quanto aquelas engendradas por eles mesmos (i.e. o fandango de apresentação) são vistas como processos que findaram, de fato, a sua cultura, quer dizer, são vistas de maneira negativa. “Isto não é fandango!”, “Isto não é ser caiçara!”, dizem. E não obstante, em termos discursivos, o fandango – e a cultura caiçara – ainda não acabou; ele está sempre para acabar, no tempo futuro (muito em breve, nos dizem eles), levando ainda em conta que, apesar do postulado fim, eles não deixaram de ser caiçaras, muito menos de praticar o fandango. Isto pode indicar um elemento-chave na compreensão dessa teoria caiçara da transformação: o fim, apesar de já ter ocorrido, está sempre por vir, ele virá nas próximas gerações, como se pode atestar agora. Esta é, inclusive, uma visão que coaduna com a sugestão feita anteriormente, a relação do pessimismo estrutural fandangueiro com a teoria tupinambá de devir. Isto é, se projetar no futuro, só que aqui não pela guerra e pela honra e, sobretudo, a memória (como vingança), mas pelo pessimismo que os fazem engajados no devir fandango. Porém, eles não esperam o fandango acabar, de certa forma, eles produzem mesmo esse final, o transformam e ao transformar o tornam permanente, uma espécie de teoria nativa intelectualista. O grande peso dado a “falta de interesse dos jovens”, bem como a “falta de respeito pela tradição”, são vistos como frutos da inserção destes nas relações “modernizadas”. Como no mote orwelliano, “cada geração imagina a si mesma como sendo mais inteligente que a anterior, e mais sábia que a posterior.” . O tema do fim do fandango é o ponto de chegada da teoria caiçara “estrutural-funcionalista”, um ponto de chegada que nunca chega. Me aprofundarei neste tema no capítulo seguinte, tentando dar conta, desse modo, não apenas das transformações da cultura e do fandango caiçara, mas também das – diversas – teorias caiçaras da transformação pelas quais passaram. Sua vertente “estruturalfuncionalista” é apenas uma delas.

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Capítulo 2 Outros elementos para uma sociologia da transformação caiçara: parentesco, espaçotempo e cismogênese

Este capítulo tratará de trazer à baila da discussão aqui realizada mais alguns elementos que podem ser úteis na compreensão do fandango como elemento-chave para uma sociologia caiçara. De certo modo, o fandango deve ser visto mesmo como essencial para o entendimento da percepção e da prática60 caiçara sobre as transformações engendradas em seu modo de vida. Enviesarei, portanto, a discussão na direção a outras “áreas” que se espraiam através do fandango, nas mais diversas direções, partindo do fandango, em direção a ele, em suma, através dele. A intenção é pensar a sociologia caiçara através do fandango. Esses outros elementos que compõem este quadro desenhado a partir do fandango podem ser exemplificados pela questão do parentesco, da territorialidade, além da questão intergeracional, para ficar apenas naqueles citados nesta dissertação. Como são, obviamente, questões de complexidades e particularidades imensas, e meu objetivo, diverso, não farei aqui mais do que um sobrevôo. Para além de minha própria etnografia, os dados aqui trabalhados foram obtidos em dois estudos realizados em dois coletivos caiçaras diferentes, a Vila das Peças e Barra do Ararapira, a primeira na Ilha das Peças e a segunda na Ilha de Superagüi. As duas Ilhas juntas integram o Parque Nacional do Superagüi, Unidade de Conservação Ambiental de proteção integral61. Aos dados tratados aqui a partir dos estudos de Juliane Bazzo (2010; 2011) e Eliane do Pilar Rocha (2005) serão incorporados dados da minha própria pesquisa referente à comunidade caiçara da Vila do Marujá, Ilha do Cardoso (Cananéia/SP), na vertente marítima sul do Vale do Ribeira e da região urbana da cidade de Cananéia. Explanarei brevemente alguns dos temas citados acima como contextualizados na região, para depois abordar como o 60 61

Vistos cada vez mais, na teoria antropológica pelo menos, sem distinção (ver Ingold, 2011 e Herzfeld 2005) O Parque Nacional de Superagüi faz parte do complexo estuarino Paranaguá-Cananéia-Iguape (localiza-se aproximadamente a 50 minutos de barco de Paranaguá, por sua vez, distante em torno de 70 km (pelo mar) da Ilha do Cardoso. O Parque Nacional de Superagüi foi criado em 1989 com uma área inicial de cerca de 21.400 ha. Em, 1999 ocorreu outra demarcação e a área aumentou para cerca de 34.000 ha, o que incluía a Ilha de Superagüi, a Ilha das Peças, a Ilha de Pinheiro e a Ilha do Pinheirinho. Foram incluídos ainda o vale do Rio dos Patos, no continente, e o Canal do Varadouro, que separa a Ilha do Superagüi das terras continentais. (fonte: ICMBIO… 2014)

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fandango os entrelaça. 2.1 – Parentesco Tratarei tais dados em conjunto não devido a uma (suposta) semelhança sociológica entre as comunidades aludidas, tampouco pela contiguidade geográfica; mas sim, como um modo de entrar no campo do parentesco caiçara na região, que apresenta contiguidades estruturais a despeito de suas diferenças, sejam elas de que ordem forem. Em contrapartida, tentarei mostrar como tais diferenças (aquelas que posso colocar em comparação, dada minha posição específica no campo, aqui entendido tanto como campo de estudos que venho me incluindo, como o trabalho de campo que fiz), tomadas em seus contextos, se correlacionam com a linguagem do parentesco, como afetam e são afetadas por ela. Tentarei, enfim, mostrar que essas “esferas” da vida social – a do parentesco e a do fandango – não se encontram tão dissociados, afinal, são todas entrelaçadas pelo fandango. As palavras que se seguem são mais um modo de circunscrever, digamos assim, mais um aspecto pertinente ao fandango. Um dos aspectos mais importantes, diria eu, já que habitualmente meus interlocutores atribuem ao fandango, ao momento do fandango, a capacidade de produção do próprio parentesco, ainda que esta capacidade, tal como o próprio fandango, seja constantemente realocado no tempo passado, nos tempos de antigamente. Cada um a seu modo, os três contextos etnográficos aqui citados tratam de aspectos diferentes e complementares do modo de vida caiçara. Enquanto Bazzo (2010) enfoca sua pesquisa na territorialidade caiçara, Rocha (2005) desenvolve sua análise cerceando a relação do parentesco com a religião e a pesca no imaginário caiçara. Por parte deste que vos escreve, como afirmei nos capítulos e parágrafos anteriores, circunscreverei as relações de parentesco relacionadas ao fandango, visto aqui como um catalisador dessas relações. No entanto, as próprias relações de parentesco aqui analisadas aparecem apenas perifericamente nas análises62; não que as análises sobre parentesco não mereçam seu espaço nos trabalhos citados; mas antes, por entendermos que o próprio significado do parentesco caiçara não pode Dos trabalhos mencionados aqui, o do presente autor é o mais defasado nesse sentido. Entendo este capítulo como uma porta de entrada na área do parentesco em um trabalho ainda em andamento sobre como o caiçara entende, constrói, regula e discursa sobre sua própria cultura através do fandango. As análises de parentesco não são, de maneira alguma, irrelevantes para a nossa proposta, sendo deixadas de lado até o momento menos por sua importância do que por contingências alheias à minha vontade. 62

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ser visto como dissociado tanto dos aspectos socioculturais e econômicos particulares de cada comunidade analisada, quanto das mudanças estruturais nessas outras esferas do modo de vida caiçara. Esta seção deve ser vista, portanto, como sendo um esboço de uma possível contribuição para os estudos do parentesco na região, e nele trabalharemos propostas como a já citada intimidade cultural, colocada por Herzfeld (2005), e o de cismogênese de Gregory Bateson (2006, publicado originalmente em 1936), sendo que o primeiro desses conceitos, aliado ao de poética social, estará permeado ao longo do texto e o segundo será discutido de maneira mais localizada, mais adiante. Podemos afirmar que, se tomarmos os trabalhos citados como fontes consideráveis de dados sobre parentesco da região, não há grandes diferenças na maneira em que se desdobram as regras de parentesco, de vila para vila. No que diz respeito aos caiçaras da Vila do Marujá, a “parentela” básica localiza-se nas intermediações da família nuclear, fundamentalmente ligada à tríade pai-mãe-filhos. Isso gera um efeito piramidal, ou como Schneider (1968, apud BAZZO, 2011, p. 179) chama-o de “efeito árvore de natal”, uma imagem para a forma que tomam tais arranjos estruturais, se mapeados. O que é considerado como casal ancestral ficaria no topo da árvore imaginada por Schneider, sendo que os principais pontos decorativos seriam a linhagem de descendência direta desse casal, sem denotar muita importância aos irmãos do casal e aos maridos e esposas de seus descendentes. O casamento, nos três casos analisados é monogâmico, e na medida do possível, exogâmico63. A dúvida aqui reside no fato de que, nas localidades de menor porte, onde é comum as pessoas se considerarem todas, de alguma maneira, “parentes”, não são raras as vezes em que as categorias são realocadas para que o casamento seja justificado sem recair em alguma forma de proibição. A saber, são consideradas pessoas disponíveis para o casamento, em termos “estritos” de regras de parentesco, aquelas que se encontram na categoria de segundo grau em diante (sendo mais preferível adiante). De todo modo, os critérios de escolha dos parceiros baseiam-se sobretudo em critérios de valores morais – a mulher dedicada à família, o homem honesto trabalhador etc. - explicitamente ligados à

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Embora utilize o termo sem maiores problematizações, é importante notar que exogamia é uma questão de quem olha e de onde olha. O que é exogâmico em relação às famílias nucleares, pode ser endogâmico em relação às localidades (como notava Lévi-Strauss já no clássico As Estruturas Elementares do Parentesco (1956). É, portanto, sempre perigosa a questão de interior e exterior no parentesco, aliás, como já fora comentado logo no início desta dissertação, com o modelo de “interioridade” e “exterioridade”, o movimento para “dentro” e “fora” do fandango).

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religiosidade católica64. Entretanto, sobre a questão da escolha dos parceiros, Schneider (2011, p. 475) criticando abertamente a posição de Needham, o principal conceitualizador das teorias sobre escolha e natureza dos sistemas preferenciais, nos diz que, essa posição é, pelo menos, equivocada. No sentido de que se há uma regra de casamento positiva em que os membros de uma comunidade “podem escolher” seus parceiros, a escolha se dá sempre entre aqueles disponíveis ao casamento; e quando não há “escolha” por parte destes indivíduos, os parceiros disponíveis para o casamento, há sempre uma margem de escolha entre esses mesmos parceiros possíveis, tornando a dicotomia prescritivo e preferencial redutível a um “o que tem pra hoje” (expressão que inclusive, meus interlocutores não cansavam de repetir, não importando a querela). O parentesco caiçara pode ser considerado como sendo de afiliação cognática e bilateral, sendo que há uma tendência agnática verificada pela atribuição dos patrinomes, ou melhor, os nomes dados às crianças caiçaras (no que diz respeito a essas três vilas) são na maioria das vezes adquiridos da família do pai (BAZZO, 2011, p. 185). O que é transmitido de geração para geração não é apenas a terra, mas uma concepção de territorialidade que abarca o conhecimento necessário para a sobrevivência nessa terra (o “saber plantar”) e a comensalidade entre os integrantes da comunidade, sendo a própria definição de fronteiras muito fluída, e a noção de direito sobre a terra se correspondendo menos com a noção de “propriedade” do que com a noção de “responsabilidade comum” por ela; “aqui todo mundo é parente!” se ouve comumente, e o cuidado que se tem com o espaço “alheio” é similar ao desprendido a um parente. No discurso corrente de que todos são parentes temos também o conjunto do compadrio, que institui a relação de parentesco por afinidade. Os compadres e comadres são como “pais reservas” para seu afilhado, sendo que este lhe deve respeito e, na idade avançada, cuidados especiais, assim como faria com seus pais. As funções dos padrinhos é participar da educação e ajudar nas dificuldades de seus afilhados. Segundo Bazzo (2011, p.186) o que temos nas relações de compadrio é um “parentesco espiritual” na medida em que essas relações são instituídas pelo sacramento cristão do batismo e da crisma (o primeiro a introdução e o segundo a confirmação do cristianismo católico como religião e espiritualidade). O compadrio ainda é comparável ao parentesco por afinidade, por exemplo, 64

Note-se: religiosidade, não à própria religião católica.

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no sentido em que Antônio Arantes (2011; pp. 101) explica:

A similaridade da cooperação entre compadres e entre sogros [parentes por afinidade] deriva não só a partir da natureza das trocas realizadas, mas também do fato de que em ambos os casos envolvem adultos pertencentes a diferentes famílias, cuja ligação é com base em contratos rituais. Além disso, tanto são similarmente opostas ao parentesco consanguíneo no sentido de que, se este último deriva do nascimento, dentro de certos limites, afinidade e compadrio são baseadas na escolha e estabelecida através da mediação de uma mulher, no primeiro caso, e de uma criança, no segundo. (ARANTES, 2011, p. 101, tradução livre)

No que concerne à residência, podemos dizer que ela geralmente obedece às regras da neolocalidade, sendo construída uma nova residência, quando do casamento dos filhos do casal ancestral, formando assim uma nova unidade familiar. Nessa nova casa, construída geralmente em um terreno adquirido através da linhagem paterna como herança ao homem do casal, se dará continuidade à descendência da família, até que sucessivamente, se tornarão ele próprios o “casal ancestral”. Muito das semelhanças que podemos conferir nos dados sobre parentesco na região apontam para uma certa centralidade da ética católica na trama do parentesco. Não da ética católica do Vaticano, ligada à Igreja como Estado oficial, mas sim da ética católica em sua vertente popular, mais “direta”, por assim dizer, no sentido de que até o próprio acesso a Igreja oficial seja complicado devido às condições geográficas de difícil e demorado acesso. A religiosidade aparece mais permeada nas práticas sociais do que como sendo um compromisso com os dogmas da crença na forma das instituição 65, e isso pode ser verificado na baixa procura (e poderíamos incluir “o Estado” nesse rol de atuações, porém, não tanto no rol das exigências que se faz dele) tanto de um lado como de outro; a religiosidade e a moral cristã encontram-se plasmadas nas regras de parentesco e de convivência, e não na deferência a momentos e atitudes específicas controladas “de fora”. Isso não diminui o respeito e a admiração direcionadas a um padre que visita a comunidade, por exemplo, mas a própria 65

É discutível se existe essa imagem oficial e homogênea, apesar da hierarquia. É preciso ver que as paróquias, especialmente as mais distantes, são como pelotões que atuam de maneira semiautônoma (agradeço ao conselho do Prof° Dr° Piero de Camargo Leirner).

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visita do padre tem se tornado cada vez mais rara. Para além do “parentesco ritual”, simbolizado pelo compadrio, podemos dizer que a lógica da moral cristã que opera na escolha dos padrinhos opera conjuntamente com uma lógica de resolução e evitação de conflitos (como parece nos indicar o fato de que os padrinhos são geralmente escolhidos entre os vizinhos (ARANTES, 2011, p.105; RODRIGUES, 2001; 2013). Tal inferência pode ser generalizada na região a partir dos dados de Rocha (2005, p. 43-45) que analisa a resolução de disputas e conflitos (pelos mais diversos motivos, do futebol a namoros e contendas no bar) como uma passagem do “de fora” para “dentro” (ROCHA, 2005, p. 45). Tal contexto se verifica correspondente ao que acontece na Vila do Marujá e Barra do Ararapira.

2.2 – Fandango e Parentesco

A relação entre parentesco e o fandango como “manifestação cultural” pode ser traçada desde que levamos em conta a centralidade do mutirão na cultura caiçara; segundo a população nativa, que (quase) sempre refere-se ao mutirão no passado, a dádiva do fandango era a moeda de troca, festa a troco do serviço; e era ali, no fandango, que, para além dos laços de reciprocidade (ritual e econômica) que eram reforçados, se criavam os primeiros momentos, os primeiros contatos com futuros cônjuges, estabelecendo assim a troca de pessoas. Segundo Carmen Lúcia Rodrigues, “ele [o fandango] também está claramente relacionado a uma convivência que alguns de meus interlocutores destacaram com ironia marota: o fandango era o lugar de flertar dos mais jovens; era onde começavam, e muitas vezes acabavam em casamentos.” (2013, p. 118). Todo esse flerte, esse “descobrimento” das redes de relações sexuais, são culturalmente codificados pelo ríspido véu do pudor; as categorias “respeito” e “discrição” sempre vêm à fala dos fandangueiros quando o assunto vem à tona. Isso só torna mais explícito o caráter familiar e religioso do fandango – e aqui temos o primeiro “estranhamento” com relação a algumas Igrejas Evangélicas, por estas não deixarem seus integrantes praticarem o Fandango. Outro fator que nos dá uma pista sobre a relação entre o fandango e parentesco é a 75

constituição dos grupos de fandango da região. Notemos que o fandango aqui entrevisto nessa situação está na forma mais contemporânea dos grupos de apresentação, que visam mais atingir o público exterior das comunidades, fugindo da lógica do fandango de mutirão ou de baile, onde os tocadores são “recrutados” dos próprios participantes da festa (“quem souber tocar que se disponha!”) e vão se revezando até o raiar do dia. Os grupos de apresentação são previamente formados, direcionados à divulgação da cultura e da arte local, principalmente à enxurrada de turistas que invade a região nas altas temporadas. Um é feito por todos e para “dentro”, outro é feito de “dentro” (e não por todos) e para “fora”. Não obstante, tais grupos de apresentação tem uma constituição interessante quando temos em vista as relações de parentesco propriamente ditas: grande parte deles são grupos familiares no sentido estrito do termo, carregando inclusive o nome da família de seus tocadores, como é o caso da Família Pereira, de Rio dos Patos, Guaraqueçaba-PR, ou da Família Neves da Vila do Marujá, Ilha do Cardoso. Há ainda o fato de que a escolha pelos tocadores nunca se dá apenas por critérios técnicos; sem excluir tais critérios, a escolha sempre passa também pelos aspectos “morais” do candidato ao posto (e sempre há necessidade de reposição de tocadores, ou melhor, de circulação); e não raro, o tratamento entre os integrantes de um grupo assemelham-se às relações fraternais (inclusive nas brigas), mesmo quando não há grau de parentesco verificável entre os integrantes. Passemos agora a um outro ponto interessante na correlação entre parentesco e o fandango, a questão geracional. No que diz respeito ao futuro do fandango na região – e junto com ele da “cultura caiçara” como um todo – quase todos seus praticantes afirmam que “ele se acabará…”, para logo em seguida adicionarem “…se não for feito nada”, como afirmei até aqui. Os motivos pelos quais se daria esse fim – cujo conjunto tenho chamado de pessimismo estrutural – são geralmente enquadrados diante de três perspectivas: a) o avanço da “modernidade”, termo sob o qual se encontram subentendidos a disseminação da televisão, do rádio, internet (mais recentemente e em menor grau), e das próprias leis estatais (que resultaram no “fim” dos mutirões); b) o crescimento das igrejas evangélicas, tema do qual já tratamos aqui de forma breve; c) a “falha” geracional, esta útima intimamente ligada ao primeiro motivo – os jovens “não se interessam mais”. Esta “falha”, por um lado, é resultado direto da explicação dada sobre os novos meios de comunicação – por se interessarem mais e desprenderem mais energia no modo de

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consumo “inculcado” por estes meios de comunicação e suas estratégias de marketing, os jovens estariam “deixando de lado” a cultura local, e, com o fim dos mutirões, que faziam a função de integrar os jovens desde cedo nos esquemas de reciprocidade, a situação “só tende a se agravar”. No entanto, fica subentendido outro tipo de discurso na fala corrente da falta de interesse dos jovens, às vezes até em tom acusativo. Alguns moradores mais antigos apontam também que há uma “falha” na própria educação, ou seja, de que os jovens não se interessam porque os pais não os ensinam mais o fandango a eles. Ou seja, o discurso corrente na região nos deixa entrever que há uma ruptura no tempo caiçara, onde devido às mudanças socioeconômicas e culturais ocorridas na região nos últimos 40 anos – o “fim” dos mutirões e do fandango – ocorreu também uma ruptura nos meios de transmissão de conhecimento de pai para filho. Segundo Nancy Munn (se bem que em um outro contexto):

Em suma, a generatividade como uma reprodução de pessoas sociais que sustentam uma consciência dos outros antes e depois deles, i.e., um aspecto crucial da lógica sociotemporal fundamental da geração – é negada. [Isto] não apenas descreve o que o historiador literário R.W.B. Lewis (1955: 16), caracterizou, em um contexto relacionado como “a disjunção entre as gerações ”: mais reveladora, transmite um processo cíclico em que as relações de “self-other” básicas que definem a geração como uma forma social são continuamente negadas , ou seja, a forma modelada – parentesco centrado em um ego que, de fato, está sempre procurando tanto "antes", em direção ao seu ou seus antecedentes imediatos e “adiante", no sentido de descendentes. (MUNN, 2003, p. 365, tradução livre)

Nancy Munn, nesse mesmo artigo memorável 66, argumenta, através de uma tentativa de aplicar uma microanálise de algumas espacotemporalizações na Nova Iorque de meados do século XIX, que “a rapidez, o movimento (motion) e a memória tomam formas em diferentes apreensões locais dos eventos e práticas que envolvem a dissolução dos lugares” (MUNN, 2003, p. 361, tradução e grifos meus). Destaco aqui a questão da dissolução dos lugares pois, como veremos logo a seguir, o entremeamento entre o que o caiçara considera seu lugar (diria ainda, sua territorialidade) e o fandango como uma característica fundamental do próprio ser caiçara, como afirmam os nativos. Com relação ao fandango, antes de darmos esse próximo passo, há algo a ser dito sobre os meios de transmissão de sua cultura. Como me relataram diversos fandangueiros na 66

Moon, N., “The 'Becoming-past' of Places: Spacetime and memory in neineteenth-century, pre-Civil War New York”, republicado pela revista HAU: Journal of Ethnographic Theory, volume 3, 2013.

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região, o método de ensino caiçara era (note-se, novamente no tempo pretérito) um método de observação; quando perguntados sobre como aprenderam a tocar e a cantar e a dançar a resposta dada, invariavelmente, era como a de seu Salvador das Neves, o Baduca, conhecido rabequista da região da Ilha do Cardoso: “aprendi olhando, ouvindo, meus tios, meu pai tocarem. Depois, pegava escondido rabeca [ou a viola, ou machete] e tentava tocar, até aprender”. Antes de mais nada, o motivo pelo qual os pais não deixavam suas crianças tocarem nos instrumentos era o zelo por eles, já que, se porventura quebrassem ou até mesmo estourasse uma corda, a dificuldade para concertá-lo seria colossal, dado que, no contexto da Ilha do Cardoso, até hoje é difícil encontrar peças de reposição (no caso das cordas), e em se tratando do escopo temporal delimitado por Baduca (aproximadamente, de 25 a 30 anos atrás), as leis ambientais já dificultavam a extração da caixeta usada para confeccionar os instrumentos. Mais ainda, é provável que o fandangueiro aviste uma ruptura nos meios de transmissão, como pode ser entrevisto nas declarações que responsabilizam a falta de interesse dos jovens pelo “esquecimento” do fandango. A responsabilização das gerações mais jovens pela perda cultural não é algo particular aos caiçaras. Pelo contrário, é um sentimento bem disseminado em coletivos que se identificam como tradicionais e não-tradicionais. Chega a gerar incríveis paradoxos em alguns contextos, sendo não raro encontrarmos pessoas na faixa etária dos 20 e poucos anos reclamando que as “atuais gerações” não sabem fazer as coisas, não sabem o que é bom, enfim, “não são mais o que eram” 67. A diferença, contudo, de sentimentalizações nesse sentido em um contexto dito tradicional é que a responsabilização dos jovens pela perda cultural não é o suficiente para culpabilizá-los, isto é, diferente de coletivos que se julgam modernos, a ruptura no ensinamento aos jovens de certas premissas (culturais ou não) não é exemplificado como o único fator de uma “decadência” cultural. O fato dos jovens não quererem aprender e participar do fandango é visto, no contexto do fandango em Cananéia, mais como um efeito do que uma causa; melhor dizendo, é um efeito que também é causa de si mesmo. Se jovens e crianças não se interessam pelo fandango, é porque a situação do fandango não se encontra em “boas condições”. “Não tem apoio do governo!”, “proibiram o mutirão, e a roça!”, “virou tudo evangélico” são fatores que se localizam como logicamente anteriores ao desinteresse dos jovens. Soma-se isso, ainda, o fato de que, quando meus interlocutores estão falando dos jovens, estão falando de crianças e 67

A chamada “cultura gamer” e/ou “cultura geek” são ótimos exemplos, prefiguradas que estão em um contexto que se julga de acelerada temporalidade e mutabilidade.

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adolescentes com idade para serem seus netos, e não da geração imediatamente posterior (seus filhos, sobrinhos, etc). As diferenças geracionais são assim radicalizadas, devido às transformações pelas quais passaram os coletivos caiçaras ao longo das últimas décadas. Quando ressalto que quando um velho senhor fandangueiro se dirige à geração mais jovem alternada, tomando como ponto de partida a própria geração, ao “reclamar” do “fim” do fandango, essa assertiva contém uma explicação sociológica para embasá-la. Acontece que, em meio às transformações sociais, territoriais e econômicas advindas da implementação das leis ambientais, da grilagem de terras e expansão do turismo, ocorreram também a dispersão e fragmentação das vilas caiçaras e a crescente urbanização da região. A dispersão das pessoas caiçaras é vista por Antônio Carlos Diegues (2004, apud TEIXEIRA, 2013) como elemento formador da identidade caiçara:

O nomadismo e a migração são elementos formadores dessa cultura cabocla [dos caiçaras], e o trabalho temporário dos jovens, seja nos bananais ou na pesca embarcada, foram momentos de incorporação de novos padrões culturais de outras regiões. (DIEGUES, 2004, p. 35 apud TEIXEIRA, 2013, p. 19).

No entanto, com os fatores mencionados acima, o que ocorreu entre as décadas de 1960 e 1980 foi uma fragmentação da própria comunidade, e não apenas dispersão de pessoas, especialmente as mais jovens:

Podemos afirmar que uma série de fatores – entre os quais a especulação imobiliária, interessada nas terras originalmente ocupadas por caiçaras, a urbanização das cidades, o distanciamento entre as novas moradias dos caiçaras e o mar, a instalação e o aumento da presença de igrejas evangélicas, a criação de unidades de conservação – levou ao enfraquecimento dessa comunidade e de sua cultura (sic). Consequentemente, a comunidade caiçara passou a viver de atividades distintas das tradicionais, como a construção civil, serviços urbanos e subempregos. (DIEGUES, 2004, p. 35 apud TEIXEIRA, 2013, p. 20).

Não subscrevo de todo o argumento de enfraquecimento cultural, porém, é certo que

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os fandangueiros da região afirmam que, durante esse período 68, o fandango, de fato acabouse. Problematizarei a história sobre o fim de facto do fandango mais adiante (ver Conclusão). Por enquanto, adentremos na interconexão entre elementos do parentesco e da territorialidade caiçara, como forma de “circunscrever” o fandango.

2.3 – Território, Fandango e Parentesco Caiçara – Preservacionismo vs Conservacionismo

Com este breve levantamento de dados de como se organiza o parentesco caiçara na região do complexo estuarino Lagamar69 e como ele se relaciona através do fandango, podemos passar para a tarefa de traçar as relações estabelecidas entre este “sistema de parentesco” caiçara com o que poderíamos chamar de quadro geral da vida caiçara, o modo como eles encaram e agem no mundo, enfim com o que eles mesmos chamam de cultura caiçara, seu modo de ser. A partir disso, poderei esboçar, também, um quadro de transformações que são consideradas as mais pertinentes aos caiçaras, que dessa maneira, explicam sua cultura como um “todo”, um todo que nunca alcança o total. O objetivo aqui é tentar delinear as relações transformadoras que, de maneira dialética, criam constantemente, cismogênicamente, no sentido batesoniano (BATESON, 2006) e também sensu Wagner (2010), a própria cultura caiçara. Nesse sentido, é possível retomar a ideia do fandango como fato social total (MAUSS, 2005), ao delinear como todos esses aspectos, de uma maneira ou de outra, se emaranham a partir do próprio fandango, definindo o que é a cultura caiçara na 68

Tanto Antônio Carlos Diegues (2004) quanto Daniela Maia Teixeira (2013), não parecem afirmar que esse enfraquecimento da cultura desembocou em um desparecimento, como afirmam os fandangueiros. Segundo Teixeira, “Cumpre deixar claro que não houve desaparecimento propriamente dito do Fandango Caiçara como prática cultural, mas apenas o enfrentamento de uma crise diante, principalmente, da especulação imobiliária e da criação de unidades de conservação. E é neste contexto que ocorre o “ressurgimento”, a “redescoberta” desta prática cultural como forma de resistência às políticas públicas de cunho ambiental implementadas na região.” (TEIXEIRA, 2003, 19). Mais ainda, outra discrepância pode ser apontada nos dados da autora: baseado nos estudos do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras da Universidade de São Paulo (NUPAUB-USP), Teixeira afirma que essa crise do fandango se deu nos anos 1980; segundo meus interlocutores, fandangueiros de Cananéia e da Vila do Marujá, a crise se deu nos anos 1990.

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Que de forma alguma se pretendem completos; é significativa até a falta de dados mais sistematizados sobre parentesco na região, devido até uma certa percepção, por parte dos pesquisadores – e dos nativos - de que suas próprias regras parentais se desdobram de outros aspectos culturais da cultura caiçara, como a religião, a territorialidade e sua arte. Inclusive, a separação de tais “esferas” da vida social caiçara se dá mais por parte dos trabalhos acadêmicos, sendo que o próprio caiçara enxerga tais aspectos imbuídos da mesmo lógica da reprodução social caiçara.

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região. A questão da territorialidade caiçara é de suma importância no que diz respeito às relações de parentesco pois, como afirmam Bazzo (2010; 2011) e Rodrigues (2001; 2013) é na própria noção de territorialidade que encontramos o locus das relações parentais. É nesse âmbito que se definem não só as regras de hereditariedade com relação à terra como propriedade, mas todas as relações – com suas implicações éticas e morais – que definem o ser caiçara; o cuidado com a terra, a relação que se estabelece entre o cultivar e permanecer na terra, e as fronteiras que são definidas junto das relações com os vizinhos – idealizadas sempre a partir de ideias como cordialidade e hospitalidade (com relação a membros familiares e agentes sociais mais distantes). No entanto, devemos estar atentos justamente ao caráter essencialista de que fala Herzfeld (2005, p.46-47) que reifica em identidades culturalmente codificadas as imagens concebidas sobre o que é considerado “o (bom) caiçara”. É justamente este “padrão de comportamento” que constrói e liga a noção de territorialidade à de parentesco, pois os valores morais que identificam o “bom sujeito pra casar” são aqueles que o ligam com a sua terra, com suas responsabilidades, para além da óbvia ligação entre a herança da terra com a descendência filial. Devemos ainda estar atentos ao que significa essa ligação com a terra, ou melhor, com a territorialidade. Bazzo, parafraseando Woortmann (1990) nos indica que o próprio uso da palavra sítios, em Barra do Ararpira resguarda mais significados para além da ligação do homem com a terra, através da agricultura:

Etnografias realizadas entre as comunidades camponesas [...] mostram que a palavra sítio, além de designar uma localidade, constitui categoria essencial na reflexão sobre o lugar da terra, família e trabalho nestes grupos. Woortmann (1990) explica que, embora haja muitas maneiras de ser um camponês, há uma "qualidade" que os une, “peasantness” (camponesidade): manifestada em diferentes gradações, configura a 'ordem moral' de alguns desses coletivos em termos das relações entre as pessoas e entre as pessoas e a terra. Assim, o fato de que o sítio é um lugar comum em Barra de Ararapira, apesar das plantações, de fato, não existem mais lá, indica que a 'camponesidade' está menos ligada a prática agrícola por si e é mais uma maneira de ser. (BAZZO, 2011, p.172, ênfase e tradução minhas)

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Podemos verificar tal panorama mais de perto, tendo como contexto a Vila do Marujá. Nela, de fato, assim como a Vila das Peças e Barra do Ararapira (que integram a Unidade de Conservação do Superagüi), é proibida a agricultura e o manejo de recursos naturais sem autorização prévia por parte da administração de seus respectivos parques de conservação. Assim, podemos enxergar de maneira mais clara como se dá a poética social ao nível local (HERZFELD, 2005, p 40-46; 237). Segundo o autor, a poética social seria, resumidamente, o modo como se dão os interstícios entre o essencialismo próprio dos marcadores identitários, a imagem “oficial” ou “reificada” da cultura e da identidade e os mecanismos cotidianos pelos quais as pessoas o transformam – ou subvertem, nas palavras do autor. No nosso caso, esse jogo fica proeminente quando levamos em conta as definições de conservação e de limites da terra por parte dos órgãos reguladores das Unidades de Conservação e a concepção sítio, vizinhança e até mesmo de ser dos caiçaras, que por sua vez engloba a relação com a terra e o território mesmo sem poder plantar e, consequentemente, realizar mutirões70. O que caracterizamos aqui como poética social, no caso, diz respeito às leis de convivência cotidianas entre os moradores e as leis de conservação ambiental, que tem por costume “se esquecer” dos modos de vida tradicionais, como eles próprios nos afirmam (RODRIGUES, 2013, p. 35). No entanto, esta relação Estado vs caiçaras não se configura em uma polarização das relações intrínsecas a esse contexto. A poética social da Vila do Marujá 71 inclui uma relação de disputa de sentidos “de base”, se posso dizer assim, isto é, uma disputa de sentidos entre os próprios caiçaras sobre o que é ser caiçara (e não pensemos por um segundo que o Estado não tenha nenhuma participação nisso). Essas “disputas de sentidos” de que falo aparecem embutidas no próprio fandango e em suas transformações, como afirmei. Antes, porém, nos voltemos à questão problemática do relacionamento multifacetado entre caiçaras e setores do Estado (estes também, como veremos, multifacetados). Ao falar sobre a territorialidade caiçara não podemos deixar passar as intermináveis disputas em torno desses territórios, disputas essas que passam pelas definições de cultura, natureza e da “influência” das pessoas nesse corpo de ideias objetivado nessas relações. Outros a(u)tores poderão delinear bem melhor do que eu a história desses conflitos (ver DIEGUES, 2004; RODRIGUES, 2013; TEIXEIRA, 2013). Como o intuito desta dissertação é outro, explanarei de maneira muito breve como se dá a relação entre estes conflitos e a 70

Sendo que, no entanto, não é possível afirmar que os mutirões não sejam mais realizados.

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Falo apenas da Vila do Marujá porquê, apesar de ter me utilizado de dados de outras vilas ao longo deste capítulo, só posso falar “com autoridade” de onde estive, apesar de não duvidar, nem por um instante, que processo semelhante não ocorra na Vila das Peças e na Barra do Ararapira.

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percepção espaçotemporal72 caiçara sobre o que consideram – e, desse modo, o que são – sua cultura e as transformações (culturais ou não) pelas quais passaram. Antes disso, porém, e a título de exemplo sobre a questão da territorialidade que estou me referindo, passo a palavra aos próprios caiçaras. O trecho que segue diz respeito à autoapresentação dos caiçaras no I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais:

A situação fundiária é problemática, pois existem proibições para a pesca. Atualmente lutam pela criação de reservas extrativistas. A pesca predatória prejudica e causa grande impacto ambiental. Grandes projetos de turismo expulsam pescadores da praia. Interesses econômicos conseguem autorizações para a destruição de grandes manguezais. Existe também o turismo predatório, que gera poluição das águas e praias. Os turistas compram terrenos pequenos e cercam áreas grandes, muitas vezes incluindo a praia, não deixando os pescadores atuarem ali. Há descaso por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) quanto à grilagem das terras, e os pescadores estão perdendo espaço não apenas de pesca como também de moradia. Outro problema são as unidades de conservação de proteção integral, proibindo a atuação das comunidades em áreas de uso tradicional. Sugeriram o turismo comunitário, onde quem ganha dinheiro é a comunidade e não os grandes empresários.73 (RELATÓRIO DO I ENCONTRO NACIONAL DE COMUNIDADES TRADICIONAIS, 2005)

Vemos aqui, então, aliado ao tema do turismo que já circunscrevi brevemente acima, a questão da pesca e das Unidades de Conservação aparecendo como cruciais no entendimento dos conflitos fundiários caiçaras. A atividade pesqueira é entendida, assim, não só como um dos principais marcadores identitários desta população, mas ela também é seu principal meio de sustento, que inclusive deu um salto de importância inestimável após as proibições engendradas pelas leis ambientais rígidas e unívocas dos regimes impostas – e neste caso não há outra palavra que expresse melhor o acontecido – pelas Unidades de Conservação. O Parque Estadual da Ilha do Cardoso, um dos campos de estudo desta pesquisa, foi criado no ano de 1962 pelo Decreto Estadual No 40.319/62, e, segundo os próprios caiçaras, foi um dos principais motivos das transformações sociais pelas quais passaram de lá para cá. A transformação de áreas tradicionalmente ocupadas em Unidades de Conservação são temas 72 73

Como colocado por Nancy Munn (1992). É digno de nota que esta auto-apresentação se encontre na seção 3 do relatório, “Grupos de Trabalho: autoidentificação”, onde os caiçaras, representados que estavam pela Rede Caiçara de Cultura (representante titular) e pela União dos Moradores da Juréia (UMJ, suplentes) se apresentaram junto dos pescadores artesanais (representado pelo Movimento Nacional dos Pescadores [MONAPE]) e dos pantaneiros (estes por sua vez representados pelo Fórum Matogrossense de Desenvolvimento [FORMAD] e pela Colônia de Pescadores CZ-5).

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dos mais diversos enfoques de pesquisa, justamente por dois motivos: 1) a percepção, crescente, de que, em se tratando de conservação ambiental e biodiversidade as práticas mais efetivas são aquelas engendradas pelas próprias populações tradicionais; 2) no que concerne as concepções de território, natureza e seu usufruto destes “espaços” por parte dessas populações, há uma diferença colossal

em relação às políticas ambientais, e que essas

diferenças afetam de maneira prática as próprias populações responsáveis pela criação e conservação destes “espaços”. Há uma grande diversidade de estudos que destacam a produção da biodiversidade e a conservação da assim chamada natureza pelas comunidades tradicionais e populações indígenas74. Nesse sentido, como afirmam Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida (2009), há três possíveis situações de conservacionismo em relação às populações tradicionais, tendo em vista que o “ambientalismo pode significar um conjunto de práticas e pode referir-se a uma ideologia. [Elas] tendem a ser confundidas quando se utiliza um único termo para designar todas as três” (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p. 287): a) uma em que a ideologia está apartada das práticas efetivas, ficando apenas no nível do discurso; b) a situação em que a prática e a ideologia (os autores falam em cosmologias) andam lado a lado, dificultando a distinção entre uma e outra; c) o caso em que a ideologia não é conservacionista, diferentemente das práticas. A definição que se encontra melhor com a situação caiçara seria a segunda, onde junto a todo discurso caiçara sobre a conservação do meio ambiente vem aliada uma prática, e, mais que isso, um discurso que naturaliza as próprias práticas caiçaras como imanentemente conservacionistas. É próprio do ser caiçara, da definição de caiçara seu laço com a terra, com o meio ambiente, com o mar; todos esses laços são reafirmados através das práticas caiçaras que são selecionadas como tradicionais, e que, por muitas vezes são inoculadas em um contexto de luta e resistência, isto quer dizer: quando perguntamos a um caiçara uma pergunta genérica como “o que mudou na vida das pessoas na região?”, geralmente a resposta obtida se dará nos termos de práticas que não só dependem do meio ambiente para a sua execução (bem como, poderíamos dizer, o meio ambiente também depende delas) – como a pesca, a agricultura, e por extensão, o fandango – mas que foram, ao longo do tempo, cerceadas e muitas vezes impedidas por políticas públicas, ironicamente, ambientais. A luta 74

Devido mesmo à essa diversidade, cometeria grande injustiça com diversos autores ao citar apenas aqueles que conheço, já que nunca foi tema de aprofundamento da minha parte. Posso destacar Willian Balée (1989, 1992, 1993 e 1994), citado por Manuela Carneiro da Cunha (2009) e Phillipe Descolá (1997) como um importante pesquisador nesta área de estudos.

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dos caiçaras, portanto, não vai apenas no sentido de “preservar” suas práticas tradicionais; ela também assume o sentido de “provar” para os setores do Estado ambientalistas que essas práticas são em si mesmas conservacionistas, e até mesmo um tipo de conservacionismo melhor que o implicado pelo Estado, já que permitem a eles manter o seu próprio modo de vida. Isto pode ser entrevisto em diversos objetos e práticas que assumem uma função educativa em relação aos “de fora”, isto quer dizer, direcionado, principalmente, aos turistas. Junto com o conhecimento das práticas tradicionais dos caiçaras, que estes tentam “passar” aos turistas (como afirmei acima), vem uma série de elementos que exaltam a relação com o meio ambiente. Esses discursos e práticas são caracterizados pela sua ênfase no chamado desenvolvimento sustentável, e na agroecologia, fomentando a agricultura familiar e o turismo de base comunitária. Como principal exemplo deste tipo de atuação temos a Rede de Empreendedorismo Cananéia que, segundo seu próprio boletim informativo (março/2013), “conta com 15 organizações não governamentais, formalizadas ou não, desenvolvendo ações para a melhoria da comunidade e seu entorno, seja nas áreas de meio ambiente, mobilização social, políticas públicas, cultura, geração de renda etc.” (INFORMATIVO REDE CANANÉIA, 2013). Desta maneira, a definição de populações tradicionais elaborada por Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida, me parece certeira:

populações tradicionais são grupos que conquistaram ou estão lutando para conquistar (prática e simbolicamente) uma identidade pública conservacionista que inclui algumas das seguintes características: uso de técnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas de organização social, presença de instituições com legitimidade para fazer cumprir suas leis, liderança local e, por fim, traços culturais que são seletivamente reafirmados e reelaborados. (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p. 300)

Entendo a reificação dos laços ambientais dos caiçaras neste sentido, e é aqui que temos a principal divergência com relação às políticas ambientais: estas mesmas instâncias responsáveis pela criação das unidades de conservação fazem parte de um conjunto de práticas tão extremas na questão do preservacionismo que excluem toda a ação humana – que não seja sua ausência – como modo de “conservar” a própria natureza, obviando toda ação humana implicada na produção e conservação da biodiversidade. Como afirma Antônio 85

Carlos Diegues: O território das sociedades tradicionais, distinto das sociedades urbanas industriais, é descontínuo, marcado por ‘vazios’ aparentes (terras em pousio, áreas de estuário que são usadas para a pesca somente em algumas estações do ano) e tem levado autoridades da conservação a declará-lo parte das unidades de conservação, porque não é usado por ninguém. (DIEGUES, 1998, p. 89)

Isto ocorre porque a matriz desse ambientalismo rígido, também chamado de preservacionismo, é uma cosmopolítica (sensu VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 166), cuja separação entre natureza e cultura é total, por assim dizer. A natureza pertence à ordem do que é dado, e a cultura – reservada apenas aos humanos – do que é feito, e mais do que isso: a presença humana, “em si mesma” só pode acarretar na deterioração da natureza. É esta perspectiva que subscreve este tipo de política ambiental, e sob ela, subjaz o tema da wilderness75, que, de acordo com Débora Danowski e Eduardo Viveiros de Castro (2013, p. 3) , é “central no imaginário do ambientalismo preservacionista moderno, opõe a vida, concebida como uma inesgotável profusão de formas e sutil equilíbrio de forças, à humanidade, [...] pensada como um fator que diminui e desequilibra a vida, quantitativa e qualitativamente”. Podemos ver como esse modo de atuação das entidades ditas “ambientalistas” - que sobretudo, dizem respeito apenas a um tipo de ambientalismo – interfere diretamente na vida cotidiana caiçara. Porque essa ideologia preservacionista, para além de proclamar a presença humana, sem nem se importar com que tipo de presença humana, como prejudicial aos intentos de preservação ambiental, deixando escapar as possíveis contribuições dos povos tradicionais ocupantes dessas áreas e forçando-os a buscar outros meios de sustento econômico e reprodução social, para além de tudo isso, este tipo de preservacionismo incorre em flagrantes contradições. Como tentei mostrar, ainda que superficialmente, este tipo de visão afeta diretamente a vida caiçara, de várias formas. A principal transformação diz respeito ao usufruto da terra, já que uma de duas de suas principais atividades – a agricultura e a pesca são afetadas diretamente pelo controle estatal: os tipos de unidades de conservação de que falo aqui, o Parque Estadual da Ilha do Cardoso e o Parque Nacional de Superagüi, são unidades de conservação integral, e, segundo o Ministério do Meio Ambiente, são “áreas destinadas à 75

Para uma história da noção de wilderness, ou mundo selvagem, ver Diegues (1998, p. 23-35)

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preservação dos ecossistemas naturais e sítios de beleza cênica” 76, contendo uma ênfase, no máximo, no que diz respeito a qualquer questão social, na pesquisa científica, no ecoturismo e nos programas educativos, omitindo, pelo menos em suas definições (e em suas práticas, como veremos) toda e qualquer referência aos povos tradicionais ocupantes. Em decorrência disto, várias práticas consideradas tradicionais e conservacionistas são deixadas de lado, como a técnica da coivara, que me afirmam os caiçaras, aprenderam com os índios, e o manejo sustentável da caixeta, madeira utilizada nos instrumentos do fandango, apenas para citar dois exemplos77. Por isso, uma das principais demandas caiçaras no que diz respeito às leis ambientais é a transformação dessas áreas de unidades de conservação integral em unidades de conservação de uso sustentável. Foi o que me afirmou Ezequiel Oliveira, uma espécie de “líder” da Vila do Marujá, certa feita:

A luta do pessoal aqui é para a mudança da lei [de unidade conservação integral para de uso sustentável]… porque atrapalha muito a gente aqui, né? A gente não pode pinta uma parede sem autorização… não pode faze uma reforma, não pode faze a nossa roça, e tem lugar pior, que não pode nem pesca… desse jeito fica complicado… e o caiçara é sustentável, é um povo sustentável! (Ezequiel de Oliveira, comunicação pessoal)

Além deste caso – estive aqui me referindo mais à situação da Vila do Marujá, na Ilha do Cardoso – é preciso trazer aqui pelo menos mais um, que demonstra as contradições da política ambientalista estatal no Vale do Ribeira. Este diz respeito ao caso da estação ecológica Juréia-Itatins. Situada entre os municípios de Iguape, Miracatu, Itariri e Peruíbe, a Estação Ecológica de Juréia-Itatins (EEJI) é uma unidade de conservação de proteção integral que tem como objetivos principais a preservação da natureza e realização de pesquisas científicas. Mas é, antes disso, o território de caiçaras que lutam há anos pelo direito de viverem em sua própria terra78. O histórico de conflitos fundiários na região é extenso e complexo, como sua própria 76

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(Em: , acessado em setembro de 2014) E que fique claro que estas mesmas técnicas proibidas pelas rígidas leis ambientais são incentivadas em outras instâncias, governamentais ou não, como nos dizem os planos de ações da já citada Rede de Empreendedorismo Cananéia. E no que se segue, me beneficiarei imensamente dos dados contidos nos trabalhos da cientista ambiental Carolina Peixoto Ferreira (2005) e, em menor parte, da antropóloga Carmen Lúcia Rodrigues (2013).

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história de ocupação. A região onde se encontra hoje a Estação Ecológica Juréia-Itatins (EEJI) já foi refúgio de revolucionários da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária, capitaneado por Carlos Lamarca, que criou dois centros de treinamento de guerrilheiros), durante o período da ditadura militar, sendo um ponto estratégico, devido ao difícil acesso e proximidade da capital do estado79. Ao final da década de 1970, a área foi alvo de um plano para a instalação de usinas nucleares, por parte da Nuclebrás, empresa estatal de energia nuclear do Governo Militar e também foi alvo da especulação do setor imobiliário. Nos anos 1980, a chamada onda ambientalista intensifica-se, incorrendo em pressões por parte desses setores pela criação de unidades de conservação na região. Os primeiros instrumentos legais de proteção da área foram inseridos em 1958, com a criação da Reserva Florestal da Serra dos Itatins. Em 1973 o CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) iniciou o primeiro processo de tombamento de uma “área natural”, para fins “ecológicos”, com o tombamento do Maciço da Juréia e de toda a extensão da bacia do Rio Verde, devido as pressões da Sociedade de Ecologia e Turismo de Itanhaém (FERREIRA, 2005, p. 16). Em face disso, já nos anos 1970, um luxuoso projeto imobiliário que estava sendo planejado para a região, tendo em vista sua legalização, “oferece” à Secretaria de Meio Ambiente uma área de 1.100 ha para a criação da Estação Ecológica, tomando em troca garantias sobre a concretização do projeto. Paradoxalmente, as intenções do Governo Militar em construir usinas nucleares na região acabou por proteger a área, já que impediu a concretização do projeto imobiliário e ele próprio não chegou a ser realizado, o que acarretaria em desapropriações e devastação ambiental, por sua parte, apesar de que a criação e expansão da Estação Ecológica era parte dos planos de “compensação” da usina. Foram nessas circunstâncias que o CONDEPHAAT efetuou o tombamento referido, em 1979 (FERREIRA, 2005, p.17). Com o fim da ditadura militar e o fracasso das intenções de levar adiante o projeto nuclear, surgem as primeiras associações de moradores e os movimentos ambientalistas, devido à preocupação eminente com a retomada dos projetos imobiliários especulativos. Devido às pressões dos grupos ambientalistas, é promulgada por Decreto Estadual a Estação 79

Inclusive, documentos revelados recentemente (2013) atestam que houve um atentado com o elemento químico incendiário Napalm na região, em busca dos revolucionários, no ano de 1970. O evento ficou conhecido como “Operação Registro” e, segundo consta foi a maior mobilização da história do II Exército, com um efetivo de 2954 homens, entre membros do Centro de Informações do Exército, regimentos de infantaria e pára-quedistas das forças especiais, policias da Policia Militar e Rodoviária de São Paulo e do Dops, além da Marinha e da FAB (Força Aérea Brasileira). (Em: , acessado em: agosto de 2014)

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Ecológica Juréia-Itatins, com uma área total de 82.000 ha 80, sendo esta a maior Estação Ecológica do país, de responsabilidade do Instituto Florestal (órgão da Coordenadoria de Pesquisa dos Recursos Naturais da Secretaria de Agricultura e Abastecimento) (FERREIRA, 2005, p.16). E aqui voltamos ao nosso argumento. Ainda segundo Carolina Peixoto Ferreira (2005), no trecho que segue, podemos verificar a semelhança dos processos de criação de unidades de conservação, ainda que com diferenças significativas (como nas regras de plantio), já que tratam-se de diferentes tipos de unidade de conservação, na região da Juréia, da Ilha do Cardoso e de Superagüi:

Com a chegada do 'meio ambiente' na vida das populações residentes nas comunidades hoje compreendidas dentro dos limites da Estação, são intensificados os conflitos sociais, decorrentes de uma decisão jurídica distanciada da realidade conjuntural. […] As restrições ambientais adotadas na Estação modificaram significativamente o modo de vida dos moradores, que sempre desenvolveram atividades agrícolas, pesca, caça e extrativismo, atividades que atualmente ocorrem ou por intermédio de licenças concedidas pelo Estado (no caso do plantio) ou são tratadas como crime ambiental (no caso da caça). (FERREIRA, 2005, p. 19-20)

Mais ainda, essa própria postura acaba por tomar o efeito reverso daquele pretendido, já que no intuito de se “preservar” se impedem – e assim, se modificam – as próprias estruturas tradicionais, isto é, práticas que anteriormente tinha um cronograma ecológico, o conhecimento tradicional que embute em si mesmo uma ideia de simbiose entre as práticas do homem e a realidade à sua volta, práticas estas descritas por meus interlocutores como harmoniosas, em sua maioria das vezes. Cito novamente Ferreira:

A ilegalidade da atividade de caça pode estar tendo o sentido inverso ao da preservação. Se antes os caiçaras sabiam a época certa de caçar e respeitavam o tempo de reprodução dos animais, agora, podem estar caçando em períodos que não seguem mais o "calendário ecológico" de dantes, podem estar caçando nos momentos em que a fiscalização está falha. Muda a condicionante, muda a efetividade antes garantida da sustentabilidade desta atividade. A regularização dessa 80

Ferreira (2005, p. 18-19) informa também que há certas discrepâncias com relação à área da Estação, como em uma outra lei estadual (abril de 1987) que cria a EEJI, que promulga área inferior (79.270 ha) a do Decreto-lei e da área reconhecida atualmente pelo Estado.

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atividade, nesse sentido, seria menos desastrosa à conservação. O mesmo ocorre com relação às ações emergenciais concedidas pelo Estado adotadas para a agricultura, que acabaram por intensificar o plantio apenas nas áreas de capoeira, podendo ocasionar impactos maiores. (FERREIRA, 2005, p. 19)

Há ainda a atuação contraditória que pode ser vista não apenas nas diferenças entre os tipos de ambientalismo aqui brevemente expostos – que poderíamos classificar de ambientalismo preservacionista e ambientalismo conservacionista, sendo a primeira categoria dedicada aos grupos, movimentos e setores que são embasados pelo que Antônio Carlos Diegues chama de “mito da natureza intocada” (DIEGUES, 1998), e a segunda tomando um sentido mais aproximado daquele proposto por Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida (CARNEIRO DA CUNHA, 2009), um ambientalismo embasado no conhecimento tradicional81. Existe uma contradição entre o próprio discurso propagado pelo ambientalismo preservacionista e as ações engendradas pelos órgãos responsáveis pela fiscalização e implementação das leis ambientais. O caso mais recente em que essa contradição pode ser vista está ocorrendo agora mesmo, na Estação Ecológica Juréia-Itatins. Com recursos obtidos junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Instituto Florestal está promovendo uma reforma em seu alojamento para pesquisadores e fiscais, localizado na comunidade Grajaúna, que, com a reforma, simplesmente fechará o acesso ao mar para uma das famílias mais antigas da região, a família Prado. Este seria apenas mais um desmando (categoria nativa) em meio a tantos outros por parte do Instituto – como afirmam os moradores em um abaixo-assinado contra a realização da reforma, através da União dos Moradores da Juréia (UMJ) e da Associação dos Jovens da Juréia (AJJ). Para os moradores, esses atos opressores são recorrentes: 81

Faz-se necessário notar que, em vez de uma visão sobre o conhecimento tradicional como intrinsecamente conservacionista - “naturalmente” conservacionista”, recaindo em um tipo de idealização similar ao velho motivo do “bom selvagem” - as formulações propostas aqui caminham no sentido de afirmar a construtividade, isto é, a criatividade desse conhecimento, que (re)configuram os conhecimentos em si mesmo, como forma de ressaltar certos elementos que coadunam com as preocupações dos diversos ambientalismos crescentes da última década (ALMEIDA; CARNEIRO DA CUNHA, 2009). Isto equivale a dizer que, o conhecimento tradicional, longe de ser conservacionista por si ou em si, se afirma como conservacionista ao trazer em foco elementos que, fora de seu contexto, são similares às preocupações ambientalistas, mas que são encadeadas com outros tipos de conhecimentos mais amplos, por assim dizer, formando redes mais amplas. Novamente, não se trata de um artifício retórico (apenas), mas de um próprio tipo de confrontação entre diversos “ambientalismos” como forma de reivindicar direitos territoriais, por exemplo.

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Na verdade a base operacional, ao longo dos anos mais serviu para fiscalizar a vida dos moradores da redondeza e impor-lhes medo e intimidação, inviabilizando a permanência e impondo a mudança para periferias de cidades próximas. Basta lembrar que, em outra ocasião, um dos filhos do seu Onésio Prado, já foi atacado por um cão (fila), que ficava no alojamento sob a justificativa de proteger o núcleo, inclusive sendo o caso judicializado. Em outras ocasiões os moradores ficavam sob a vigilância de cerca de 10 (dez) guardas parques, que os tratavam como se fossem clandestinos na sua própria casa. Além de serem expostos a constrangimentos causados por pesquisadores, que lhes impunham, encorajados pela administração da Estação Ecológica, questionamentos, quando estes passavam com seus apetrechos de pesca e agricultura. (UNIÃO DOS MORADORES DA JURÉIA, 2014)

Desde o dia 17 de agosto de 2014 até o momento em que escrevo, cerca de 60 moradores ocupavam o alojamento como forma de protesto. Na voz de Dauro Marcos do Prado (integrante da União dos Moradores da Juréia [UMJ], e da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais [CNPCT]), em entrevista concedida à Rádio Brasil Atual no dia 18 de setembro de 2014, as principais consequências da intransigência do Instituto Florestal para com os moradores da região são o constrangimento que passam os caiçaras no decorrimento das atividades diárias, que são “mal vistas” para dizer o mínimo, pela administração e pelos pesquisadores do Instituto, os conflitos com os guarda-parques (incluindo aí uma distinção de classe conferida pela autoridade dada a alguns moradores contratados para este serviço, o que acaba por incentivar o abandono das práticas de cultivo e de pesca, tanto no sentido econômico propriamente dito como no sentido do poder de fiscalização conferido a eles. Ver PEIXOTO, 2005, p. 34), e até mesmo as atividades infantis, já que devido aos próprios impedimentos relativos à lei, são impedidas de brincar em algumas localidades. Segundo diz, isso decorre justamente da visão que os pesquisadores têm dos próprios caiçaras e suas atividades: “eles veem a gente que nem bicho… destrói o que a gente faz, isso é coisa que ninguém paga!” 82 (Em: , acessado pela última vez em 16/09/2014). Muito da fala de Dauro Marcos converge sintomaticamente com as falas que ouvi na Ilha do Cardoso (e até mesmo na região dita “urbana” de Cananéia, onde apesar de não ser uma unidade de conservação, algumas leis ambientais ainda operam de maneira restringente). 82

Provavelmente, com a fala “isso é coisa que ninguém paga, Dauro esteja se referindo às indenizações prometidas aos moradores pelas constantes desapropriações pelas quais passam.

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Elas ilustram um encontro pragmático (ou desencontros?) como descrito por Mauro Almeida (2007), no sentido de que há claramente pressupostos ontológicos que divergem (a saber, principalmente aqueles que fazem referência a distinção natureza e cultura e a atuação dos seres humanos sobre a natureza) sem no entanto, pelo menos neste caso (i.e. nem todos os casos desse tipo de encontros se dão na mesma tônica) se convergirem em um acordo pragmático sobre o usufruto da terra e a conservação do meio ambiente. Entretanto, em vez de focar na controvérsia entre “preservacionistas” e “conservacionistas”, o ponto que quero destacar é outro, e diz respeito a algumas convergências notadas nos discursos entre o “preservacionismo ambiental” e o “preservacionismo cultural”. Estes dois tipos de preservacionismo tem mais de um ponto em comum, porém o argumento sustentado pela noção de “ruptura” merece alguma atenção. A meu ver, um aspecto em comum das políticas “ambientais” e das políticas “culturais” é o discurso retroalimentado da ruptura que tiraria a natureza, por um lado, ou alguma formação social, por outro lado, do suposto equilíbrio original em que haviam se colocado, onde tanto a natureza quanto a ocupação humana estariam em estado permanente de homeostase. No caso das políticas “preservacionistas”, mais do que “conservacionistas”, a cultura seria comumente responsabilizada como um todo pela ruptura com uma natureza intocada. A ação dos homens seria suficiente para estabelecer o início de um ciclo perverso que teria como único destino a deterioração de um complexo natural que lhe seria externo e estranho; no caso das políticas culturais, a ruptura teria como avatar o modelo superdimensionado (ou melhor, suprahistórico) da modernidade, entendida como o estabelecimento de relações que imporiam um modo de vida que não apenas substituiria, mas também aniquilaria o modo de vida tradicional. Pode parecer meio forçado conectar essas duas facetas de políticas e seus efeitos pragmáticos sobre as populações locais. No entanto, a conexão me parece evidente justamente no que elas contém de paradoxal: as políticas ambientalistas “preservacionistas” postulam toda presença humana como perniciosa para o meio ambiente (esquecendo curiosamente de incluir nessa conta a presença dos pesquisadores, como bem vimos no caso da Juréia-Itatins); a partir daí são gerados uma série de conflitos com as populações locais que lutam pelo seu direito de ocupar as terras (que são historicamente suas), conflitos estes que criam por sua vez um outro tipo de postura política/ambiental: aquele que salienta o modo de vida tradicional como “conservacionista”, que ressalta seus aspectos harmonizantes na relação com a

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natureza. Este último movimento redistribui as responsabilidades pela deterioração da natureza, jogando o peso de sua destruição nas relações ditas modernas – ou ainda, capitalistas. Então, o argumento aqui é o seguinte: este último modelo de “atribuição de responsabilidades pela deterioração” foi, de certa forma, transposto para as políticas culturais, em especial às voltadas para as populações tradicionais. Isto teve como efeito retroativo uma espécie de “segunda inversão”, onde as próprias culturas são divididas sob o parâmetro tradicional/moderno de forma… naturalizante. Isso ocorre devido ao fato das políticas culturais de que estou falando – as quais vou especificar no capítulo a seguir – tomarem as culturas como coisas (a referência à Durkheim é proposital) estáticas no tempo e no espaço, sem movimento no espectro espaciotemporal da “história”, de maneira muito similar a visão que se tem da natureza nas políticas ambientalistas “preservacionistas”. Porque, apesar de muitas dessas políticas culturais reconhecerem a importância das noções de territorialidade paras essas populações, há uma iminente discrepância entre uma política que afirma (sempre de modo saudoso) a importância destas categorias para a tradição e as políticas que efetivamente os desapropriam e/ou os impedem de levar adiante suas práticas tradicionais. Mais ainda, o que subjaz estes discursos é justamente uma espécie de nostalgia, sendo que no caso do “preservacionismo” ambiental diz respeito a um só tempo a uma saudade de um tempo em que não havia “ninguém” - edênica, diria Herzfeld (2005) – e a uma percepção do “tornar-se passado” de um lugar, como colocado por Nancy Munn (2003), a percepção das transformações incorridas em um tal espaçotempo como uma espécie de ruptura entre gerações (ainda que, como veremos, seja nesse caso, de certa forma, invertida e até desejada). Já no caso de sua vertente cultural, subjaz ao preservacionismo um tipo de nostalgia que aqui chamei de pessimismo estrutural, que tem como efeito reconhecível uma espécie de “naturalização” da cultura, se por “naturalização” entendermos uma aproximação da própria noção de “natureza” embutida nessa cosmopolítica.

2.4 – Cismogênese, intimidade cultural e o “tornar-se-passado”

O objetivo desta seção será entrelaçar tais conceitos como o de intimidade cultural e

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nostalgia estrutural (HERZFELD, 2005 [1987]), cismogênese (BATESON, 2006 [1936]), e o proposto por Nancy Munn (2013 [2003]), tornar-se-passado (becoming-past), com o próprio material etnográfico aqui exposto, que será complementado de forma pontual com mais alguns exemplos. Creio que as bases que alicerçam estes conceitos e, em menor medida, os métodos implicados neles, nos permitam chegar aqui a um ponto de convergência sobre o conjunto de práticas, o fandango, de que tenho tentado traçar o quadro de relações e os conceitos acima, antes de utilizá-los como meio de “iluminar” e organizar o material empírico. A meu ver, a conexão ou inter-relação existente entre o “preservacionismo” ambiental e o cultural pode ser costurada a partir dos conceitos colocados acima. O ponto nevrálgico seria justamente o tornar-se-passado, ou nostalgia estrutural, ou ainda, como colocamos aqui, o pessimismo estrutural imbricados no modo de agir e sentir n(o) mundo a partir dos discursos dos agentes envolvidos. É esse “sentido de passado” que dá o tom tanto das políticas públicas elaboradas pelos mais diversos setores do Estado, como também pela ação dos diversos agentes que lutam em favor da causa caiçara (seja ela no “campo” do meio ambiente ou da cultura). A relação com a intimidade cultural existe no fato de que o parentesco é a “linguagem” básica do que é considerado como íntimo, é no seio das relações familiares que se estabelecem vínculos afetivos e mais estreitos (supostamente). Herzfeld observa como os “discursos oficiais” se apropriam deste linguajar para se manterem presentes nas vidas dos cidadãos, reificando sua atemporalidade e a noção de homogeneidade entre os seus membros (HERZFELD, 2005, p. 30-40). Ao mesmo tempo, essa imagem que os discursos oficiais se pretendem construir, a figura do “Estado” mesma é subvertida dramaticamente pelas discrepâncias com as próprias concepções de cultura e identidade ao nível local, onde surgem as diferenças; na teoria de Herzfeld, o processo vai se dando dialeticamente entre essas discrepâncias, construindo e fortalecendo a figura do estado ao mesmo tempo que o subverte ou o transforma, não necessariamente de maneira equilibrada (HERZFELD, 2005, p. 30-40). Podemos relacionar o contexto político na Vila do Marujá (e das Unidades de Conservação) com a teoria brevemente exposta acima. A distância entre a política ambientalista (“preservacionista”) na região e as práticas das populações tradicionais encontram-se em choque, em um encontro pragmático extremamente negativo para elas (neste caso, das “leis ambientais”), onde a figura do Estado aparece sempre como intrusiva e

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impositiva (RODRIGUES, 2013, p. 55), já que na concepção do ambientalismo que formula essas políticas de conservação, conservar significa desabitar a terra; tais concepções partilham do mito da natureza intocada (DIEGUES, 1998), e impõe às populações locais leis restritivas que incidem diretamente em seu modo de vida. Tal concepção de preservação da natureza, se por um lado afeta diretamente aspectos socioeconômicos, culturais e geográficos da vida caiçara, por outro se desdobra no discurso de preservação da própria “cultura caiçara”. Nos últimos 10 anos, as políticas oficiais direcionadas à cultura viveram um momento profícuo, e várias iniciativas públicas de investimento voltadas para a “cultura popular” foram realizadas, dentre elas a mais visível foi a implementação dos pontos de cultura, cujos pressupostos iniciais tinham como objetivo horizontalizar a distribuição de recursos e investimentos na área da cultura. 83 No entanto, as incursões a campo me mostraram que diversos fandangueiros vêem tais políticas com ressalvas, criticando-as por não receberem sua parte dos recursos. Estes mesmos fandangueiros que criticam essas iniciativas demandam mais intervenção do Estado como meio da “preservação” e “manutenção” de sua cultura, que por sua vez está “acabando” por conta das “modernidades”, incluindo nesse rol a atuação do Estado. Não podemos ignorar o fato de que o caiçara tem muito claramente a percepção de que o Estado não é um corpo unitário, monocórdico, que age apenas em um sentido. Se, por um lado, “o Estado”84 é a “mão que tira”, como efetivamente e por diversas vezes na história recente fez, pois desapropriou, impediu, destratou e deslocou populações caiçaras, é também “ele” que “dá” através da política de editais, patrimonialização de objetos, monumentos, paisagens naturais e da própria cultura e, mais recentemente, por intermédio da expansão da política dos pontos de cultura e incentivos financeiros para projetos culturais... Isto evidentemente cria um paradoxo com relação ao discurso sobre as responsabilidades pela deterioração e “resgate” (entenda-se, as ações necessárias para resolver ou, pelo menos, aplacar a deterioração), já que, pelo menos discursivamente, não há uma separação entre o 83

De 2004 até 2013, o Ministério da Cultura, sob a administração Gilberto Gil (2003-2008), estados e municípios parceiros destinaram recursos para o fomento de 3663 Pontos de Cultura, que somam investimentos na ordem de meio bilhão de reais. De 2011 a 2012 houve uma retomada de crescimento da execução financeira, configurando o melhor ano de performance do Programa: em torno de 50%. Em 2013, projetou-se alcançar cerca de 70% na execução financeira (fonte: MINISTÉRIO DA CULTURA … 2014). Discutirei o caso dos pontos de cultura em Cananéia mais adiante.

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Que, neste momento, aparecerá em sua forma verbal nativa, isto é, que nos remete a um corpo monolítico de autoridade “o Estado”, sem no entanto, como afirmei acima, isto desembocar de fato em uma visão desse tipo sobre “o Estado”. O fato de se referirem a ele desta maneira não deve nos levar a pensar que meus interlocutores pensam efetivamente no “Estado” como entidade unívoca.

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Estado “ambientalista” - isto é, setores do Estado responsáveis pelas políticas ambientais, nessa faceta o principal perpetrador dos “entraves”, digamos assim, à vida caiçara – e o Estado “culturalista”, aquele responsável pelas políticas que tem como objetivo “resgatar” e “preservar” a própria cultura caiçara que teria se deteriorado com a intrusão dos paradigmas “modernos”. Isso sem mencionar os diversos setores responsáveis pelas políticas de saúde, educação, etc. O paradoxo fica ainda mais estarrecedor se notarmos que não necessariamente por estarem separados em uma chave que distingue o “Estado intromissor – ‘ambientalista’” e “Estado tutor – ‘culturalista’” as ações consideradas boas localmente estejam bem distribuídas entre essas chaves. O principal exemplo disto são as políticas dos pontos de cultura, que apesar do enorme sucesso (político) que vêm alcançando desde sua implementação no Brasil e de seu (pretendido) potencial emancipatório, não é de todo bem-vista pela população da Vila do Marujá e por parte de alguns agentes envolvidos com o fandango caiçara na cidade de Cananéia. Segundo uma bibliografia, os pontos de cultura enfeixam uma iniciativa de triplo alcance: político, ao postular como forma de gestão a horizontalidade, isto é, fazer com que os próprios agentes culturais que já “fazem” cultura “na base” - i.e. as pessoas “comuns” assumissem a gestão destes pontos de cultura; um potencial que pode ser chamado de cultural, na medida em que um de seus principais objetivos seria o fortalecimento desses agentes culturais como um meio de fortalecer culturas de resistência; e um potencial econômico, no que se refere ao incentivo direto a produção local (TURINO, 2010). O projeto (que se insero no chamado Programa Cultura Viva) foi implementado em 2004, elaborado por Célio Turino no Ministério da Cultura de Gilberto Gil, durante o governo Lula. Apesar do pouco caso que o governo de Dilma Rousseff vem dando a esta importante conquista política (incluindo o não repasse de verbas destinadas ao programa, no que contou com certa intransigência de diversas instâncias estaduais e municipais, como foi o caso de São Carlos85), devido a uma postura mais rígida e mercantilista (aliada a um aprofundamento da política tecnicista e desenvolvimentista verificada no último Governo Federal) de Ana de Hollanda (2011-2012) à 85

Em São Carlos, no ano de 2013, o primeiro da gestão de Paulo Altomani (PSDB), a prefeitura desfez (ou quis desfazer) o convênio estabelecido entre governo federal e municipal para o repasse das verbas aos pontos de cultura, afirmando que… aquilo não era “cultura”. As ações tomadas pela prefeitura dali em diante confirmavam que a prefeitura tinha uma outra visão de cultura: aquele do sentido “salão de ópera” de que fala Roy Wagner, ao gastar imensas verbas da prefeitura para trazer à cidade a Orquestra Sinfônica de São Paulo, ou uma exposição de Salvador Dali, além de peças teatrais humorísticas do tipo stand up. Sem entrar no mérito da avaliação destas atrações culturais, fica explícito nestas o caráter de sentido marcadamente elitizado e “de cima pra baixo”.

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frente do Ministério da Cultura, neste ano de 2014, foi aprovada a Lei Cultura Viva, que transforma o programa responsável pela criação dos pontos de cultura em política de Estado. De todo modo, temos aqui uma iniciativa por parte do Estado que podemos classificar de incomum na história de implementação de políticas culturais no país, já que está embebida de uma horizontalidade, uma dissipação das prerrogativas do Estado no gerenciamento da cultura, um tanto quanto destoante inclusive de outras políticas públicas geradas pelo próprio governo responsável por elas. Seu grande trunfo foi inverter uma relação há muito estabelecida nos parâmetros de cultura do MinC (Ministério da Cultura): o de que a “cultura” não pode ser “levada” ou adquirida pelas pessoas que “não tem cultura”, mas de que a cultura é ela mesma feita pelas pessoas, e de que, a partir dela, poderiam estabelecer-se novos parâmetros econômicos que pudessem as levar ao tão famigerado “desenvolvimento”. Resumindo em palavras simples, de que essas pessoas poderiam sair da pobreza através da cultura, que não obstante, já era praticada por aqueles que são os sujeitos dessa política; a única coisa que se poderia fazer é incentivar esse tipo de produção. Não me alongarei mais na discussão sobre os pontos de cultura, porque o que me interessa aqui é seu funcionamento e entendimento pela população caiçara das regiões visitadas por mim; e aqui temos uma dinâmica interessante: como afirmei, os pontos de cultura não são bem-vistos por uma boa parte de meus interlocutores 86. De início, isso me estarreceu, talvez por que minha visão estivesse enviesada pelo seu sucesso político em âmbito nacional. De todo modo, resolvi me aprofundar mais nessa dinâmica e entender o motivo deste “desentendimento”, chamemo-lo assim por enquanto. Antes, porém, cabe explicar o porquê do pessimismo caiçara em relação ao ponto de cultura. Antes de tudo, devo adiantar que fazia parte de meu horizonte etnográfico entender a atuação dos pontos de cultura locais. Vim a descobrir logo no começo da etnografia, em 2011, que existia apenas um na região, com sede em Cananéia, chamado “Matim-Pererê”. Tentei, por diversas vezes estabelecer contato com eles, mas sempre que chegava em sua sede (que também era uma espécie de bar), não encontrava os responsáveis. Assim, demovi da ideia de procurá-los, focando-me na etnografia de outros agentes culturais. Dois anos depois, em 86

E aqui evito uma generalização: a de que todos os caiçaras não veriam essa política com bons olhos, já que, apesar de não conseguir contatar nenhum caiçara que faz parte do ponto de cultura local, as pessoas que dele faziam parte me afirmaram que havia sim alguns caiçaras locais trabalhando junto com eles. Talvez, o viés crítico com que os pontos de cultura são vistos aqui se deva apenas pelo fato da trama de relações em que me envolvi ser crítica em relação a eles; tivesse eu outra inserção em campo e o ponto de vista talvez fosse menos “negativo”.

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meados de 2013, vi que o ponto de cultura havia mudado seu nome para “Ponto de Cultura Caiçaras” e que disponibilizava um site chamado fandangoemcananeia.art.br. Alimentado pela ideia de software livre, tentando conjugar o tradicionalismo caiçara com as novas tecnologias, se opunha a um só tempo tanto à lógica de mercado quanto ao “desparecimento” da cultura caiçara. O projeto Puxirão, uma iniciativa do Ponto de Cultura Caiçaras financiada pelo IPHAN, através do edital de seleção de projetos técnicos n° 001/2009 “Apoio e fomento ao Patrimônio Cultural Imaterial”, é voltado para a chamada “cultura digital” e seus principais objetivos são “fortalecer, disseminar e registrar as manifestações tradicionais relacionadas ao Fandango Caiçara, a valorização e a transmissão desse patrimônio cultural no município Cananéia” (acessível no site citado acima, na seção “projeto”) 87. Pretende-se, desta maneira, aliar a tecnologia moderna como meio de fortalecer a tradição, ou seja, pretende-se uma iniciativa híbrida (como posto por LATOUR (1994), e, em minha opinião, melhor trabalhado por STRATHERN, 2014 [1987]). Entretanto, em suas premissas gerais, encontra-se uma noção de tradição e uma outra de cultura estritamente modernas, na medida em que reitera (e assim, reifica) uma cultura como entendida pela teoria estrutural-funcionalista (como formulada aqui, seguindo Eduardo Viveiros de Castro [2012]), isto é, como algo que, tendo em vista uma dinâmica “interna” vista como primordial ou originária, só pode ser passível de disrupção e deterioração frente as dinâmicas “exteriores”. Apesar da intenção de usar a tecnologia moderna (diga-se de passagem, vista como algo apartado das próprias relações que a tornam possível) como meio de revitalizar o tradicional, o paradoxo é evidente, quando elencados os motivos da fragmentação comunitária e da respectiva “perda cultural”: a modernidade.88 Resolvi, então, na minha última pesquisa de campo realizada, no mês de julho de 2014, aferir in loco como estava sendo visto e sentido este processo de fomento e apoio à tradicionalidade, por aqueles que trabalhavam com ela, mas sem, no entanto, terem trabalhado 87

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O projeto também contou com a elaboração e a produção dos chamados “produtos sociais”, que são uma história em quadrinhos, um filme e um cd com músicas, tudo produzido com mídias livres, nacionais, que constam da seção de “documentação e registro” dos objetivos do IPHAN – como consta no Dossiê do Fandango Caiçara produzido para o IPHAN com o objetivo de obtenção do título de “Patrimônio Imaterial Cultural do Brasil”. Ver capítulo 3. Para uma distinção entre modernidade, modernismo e modernização, ver Parry Anderson (1986). Neste texto há também uma breve passagem que discorre sobre a redução desses termos à tecnologia moderna (seja no sentido de desqualificá-la ou de enaltecê-la). Aqui, curiosamente, há uma espécie de inversão, onde a tecnologia moderna não necessariamente precisa estar ligada às relações que configuram o que alguém pode chamar de modernidade. Entretanto, a visão sobre a própria cultura e sobre a tradição nos indicam que talvez esta concepção não esteja tão apartada assim dessas relações.

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diretamente no projeto. Me refiro então aos fandangueiros e grupos de fandango que conheci em Cananéia, como os grupos Fandango Batido São Gonçalo e Vida Feliz do Acaraú (sendo que com este grupo travei pouquíssimo contato, apenas um domingo), o rabequista seo Ambrósio, além de alguns contatos na Rede Cananéia. Além, é claro, de tentar falar com as pessoas envolvidas no Ponto de Cultura Caiçaras. E foi nesse sentido que tive alguns problemas. Se estava com alguns contatos estabelecidos com os grupos de fandango e com a Rede Cananéia 89, não tive a mesma sorte com o pessoal do ponto de cultura. Tentei localizá-los por todo meu curto período de campo e só consegui contactá-los no meu penúltimo dia em Cananéia (já que seguiria dali para Iguape, a fim de acompanhar o Festival Revelando São Paulo)90. Poderia dizer que, até mesmo a própria dificuldade em “encontrar” o Ponto de Cultura Caiçaras, foi se revelando uma dinâmica dispersa, refratária, uma relação difusa entre as ações do ponto de cultura e como essas ações eram enxergadas por outros agentes culturais, sobretudo os que citei aqui, incluindo ainda agentes pertencentes ao Departamento de Cultura Municipal. Ao perguntar a outros agentes culturais, isto é, aquelas pessoas que “trabalham com cultura”, mais especificadamente, aqueles que tem algum tipo de envolvimento com o fandango, sobre o trabalho do ponto de cultura as respostas variavam quanto ao grau de importância efetiva que lhes eram atribuídas. Ninguém discutia sobre suas “boas intenções” com relação ao trabalho feito, tampouco sobre a existência de atividades por parte do grupo responsável, porém, existiam sérias discordâncias quanto às escolhas sobre as próprias atividades: muitos julgavam-nas distantes, pouco visíveis ou ainda pouco efetivas. Por exemplo: um integrante da Rede Cananéia, quando questionado por mim sobre a atuação do Ponto de Cultura Caiçaras, me dissera:

Sabe, eles são bem intencionados... mas as coisas que eles fazem não tem muito a ver.... Eles até trabalham com fandango também, mas muitas vezes eles trazem umas coisas de Coco, de religião Afro, de Maracatu que... não é tirando o mérito dessas coisas, mas não é coisa de caiçara... acho muito válido o esforço, mas o pessoal não vê o caiçara naquilo, não se reconhece naquilo. (comunicação pessoal, junho 89

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A Rede Cananéia, como dito anteriormente, é uma espécie de congregadora de organizações nãogovernamentais que atuam na área da cultura, da economia e da saúde em prol dos coletivos locais. Ressalto, ainda, que tais organizações são formadas de maneira heterogêneas, contando em suas fileiras com moradores locais, pesquisadores das mais diversas áreas e origens, com uma maior proeminência de biólogos de formação que deixaram suas atividades acadêmicas para se dedicar à causas locais. Não obstante, tais organizações são sempre encabeçadas por moradores locais. Fui, inclusive, motivo de piadas por conta de minha intensa busca do “Ponto de Cultura”.

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de 2014)

A partir desta fala, podemos inferir, de modo geral, como uma parcela dos agentes culturais do município de Cananéia – i.e. aqueles que trabalham com a cultura local – enxerga o trabalho de outra parcela desses mesmos agentes, estes por sua vez “diretamente” ligados ao Estado. Não vou entrar na polêmica suscitada por esta fala, de definir o que é e o que não é, de fato, caiçara, ou ainda, parte da cultura local, dado mesma a diversidade cultural encontrada no próprio Vale do Ribeira e na região de Cananéia 91. Porém, o que a fala acima indica é que os agentes culturais que não são ligados ao ponto de cultura pouco o visibilizam ou se identificam com ele, afirmando ainda que a própria população caiçara lhe é alheia. Outra crítica relacionada diz respeito à dificuldade em achar os integrantes do ponto de cultura (crítica essa que posso subscrever): os agentes culturais que fazem esta crítica, em sua maioria moram na cidade – ou são nativos (caiçaras) ou são pessoas que se estabeleceram há algum tempo no município. Quando da minha busca por estabelecer um contato com os agentes do ponto de cultura, muitos afirmaram que a tarefa ia ser muito difícil, pois seus integrantes raramente se encontravam na cidade. Ainda assim, foram esses mesmos agentes culturais que me incentivaram a continuar a buscá-los, pois não queriam enviesar meu ponto de vista em relação ao ponto de cultura e seus integrantes. Com receio de desmerecer suas críticas simplesmente como negativas, tomavamnas como disputas em torno de uma causa comum: o fortalecimento e desenvolvimento das comunidades locais. Afirmavam, inclusive, que tais disputas eram mais de que comuns, sendo até necessárias. Ponto de vista semelhante ao dos integrantes do ponto de cultura que pude colher quando finalmente contactei seus responsáveis. Consegui estabelecer este contato na minha última noite na cidade de Cananéia, o que considero uma grande infelicidade, já que não pude aferir mais de perto, junto com seus integrantes, a atuação do Ponto de Cultura Caiçaras. Mesmo assim, a conversa que travei com Fernando Oliveira, um dos integrantes do ponto, foi de valiosíssima importância para este trabalho. Dadas as próprias dificuldades na realização deste encontro, tratei logo de perguntarlhe como se dava essa dinâmica entre os diversos agentes culturais da cidade, tudo girando em 91

O Vale do Ribeira é famoso não só por sua biodiversidade, mas também por sua diversidade cultural, já que existem, para além das comunidades caiçaras, diversas comunidades quilombolas e indígena. A mesma diversidade se reflete na região de Cananéia.

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torno da cultura caiçara. Sua fala, por certo, nos será de grande valia:

Olha, do jeito que eu vejo as coisas... Nós todos nascemos numa sociedade que estimula a competição, desde criancinhas... toda nossa educação é voltada pra isso, as escolas, o mercado de trabalho... a gente é criado pra competir um com o outro, e é difícil superar isto... então eu vejo um pouco dessa lógica operando nesse sentido também, no sentido da cultura... existem vários jeitos de se ver a cultura, e eu garanto que o nosso [do Ponto de Cultura] não é nem o único nem o mais certo... tem muita gente, tenho certeza, que não gosta do que a gente faz, ou não entende... o problema é que, apesar de todo mundo ter a mesma intenção, que é lutar pela cultura caiçara, essas concepções de cultura estão em competição... isso acontece porque a gente é ensinado a fazer assim, a competir desde criancinha... eu vejo que acontece a mesma coisa com a cultura (entrevista concedida em junho de 2014)

Desta maneira, podemos dizer que os agentes culturais da cidade de Cananéia (aqueles ligados ao ponto de cultura, à Rede Cananéia e aqueles ligados ao Departamento de Cultura Municipal) concordam pelo menos em um sentido sobre a trama da cultura na cidade: todos eles concordam que há “boas intenções”, que há objetivos comuns em prol da própria cultura local, mas eles discordam em relação aos caminhos seguidos; discordam em relação aos métodos, emprego dos recursos, atividades realizadas... e, pelo menos nesse sentido, podemos dizer que a concepção de Fernando Oliveira traduz em boa medida o contexto verificado. É absolutamente “normal”, por assim dizer, que, devido mesmo às discrepâncias entre as concepções de cultura, a construção do tecido político que envolve o campo da cultura (tradicional) se dê nos termos de disputas, disputas de sentido e pragmáticas. No entanto, pretendo aqui dar um passo além, e, com o auxílio das falas dos caiçaras, principalmente dos moradores do Marujá, e de uma fala de Maria Rita Basso, responsável pelo Departamento de Cultura Municipal, especificar, delimitar o sentido, a direção que tomam essas disputas, ou de, pelo menos, um elemento que considero crucial no entendimento dessas disputas, o modo como aparece a figura do Estado nesse emaranhado, ou, melhor dizendo, nesses encontros entre pragmáticas e ontologias distintas. Assim, poderei aproximar mais as colocações de Herzfeld citadas acima e dos exemplos etnográficos aqui expostos. Posto que as ações estatais podem ser verificadas entre os mais diversos níveis de atuação, mesmo quando se delimita “apenas” o campo da cultura, não objetivo aqui uma análise refinada das atuações em si mesmas do Estado. Antes disso, proponho que, por mais 101

entremeadas que estejam essas práticas às práticas dos agentes locais, o simples fato de ser o Estado suscita comentários e pontos de vista críticos que vão para além de sua própria atuação, ainda que o mesmo Estado atue de maneira contraditória. Adianto que, esses pontos de vista críticos estão relacionados com a visão de (grau de) intromissão na vida social por parte de uma figura externa a esse mesmo tecido social, e essa percepção da atuação estatal pode nos dar pistas sobre o entendimento contraditório que se faz da política dos pontos de cultura. Como já mencionei, os caiçaras da Vila do Marujá viam com receio as políticas dos pontos de cultura (pelo menos durante o período que estive lá, em meados de 2012, quando ainda não haviam sido realizadas as atividades do projeto Puxirão, por parte do ponto de cultura local, afirmando que raramente se notava alguma atividade por parte deles, que não percebiam a redistribuição ou aplicação dos recursos, ou ainda, relativizando um pouco, que a atividade deles não era suficiente. Cabe então perguntar, dada a concepção de tal política como uma política de empoderamento de base que busca incentivar quem já “produz” cultura (ou seja, os próprios caiçaras, nesse caso) porque eles se referiam ao ponto de cultura na terceira pessoa? É a atuação deles que é colocada em cheque quando questionada 92. Poderíamos então afirmar que, de certo modo, o principal objetivo (a meu ver, é claro) dos pontos de cultura não foi alcançado aqui: o de englobar, o de “trazer pra dentro” da confecção das políticas públicas seus protagonistas. Porém, isso tem um motivo, que pode nos ser explicitado por uma fala de Maria Rita Basso, chefe do Departamento de Cultura Municipal:

Quando se fala de políticas públicas e sua efetividade, a gente tem um problema aqui... os caiçaras geralmente não veem como as políticas públicas como algo que podem ajudar eles... eles ouvem em 'políticas públicas' e já se assustam, porque acha que vai vir de novo alguma lei, alguma coisa por parte do Estado que pode prejudicar eles, alguma coisa de cima pra baixo. (entrevista concedida em junho de 2014)

Aqui cabe um parêntese. Se de um lado temos um receio por parte dos caiçaras no 92

Apesar de parecer um tanto óbvio que a ação puxada pelo ponto de cultura local – encabeçado por pessoas em um primeiro momento consideradas de fora em duplo sentido, isto é, não caiçaras e não envolvidas (até o momento do projeto) com a questão do fandango - seja vista com certo desdém pelos fandangueiros, não me parece tão evidente assim os motivos desse receio. Afinal, outros agentes considerados “exteriores” foram “interiorizados” pelos fandangueiros como parceiros na rede de relações estabelecida pelo fandango (sem contar ainda que há agentes caiçaras atuando no ponto de cultura).

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trato que dão aos pontos de cultura, por outro lado, como já afirmei, existe uma demanda para uma atuação maior do Estado. Isso pode soar contraditório, visto que é justamente a visão do Estado como intromissivo, como um operador de transformação externo à intimidade cultural caiçara o motivo de tal receio. Tudo se passa da seguinte maneira: devido ao próprio histórico de transformações operadas “de cima pra baixo” pelas quais passou a população caiçara (ex. leis ambientais), eles esperam uma atuação maior desse mesmo Estado no sentido de correção dos problemas que enfrentam, algo como “se o problema foi criado por eles, então, são eles que tem de resolver!”. Portanto, diria que, conquanto seja possível uma leitura do tipo clastresiana (CLASTRES, 2003), ou seja, do tipo que realce os aspectos “contra o Estado” (que são muitos) da vida social caiçara, essa seria uma leitura parcial que não abarca uma espécie de utilização do Estado por parte dos caiçaras. Isto pode ficar mais claro a partir de uma demanda por parte dos moradores do Marujá, e, também, por meio de um modus operandi por parte de agentes culturais na área urbana de Cananéia. No Marujá, segundo seo Ezequiel Oliveira, há uma demanda para a construção de uma Casa Caiçara, que seria uma espécie de centro cultural, museu e oficina de artesanato caiçara, entre outras coisas. Segundo seo Ezequiel esse seria um modo de intromissão estatal necessário, já que, até mesmo por conta das leis ambientais vigentes na Ilha do Cardoso, eles não conseguiriam construir por conta própria. Porém, nessa mesma demanda podemos entrever o seu lado “contra o Estado”, já que, uma vez construída a Casa Caiçara, esta deveria ser administrada pelos próprios moradores. Aliás não apenas administrada, já que, apesar de “depender” da figura Estatal para a autorização e para a obtenção de recursos, a própria construção seria feita por eles 93. Nas palavras de seo Ezequiel:

A Casa teria de ter autonomia, pra gente não ficar dependendo de governo nenhum… Depois de construída a Casa, a gente cuida dela, a gente garante o funcionamento dela… o problema é que a gente não pode construir nada aqui sem autorização… então, pelo menos pra isso a gente precisa deles. (comunicação pessoal, agosto de 2012)

No caso dos agentes culturais cananeenses, sua utilização do Estado se dá através do 93

Aliás, é uma espécie de valor geralmente atribuídos aos caiçaras o autodidatismo e a autonomia na construção e manutenção de suas casa: como gostam de afirmar, “o caiçara não depende de ninguém para construir qualquer coisa”.

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que chamo de política de editais. Quando se trata da arregimentação de recursos e acesso a programas sociais, educacionais e etc., o principal meio empreendido são editais realizados tanto pelos governos e empresas estatais quanto por ONGs das mais diversas, em que os concorrentes - exemplificando, assim, o que Fernando Oliveira quis dizer com a competição da cultura – buscam “encaixar”, melhor dizendo, selecionar os temas e objetos tradicionais de acordo com o prescrito nos editais. Falarei disto mais adiante. Por ora, é necessário dizer que estas políticas, em um sentido estrito, podem ser compreendidas melhor com o auxílio de uma teoria de Bruce Albert, etnólogo americanista, sobre o que ele chama de mercado de projetos. No artigo de Bruce Albert, “Associações Indígenas e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia Brasileira” (2000), as preocupações se dão mais em um sentido de registrar os processos de ascensão dos movimentos e associações indígenas na década de 1990 e seu envolvimento no “mercado de projetos” visto nesta década até o período atual. Apesar do autor não problematizar – talvez não fosse nem o objetivo – as noções de “populações tradicionais ou neo-tradicionais”, Albert vê uma mudança significativa na constituição das associações indígenas: elas deixaram de ter características étnicas-políticas e passaram a expressar uma “etnicidade de resultados” (ALBERT, 2000, p. 197). Isso se deve a uma mudança tanto no objetivo almejado por estas associações, quanto pelos meios utilizados para que esses objetivos sejam alcançados. No que diz respeito aos objetivos em si, Albert fala em uma “pós-territorialidade”, ou seja, na Amazônia, as questões sobre a demarcação das terras indígenas vêm sendo deixadas de lado, devido à resolução alcançada nesse sentido – argumento, em minha opinião, duvidoso, já que as questões sobre territorialidade indígena parecem ainda render muito assunto, seja em antropologia, seja no que diz respeito a práticas políticas. O fato é que Albert percebe que as preocupações imbricadas na movimentação e no boom dos movimentos indígenas mudaram progressivamente

De uma forma de etnicidade estritamente política, embasada em reivindicações territoriais e legalistas (aplicação do Estatuto do Índio), para o que se poderia chamar de uma etnicidade de resultados, na qual a afirmação identitária se tornou pano de fundo para a busca de acesso ao mercado e, sobretudo, ao ‘mercado dos projetos’ internacional e nacional aberto pelas novas políticas descentralizadas de desenvolvimento (local/sustentável). (ALBERT, 2000, p. 198)

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Esse “mercado dos projetos” de que fala Albert, foi “aberto” devido a uma mudança, também, no financiamento das associações indígenas. Antes, seu interlocutor era o Estado, uma figura geral que “lidava” com as questões indígenas em um contexto de desenvolvimentismo das décadas de 1970 e 1980 e sua preocupação era exclusivamente em termos territoriais; agora seus interlocutores são as instâncias municipais e estaduais, além das ONGs estrangeiras e nacionais É com relação a esse “mercado de projetos” que acredito ser possível estabelecer uma relação entre o contexto específico a que Albert está se referindo e um contexto mais amplo. Em Cananéia, por exemplo, no que se referem às ditas populações tradicionais, nesse caso, as populações caiçaras, percebe-se um movimento em relação ao “mercado de projetos” que, se não se assemelham no que diz respeito à história das associações indígenas – a mudança de uma “etnicidade política” para uma “etnicidade de resultados” – encontram-se em sintonia quando levamos em conta os interlocutores dessas chamadas populações tradicionais – ONGs, empresas nacionais e multinacionais, e setores do Estado em suas instâncias municipais e estaduais, não mais federais – e no modo e objetivo imbricado nas relações com esses interlocutores. Assim, as populações tradicionais se veem no meio de uma trama complexa, e através do “mercado de projetos” – cujo acesso se dá, em Cananéia, majoritariamente através de editais da prefeitura e do estado de São Paulo – essas populações administram, constroem e desconstroem redes sociopolíticas, que tem por objetivo garantir o acesso a programas sociais, educacionais, culturais, entre outros. Com a palavra, o autor:

Para enfrentar esses novos desafios [as associações] tem hoje como principais interlocutores, não mais um Estado tutelar e clientelista onipotente, mas uma rede diversificada de administrações públicas e agências financiadoras com as quais devem negociar um leque de multiparcerias a fim de garantir a continuidade de sua reprodução social e cultural em um novo contexto de interligação permanente entre os níveis regional, nacional e internacional. (ALBERT, 2000, p. 199).

Sempre lembrando que Bruce Albert está lidando com um contexto indígena, onde decorrem todas as suas especificidades aí implicadas, o movimento político percebido pelo autor naquele contexto encontra alguma ressonância nos “interlocutores” (no caso, um Estado multifacetado) em relação às ditas sociedades tradicionais tratadas aqui. Qual seria seu real 105

interesse? Como as definem e as veem? E como essas definições e visões se relacionam com a autoimagem e a percepção política das sociedades tradicionais? Essas são questões pertinentes que podem ser percebidas tanto no texto de Albert quanto em minhas incursões etnográficas na cidade de Cananéia. É importante frisar que a palavra “cultural” como colocada no contexto das relações aqui expostas diz menos das relações culturais como classicamente concebida na disciplina antropológica do que ao campo em que estão inseridas estas relações, ou seja, diz mais sobre a “temática”, por assim dizer dessas disputas aqui elencadas do que da cultura propriamente dita, de acordo mesmo com a própria categoria “agentes culturais”; chamei-os de agentes culturais aqui mais pelo fato de que, segundo suas próprias definições, eles trabalham com cultura. Uma outra advertência: não pretendi, ao realçar certos pontos de vista que inferem sobre a participação “do Estado” na intimidade social destes atores, reduzir toda a problemática trabalhada a uma lógica de mais Estado vs. menos Estado, que ao meu ver, seria um reducionismo um tanto empobrecedor no nosso debate. O que salientei até o momento com essa perspectiva é justamente o que, para Clastres, é a diferença crucial entre as sociedades com Estado e as sociedades contra o Estado (que, no nosso caso, é mais uma diferença de perspectivas em relação ao poder operacionalizado, isto é, como o poder é efetivamente sentido localmente): a separação do corpo social do próprio poder, que, desta perspectiva, diz respeito ao controle dos elementos cotidianos da vida social (p. ex.: a relação conflituosa com as leis ambientais) e uma certa impotência de controlar esses mesmos elementos, como afirmado (sem, no entanto, redundar em resiliência) no temido desaparecimento do fandango. Isto torna um tanto mais paradoxal o fato de uma política que se afirma como uma política de empoderamento social da própria população, como é o caso dos pontos de cultura, se submeta ao mesmo escrutínio de políticas “de cima pra baixo”. Que não se tome esse questionamento como um deslumbre, mas como pode uma política que visa, não apenas se utilizar, mas ser feita ela mesma por aquilo que o então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, chamou de “do-ins antropológicos”, i.e. pela própria cultura como realizada, como é feita cotidianamente no chamado Brasil profundo, resumindo, pelas próprias pessoas, in loco, ser considerada, não obstante, uma política hierárquica e negativamente transcendental? Vários motivos – todos eles verdadeiros – poderiam ser dados nesse sentido, desde a falta de envolvimento dos caiçaras neste tipo de política (“falta de envolvimento” que não se

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explica por si só) como a própria atuação do ponto de cultura local (idem). Uma explicação possível seria a existência de uma espécie de senso comum de que tudo o que envolve “o Estado” são relações assimétricas “de cima pra baixo”, ou seja, de que “o Estado” é uma entidade separada do corpo social, e por isso, tudo que pode vir dele são mandos e desmandos (sendo a única alternativa se inserir dentro do próprio Estado) – ou seja, o Estado como único operador de transformações possível. Isso, de forma alguma, exclui a participação nos processos que o envolvem, porque, mesmo que contra o Estado (como é o posicionamento de muitos caiçaras que conheci), estamos todos em relação com ele, quer queira ou não. Outra explicação residiria na questão da ruptura. Tenho afirmado que o projeto político imbricado no Programa Cultura Viva se caracteriza por uma (incomum) ruptura no modelo de políticas públicas, uma ruptura no modelo de distribuição de recursos e de atribuição de responsabilidade das ações culturais (em termos de direção e de sensibilidade e efetividade). Tenho certeza de que se procurássemos, poderíamos encontrar exemplos de pontos de cultura cuja ruptura supracitada ocorra somente no papel (um descolamento da prática e da ideologia) ou ainda nem isso94, configurando uma “dupla falha” do Programa. Não creio que seja o caso em Cananéia, sendo que tendo a enxergar a questão mais nos termos de uma ruptura de uma ruptura, no linguajar batesoniano, no processo de cismogênese. Do meu ponto de vista a situação se desenrola da seguinte maneira: os pontos de culturas foram propostas de ruptura no modo de se fazer política cultural (leia-se: redistribuição dos recursos e tomadas de decisão) que visam se fazer a partir da intimidade cultural, das tradicionalidades existentes no corpo social (e não apenas se apropriar delas); no entanto, essa mesma política não foi percebida por algumas parcelas dos agentes culturais locais como uma ruptura com uma política altamente hierarquizada, exteriorizada do tecido social. Isto devido a existência da própria dinâmica de escolhas e estratégias no interior do campo daqueles agentes que resolveram abraçar essas políticas do ponto de cultura e os que traçam outros caminhos de acesso aos recursos e programas do Estado, pelo “mercado de projetos”, no sentido explicitado por Bruce Albert. Isto significa dizer que uma parte significativa dos agentes culturais locais divergia de outra parte com relação aos métodos e conteúdo programático a ser implementada pelos próprios pontos de cultura, apesar de serem 94

Afirmo isso porque, apesar de não ser um politicólogo, nem estar “caçando” falhas em um programa governamental, tenho conhecimento de pelo menos um caso em que ocorre essa “dupla falha”. Isto não torna o Programa Cultura Viva uma “farsa” ou “desfuncional”, pelo contrário, muitos de seus objetivos pode ser verificados como alcançados em diversas regiões do Brasil, e seus exemplos multiplicam-se exponencialmente.

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consonantes em relação aos objetivos; não é o próprio Programa Cultural Viva que é criticado, mas sim sua realização, como se deu na região. Isto cria uma dinâmica entre aqueles que embarcaram no projeto político do ponto de cultura como se deu e aqueles que, ou optaram por seguir dentro da lógica do mercado de projetos, ou seguiram trabalhando em outras redes de acesso aos programas sociais e recursos financeiros, pelos mais variados motivos. Essa dinâmica não é necessariamente agonística, isto é, esses termos não se encontram sempre em uma relação de oposição uns em relação aos outros. A título de exemplo, muitos dos projetos do Ponto de Cultura Caiçara são realizados em conjunto com a Rede Cananéia, então, não é como se tivéssemos de “um lado” o Ponto de Cultural Caiçaras e do “outro lado” a Rede Cananéia. Pelo contrário: em um dado momento, ocorrida a ruptura, a cisão entre um grupo e outro, não havia alternativa que não relacionar-se. O mesmo pode-se dizer dos grupos de fandango, e até mesmo da relação entre os “grupos de apresentação” e os grupos que se autoafirmam como “genuínos”95. No entanto, neste último caso, há de se relevar que a ruptura se dá mais no plano das ideias, ideias que se fazem das práticas 96. Neste caso, a cisão pode ser aferida no próprio “lamento”, na própria concepção de que aquele conjunto de práticas que se denomina fandango não é mais o mesmo, e portanto, de certo modo, o fandango já acabou. Ou ainda na ideia de que o “novo” jeito de se praticar o fandango é uma atualização contextual dele mesmo; a ruptura não seria dada no próprio fandango, que é visto, dessa maneira na linha da continuidade, mas apenas no contexto, que “força”, desse modo, a transformação do fandango. Um dado significativo que demonstra este ponto de vista é o próprio fato de que, apesar de muitos dos fandagueiros objetivarem a ruptura contextual e do próprio fandango (na forma de lamento), conceituando assim o fandango de apresentação como distinto de um fandango “genuíno”, é muito raro que um deles recuse a oferta de tocar em um dos grupos de apresentação, que, em minha definição, em vez de lamentar o “fim do fandango”, o transformaram, devido mesmo (e de acordo com algumas delas, como a ascensão dos meios de comunicação em rede, em outras palavras a internet e as mídias sociais) às transformações contextuais. Isso não muda o fato de que, para muitos deles, o fandango acabou.

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Que na verdade não são bem grupos, já que o que se considera como “genuíno” neste caso são os bailes em que justamente não há uma formação fixa do fandango. Em dois sentidos: ideias que se fazem a partir das práticas e ideias que se fazem das práticas realizadas.

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Aqui, minha hipótese é a de que podemos enxergar a situação descrita acima como uma sucessão de processos cismogênicos como indicado por Bateson97:

Muitos sistemas de relacionamento, seja entre indivíduos, seja entre grupos de indivíduos, contêm uma tendência para a mudança progressiva. Se, por exemplo, um dos padrões de comportamento cultural, considerado apropriado no indivíduo A, é culturalmente rotulado de padrão assertivo, enquanto de B se espera que responda a isso com o que é culturalmente visto como submissão, é provável que esta submissão encoraje uma nova asserção, e que essa asserção vá requerer ainda mais submissão. Temos então um estado de coisas potencialmente progressivo, e, a não ser que outros fatores estejam presentes para controlar os excessos de comportamento assertivo ou submisso, A precisará necessariamente tornar-se mais e mais assertivo, e B se tornará mais e mais submisso; e essa mudança progressiva ocorrerá, sejam A e B indivíduos separados ou membros de grupos complementares. Podemos descrever mudanças progressivas desse tipo como cismogênese complementar. (BATESON, 2006, p.219)

Como definição de cismogênese simétrica, o autor nos oferece:

[…] outro padrão de relacionamento entre indivíduos ou grupos de indivíduos que contém igualmente os germes da mudança progressiva. Se, por exemplo, encontramos a bazófia como padrão cultural de comportamento em um grupo, e o outro grupo responde a isso com mais bazófia, uma situação competitiva pode se desenvolver na qual a bazófia leva a mais bazófia, e assim por diante. Esse tipo de mudança progressiva pode ser chamado cismogênese simétrica” (BATESON, 2006, p.220)98

É evidente que, tanto Gregory Bateson quanto Roy Wagner estão falando de fenômenos muito mais amplos, n vezes mais abrangentes do que me propus a “analisar” aqui. 97

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A leitura do conceito de cismogênese é aqui influenciada pelo teoria de Roy Wagner (2010 [1975]) e pela ótima introdução ao Naven, de Amir Geiger (2006). Um potlach agonístico, como indicou Mauss (2003).

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No caso do primeiro autor, este falava de processos cognitvos-afetivos, que por sua vez estavam inseridos em padrões de relações muito mais amplos (ao mesmo tempo que ínfimos), intralaçados que estavam com fenômenos de natureza sociais/culturais (separados, já que apesar de pertencerem à mesma área de conhecimento [e não domínios] são para Bateson dois níveis distintos da realidade), psíquicos e biológicos 99, sendo que a cismogênese seria apenas uma parte (a mais importante, diga-se de passagem) deste processo; isto tudo veio a culminar, em sua obra posterior, na teoria de uma vida mental100, no sentido mais amplo do termo, ou seja, de que não haveria, a não ser heuristicamente, apesar da distinção de níveis, uma separação entre eles, mas sim uma linha de continuidade. Uma comum-unidade processual, (padrões de) relações entre relações (e entre padrões), sem, no entanto, atribuir a esta continuidade mais peso do que devido, quer dizer, sem atribuir-lhe uma relevância, (uma anterioridade, um sentido de originalidade), em relação umas às outras. As separações, as cisões, as rupturas, para Bateson, só faziam sentido por sua capacidade de, ao mesmo tempo, serem os elementos necessários para a constituição relacional, para o que ele chamava de coesão. Uma coesão muito diferente da coesão do funcional-estruturalismo, coesão que era uma função evolutiva (dois outros conceitos também distintos das teorias então vigentes, de tremenda importância para Bateson) da própria vida (sendo a constituição de uma sociedade, nesse sentido específico, não muito diferente da de um zigoto. [GEIGER in BATESON, 2006, p. 35]), e por conseguinte, das áreas de conhecimento. É por isso que Bateson pode ser considerado um hiperfuncionalista (idem, p. 51)101 Como afirma Amir Geiger, mente e sociedade “são consideradas na qualidade de fenômeno comunicacional – não um objeto observável, mas uma organização da circulação de informações” (idem, p. 58), contudo, sem se configurar em um paradigma linguístico, já que

99

Criando uma linha teórica que pode ser reconhecida hoje nessa espécie de metafísica antropológica de Tim Ingold (2000). Sobre a relação de sua teoria com a de Bateson, ver Otávio Velho (2001). 100 Teoria que pode ser encontrada explicitada em “Steps to an Ecology of Mind” coletânea de artigos publicada originalmente em 1972 (BATESON, 2000). 101 “Hiperfuncionalismo entendido aqui de modo análogo àquilo que, na pintura, é o hiper-realismo em relação ao realismo – menos uma confiança satisfeita na representação do real do que determinado tipo de atenção (entre engenharia e fantasmagoria) ao processo-artifício do fazer pictórico. [...] O artesanato antropológico, em Naven, o fazer que dá densidade às fantasmagorias e leveza às engenharias, deixando restar o encanto dos conceitos e da experiência, desenvolve-se em torno da noção de cismogênese.” [GEIGER in BATESON, 2006].

110

Essas informações, por sua vez, não são conteúdos puros, informação sobre algo(uma forma que se descola da substância ou que a reencontra, uma mensagem indiferente ao seu substrato), e, sim, afetações, diferenças, ‘diferenças que fazem diferença’. Nesse sentido, a vida mesma é mental, um padrão de comunicação (muito grosseiramente falando: entre organismo e meio, que por sua vez formam uma unidade maior)

(GEIGER in

BATESON, 2006, p. 35)

Já Roy Wagner busca com A Invenção da Cultura (2010 [1975]) uma teoria que possa dar conta do fenômeno da cultura como um processo criativo e imanente à própria vida (e não apenas à antropologia e às ciências sociais, como sugere a noção de invenção sugerida por Clifford e Marcus (1986), que se dá através da convencionalização e diferenciação (cismogênese simétrica e complementar, respectivamente) de aspectos cotidianos e extraordinários que tem como síntese a própria constituição da realidade. Frisando que, na invenção da cultura, o termo mais importante é justamente a invenção, como processo criativo (cismogênico, não exatamente inovativo, sendo mais obviativo) (WAGNER, 2010, p. 240), e não a cultura, que seria, dessa forma, uma maneira de dar conta da própria vida; a cultura, assim, seria mais um conceito que, apesar de inventado pelo Ocidente, não obstante se encontra (como processo criativo) disseminado, seria, em uma espécie de atualização do mote cartesiano, o “bem” mais bem distribuído de todos. Isto significa dizer que, apesar de seu caráter (conceitual) historicamente marcado, a cultura, processualmente, seu processo criativo, seu modus operandi, se estende para aonde quer que chegue, sendo que essa extensão se dá justamente pelo poder criativo, pela capacidade de invenção, esta sim, inerente ao fenômeno humano; a cultura inventada pela antropologia, assim, do mesmo modo que “chega” a todos os lugares, “retorna”, mas em seu retorno, já é uma outra cultura, que trilha seus próprios caminhos a partir de seus próprios pressupostos – ontológicos, teóricos, conceituais, e, porque não, culturais. Trilha um caminho próprio, em um sentido forte, já que há uma preexistência do “contato”, do “choque cultural” em relação à cultura, à sua invenção como conceito (GOLDMAN, 2011, p. 206), é a partir de situações de deslocamento que se inventa a cultura. Tenho dito, não tenho a pretensão de alinhar-me totalmente aos pressupostos teóricos de tais autores, primeiro pela diferença de escopo analítico (análise que Wagner rejeita, juntamente ao exame, “com suas pretensões de objetividade absoluta”, em favor da analogia, 111

[WAGNER, 2010, p. 29 apud GOLDMAN, 2011, p. 206), bem como rejeita a síntese). Em segundo lugar, porque não tenho também a pretensão de ter compreendido tão bem o que chamei de pressupostos teóricos de Bateson e Wagner, muito menos a relação entre esses autores. O caso é que – creio eu – a situação que procurei descrever em Cananéia (e o jeito com que procurei descrever, o recorte que defini) devem ser vistos, portanto, em vez de uma aplicação de princípios teóricos externos ao contexto aqui trabalhado, como uma espécie de cisão com um tipo de invenção da cultura que congela a visão sobre o tradicional e o popular, que não leva em conta os próprios mecanismos inventivos nativos (e suas invenções, seus “resultados”) como modo de (re)inventar as próprias noções de tradição e popular como vistas na antropologia. Por certo, a própria antropologia operou essa invenção e reinvenção dentro de seu próprio corpo teórico (e o próprio Wagner demonstra, de maneira breve, como de maneira geral a disciplina antropológica o fez. [WAGNER, 2010, p. 230-235]). A tentativaproposta aqui vai nesse sentido: em que podemos transformar, no sentido explicitado anteriormente, o de (re)inventar, a tradição na antropologia, não de, mas em acordo com as invenções nativas? Com esse intuito, proponho que nos detenhamos no ponto nevrálgico do processo que tentei delinear acima; minha hipótese é de que o que chamei de processo cismogênico no contexto aqui estudado, o de Cananéia (na Ilha do Cardoso ou na região urbanizada), tem como pedra de torque, uma espécie de leitmotiv (lato sensu), o nexo existente na constituição da cultura caiçara e do próprio fandango e o discurso mediado pela perda, que chamamos de pessimismo estrutural, derivação conceitual do pessimismo sentimental de Sahlins (1997a; 1997b), que retirou-o por sua vez de Stephen Greenblatt (1991) e da nostalgia estrutural de Herzfeld (2005), podendo ainda se identificar com o processo de tornar-se-passado como colocado por Nancy Munn (2013). Este tipo de discurso, por sua vez, é bem disseminado e conflui nas práticas locais (tanto “oficiais” como “não oficiais”): se é preciso “preservar”, “manter”, “resgatar” é porque se corre riscos; seja com a natureza ou a cultura. Seria por intermédio mesmo dessa linha de raciocínio (e ponto comum em (quase) todas as práticas que “visam” a cultura caiçara) em que se dariam os processos dialéticos de que estou falando, o jogo entre intimidade cultural e discurso oficial, mas também onde podemos localizar o processo de cismogênese como definido por Bateson. 112

O conceito de cismogênese é, então, a criação a partir da ruptura, progressiva e dialética, sem, no entanto, necessariamente colocar em termos opostos a integridade e a ruptura do próprio sistema; as duas fazem parte do mesmo processo, e combinando os termos entre si cria-se uma “estabilidade variável” (GEIGER, 2006, p. 35). Onde Herzfeld enxerga a dialética da intimidade cultural, um processo que se dá na mais ínfima das relações cotidianas, podemos enxergar o processo de cismogênese acontecendo, no caso da relação entre os caiçaras e o Estado, cismogênese complementar, já que no caso da cismogênese simétrica as respostas adquiridas são sempre, num certo sentido, equitativas, o que não ocorre na relação Estado-população; nessa relação há sempre uma relação de poder desigual (sensu CLASTRES (2004), isto é, o aparecimento do Estado deve-se ao próprio descolamento do poder do corpo social, sem deixar de denotar que ele acaba por se constituir em outro corpo social). No caso da analogia com a cismogênese simétrica, esta pode ser entrevista na relação entre os diversos grupos de fandango, uns com os outros, e entre os “gêneros” fandango de apresentação e fandango “genuíno”. O interesse aqui, deste modo, estende-se na direção do suposto englobamento por parte das práticas “preservacionistas”, da própria definição, temporalidade e, por consequência, da própria “cultura” caiçara, o próprio processo caracterizado como efeito looping, como colocado por Manuela Carneiro da Cunha (2009: pp. 363), a própria formação das “culturas” com aspas, as idas e vindas dos discurso e imagens de identidade e cultura, bem como suas categorias relacionadas e consequências derivadas. Passemos agora para “o outro lado”102, o lado das políticas públicas (e seus agentes) que buscam preservar e resgatar a cultura, mediante a construção dela mesma. Após uma breve explanação deste tema, trarei de volta a discussão sobre como esse tipo de política se correlaciona e como se diferencia das políticas ambientalistas, pelo menos aquelas que concernem às populações tradicionais. Esse procedimento tem em vista voltar ao fandango como catalisador/operador das transformações e das práticas – vindas dos mais diversos agentes e instâncias – na tentativa de cumprir a promessa de explicar como o fandango pode ser considerado um fato social total.

102

Não quero aqui, com esta expressão, reforçar divisores.

113

Capítulo 3 – Patrimonialização da Cultura (I)material: Um Olhar Crítico sobre a visada patrimonial

3.1 – Introdução e breve histórico das políticas de patrimonialização

Datado de 17 de outubro de 2003, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial nos apresenta a seguinte definição:

Artigo 2: Definições Para os fins da presente Convenção, 1. Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável. (UNESCO, 2006, p. 4)

Logo em seguida, define o “locus” de sua manifestação:

2. O “patrimônio cultural imaterial”, conforme definido no parágrafo 1 acima, se manifesta em particular nos seguintes campos: a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; b) expressões artísticas; c) práticas sociais, rituais e atos festivos; d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; e) técnicas artesanais tradicionais. (UNESCO, 2006; pp. 4-5)

114

Dadas essas definições, o objetivo aqui é elaborar uma discussão sobre a própria elaboração de conceitos como “patrimônio”, “imaterial” (e seu “oposto”, o “material”), “cultura”, passando pela noção da cultura como um bem, como uma propriedade (material e intelectual). Em seguida, discutirei como esses conceitos se articulam com/sobre as finalidades políticas e sociais, dando destaque às categorias caras a este tipo de política, como “preservação”, “proteção”, “salvaguarda”, etc. Não me prenderei, no entanto, às próprias definições, e tentarei trazer à baila dados bibliográficos e etnográficos que circunscrevam o próprio tema; é mais uma tentativa de mapear os caminhos que tais conceitos tomam nos diversos casos em que o tema aparece, sabendo de antemão que não atingiremos um panorama completo, inclusive devido ao aumento exponencial que o patrimônio imaterial teve como tema de políticas públicas, no âmbito nacional e internacional, como tema acadêmico. Levando em conta discussões já realizadas sobre o próprio tema (GONÇALVES, 2005; SANDRIONI, 2010; COLI, 2012; IKEDA, 2013); dialogaremos também com as implicações teóricas de autores como Tim Ingold (2007, 2008) e retomaremos Michael Herzfeld (1997) e Marshall Sahlins (1997), numa tentativa de elucidar quais são os componentes específicos do conceito de Patrimônio Imaterial e sua relação com os conceitos de Cultura e a temporalidade dessas culturas; argumento aqui que este é o principal ponto de inflexão, o principal ponto de passagem que permite a própria aplicabilidade e efetividade desses mesmos conceitos: a conexão a priori das culturas tradicionais com o passado (bem como seu oposto, a saber, a negação da transformação e, (paradoxalmente) até mesmo do futuro aos coletivos considerados tradicionais).

...

A preocupação com as “culturas populares” pode ser traçada desde meados do século XX103, em meio aos estudos folcloristas, e, desde então, tivemos diversas nomenclaturas e 103

Carlos Sandroni (2010) aponta que o primeiro anteprojeto do gênero redigido no Brasil foi de autoria de Mário de Andrade, e data de 1936. O projeto indicava aspectos materiais e imateriais do patrimônio brasileiro como sujeitos de uma instituição pública de proteção ao patrimônio cultural. Não foi adotado, mas as políticas públicas levadas a cabo dali em diante pelo Departamento de Cultura da cidade de São Paulo

115

definições do que é considerado tradicional e/ou popular, sempre realocando os termos “tradição”, “popular” e “cultura”, para então chegarmos na definição de patrimônio imaterial, presente já na Constituição Federal de 1988, e ratificado no Decreto-Lei n° 3.551, de 4 de agosto de 2000, quando foi criado o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) e instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial (IKEDA, 2013; pp. 173). O PNPI fora incorporado como responsabilidade do IPHAN, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial fora subdividido em quatro livros:

Livro de Registro dos Saberes – Onde são inscritos os conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; Livro de Registro das Celebrações – Onde são inscritos os rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; Livro de Registro das Formas de Expressão – Onde são registradas as manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; Livro de Registro dos Lugares – Destinado à inscrição de espaços como mercados, feiras, praças e santuários, onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas. (IPHAN, 2000)

Assim, podemos ver que as políticas implementadas pela UNESCO, como referenciadas nas citações no início deste texto, não se configuraram como uma novidade em território nacional. De certo modo, o texto da UNESCO serviu até como uma ratificação das políticas elaboradas no Brasil há quase 15 anos, quando do Decreto-lei n° 3.551. De todo modo, diferenças podem ser apreendidas, como nos indica Carlos Sandroni:

O decreto [n° 3.551] não contém uma definição explícita do patrimônio imaterial. Mas tem uma definição implícita estabelecida por dois meios: quatro listas de tipos de bens passíveis de inclusão, organizadas segundo os diferentes livros de registro; e a definição, como critério geral de inclusão, da ‘continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira’. [...] A ideia de ‘risco de extinção’ do bem, que desempenhou um papel seguiam suas diretrizes, até porque era o próprio Mário de Andrade que o dirigia; posteriormente, já na década de 1970, Aloísio Magalhães, designer e administrador cultural criou o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), que seguia, de certo modo, a mesma orientação do projeto de Mário de Andrade, e que também norteou o Decreto-Lei n° 3.551

116

importante nos documentos da UNESCO sobre o tema, está totalmente ausente desse texto legal. Também não há menção ali à participação dos detentores do bem no processo de registro, outro tema que se tornou caro à UNESCO em meados dos anos 1990. (SANDRONI, 2010; pp. 374)

Ainda mais, segundo Sandroni, apesar do Decreto-lei n° 3.551, não houve, pelo menos até 2004, nenhuma ação no sentido de tirar do papel o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, o que culminou com apenas dois bens registrados como patrimônio imaterial do Brasil: o ofício das Paneleiras de Goiabeiras, no Espírito Santo, e a arte Kusiwa de desenhos corporais dos Wajãpi, do Amapá. Tal panorama só foi alterado no início de 2004, quando o antropólogo Antônio Augusto Arantes assume a presidência do IPHAN e ativa o Departamento do Patrimônio Imaterial. Desde então, pode-se dizer que o IPHAN tem tido uma atuação mais proeminente no sentido de “inventariar e patrimonializar” os “bens culturais imateriais” do Brasil. De lá pra cá, foram registrados pelo IPHAN mais 27 bens culturais, totalizando 29 “bens” registrados. Entre os quais o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, o Frevo, o Samba de Roda do Recôncavo Baiano, a cachoeira de Iauaretê – lugar sagrado dos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri - e o tema dessa etnografia, o Fandango Caiçara. Temos aqui, então, um breve panorama sobre as políticas de patrimonialização do início deste século. Obviamente, não esmiucei tal história, mas acredito que temos alguns elementos que são suficientes para problematizar alguns pontos, entre eles: a) a questão do patrimônio imaterial como um bem, colecionável, inventariado, passível de ser perdido, e porquê não, adquirível também; o que culminará, mais adiante, na discussão sobre a questão da materialidade e da imaterialidade do patrimônio imaterial; b) a postura perante o patrimônio imaterial, tanto a postura “institucional” e dos detentores de tal bem, sabendo de antemão que em meio aos processos de patrimonialização, tais posturas, concepções e ações estão imiscuídas umas nas outras, e finalmente c) a temporalidade (e a espacialidade) do patrimônio cultural, da qual podemos ter alguns indicativos nas categorias salvaguarda, proteção, extinção e perda; tais termos sempre vem à baila quando o assunto é cultura tradicional, e sua suposta oposição com a “sociedade envolvente”, descrita quase sempre como moderna, ou ainda, como modernidade ou modernizante104. 104

Para uma analisa mais sistemática dos processos de modernização, ver, novamente, Anderson (1986). Ver também o tão citado David Harvey (1989), com sua obra The Condition of Postmodernity: An Enquiry into the Origins of Cultural Change.

117

3.2 – Patrimônio Imaterial como bem: “materialidade” vs “imaterialidade”

À primeira vista, se considerarmos de antemão que o patrimônio imaterial é um bem, no sentido que vem sendo dado nos contextos aqui referidos, ele poderia ser considerado com um bem inalienável, ou seja, são bens impossibilitados de serem trocados pelas vias comuns, estão intrinsecamente ligados aos seus detentores. Isso quer dizer que o que define o patrimônio imaterial é o fato dele ser único e necessário para os seus detentores se definirem como são; se uma “comunidade tradicional” perde sua “cultura” (vista aqui como patrimônio)105 ele deixa de ser tradicional, ocorre uma perda de identidade106. Disso podemos inferir duas coisas: a primeira diz respeito à concepção de patrimônio como um “bem”. O patrimônio107 cultural não é um bem como qualquer outro; primeiramente, porque é considerado coletivo, não há um único possessor, e por isso mesmo, é impossível de ser vendido ou trocado. No entanto, ele pode ser perdido, extinto e por isso mesmo, ele pode e deve ser registrado, protegido, resgatado, salvo pelas políticas referenciadas acima. Isso tudo nos dá pistas sobre as concepções de transformação e manutenção da própria “cultura”, na medida em que o patrimônio a ser protegido é o cultural (e imaterial). Em segundo lugar, é um bem supostamente intangível, como sugerem os termos que lhe dão o nome (sendo encontradas igualmente nas definições legais as palavras intangível e imaterial). Tal distinção é reiterada em quase todas as definições institucionais e dossiês e documentos divulgados pelo IPHAN, (2006a, 2006b, 2008, 2009), com a única – e relativa – exceção da própria Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da UNESCO, onde no artigo 2°, “das Definições”, como citado no início deste texto, pode-se ler que “entende-se por ‘patrimônio cultural imaterial’ as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados”. (CONVENÇÃO PARA SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO IMATERIAL DA 105 106

107

A junção entre as concepções de patrimônio imaterial e cultura serão analisadas mais adiante. Diga-se de passagem, esta concepção é bem disseminada entre os grandes meios midiáticos brasileiros. Pejorativamente e constantemente acusam, por exemplo, os índios de não serem mais índios, pois “usam celular, bermudas e havaianas” revelando uma concepção estagnada no passado sobre o que é ser índio e “tradicional”. José Reginaldo Santos Gonçalves (2005) demonstra ainda que a própria noção de patrimônio é variável sócio-espacialmente, sendo mais antiga e mais variável que a concepção atual pode sugerir.

118

UNESCO, 2003) Mas isso suscita alguns problemas, como colocados por Gonçalves:

Seja no contexto de seus usos sociais e econômicos cotidianos, seja em seus usos rituais, seja quando reclassificados como itens de coleções, peças de acervos museológicos ou patrimônios culturais, os objetos materiais existem sempre, necessariamente, como partes integrantes de sistemas classificatórios. Esta condição lhes assegura o poder não só de se tornar visíveis e estabilizar determinadas categorias socioculturais, demarcando fronteiras entre estas, como também o poder, não menos importante, de constituir sensivelmente formas específicas de subjetividade individual e coletiva.(GOLÇALVES, 2007, p. 9 apud SALAINI; GRAEFF, 2011, p.173)

Ainda segundo o mesmo autor, a noção de patrimônio, que durante muito tempo foi atrelada a uma noção de materialidade, e que por isso mesmo, tiveram de ser inventadas as categorias “intangível” e “imaterial” para dar conta de todo um espectro de coisas que ficavam de fora das definições convencionais de patrimônio; portanto

É curioso, no entanto, o uso dessa noção para classificar bens tão tangíveis e materiais quanto lugares, festas, espetáculos e alimentos. De certo modo, essa noção expressa a moderna concepção antropológica de cultura, na qual a ênfase está nas relações sociais, ou nas relações simbólicas, mas não especificamente nos objetos materiais e nas técnicas. A categoria ‘intangibilidade’ talvez esteja relacionada a esse caráter desmaterializado que assumiu a moderna noção antropológica de “cultura”. Ou, mais precisamente, ao afastamento dessa disciplina, ao longo do século XX, em relação ao estudo de objetos materiais e técnicas (SCHLANGER, 1998). (in GONÇALVES, 2005; pp. 21)

Deste modo, Gonçalves propõe que o uso analítico da categoria patrimônio pode funcionar como uma forma de trazer à tona a “materialidade da cultura”, já que “não há como falar em patrimônio sem falar de sua dimensão material” (idem, p. 21). No entanto, aqui daremos um passo numa direção distinta a do autor citado, já que, ao nosso ver, apesar de problematizar o uso institucional das categorias “materiais” e “imateriais”, conceitualmente ainda há uma dicotomia entre os dois termos. 119

Sobre a dicotomia entre patrimônio imaterial e material, aliás, pode-se dizer que há um certo consenso nos trabalhos antropológicos realizados sobre o tema 108, apontando a dificuldade imbricada em tal distinção. Como afirma Antônio Augusto Arantes (2005), a criação do campo legal e dos conceitos que envolvem a salvaguarda e proteção dos bens patrimoniais intangíveis ou imateriais envolve uma mudança de foco por parte do IPHAN, que de práticas que visavam a proteção apenas de edificações e outros artefatos tangíveis (a chamada política da pedra e cal), em sua maior parte (quase que totalidade) bens e lugares relacionados com a história das elites brasileiras, passa também a valorizar os patrimônios relacionados às chamadas culturas populares e cria toda uma gama de artifícios legais, programas de referência, projetos de salvaguarda destinados à proteção de bens intangíveis, em sua formulação original, bens culturais, comumente atrelados como sendo o maior bem patrimonial das culturas populares. Contudo, sobre esse paralelismo entre material/elites vs intangível/culturas populares (e indígenas), Arantes escreve:

Nada seria mais falacioso e causaria mais danos às políticas culturais do que naturalizar os vínculos das camadas populares e grupos étnicos com os bens imateriais e, complementarmente, das elites com aqueles de natureza material. Aqui, como em outros países, o fato desta ser uma linha de trabalho emergente torna amplamente prioritária a salvaguarda de manifestações culturais com risco de desaparecimento e o viés elitista das políticas até recentemente desenvolvidas projeta na linha de frente as culturas minoritárias. Torna-se grande, portanto, o risco de se obscurecer a dimensão material do patrimônio associado aos diversos grupos minoritários, assim como dos bens imateriais desenvolvidos pelos segmentos cultos da sociedade (ARANTES, 2005, p. 8)

Julgo ser útil a perspectiva proposta por Ingold (2007), na medida em que sugere uma outra ontologia, onde não há mais uma separação efetiva entre materialidade e imaterialidade; melhor dizendo, o conceito de materialidade é deixado de lado (e por extensão o de imaterialidade), já que na visão do autor se trata de um conceito vago e abstrato demais. O foco de diversos autores estudiosos da “cultura material” em tal conceito, afirma Ingold, acaba tirando do próprio fluxo da vida as coisas e os materiais que as compõe, na medida em que falar de materialidade acaba virando um exercício de pura retórica filosófica e 108

Refiro-me especialmente, para além dos trabalhos citados aqui, aos dossiês sobre patrimônio imaterial realizados pela revista de antropologia Vibrant, nº 01, vol.10, (1/2013) e pela Revista do IPHAN, nº32, (2005) sendo que esta última, apesar de não ser uma revista de antropologia, conta com a maioria dos textos escritos por antropólogos e é especialmente voltada para a discussão em torno do patrimônio imaterial.

120

teórica, e os próprios materiais dos quais as coisas são feitas acabam ficando de lado (INGOLD, 2007). Aqui será necessário voltarmos um pouco, na medida em que mesmo se levarmos em conta o conceito de materialidade, a questão do patrimônio imaterial já seria problemática, como vimos brevemente acima. A título de exemplo, tomemos os dois primeiros “bens” registrados como patrimônio imaterial do Brasil, o ofício das paneleiras de Goiabeiras (ES) e a pintura corporal Kusiwa dos Wajãpi. Ora, nos parece bastante óbvio que as panelas de barro das Goiabeiras e a pintura Kusiwa e o corpo dos Wajãpi 109 são eminentemente materiais. Levando em conta que o patrimônio é cultural, para posteriormente ser classificado entre material e imaterial, fica a pergunta: porquê edifícios, sítios arqueológicos e documentos, por exemplo, são considerados materiais, e as panelas das Goiabeiras e as pinturas e o próprio corpo dos Wajãpi são imateriais? Dir-se-ia que a própria inscrição dos dois últimos bens citados poderia nos trazer algum esclarecimento: o ofício das paneleiras está registrado no Livro dos Saberes e o da pintura corporal Kusiwa nos das Formas de Expressão. O que se procura preservar são os próprios saberes, as próprias expressões registradas. Mas então isso significa que os documentos, prédios, paisagens e etc., registrados como patrimônios materiais não possuem, por exemplo, saberes e expressões a serem preservados? Volto a esta questão mais adiante. Por enquanto, é suficiente a conclusão de que a própria distinção entre materiais e imateriais expressa uma dificuldade imensa, não só para os pesquisadores, mas para os setores do Estado envolvidos (e o emaranhado110 que ele representa), representado aqui pelo IPHAN no âmbito nacional, e pela UNESCO no âmbito internacional. Prosseguindo, como poderíamos superar esta dicotomia entre materiais e imateriais e os problemas que ela nos traz no âmbito da patrimonialização? Colocando a questão de outra maneira, qual a vantagem de se assumir um ponto de vista analítico baseado na teoria de Tim Ingold? Mais ainda, o que seria um componente material e um imaterial? Pois, como afirma Ingold, se não falaremos mais em materialidade, e sim em componentes materiais, os componentes próprios dos quais as coisas são feitas, o que seria um componente imaterial? Essa questão se apresenta de maneira um tanto quanto falaciosa do meu ponto de vista, pelo 109

110

Não possuo conhecimento sobre as concepções de corpo dos Wajãpi. Portanto, afirmar que ele nos parece “eminentemente material” pode culminar em um terrível erro por parte deste que vos escreve. A noção de “emaranhados institucionais” como aparece aqui, mesmo que brevemente, é emprestada de Vianna (2010).

121

simples fato de que é a dicotomia mesma entre imaterial e material que se pretende abolida. Para encorpar a crítica e o ponto de vista aqui assumido, cedo a palavra à Tim Ingold, citando Gibson (1979):

Não existe nada material que não esteja preso em objetos sólidos e tangíveis como pedras? Nós acreditamos mesmo que o que quer que esteja do lado de cá de tais objetos é imaterial, incluindo o próprio ar que dá a liberdade do movimento permitindo que você os alcance e os toque, sem mencionar o próprio dedo – e, por extensão, o resto do corpo, já que dedos não são operados pela mente através de controle remoto? É o ar que você respira um éter da mente e o seu dedo um fantasma da imaginação? […] O foco de Gibson, é claro, é a superfície que separa um tipo de material (como a pedra) de outro (como o ar), mais do que a materialidade da imaterialidade. É precisamente por causa desta ênfase nos materiais que Gibson minimiza qualquer noção de materialidade do mundo. (INGOLD, 2007, p.6, tradução minha)

Dito isto, é possível nos voltarmos agora para a questão do patrimônio como sendo algo cultural. Como dito anteriormente, a noção moderna de patrimônio é baseada (utilizando os termos de Ingold) em uma ontologia ocidental classicamente cartesiana, onde há fronteiras bem definidas entre o que é material e o que não é (o imaterial), sendo todos eles bens culturais. Dentro dessa chave de pensamento, o que ocorre, seguindo os argumentos desenvolvidos por Gonçalves (2005), é uma eliminação da ambiguidade (diríamos multiplicidade), em especial das derivadas de categorias sensíveis (como o cheiro, o tato e o paladar) em nome de definições mais abstratas e ao mesmo tempo rígidas, como a própria noção de materialidade, ou ainda, como na definição de patrimônio. A assertiva de que o patrimônio (material e imaterial) é cultural também exemplifica algo que pode ser conferido etnograficamente, nas falas de fandangueiros locais e das pessoas envolvidas com a questão do patrimônio (sem excluir aqui da alçada da etnografia as próprias definições e documentos institucionais). O que podemos inferir é que geralmente há uma confusão entre o que é considerado patrimônio e a própria cultura (GONÇALVES, 2005), no sentido de que o primeiro é considerado um bem legítimo, quando não o único representante da cultura local como um todo. Mais ainda, se prestarmos atenção nos objetivos de se preservar uma cultura (na forma de patrimônio), não é só da cultura local que se trata, mas sim da “cultura de uma nação”, de um elemento constitutivo de toda uma população, no nível 122

nacional, e posteriormente, de uma “cultura global”, como podemos depreender do título atribuído a certos bens culturais como patrimônio mundial da humanidade. O tratamento dado aos saberes e costumes locais é definido como uma pequena parte de uma “cultura da humanidade”. Mais ainda: de um passado longínquo que não era corrompido pelos artífices da modernidade e da tecnologia, ou ainda, não era “contaminado” pela perda da reciprocidade.

3.3 – Culturas Populares: Elos do Passado “Perdido”

O que significa então (a busca por) preservar, manter um bem cultural, ou ainda, uma cultura popular? Quais são as motivações dos “movimentos preservacionistas culturais”, digamos assim, oficiais, não oficiais ou “nativos”? Podemos obter alguns indicativos interessantes ao inverter a questão, duplamente: a) se não correspondermos, a priori, o segundo termo da relação - culturas populares como representantes do passado, podemos (devemos) preservar o que está no presente, o que é experienciado na lida diária? b) a segunda questão se modifica no sentido que tentamos empreender com a palavra devemos colocada entre parênteses. Porque se deve preservar (quando não é colocado como resgatar) as culturas populares, nesse sentido sendo claramente entendidas como um tipo de “símbolo do passado”? Porque é vetado, ou melhor, é procurado vetar a mudança, seja ela boa ou ruim, às culturas populares?111 A sobreposição das culturas populares com o passado, nos leva a duas questões de alta complexidade, sendo que tentarei lançar aqui algumas reflexões que possam nos ajudar no 111

Como podemos atestar através do depoimento da presidente da Fumcul, citado acima. A questão das transformações culturais também é um problema para os movimentos de patrimonialização, já que elas buscam evitar a mudança e preservar as culturas num estado “puro”, ao mesmo tempo em que consideram a modernidade, e as questões que esse tópico traz consigo, de maneira inexorável e irreversível, diríamos até fatalista. Não podemos ser extremistas, no entanto, e dizer que não há vozes dentro destes institutos, ou até mesmo programas e políticas que ensejam e vem com outros olhos o tema da mudança cultural, criando discussões sobre ela e sobre temas como, por exemplo a tecnologia. Há uma seção inteira da política do Ministério da Cultura que se dedica ao tema, por exemplo. (Ver < http://www.cultura.gov.br/culturadigital> , acessado em setembro de 2013)

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tema. As críticas formuladas geralmente giram em torno de dois problemas, que nos levam a dois tipos de abordagem, uma mais “exterior” e outra mais “interior” a respeito da própria visão sobre as culturas populares, e das pessoas que dela fazem parte. As críticas mais “exteriores” dizem respeito à apropriação/expropriação das culturas populares por parte dos estados burocráticos, e a mais “interior” é aquela que diz respeito ao congelamento, a estática dessas culturas112. Primeiramente, qual é o interesse em preservar o patrimônio cultural? Qual o interesse na própria memória, e no passado? Marli Lopes da Costa e Ricardo Vieralves de Castro (2008), (em um viés teórico embasado na psicologia social), citando Marcos José Pinheiro, propõe cinco respostas para esta questão:

A primeira seria uma tentativa de recuperar as possibilidades não realizadas como propiciadoras de um futuro mais atraente; em segundo, a volta de passados não resolvidos, sem luto ligados a processos políticos dolorosos; a terceira seria uma tentativa de reinterpretar o passado, representando uma desfiguração da memória; a quarta seria motivada pela conscientização do homem de seu atual poder de interferir na mortalidade da natureza, o que, segundo Pinheiro (2004) o levou a uma maior necessidade de armazenamento da memória como forma de se perpetuar. (COSTA; VIERALVES DE CASTRO, 2008, p. 125-126)

Interessante os autores terem tocado no assunto da “interferência na mortalidade da natureza”. Se seguirmos adiante, veremos que, segundo Laymert Garcia dos Santos (2001), a natureza e a tecnologia (e também as culturas, todas elas) foram traduzidas (nas concepções cientificistas ocidentais) em um conceito de informação, decodificada em uma língua comum que visa, em última instância, o controle da natureza pelo homem, ou melhor, o controle tecnocientífico da natureza, em termos baconianos, isto é, controle irrestrito e incontornável da natureza (SANTOS, 2001, p. 4) 113. Se há um projeto de total controle da natureza sendo 112

113

A separação entre “Interior” e “exterior”, é mais uma vez, aqui, fictícia, na medida em que tais críticas geralmente vem em conjunto, e dizem respeito a uma mesma lógica, a da patrimonialização da cultura. Assim as críticas a respeito da apropriação/expropriação são exteriores porque se referem a um âmbito maior dos conflitos ensejados nessas relações, como, por exemplo, as culturas nacionais e locais e a relação entre elas. Já as críticas em relação ao congelamento dessas culturas (locais), são consideradas “interiores” pois dizem respeito à própria visão, à concepção do “popular”, do “tradicional”. Tais críticas podem ser conferidas em Lima Filho (2009), Ikeda (2013), Graeff e Salaini (2011), Lopes da Costa e Vieralves de Castro (2008), Souza Filho e Paula Andrade (2011), Gonçalves (2005), Sandroni (2010), entre muitos outros. Ponto de vista que podia ser entrevisto já desde Karl Marx (MARX, 1985).

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posto em prática pela “cultura tecnocientífica”, porque o passado das “culturas populares”, ou melhor, elas próprias, já que elas são a própria encarnação do passado, não estariam submetidas a um processo similar, ainda mais se tratando de culturas que carregam consigo outras formas de relação com a natureza, bem distantes da citada acima? 114 Assim, grosso modo, o que há é uma tentativa de controle do passado, em contraposição a uma autoimagem “moderna” de humanidade: se preserva o passado, o passado escolhido e engessado, porque ele é um constituinte de uma suposta identidade atual; os integrantes das culturas “tradicionais” são exemplares vivos (patrimônios vivos) de humanidade (in)felizmente perdida, distante; por isso, é “essencial” sua preservação. Voltando a Lopes da Costa e Vieralves de Castro (2008), os autores nos remetem a mais uma hipótese de Pinheiro (2004), a de que as sociedades contemporâneas vivem “uma crise na estrutura das temporalidades”, devido à aceleração do fluxo informacional e imagético. Segundo afirmam, tal processo cola o passado no presente “criando um sentido de simultaneidade temporal e espacial com um permanente sentimento de defasagem, dando a sensação de um presente cada vez mais efêmero, resultando em uma busca ansiosa por reter e preservar o passado” (COSTA E VIERALVES DE CASTRO, 2008, p. 126). E, pouco mais adiante, citando desta vez Maria Letícia Ferreira:

Considerando que noções de tempo e identidade operam em conjunto para o reconhecimento de algo como patrimônio, e, mais do que reconstruir o passado supostamente conservado ou retido, a preocupação subliminar é garantir o presente e projetá-lo em um devir, a autora complementa que é fundamental ressaltar que o patrimônio é uma construção cultural, portanto, um jogo de escolhas e um espaço de conflitos. (COSTA E VIERALVES DE CASTRO, 2008, p. 126)

E é por estar num espaço de conflitos, onde a luta é a própria definição do que deve e como deve ser considerado patrimônio cultural, que os termos recorrentes são o da “saudade retórica”, onde perder e esquecer são considerados males absolutos (e irreversíveis) e lembrar e preservar considerados como panaceias sociais (COSTA E VIERALVES DE CASTRO, 114

Lévi-Strauss, em Raça e História (1952), afirmava algo semelhante; toda cultura transforma, toda cultura é científica. O autor rompe com a dicotomia ciência e vida pelo viés da experimentação, que está na base dessas outras dicotomias, embora ainda cioso da dicotomia original natureza e cultura.

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2008, p. 127). Nesse ponto, os autores Marli Lopes da Costa e Ricardo Vieralves de Castro chamam a atenção para a apropriação/expropriação das memórias patrimonializadas. Segundo os autores, o fato de saberes locais, representações, práticas, etc., serem tomados como patrimônios nacionais configura numa forma de apropriação, por parte do estado (representando o poder), dos elementos referidos acima. Seria então uma expropriação da “história dos lugares”, numa tentativa de se fazer reconhecer a nação como pertencente a saberes locais. Sua consequência lógica seria a redução da memória à história, substituindo as tramas e as redes envolvidas na produção desses saberes, por registros históricos que buscam evocar o passado de uma nação (COSTA E VIERALVES DE CASTRO, 2008, p.128)115. Alberto T. Ikeda (2013) fala em outro tipo de expropriação, na realidade, fala em devoração cultural. O autor entende por devoração cultural os diversos interesses manifestados em torno da cultura popular, com foco na própria diversidade desses interesses, que podem ser desde interesses “legítimos” na salvaguarda do patrimônio cultural, quanto interesses estritamente políticos e comerciais. A despeito dos “interesses de mérito”, que (julga-se) baseia-se em um interesse sincero na salvaguarda das culturas locais e fomento de políticas públicas voltadas ao assunto, o autor afirma que

De qualquer modo, em uma visão dialética e macroestrutural, se admitirmos que esses fatos culturais estão ligados a grupos subalternos e periféricos da sociedade, todas as iniciativas, mesmo as governamentais, e até as artísticas e de inclusão social acabam resultando em processos que de algum modo chegam às apropriações e expropriações culturais, ou na transformação de conteúdos e sentidos sociais e políticos, sobretudo quando servem para preencher programações como espetáculos artísticos em instituições culturais, ou mesmo em apresentações oficiais organizadas por órgãos públicos, como referências da cultura nacional. Afinal, o simples ato da transposição desses fatos culturais de seus locais convencionais de realização (comumente inseridos em festas e rituais tradicionais) para outros transforma a atividade em uma simples representação, uma apresentação apenas. (IKEDA, 2013; pp. 183) 115

Aqui, com esta assertiva, corre-se o risco de uma espécie de condenação da história e dos próprios historiadores, todos indexados a grande história apropriada pelo Estado. A história é, de fato, plural, mesmo que com essa “captura” da história (ver GOODY, 2006), que levaria a uma captulação dos saberes locais pelas narrativas mais palatáveis à razão histórica tal como é comumente entendida, não importando quem a detém, nos conduza a um problema sem solução... Entretanto, sugerir que “deixar” os saberes locais em seus lugares de origem seria uma alternativa possível, seria voltar a um tipo de preservacionismo (radical) como exemplificado pelos “ambientalistas” que citei acima. Nossas melhores apostas são na participação dos próprios agentes.

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No entanto, classificar como “simples” expropriação pode ser problemático, já que dessa maneira, se excluem das análises as próprias participações das populações “detentoras do bem” dos processos de patrimonialização, assim como as reflexões que fazem em torno do assunto116. De nossa experiência etnográfica, podemos dizer que os caiçaras até enxergam com bons olhos o fato de sua cultura ser considerada parte integrante (e significante) da cultura nacional, sendo esse fato visto como meio de divulgar, e, portanto, preservar (o objetivo primordial) a cultura local. Também há, reverberando a fala de Ikeda, uma diferenciação interna entre a “representação” do fandango e o fandango considerado “verdadeiro”, mas a despeito dessa diferenciação (e sua subsequente parcial recusa), que pode muito bem ser analisada à luz do que chamamos de “pessimismo estrutural”), podemos especular que os caiçaras, em especial os fandangueiros preferem ver seu fandango “representado”, mesmo que a quesito de apresentação turística, do que vê-lo “imobilizado”, “esquecido”, como o consideravam a alguns anos atrás. Um ponto a ser ressaltado aqui é sobre a imagem (e autoimagem) que se faz das populações tradicionais (que já adiantamos, é comumente tratada como a representação do passado). Pois, se há confusão entre a caracterização de um passado como sendo “mundial”, em relação aos múltiplos passados coletivos (populares), ela se dá, cremos, por uma certa inversão de valores no que diz respeito ao evolucionismo enraizado nas políticas estatais. Inversão de valores que acaba por retificar os valores que se pretendia inverter. Quando falamos de tal inversão de valores é no sentido “clássico” e evolucionista de certas concepções sobre o “popular” e o “tradicional”. Florestan Fernandes (1989), por exemplo, já indicava o interesse das ditas “classes cultas” no folclore como meio de realçar uma diferença negativa, pois no pólo onde se localiza o “tradicional” tem como destino final e inevitável o “moderno”, o “culto” (categorizando assim o popular como inculto, crendice, superstição ou até selvageria). A inversão de que falamos se trata de uma inversão de valores, no sentido em que, a partir de meados anos 1980, com a proliferação das políticas voltadas ao “popular” (entendido, de algum modo, de maneira bem diferente do léxico “povo”, que contém uma conotação classicista), se reconhece que o “tradicional” não é de todo um modo de vida 116

Um bom exemplo das participações e concepções sobre o processo de patrimonialização pode ser visto em Andrello (2013).

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“atrasado”, valorizado como algo “a ser superado”; mas valorizado como a reminiscência de um passado já perdido pelos outrora “cultos”, “modernos”, e que justamente por isso deve ser preservado. ...

Acima, comecei por elaborar uma crítica ao viés ideológico subsumido nas políticas de patrimonialização da cultura. Além de incipiente e um tanto confuso, esses construtos críticos não se direcionam exatamente às políticas públicas patrimoniais da cultura, que, como pretendo demonstrar, tem efeitos e efetividades díspares dos que podem ser considerados mais positivos e negativos. A crítica vai em um sentido pragmático, no sentido de se voltar o olhar aos efeitos (e encontros) pragmáticos que ocorrem entre as relações estabelecidas por essas políticas públicas, combinado a meus interlocutores, caiçaras e outros agentes que se encontram relacionados a alguma atividade que diga respeito ao fandango e a cultura caiçara. De outro ponto de vista, esta crítica pode confluir com a crítica direcionada aos pressupostos antropológicos (em duplo sentido) que sustentam as noções de cultura utilizadas nas políticas públicas aqui referidas e seus efeitos (sempre) contraditórios. Há, certamente, uma grande variedade de pressupostos que embasam tais políticas; duas vertentes (que redundam de diferentes maneiras em um efeito), no entanto, se fazem úteis para a proposta aqui elaborada. A primeira, é aquela que foi definida aqui como estrutural-funcionalista, uma que engessa as culturas, que por sua vez são dotadas de coesão interna e persistência no tempo; por conta mesmo de sua coesão, de sua integração, tudo o que pode vir a acontecer com elas (quando postas em relação a outras culturas) é a desintegração, ou ainda uma espécie de resistência à transformação, uma luta que, do ponto de vista caiçara, eles estão perdendo. O segundo modelo é aquele baseado em Sahlins que Viveiros de Castro chamou de estrutural-culturalista (2012), e que, diga-se de passagem, não parece ser o mais popular entre os agentes estatais elaboradores de políticas públicas (ainda que encontre analogias com este modelo com alguns agentes culturais atuantes na cidade de Cananéia). No entanto, este mesmo modelo é o que torna possível a separação entre os campos de estudos na antropologia conhecidos como estudos da cultura material e da cultura propriamente dita, separação esta encarnada em alguns dos pontos de vista patrimonialistas (e sobre estes pontos de vista). 128

Resumidamente, segundo este modelo, é sempre o contexto social/cultural o objeto destes estudiosos, sendo que tudo que vem a ser inserido neste contexto só pode ser relacionado à refração simbólica da cultura (SAHLINS, 1985 apud VIVEIROS DE CASTRO, 2012); temos assim a noção de representação, um pouco distinta da representação pós-durkheimiana do estrutural-funcionalismo. Se neste último tudo o que há “dentro” da cultura, e em última instância, ela mesma, são representações coletivas, dotadas de coerência interna, no caso do estrutural-culturalismo as representações são as sínteses da dialética entre a lógica cultural nativa e as transformações operadas de fora. Nesse sentido, Marilyn Strathern (2014) argumenta que a própria separação entre os objetos da antropologia social/cultural e o dos estudiosos da cultura material, além de ofuscar possíveis insights sobre como as pessoas lidam com a transformação e a mudança social, (no nosso caso, as pessoas tradicionais, no caso da autora os melanésios), embarca em si mesma uma visão de história e do tempo que pode não ser suficiente para dar conta deste tipo de problemática (STRATHERN, 2014, p. 212). Strathern, a partir de uma consistente crítica aos aspectos da antropologia derivada de Marshall Sahlins (mas não só), argumenta que tal antropologia é focalizada em uma noção de evento como um acontecimento singular, único e, de certa maneira, acidental, ocupando o mesmo lugar no imaginário que ela chama de euro-americano, que o de um artefato. Ademais, tais eventos teriam, em última análise, como metáfora de enquadramento, a estrutura, significando que todas as relações imbricadas no evento devem ser lidas a partir do contexto social em que se deu tal evento (STRATHERN, 2014, p. 216). Não há eventos que não tenham sido previstos ou interpretados pela cultura – em último caso, o movimento é o de interiorizar as forças sociais relacionadas a um evento para dentro dos (e de acordo com) pressupostos culturais nativos. Segundo a autora,

Tornar o contexto social (ou cultural) o quadro de referência teve um resultado importante: levou ao posicionamento que preconizava o estudo do próprio quadro (o contexto social= a sociedade). Os artefatos eram meramente uma ilustração, pois, se o contexto social for estabelecido como o quadro de referência em relação ao qual os significados devem ser elucidados, a explicação desse quadro de referência obvia as ilustrações ou as torna supérfluas: elas se tornam exemplares ou reflexões de significados produzidos alhures. Foi nesse sentido que a antropologia social pôde proceder de forma independente em relação ao estudo da cultura material. A cultura

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material passou a ser percebida como informação de fundo. Mesmo quando as formas de arte eram colocadas em primeiro plano no estudo, isso geralmente ocorria porque algum processo social, como o ‘ritual’, as tornava visíveis […] Os antropólogos sempre assumiram como tarefa apenas localizar esses objetos no interior de um quadro já descrito em outros termos (em termos dos valores e princípios gerados pelo sistema político-religioso ou embutidos na estrutura de parentesco, das relações de gênero ou do que quer que fosse). (STRATHERN, 2014, p. 225)

Strathern, desse modo, propõe uma alteração no conceito de evento, argumentando em favor do entendimento do evento como artefato e performance117. Isto ela faz baseado em seu material etnográfico melanésio, isto é, ela argumenta aqui em favor de uma etno-história melanésia, de acordo com uma concepção de tempo melanésia. Não quero aqui, trazendo este viés teórico, “melanesiar” toda uma série de pressupostos que encara artefatos (os “patrimônios”) performances e a própria cultura de um jeito bem distinto – creio eu – dos melanésios de que fala Strathern. O procedimento aqui é o da analogia, como o indicado por Roy Wagner (2010) e pela própria Strathern (2014), de forma a encontrar semelhanças, vicissitudes e diferenças que possam nos dizer algo sobre os efeitos das políticas de patrimonialização e o modo como encaram (e como adentram) essas políticas, os caiçaras. O movimento realizado por Strathern pode ser definido da seguinte maneira: em vez de encarar os eventos nos termos de sua singularidade, suas relações de poder e pelo enquadramento no contexto social dos dados eventos (modo de procedimento antropológico), se forem levados a sério os procedimentos melanésios com relação aos eventos, estes possivelmente encararam o advento europeu como uma espécie de performance, que por ser performance seria também um artefato, na medida em que, na concepção melanésia, “performances são artefatos produzidos pelas pessoas (sejam elas humanas ou não), estratagemas, exibições de destreza, até mesmo truques” (STRATHERN, 2014, p. 218). Daí que, na melanésia, as pessoas encaram as coisas como imagens-artefato, sempre produzidos por outrem, que, por sinal, elocubra uma noção de agência generalizada, isto é: a partir do momento em que se estabelece uma relação com uma performance (e, portanto, uma imagem, um artefato), principalmente uma tão distinta quanto aquela realizada pelos europeus, esta deve ter sido produzida por alguém, por alguém que não aquele que produz a 117

Creio que tal escolha teórica ainda problematize a questão do material e do imaterial, como veremos logo adiante.

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performance; com qual intenção? Por qual motivo? Por quem? E aqui, o ponto chave da analogia stratherniana:

Os produtores de uma performance são aqueles que a concebem, que lhe dão forma em sua mente diversa e acabam por realizar a exibição. A performance torna-se um índice da capacidade das pessoas […] o próprio poder das pessoas – em relação ao que haviam feito para causar uma encenação tão extraordinária […] - pode ter sido um componente inicial de seu terror. Alguém deve tê-los produzido. (STRATHERN, 2014, p. 218, grifo no original)

e seguindo adiante:

Em certo sentido uma testemunha é também um agente. Uma performance é completada pelo público (SCHIEFFELIN 1985), que pode assumir um papel ora passivo, ora ativo. Na cosmologia melanésia, o agente ou produtor de uma atividade é frequentemente separado da pessoa (ou acontecimento) que incita a ação. Assim, em muitos regimes patrilineares, os parentes maternos são a ‘causa’ das prestações que fluem em sua direção enquanto recebedores da virtude da saúde que eles concedem ao(à) filho(a) de sua filha ou irmã; os agentes ativos, que recebem o prestígio resultante da ação, são os doadores paternos das dádivas. Os doadores demonstram seu poder ao realizar uma prestação. No mesmo veio, na medida em que os europeus se apresentaram como causa da resposta das pessoas, a capacidade de agir ficou do lado de quem respondeu. Os europeus seriam uma causa inerte de toda essa atividade. (STRATHERN, 2014, p. 218-219)

A autora, desse modo, recusa a questão da singularidade atribuída ao advento dos europeus, afirmando que talvez a surpresa da reação dos melanésios se deva à própria percepção de que os eventos que então ocorriam – a chegada desses estranhos “seres”, os europeus – deveriam ser de responsabilidade deles, eram o resultado de alguma ação, era provocado por eles; desse modo, recusa também a atribuição de poder somente do lado dos europeus, já que toda a agência contida em tal evento-artefato, se iniciava a partir da própria reação melanésia, e não do evento-artefato em si. E assim, Strathern recusa também um 131

terceiro elemento caro à antropologia a que ela está criticando, a questão do contexto como enquadramento a partir do qual se devam derivar as explicações. Cito novamente a autora:

Um artefato ou uma performance, quando apreendidos em si mesmos, o são como imagem. Uma imagem, sem dúvida, existe fora de um contexto ou, inversamente, contém o próprio contexto que a precede. Todos os problemas residem no que deveria ser o resultado vindouro da performance, em suas consequências para o futuro, no que seria revelado em seguida, em suma, em seu efeito ulterior. ( STRATHERN, 2014, p.220)

Esta longa digressão serve mais para trazer à tona, de forma resumida, alguns dos pressupostos teóricos que levam a formulação da autora dos eventos como performances, com a qual pretendo estabelecer uma analogia. A proposta segue a seguinte linha: aliado aos argumentos ingoldianos citados acima sobre a (i)materialidade das coisas, mas sem, no entanto, recair em uma espécie de “fenomenologia” (usando o termo livremente) “pura” da “cultura”, ou seja, no fenômeno da cultura como algo incidental, avaliado de acordo com eventos chave que transformaram esses fenômenos em outros fenômenos, propõe-se, baseado na noção de performance melanésia, como elucidada por Strathern, estudar esses mesmos fenômenos nos termos de seus efeitos. Apropriando-me mais uma vez do próprio texto da autora:

Um evento tomado como performance deve ser conhecido por seu efeito: ele é compreendido em termos do que contém, das formas que oculta ou revela, do que está registrado nas ações de quem o testemunha. Uma sucessão de formas (cf. WAGNER, 1986b:2rn) é uma sucessão de deslocamentos, sendo cada uma delas uma substituição do que sucedeu anteriormente, e assim, em certo sentido, contém tanto o que veio antes quanto seus efeitos sobre a testemunha. Nesse sentido, cada imagem é uma nova imagem. Como consequência, o tempo não é uma linha que divide os acontecimentos; ele reside na capacidade de uma imagem evocar o passado e o futuro simultaneamente.” ( STRATHERN, 2014, p. 215)

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Bem sei o quanto pode ser problemático “importar” assim uma categoria analítica que fora elaborada de uma maneira bem distinta (e distante) do que poderia permitir minha própria experiência etnográfica. O intuito, entretanto, não deve ser totalmente infrutífero, na medida que julgo ser útil, no sentido estrito do termo, uma focalização maior nos efeitos que as performances provocam, tanto no caso das performances de fandango dos caiçaras (e dos outros agentes “envolvidos”), quanto nas performances estratégicas (“políticas”) dos vários grupos envolvidos com fandango e com a cultura caiçara. E, aliás, a proposta do entendimento de tais performances (aqui incluindo aquelas caiçaras e as performances políticas de agentes culturais não-caiçaras, p.ex. políticas patrimoniais) tendo em vista seus efeitos, não pode ser considerada nenhum tipo de novidade. A antropologia realizada por Manuela Carneiro da Cunha, por exemplo, é, ao meu ver, uma antropologia preocupada com os efeitos, sejam eles efeitos da reflexividade de conceitos como o de “cultura” (CARNEIRO DA CUNHA, 2009), ou dos efeitos de políticas públicas em um sentido local (CARNEIRO DA CUNHA, 2005). De todo modo, quais são os efeitos de se entender como performance as práticas culturais que ensejam o fandango? Por outro lado, como podemos entender o fandango, geralmente entendido como uma “expressão cultural”, em um sentido inverso, isto é como performance-artefato, como constituinte de cultura ao mesmo tempo em que se constitui por ela, e não apenas (in)formada por cultura?

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Conclusão

A proposta de “inversão” do sentido em que cultura é usualmente compreendida se presta a uma tentativa de exprimir nessa mesma compreensão as transformações pelas quais a cultura não só “passa”, mas as que ela mesma engendra, ou seja, envolve a questão da agência, do ato criador (em si mesmo, também, sempre uma recriação) como elemento-chave do manejo de um conjunto de transformações e permutações que são a própria cultura. Cultura, assim, apesar de poder – e ser, no caso aqui presente – encarada de um ponto de vista holístico, ela não é um conjunto que encerra hermeticamente elementos rígidos e nem logicamente anteriores às próprias relações que a constituem. . A cultura é formada pelas relações

de qual ela faz parte, em que ela se entremeia, como conceito, como categoria analítica ou na forma de pressupostos ontológicos culturalmente informados (e geralmente, ao mesmo tempo, como afirma Manuela Carneiro da Cunha [2009]). Nesse sentido, as propostas contidas nessa dissertação não podem ser lidas como uma tentativa de “superação” de certos conceitos ou dicotomias há muito estabelecidas no linguajar e nas práticas do que chamamos aqui de agentes culturais. O trabalho aqui feito deve ser entendido como uma tentativa de desdobramento e a multiplicação das diversas categorias que envolvem essas distinções, como “interno” e “externo”, “imaterial” e “material”, “natureza” e “cultura”, o “novo” e o “velho”, todas elas, de uma forma ou de outra, muito caras tanto à antropologia social, quanto aos contextos onde a cultura é experienciada como algo objetivo, como parece ser o caso aqui exposto – “objetivo” no sentido de ser uma causa, e, ao mesmo tempo, ser um objeto manipulável pelas relações sociais envolventes. Terminei o capítulo anterior questionando quais seriam as vantagens de se tomar não só o fandango, bem como as ações que o envolvem, seja por parte dos fandangueiros e dos caiçaras, como de agentes governamentais e de outros agentes culturais, como performances, seguindo a formulação de Marilyn Strathern (2014). Se entendermos estas performances pelo crivo dos efeitos que estas geram sobre um determinado contexto, argumento que podemos classificá-los em dois fenômenos distintos, que se desdobram em múltiplos significados – isto é, são encarados e utilizados de diversas maneiras (pelas e) para as pessoas envolvidas. Esses dois fenômenos são a objetivação da cultura e a justaposição (ou “deslocamento”) dos

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contextos118. Comecemos pelo último. Se nos fiarmos na análise das performances a partir de seu contexto social, podemos chegar a uma conclusão similar à de Mônica Carvalho e dos foliões da Freguesia do Ó (2010), por exemplo, argumentando que, dado que uma performance pertence a um contexto original, ao ser deslocada de sua rede de relações estabelecida tradicionalmente, esta performance perderia o sentido. Assim, quando uma performance é realizada em um evento como o Revelando São Paulo, um festival cujos propósitos é centrar na noção mais preservacionista de cultura tradicional, por ser realizada tanto em locais quanto com objetivos distintos daqueles pressupostos na performance entendida em seu contexto de origem, esta performance deslocaria, junto consigo mesma, a própria cultura, ou, de forma mais grave, deixaria de ser parte dessa mesma cultura.

Se, contudo, seguirmos a linha de raciocínio stratherniana (STRATHERN, 2014), podemos entender essas performances como geradoras de contexto (ao mesmo tempo em que informadas por um contexto específico), que se propõe e atualizam na forma de imagens. Dessa maneira, ao deslocar-se, uma performance ao mesmo tempo desdobra-se em novas redes de relações, reafirma outras mais antigas, cria novos pontos de contato com outras culturas e performances, em suma, cria um novo contexto e uma nova imagem (de sua cultura, por exemplo). O caso relatado anteriormente, sobre as apresentações de fandango no Revelando São Paulo em sua edição do Vale do Ribeira, pode nos ajudar. Deslocam-se diversos fandangos de diferentes localidades, como Cananéia, Ribeirão Grande, Itaóca e da cidade-sede Iguape (embora não deslocado geograficamente, deslocado contextualmente, em um sentido geertzeano desta vez [GEERTZ, 1989]). O festival, ao reunir estilos de fandango diferentes e ao agrupá-los em apresentações consecutivas em sua programação, justapõe esses estilos uns aos outros, abrindo margem para a marcação de diferenças e similaridades por parte dos próprios fandangueiros. Entre essas demarcações estilísticas, abre-se espaço para a averiguação do fandango em causa nos termos de sua tradicionalidade, muito embora, por muitas vezes, os fandangueiros não levem em consideração as diferenças sociológicas, 118

Não pretendo sobredeterminar, ou ainda, reduzir os efeitos das performances aqui expostas a esses dois tópicos aqui discutidos. Seria melhor entendê-los como os efeitos com os quais, enviesado pela experiência etnográfica, e delimitado pela minha própria capacidade intelectual, tive condições de analisar. Entretanto, creio que a importância desses fenômenos listados e discutidos aqui será um tanto evidente para aqueles que demonstram algum interesse pela cultura como entendida para além dos limites disciplinares antropológicos, isto é, pelo movimento observado entre cultura como conceito acadêmico e cultura como categoria nativa, movimento esse de que tanto fala Manuela Carneiro da Cunha (2009).

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culturais e contextuais dos diversos jeitos diferentes de se fazer fandango. Note-se que, segundo a interpretação contida nos parágrafos anteriores, a questão da agência no que concerne à justaposição dos contextos refere-se somente à parte “guiada”, digamos assim, pelos organizadores do festival. E não há muito ao que recorrer nesse caso, pelo menos no que toca a questão da forma das apresentações, já que, pelo que disseram meus interlocutores, a organização do festival é pouca aberta às mudanças sugeridas de fora (supondo que existam sugestões nesse sentido, o que a fala desses meus interlocutores parecia indicar). Não obstante, como confirma o caso dos foliões da Freguesia do Ó, como relatado por Mônica Carvalho (2010), os performadores de determinada cultura podem muito bem, simplesmente, não ver com bons olhos o novo contexto (imagem) gerado(a), isto é, podem entender essa nova configuração como negativa para sua cultura, embora não signifique uma recusa definitiva em participar dela (como foi o caso da Folia de Reis da Freguesia do Ó). Um outro exemplo trazido aqui que ilustra uma coparticipação em vez de uma recusa total à sobreposição de contextos diferentes é o do turismo. Podemos entender a distinção do fandango feita aqui, seguindo as concepções dos fandangueiros, em fandango de apresentação e genuíno como o meio mesmo pelo qual os fandangueiros tentam dar conta dessa justaposição. Segundo me afirmaram, a forma fandango-apresentação surgira de uma dupla demanda: a necessidade de “revitalização” da cultura local e a demanda do turismo em conhecer os “atributos” culturais para além dos naturais, para o caso aqui etnografado. Desdobremos o argumento em duas questões. A primeira seria o da forma-apresentação. Apesar de a grande maioria dos fandangueiros da região fazerem ou terem feito parte de grupos de fandango deste tipo, a grande maioria também apressa-se em criticá-lo (gerando até mesmo curiosas intrigas do tipo “Apresentação são (d)os outros. O nosso é genuíno”). Isto acontece porque a forma de apresentação é questionada como não tradicional, voltada para o turismo, para fora. Nesse sentido, ampliando um pouco o escopo da crítica caiçara ao turismo, estes seriam categorizados como o “bom” turista e o turista “ruim” (que consideram ser o padrão). O primeiro tipo seria o turista que demonstra respeito pela região, seus lugares, suas pessoas, sua cultura; que, mais do que se interessar, busca compreender as diferenças, traduzidas muitas vezes na forma de “dificuldades”, como a falta de energia elétrica e de esgoto tratado (caso da

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Vila do Marujá), mas, obviamente, que não se reduzem a elas. O bom turista seria aquele que, por exemplo, entende que tanto a comida, quanto a pessoa que a serve tem modos específicos e diferentes de se fazer a comida ou de servi-la. A contrapartida, o turista “ruim”, seria aquele que não demonstra nenhum respeito por algumas das coisas citadas acima, mas que parece apenas buscar aquilo que “ele pode fazer em qualquer lugar”, em busca de “bagunça”, de “zona”, como afirmara o residente da Vila do Marujá, Laurinei das Neves. É, também, aquele que reclama pelo atendimento nos serviços de restaurantes e hotéis, dos guias, etc., por não serem “eficientes”. Resumindo, o turista mal visto pela população local é aquele que não consegue se desprender de seu contexto familiar e “apreciar”, ou, pelo menos, se “adaptar” às diferenças intrínsecas da cultura local. Mais ainda, no que diz respeito ao fandango, a própria forma-apresentação parece ser fruto de um tipo de justaposição de contextos-imagens muito diferentes. Isto nos traz de volta a história do “fim” do fandango nos anos 1990, a segunda questão sobre o seu processo de revitalização. Ao mesmo tempo em que parece haver um consenso sobre a história de como o fandango deixou de ser praticado nesse período, também parece haver um consenso a respeito de uma ressalva: o fim dos mutirões, a principal justificativa do fim do fandango, não foi bem um fim, ele apenas perdeu (e muito!) o ritmo constante em que era praticado, o mesmo podendo ser dito dos bailes de fandango. Contudo, ao contarem a história, os fandangueiros da região parecer preferir dar ênfase ao “fim” do fandango. Isto pode ser devido ao fato de que, nesse período, apenas o pessimismo era predominante como análise (nativa) válida do futuro do fandango. Não havia, a esse respeito, a conversão desse discurso em ação prática, ou, pelo menos, se acreditava que não havia. Contudo, esta não é uma resposta satisfatória, já que, em alguns casos, dependendo da perspectiva de um determinado fandangueiro, ele pode nos afirmar o fim do fandango hoje, desconhecendo ou preferindo ignorar as formas de fandango mais recentes (ou ainda, a despeito delas). Também não é uma resposta satisfatória pois repele, por assim dizer, toda a agência ativa dos fandangueiros nesse caso, ao afirmar que a revitalização do fandango se deu de “fora” para “dentro”, pois, como argumentado, as ações que visam a revitalização de uma cultura são o pessimismo (estrutural) convertido em ação para que não se atualize os próprios eventos anunciados pelo pessimismo. É bem possível que os turistas que “demandavam”, nas palavras de Salvador das Neves, “a apresentação da (nossa) cultura” não “achassem” o fandango por conta própria; que embora (com menor frequência) ainda fossem realizados, os 137

turistas não tinham acesso a ele. Lembremos que o fandango é visto como, para além de uma expressão cultural típica, uma festa familiar (com um sentido de família que se estende a vizinhos locais). É muito difícil que turistas, a menos que criem laços afetivos mais ou menos consistentes com a população local – o que, convenhamos, é, na maioria das vezes, improvável ou inviável – tenham acesso aos bailes considerados mais tradicionais, mas não por que os caiçaras o proíbam, mas sim porque os turistas raramente demonstram interesse pelo baile, em contraste com a apresentação de fandango, e isso é um fato constatado pelos fandangueiros atualmente. Segundo dizem, os turistas, em termos de baile, interessam-se apenas por bailes de forró e de sertanejo (com preferência ao primeiro estilo), sendo este inclusive um fator considerado na hora de se explicar o desinteresse dos jovens caiçaras pela cultura local, o interesse dos turistas refletindo no interesse dos jovens locais. Se o turismo “demandou” uma apresentação da cultura local, o fez também em seus próprios moldes, como sugere Sahlins, (1997). Isto não significa, novamente, uma ausência de ação por parte das pessoas envolvidas com o fandango (embora demarque uma notável falta de autonomia, um problema amargo para meus interlocutores), mas que devido a uma percepção estratégica, a de que tal tipo de apresentação poderia servir – e bem – aos fins da “revitalização” do fandango, os fandangueiros da região vislumbraram uma chance de, a um só tempo, resgatar o fandango e e utilizá-lo como instrumento de lutas políticas que, aos olhos “estrangeiros”, estariam apartadas da cultura, como, por exemplo a questão ambiental e territorial (que na verdade são um problema só). Tanto o resgate como a manipulação do fandango como argumento político se deu através da criação de um novo tipo de fandango o de apresentação. No entanto, se o fandango na forma de apresentação é visto com ressalvas, por parte de fandangueiros que fazem ou não fandangos desse tipo, creio que tais ressalvas se dão por conta de que mesmo que a forma-apresentação seja algo relativamente “novo” e, no limite, “importada”, digamos assim, ela é pensada e formatada pelos moldes culturais caiçaras, em acordo com as sugestões de Sahlins (1997). É, de fato, uma forma nova, que gera reclamações por parte dos fandangueiros quando contraposta ao fandango “tradicional”, mas que está imiscuída na cultura local de tal maneira que gera alguns tipos de conflitos com a imagem que dela fazem os turistas e outros agentes alhures. Um deles mencionei acima: a separação que se faz, pelas lentes desses agentes

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“externos”, entre uma apresentação da cultura local e a concepção de festa como compreendida pelos turistas. Onde o fandangueiro apresenta seu fandango como sendo música e dança de festa, que, de certo modo, apenas contextualmente estão sendo apresentadas sob uma forma específica, para os turistas geralmente o fandango é tão somente uma apresentação da cultura da região. As festas realizadas durante a alta temporada são informadas por contextos mais atrelados às concepções dos próprios turistas do que da cultura local. E quando turistas se dispõem a participar de uma festa “típica” o fazem novamente tendo em consideração apenas suas concepções do que seria uma festa (em forma e conteúdo). Um exemplo: José Marques, artesão que há mais de 30 anos se estabeleceu em Cananéia, e que, assim como meu anfitrião Amir Oliveira, trabalha no Grupo de Fandango Batido São Gonçalo119, me contou que estava sendo organizado no bairro do Ariri (localização no mapa abaixo) um evento de três dias, que contaria com um dia de baile de fandango e dois de forró. Dissera-me que não entendia bem o porquê de a cultura local ser subvalorizada com relação a outros estilos, mas entendia o intuito (apesar de não gostar) de tentar atrair pessoas para o evento com o forró, mais apelativo entre jovens, turistas e pesquisadores que se estabelecem temporariamente na região, como forma de chamar a atenção para o fandango. Entretanto, um familiar de um dos organizadores do baile de fandango falecera poucos dias antes do evento (não posso confirmar a informação, mas parece que era o primo de uma das anfitriãs do baile).

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Apesar de fazer parte das atividades do grupo, José Marques não se considera fandangueiro, por não tocar algum instrumento ou dançar o batido. Sua contribuição ao grupo é mais logística, digamos assim, cuidando de diversos outros fatores que envolvem o grupo, como por exemplo, os editais ou até mesmo transporte do grupo de uma localidade a outra.

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FIGURA IV: mapa retirado de

O costume, quando do falecimento de um familiar, nesses casos, é a não realização do baile de fandango (como na Quaresma, época em que também não se realiza o fandango), como forma de respeitar o luto da família e prestar homenagem aos falecidos. O problema foi que outros organizadores do evento como um todo, alguns ligados ao ponto de cultura local (ao que parece), pressionaram contra a possibilidade de cancelamento do baile de fandango, não compreendendo o porquê (nas palavras de José Marques) de a morte de um familiar de certa forma “distante” impedir seu acontecimento. Argumentaram que várias pessoas haviam confirmado presença, comprado passagem para Cananéia, que iriam se frustrar ao não poder “contemplar” a cultura local, entre outros argumentos que pendiam sempre para o “respeito” com os visitantes, quero dizer, eram sempre argumentos voltados para fora. José Marques terminara de me contar a história com a seguinte conclusão: “é por isso que vira essa zona, esse negócio de apresentação. Os caras vêm de fora e acham que é isso, que é só paga e espera que vem um caiçara e toca o fandango pra ele, não importa quando, não importa onde. E tem 140

gente que submete ainda!!” Dessa maneira, segundo a fala de José Marques, os organizadores do evento não compreendiam nem os signos religiosos marcados pelo fandango, nem os familiares e, portanto, nem o próprio fandango, dando um ótimo exemplo do que Mauro Almeida poderia chamar (des)encontro ontológico pragmático (1999, 2007, 2014). A despeito disso, ele não via nenhuma contradição com relação à crítica feita à “apresentação pela apresentação” e o Grupo São Gonçalo. Isto deve-se, como comentado no início da dissertação, ao fato de não necessariamente o fandango precisar ser localizado entre os dois tipos aqui discutidos. Ele pode tomar a forma do baile ou da apresentação, mas é o seu sentido – voltado para fora, para o “exterior”, ou voltado para a própria comunidade – que o qualifica e hierarquiza os grupos (e os fandangos junto) uns em relação aos outros, sendo que, não é preciso dizer, nessa escala, o fandango que se localiza na ponta da apresentação está no extremo negativo, e o baile, no extremo positivo, sendo que quase nenhum fandango atualmente se localiza “puramente” num ou noutro extremo. Curiosamente, quando o assunto é as condições de reprodução e de realização do fandango, a relação é invertida; os bailes são os que “correm mais perigo”, ao passo que o fandango de apresentação vem se multiplicando. Se alguns fandangueiros não veem contradição entre criticar abertamente o fandango de apresentação ao mesmo tempo em que o pratica e o expande (desta vez, reformulando o vocabulário de Mauro Almeida, promovendo uma concessão pragmática [em vez de um acordo]), os agentes públicos e privados não-caiçaras entremeados na rede de relações do fandango também não. Não parece haver, com relação às ações tomadas por entidades governamentais e ONGs que se envolvem com a cultura local, a preocupação em distinguir o fandango nos termos de suas transformações, criações, de suas novidades, como é a forma de apresentação. O fandango é tomado como uma manifestação unívoca, indistinta internamente, apesar de as transformações “externas” serem bem demarcadas. Desse modo, a justaposição de contextos aparece sob a forma da identidade caiçara como sobrepondo a identidade mais ampla “brasileira” – como se dá nas preocupações expressas, por exemplo, no processo de patrimonialização do fandango, onde a importância do fandango para os caiçaras é submetida à importância da identidade caiçara para a formação de uma identidade nacional (DOSSIÊ FANDANGO, IPHAN, 2011). Por mais que se ressalte, tanto nos estudos acadêmicos sobre o patrimônio cultural

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(ARANTES, 2012; CARNEIRO DA CUNHA, 2005), quanto nos textos-base para a ação patrimonial e nos dossiês elaborados para a obtenção do registro em algum dos livros de registro, o caráter transformativo e dinâmico da tradição, dos saberes e expressões tradicionais, quando dada em termos práticos, essa dinâmica é limada pelo sobrepujamento de uma identidade nacional colocada no presente e uma identidade local que é lançada no passado como modo de criar uma linha de continuidade entre as identidades. Uma vez estabelecidos os parâmetros de uma ação de resgate, conservação, manutenção, etc., da cultura tradicional, ao colocá-la como uma parte de um todo maior, o efeito prático de tal ação é uma reorganização do imaginário sobre o fazer, o tempo das culturas e sua localização. A cultura local, dessa maneira, se torna, de certo modo, global, na medida em que, não importando de qual cultura local esteja se falando, e o quanto se ressalte suas especificidades e dinâmicas “internas”, ela cumpre uma espécie de função, que caminha sempre no sentido de uma identidade “menor” (local) para uma identidade “maior” (nacional e quiçá global – como parte integrante da humanidade). A cultura local é, assim, global em, pelo menos, dois sentidos, como argumenta Strathern (1995, p.165-168): ela é global na medida em que (seguindo as teorias de Marshall Sahlins) toda cultura tem uma concepção que abrange o todo, como um todo, o mundo em sua volta, de acordo com pressupostos próprios; e é também global no sentido de que opera como uma parte de um todo maior, não importando quando e onde. Mas aqui o que é global é o ponto de vista do qual se enuncia e não os termos. Isto é, a cultura local se torna global não por uma suposta generalização da própria cultura em consideração, mas por uma generalização de como as culturas minoritárias fazem parte de um todo, que pode ser a nação ou a humanidade, servindo o esquema para dar conta de toda e qualquer cultura. Já com relação ao tema da objetivação da cultura, sendo vista como um efeito performático – isto é, derivado das (idealiz)ações transmutantes e transformantes que envolvem, constituem e são constituídas pelas práticas culturais –, tem sido uma ocupação constante da antropologia, especialmente aquela preocupada com questões sobre o patrimônio cultural (intangível ou não). A esse respeito pode-se dizer que a própria definição de patrimônio como formulada, em sua raiz, por assim dizer, é uma definição que necessita, para fazer algum sentido, de um certo “grau” de objetivação cultural. Mais ainda, a objetivação da cultura, longe de ser peculiar a um conjunto de práticas políticas (patrimoniais) e apenas uma preocupação para estudiosos sobre o tema, é um fenômeno mais generalizado, que assume 142

formas e conteúdos variados de acordo com contexto implicado, ou seja, de acordo com a rede de relações como formulada pelo “objeto” em questão: a cultura. O problema não está assim, localizado no próprio ato de objetificar, mas nos significados imbricados no ato de objetificação. Quando formulado sob a perspectiva do patrimônio, esse ato evoca os significados que estão atrelados ao conceito que, por sua vez é “uma extensão metafórica, a de uma noção jurídica concernente ao direito de propriedade sobre ‘coisas’, bens, móveis ou imóveis, para o campo da cultura.” (COELHO DE SOUZA, 2010, p. 151). Nesse sentido, a discussão sobre a (i)materialidade da cultura ganha novos contornos se lida como uma mudança de paradigma nas políticas que envolvem o patrimônio cultural. Pois, se o próprio conceito de patrimônio é atrelado ao conceito de propriedade, uma vez feito o movimento de estendê-lo ao campo da cultura, estende-se também uma noção de propriedade que carrega consigo a própria definição do que é material ou imaterial (ou humano e não-humano, natural e cultural, novo e velho, etc,). Diversos estudos sobre os efeitos práticos de uma política patrimonial em coletivos indígenas atestam uma dificuldade, uma assimetria entre os conceitos e distinções relacionados ao patrimônio e aos regimes de propriedade que, não obstante, de criativas formas e com resultados mais ou menos efetivos, é simetrizada “forçosamente” através da própria transformação dos conceitos envolvidos (indígenas ou não) ou da criação de novos.120 Se por um lado a noção de patrimônio advém de uma noção de propriedade jurídica, por outro a noção de imaterial também advém de contexto próprio. Dessa maneira, a mudança de foco constatada nas políticas de patrimonialização 121 – antes voltadas para os aspectos materiais, para a concretude dos objetos, principalmente dos objetos “duráveis”, a famosa política da “pedra e cal”, e, mais recentemente, voltadas para os aspectos intangíveis, expressões e saberes, festas, entre outros – pode ser entendida sob duas perspectivas: a primeira, é a que concerne a uma democratização dessas políticas, na medida em que o patrimônio “durável” e “concreto” era relacionado com uma suposta “cultura nacional” unificada, sendo os patrimônios selecionados sempre representativos das elites brasileiras, e o patrimônio intangível, imaterial, com as culturas populares – evocando assim uma noção de 120

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Ver, nesse sentido, o excelente número 32 da Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, organizado por Manuela Carneiro da Cunha, sobre Patrimônio Imaterial e Biodiversidade (2005). Sobre esta mudança de foco ver Arantes (2005) e, para uma leitura mais concisa, Coelho de Souza (2010).

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materialidade diretamente relacionada com o imaginário sobre a riqueza e o prestígio. O segundo movimento, diretamente relacionado com o primeiro, é a metáfora do imaterial como sendo imediatamente o cultural, quer dizer, o conceito de intangível e de imaterial são, grosso modo, equivalentes ao conceito (antropológico) de cultura. Sendo primeiramente colocada nesses termos, a mudança de foco dessas políticas pretendia, também, dar conta de superar as noções sobre patrimônio que ligavam o material às elites e o intangível às culturas populares. Digo que pretendia, pois teve como efeito prático não a realocação, ou a reconfiguração, das categorias que remetiam ao imaterial e ao material, mas o seu próprio questionamento, isto é, ao diversificar o foco das ações patrimoniais, “descobriu-se” a própria diversidade de distinções desse tipo (ou sua ausência). Se desvio um pouco dos temas discutidos nessa dissertação, dando atenção para a questão do imaterial, é porque esta noção se encontra no cerne da reformulação do conceito de patrimônio que guia certas políticas públicas que tem como referência a cultura. Deste modo, o que se pode dizer é que, apesar dos esforços para abarcar a diversidade cultural (rompendo com o elitismo marcante da política da “pedra e cal”), o léxico patrimonial (ainda) falha em se desprender do sentido literal, e dos significados que evocam a palavra patrimônio. Segundo Coelho de Souza:

A própria estratégia adotada, de extensão do conceito de patrimônio (no sentido não marcado, isto é, como patrimônio material) para todo o campo de fenômenos que os antropólogos costumam chamar de cultura (no sentido não marcado, isto é, como cultura imaterial), não poderia jamais romper o enraizamento mesmo do novo construto, o ‘patrimônio imaterial’ naquele do qual foi derivado, o patrimônio ‘propriamente dito’'— ou o novo construto perderia sua força, e sua razão de ser. (COELHO DE SOUZA. 2010, p. 150-151)

Assim, uma noção de patrimônio como bem, cultural ou natural, tangível ou intangível, passível de ser protegida, mantida, resgatada e transmitida, enfim, como propriedade cultural, evocando significados particulares, elaboradas dentro de um esforço imaginativo que buscava construir a “identidade nacional” se vê estendida na direção de uma percepção multicultural da vida. Desse modo, uma noção como patrimônio imaterial tem 144

como papel, ainda segundo Coelho de Souza, “aquele de acomodar esse projeto de constituição e afirmação de uma identidade nacional aos presentes ideais democráticos e multiculturalistas” (COELHO DE SOUZA. 2010, p. 151 ). Nesse ponto, as ações patrimoniais atuam extensivamente como meios de se objetificar a cultura, torná-las um bem, uma propriedade. Objetivar aqui faz parte daquele processo denominado de essencialização, discutido por Michael Herzfeld (2005), e tal essencialização seria, de todo modo, inevitável. Pois patrimonializar é classificar, é efetuar uma ciência da classificação (à moda dos “pré” modernos de Latour [1994], ou ainda, à la Lévi-Strauss [1958], ao estilo de Durkheim [1912]) e constitui a dinâmica de apreensão do Estado quando seus olhos estão voltados para a cultura. O Estado não produz, não inventa nada do nada e o que faz é reposicionar, justapor o quebra-cabeça numa forma inteligível em que se produz um jogo de espelhos interculturais e assim tenta diminuir as estranhezas, quer dizer, são colocadas em conjunto inferências e asserções sobre manifestações díspares, como a folia de reis da Freguesia do Ó e dali para um fandango no Marujá e percebe algumas continuidades, algumas “brasilidades”, isto é, linhas de continuidade entre identidades, que de outro modo, estariam, digamos, descontinuadas. Esse tipo de movimento pode ser muito útil para as populações que são diretamente afetadas por tais políticas, a despeito de engendrarem, ao se relacionarem com tais conceitos, sentidos diversos para as noções como a de propriedade, ou entenderem sua objetificação de uma outra perspectiva. Isto porque, ao acoplar a noção de patrimônio à noção de cultura, as políticas oficiais que visam a cultura abriram o espaço pretendido por essa mudança; a noção de bem, de propriedade poderia ser aplicada a qualquer aspecto diferenciante de uma cultura, na medida que a própria democratização das políticas patrimoniais se deu por conta da ubiquidade do conceito antropológico de cultura acoplado, adicionando mais um (poderoso) elemento na reivindicação de direitos diversos (com destaque, no caso aqui presente, para a disputa territorial). Se a objetivação da cultura pode ser útil aos seus “detentores”, ela não se faz útil sem dispor de certas tensões criadas pela discrepância na disposição dos conceitos envolvidos. Ademais, diria que os benefícios adquiridos só se dão através da exploração das próprias tensões, na medida em que eles (os benefícios) dependem de acordos pontuais entre os agentes envolvidos sobre essas tensões. E é aqui que a objetivação da cultura adquire um sentido particular no caso aqui explorado.

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Stuart Kirsch (2001), em artigo sobre a “perda cultural” dos habitantes das Ilhas Marshall, distingue dois tipos de propriedade cultural diferentes, propriedade de posse e propriedade de pertencimento, defendendo que o uso de tal noção só seria frutífero para a compreensão das alegações de “perda” caso se pudesse compreender a diferença entre os dois tipos de propriedade, e caso se pudesse compreender, caso a caso, qual dos dois tipos de propriedade está se falando, ou se de ambos os tipos. Adicionaria ao esquema do autor, baseado na pesquisa etnográfica, ainda um terceiro tipo, o de propriedade ontológica. Isto porque, apesar da noção de propriedade (cultural) utilizada pelos caiçaras ao se remeter ao fandango poder estar de acordo com as noções descritas por Kirsch, ou implicadas às noções de propriedades sugeridas nas políticas patrimoniais, além de ser uma propriedade de posse (é dos caiçaras, como marcador diacrítico identitário) e de pertencimento (é uma forma de pertencimento caiçara, como atesta as relações de parentesco [KIRSCH, 2001, p. 169] envolvidas por ele), o fandango é uma propriedade do ser caiçara. É próprio do ser caiçara participar e/ou fazer fandango, e todo o problema para eles se encontra aqui: é uma forma de propriedade cultural que, mesmo sendo acessível a todos e mais do que isso, própria de seu ser, ontologicamente indispensável (sendo assim o “fim” de sua cultura diretamente relacionado com o “fim” do fandango), está deixando de ser praticada. Note-se, é uma propriedade praticada; ao ser colocada nesses termos ressalta-se mais o seu caráter de qualidade, de qualificativo do que é ser caiçara, do que na forma de um pertencimento ou de (menos ainda) uma posse (embora possa ser qualificada como ambos, como afirmei). E talvez tudo isso para dizer que, antes de se objetivar como “forma de propriedade”, ou ainda, qualificativo identitário, o fandango seria da ordem ontológica porque é uma forma de relação social própria caiçara. E nesse caso, podemos falar que tal forma de relacionamento é permeada, ou melhor, guiada por aquilo que chamei de pessimismo estrutural. Toda a ênfase dos esforços dos fandangueiros e dos caiçaras com relação a sua cultura é colocada no fato eminente de seu “fim”. Este é ao mesmo tempo o pano de fundo e o foco das transformações culturais caiçaras, seu leitmotiv, e a guisa de conclusão, discutirei – mais uma vez – esse motivo. Ademais, argumento que essa é a própria maneira de objetivação da cultura caiçara. Objetivação ganha assim um sentido diverso porque, através do que chamei de pessimismo estrutural, o caiçara objetifica sua cultura não apenas nos termos de se visibilizar a cultura (materializar o imaterial), ou ainda de torná-la uma propriedade – o que já é e, creio eu, em 146

um sentido mais forte do que o proposto nas políticas patrimoniais ou no texto de Kirsch. Mas o torna causa, objetivo para além do objeto, algo pelo qual se constituem relações sociais que acabam por transformar a própria cultura sem, entretanto, transformar o objetivo de se agir por ela (pelo menos não em ritmos congruentes). O tom do discurso que torna objetivo (além de objeto) o fandango e a cultura caiçara é o tom da “perda”, do “fim”, que discutiremos a seguir.

Pessimismo Estrutural

Temos aqui então um ponto chave para o entendimento das relações entre as políticas de patrimonialização, tomadas em conjunto como frutos das agências de instituições estatais e ONGs, e as concepções das pessoas que “detém” determinado bem cultural em relação à própria “cultura”, visando as ações a serem tomadas com relação a esses bens. Ao tratar o assunto sob o conceito de ressonância, a tentativa é justamente de eliminar um divisor, aquele que separa as ações dos grupos em “exteriores” (instituições oficiais e ONGs) e “interiores” (as “populações tradicionais”, os “nativos”, etc.). Não nos fará mal voltarmos um pouco à etnografia aqui, no sentido de explicitar melhor o termo ressonância e pontuar mais uma vez o que é o pessimismo estrutural. Já mencionei antes o fato de que, quando estive pela primeira vez em campo, no ano de 2010, eu tinha uma visão ingênua122 sobre os fandangueiros caiçaras e sua “arte, música e dança”, achando que o meu trabalho se resumiria a etnografar o fandango, bem ao modo das etnografias clássicas – ou seja, minhas concepções de cultura e etnografia estavam bem cristalizadas em uma imagem exploratória da antropologia, que colocava de um lado os nativos a serem estudados e do outro o trabalho da antropologia. Este é, segundo Roy Wagner (2010) o modo pelo qual os antropólogos, costumeiramente, criam as culturas nativas. Os primeiros contratempos, porém, ao meu empreendimento “clássico” não 122

Imagem essa construída em grande medida não só pela inexperiência do autor, mas também em muitos livros e depoimentos sobre o fandango que são resultados direto das políticas de patrimonialização e afins, como o Museu Vivo do fandango (2006).

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demoraram a surgir: era difícil achar um fandangueiro que não tivesse uma visão pessimista sobre a cultura caiçara, dizendo que o fandango iria se acabar, e que bastava dar uma olhada para se comprovar isso; os bailes não eram mais realizados com a mesma frequência e da mesma maneira, as crianças e jovens não se interessavam mais, não havia apoio por parte dos governantes, e até a religião (o fandango é fortemente embasado no catolicismo popular), devido aos avanços das igrejas Evangélicas, estava se “acabando”. Soma-se ai a influência do turismo e das leis ambientais123, que deslocaram os caiçaras e os impediram de realizar atividades tradicionais, como a roça, a caça e a pesca (sendo o principal impedimento relativo às roças). Retomemos, então, a noção de “pessimismo estrutural” que, como já frisei, trata-se de uma reelaboração e junção de dois conceitos, um cunhado por Sahlins (1997), o “pessimismo sentimental”, e o outro de Michael Herzfeld, (1997), a “nostalgia estrutural”. Tal conceito procura dar conta desse sentimento de que a cultura e as tradições estavam em eminente perigo, que estavam “a um passo do precipício”, devido aos avanços inexoráveis da modernidade e do capitalismo (sendo essa a contribuição de Sahlins); e, dentro desse sentimento, a concepção romantizada de um passado estático, intacto e irrecuperável, imagem esta que pauta as ações do presente (HERZFELD, 2005, p. 193). O “pessimismo estrutural” seria uma tentativa de dizer que a nostalgia como postulada por Herzfeld não só pauta as ações do presente, como as pautam num sentido bastante similar àquele que Sahlins critica, o de que as “culturas” vão inevitavelmente acabar. Assim como o próprio Sahlins afirma (1997, p. 53), não é uma questão de se inverter a lógica em nome de um “otimismo” que trate sem problematizar as transformações decorrentes em uma certa “cultura”, mas sim de afirmar o perigo político implicado na concepção de que as culturas “como se encontram”, com suas transformações e inquietações, não são mais as mesmas e que por isso, não são mais “tradicionais”, “puras”, ou até mesmo não são mais “cultura”, sendo indignas de se apresentarem como tal. O “pessimismo estrutural” também compartilha com a “nostalgia estrutural” de 123

Leis ambientais que tiveram seu início na década de 1960, e que se pautavam em uma imagem da natureza “sacra”. Segundo Diegues, “a noção de mito naturalista, da natureza intocada, do mundo selvagem diz respeito a uma representação simbólica pela qual existiriam áreas naturais intocadas e intocáveis pelo homem, apresentando componentes num estado ´puro´ até anterior ao aparecimento do homem. Esse mito supõe a incompatibilidade entre as ações de quaisquer grupos humanos e a conservação da natureza. O homem seria, desse modo, um destruidor do mundo natural e, portanto, deveria ser mantido separado das áreas naturais que necessitam de uma ´proteção total´”. (DIEGUES, 1994, p. 45).

148

Herzfeld suas duas características básicas, sendo a primeira

A replicabilidade em cada geração sucessiva. Cada grupo jovem resmunga ao ouvir dos seus pais a evocação de uma época em que tudo era melhor: as pessoas eram mais generosas e simples, a gentileza era mais desinteressada, as mulheres eram mais castas e conscientes dos seus deveres familiares, e os homens empenhavam-se mais nas reciprocidades da hospitalidade. Aquele grupo, por seu lado, reproduz a mesma saudade alguns anos ou décadas mais tarde. Uma retórica de mudança e declínio pode assim ser bastante estática. […] A sua qualidade estática fornece cobertura moral para algumas manobras muito destras e nada estáticas de acesso aos recursos que o estado burocrático faculta até os seus cidadãos mais desafetados e marginais (HERZFELD, 2005, p. 195)

A segunda característica da “nostalgia (pessimismo) estrutural” seria a que diz respeito ao sentido que é dado a esse discurso (o que Herzfeld chama de saudade retórica), ao seu objeto propriamente dito: a reciprocidade “falhada”, “danificada”. Irreversivelmente, a modernidade inexorável rompeu os laços recíprocos de amizade, amor, respeito, etc., e o “fato de a mutualidade em questão poder não ter sido de natureza equilibrada é eclipsado pela retórica da nostalgia” (HERZFELD, 2005, p. 196). Ao tentar circunscrever o que chamei aqui de “pessimismo estrutural”, de forma que abarcasse os discursos sobre o fandango que indicassem tal perspectiva “pessimista” em relação ao futuro do fandango, percebi que não podíamos focar em apenas “um dos lados” do discurso, seja ele o caiçara ou outros agentes que antes considerávamos como “exteriores”. Isso porque os dois “lados” se caracterizam aqui por sua preocupação com o fandango e com o sentido que essa preocupação assume nas suas ações. Por mais que suas motivações e pressupostos ontológicos sejam diferentes num primeiro plano, elas assumem o mesmo tom “pessimista” do qual falamos, e, por isso, pautam suas práticas políticas em torno desse discurso, elas entram em acordo pragmático, no sentido cunhado por Mauro Almeida (2007), com relação a esse ponto: o “pessimismo” com o qual encaram o fandango. No que concerne aos fandagueiros, em especial os mais velhos, sua grande maioria afirma inclusive que o fandango já acabou – de certa forma, do seu ponto de vista, o que existe hoje é apenas um “simulacro” do que existia “nos tempos dos bailes e das roças”, sendo o atual voltado para o turismo. De fato, segundo o Museu Vivo do fandango (PIMENTEL; GRAMÂNI; CORRÊA, 2006), de acordo com extensa bibliografia e com a maior parte dos fandangueiros locais, o fandango, durante os anos 1990, passou por uma recessão, não sendo 149

mais realizados os bailes nem encontros de fandango. Foi necessária uma “intervenção externa”, por parte de pesquisadores interessados na cultura local, para que se retomassem as atividades do fandango. Para além dos motivos enumerados acima que contribuíram para “o fim do fandango”, o caiçara atribui grande responsabilidade pelas mudanças no seu cotidiano ao crescimento do turismo, já que com o fim dos trabalhos da roça, as principais atividades econômicas – ainda aliadas à pesca, onde é permitida – são agora ramificações do turístico. Pois o fandango que é considerado “simulacro” pelos mais antigos é justamente um fandango que visa a divulgação da cultura caiçara para os outros, principalmente visando os turistas, que antes “não prestavam atenção” na cultura local, daí decorre fandango de apresentação. Se em certa medida é óbvio que “divulgar” a cultura caiçara significa dar visibilidade a ela para os turistas, que só aumentam ano após ano, por outro lado é possível entrever o “pessimismo estrutural” voltado para eles mesmos, os caiçaras: é necessário dar visibilidade para a cultura caiçara, não apenas para os turistas, mas também para as próprias crianças caiçaras. Caso contrário, o interesse renovado não surgirá, e o fandango tende uma vez mais a “acabar-se”, pois, segundo os locais, os jovens só se interessam pela TV, pelo rádio e pelas músicas que os turistas trazem, em detrimento de sua própria cultura124. Temos aqui a primeira convergência da “retórica da saudade”, como posto por Herzfeld. Uma convergência que vai além da própria retórica, e atinge a esfera das ações também (e a retórica, o discursar, não seriam ações?), já que não são apenas os grupos de fandango locais que julgam necessária a díade preservar e divulgar, mas também as Organizações Não-Governamentais que atuam na região e os órgãos ligados a setores do Estado burocrático. As ações imiscuem-se umas nas outras, todas tomadas no sentido de preservar (quando não resgatar) a “cultura local”. A própria transformação do fandango em Patrimônio Imaterial do Brasil foi formulada nesse sentido, sendo feita em conjunto com a população local. Inclusive, temos aqui um depoimento que exemplifica bem o afã preservacionista:

124

É inegável a influência de diversos estilos musicais considerados “forasteiros” sobre os mais jovens. No entanto podemos entrever também certas mudanças no próprio fandango e nos próprios estilos que o influenciaram, estabelecendo uma rede de trocas de influências constantes. Sobre os grupos que fazem um fandango mais “receptivo”, digamos assim a outras influências, e sobre grupos que tomam a inspiração no fandango, falaremos em outra oportunidade.

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É um ato que vai preservar as características originais do fandango, impedindo mudanças, o que é de grande valor para as comunidades caiçaras que tem nesse ato a garantia de manutenção de sua identidade cultural para futuras gerações. A cultura de um povo é o seu bem maior. (Denise Alboit, presidente da Fundação Municipal de Cultura (Fumcul), em 04 de dezembro de 2012, explicando o ato de patrimonialização do fandango, grifos meus)125

Mas se as ações e os sentidos que elas tomaram foram “unívocos”, não se pode dizer o mesmo de suas motivações, o que pode ser bem expresso pelo que dizem os caiçaras das ações tomadas pelos setores do Estado e Organizações Não-Governamentais. Apesar de a maioria dos fandangueiros afirmarem que a intervenção do “Estado” (referido assim, como um corpo unificado e transcendente) é essencial para a “manutenção” da cultura caiçara, eles não enxergam as medidas tomadas atualmente como sendo suficientes ou até mesmo que estejam sendo feitas da maneira correta. Um exemplo recorrente utilizado nesta dissertação foi o caso dos pontos de cultura126, uma tentativa de política não verticalizada, promovida pelo MinC (Ministério da Cultura), que visa o apoio (e não a determinação) às ações que buscam o desenvolvimento cultural. De todo modo, os fandangueiros mais antigos – a maioria, não todos, é importante frisar – não conseguiam visibilizar como este tipo de política poderia contribuir com o “salvamento” do fandango, e inclusive consideravam que o dinheiro encaminhado a ela estava sendo mal utilizado, já que não chegava de forma concreta aos próprios fandangueiros. Inclusive, podemos concluir que o caiçara enxerga a ação do “Estado” na forma de incentivos monetários e construções físicas, isso porque essas foram as principais maneiras pelas quais se deram as relações entre os grupos locais comunitários e setores do Estado, como dito anteriormente, na forma de remoções forçadas e corte do meio de subsistência (o fim da roça). Portanto, por mais que clame pela intervenção do “Estado”, o fandangueiro não vê a intervenção atual como sendo a mais correta (ou, pelo menos, a necessária). Essa diferença entre o preservacionismo de setores do Estado e o dos caiçaras pode ser explicada pelo uso compartilhado e diferenciado que eles fazem da “nostalgia estrutural” em sua retórica. Ela é diferenciada no sentido de que, quando estes setores do Estado evocam o passado e a necessidade de se preservá-lo, eles o fazem, assim como o caiçara, evocando um 125 126

Em , acessado em 25/01/2013) Ver Célio Turino (2010), o “idealizador” dos pontos de cultura; consultar ainda sobre o tema o sítio do Ministério da Cultura (< http://www.cultura.gov.br/pontos-de-cultura1>, acessado em outubro de 2013)

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tempo primordial em que a chamada modernidade não havia transformado o caráter tradicional das culturas. Então, o “Estado” (como figura monolítica) se postula como o guardião preciso e único do passado como componente constituinte do caráter nacional – obliterando assim qualquer referência sobre a própria influência de setores estatais nessas transformações. Já o caiçara, do seu ponto de vista, vê a intervenção do “Estado” dos dois lados, do lado que “dá”, que toma ações contundentes no sentido de incentivar e preservar esse “passado cultural”, mas também do lado que “tira”, na forma das ações que resultaram mudanças significativas do modo de vida caiçara, e por consequência, suas manifestações artísticas. Dito de modo grosseiro, o caiçara sabe que todo seu modo de vida, sua economia, sua religião, sua dança fazem parte de um todo coerente, o caiçara compreende sua cultura de um ponto de vista holístico, enquanto, do ponto de vista de alguns setores do Estado, ao ver essas coisas compartimentalizadas, se esforça para fazer cumprir uma tarefa de Sísifo, a de preservar a cultura (configurada em um tipo de passado) sem ceder as transformações pelas quais em grande parte foi responsável.



A estabilidade do modelo está na nostalgia (o pessimismo) como condição de produzir alteridade com aqueles que estão no passado e aqueles projetados no futuro. Na verdade, o pessimismo traduz um poderoso regime de alteridade em que os outros não estão dentro e fora o tempo todo (é como se dissesse: “é o Estado, mas são os meus netos que não querem saber e etc.”), mas entre. O pessimismo, dessa perspectiva, não é um valor em si mesmo que os incita à ação (ou renuncia a ela), pois a ação (traduzida no evento, ou seja, as coisas que acontecem em torno do fandango) é mesmo da ordem da performance, que captura o agente envolvendo os atributos do outro, ou seja, só temos mudança o tempo todo (ver BATESON, 2006) e a ilusão da estabilidade (o que é ser um caiçara, ou o que é o fandango) só pode ser capturada na análise se levar em conta justamente o domínio da transformação (aqui na forma do conservacionismo da mudança, ou o conservacionismo do pessimismo, que também deve mudar, quer dizer, um fandangueiro antigo era mais pessimista que os novos). Até o pessimismo estaria sob o escrutínio da performance e seus efeitos. Todo o problema, como 152

destacado no capítulo 3, seguindo Manuela Carneiro da Cunha (2009), são os efeitos que em princípio são vistos como eticamente problemáticos (a própria inferência da perda), quando na verdade são problemáticos no sentido da cosmopolítica. No fundo, do que depreendo, o pessimismo seria conservacionista, na medida em que pragmaticamente mantém a tensa e complexa relação a produzir conflitos com o Estado (e outros agentes “externos”) e todos os agentes entre si. Apenas produzindo controvérsias, performances políticas, diríamos, é que continuamente o Estado e demais organizações vão continuar a olhar para o fandango. É como se pudéssemos afirmar que se deixarem de ser pessimistas, existe a possibilidade real de que tudo cairá num esquecimento, os eventos deixarão de ser performatizados e, logo, o fandango poderá deixar de ser praticado. A performance do pessimismo é fundamental (mesmo que ora gostem do que o Estado esteja fazendo, ora desgostem, como mostra o exemplo dos pontos de cultura). Cada política que parte do Estado (ou de outros agentes) é remoída na roda do pessimismo. Então, importa pouco se, como no exemplo trazido, os pontos de cultura traduzem ou não uma “virada” na política institucional cultural. Ressalto que, apesar da insistência com o exemplo dos pontos de cultura, este procedimento caiçara se estende, na forma de um padrão consistente, em relação às políticas públicas de maneira geral, bem como as diferenciações internas e externas, em duplo sentido, relativas às transformações da cultura caiçara. Esta seria a sua própria forma de convencionalização (WAGNER, 2010) cultural. Na verdade, para os fandangueiros haverá sempre um deficit, que os move e os faz agir (mesmo não se movendo e não agindo). Tais movimentos são da ordem ontológica.

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