Narratividade e legitimação do discurso cultural, a partir de Walter Benjamin e Mikaïl Bakhtine

June 16, 2017 | Autor: P. Lopes de Almeida | Categoria: Cultural Studies, Literary Criticism, Bakhtin, Literary Theory, Walter Benjamin, Mikhail Bakhtin
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OFICINAS DE INVESTIGAÇÃO CITCEM/2012 Questões/Construções em Teoria da Literatura, 16 de Março de 2012

Narratividade e legitimação do discurso cultural, a partir de Walter Benjamin e Mikaïl Bakhtine

Pedro Lopes de Almeida

chama-se tempo a muita coisa: mas a duração da praia é a mais incompreensível. Carlos de Oliveira, Entre duas memórias

É sempre difícil objectivar o nosso lugar. É-o ainda mais difícil quando o nosso lugar é o daquele que objectiva. E quando nos confrontamos com a necessidade de pensar o lugar de onde falamos quando falamos sobre literatura, é precisamente esse o desafio que se nos coloca. Para abordar este problema, preciso, antes de mais, de construir alguns lugares tipificados, nem inteiramente reais nem inteiramente ficcionais, mas que decorrem de figuras e posturas que todos conhecemos e não temos dificuldade em reconhecer. Se o nosso objectivo é pensar a crítica contemporânea, convém introduzir algumas dintinções que nos serão úteis daqui em diante. A distinção básica que gostaria de ter em consideração opõe dois modos de leitura. Um, que todos conhecemos bem, decorre do trabalho que fazem os membros dos departamentos de literatura hoje, e cujo produto poderemos chamar crítica literária, entendida na moldura disciplinar dos estudos culturais. O outro é o que pressupõe o trabalho das pessoas que se encontravam nos 1

departamentos de literatura antes da década de 50/60, e ao qual chamarei aqui leitura filológica. Se o primeiro se estrutura em categorias como as identidades, representações de sexo, raça, minorias, subculturas, poder, cultura visual, ou outras narrativas de enquadramento temático ou formal, o segundo modo de ler apresenta-se, genericamente, como um discurso que podemos associar ao das histórias da literatura, dispondo os textos sobre um eixo diacrónico onde se sucedem as épocas históricas, por via das quais as obras recebem o seu significado cultural. A diferença que podemos perceber entre os dois modos de leitura (assumindo, de facto, que se trata de dois modos verdadeiramente distintos de leitura) é, no essencial, uma diferença de focalização. Se a leitura crítica, característica das investigações no domínio dos chamados estudos literários e estudos culturais, vê o texto como um fim em si mesmo, capaz de exercer um efeito magnetizante sobre outros artefactos culturais que são requisitados para o explicar, e o olhar do leitor se concentra em túnel sobre o texto, tratando-o como uma coisa sobre a qual se pode falar indeterminadamente mediante técnicas de apresentação de analogias explicativas sucessivas graças às suas virtudes intrínsecas, a leitura filológica, ou leitura histórica ou ainda leitura da história da literatura, pelo contrário, evita cuidadosamente o gesto interpretativo que retorna incessantemente ao texto, foge do exercício tautológico (tantalógico?) de recriação das “mensagens” de um texto, opondo-lhe um olhar oblíquo, que atravessa o texto para o reintegrar num meio cultural, ou, com mais propriedade talvez, um olhar periférico, atento às marginalia que cruzam o processo de construção do texto como texto literário. Nisto, parte do princípio que o seu interlocutor (o ouvinte, o leitor, o aluno...) já conhece, bem, o texto, ou não o conhece, de todo. Em qualquer dos casos, nunca assume que o conhece de modo insuficiente ou deficiente. Se o conhece, a leitura histórica a que se propõe vem fornecer elementos para um entendimento mais completo (i.e., mais informado) das circunstâncias que rodeiam o texto, da cartografia cultural que o texto não descerra mas insinua e reflecte. Se o interlocutor o desconhece por completo, o leitor filológico fornece um correlato objectivo do conteúdo do texto, como aqueles que podemos encontrar em qualquer história da literatura. Com isto, evita justamente tornar o texto em conteúdo. Mas em nenhuma situação parte do princípio da insuficiência do leitor. Porque dá como adquirido que, literariamente, o texto literário é auto-explicativo. Pode não o ser, e não o é muitas vezes, do ponto de vista histórico, linguístico, social (evito aqui a palavra 2

cultural, embora ela seja perfeitamente adequada, para não confundir com o entendimento que dela têm os estudos culturais). Mas, como texto literário, ele dispensa o paternalismo, ou a atitude especificamente pastoral do commentatore. Deste modo, a perspectiva periférica, marginal ou contextual do filólogo (por oposição à leitura cotextual do crítico) investe um certo cuidado em evitar o excesso de proximidade ao texto, porque sabe que essa proximidade traz consigo o risco de uma cegueira de tipo muito particular: a da irracionalidade celebratória, ou, se preferirmos, apaixonada. Assim, ao filólogo, como àquele que escreve uma história da literatura, bastará, quanto à disposição dos conteúdos, apresentar os temas dominantes (com relevo para a perspectiva em enfoque – histórica, cultural, linguística, social...), os principais aspectos da construção da obra (como deve ser lida), e o mais é interpretado a partir do exterior (de fora para dentro). O ideal do trabalho filológico é, assim, uma espécie de apelo à boa memória do interlocutor: quando evita lançar-se a exercícios de interpretação exaustiva (nos quais vê o perigo do arbitrário e a tentação do subjectivismo), quando abdica de discutir valores como a literariedade ou a poeticidade de um texto, deixando isso à consideração do leitor final, quando fornece os dados que permitem colocar a obra em correlação com o seu tempo e o seu espaço, o filólogo está, no fundo, a recordar o leitor de alguma coisa. Daí a sinceridade propositiva (chamar-lhe-ia hoje honestidade intelectual) da história da literatura. Ela sabe que, no estudo da literatura, o processo de “descoberta” que orienta o processo de investigação nas “ciências normais” só pode tomar a forma de uma recordação de circunstâncias entretanto esquecidas, isto é, uma forma de anamnese. O mesmo não acontece na crítica literária tal como é hoje praticada no domínio das investigações em estudos culturais e literários. Aqui, a leitura equivale a uma sequência de gestos de perífrase e de paráfrase, ou seja, “explorar o conteúdo dos textos” reorganizando as mensagens que lhes descobrimos, dispondo-as de outro modo, e (na expressão de Eco), dizer quase a mesma coisa, ou por outras palavras, ou recorrendo a conceitos e argumentos que nos fornecem outros autores, filósofos, sociólogos, historiadores, que convocamos para legitimar a leitura que desejamos fazer de um dado texto literário (a expressão que costumamos utilizar é “articular textos” ou “cruzar autores”). Este modelo epistemológico implícito fica bastante evidente quando observamos com alguma atenção o arquétipo do trabalho académico em estudos 3

culturais. Logo desde o título é clara a intenção de submeter a “análise” um tópico (chamemos-lhe assim) cultural (A), que deriva normalmente de uma das categorias acima explicitadas, circunscrevendo-o a um corpus analítico que corresponde geralmente a um autor (B):

O/A ___(A)___ em __________(B)______ na obra de _____(B)______ na poesia de ____(B)_____

Onde “A” pode representar interesses tão díspares como “o tratamento da mulher”, “a relação com a pintura”, “as minorias latino-americanas”, e “B” o conjunto ou parte da obra de um ou vários autores. Quando entramos no estudo investigativo propriamente dito, é usual que as primeiras secções sejam dedicadas a um levantamento daquilo que outros leitores produziram acerca do tema em análise (o “estado da arte”), e uma “base teórica” (a expressão não é minha, tomo-a de empréstimo ao uso corrente), capítulo onde se descarregam, a título preambular, algumas congeminações de “teóricos” que poderão ser úteis para reforçar o que se segue. E o que se segue é a leitura de “B” à luz de “A”. Como é claro, isto pode querer dizer muitas coisas. Mas, por norma, quer dizer colocar em marcha um misto de close reading com uma interpretação de formas e estruturas – dizer como é a obra, e o que quer dizer o facto de a obra ser de tal maneira. Quando tudo corre bem, conclui-se que “A” é muito importante em “B”, porque, sem “A”, “B” não seria tão “B”. Independentemente do grau caricatural deste desenho funcional forçosamente redutor, creio que podemos extrair uma primeira ilação essencial no que respeita ao modelo de leitura dos estudos culturais. O “leitor implícito” que ele prevê (tomo aqui de empréstimo o conceito de Wolfgang Iser) é alguém que conhece os textos literários, mas não os sabe utilizar devidamente, isto é, precisa, como Homero, de um guia que lhe diga, à luz de certas teorias e postulados filosóficos, o que de mais interessante tem o texto. É claro que aqui a imagem de Umberto Eco do “texto como máquina preguiçosa” tem todo um outro significado. O leitor académico produz interpretações nesta base 4

estritamente analógica, e, ao fazê-lo, constrói índices de leitura que, na melhor das hipóteses, complementam os textos literários. (Na pior das hipóteses, substituem-nos).

O problema desse olhar concentrado no texto é que, como tudo quando olhado durante demasiado tempo, ele perde o seu sentido próprio, e torna-se num pretexto para outras coisas, para outras mensagens que o intérprete deseja comunicar. O desígnio deste tipo de crítica literária, deliberado ou incidental, será elaborar trajectórias temáticas através das obras literárias, que passamos a poder percorrer através de coisas como o tratamento dado a ao sexo feminino, à identidade africana, ou a relação com a fotografia. Podemos entender esta estruturação disciplinar como um grande “parque temático”, onde cada leitor frequenta a zona de entretenimento que melhor corresponde às suas expectativas. Percebe-se, então, que Paul Virilio aponte como destino comum do contemporâneo a “conversão em filme”. A julgar pelo resultado que podemos antecipar para os estudos culturais, a leitura equivalerá a

realizar percursos cénicos nos locais sob a alçada do património, numa tentativa de reavivar os atractivos dos nossos monumentos históricos, dos nossos museus, assim fazendo concorrência à importação de parques do tipo «Disney Land» nos arredores de Paris ou do «Wonderland» nos arredores de Londres.1

Esta configuração dos saberes, contudo, corresponde a uma visão bastante precisa do trabalho daqueles que trabalham em departamentos de literatura: chamamos-lhe, sem pensar muito nisso, cultura. Cultura enquanto produção de bens para consumo, que se inscrevem na dimensão recreativa da vida social, e cuja função é conservar num estado de alguma consagração simbólica certos artefactos culturais. A este sentido acrescentamos-lhe um outro: o de trabalho científico, estatuto exigido mais pelas circunstâncias institucionais e políticas em que se desenvolve hoje o trabalho dos investigadores em humanidades do que por uma motivação propriamente intrínseca desse trabalho. Temos, pois, uma visão de cultura científica, ou de cientificismo

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Paul VIRILIO, A Inércia Polar, Lisboa, 1993, Dom Quixote, p. 41.

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cultural (eu prefiro esta última), como ideia hegemónica dos percursos investigativos em estudos culturais e literários, hoje. O problema desta concepção, ou o problema que aqui gostaria de discutir, é o modo como ela produz um entendimento de literatura completamente vazio de sentido, porque submetido a uma lógica puramente acumulativa. De cada vez que um novo argumento é convocado para ler ou explicar uma obra ou um autor, acredita-se que se está um pouco mais perto de compreender o significado “cultural” dessa obra ou autor. Tanto que não é incomum antecipar-se o sucesso ou insucesso de um estudo declarando se “isso já foi feito” ou “ainda ninguém fez isso”. Este indício é próprio de um modelo onde o valor do pensamento se encontra em estado de extrema deflação, pouco importa o que se diz, desde que se diga algo, ou, mais precisamente, que se acrescente algo ao que já está dito. A estrutura de uma episthemè em parque temático oferece-se, assim, como a ambição de construir uma cartografia coextensiva à própria literatura, um mapa de lugares comuns da cultura ocidental contemporânea, que, como o mapa de Borges, por inútil, acabará por ter que ser entregue ao fogo, ou ao esquecimento, por inútil. Há uma segunda consequência deste modelo que não devemos ignorar. O lugar da crítica literária tal como hoje a entendem os estudos culturais não corresponde, contrariamente ao que pode fazer crer a estrutura institucional e dos programas de investigação, ao do investigador de laboratório das ciências biológicas. Não existe correspondência estrutural ou funcional entre eles, embora ambos usem o designativo profissional “investigador”, porque a função do investigador laboratorial define-se por uma relação experimental com o objecto: o investigador interpela-o, coloca hipóteses, testa funcionalidades e aplicações, desenvolve teorias sobre o seu passado, a sua evolução morfogenética, etc. O lugar dos estudos literários e culturais correponde, sim, ao da divulgação científica, que “torna acessível” as obras de investigação a um público não especializado, ao “grande público”.* Os homólogos dos investigadores em estudos culturais não são os cientistas que pensam o mundo físico, mas aqueles que popularizam o seu trabalho, muitas vezes em best-sellers, como Carl Sagan, Richard Dawkins, David Attenborough, ou Brian Cox.

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Com isto, o modelo de leitura que hoje domina as humanidades processa um salto metodológico demasiado importante para não o avaliarmos com seriedade. Ele salta a etapa da investigação enquanto investigação, e passa a relacionar-se com o seu objecto, a obra literária, o texto, de modo indirecto, mediado por categorias culturais que não processa mas das quais dá testemunho – recebe e transmite, sem as submeter a uma crítica reflexiva e autorreflexiva (o que deveria acontecer naqueles momentos que já identificámos, os preâmbulos teóricos, pelos quais, muitas vezes, o investigador ainda pede desculpas ao auditório). Na realidade, a relação do “investigador” em estudos culturais com o seu objecto não é exactamente uma relação, mas o simulacro de uma relação – tal como o divulgador não se relaciona verdadeiramente com os objectos da ciência, mas limita-se a traduzir as conclusões que outros conjecturam. Há uma consequência imediata que devemos imputar a este salto. A crítica literária transforma-se em veio de disseminação do sistema onde os arquétipos ou lugares comuns (“A”) são produzidos. Deixem-me dar um exemplo do que estou a falar. Um exemplo que me parece oportuno, porque se trata de algo de que quase todos andamos a falar: o flanêur. Quando os estudos culturais se referem à nova experiência da cidade moderna, à relação entre o visionário de Rimbaud e o observador distanciado de Baudelaire, a psicologia da rua, a vivência da multidão, o olhar atento aos detalhes do quotidiano, já não estão a falar da sociedade urbana europeia finissecular, como acaba por se tornar evidente. Se estivessem a falar dessa realidade, não poderiam passar sem uma análise das relações sociais, económicas e sociais que por essa altura sofriam mudanças colossais que seriam determinantes para a história da humanidade. Mas os estudos culturais desviam-se dessa abordagem, justamente porque não estão a falar senão de si próprios, ou melhor, dos não-ditos da cultura a partir da qual tomam (tomamos) voz. Ou ainda, se preferirem, da linguagem que codifica a cultura de modo a poder-se falar do flanêur sem falar das relações sociais, ideológicas e económicas nos Estados europeus nos finais do século XIX. E a verdade é que isso indicia aquilo que de melhor nos oferece a literatura: uma oportunidade para repensar o nosso lugar, a nossa condição. Mas esta oportunidade é logo desperdiçada quando os estudos culturais reintegram o testemunho da obra de arte literária numa sequência de planos de imagens, percebidas na superficialidade* dos seus denominadores. Ao colocarem de parte a dimensão histórica do facto literário, tomada no seu sentido mais propriamente historiográfico, os estudos culturais abdicam de 7

colocar a obra em perspectiva, e, como consequência, perdem a oportunidade de pensar a nossa condição histórica, a nossa condição no tempo, recusando uma reflexão metacrítica sobre a nossa relação com a memória. E isto significa, afinal, isolar os textos literários nos seus recantos de produção de sentido, como o coleccionador que arruma em gavetas as borboletas espetadas em alfinetes. É este modo de ler, a que eu chamaria de ghettização literária, que a concepção dos estudos culturais pressupõe. Neste paradigma o texto encontra-se a sós consigo mesmo, fatalmente condenado a ter que explicar o seu contexto epocal explicando-se uma e outra vez a si próprio. Gostaria de vos convidar a reflectir sobre este assunto a propósito de alguns dos argumentos de Mikaïl Bakhtine, porque julgo ter encontrado, no seu trabalho, muitas destas mesmas preocupações. O pensamento de BMV (círculo de Bakhtine: Mikaïl Bakhtine, Pavel Medvedev e Volosinov) escreve-se contra os exercícios de análise da percepção de um certo formalismo, contra a leitura uniformizante de um certo marxismo ou, pelo menos, do que era a sua vulgata à época, e contra o biografismo e o método empático de uma certa crítica literária. Não é difícil imaginar que não teriam muitos amigos na sociedade soviética. De facto, a obra a partir da qual gostaria de reflectir, O método formal em literatura – introdução a uma poética sociológica, publicado em Leninegrado em 1928, terá posteriormente custado a vida a Pavel Medvedev, durante uma das expurgas estalinistas. Não lhe valeu de muito que grande parte da obra se ocupe de explicar as vantagens da abordagem marxista. A verdade é que a recusa em ceder a reducionismos, verdades fáceis, ou à cartilha do politicamente e academicamente correcto empurrou o círculo de Bakhtine para uma zona de incompreensão.* Creio que nos encontramos hoje em circunstâncias bastante idênticas. O academicamente correcto, hoje, inscreve-se no campo político dos estudos culturais, que funciona como um campo de contenção ou anulação do valor de um texto como potencial meio para repensar a nossa condição. Se isto não resulta claro do quadro tipológico que temos estado a esboçar, basta pensarmos nas fracturas epistémicas e institucionais que atravessam o meio académico das humanidades, hoje. Pensemos, por exemplo, naqueles que promovem uma leitura imanentista dos textos, sob as novíssimas roupagens da estética, de um certo desconstrucionismo, ou da crítica mais rente, aqueles que reclamam uma leitura histórica e que defendem que o ensino de uma literatura ou de um período literário deve ser realizado ao abrigo de uma moldura historiográfica, 8

aqueles que propõem novas formas de transcendentalismo ao sugerir leituras de textos literários segundo argumentos canónicos de filósofos eminentes, e, enfim, o difícil modo como todos se reencontram e desencontram onde os textos desaguam – em encontros como este, em artigos, ou, todos os dias, nas salas de aulas. A grande tese de Bakhtine, se é que podemos falar de tal coisa, é que uma obra nunca é um acto unilateral, e, consequentemente, nunca deveria ser lida como um acto unilateral, que emana da “consciência” de um autor, e que pode ser interpretada a partir de si mesma. Ela é sempre o resultado de um diálogo feito de múltiplas presenças e confrontos. Compete ao leitor “continuar os movimentos conflituais de que um texto é feito” (Óscar Lopes)2. É a partir deste postulado que, em Medvedev, se desenvolve a crítica às formas de imanentismo dos formalistas:

Os formalistas sublinham com insistência que estudam a obra de arte enquanto facto objectivo, independente da consciência e da psicologia subjectivas do autor e do seu público. (...) Na medida em que a posição dos formalistas visa antes de tudo a estética psicologizante e a interpretação à base da psicologia subjectiva naïve da obra de arte, concebida como expressão do mundo interior, do “espírito” do artista, ele permanece, apesar de tudo, aceitável. Efectivamente, os métodos baseados na psicologia subjectiva devem ser excluídos tanto da poética como da história literária. Isto não significa, como é evidente, que nós possamos dispensar de todo a consciência individual. Queremos apenas dizer que é conveniente que ela seja encarada nas suas manifestações objectivas. A consciência individual é um factor que não pode ser tido em conta e estudado se não na medida em que se manifesta nos aspectos concretos da obra, da acção, da palavra, do gesto, etc., isto é, na medida em que se transforma numa expressão material objectiva.3

Ao denunciar a leitura da obra de arte segundo fenómenos da psicologia subjectiva do espírito do artista, Medvedev ataca a concepção da crítica como reconstituição de estados de alma e processos mentais. De facto, a coberto de declarações da “autonomia 2

Óscar LOPES, Cifras do Tempo, Porto, Modo de Ler (?), 1990. Pavel MEDVEDEV/Cercle de BAKHTINE, La Méthode Formelle en Littérature – Introduction à une poétique sociologique [Leninegrado, 1928], Édition critique et traduction de Bénédicte Vauthier et Roger Comtet, postface de Youri Medvedev, Université de Toulouse-Le Mirail, Presses Universitaires du Mirail, 2008, pp. 295-296. 3

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do objecto artístico”, essa é uma das formas de que se reveste uma certa crítica obscurantista, que parece querer deixar em suspenso o próprio processo de significação de uma obra, ora cortando-lhe os laços que a unem ao fluxo de vida onde nasce e adquire sentido, ora negando-lhe um lugar na série e no sistema da literatura e dos fenómenos sociais e ideológicos, ora falando dela como “um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não s[abemos] porquê” E é muito curioso que os estudos culturais alberguem e encoragem estas práticas. Quando percebemos que, por detrás de uma fachada de culturalismo cientificista (“O olhar do flanêur na segunda metade do século XIX e a sua importância na poesia de «B»”) se esconde, de facto, um exercício de reconstituição, mais ou menos arbitrária mais ou menos inspirada, de sentimentos, estados d’alma, e percepções, isso diz-nos muito mais sobre a verdade dos estudos culturais do que qualquer programa teórico. A facilidade com que se imputam juízos psicologizantes a textos literários e o mecanicismo com que isso é feito são bem reveladores dos grandes horizontes de preocupações dos estudos culturais e da crítica literária, hoje. Só é possível aos estudos culturais admitir este modo de leitura graças a uma visão que, mais do que pósmoderna, será forçosamente pós-histórica, pós-ideológica, paradoxalmente pós-cultural, ou, como no verso de Augusto de Campos, “pós-tudo”. Vale a pena, por isso, reler o que escreve Medvedev sobre a crítica imanentista dos formalistas:

Orientar a obra na direcção da perceptibilidade é um psicologismo da pior espécie, já que pressupõe que um processo psico-fisiológico se torne em alguma coisa de absolutamente autosuficiente, desprovido de todo o conteúdo, isto é, de toda a ancoragem na realidade objectiva. Tal como a automatização, a perceptibilidade não é uma característica objectiva da obra. Em si mesma, na sua estrutura, ela pura e simplesmente não existe. Enquanto zombavam daqueles que investigavam o “espírito” e o “temperamento” numa obra de arte, os formalistas acabaram por procurar, ao mesmo tempo, um factor de excitação psico-sociológica.4

Medvedev reporta-se, aqui, às teorias de Viktor Chklovski (expostas em “A Arte como Processo”) conhecidas de todos nós. Hoje, por vias muito diferentes, a crítica reabilita o 4

Pavel MEDVEDEV/Cercle de BAKHTINE, op. cit., p. 303.

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modo específico de ler o fenómeno literário segundo os efeitos que este produz no leitor. Bastaria citar o ressurgimento da estética literária e as suas aspirações à sistematização das reacções fisiológicas e psicológicas que as formas literárias inspiram, para se perceber o parentesco que liga esta postura a noções como a de “emoções verbais” de Boris Eikhenbaum, ou a autonomia do “ritmo poético” de Tynianov. Uma vez mais, trata-se de construir, para a obra literária, um espaço disciplinar restrito, isolado daquilo a que podemos chamar “realidade”, onde ela faça sentido à luz de algumas convenções académicas. Gostaria de sublinhar a lucidez da análise levada a efeito pelo círculo de Bakhtine no que respeita a compreender as profundas afinidades electivas que aproximam esta postura relativamente atávica, da trivialização das concepções marxistas, que confundia o texto com um meio de produção de ideologia, e, consequentemente, lhe imputava uma função estritamente utilitária:

O positivismo utilitarista que pode, por vezes, insinuar-se no marxismo, ignora a distinção que decorre da segunda categoria [a distinção entre o “material ideológico organizado” e “os instrumentos de produção”], ao conceber os objectos ideológicos por analogia aos instrumentos de produção (e, assim, também por analogia aos produtos de consumo). Mas os instrumentos de produção não têm nada a ver com signos, eles não exprimem nem reflectem nada, eles não possuem senão uma finalidade externa e uma organização técnica do corpo físico que se adapta a essa finalidade.5 “As teorias que interpretam os objectos ideológicos por analogia com os produtos de consumo encontram-se bastante generalizadas. (...) Nós não encontramos qualquer coerência neste positivismo utilitarista, e, no entanto, sob formas dissimuladas, esta abordagem vulgarizou-se, e começa hoje a estar presente em quase todas as construções teóricas dos críticos burgueses decadentes.6

O “positivismo utilitarista” tanto se revela no amesquinhamento das leituras mais formalizantes como na apropriação política ou panfletária dos textos literários. É a este último uso que se refere aqui Medvedev. Ele consiste em abordar cada texto como um dispositivo onde se produz, liminarmente, a ideologia. Segundo esta visão, o autor 5 6

Pavel MEDVEDEV/Cercle de BAKHTINE, op. cit., p. 94. Idem, p. 96.

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produz significados sociais, económicos e ideológicos na própria obra, e a crítica encarrega-se de os pôr a nu. (Simples, quase simplório. E, no entanto, não é o que fazem os estudos culturais?). Este modo de ler, paradoxalmente, é também tributário de uma concepção de literatura como produto da consciência individual, e reincide, por isso, nas velhas questões do génio criador, aqui travestido como criador de ideologia. Como Medvedev observa, esse entendimento só pode resultar numa visão da literatura como objecto de consumo. Julgo que este é um dos pontos mais pertinentes do pensamento do círculo de Bakhtine, porque nos permite compreender como, isto é, por que caminhos, foi possível aos estudos culturais transformar a literatura num objecto para consumo. É precisamente nessa confluência dos vários tipos de “positivismo utilitarista” que nos encontramos hoje. Essa forma de ler tanto se manifesta como entidade reguladora das investigações em estudos culturais como em pedra de toque das leituras subjectivistas. Se resumirmos o nosso contacto com a literatura a indicadores como o a instrução e o deleite (retomando o ciclo horaciano, mesmo com o pendor bovino que encontro nesta formulação), ela torna-se, mais cedo ou mais tarde, esse objecto de consumo, e o papel da crítica, i.e., das pessoas que lêm obras literárias por razões profissionais e falam delas a diversos públicos, será gerir os interesses de diversas carteiras de clientes. Continua Medvedev:

A consequência da análise literária é que fazemos exprimir através da obra de arte uma filosofia medíocre, algumas declarações superficiais ora sociais ora políticas, uma moral ambígua, alguns ensinamentos religiosos banais.7

(Leia-se “estudos culturais” onde se lê “análise literária”, e temos a ilustração acabada do panorama crítico contemporâneo.) Para o círculo de Bakhtine, a literatura não representa a vida, enquanto conjunto de acções, acontecimentos ou emoções, se não através de uma refracção pelo prisma ideológico que condiciona a sua produção, e aquilo a que hoje chamaríamos “representação” ou processo figurativo. 7

Pavel MEDVEDEV/Cercle de BAKHTINE, op. cit., p. 107.

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Daí o subtítulo da obra – Para uma poética sociológica. Porque uma poética, enquanto investigação acerca dos processos na origem da constituição de uma obra de arte, só adquire sentido quando fazemos correr através dela o devir dos contextos que intersectam o meio que onde nasce a obra de arte, o meio que a recebe, os meios através e contra os quais irá ser lida. O texto literário, segundo Medvedev, encontra-se “no auditório do poeta, no conjunto de leitores de um romance, no público de uma sala de concerto” e nas relações que eles estabelecem entre si. Se existe alguma coisa como “o significado”, terá que ser daqui que ele emerge. É por isso que tanto Medvedev como Bakhtine repreendeendem os seus compatriotas que se afirmam marxistas ou formalistas por não terem compreendido a importância da recepção dialéctica da obra, que pressupõe uma interpretação que se vai alargando em círculos concêntricos: da obra para o meio ideológico, e deste para o ambiente social e económico.* A literatura é um facto social não autosuficiente, porque se alimenta destes outros sistemas. Não podemos, portanto, omitir nenhum elo da cadeia, saltando o nível literário, ideológico, social ou económico onde a obra se inscreve, sob pena de amputarmos a significação do texto. A partir daqui, Medvedev distingue o verdadeiro crítico enquanto sociólogo, para quem “o herói de um romance ou uma dada circunstância da personagem vão dizer-nos muito mais enquanto elementos da estrutura artística, isto é, com a sua própria linguagem artística, do que as projecções naïves e imediatas que podemos fazer sobre a vida deles”, dos “falsos sociólogos, sempre prontos a projectar não importa que elemento da estrutura da obra artística, como por exemplo o tema ou o protagonista, directamente na vida real” 8. Assim, Medvedev, convocando o papel da história da literatura, define em síntese o trabalho do crítico nos seguintes termos:

A história da literatura estuda a vida concreta da obra de arte reconduzida à unidade do meio literário em devir; este meio literário no devir do meio ideológico que o circunda; e este último converge no devir do meio sócio-económico que o condiciona. O trabalho do historiador da literatura deve, pois, efectuar-se tendo constantemente em vista a história das outras ideologias e a história sócio-económica.

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Pavel MEDVEDEV/Cercle de BAKHTINE, op. cit., p. 58.

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Ora, a crítica contemporânea, ao não abordar este plano ideológico enquanto tal, ao transformá-lo num plano imanente e cultural, arrisca “meter tudo no mesmo saco”, e passar da leitura da obra para as generalizações abstractizantes, o que é o mesmo que dizer, aceitar acriticamente o teor ideológico de um produto literário e usá-lo como pretexto para fazer a apologia ou a destitularização de uma determinada mensagem.* Se, para Bakhtine, a crítica deve ser uma espécie de espiral que atravessa os círculos concêntricos sobrepostos da 1) Obra Literária, do 2) Meio Ideológico, e do, 3) Meio Sócio-económico, o paradigma metodológico dos estudos culturais pressupõe uma inversão deste encaixe: o anel exterior é a própria obra literária, o texto, o “B”, e, dentro dele, organizam-se a ideologia e o meio social e económico, em círculos não concêntricos, mas apenas parcialmente sobrepostos: a crítica literária, aqui, percorre numa espiral iterativa o espaço da obra, simulando descobrir nela as dimensões que lhe são, na verdade, exteriores. É isto que significa, no fundo, o estudo de categoriais culturais na obra de um autor. Este modo de ler produz um efeito imediato do qual que me parece importante estarmos conscientes: ao tornar-se num ícone sem espaço exterior, o texto é amputado do seu valor diferencial. Se ele não possui valor pelo lugar que ocupa na memória do sistema, isto é, enquanto produto de um contexto, mas sim pela sua capacidade de reorganizar e produzir mensagens culturais no seu interior, então o texto perde toda a pertinência testemunhal, já que vai depender da habilidade e do engenho do crítico “extrair-lhe” mais ou menos narrativas. Paradoxalmente, com isto, a crítica cultural esvazia a obra literária do seu potencial transformador, porque esse contexto era justamente o que podia aproximar a obra de nós, leitores, através da memória que nós temos do nosso contexto, que entra em diálogo com o contexto da literatura. Sem esse ponto de passagem, ficamos, tanto nós como as obras, isolados nos contextos que sejamos capazes recriar. Mas a verdade é que estamos separados dela pela membrana que lhe imprimimos, e isto é uma forma de imunização ao capital desestabilizador do texto, servindo-me aqui deste conceito do pensador contemporâneo Roberto Esposito. O paradigma da imunização, no âmbito bio-médico, designa o estado de resistência de um organismo a corpos patogénicos que se consegue mediante a introdução, no seu interior, de um fragmento da mesma substância patogénica da qual o queremos proteger. O organismo desenvolve anticorpos que de modo automático e praticamente imperceptível ao indivíduo, passam a bloquear 14

o agente infeccioso. Em linguagem jurídico-política, a imunidade refere-se à “isenção, temporária ou definitiva, de um sujeito em relação a determinadas obrigações ou responsabilidades às quais normalmente está vinculado”. Creio hoje poder afirmar que o modelo de leitura subjacente aos estudos culturais produz um efeito análogo relativamente às categorias que visa “salvar no texto”.

Bem pode dizer-se que a imunização é uma protecção negativa da vida. Ela salva, assegura, conserva o organismo, individual ou colectivo, a que é inerente – mas não de uma maneira directa, frontal; submetendo-o, pelo contrário, a uma condição que ao mesmo tempo lhe nega, ou reduz, a força expansiva.9

O estado de imunidade em que nos coloca a abordagem cultural dos textos torna-se bastante óbvio quando encaramos a contradição flagrante entre o capital transformador do nosso discurso, no plano semântico, e o modo como esse “agente infeccioso” é assimilado, integrado e absorvido pelo ethos disciplinar: talvez nunca se tenha falado tanto como hoje em transgressão, perversão, subversão de cânones, fracturação de identidades, subjectividades estilhaçadas, roturas e descontinuidades. E, no entanto, no final de uma comunicação, não nos surpreende se alguém perguntar “ – Gostaste?”. Este é o sintoma de um modelo crítico reconvertido à funcionalização patrimonial, docilizante, que se serve de categorias derivadas do léxico político (da esquerda do século XX) para transformar leituras críticas em algo estranhamente semelhante a mostruários de auto-ajuda. Antes de me encaminhar para as conclusões, quero elencar, de forma sumária, quatro consequências imediatas de um discurso académico submetido à lógica do “artigo para consumo e acumulação”:

a) multiplicação do esquema da “claque de futebol” nos ambientes universitários; b) afunilamento progressivo do universo de possíveis: por via da “lei da concorrência”, iremos, cada vez mais, falar dos mesmos autores, dos mesmos textos, e de formas extremamente semelhantes entre si (e isto já está a contecer); 9

Roberto ESPOSITO, Bios – Biopolítica e Filosofia, tradução de M. Freitas da Costa, Lisboa, Edições 70, 2010, p. 74.

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c) criação de espaços em branco na memória do sistema, buracos cujo conteúdo não foi considerado “suficientemente interessante” (entenda-se, competitivo) para merecer a atenção pública do leitor académico; d) reduzida a puro conteúdo, a literatura corta todos os laços com a realidade contingente, e reduz-se ao lugar de passatempo.

No fragmento VII das “Teses sobre a Filosofia da História”, Walter Benjamin escreveu:

Para o materialista histórico não será preciso dizer mais nada. Aqueles que, até hoje, sempre saíram vitoriosos integram o cortejo triunfal que leva os senhores de hoje a passar por cima daqueles que hoje mordem o pó. Os despojos, como é da praxe, são também levados no cortejo. Dá-se-lhes geralmente o nome de património cultural. Eles poderão contar, no materialista histórico, com um observador distanciado, pois o que ele pode abarcar desse património provém, na sua globalidade, de uma tradição em que ele não pode pensar sem ficar horrorizado. Porque ela deve a sua existência não apenas ao esforço dos grandes génios que a criaram, mas também à escravidão anónima dos seus contemporâneos. Não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie. E, do mesmo modo que ele não pode libertar-se da barbárie, assim também o não pode o processo histórico em que ele transitou de um para outro. Por isso o materialista histórico se afasta quanto pode desse processo de transmissão da tradição, atribuindo-se a missão de escovar a história a contrapelo. 10

A proposta quis trazer aqui a discussão consiste em fazer precisamente o caminho inverso deste. Hoje, quando fazemos crítica literária, somos esse observador distanciado que encara com um horror inconfessável uma tradição na qual não se revê. A história onde nos desejamos inscrever (os “modelos de referência”) é a história do vencedor, e a sua forma de pensar é o que chamamos “estudos culturais”. Receio que Benjamin estivesse correcto, e que só é assim porque esse é o modo de integrar no cortejo triunfante do homem pós-histórico os despojos a que chamamos “património cultural”. E isto é a epítome da ausência de memória dos tempos em que vivemos. 10

Walter BENJAMIN, “Sobre o Conceito da História”, in O Anjo da História, tradução de João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, pp. 12-13.

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A história da literatura, ou filologia que defendo, não é tanto uma plataforma de normalização da leitura, nem sequer um meio de inculcar modos de ler. Trata-se, sim, de nos dar a pensar a própria memória, numa época em que tudo parece reduzir-se ao aqui e agora incessante e iterativo, um aqui e um agora regidos pela lógica da produtividade e da competitividade. Ao (re)introduzir no nosso trabalho a grande temporalidade, a história da literatura relativiza, de um modo que só ela poderá fazer, esta tirania do presente. Convida-nos a voltar a encarar com a maior seriedade as margens do texto, mesmo que isso implique esquecer um pouco o texto em si. Coloca em causa as hierarquias de valores e prioridades que por hábito tomamos como absolutas, e coloca-nos perante a nossa ideia de tempo.

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