Nas espumas do tempo

June 5, 2017 | Autor: Jorge luiz Veschi | Categoria: Filosofia Psicanalise
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Mais adiante vamos ver este tempo ocupando praticamente todo o espaço do tempo na modernidade, principalmente assessorado pela ciência, que o toma como "tempo oficial". É a partir desta perspectiva que se pode esperar do conhecimento das causas dos acontecimentos, também, tanto o conhecimento de seu princípio quanto o de sua essência, de forma a tornar-se assim possível um assenhoramento sobre ele.
CARNEIRO LEÃO, E, 1992 p. 134.
Ibidem p. 136.
Ibidem p. 142.
ARISTÓTELES, 1973 v 6 p. 241.
Ibidem p. 242.
CHATÊLET, F. 1973 p. 141


Ibidem p. 141.
Ibidem p. 146.
ARISTÓTELES, 1973 v 6 p. 241.
PLATÃO 1975. v 5 p. 43.
Ibidem p. 59.
Quando se fala em Deus e em divindade trata-se de uma das formas forçadas pela intervenção religiosa nas traduções e pela nossa possibilidade de traduzir. De fato diz respeito á significando "aquele que põe", ou seja, o princípio ativo. Pode ser também uma tradução para significando "aquele que olha a partir de um ponto de onde se vê, olha de cima". No caso, Demiurgo representa o aspecto realizador da divindade, das forças ativas. Esta entidade sempre foi problematizada na idade média onde não se decidiu sobre o fato de ser a criação um bem ou um mal - na medida em que não se decidiu sobre a ética da matéria -, como também não se decidiu sobre porque teria Deus decidido criar o mundo. Para os gregos fica evidente, principalmente em Platão, que aquilo designado por deus é o próprio mundo sendo este tratado enquanto entidade viva. Vida aqui tem o sentido pleno de (zoon) esclarecido por Emmanuel Carneiro Leão como sendo: "a pura explosão da realidade numa variedade de modos de surgir e de formas de aparecer das realizações do real, por exemplo, no desabrochar dos brotos da primavera". É por isso que o próprio deus podia ser designado como ( Zoa), ou seja, uma realização que surge de si e por si mesma e, em surgindo, instala um mundo estável, autônomo e original de referências". Mais tarde foi se fazendo uma diferença entre este termo ( zoon) e Bios, passando este segundo a designar a vida própria do homem e zoon designar a vida em geral.
PLATÃO. 1986. V. 11, p. 77

DELEUZE, G. 1975 p. 268.

LUCRÉCIO. 1975 p. 63.

DELEUZE, G. 1975. p. 275

Corresponde a um sentido existente no hebraico e depois no árabe de nefis , relativo ao sentido tardio de "alma" se diz de nefis corresponde a algo que não é nem corpo nem alma. Freud virá a usar o termo seele do alemão para dizer do objeto de ocupação da psicanálise, para distingui-lo de Geistig: seele aponta para o sentido de alma mas é usado por Freud para se referia a algo que não é nem intelecto ou espírito ( Geistig - objeto da filosofia tradicional da época e da psiquiatria) , nem corpo ou mente,
DELEUZE,
. 1975. p. 279.
;I, Vol. V.
Editora Abril Cultural, 1973
, página 26.
Epicuro, Antologia de textos.
LUCRÉCIO. 1975, v 5 p. 83.
Ibidem p. 83.
Ibidem p. 89.
EPICURO. 1975 v 5 p. 42.
BRUN, J. 1986. p 50.

O espaço também não se confunde com o vazio do qual decorre a possibilidade tanto do movimento quanto do estabelecimento da diferença da qual, inclusive, decorre as condições do exprimível.

BRUN, J. 1986. p. 53.
DELEUZE, G. 1975 p. 169.
Ibidem p. 170
Ibidem p. 172.
SANTO AGOSTINHO. 1976 v 6 p. 235.
Ibidem p. 239.
Ibidem p. 245.
Idem
Ibidem p. 247.
Ibidem p. 252.
Ibidem p. 255.
Ibidem p. 204.
Ibidem p. 209.
Ibidem p. 213.
HEGEL, G. W. F. 1967 p. 196.
Quem faz esta construção mais detalhada é Paulo Eduardo Arantes, no seu livro:
Hegel, A ordem do tempo.
Editora Polis, 1981.
SCHELLING. E. p. 137.
Hegel. G. W. F, 1952, p. 558.
Hegel, G. W. F, 1967, p. 182.
HEGEL, G. W. F, 1967. p. 170.
HEGEL, G. W. F, 1952. p. 521.
Ibidem p. 347.
Ibidem p. 223.
HEGEL, G. W. F, 1967. p. 85
Ibidem p. 135.
HEGEL, G. W. F, 1970. p. 112.
HEGEL, G. W. F, 1952.
HEIDEGGER, M, 1993 p. 29.
HEIDEGGER, M, 1988. p. 59.
HEIDEGGER, M, 1990. p. 156.
Idem
HEIDEGGER, M, 1993 p. 180.
VATTIMO, G, 1995. p. 59.
HEIDEGGER, M, 1990. p. 154.
VATTIMO, G, 1995. p. 50.
HEIDEGGER. M, 1993 v 2 p. 9
HEIDEGGER, M, 1993 p. 235.
Ibidem p. 240.
Ibidem p. 268.
Ibidem p. 419.
Ibidem p. 374.
Ibidem p. 334.
HEIDEGGER, M, 1993 v 2 p. 120.
Ibidem p. 123.
cujos sentido etimológico vêm de "ritornello", ou seja, aquilo que retorna - aquilo a se repetir.
NEUGENBAUER, O, 1957 p. 81.
WHITHROW, G. J, 1993. p. 42.
Ibidem p. 43.
Ibidem p. 132.
Ibidem p. 137.
CIPOLLA, C. 1967. p. 42.
BOILE, R, 1772. p. 261.
WITHROW, J. G, 1988. P. 142.
LEIBINIS, G.W. , 1934. p. 200.
LIGHTMAN, ª 1993. p. 24.
Ibidem p. 33.
COVENEY, P & HIGHFIELD, R. 1990 p. 80.
LIGHTMAN, A , 1993 p. 148.
CONVEY, P & HIGHFIEL, R ,, 1990. p. 71.
COVENEY, P - HIGHFIELD, R. 1990. p. 27.
Ibidem p. 102.
"A noção de atrator se liga às forças de orbitação dos movimentos. Um pêndulo, por exemplo, é "atraído" para um ponto lógico no centro da oscilação. Esse ponto lógico é o que o "atrai" qualquer que seja o sentido de seu movimento, não o deixando "escapar". Dizemos, então que esse ponto é um atrator.
" Por outro lado, em um regime de turbulência esse atrator não é expresso por uma razão inteira - tem uma expressão fractal - e espalha-se por todo o sistema, de forma que o fluxo é jogado em várias direções ao mesmo tempo. A esse tipo de atrator designou-se atrator estranho.
"Enquanto um atrator é um ponto orbital para onde toda trajetória converge, o atrator estranho não se faz corresponder a um estado de equilíbrio e instaura um regime de instabilidade. É preciso ainda considerar que o grau de liberdade da órbita de um atrator estranho é praticamente infinito, visto ser sua composição fractal." - VESCHI, J. L. 1993. p. 173.

"A geometria do fractal é a geometria do emaranhado. O fractal é, também, o auto-semelhante, um padrão dentro de um padrão rebatendo n vezes em cascata. É um pedaço de uma forma que vai configurando uma forma de pedaços por rebatimento, constituindo uma diferença e uma complexidade através do rebatimento de semelhanças. Essa situação permite afiançar que não é só a diferença que produz diferença, a própria semelhança não assegura a completude, a unidade, a linearidade - ela pode muito bem evoluir para um estado diferencial.....O fractal é um princípio segundo o qual nada que existe é inteiro. Todo real é fracionário; o inteiro não chega nunca a constituir-se, nunca se chega ao Um." Ibidem p. 147.
PRIGOGINE, I. 1988. p. 21.
Ibidem p. 28.
Ibidem p. 37.
BEAINI, T. C. 1995. p. 393.
Mesmo o sentido de mãe enquanto geradora deve ser visto enquanto o recolhimento da "parte mãe" de uma mulher. Uma criança é composta pela "matéria" proveniente deste recolhimento. Desta forma, uma vez composta a criança, o que sobra já é mulher.
É Nietzsche quem faz uma referência significativa sobre isso dizendo não poder ter qualquer admiração por um deus que não soubesse dançar.
SODRÉ, M. de A. 1981. p. 49.
Ibidem p. 33.
SODRÉ, M. de A . 1984. p.35.
Ibidem p. 66.
BERGSON, H. 1990. p. 9.
Ibidem p. 12.
Ibidem p. 193.
Ibidem p. 120.
Ibidem p. 113.
MECACCI, L. 1987, p. 145.
PARENTE, A . 1993. P. 15.
Ibidem p, 16.
Ibidem p. 117.
Os caças de guerra americanos, por exemplo, vão ter suas cabines de comando blindadas e serão equipados com sistemas da câmeras incluindo raio X e infra vermelho capazes assim de ter uma visão clara do território mesmo a noite ou com o tempo encoberto. O piloto usará um capacete de realidade virtual de onde receberá a imagem depois desta passar pelo computador que "recortará" da imagem obtida apenas aquilo de interesse para a missão: esta será a imagem que o piloto receberá.
PARENTE, ª 1993. p. 190.
DELEUZE, G. 1990. p. 98.
Ibidem p. 102.
Ibidem p. 108.
Ibidem p. 174.
CARROLL, L. 1980. p.182.
Ibidem p. 194.
Ibidem p. 88.
Espírito no sentido daquilo que se opõe ao natural, como tal caracteriza a maneira do ser dos homens. Para se ver como isso se manifesta onde esta questão do tempo como pai da verdade se fomentava vamos ver um acontecimento em torno de Alexandre da Macedônia: Quando estava atravessando um deserto com uma armada de mais de 150.000 homens acabou a água. Os generais reunidos diante de uma aporia ( situação na qual a solução é ausente) desta decidem pela vida de Alexandre. Mesmo sem água cada cantil deveria(ter pelo menos uma gota de água, e eram mais de 150.000 cantis. Um jarro é passado pelo exército e cada um seca seu cantil no jarro. No final havia um jarro de água. Os generais o oferecem a Alexandre. Ele convoca a reunião dos homens e diz: "Para atravessar um deserto é preciso mais que água, é preciso espírito". Despeja então a água no solo. O exército acaba conseguindo atravessar o deserto e funda Alexandria.

HOBSBAWN, E. 1995. P. 196.
DURANT, W. 1971. p. 7.
CROUZET, M.. 1993. p. 20.
FOUCAULT, M. 1966. p. 286.
PERELMAN, C.. 1969. p. 138.
BACHELARD, G. 1992. p. 49.

LEFORD, C. 1992. p. 120.
FOUCAULT, M.. 1979. p. 17.
DELEUZE, G. 1988. p. 68.
Ibidem p. 18.
Idem.
Idem
BACHELARD, G. 1992. p. 191.
VERNANT, J. P. 1965. p. 53.
FREUD, S. 1972. p. 511.
Ibidem p. 513.
No "Entwurf" Freud faz uma construção para o sistema anímico procurando afirmar seu ponto de vista "materialista". Vincula-o a neurônios devendo estes serem tomados atualmente enquanto metáforas apesar da sua concepção estar avançada para o conhecimento neurológico da época, do qual Freud participava assiduamente. Os neurônios "fi" ( ) são responsáveis por receberem os estímulos provenientes da energia decorrente tanto do exterior ( Q ) quanto do interior do organismo ( Q ). A sensibilidade como sinônimo de características individuais de ser afetado e a percepção, como a maneira pela qual a realidade é recortada naquilo que interessa, fazem parte de uma "tela", de um "filtro" nos órgão do sentido, atuando sobre o apreendido. Os neurônios "psi" ( ) constituem-se de trilhas (Bähnungen) produzidas pela passagem da energia e reguladas pelas vivências de dor, ou aflição, e de satisfação, ou apaziguamento. Os neurônios "ômega" ( ) compõem as condições do consciente através da produção de atributos de qualidade, é ali onde se decide sobre a realidade - os dados de realidade e os ajuizamentos - apesar deste sistema neural não ter contato com a realidade externa. Um último sistema de neurônios, os neurônios chaves são responsáveis pela liberação do afeto intrinsecamente - este afeto é a Ängst ( angustia ou ansiedade ) construídos a partir de restos de lembranças.
FREUD, S. 1970 p. 316.
N.A. O termo "Bild" é bastante significativo para a psicanálise. Ele significa a imagem mas também a moldura - trata-se de uma formatação, da incidência de algo a dar forma e contexto. "Imagem mnêmica" diz da formatação exercida pela recordação, pelos componentes imaginários. A imagem tem, na psicanálise, este sentido fundamental de dar forma e contexto - colocar em foco.
Freud, S. 1970 p. 337.
Ibidem p. 320.
Ibidem p. 321.
É Kant quem vai mudar o objeto de questionamento da filosofia do "Bem ( Agaton )" para a "Lei" deixando ver, com isso, a transformação da sociedade e do homem desde os gregos até o moderno. Instaurando a Lei como contingente as condições de liberdade e da vontade, condições através das quais se constitue o sentido de natureza e de cosmo enquanto ordenações de linguagem calcadas sobre o real. Através destas formulações Freud chega a colocar os princípios do Sobre-Eu ( Über-Ich) bastante caros tanto a teoria quanto a clinica da psicanálise. O extenso e detalhado trabalho de Kant "A critica da faculdade do juízo" aparece muito clara nas formulações freudianas tanto do consciente quanto de todo aparato de qualificação e de liberação de investimentos reguladores do eixo "prazer/desprazer" em torno do qual giram as vivências anímicas.
FREUD, S. 1990. p. 337.
Ibidem p. 338.
Ibidem p. 339.
Freud, S. 1988. p. 61.
Vorstellung é um termo dos mais importantes em Freud e dos mais difíceis de se traduzir. Diz respeito aquilo que é colocado diante de algo, porisso foi traduzido como idéia na tradução oficial ( mas existe o termo Idee em alemão e trata-se de algo mais "concreto" que uma idéia ), Lacan costuma traduzi-lo como "representante" mas, como vemos aqui mesmo, existe tal termo também usado. "Repräsentanz" significa representante no sentido de uma espécie de emissário, embaixador, advogado etc. Geralmente prefiro deixa-lo sem traduzir ou traduzi-lo como "aquilo que se estabelece diante de" passando, este algo, a estabelecer uma relação metafórica ou de recorrência em relação aquilo diante do qual estabeleceu-se. Por exemplo, um nome sendo colocado diante de algo ou alguém passa a ter com este uma relação de "Vorstellung".
Ibidem p. 62.
Isso é traduzido na versão oficial da obra de Freud como "representante ideativo do instinto."
FREUD, S. 1990 p. 426.
Freud diz que o Objekvorstellung é composto pela conjunção da Sachevorstellung com a Wortvorstellung correspondente. Isso é muito difícil de interpretar e o sentido do ofício analítico depende de como se faz a tradução desta formulação. Objekvorstellung é aquilo colocado diante do objeto, este objeto é aquilo a ser jogado diante do sujeito feito as suas expensas distinto, portanto do Gegenstand (que também significa objeto em alemão mas não é usado regularmente nos textos freudianos), ou seja, podemos interpretar aquilo colocado diante do jogado perante o sujeito como sendo da ordem do sujeito, ele mesmo. Sachevorstellung é aquilo colocado diante das coisas, dos casos enquanto pertencentes a um contexto a lhes conferir sentido e "acompanhamento", ou seja, podemos interpretar como sendo o nome, a palavra. Wortvorstellung é aquilo colocado diante da palavra, ou seja, podemos interpretar como sendo as coisas, os acontecimentos, as sensações. Freud diz que no inconsciente recalcado estão as Sachevorstellungen sózinhas devido a ação do recalcamento ter intervido na ligação dela com sua Wortvorstellung. A pressão inconsciente é para procurar fazer esta ligação de forma a constituir a Objektvorstellung , ou seja, o sujeito.
FREUD, S. 1978 p. 76.
FREUD, S. 1972. p. 112.
Ibidem p. 182.
Ibidem p. 312.
Ibidem. p. 90
Idem
O sofisma é o seguinte: O diretor de uma prisão faz comparecerem 3 prisioneiros escolhidos e lhes comunica o seguinte:
"Por razões que não lhes direi no momento, libertarei um de vós. Para decidir qual, remeto a sorte a uma prova pela qual passareis, se estais de acordo.
"Sois 3 aqui presentes. Eis aqui 5 discos que não diferem senão pela cor: 3 são brancos e 2 são pretos. Sem dizer-lhes qual deles terei escolhido, ficarei a cada um de vós um desses discos entre os dois ombros, isto é, fora do alcance do olhar direto; toda possibilidade indireta de terem acesso pela vista será igualmente excluída pela ausência, aqui, de todo meio de se mirarem.
"A partir de então, todo lazer vos será dado de considerar vossos companheiros e os discos dos quais cada um deles se mostrará portador, sem que vos seja permitido, bem entendido, comunicarem um ao outro o resultado de vossa inspeção. O que de resto vosso único interesse mesmo já interdiria. Pois é o primeiro a poder concluir sobre sua própria cor que deve beneficiar-se da medida liberatória da qual dispomos.
"Será necessário ainda sua conclusão seja fundada sobre motivos de lógica, e não somente de probabilidade. Para este efeito, é entendido que, desde que um dentre vós estará pronto a formular uma tal conclusão, ele transporá esta porta a fim de, tomado à parte, ser julgado pela sua resposta."
A proposição aceita, ornamos nossos três sujeitos cada um de um disco branco, sem utilizar os pretos, dos quais dispúnhamos, recordemo-lo, somente de 2 exemplares.
A solução perfeita:
Após terem se considerado entre eles um certo tempo, os 3 sujeitos dão juntos alguns passos que os levam conjuntamente a transpor a porta. Separadamente, cada um deles fornece então uma resposta semelhante que se exprime assim:
"Eu sou branco, e eis como se: Uma vez que meus companheiros eram brancos, eu pensei que, se eu fosse um preto, cada um deles teria podido inferir o seguinte: "Se eu fosse um preto também, o outro, tendo reconhecido imediatamente que ele é um branco, teria saído imediatamente, portanto não sou um preto". E os 2 teria saído juntos, convencidos de serem brancos. Se eles não faziam nada, é porque eu era um branco como eles. Pelo que, me dirigi para a porta, pra transmitir-lhe minha conclusão".
É assim que todos os 3 saíram simultaneamente convictos das mesmas razões de concluir.
LACAN, J. 1966. p. 197.
Este termo é usado por Freud e depois retomado por Lacan para dizer do mecanismo da psicose. Trata-se de um dispositivo intensivo e tem sua origem no radical werfen que significa também a atividade de "parir" das fêmeas. Trata-se de uma atividade ambígua de excluir mas também de fazer surgir.
LACAN, J. 1966. p. 200.
Ibidem p. 81.
Revue de Psychanalyse - "La cause freudienne".
Le temps fait Syntôme: "Deux modes d'interpretation", 1995.
Ibidem p. 17.
Ibidem p. 34.
Ibidem p. 12.
PORGE, E. 1994.
Ibidem p. 131.
Pathos é um termo grego clássico significando, simultaneamente, paixão e patologia. Significa mais literalmente, afecção. Aponta para a aptidão em ser afetado.
PORGE, E. 1994. p. 33.
Ibidem p. 134.
Ibidem p. 146.
Ibidem p. 146.
Ibidem p. 157.
LACAN, J. 1966. p. 208.
Revue de Psychanalise "La Cause Freudienne". Les Temps fait Syntôme, 1995. p. 26.









NAS ESPUMAS DO TEMPO.


Jorge Luiz Veschi.















































Para Tarik, meu filho.
Para Luna Lyàng, minha filha.
Para Ksander, meu filho.




















Agradecimentos:
Ao pessoal da Escola de Comunicação por terem possibilitado este estudo, em particular para o Prof. Muniz Sodré pelo seu acompanhamento.
A Isabel pela sua compreensão.
A Angela pela revisão do texto.
Aos meus analisandos, pelo seu tempo.




SUMÁRIO:

1 INTRODUÇÃO.
2 ALGUNS ASPECTOS DA FILOSOFIA COM O TEMPO.
Os tempos e o Tempo.
Os sentidos de Arché.
Maneiras diferenciais da Arché.
3 O TEMPO MAQUÍNICO.
Processos de marcação do tempo.
O tempo na ciência clássica.
Na direção de uma concepção do Caos e sua relação com a temporalidade.
Sobre o nascimento do tempo.
O tempo na arte e na paixão. Introdução para o paradigma científico.
4 O TEMPO NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO (NA MÍDIA).
O tempo enquanto fator político
O tempo livre e a liberdade do tempo. Ócio e tecnologia.
A imagem-máquina e a imagem-tempo.
O tempo nos instrumentos da mídia.
O tempo na informação e na ficção.
A comunicação e o amor.
Tempo, verdade e comunicação.
5 O TEMPO HISTÓRICO E O TEMPO MITICO.
O ponto de vista da história.
Sobre os monumentos.
O tempo histórico como presente antigo. As expectativas de um presente antigo.
A História e as histórias.
O tempo mítico.
Sobre o sentido do mito.
6 O TEMPO NA PSICANÁLISE.
O "período" e suas conseqüências enquanto "ser (ou estar) consciente".
A problemática do sentido de "Nachträglischkeit".
Tempo e inconsciente.
O atemporal como dizendo do sentido de um não-desenvolvimento.
Tempo e repetição.
Lacan e o tempo na psicanálise lacaniana, ou o "tempo lógico".
As situações clínicas com forma de objetivar e a problemática do tempo.
7 CONCLUSÃO.
8 BIBLIOGRAFIA.






1 INTRODUÇÃO

"Tudo aquilo que responde é o tempo."


Tempo é o nome de uma questão intrincada para nossa tradição. Vamos tentar situar algumas nuances deste intrincamento.
Para a filosofia o termo "tempo" diz respeito a várias coisas reunidas pela nossa linguagem e pelo nosso senso comum a este nome único. Vamos ver como os gregos viviam estas diferenças e a maneira como, depois de passar por um longo processo de compactação, o tempo vai surgir associado ao ser. Podemos encontrar isso bem colocado em Hegel e em Heidegger.
Pelo lado da ciência vamos encontrar um "tempo" feito, operacionalizado. Este foi se transformando no "tempo comum", na medida da proliferação da ciência, através da tecnologia e suas "maquininhas" para o desejo. Podemos encontrar a ciência em vias, não só de medir como, também, de "fazer tempo" , da mesma maneira como já fez espaço por onde trafegamos em nossas máquinas voadoras. Na ciência o tempo aparece ligado ao espaço e implicado no movimento na física e às estruturas dissipativas na química. Veremos como se está procedendo nesse sentido e a atração exercida por esta concepção sobre nosso imaginário.
A mídia, situada entre a ciência (episteme) e a opinião, se utiliza deste tempo produzido para fazer uma "realidade rápida", enquanto reportagem. Tal realidade apresentada pela mídia já composta deste tempo produzido rápido, opera sobre o imaginário coletivo, impondo uma maneira de vida. Operando não apenas no sentido de informar mas, sim, de formar e formatar a realidade, a mídia situa-se em um "meio" cuja característica não é, de forma alguma, neutra. O tempo de seu fluxo, apresentando-se como sendo o fluxo dos acontecimentos do mundo, cria um atrator sobre as condições de realização anímicas e sobre os dispositivos de apreensão subjetivos da realidade, de forma a forçar, em cada um, não só o preenchimento da imagem esvaziada das potências do acontecimento tal como é apresentada pelos instrumentos da mídia, mas, principalmente, impõe um novo tipo de subjetividade totalmente absorvida pelos fluxos de informação.
Na história, vamos encontrar, por um lado, um sentido de historicidade inerente a forma de apreender o real feito pelos homens e, por outro, uma história enquanto discurso afirmador de uma realidade não mais presente. Aqui teremos de distinguir duas coisas: 1) se os monumentos mundanos e pessoais ( memória e objetos-lembranças) dizem respeito àquilo cuja presença afirma sua importância em seu tempo ou não. Ou seja, se tal presença diz respeito ao fato de não terem sido consumidos, como tudo o que é objeto para a fruição desejante; 2) distinguir um presente antigo de um passado, bem como a maneira através da qual a construção do passado serve tanto para a afirmação do desejo no presente quanto para as intenções de futuro. Será preciso distinguir o sentido do tempo mítico do histórico, ou seja, distinguir infinito de eterno. Apesar do mítico parecer ter desaparecido, de fato, vive sua potência tanto na paixão quanto na arte - formas a sustentarem-se da recuperação, tanto do tempo perdido quanto de tudo aquilo que se perde ou falta.
Quanto ao ponto de vista da subjetividade, vamos recorrer à psicanálise para levantar alguns pontos como, por exemplo: 1) o sentido do Nachträglichkeit (ulterioridade), onde a psicanálise vive o seu mais profundo dilema e onde vamos nos encontrar com o "chicote do tempo"; 2) o Zeitlos (atemporal), como sendo a maneira do tempo apresentar-se desde as vivências inconscientes, sendo esta forma privativa, algo de forma alguma inócua mas, sim, esta privação produzindo efeitos muito determinados na nossa forma de existir e dm desejar; 3) o período como responsável pela realização da qualidade a partir da consciência e, desde aí, responsável pela produção dos "dados de realidade" e, 4) a fixação, a wiederholungswang (compulsão a repetição) e o Trägheitprinzips (princípio de inércia, ou de preguiça), cuja atividade formulada enquanto rede, enquanto conjunto, será fundamental para compreendermos aquilo vivido por nós como sendo a temporalidade. Vamos ver, aqui, as peripécias realizadas pelo sujeito em conseguir colocar-se no lugar das causas, inventando um novo começo, sendo para isso necessário operar o tempo.
Na medida de ser o tempo aquilo que responde, ele mesmo não é possível de ser respondido. Vamos fazer surgir problemáticas e diferenças inconciliáveis ligadas ao sentido e a vivência do tempo, isso tanto dizendo respeito a diferenças de áreas quanto dentro de um mesmo paradigma este apresentar uma diferença. É a energia proveniente deste conflito interna que vai ser usada para as realizações de uma práxis proveniente deste discurso, deste conceito em crise. Um conceito que não tenha este tipo de crise não tem as condições de possibilidade para fazer surgir uma práxis - tal como um ovo que não for atravessado por uma dissimetria não será capaz de fazer surgir um organismo.
A fissura entre os universos discursivos que vamos trabalhar aqui é, não só, feita pelo pela intervenção do tempo como a presença do tempo - tal como a fissura entre um tique e um taque. Mas, no nosso caso, sem o sentido de avanço, mas, sim, o de diferença.


2 ALGUNS ASPECTOS DA FILOSOFIA COM O TEMPO

O sentido de filosofia deve ser procurado em uma noção estranha para nós - a noção de (filos) e de (sofia). Quanto ao filos vamos vê-lo dentre as várias vivências gregas condensadas por nós sob o título de "amor", apesar de, também, ser usual traduzi-la como "amigo"- amigo do saber ou amante do saber. Filos, porém, é um tipo muito particular de amor: trata-se do amor entre afins, daí se poder aproximá-lo do sentido de amizade. O fato de acontecer entre afins, não elimina dele as condições inerentes ao amor: sua diferença interna entre o princípio ativo e o passivo - entre um polo amante e um polo amado.
Quanto a sofia, trata-se do saber, mas não é qualquer saber: trata-se de um saber incorrendo em um aprender. Sócrates definia com exatidão este lugar, distinguindo o filósofo do sábio: o sábio não deseja o saber, visto ele já o possuir - ser uno com o saber - não é o caso do filósofo que por não ter o saber, o deseja e o ama.
A filosofia surge, exatamente, quando se começou a interrogação do "ser das coisas": "O que é aquilo que é?". Existe uma falta associada a uma dessacralização na base do tipo de saber e de atividade da filosofia. A relação de filia entre o filósofo e o saber é sempre desejante e desnivelada - possui uma tensão interior, mesmo estando calcada em uma afinidade entre o ativo e o passivo (entre saber e estudante), de tal maneira a um atrair-se pelo outro. Esta afinidade, porém, é índice de diferença.

2.1 Os tempos x O Tempo.
Para nós o termo tempo guarda, se não a multiplicidade, pelo menos uma dubiedade de sentido: significa tanto o clima quanto a marcação. Seu sentido dizia: separar e também misturar. Separar como no sentido de distinguir dia e noite, estação de estação, período de período. Misturar como no sentido de temperar, têmpera, temperatura. Veio a significar: duração, através da demora da têmpera dos metais, da mesma forma como hora significava o tanto de oração diária nos conventos.
Não existe qualquer linearidade na forma de apreender o tempo a partir do tipo de questionamento ontológico. Tempo foi sempre o nome de uma multiplicidade desnivelada dentro de si mesma. Seus elementos não formam um todo, mas sim, pelo contrário, mantém um estado diferencial, cujo tensionamento designa-se "tempo", Trata-se do nome de uma das faltas de totalidade.

2.2 O sentido de Arché
Um dos elementos desta multiplicidade é a Arché . Trata-se do nosso Princípio ou o Begining do inglês. Nesta linha já existe um desnivelamento dentro dela mesma. Trata-se da presença diferencial do sentido de Arquizo ) , ou seja, o nosso Começo ou o to begin do inglês em relação ao sentido de Princípio.
O princípio diz de uma força primordial fazendo o começo começar, mantendo-se ativa ao longo do acontecimento e realizando-se no final enquanto fim ou finalidade. Tornou-se objeto tanto da física ( na sua procura das fórmulas dos movimentos), quanto da química ( na sua procura da fórmula - a essência - das substâncias e das transformações).
O começo representa apenas uma das partes do princípio. O começo só aparece quando as forças mais intensas na base do acontecimento, forças estas eminentemente turbulentas, já estão sob a égide de uma intenção. No começo o sujeito já tem uma impressão de um domínio relativo - próprio ou de alguém - sobre as causas do acontecimento, impressão esta estranha às potências indômitas do princípio. Quando os primeiros filósofos discutem as origens gênesis e as causas ( aitía daquilo que é ( tá on - tá onta eles estão discutindo a partir de uma Arché - princípio este referido a uma forma do tempo. O sentido de causa (aitía) aparece como um derivado tardio para o princípio (Arqué). O sentido de aitía implica a introdução do sentimento de culpa visto ele significar, exatamente, "passar a culpa, a responsabilidade adiante; provocar - não deixa de assentar-se em uma forma de dívida" enquanto a Arqué está sempre presente. Aitía carrega já o sentido de uma temporalidade serial, conseqüente. Para nós da língua latina já fomos desde o inicio introduzidos no sentido de causa - de cadere, cair; aquilo que cai - portanto em uma acepção distinta da Arqué.
Existe uma tensão no pensamento grego chegando até nós. Trata-se da tensão intrínseca à questão da Arché: entre aparência ( ) e essência ( , ousia). O problema diz respeito ao fato de se decidir sobre se existe uma simultaneidade e sinonímia entre ser e essência, fazendo coincidir aparência ( - fainomai e essência, bem como fazer coincidir princípio com começo, na forma do tempo ser sempre presente e atual - este tempo foi sempre conhecido como "Cronos", de acordo com o qual só o presente existe. Para Cronos, tanto o passado quanto o futuro aparecem enquanto potências do presente, ou seja, como presente antigo ou como presente avançado. Cronos é um tipo de presente tornado vasto e profundo.
Virá fazer uma diferença entre ser e essência, com a aparência aparecendo e o princípio como sendo aquilo mesmo a incidir sobre a essência, exercendo sobre ela uma privação, uma perda, de maneira a ser o resultado disso aquilo a aparecer como sendo o ser. Precisará vir a incidir sobre este uma nova privação para se dar o começo e o que aparece. O tempo, na forma do princípio, agiria como uma privação de onde adviria o aparecimento e a manutenção daquilo que aparece.

2.2.1 Maneiras diferenciais da Arché.

a) O sentido de Cronos em Aristóteles e Platão.
Aristóteles e Platão podem começar por representar uma linha desta diferença, sendo que esta mesma se diferencia intrinsecamente. Esta diferença é relativa a maneira como cada um deles formula o tempo. Isso começa já a partir de uma distinção ou não entre aparência e essência. É possível se dizer, aqui, de uma diferença entre um "materialismo" e um "idealismo".

Aristóteles e o tempo físico.
No seu tratado de Física, Aristóteles nos apresenta o tempo enquanto inerente ao mundo e às coisas. Um tempo onde um fim esta sempre ligado a um começo, sendo este, exatamente aquilo a fazer começar o que acaba. Presente na matéria - nas coisas, no mundo - faz com que esta permaneça reciclando-se. Trata-se de algo como os "ciclos da natureza". Mas a "natureza" é o nome dado à forma específica do homem apreender o mundo e as coisas - através do Lógos - ou seja, um real ordenado e hierarquizado. Daí usar um aforisma grego antigo para dizer da forma do ser do homem: (zoon logói ehon) - isso foi traduzido como "animal racional", mas nos interessa num sentido mais preciso, particularmente no sentido de logói traduzido por razão, discurso ou fala.
significa "viver", mas no sentido sempre impregnado pelo mistério, tal como era próprio do grego formular.
Carneiro Leão aponta para este sentido com muito primor: "Trata-se de uma explosão contínua e constante, ligada ao sentido de brotar e de vir à luz - no vigor de abrir-se e de expor-se à luz do sol".
Mais tarde, distinguiu-se este sentido de Bios, ficando o primeiro, relativo a vida em geral e o segundo , relativo a vida própria dos homens.
(Lógos) tem o sentido primordial de recolher, reunir, juntar.
" De per si, a raiz significa dispor uma coisa ao lado de outra, num conjunto. Pois o ajuntar de - não amontoa simplesmente coisas de qualquer jeito. Colhe e escolhe para acolher e recolher, separando por parâmetros, distinguindo por critérios, selecionando por princípios de ordem. Trata-se de um ajuntar diferenciado que concentra, isto é, acolhe as diferenças numa força e num centro de reunião".
Portanto, a natureza corresponde à égide da aplicação do lógos, de uma reunião que, enquanto tal, está sempre reunida no presente, enquanto atualidade. O sentido de atual é, exatamente, relativo à reunião de todos os elementos ativos em um tempo. Trata-se de algo concebido pelo lógos, pela ratio (termo latino mais ou menos equivalente a Lógos).
( Ehon) implica um sentido de um "tendo". Isso para dizer de como o lógos não é algo já dado, mas sim, a ser sempre e constantemente conseguido e conquistado. Sempre em jogo e em questão. Trata-se de um ter implicando um ser: "Em tudo o que se tem, é preciso ser o que se tem, para poder ter de um modo criador".
É para ter a linguagem que o homem vem a ser, ele e o seu mundo, também linguagem. Mas esta linguagem, este Lógos, não é algo sobre o qual se possa exercer um domínio absoluto, do qual se possa privar o mistério. Daí o dizer de Heidegger citado por Carneiro Leão: "É a Linguagem que fala, não o homem. O homem só fala, quando responde à Linguagem." Desde aí, este tempo relativo ao lógos vai se apresentar como campo de inserção do homem e onde este aparecerá "respondendo" - respondendo a partir de Cronos.
A Psyche corresponde ao Lógos da Physis em se tratando do corpo. Ou seja, a alma - ou a mente - é a presença da linguagem no corpo.

O tempo físico enquanto implicado no Ato e na Potência. A essência.
Deixar de ocupar-se com a origem para ocupar-se das causas ( . Ao ocupar-se das causas, o interesse do conhecimento passa a ser a produção e a intervenção e não a "enunciação do mundo". Trata-se de uma prática em torno do conhecimento visado enquanto instrumento de intervenção no mundo.
Neste contexto tempo associa-se a movimento - ao Motor Perpétuo - e ao espaço. É onde nós vamos encontrar um dos tipos de tempo com o qual lidamos mais: enquanto devir , sem infinito - é preciso um primeiro e um último: " Se nenhum é primeiro, não há absolutamente causa alguma" e ainda: "Os que admitem o infinito destroem, sem se aperceberem, a própria natureza do bem".
Trata-se de uma temporalidade ligada ao Ato e à Potência , de um lado, e à Essência e ao Acidente , por outro. O devir aparece na direção de um (Agaton - Bem) da forma, cujo sentido é o (hedonai - Prazer). O tempo avança - e faz avançar consigo - evolui na direção do melhor, do Bem enquanto desenvolvimento. E como evolui? Vai de um começo evoluindo até o seu fim - sua finalidade - a partir de onde recicla-se, repete-se em relação a uma outra circunstância.
Chatêlet nos ajuda a introduzir a proposição da essência escrevendo: "A essência é o acidente em potência". O sentido de essência está vinculado a ação do tempo. Como?
A essência aparece atualizada, ligada ao devir - não como algo estabelecido: trata-se de uma tendência, uma força relativa à própria forma, à convocação de matéria que a realize - realize a sua finalidade sendo, esta finalidade, o seu Bem e o seu prazer. A potência (dynamis) implicada com a realização é: "Uma capacidade de tornar-se outra, isto é, de já ser por si mesma, de antemão, de alguma maneira portadora de uma determinação".
Desta forma, está presente na matéria uma "vontade de potência" ( sua essência), ou seja, uma força de convocação para uma forma onde ela se realize, onde encontra seu Bem e seu prazer. O ato (energéia), por sua vez, é esta determinação: fazer coincidir, exprimir a coincidência, de tal forma a "haver causa".
A doutrina das causas (a material, a eficiente, a formal e a final) esta vinculada na Física, devido ao termo Physis significar, em grego, "a ação de engendrar, de produzir, de fazer nascer" e , em Aristóteles, este termo ganha um complemento que nos interessa quanto a questão do tempo: Physis. " É o princípio e causa de movimento e de repouso, imediata e essencialmente presente naquilo em que se encontra".
Ora, é preciso haver uma determinação, um ato, para fazer a causa. Sem isso não se poderia pensar nem começar nada É preciso esta espécie de "basta" na forma do ato, da determinação, para estabelecer tanto o começo quanto o fim. Ligado ao ato, implicado na Physis ( principio e causa tanto de movimento quanto de repouso) onde vamos encontrar esse tempo enquanto aquilo a distinguir um antes e um depois. Escandindo o devir do ser podendo-se a partir daí se definir "o número do movimento segundo o antes e o depois". No mundo sustentado pela Physis, pelo sentido de causalidade, movimento implica o tempo ( mas também o espaço, o infinito e a potência). Existe um turbilhamento ligado ao movimento, turbilhamento este contido pelo tempo, visto ser este, uno e uniforme.
Trata-se de uma intervenção no regime das multiplicidades para lhe possibilitar um Eidos, significando forma, diferentemente de como significa em Platão idéia, conceito. Sendo uno e uniforme sua presença é decisiva desde o acontecimento até o acidente.
Não vale a pena colocar em questão se o tempo faz parte das coisas ou do homem. Todo o questionamento feito em torno da essência e do ser de um lado e da potência e do ato por outro, é para dizer como isso não importa. O homem humaniza ( estabelece-se nos domínios do lógos) - assim como o olho colore aquilo que vê, tudo no homem intervém - e isso é o único "mundo".
Pela intervenção do tempo, a verdade e a realização - o "como" - viabilizam-se. Esta intervenção fará com que sempre:
..."o homem venha da criança como o já gerado do que está sendo gerado, ou o já completo do que se está completando, pois sempre há um intermediário, como entre o ser e o não-ser, o devir, e o que se está gerando, entre o que é e o que não é"'.
Há todo um campo de movimento e de desenvolvimento relativo ao devir. Este movimento está, porém, dentro de uma unidade e de uma uniformidade própria - refere-se a um Todo, mas este Todo exclui o Tudo.

Platão e o tempo enquanto "idéia, conceito".
No Timeu, Platão nos mostra o tempo como um elemento de decadência afirmativa. Agindo na passagem do Eidos (mundo das idéias, dos conceitos, das essências) o tempo torna as essências participantes do mundo ao introduzir nelas a finitude. Enquanto eternos - no Eidos - não se participa das realizações e vivências mundanas.
Timeu enuncia um mito da construção da realidade. Neste paradigma, o tempo está junto com o céu:
"Seja como for, o tempo nasceu junto com o céu, para que havendo sido criados concomitantemente, se dissolvessem juntos, caso venham um dia a acabar; foi feito segundo o modelo da natureza eterna, para que se lhe assemelhasse o mais possível. Porque o modelo existe desde toda a eternidade, enquanto o céu foi, é e será perpetuamente na duração do tempo. O nascimento do tempo decorre da sabedoria e desse plano da divindade e para que o tempo nascesse, também nasceram a lua e os outros cinco astros denominados errantes ou planetas, para definir e conservar os números do tempo. Depois de formar os corpos de todos eles, a divindade colocou-os nos circuitos em que se move a revolução do Outro....
"Em resumo: quando cada um dos seres que deviam cooperar na criação do tempo iniciou o movimento apropriado e, como corpos unidos por laços animados, adquiriram vida e aprenderam as respectivas tarefas, entraram no deslocamento da órbita do Outro, que é oblíqua e corta a do Mesmo e por ele é dominado, alguns movimentando-se em círculos maiores, outros em menores, com maior velocidade os círculos menores e mais lentamente os maiores. Assim, em virtude do movimento do Mesmo, os que se deslocam mais depressa parecem ser alcançados pelos mais lentos, que eles em verdade alcançam. Porque o movimento do Mesmo imprime a todos os círculos uma torção em espiral e pelo fato de se moverem ao mesmo tempo em direções opostas, faz com que o corpo que se afasta mais lentamente desse movimento, que é, de fato, mais rápido, pareça acompanhá-lo mais de perto. Para que houvesse uma medida visível da rapidez e da lentidão relativas com que perfazem as oito revoluções, a divindade acendeu uma luz na segunda órbita a contar da terceira, que presentemente denominamos sol, para encher com seu brilho toda a extensão do céu e para que pudessem participar do número os seres vivos a que isso fosse conveniente, o que eles aprenderiam com a revolução do Mesmo e do Semelhante. Assim e por tal razão, nasceram o dia e a noite, que completam a revolução do círculo único e o mais inteligente; depois nasceu o mês, quando a lua perfaz seu círculo e atinge o sol, e de seguida o ano, ao chegar o sol ao fim de sua revolução. O curso dos outros planetas não é do conhecimento dos homens, excetuado alguns poucos numa infinidade deles; nem lhes deram denominação específica nem os mediram comparativamente com o recurso dos números, a ponto de ignorarem, por assim dizer, que esses cursos errantes, cujo número é prodigioso e de variedade estupenda, sejam o tempo. No entanto, é fácil compreender que o número perfeito do tempo enche o ano perfeito, no momento em que as oito revoluções, com suas diferentes velocidades, completaram juntas seu curso e voltaram ao ponto de partida, calculadas aquelas pelo círculo do Mesmo na sua marcha uniforme. Assim e por essas razões, foram gerados os astros que no seu curso pelo céu estão sujeitos à conversão, para que este mundo se parecesse o mais possível com o animal perfeito e inteligível, na imitação de sua natureza eterna.
"Até ao nascimento do tempo, o mundo já havia sido construído, sob outros aspectos, à semelhança do modelo, mas ainda não tinha todos os animais que nasceram nele...."
..." Então, pensou em compor uma imagem móbil da eternidade, e, no mesmo tempo em que organizou o céu, fez da eternidade que perdura na unidade, essa imagem eterna que se movimenta de acordo com os números e a que chamamos tempo".
Não é ao acaso a escrita sobre o pórtico da academia dizendo: "Aqui só entra quem souber geometria". Tratam-se de proporções, de números, quanto a concepção do real ( do ser, da essência). Timeu diz: "Ora, todos os corpos apresentam profundidades, sendo de necessidade forçosa que a profundidade esteja encerrada na natureza da superfície e que toda superfície retilínea seja composta de triângulos".
A própria atividade do Demiurgo corresponde a intervir em uma: ..."situação de desordem, introduzindo a proporção nas coisas, tanto nelas quanto em suas relações recíprocas, na medida e da maneira em que elas admitiram proporções e simetrias."
Vigorosa, cheia de penumbras, esta formulação no Timeu. Este tipo de número-tempo, sua maneira de transportar-se a um lugar virtual, de uma construção antiga, sobre uma narrativa oriunda de uma cidade análoga a Atenas situada no Egito. O Egito sempre foi conhecido pela sua habilidade com as proporções e os números - isso tanto quanto à Terra ( basta se ver as pirâmides) quanto ao Céu ( para isso permanece ainda a astrologia). Trata-se deste céu cheio de significados, uma escritura. Há porém sutilezas em Timeu, deixa ver como os gregos fizeram uma "releitura" e um re-enquadramento dos saberes oriundos das civilizações, cujo contato eles tinham pela navegação e por serem trazidos para Atenas. Faz "teoria", retira o saber do imediato de sua prática e o introduz em um universo próprio de saber.

A eternidade da idéia - Tempo eterno.
O tempo eterno significa a presença de algo permanente para possibilitar o reconhecimento da diferença entre inicio e finalidade, produzir uma diferença na ordem dos acontecimentos, distribuindo-os dentro de uma ordenação. Constitui-se enquanto um referente em relação ao qual se estabelecem as diferenças, funciona como, por exemplo, um "padrão". Ao se constituir uma diferença - essa diferença propriamente e não os elementos que a vivenciaram, "decai" para o mundo. É neste sentido, que se diz dele fazer a passagem do Eidos (do mundo supra-lunar) para o mundo ( para o mundo sub-lunar). Os elementos, os conceitos mesmos, nunca deixam de estar no Eidos. É o efeito de suas diferenças no tempo aquilo a compor o mundo.
Timeu refere o céu aos números e os corpos à geometria - de qualquer maneira, tratam-se de profundidades distribuídas dentro de um plano de ordem. O "céu platônico" é feito junto com a terra e já temporizado. Eidos (idéia, conceito) refere-se a algo decorrente e determinante das coisas e dos acontecimentos. Cada coisa e cada acontecimento tem "seu número", distribui-se por um campo de fase e pode ser matematizado. Esta matematização, sua existência conceitual, corresponde ao sentido platônico do Eidos. Poderíamos apontar o tempo como intrínseco ao mundo dos conceitos, sendo este, alí, representado pelo aspecto de distribuição numérica - a matematização - dos conceitos. Vamos ver mais adiante como a realidade virtual deixa ver exatamente isso.

O simulacro e o devir louco.
O Modelo, o Eidos, é o Mesmo - referência em relação ao qual se distribuem as diferenças enquanto cópias. Ora, essa diferença diz da presença do tempo. Mas existe ainda uma outra presença do tempo no "céu" e à revelia do Mesmo, diz respeito ao Outro. Este Outro é uma presença fundamental para se produzirem não só as cópias - o Semelhante - como, também, as "más cópias" ou os "simulacros". O simulacro é uma imagem sem semelhança.
É nessa linha crescente de produção de Diferença pela intervenção do Outro, onde podemos ir vendo uma ação mais intensiva do tempo enquanto devir, indo até mesmo na direção de um "devir louco". Em vez de apenas diferenças enquanto cópias, o tempo pode fazer aparecer a disparidade, ou seja, sobre uma diferença ele ainda fazer interiorizar uma dissimilitude.
Desta linha do simulacro, surgirá toda uma realidade com tendência a condução para o "erro". Isso porque: "...a simulação designa a potência para produzir um efeito".
A simulação aponta para uma espécie de "realidade concorrente", tendo, inclusive, o mesmo poder de produzir efeitos mas na forma de ilusão. Temos um Cronos relativo à distribuição do Modelo para a efetivação da Cópia na linha da semelhança ( repetido-se no estilo: tique, taque) e temos, também, um outro Cronos enquanto tempo aprofundado ou como devir louco, na forma de um eterno retorno (um avançar circularmente). Esta compulsão a repetição diz respeito a presença do tempo ligada a linha do simulacro, na medida em que, ali, a identidade é buscada de maneira forçada.
O fato é sempre uma cópia de cópia, devendo ser levado até ao ponto em que muda de natureza e se reverte em simulacro. É na ordem dos fatos - na qual vamos encontrar a vontade de potência, a intenção do eterno retorno e da compulsão a repetição - é por ali mesmo onde se chega à produção dos simulacros, não sendo em outro espaço, onde se produz e se realiza também o Semelhante. Pode-se até mesmo reconhecer nas esferas e círculos do Mesmo e do Outro, uma imagética daquilo onde alguns séculos depois será decalcado o relógio, com todo seu tipo de tempo também a jogar com o Mesmo e o Outro.

b) A vigência de Kairós, o "tempo oportuno".

Este tempo é presente tanto no ponto de vista dos sofistas quando de Epicuro e seus discípulos. Para nós o ponto de vista de Epicuro permite uma vertente mais diferencial de Kairós, o que nos importa no sentido de deixar ver como o sentido de Arché não é uno.

O clinamen.
Uma vivência diferencial de tempo é apresentada por Epicuro, para quem a filosofia era uma atividade destinada a estabelecer, por meio de raciocínios e discussões, uma vida feliz. A filosofia deve fugir do plano de ser uma ciência da qual se faça gala: "Meu caro, escreve ele para Pitocles, foge a todo pano da ciência". Graças ao conceito de clinamen produzindo o fundamento de uma concepção materialista onde nada vem do nada e aparecendo, nesta concepção, o regime das causas composto de elementos múltiplos, tem-se configurado um amplo lugar para o acaso. "Tudo o que existe é constituído por uma multiplicidade, uma mistura de elementos". É um tempo voltado à utilização das coisas e dos acontecimentos.
Trata-se de uma corrente "naturalista", onde aparece o vigor da concepção do "átomo" e a presença marcante do tempo. Mas nada a ver com o "nosso" sentido de Natureza, aqui, ela é uma soma, mas não é um todo. Nela existem disjunções, misturas e perdas essenciais ao prazer e onde a compreensão destas faltas e desmembramentos são essenciais para o movimento e para a felicidade. A presença da multiplicidade e da diferença é sempre bem vinda. Trata-se de uma diferença enquanto efeito da morte e do fim. É quanto a este fim, onde está implícito o sentido de tempo, que se deve ter uma "arte".

O átomo de Epicuro.
O átomo só pode ser pensado. Aparece formulado assim: "É a realidade absoluta daquilo que é pensado, como o objeto sensível, a realidade absoluta daquilo que é percebido." O átomo sustenta o pensamento, representa a realidade do pensado, do "corpo do pensamento".
Na soma dos átomos os elementos não se totalizam. Os átomos se encontram sempre em queda, não em virtude de seu peso, mas em virtude do clinamen, sendo este a razão do encontro ou da relação de um átomo com o outro. No vazio, todos os átomos caem em velocidade igual - um átomo não é mais ou menos rápido em função de seu peso, mas, sim, em função de outros átomos retardarem mais ou menos a sua queda. No vazio, a velocidade do átomo é igual ao seu movimento numa única direção e em um mínimo de tempo contínuo. Este mínimo exprime a menor duração possível durante a qual o átomo se move numa dada direção, antes de tomar uma outra, devido ao choque de um outro átomo. Há um mínimo de tempo tanto quanto um mínimo de matéria ou de átomo. De acordo com a natureza do átomo, esse mínimo de tempo contínuo remete à apreensão do pensamento. "O átomo se move tão rápido quanto o pensamento", diz Epicuro em sua carta para Heródoto. Devemos, então, conceber uma direção originária para cada átomo, como uma síntese dando ao movimento do átomo a sua primeira direção, sem a qual não haveria choque. Esta síntese se faz, necessariamente, em um tempo menor que o mínimo de tempo contínuo. Tal é o clinamen.
O conceito de Clinamen tem um sentido de "decair", diz respeito ao movimento dos átomos em desmembrarem-se - devido ao próprio choque dos átomo entre si - das estruturas que os mantém unidos, na forma de elementos vindo a misturarem-se em outras formas, constituindo outros elementos. O clinamem ou declinação está essencialmente ligado a teoria epicuriana do tempo, sendo, ambos, peças essenciais de seu sistema. Esta declinação está sempre presente e trata-se de uma determinação original da direção do movimento do átomo; manifesta uma pluralidade irredutível das causas ou das séries causais, a impossibilidade de reunir as causas em um todo - não há unidade das causas entre si e sim uma pluralidade, devido ao fato da declinação afetar cada uma de maneira a presentificar-se o acaso. A desestabilização e o desinvestimento nas causas estão intimamente ligados às condições de possibilidades da vida feliz. Esta liga-se mais à presença na oportunidade e menos ao investimento e conhecimento das causas.
A felicidade não significa, entretanto, desregramento ou excesso. Isso trariam as condições da angústia, visto a expectativa e o desmesuramento de prazer trazerem, também, a expectativa do desmesuramento de punição. Kairós é decisivo para esta questão da vida feliz.

Tempo oportuno e a ética do prazer.
Esta vivência se dá, porém, no pensamento e na sensibilidade - no limite entre os tempos: pensável e sensível. Pode-se apontar para uma possível coincidência entre a natureza da vida com a natureza do tempo do pensamento, o da sensibilidade e a compreensão do clinamen com condições de possibilidades para uma vida feliz e como forma de dizer sobre Kairós. Sobre este "tempo oportuno," temos o seguinte exemplo: é como alguém com a cabeça bem raspada tendo apenas uma trança de cabelo em um dos lados da cabeça; tal pessoa vira a cabeça de modo a se ter a chance de pegar sua trança apenas no momento em que ela passa. A natureza não é algo diferente do homem e nem externa a ele ou ao seu pensamento. A própria morte faz parte desta conjuntura, sendo ela um ponto essencial para a compreensão tanto do tempo quanto do clinamen e do próprio pensamento.
O medo da morte - baseado em uma falta de compreensão a respeito tanto da morte quanto da vida, bem como em uma falta de "filosofia" no sentido dos prazeres e da vida feliz - corresponde a uma ignorância, visto ser ela um nada e, como tal, não há porque temê-la: sendo um nada, nada nos reserva. Este medo representa algo expresso por Lucrécio na seguinte construção: "o medo de estando já morto, ainda não estar, ou não estando ainda morto, já o estar". A alma, mesmo não sendo corpo, acaba junto com o corpo; os átomos, porém, continuam seu movimento, compondo, eventualmente, outras estruturas. A alma (psique) corresponde àquilo que, estando presente, causa uma diferença sensível em relação aos corpos onde ela não está presente. Psique tratava do sentido de "sopro", "vento," na medida de ser o vento a "alma do mundo", percebido como aquilo a mover as plantas, as ondas etc. Daí se dizer morrer como "expirar" e se ligar o estar vivo ao estar respirando. Este vento, enquanto psique, é um vento originário a animar todo outro ventar, ou melhor, corresponde ao que dá ao ventar sua função de animar e de mover.
O tempo aparece implicado diretamente no clinamen. Deleuze os explica assim:
"Há um mínimo de tempo sensível tanto quanto um mínimo de tempo pensável, e um tempo menor que o mínimo nos dois casos. Mas, simultaneamente, os tempos análogos ou as determinações análogas do tempo se organizam numa gradação, gradação que nos faz passar do pensável ao sensível e vice-versa. 1) tempo menor que o mínimo pensável (incertum tempus efetuado pelo clinamem); 2) mínimo de tempo contínuo pensável (rapidez do átomo numa mesma direção); 3) tempo menor que o mínimo de tempo sensível (punctum temporis, ocupado pelo simulacro); 4) mínimo de tempo contínuo sensível ( ao qual corresponde a imagem que assegura a percepção do objeto....
"O tempo se manifesta com relação ao movimento. É por isso que falamos de um tempo do pensamento com relação ao movimento do átomo no vazio e de um tempo sensível com relação à imagem móvel que percebemos, ou que nos fazem perceber as qualidades dos compostos atômicos. E falamos de um tempo ainda menor, o mínimo de tempo pensável com relação ao clinamem como determinação do movimento do átomo; e de um tempo menor que o mínimo de tempo sensível, com relação aos simulacros como componentes de imagem ( para esses componentes há até ordens diferenciais de rapidez, sendo as emanações profundas menos rápidas que os simulacros de superfície, e estes menos rápidos que a terceira espécie). Talvez o movimento em todos estes sentidos seja constitutivo dos "acontecimentos" (eventa, aquilo que Epicuro chama sintomas) por oposição aos atributos e propriedades (conjucta), de tal forma que o tempo deve ser dito o acontecimento dos acontecimentos, o "sintoma dos sintomas" que se depreende do movimento".
Essa concepção aponta para um "tempo oportuno", um momento onde se deve usufruir das coisas enquanto se está dentro desta possibilidade, uma vez estar tudo fluindo - tratar-se de Kairós . A sabedoria diz respeito ao saber aproveitar a oportunidade: saber identificá-la e lançar mão dela. Tanto o passado quanto o futuro deixam de ter importância em detrimento da oportunidade no presente: "A vida do insensato é ingrata, encontra-se em constante agitação e está sempre dirigida para o futuro"
E sobre o passado nos lembra Lucrécio: " Vê, olhando para trás, como nada significou para nós toda a velha porção de eternidade que se passou antes que nascêssemos".
Sua concepção de morte mostra bem como se localiza este tempo oportuno: "A morte é ainda menos para nós, se alguma coisa pode ser menos do que aquilo que vemos nada ser: segue-se à morte uma dispersão maior da quantidade de matéria e ninguém torna a acordar depois que a gelada suspensão da vida o tocou uma vez" .
Como tudo anda, tudo está em movimento, o Universo não tem condição de fixar seus próprios limites. Este ponto de vista trágico aparece sempre como condição da alegria e da festa. O sujeito preocupado com as causas, ocupado dos limites do Universo e com os tempos passados e futuros, aparece invadido pela angústia.

Afirmação do simulacro.
O simulacro, conceito formulado por Lucrécio - seguindo a formulação de Epicuro designada como ídolo - é fundamental para continuarmos esta formulação.
"Digo, pois, que são emitidos dos objetos, da superfície dos objetos, efígies e leves representações desses mesmos objetos; deveria dar-se-lhes o nome de películas ou de cascas, visto que têm a forma e o aspecto do corpo de que são imagens, daquele mesmo de que emanam para errarem no espaço....E ninguém pode dizer que pequena parte destes objetos é a sua imagem; ninguém pode explicá-lo por palavras...os simulacros podem percorrer um espaço enorme num só momento, primeiro porque são pequenos, depois porque há por detrás uma causa que os empurra e impele, o que é quase de sobejo quando são levados por tão veloz leveza, depois ainda porque são emitidos com uma tessitura tão rarefeita que podem facilmente penetrar seja o que for e, por assim dizer, fluírem pelo intervalo do ar."
Existe uma afinidade grande entre o simulacro e uma teoria para o tempo. Principalmente quanto à decisão sobre a forma oportuna de fazer acontecer ou de lançar mão dos acontecimentos.
Da mesma forma como o clinamem do átomo se faz em um tempo menor do que o tempo pensável, mesmo estando ele lá no menor tempo possível de se pensar; da mesma maneira a emissão dos simulacros se faz em um tempo ainda menor do que o mínimo de tempo sensível, embora eles já estejam no menor tempo em que seja possível sentir, nos parecendo, porisso, ainda estarem no objeto quando nos atingem.
Epicuro escreve : "No momento percebido como único, se dissimula um grande número de momentos cuja existência a razão descobre, de tal forma que a todo momento, em todos os lugares, todo tipo de simulacros se encontra ao nosso alcance".
O simulacro é insensível. Apenas a imagem que leva a qualidade é sensível, sendo esta, feita da sucessão muito rápida do somatório de muitos simulacros idênticos.
Estamos vendo como o simulacro não é percebido em si mesmo, mas apenas seu somatório em um mínimo de tempo sensível (imagem). Não obstante, da mesma maneira que o movimento do átomo em um mínimo de tempo contínuo experimenta a declinação, fazendo-se distante em um tempo menor que o mínimo de tempo, a imagem experimenta a sucessão e o somatório dos simulacros que se realizam em um tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo sensível. Sendo que, da mesma maneira que o clinamem inspira ao pensamento falsas concepções de liberdade, os simulacros inspiram à sensibilidade um falso sentimento de vontade e de desejo. Devido a esta rapidez com que os f}z ser e agir abaixo do mínimo sensível, os simulacros produzem a miragem de um falso infinito nas imagens que formam, fazendo, desde ai, nascer uma dupla ilusão: a de uma capacidade infinita de prazeres e a de uma capacidade infinita de tormentos.
Kairós significa também ritmo. Daí a idéia comum dos gregos relativa a tudo ter um ritmo e à importância da música. A referência da música com o tempo é, assim, forte. Na música se diz sempre de "tempo", "contratempo" - existe toda uma "matemática" do tempo implicada na música, toda uma temporalidade. As condições da vida feliz se ligam ao encontro do "ritmo" de cada um afinado com o ritmo da "natureza". Na verdade, isso corresponderia a apreender-se enquanto parte da sinfonia do mundo.

c) Aion e a singularidade do imediatamente.

O tempo e os incorpóreos.
Os estóicos tomam um outro tipo de tempo para suas formulações: o antigo Aion . Tudo é corpo: a noite é um corpo, a tarde, a aurora, o minuto, são corpos, a palavra é um corpo, Deus é um corpo, a alma é um corpo, as virtudes são corpos....Em definitivo, dado que tudo é corpo, a própria verdade ( ) é um corpo, mas o verdadeiro, uma vez que é um exprimível, permanece incorporal. Entre os incorpóreos temos: o exprimível, o vazio, o espaço e tempo.
A matéria é, enquanto corpo, exatamente aquilo que faz resistência ao exprimível. Corpo e psique apresentam uma disjunção, uma diferença. A razão, a linguagem, decorre do incorpóreo do corpo. A unidade implica a diferença disjuntiva. Tal como, mais tarde, o ser implicará o não ser enquanto impossibilidade de totalização. Mesmo a palavra sendo corpo, o que ela exprime é incorpóreo, como, também, é incorpóreo todo o seu contexto de ação (espaço, tempo e vazio).
Zenão definiu o tempo como "o intervalo do movimento", e Crisipo acrescentou: " ou ainda, o intervalo do movimento do mundo". A primeira definição aplica-se ao intervalo de tempo medido pelo movimento circular do mundo. Se o tempo é considerado como um incorpóreo, é porque os acontecimentos se desenrolam nele ( não podendo ser confundido com o espaço no qual também está o acontecimento, este nele relativo ao tempo signfica a marca do acontecimento, sua afirmação) sem, porém, por ele serem modificados, pois obedecem às leis do destino: a um entrelaçamento de causas providenciais. O destino é a aparição do presente enquanto presença da realidade.
V. Goldschmidt nos ajuda com a seguinte construção:
" O esquema fundamental do tempo estóico não é o antes/depois, mas imediatamente. A apreensão deste esquema não é, todavia, feita com um olhar contemplativo, mas oferecida a um esforço moral: o tempo deriva do ato, ele não é a imagem da eternidade".
A presença do tempo é incorpórea, não neutra; ela faz o acontecimento acontecer, situando o ato no justo momento de sua causa. A liberdade diz respeito à aceitação do acontecimento como sendo o melhor tempo. Cada acontecimento é o resultado exato de uma articulação de causas e de quase-causas, de forma a torná-lo tanto determinado quando inevitável. Cada ato participa, diretamente, em tudo o que acontece, de forma a serem os atos a fazerem as marcações e a corresponderem ao encontro das causas, isto é, exatamente, ao tempo.
Deleuze se refere ao Aion como: ..."o instante sem espessura e sem extensão que subdivide cada presente em passado e futuro, em lugar de presentes vastos e espessos , que compreendem uns com relação aos outros, futuro e o passado."
Trata-se de uma física de superfície, um tempo sem profundidade e onde a intensidade reside na superfície. Deleuze continua dizendo:
"Não é mais o futuro e o passado que subvertem o presente existente, é o instante que perverte o presente em futuro e passado insistentes... Aion é ilimitado como o futuro e o passado, mas finito como o instante... Sempre já passado e eternamente ainda por vir, Aion é a verdade eterna do tempo: pura forma vazia do tempo, que se liberou de seu conteúdo corporal presente e por aí desenrolou seu círculo, se alonga em uma reta, talvez tanto mais perigosa, mais labiríntica, mais tortuosa por esta razão" .
Aion é o mais perturbador. Sem ele não poderíamos distinguir o eterno do infinito e o tempo jamais seria capaz de sair do seu círculo, deixando lugar para o acontecimento. Graças ao Aion as intensidades se distribuem pela superfície, dando origem ao tipo de mundo no qual habitamos: o mundo da linguagem e da sexualidade.
"É este mundo novo, dos efeitos incorporais ou dos efeitos de superfície, que torna a linguagem possível. Pois é ele, como veremos, que tira os sons de seu simples estado de ações e paixões corporais; é ele que distingue a linguagem, que a impede de se confundir com o barulho dos corpos, que a abstrai de suas determinações orais-anais. Os acontecimentos puros fundamentam a linguagem, porque eles a esperam tanto quanto eles nos esperam e não têm existência pura, singular, impessoal e pré-individual senão na linguagem que os exprime....Toda linha do Aion é percorrida pelo Instante, que não para de se deslocar sobre ela e faz falta sempre em seu próprio lugar.... O que o instante extrai do presente, como dos indivíduos e das pessoas que ocupam o presente, são as singularidades, os pontos singulares duas vezes projetados, uma vez no futuro, outra no passado, formando sob esta dupla equação os elementos constitutivos do acontecimento puro, a maneira de um saco que abandona seus espórios....Eis, pois, que a linguagem não cessa de nascer, na direção futura do Aion em que é fundada e como é esperada, embora ela deva dizer também o passado, mas, justamente, o diz como aquele dos estados de coisas que não cessam de aparecer e desaparecer na outra direção....Este presente do Aion, que representa o instante, não é absolutamente como o presente vasto e profundo de Cronos: é o presente sem espessura, o presente do ator, do dançarino ou do mímico, puro "momento" perverso. É o presente da operação pura e não da incorporação. Não é o presente da subversão nem o da efetuação, mas da contra-efetuação que impede aquele de derrubar este, que impede este de se confundir com aquele e que vem redobrar a dobra".
A forma representativa do Aion sempre foi o raio. A potência ilimitada do instante fazendo uma secção entre o antes e o depois, rasgando o véu do céu - onde os números do tempo platônico mantém as proporções e os parâmetros dos acontecimentos.

Aion enquanto potência do vazio.
O vazio de Aion, sua maneira de acolher o destino, deixa o regime das causas pela intensidade do encadeamento dos efeitos. O vazio sempre foi compreendido enquanto uma forma de potência - estabelece uma premência de preenchimento e, ao não intervir, deixa ver aquilo que intervém, bem como desvela a finalidade das causas. Este tempo imediato é sempre vazio e urgindo por preenchimento. Enquanto incorpóreo, nem participa nem pode ser apreendido. Potência terrível e inapreensível, o tempo induz sempre ao imediatamente, desfazendo neste ponto, as pretensões dos homens quanto a seu poderes. Limite inalienável, onde apenas a moral estóica ousa fincar raízes. Para esta ética a liberdade corresponde ao bem maior e inalienável de cada um, correspondendo, ela mesma, a um reconhecimento dos incorpóreos enquanto potências e limites. Não se pode formular a liberdade sem afirmar, imediatamente, tanto o vazio quanto o tempo e o espaço. A liberdade esta na psique, de fato se confunde ela.
As condições da liberdades são inalienáveis, nos compete a coragem de afirma-las e aceita-las enquanto potências do destino. Este destino é, ao mesmo tempo, indômito, generalizante e subjetivizante. Trata-se das Moiras, agentes da sina e das inspirações. O ser é um livre afirmador de sua sina.

Tempo e destino.
As potências do destino não deixam, porém, o homem em uma posição passiva; cumpri-lhe atualizar estas potências. É neste procedimento, exatamente, onde se exerce a liberdade no útero do tempo. O sujeito é aquilo de responsável, tanto pelo que atualiza quanto pelo fato de sua ação participar sempre do conjunto de causas - cuja articulação implica o destino da rede de acontecimentos chamada de "Universo".
No universo grego, os deuses participavam da Arché ( força originária, onde se pode dizer do tempo como sendo uma Arché - se não for a própria). No universo latino aparece o termo Vis derivado de Vi, cujo sentido se refere a corda e ao arco para dizer de uma potência ativa - daí vem tanto "viril" quanto "violência" . Este universo se refere a maneira do universo divino se relacionar em si e com o mundo - por isso se diz da violência das tormentas, dos terremotos, furacões, maremotos etc. Quanto ao mundo dos homens, temos outras formas reunidas no sentido de Lei, na qual a tradição romana marcou sua época, tanto quanto a grega o fez quanto ao saber.
Para o grego, a Arete era algo intermediário entre o divino e o mundano, daí estar sempre mais ligado ao herói - híbrido de divindade e humano . Arete significava algo como "excelência", "virtude", mas em um sentido muito próximo de "vi" . Perto da Arete, mas já mais ligada aos homens, está a dike ( processo, pena, decisão, direito, base da luta de classes). A diké correspondia ao exercício entre os homens da Thêmis ,cujo sentido é o de Lei, mas estando seu exercício relacionado ao rei ou ao cavalheiro.
Para estas figuras, Thêmis é algo no campo do direito, parecido com o representado pela Arete no campo da potência, ou seja, a virtude é um atributo intrínseco ao rei e ao cavaleiro - é ela exatamente o que irá constitui-los enquanto tal. Para dizer estas funções, existe no universo latino o termo Moris , de onde vêm "moral".
Vamos encontrar, também, no latino o termo Ius (Jus), de onde vêm "justiça", "justo" etc. A justiça corresponde a algo relativo ao mundo dos homens, algo necessário para ordenar os homens, uma vez estes não terem condições de ordenarem-se de acordo com a "vi".
Quanto ao nosso sentido de destino ou de sina, encontramos em grego os sentidos de Moira e Tiche. As Moiras referem-se ao que atinge tanto os deuses quanto os homens, trata-se de Arete (excelências) cegas intervindo, casualmente, na vida dos seres. Quanto a Tiche , trata-se do sentido de dom, podendo referir-se tanto aos méritos individuais quanto aos da linhagem. A Tiche e as Moiras se articulam na produção do sentido de destino e de sina - enquanto manifestações de Aion.

Aion e Cronos.
Enquanto para o corpóreo da palavra existe o incorpóreo do exprimível dando continente e "humanidade" para a palavra. Existe para o corpóreo do nada o incorpóreo do vazio, para o incorpóreo do espaço (ethos) vamos encontrar o corpo da ética (enquanto espaço regrado ) e no caso do incorpóreo do tempo, vamos encontrar o corpo de Aion dizendo das condições do destino e da sina imediatizadas pela ação do sujeito.
Enquanto para Cronos dizemos de um presente antigo como sendo o passado e presente avançado como sendo o futuro, de forma a se constituir um "tempo profundo" vamos, no caso do Aion, encontrar elementos de passado emergindo na superfície do imediato enquanto acontecimento. O aparecimento de elementos do passado tanto cria quanto desordena o campo de fase do presente, isso de uma forma muito diferente, desta feita através da lembrança ou da esperança, como é o caso de Cronos . Trata-se deste aparecimento, a arrastar junto de si todo um campo de realidade, que o estóico se proporá a dar conta com sua atitude filosófica, a dar conta com sua formulação das causas e das quase causas, dos corpos e dos incorpóreos, estando isso impregnado da importância do tempo.

d) Subjetivamento do tempo. Tempo e memória.

A introdução do sentimento de culpa no tempo.
Vamos tomar Santo Agostinho como exemplo da metamorfose ocorrida com o sujeito "ocidental". O "salto" entre os gregos e Santo Agostinho deve-se ao longo período ao longo do qual o pensamento ocidental esteve ocupado em metabolizar a mistura das vivências gregas com as judaicas e anglo saxônicas, período este correspondente ao Império Romano e a Idade Média. O calcamento do sentimento de culpa e a invenção do perdão trazido pelo cristianismo origina um tipo de sujeito bastante específico. A presença de um tempo implicando um Apocalípse, um fim de mundo, faz surgir toda uma concepção diferencial.A presença de um "Deus-Filho", de um semelhante no campo da "alteridade radical", faz estabelecer os movimentos de "diálogo" com as potências divinas abrandadas pela figura de Cristo. Além disso, o panorama ameaçador dos "bárbaros invasores", os quais trouxeram tamanha diferença que custou ao ocidente o tempo da Idade Média para absorver, criou o isolamento - os claustros - e, como conseqüência deste movimento ,o investimento na "interioridade". Passa a haver um verdadeiro "mundo interno," cuja extensão nos chega a pleno vapor. Foi um trabalhosa metamorfose esta a de condensar dentro do sujeito, fazendo surgir o indivíduo, todo um mundo dantes "desdobrado", fora.
Santo Agostinho faz uma leitura diferencial da construção de Platão: " O tempo é um vestígio da eternidade". Por um lado ele vai tomar o tempo como eternidade, colocando Deus no lugar da Arché. Mas, por outro, para os homens o tempo não é eterno, daí dizer "... cada gota de tempo me é preciosa"
Esta distinção, ele a faz da seguinte maneira:
"A inteligência comparou essas palavras, proferidas no tempo, com o vosso Verbo, gerado no eterno silêncio, e disse: Sim, a diferença é grande, muito grande! Estas palavras estão muito abaixo de mim. Nem sequer existem, porque fogem e passam. Porém, o Verbo de Deus permanece sobre mim eternamente".

O verbo e o tempo.
Existe um tempo que passa ligado à palavra e um eterno ligado ao Verbo no silêncio.
Este Verbo é o pronunciado por Deus por toda a eternidade e no qual tudo é pronunciado eternamente. Nunca se acaba o que estava sendo pronunciado, nem se diz outra coisa para dar lugar a que tudo se possa dizer, mas tudo se diz simultânea e eternamente. Se não fosse assim, haveria já tempo no sentido de mudança e não a "verdadeira eternidade" e a "verdadeira imortalidade". O Verbo diz da força criativa do Lógos. É do útero do silêncio que brota a eternidade da criação. Desde ali a fala é "parida" de maneira a instaurar, fora, o tempo ligado à palavra.
O tempo é inventado, aqui, em seu aspecto "psicológico", ou seja, como é que nós o apreendemos? Esta apreensão amalgama-se à palavra inseparável do acontecimento. Dai ele escrever: "Se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro e se agora nada houvesse, não existiria tempo presente" .

Aparecimento do "tempo psicológico".
Vamos vendo a maneira como o tempo vai aparecendo no campo dos homens enquanto um atributo dos acontecimentos, enquanto entidade psicológica. Mas ainda existe um resquício dele enquanto Arché - ligado à eternidade de Deus, ao silêncio da criação e da sustentação de tudo aquilo que é e que não é. Este "tempo psicológico" mostra-se apto a uma divisão e a uma medição.
Quanto a divisão em passado, presente e futuro ela se torna possível devido ao nada a ser do tempo. O passado já não existe e o futuro ainda não existe, portanto, apenas poderíamos atribuir o caráter de existência ao tempo:
"Se pudéssemos conceber um espaço de tempo em que não seria mais susceptível de ser dividido em partes, só a este poderíamos chamar de tempo presente" .
O tempo presente não tem nenhum espaço. O que existe na mente são lembranças presentes de coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente futura das coisas futuras. Mas não é este tempo da sensibilidade aquilo a ser medido, este não pode ser medido, mesmo sendo ele o índice do tempo e as condições de possibilidade para o relacionamento e para a afirmação do tempo "objetivo".

Tempo e eternidade.
O que pode ser medido são os tempos que decorrem. E como decorrem? Pela palavra e pela marcação dos acontecimentos na síntese de continuidade. A síntese de continuidade será criada pela intervenção da inteligência no regime dos acontecimentos, tal como faz com o regime das palavras, fazendo ali intervir o sentido. Esta criação virá a ser exatamente este "resquício da eternidade", mas sendo esta uma eternidade "barulhenta" - criada pela inteligência - diferente da eternidade no silêncio do Verbo de Deus. O tempo mede-se quando passa, ou seja, mede-se já o seu não ser. O tempo medido nasce naquilo que ainda não existe - atravessando aquilo que ainda carece de dimensão, para ir para aquilo que ainda não existe.
Uma vez medido é evocado para falar e se distender em direção à realidade das impressões, do antes e do depois, geradas pelas coisas no espírito. O sentimento da presença de imagens que se sucedem - sucederam ou hão de suceder - referidas a uma anterioridade, evocará a presença de uma temporalidade ligada ao movimento das coisas e de seu suceder. "Ouço dizer que os corpos só se podem mover no tempo. Vós mesmo o afirmais. Mas não ouço dizer que o tempo é esse movimento dos corpos."
A ligação com o movimento diz respeito ao tempo enquanto lugar do movimento, mas não enquanto movimento. Quem faz a unidade entre tempo e movimento é quem contempla: a razão.

Memória e duração.
O tempo é distinto de espaço. Não é por ser o lugar do movimento e da palavra que ele se constitui em um espaço. O espaço é o lugar das coisas.
"O tempo é distensão; mas de que coisa o seja, ignoro-o". Esta distensão permite a apreensão da duração sendo, esta duração, relativa ao tempo medido e às condições de possibilidade da percepção e de registro no "palácio da memória" - palácio este onde é possível para o homem conhecer Deus. Estamos adentrando a maneira através da qual se vai construindo o poder da memória.
A distensão do tempo é móvel, ou seja, a diminuição do futuro faz o passado crescer de tal maneira, de forma a vir até mesmo a consumir o futuro. Por outro lado, a ampliação do futuro reduz as dimensões e as potências do passado. Mas como pode algo que não existe diminuir ou aumentar?
"Futuro longo é apenas a longa expectação do futuro e não o futuro exatamente; tempo passado longo, também, não é outra coisa além de uma longa lembrança do passado". Sendo assim, trata-se sempre daquilo que o espírito espera , da expectação. Neste ponto, encontramos o domínio da memória como sendo aquilo por onde passa o que o espírito espera até o domínio da atenção.
O vida do ato aparece dividida pelo sujeito em memória e em expectação, sendo a vida, ela mesma, distensão. Para a presença do Verbo dentro da eternidade do silêncio, temos a presença da vida dentro temporalidade da distensão. O ato aparece ocupando a distensão da vida na forma de expectação e de memória, pelo fato do tempo, ali, enquanto distensão, delinear-se pelo contorno da palavra.
No ambiente do "palácio da memória" - uma das divisões do ato e parte da vida enquanto tempo-distensão - se pode encontrar Deus. Deus, porém, é o próprio mundo, visto ser a memória o lugar onde se pode dizer do mundo. Por isso, para Santo Agostinho, a resposta para a pergunta sobre: quem é Deus? Dada por Deus, ele mesmo, é, exatamente, a sua beleza. A beleza de Deus presente no mundo, enquanto aquilo que torna o mundo belo e a vida como anseio de felicidade responde pelo seu "ser".

Criação da interioridade através da temporalidade da memória.
O homem interior é o único a poder conhecer esta verdade pelo mistério do homem exterior. Esta interioridade é decisiva porque Deus fala com todos os seres, mas só estão em condições de entendê-lo, aqueles capazes de comparar a voz vinda de fora com a verdade interior. A presença desta possibilidade do conhecimento de Deus pela memória, enquanto parte do tempo, refere-se ao fato do homem ser aquele dentre os outros seres a interrogar e, esta interrogação, ele o faz por julgar.
A presença do julgamento diz respeito a este diálogo entre interior e exterior, bem como ao fato do homem ter e também não ter Deus. Sendo, por estas contradições, capaz de reconhecê-lo através da memória. Esta memória é uma forma de apontar para a reminiscência. A reminiscência, desde Platão, diz respeito à lembrança daquilo que não aconteceu, das impressões causadas na "psique" relativas ao mundo das "idéias" (Eidos, conceitos). Este tipo de impressão gera um movimento, no sentido de realizar no mundo esta impressão na forma de uma realidade. A via para o re-conhecimento de Deus é através da memória: possibilitada pela ligação entre memória e tempo eterno, mas, dificultada pelo silêncio do Verbo em relação a transitoriedade da palavra, dando-se em um tempo que passa; sendo assim, uma memória na forma de lembrança, portanto, também de esquecimento. Já tendo sido mundo e sendo Deus, ele mesmo, mundo, mas tendo também apartado-se, desta forma o homem pode, através da memória, pelas vias do tempo, reunir-se com sua verdade. Esta reunião, religação, é o sentido mesmo da religião.
Por isso se pode dizer que o tempo simultaneamente marca e desmarca. Cria recordações, mas abre espaço para o novo através do esquecimento e de sínteses livres de elementos mnêmicos dispersos.
Na memória não estão os próprios objetos que entram ,mas as suas imagoginis (imagens). As imagoginis dizem respeito à representação dos objetos quando de sua ausência. São estas representações que se oferecem ao pensamento, na forma de recordação, enquanto objeto do pensar e do meditar. Quem poderia sondar até este fundo da imagem?
"Um tal conhecimento seria retirado de um lugar mais íntimo que não é lugar. É neste não-lugar onde se encontram as possibilidades do conhecimento devido ao fato de que se não existissem estas imagens, se deixaria de fora o objeto. Porém ,é preciso alguém arrancá-las, juntá-las novamente e coligi-las, subtraindo-as de uma espécie de dispersão - é daí que vem cogitare - pois cogo e cogito são como ago e agito, facio e facito; porém, a inteligência reivindicou como próprio este verbo (cogitare), de tal maneira que só o ato de coligir (colligere), isto é, o ato de juntar (cogere) no espírito é propriamente chamado "pensar" (cogitare)".
Aquilo que vai fazer este "ajuntamento" é o mesmo enunciado por Platão, no Timeu, a respeito do tempo como articulador dos astros do céu: não exatamente os números, mas a idéia que os exprime. E onde ele o faz?
"A memória é como o ventre da alma". Quatro perturbações a perturbam a partir da alma - o desejo, a alegria, o medo e a tristeza. Sendo assim, elas perturbam, também ,o tempo. É desta forma, pela via da memória, que o tempo enquanto influenciado pelo sentimento, não pode ser medido. O tempo da memória, também, não se oferece de uma forma objetiva à medição, não aparece isento da interferência das paixões, relativas tanto ao antes e ao depois quanto à duração. A memória possui uma "multiplicidade profunda e infinita". Para poder executar sua função como via para o Uno, ela precisa da ação do esquecimento. O esquecimento é aquilo que, quando está presente, nos faz também recordar - trata-se assim de uma "entidade", de uma presença na memória e não uma ausência de memória. Trata-se de uma condição para a lembrança na forma de uma intervenção na multiplicidade da potência da memória. O esquecimento é, não só a condição da lembrança como, principalmente, condição do encontro com Deus - com o Uno. A memória, regida pelo esquecimento, fará incisões na diferença possibilitando a unidade e a clareza.
Ele escreve sobre isso da seguinte forma: "Mas aquilo de que nos lembramos ter esquecido, ainda não o esquecemos inteiramente. Por isso, não podemos procurar um objeto perdido, se dele nos esquecemos totalmente."
O arremate relativo à memória e Deus é o seguinte:
"Eis o espaço que percorri através da memória para Vos buscar, Senhor, e não Vos encontrei fora dela. Nada encontrei que se referisse a Vós de que não me lembrasse, pois, desde que Vos conheci, nunca me esqueci de Vós....
"Onde residis, Senhor, na minha memória? Em que lugar aí estais? Que esconderijo fabricastes dentro dela para Vós? Que santuário edificastes? Dignastes-Vos tributar esta honra à minha memória, mas o que eu pretendo saber é em que parte habitais.
" Assim como não sois nem imagem corpórea nem afeto de ser vivo, qual é a alegria, a tristeza, o desejo, o temor, a lembrança, o esquecimento e outras paixões semelhantes, assim, também, não podeis ser o meu espírito, porque sois o seu Senhor e o seu Deus. Tudo isso muda. Vós, porém, permaneceis imutável.... Por que procuro eu o lugar onde habitais, como se na memória houvessem compartimentos?
"Nessa região não há espaço absolutamente nenhum. Quer retrocedamos, quer nos aproximemos de Vós, aí não existe espaço."

Memória e Verbo.
Podemos, desta forma, fazer a seguinte construção: Deus realiza-se através do Verbo, cuja expressão se dá no âmbito do silêncio da eternidade e da imortalidade, do imóvel - do permanente. A Memória, por sua vez, realiza-se através da Palavra ,cuja expressão se dá no âmbito da linguagem, no âmbito do tempo que passa.
Mas porque se refere ele ao Verbo relativo à eternidade? A língua latina, onde pensa, é particularmente rica em verbos e formas de verbos, a tal ponto do verbo poder ser usado como sinônimo de linguagem ou de fala. Da mesma maneira como os egípcios concebiam a escrita como sendo a maneira através da qual as divindades se comunicavam, ou os gregos viam esta função exercida pela geometria e pelos números - pela mathema - também o latino vai dizer do verbo. O verbo (do latim verbum), trata de uma palavra designando ação, estado, qualidade ou existência de pessoa, animal ou coisa. A linguagem precisou cercar os verbos de cuidados devido a sua potência. Estes cuidados aparecem em uma extensa conjugação e sua ordenação em tempos. A ordenação dos verbos em conjugações de tempos, corresponde a uma redução de seu infinito (forma infinitiva) para as condições de participação no campo do discurso - de forma a torná-lo passível de fazer parte da comunicação e do mundano. A conjugação temporizada do verbo é sempre decisiva, tanto para o sentido quanto para a estética do discurso. Sendo Deus potência, sua presença manifesta-se na forma do verbo devido a ser, este, indicativo de ação, qualidade e existência.

e) O tempo e o absoluto. A questão da historicidade em Hegel.

Dialética da duração.
Vamos tomar Hegel para marcar um ponto lógico onde a história, tal como a definimos, começa a aparecer com todo seu vigor. O sujeito aparece marcado pela cifra da história, pelas marcas de um tempo. Esse sujeito emergente já aparece em ruínas, como tudo o que começa no tempo. Aparece já dividido, cindido - o Outro não como "outro de algo", mas em-si, o Outro de si mesmo. A duração passa a ser dita de algo enquanto seu Outro, (seu não ser, diria Heráclito), ou seja, a duração vai dizer respeito ao tempo durante o qual as antíteses dialéticas se sustentam. Mas, e é nisso onde reside toda problemática, a própria duração só existe na supressão do ser do processo das coisas. É quando o ser suprime-se do campo das coisas colocando-se "de fora" que passará a fazer história, quando passará a ter um ponto de vista do tempo em termos de duração. O próprio aparecimento da história já marca o fim da metafísica. Esta supressão do ser do campo das coisas, significa uma tática de se controlar o irrompimento do não-ser - visto a supressão do ser suprimir também o irrompimento do não-ser. Esta tática é feita pelas vias da linguagem, onde o nome retira o sujeito da campo das coisas, neutralizando a presença permanente do não-ser ao ligá-lo ao campo das coisas.
A duração de forma alguma exclui a finitude, pelo contrário, apenas a adia, no sentido não só de tornar o fim o corolário do inicio, como, principalmente, possibilita ao tempo avançar, levando a um desenvolvimento. Dessa o tempo é distinto do real - constituído pelo ser-ai (Dasein) de algo finito - mas, essencialmente, idêntico a ele. Neste sentido, o nascimento das coisas finitas é, simultaneamente, a sua morte. A destinação das coisas finitas consiste unicamente em ter um fim. Trata-se da afirmação de uma finitude, cuja densidade depende da construção de uma duração com pretensões de absoluta.

Sentido moderno de história.
Estamos nos encaminhando para o sentido da história - implicação "moderna" do tempo - cujo começo só vem dar-se pela cisão do imediato, pela oposição do Espírito (Geistig) a si mesmo, de forma a tornar-se seu próprio objeto. Existe, portanto, uma sombra presente tanto na história quanto no tempo. Esta presença é das mais potentes. Trata-se de um Espírito do Tempo representado pela Razão. Esta Razão executa seu fim através do ardil de servir-se das determinações particulares dos indivíduos para cumprir seus fins universais. A história representa o "trilho" por onde caminha, bem como as pegadas por onde se deu esta determinação da Razão. A Razão se constitui para além da síntese executada pela religião - através da crença - sendo esta crença já uma síntese para além daquela executada pela estética através da arte. "O tempo é o ser que, sendo, não é e não sendo, é".

Conceito negativo, história e consciência.
Esta forma de apresentar-se para a consciência enquanto intuição negativa, como momento de negação do ser-para-si, diz respeito a uma vinculação existente entre tempo e espaço. O tempo aparece enquanto o espaço suprimido depois de desenvolver-se sobre si mesmo. Enquanto o espaço é o "ser-um-fora-do-outro (Aussereinandersein)", o tempo é o "um-fora-do-outro suprimido"; o espaço como o puro-ser-para-si e o tempo como o sí-puro-do-ser-para-si. Esta metamorfose relativa ao tempo implica. a ciência. Aqui ele aparecerá ligado ao espaço, enquanto parte das ciências exatas, e ligado à duração e às épocas ( vinculado à idéia de desenvolvimento), através das ciências históricas - onde o ser é excluído do campo das coisas para reinserir-se enquanto objeto da história ( "contemplando" a duração ).
Enquanto deformação do espaço e enquanto devir intuído, aparece distribuído de maneira a constituir um plano de profundidade para o espaço a partir de um desnivelamento em si mesmo. Este desnivelamento fará: 1) o Agora (Jetzt) como o "Isso" absoluto do tempo - só o agora é - trata-se da pontualidade da Coisa (das Ding); o Agora é votado ao apagamento por sua auto-abolição, é um limite que se suprime e se ultrapassa como limite; 2) o Presente ( die Gegenwart) como o ponto indivisível de junção e de inflexão do movimento de reflexão da totalidade temporal. O presente concreto é resultado do passado e prenhe de futuro; 3) o Futuro (die Zukunft) como "esse outro que é a ação de negar o agora". Constitui a realidade do presente, pois esse limite simples e vazio a definir o agora, preenche-se de futuro. O ser do futuro está, exatamente, no não-sendo do presente. Trata-se de um momento negativo do presente ou, para dizer melhor, do não-ser de si mesmo. A presença do futuro assinala um vazio de presente; 4) o Passado (die Vergangenheit) como repouso. O ser do passado é o ser que é o não-ser do futuro e do presente, de forma a procurar, por esta via, se restituir uma totalidade temporal cujo desnivelamento no tempo já apresenta como suprimida. O futuro se faz do passado, daquilo do passado negado no presente. Trata-se de um ser-ai enquanto suprimido, como não-sendo-aí - enquanto o futuro é o não-ser-aí, mas determinado a ser-aí ; 5) o Devir como unidade negativa do ser e do não-ser, unidade posta no domínio de exterioridade - na esfera do ser-fora-de-si da Idéia.
Esta divisão deixa claro como nenhuma de suas dimensão pode reivindicar exclusividade do ser do tempo. Trata-se, de qualquer maneira, de se dizer da problemática de se deparar com o absoluto. Schelling, em "L'ame du monde" escreve:
"É temporal tudo aquilo cuja realidade é extravasada pela essência ou cuja essência contém mais do que pode conter sua realidade"
A falta de continente provoca um extravasamento cujo resultado é o movimento da história do ser.

Tempo e ser
A referência do tempo ao ser pode ser formulada assim: "O tempo é a passagem do ser ao nada e do nada ao ser".
Esta remissão primária ao ser e depois ao espaço constitui o tempo em uma posição radicalmente primária - fazendo a passagem entre o ser e o nada - em referência ao ser e seus aparatos de constituir seu mundo.
"O tempo é o ser sendo-aí que, imediatamente, não é (o) não-ser, sendo aí que, também imediatamente, é; ele é a pura contradição sendo-aí. A contradição suprime a si mesma; ele (o tempo) é justamente a existência desta supressão contínua de si.....O real ao qual o tempo pode ser identificado é limitado, e o Outro exterior a esta negação está fora dele; a determinidade é, pois, junto dele, exterior a si mesma e, por conseguinte, a contradição de seu ser; a abstração desta exterioridade de sua contradição e da inquietude dessa contradição é o tempo mesmo, ou seja, a potência mais alta de tudo aquilo que é. As próprias coisas afirmam esta potência na sua contradição, uma vez que elas não desaparecem porque estão no tempo e estão no tempo porque são finitas."

Contexto de idéias onde aparece o tempo moderno enquanto historia.
Com esta formulação Hegel faz um movimento em relação a concepção kantiana. Para Kant, o tempo está "entre o ser e o não-ser", desde ali ele poupa o indivíduo da contradição; mesmo o ser e o nada são separados pelo tempo, dando através deste artifício, a impressão de não serem a mesma coisa - tal como o nascer e o morrer. Em Kant, o tempo aparece como um a priori para a mudança, enquanto Hegel vai apontar o tempo prefigurando e confirmando a contradição da mudança - o tempo é manifestação direta da própria contradição. Na "Critica da Razão Pura", Kant define "o tempo é o nada em-si fora do sujeito". Já para Hegel, o espaço e o tempo são formas em que a inteligência "apreende intuitivamente".
E de que forma a inteligência está implicada com o tempo? Vamos encontrá-la nas paragens da repetição necessária para o conhecimento, para a produção e para a criação. "O repetido é indiferente àquilo de que é repetição e, para si, não é um repetido".
As condições da criação passam pelas vias da repetição, sendo o tempo, enquanto história, o arsenal de material e de sustentação para a criação. É a inteligência aquilo que constitui a repetição. Trata-se de um dispositivo ativo de suprimir o negativo e excluir a diferença, levantando, até quando pode, as contradições dialéticas. A inteligência vai, exatamente, criar um campo virtual para o sujeito decidir com uma impressão de garantias maiores.

A contradição como motor da história.
Relativos a "Arché", ao "Princípio", onde tudo está, implica-se o tempo na contradição. E como implica-se? Implica-se por sua ligação com o ser. O ser, ao constituir o não-ser, funda a contradição e faz surgir a diferença. Ora, esta diferença não é algo de efetivo mas, sim, apenas algo de visado. Visar a diferença está na base mesma da mudança. Esta mudança constitui-se como as condições através das quais o Princípio se realiza para chegar ao seu fim, que é sua finalidade.
Enquanto o si puro absoluto exterior intuído é o tempo, como sendo este o si vazio intuído em seu movimento, o eu absoluto torna-se outro. O próprio eu abstrato não difere do Objeto no qual ele se abole - mas no qual ele, também, se reencontra - uma vez que o objeto não é senão o eu vazio.
"Pode-se dizer que o eu efetivo pertence, ele próprio, ao tempo com o qual coincide... no fundo ele não é senão este movimento vazio que consiste em pôr-se como um outro e suprimir esta mudança, conservando apenas a si mesmo, isto é, o eu como eu e unicamente como tal. O eu é no tempo, e o tempo é o ser do sujeito mesmo."
Na origem da relação íntima entre o tempo e o si puro está esse movimento de cindir-se. Este é, simultaneamente, desdobramento e separação entre os conteúdos distintos, isto é, uma diferença que não é diferença. Como o objeto aparece elidido desta cisão, se diz, então, que no interstício do objeto está o tempo. Aqui é preciso inserir-se uma noção cara a toda filosofia alemã: das Urteil ( o juízo).
Este juízo corresponde ao momento de dissociação de si - divisão ou partícula originária, visto "teil" significar "partícula", "pedaço", "elemento" e Ur significar "originário", "primevo", "aquilo que está antes do começo, criando as condições e as bases do primeiro" - sendo esta a origem da consciência em um sujeito e um objeto. Das Urteil corresponde às condições da inteligência, do pensamento e da ação. Ora, esse pedaço originário, cuja repetição e ressurgimento se dará no plano já do sujeito e do objeto, diz respeito a uma diferença - visto o repetido ser indiferente àquilo de que ele é repetição. Desta maneira o "primeiro" aparece sempre de forma inaugural. O próprio "Eu" aparece como inaugural e jubilante na linguagem. A presença desta diferença, porém, comporá as condições do Desejo e a maneira através da qual a inteligência buscará por este Ur-teil na forma de um ente. É neste plano onde se inscreve a consciência.
Quanto a consciência:
" A consciência contém, essencialmente, isto: que eu sou para mim, que eu sou objeto para mim. Graças a esse juízo absoluto, distinguindo-me de mim mesmo, o espírito se faz existente, põe a si mesmo como exterior, se põe na exterioridade, o que é justamente o modo geral, distintivo, da existência da natureza. Ora, um dos aspectos da exterioridade é o tempo. Para manter a sua unidade o eu deve subtrair-se à dispersão exterior e regrar-se no tempo, mas, para isso, o eu deve dominar o tempo quebrando a sua continuidade - introduzindo cortes. Mesmo reconciliando-se com a duração, é pela descontinuidade que o eu se libera do tempo."
Dissociação de si, origem da consciência em um sujeito e um objeto, distinção de um interior e um exterior e o domínio do tempo pela introdução de cortes, estamos indo em uma trajetória onde o tempo vai ganhando todas as nuances do "moderno". Para dar respaldo a esta concepção da consciência ligada a uma cisão, é preciso, também, situar a construção do conceito, construção esta básica para a produção do sentido - produção sem a qual a consciência fica sem fundamento.
Assim como o tempo apodera-se de todo ente do mundo prontamente em não-ente, o conceito é um termo que dirá respeito às categorias finitas para mostrar, em cada uma delas, a presença do Outro na constituição do seu sentido. Ao negativo do processo conceitual concreto corresponde o negativo do processo abstrato do tempo. O conceito corresponde a uma invenção proporcional a um tempo domado com intenções na direção das potências do absoluto, relativa, de fato, ao fluxo e a inapreensibilidade do real.
Do conceito e do tempo se diz no seguinte sentido:
"O conceito, entretanto, em sua identidade consigo, existindo livremente para si mesmo, eu = eu, é em-si e para-si a negatividade da liberdade absoluta, portanto, o tempo não é sua potência, nem ele é no tempo, nem algo temporal, mas pelo contrário, é ele a potência do tempo, na medida em que este último é somente essa negatividade como exterioridade. Por isso só o natural é sujeito ao tempo, na medida em que esse natural é finito; o verdadeiro, ao contrario, a Idéia, o Espírito, é eterno."
Aquilo que no objeto é substância tem somente grandeza no espaço; aquilo que é acidente somente tem uma grandeza no tempo, sendo a duração, substância tanto do espaço quanto do tempo.

O tempo natural e o tempo humano.
O tempo na natureza é recorrente e repetitivo, enquanto na esfera do Espírito ele se dá de maneira irreversível, através de uma forma cumulativa. Um tempo "natural" e um "espiritual" .
Sobre o natural:
"A vida é a essência simples do tempo, que nessa igualdade consigo mesmo, tem a figura sólida e compacta do espaço".
Neste contexto o animal é o tempo, o organismo mesmo é o tempo - cada coisa sendo e tendo um tempo. Para o animal o desejo aparece como um consumo imediato do objeto, de forma a perpetuar o conflito entre o sujeito e o objeto, por não abolir a finitude que afeta esta oposição. O animal não se torna senhor do tempo, seu comportamento se origina na sujeição à potência que é liberada. O desejo animal põe novamente a idealidade do objeto pressuposto, recomeça o ciclo e não se liberta de sua inquietude básica. O impulso no organismo animal manifesta-se como necessidade de eliminar sua pressuposição objetiva e com isso ele consegue dar satisfação ao carecimento, apagar a tensão que o atravessa . A atividade do vivente é essa dialética graças a qual o objeto se suprime como algo de nulo e sem efeito. O consumo aniquilante do objeto sossega o desejo, abolindo a identidade do sujeito e do objeto, fazendo, por esta via, o tempo eclipsar-se de forma sempre recorrente, evitando a contradição para a realização da síntese. O desejo, porém, constitui-se na primeira etapa para a consciência de si, etapa esta que o homem faz movimentar até uma outra forma de tempo, portanto, de objeto defendendo, assim, o objeto de um aniquilamento.
A consciência de si é o conceito aparecente do objeto. O sujeito consciente de si é o que sabe-se idêntico ( e não igual) ao objeto, bem como sabe de como o objeto suscitante do desejo deveria preenchê-lo. Nesta primeira etapa, o desejo aparece como um limite, uma barreira a ser ultrapassada para a satisfação, sendo esta a sua referência a uma "falha" que aparece sempre quando há qualquer movimento de realização de um desejo. Sem esta "falha" não haveria qualquer lugar para o objeto do desejo, o desejo não seria ultrapassado até seu preenchimento. Vem daí, também, a presença nele de uma inspiração pela eliminação de um dos termos da oposição, cuja efetivação levaria a um falso infinito, um infinito devido a supressão da contradição, onde o próprio desejo tem sua origem. Para se realizar a passagem é preciso a negação se redobrar, o aniquilamento do objeto ser aniquilado, negando, desta forma, a exclusividade do ponto de vista do desejo animal, de forma a elevar-se acima da simples busca de si realizada pelo desejo destruidor.
" O desejo deve ser ideal em sua supressão devendo ser suprimido; o objeto (deve) do mesmo modo, permanecer (ou ser conservado) no momento mesmo em que é suprimido; o meio termo, na medida em que a supressão conservada do desejo e do objeto, deve existir como opostos a estes, este meio termo é o instrumento de trabalho".
Desta maneira, o instrumento de trabalho aparece enquanto "solução de compromisso", enquanto "meio termo" para a contradição entre o desejo aniquilador e o desejo suprimidor da aniquilação da contradição entre sujeito e objeto, onde pode-se dar a identidade e a consciência. O instrumento é a própria imagem realizada da contradição.

Trabalho, instrumento e emprego do tempo.
O trabalho aparece como sendo a idealidade da supressão, ou seja, enquanto transformação. Este ideal até a modernidade não fora encarado com muito afinco. O trabalho introduz um hiato entre o impulso primeiro do desejo e o consumo da coisa - eliminando tanto a imediatez quanto antecipando a contemplação. Ele instaura um novo tempo: o maquínico. No trabalho, a Coisa é posta como objeto, fazendo nascer uma objetividade do objeto tomado como Coisa. A atividade humana consiste, neste sentido, em dirigir-se ao objeto-tornado-morto, golpear o objeto de morte, arrancá-lo de seu contexto vivo e inserir nele um tipo de ser que, enquanto tal, deve ser anulado. O "instrumento" continua sendo o lugar da síntese desta contradição.
O instrumento é aquilo que resta do trabalho e aquilo que, no trabalho, se perpetua. O instrumento é mais importante que o trabalho, como o conceito é mais importante que as coisas, o universal é mais importante que o particular e o eterno mais que o finito. Estes "mais importantes" , porém, são restos.
Sobre o trabalho se diz:
" O homem não fabrica mais aquilo de que carece, isto é, não carece mais daquilo que se fabricou; com efeito, o objeto fabricado, em lugar de ser a realidade da satisfação de seus carecimentos, torna-se apenas a possibilidade desta satisfação. Seu trabalho torna-se trabalho formal, abstrato, universal, trabalho singular. O homem limita-se no trabalho a satisfazer um de seus carecimentos, que permuta em troca daquilo que é necessário para satisfazer seus outros carecimentos. Seu trabalho tem por finalidade o carecimento como um universal. Assim, a satisfação da totalidade de seus carecimentos é o resultado do trabalho de todos".
O trabalho passa a ser, a partir da modernidade, o principal elemento a preencher o vazio gerado pela precariedade dos conceitos com a conseqüente brecha na eternidade.
A cultura ou o " trabalho de todos", coloca a tekhné enquanto maneira de viver. A cultura pratica, assim, uma atividade de preservar os instrumentos. A isso, normalmente se chama "aprendizado". Um negativo do trabalho se deve ao fato da promessa de liberdade trazida por ele reverter-se, incessantemente, em seu contrário: o luxo aumenta infinitamente a dependência e a miséria. A interiorização rememorante apresenta-se como síntese para esta contradição do trabalho com suas conseqüências. Ela é a relação de uma imagem e de uma intuição, operando uma subsunção da intuição imediata a uma "formatação" pela imagem enquanto universal, tendo uma representação (Vorstellung) como conteúdo. Nisto resulta o "entrar-em-si" da inteligência.
A atividade produtora de signos, operada pela inteligência, substitui o presente por algo de natureza diferente do imediato, algo totalmente outro. Trata-se de um momento de domínio, de apropriação, através de uma instrumentalização do trabalho, de forma ao "meio" impor-se ao "fim". Assim como o desejo pretendia no trabalho apoderar-se da coisa em vez de destrui-la completamente, assim ,também, a atividade produtora de signos, comandada pelo interesse teorético, opera no conteúdo da intuição uma substituição de significação. A intervenção da inteligência mostra como o signo, longe de ser fortuito, responde a uma intenção determinada: o querer significar, o ato doador de significação, não deixa de evocar a decisão que está na origem do processo teleológico - aquele a marcar o tipo de presença do ser do homem. A inteligência fabrica signos da mesma forma como fabrica utensílios concretos. O signo é esse ser-aí (Dasein) no tempo da intuição, só o sendo na medida de sua. supressão. Sendo, por esta forma, transformador, conservado enquanto palavras, vindo a tornar-se um ser-aí animado pelo pensamento.

Sobre o Espírito.
Esta animação do pensamento não é, porém, do domínio do pensamento. Por um lado a linguagem não é fixa; ela é, a obra, permanentemente aberta e operante de um povo - o instrumento enquanto tal. O Espírito é este movimento - energéia, enteléchia - não se detendo jamais, visto ter abandonado seu estado primitivo e encontrar-se agora impelido em direção de um estado outro que prepara e encontra em si por seu trabalho. Desenvolver-se, para o Espírito, significa pôr-se. Trata-se de uma força sempre operante no sentido da superação.
O Espírito ergue-se contra si mesmo, consome a forma que se havia dado e eleva-se a uma nova forma. Sua obra já realizada torna-se, assim, material a ser transformado pelo seu trabalho em uma nova obra. Ele opõe-se a si mesmo, de maneira a constituir um movimento todo novo em relação as oposições entre diversidades. Constitui-se para si mesmo o verdadeiro obstáculo hostil a ser suplantado. Quer atingir o seu próprio conceito, mas é ele mesmo a escondê-lo de si e, neste estraviamento (Entfremdung) de si mesmo, ele se sente orgulhoso e cheio de alegria.
Dessa maneira, o desenvolvimento não é a simples eclosão sem pena e sem luta, como o da vida orgânica, mas o trabalho duro e forçado sobre si mesmo. Em vez de ser mera passagem no Outro, converte-se em reprodução. Nisso esta implicado o tempo.
Mas, enquanto a reprodução própria da vida orgânica desemboca na repetição do mesmo e no retorno do ciclo, a reprodução do Espírito - que, vamos ver, se cumpre pelo trabalho da história - efetua-se a cada retomada onde o Espírito, consumindo a forma já dada, eleva-se a uma forma nova sobre uma nova base e com isso, em vez de tomar a forma da recorrência, engendra um acontecimento pelo cumulativo.
Aquilo a se desenvolver deve fazer-se o que é, tornar-se o que é. A natureza orgânica chega à meta pela via mais curta, mas a via do Espírito é mediação e desvio. Viemos até aqui para dizer do tempo histórico.

Espírito e o sentido da história.
O sentido de história esta ligado ao movimento do Espírito em superar-se, portanto, enquanto "desenvolvimento".
"A história move-se justamente com tanta lentidão porque o Si deve penetrar e assimilar toda a riqueza de sua substância".
Apesar da vigência do desenvolvimento só o que em-si já é presente pode por-se. Daí ser a história a constituição do espaço a partir da realização de uma temporalidade enquanto Espírito - a maneira através da qual aparece o movimento tanto do Espírito superar-se quanto o de extrair de si a sua substância.

A história e a verdade.
A impaciência contra esta lentidão da história pretende o impossível: pretende a obtenção da meta sem os meios. É preciso tanto uma forma de espaço quanto uma forma de tempo para o acontecimento histórico. Por um lado, é preciso suportar a "lonjura" do caminho, pois cada momento é necessário. Por outro, é preciso demorar-se neles, pois cada um é por si mesmo uma figura, uma totalidade individual. Pacientar é poder deferir, reter-se, manter-se em suspenso junto ao meio termo ( sendo o meio termo, exatamente, o instrumento). A verdade, ela mesma, aparece como o desfecho de um longo caminho. Um caminho ao longo do qual se precisa converter a interioridade da lembrança na forma de um ser-para-si.
A paciência da história reflete o lento caminhar da verdade. Cada mudança é um progresso, cada saída de si redobra-se em uma entrada em si, toda progressão provém de um regressão, cada avanço contém os precedentes, cada retomada do processo se dá por ocasião de uma catástrofe. A memória se constitui no órgão da interiorização cumulativa, sendo, deste maneira, o lugar desde onde o Espírito efetua sua manifestação na forma de tempo histórico.
O tempo não faz círculos. Não que a natureza no inicio se mostrasse criativa de forma a se dever procurar desbloquear o turvamento acontecido depois, mas sim, deve-se ver a efetiva manifestação do verdadeiro, não como resultado de um passado e sim como sendo o resultado mais alto da tensão do Espírito. A verdade aparece como devir sempre a ser feito, tendendo mais para o futuro em deferência ao passado. O motor do tempo histórico é o futuro ( o devir) e não o passado.

História e o sentido da "suspensão".
O sentido de suspensão (Aufhebung) é vital para se entender o sentido do tempo histórico sentido de tempo este para o qual a obra hegeliana é a preparação. Auf significa "a partir de", "desde", "em direção a". Heben significa "levantar", "erguer", "içar", "alçar", "suprimir". Juntos significam "levantamento", "abolição", "anulação", "revogação", "suspensão". Aufhebung será o modo de ser do conteúdo acumulado: é a dupla dimensão da instancia lógica que determina a relação ao passado. E como o faz?
O tempo se apodera das coisas para convertê-las em não-ser, mas nem por isso as suprime. A simples desaparição no tempo é ainda uma supressão abstrata que só a negatividade concreta é capaz de restituir à sua verdade, retomando aquilo que não cessa de apagar. O suprimido retorna sempre incluído nos novos avanços e é na própria ação da história, no próprio emergir - brotar (Aufheben) - do acontecimento na história, onde o feito desaparecer do tempo aparece com sua verdade.
O suprimido converte-se em Ideal. A idealidade aparece, dessa maneira, na forma de uma negação do real, mas esse real é ao mesmo tempo salvaguardado, virtualmente conservado, ainda que não exista. Essa representação que se apresenta quando encaramos as representações (Vortellungen) , é a memória.

O idealismo historiográfico.
Da memória depende o passado histórico como algo de ideal - objeto de uma conservação negativa - conteúdo do qual o tempo se encarregou de retirar a imediatas, de deslocar o ser-aí. O que foi deixado para trás acede a uma existência ideal. A história afigura-se, assim, enquanto acumulação de um encadeamento de idealidades em relação ao qual se julga o evento presente e a existência atual do ser-aí.
O passado é apenas um relativo, um ultrapassado, mas o suprimido não é ainda um ultrapassado, não é um desaparecido. Desta maneira é sob a perspectiva do presente que haverá uma reorientação do passado. O sentido da Aufhebung (suspensão) diz de como todo ultrapassamento do presente é acompanhado por um desnudamento da verdade do passado. Pode-se, então, lançar um paradigma segundo o qual todo acontecimento e por conseguinte, também, toda ação que se passa em um ponto do tempo, está, necessariamente, sob a condição daquilo que era no tempo precedente, mas tendo como orientação o que virá.
Devido a esta transmutação do passado histórico em ideal, a consciência moral vai converter em medium neutro e infinito de sua atividade um tempo em face ao qual ela será, por definição, sempre estrangeira. É a partir deste "fora do presente ideal" que a consciência moral se faz exercer - desde um tempo estrangeiro. Existe aqui um movimento singular no tempo. Enquanto o movimento é "puxado" para o futuro onde se procederão as sínteses das contradições do tempo presente, simultaneamente, a localização do ideal no tempo passado faz com que o presente apareça sempre atrasado em relação ao passado. Isso implica na cisão do sujeito aparecer, já de inicio, como um estrangulamento feito pelo tempo. Este presente estrangulado é, porém, mesmo incidindo sobre ele fortes denegações, destinado a sustentar-se enquanto princípio de realidade. E é exatamente nesta realidade presente, que vem tropeçar todo saber.
O saber absoluto localizado no fim da história, emerge como um "pássaro crepuscular", uma vez a verdade, enquanto objetivo e objeto do saber, só aparecer de forma terminal, ou seja, o sentido só se dar quando se cumpre. Apesar do absoluto puxar o tempo histórico para o futuro, ele nunca chega a se realizar em um fim da história, devido a intervenção do corpo enquanto negativo do tempo. Tempo e matéria mantém-se em um processo de anulação mútua enquanto antíteses, cujo efeito aparece como movimento.
O saber histórico tendendo ao absoluto é também a realidade do espírito, de tal maneira a ser, cada indivíduo, filho do seu tempo e cuja realização é, inevitavelmente, fruto, também, deste tempo. "Os melhores são aqueles a exprimirem melhor que os outros, este mundo que é o seu".
A história, enquanto realização do espírito e forma do tempo de conferir ao suprimido e às contradições uma presença, expõe-se como tempo para a verdade. Sendo, esta verdade, a própria história. Na história está o conceito do qual depende o sentido de verdade e as condições de saber. O conceito está, de inicio, por esta via, impregnado de tempo.

Historicidade enquanto eventualidade.
A história não é uma estrutura universal do homem. Existem as sociedades que são e outras que não o são. O advento dela representa uma forma de interiorização e uma tomada de consciência. Ela não é uma condição tão necessária quanto o tempo, visto ser este uma necessidade do espírito. O espírito precisa manifestar-se no tempo, apenas enquanto não capta seu conceito puro. Quando o conceito capta a si mesmo , suprime sua forma de tempo irrompendo na forma de história. Desta maneira a história se impõe graças a um recalcamento do tempo. Existe, portanto, uma oposição dialética entre tempo e história.
A experiência apresentar-se-á como síntese desta contradição dialética. A própria dialética é um saber da ordem da história, visto nada poder ser sabido sem estar na ordem da experiência e nenhuma experiência é possível sem estar no chão da história.
A história e seu tipo de temporalidade são apenas uma figuração temporal do Espírito, mais precisamente aquela a aparecer sob a forma de acontecimento. O acontecimento emerge como resto de oposições, sem as quais se teria o tédio e o hábito. Ora, a história serve exatamente como este limite de oposição e de convocação, limite este a impor, para sua ultrapassagem, um sacrifício. Este sacrifício é, basicamente, suprimir os ideais do passado para avançar na direção do futuro. Mas, este suprimido irá reaparecer novamente no presente daquilo que ainda era futuro, quando o presente o encarava sob a ótica dos imperativos dos ideais passados, presentes na história.

f) O tempo e o ser. A problemática metafísica.

O fim da metafísica.
Heidegger vem manifestar, de forma muito precisa, uma metamorfose do tempo relativa às condições da metafísica. A transformação do ser em ente e a tomada do ser como simples presença arrastam consigo uma posição do tempo. A angústia vai dizer da presença de um contraponto a esta formulação da metafísica. A angústia afirma tanto um estado contraditório relativo a entificação do ser quanto a uma objetificação do tempo. Ao evocar as condições de um "nada positivo", pretende fazer uma formulação relativa a um fim da metafísica. De forma exemplar não finaliza a sua formulação por não ter, segundo ele, recurso de linguagem suficiente para ir adiante. Esse limite imposto pela linguagem é a melhor maneira de afirmar sua posição: as dificuldades de uma entificação do tempo e do ser. Com isso deixa o vazio na sua qualidade de potência - de convite.
O sentido da temporalidade está ligado aos sentidos: do Lógos (discurso), da angústia ( Ängst), do nada ( Nichts), da decadência (Verfallen), da morte {Tod ) da cura ( Sorge) e da Coisa ( Ding). Já por aí se pode ver a maneira como faz parte da estrutura lógica que nos faz ser. Mas, para deixar isso ficar de certa forma claro, é preciso trilhar um pouco destes sentidos.
O conceito de Lógos aponta-se como uma imagem de mundo que se impõe como representação para o real. Enquanto um ( legomenon - dito), funcionando como substrato do que se fala ( - hipoxéimenon ). Relativo ao Lógos, apresenta-se o fenômeno ( - fainomena). O sentido de fenômeno liga-se fortemente a "manifestar-se" (Ercheinen cujo significado se dirige fortemente para o de "brilhar", "mostrar" ). "Ercheinen" diz: "Manifestação é um nada-mostrar-se" (Erscheinen ist ein Sich-nicht-zeigen), onde este "nada" não tem uma função negativa. O ser aparece como recolhimento. É do recolhimento do ser que temos o "sendo". O ser recolhe-se na direção de seu fim, de sua finalidade. Isso não só exatamente no sentido concreto da morte mas, principalmente, na finitude de toda e qualquer realização. Tudo aquilo que entra no campo das realizações já o faz na direção de um dar-se, de um acabar. O manifesto é a presença residual do ser em recolhimento. Não é o ser a se mostra na manifestação mas seu "rastro". Freqüentemente pode-se mesmo dizer de como o manifesto serve para esconder e proteger o ser contra um assediamento.
" Manifestar-se é anunciar-se através de algo que se mostra".
É no recolhimento de algo que se dá sua manifestação. O ser aparece enquanto se retira na direção de seu nada. É enquanto se retira que o ser aparece como manifestação ancorada nos substratos da fala. É enquanto já não é mais, enquanto já habitado pelo não-ser, que o ser se manifesta. Aquele que se enuncia na manifestação, o fenômeno é, ele mesmo, aquele que constantemente se vela na manifestação. E se vela para aparecer através dos substratos da linguagem, deixando a marca de um desnivelamento de sentido, cuja apreensão será a de um desnivelamento no tempo - criando a noção de um princípio, bem como a de um "antes e um depois".
O ser, enquanto recolhimento, aparece na manifestação na forma de um "brilho" {Shein) próprio de sua direção, no sentido de seu fim - onde vamos encontrar a morte - como efeito da presença do nada. Fica claro a relação entre o ser e o nada, constituindo-se o ser próprio do homem como sendo aquele a ter consciência deste caminho. "Só o homem morre, os outros acabam ". A morte, por sua vez, é: "o relicário do nada".
Trata-se daquilo a servir de continente e de enfeite para a conservação do nada, evitando uma "nadificação" dispersa. O nada enquanto condição do ser no mundo e o ser-aí ( Dasein) como a forma através da qual o homem apreende esta sua condição, aparece representado pelo significado da morte e presentificado pelo afeto da Ängst (angústia, ansiedade, medo).

O sentido existencial de Ängst ( angústia, ansiedade, medo).
A angústia é o sinal da abertura do ser, devido a intimidade entre o ser e o nada. A morte vem aparecer não só como representando o nada como, principalmente, sendo aquilo a que se prefere ao nada - aquilo a ser evocado no lugar do nada e para fazer corte à angústia. Die Ängst ( a angústia, a ansiedade, o medo) aparece enquanto condição do homem como lançado, como Verfallen (decaído), nesta situação. Esta é a condição através da qual se constituirá a disponibilidade em construir o mundo (Welt) como morada do ser. Este mundo aparecerá na forma de um Ring (anel, ringue), significando lugar de luta e forma de compromisso.
O ser enquanto nada cria as condições tanto do lugar quanto do tempo, tal como o apreendemos. Um lugar que "fosse", bem como um tempo que "fosse", não deixariam condições para serem "feitos" pelo homem, não deixariam margem para o homem realizar ali sua ambigüidade (Zwideutigkeit). Nestas condições, a angústia não teria qualquer finalidade positiva. Um lugar onde não se pudesse criar e criar, também, os objetos do medo, seria um lugar onde o Dasein teria sérias dificuldades.
É preciso o acolhimento tanto do lugar quanto do tempo para o ser-ai ser ejetado (Geworfenheit), vindo a criar seu mundo na medida em que dele se recolhe. Este recolher-se é vivido existencialmente na forma de um acolhimento do mundo e pelo mundo. O próprio sentido do acolhimento é dado pela capacidade de contenção, sendo esta capacidade, fundamentalmente, capacidade de conter-se (continente). Por aqui se introduz o sentido da ocupação, preocupação ou mesmo cura (die Sorge).

O acolhimento e o cuidar com sua relação ao tempo.
O cuidar aparece como ser do ser-ai . Pela via da preocupação, do cuidado, vamos encontrar a forma mais expressiva da temporalidade como o sentido do ser do Dasein. A temporalidade, através do cuidar, vai estabelecer um sentido unitário para a estrutura do Dasein. Na mesma direção em que o ser se revela no homem como recolhimento, manifestando-se na medida de sua direção para o nada, também o tempo se manifesta e tem seu vigor enquanto "nadificado", enquanto sendo "perdido", "investido", na forma do cuidado, da ocupação, da preocupação, da cura. Gianni Vattimo escreve sobre isso: "Uma vez que a temporalidade se revelou na base das estruturas da preocupação, também a temporalidade do próprio ser se revela com a "base" mais originária da temporalidade do estar-aí.
A arte e o cuidado com o outro correspondem as situações onde a temporalidade aparece com sua potência mais originária - como representando um dar-se, um perder-se enquanto reconhecimento do "ser lançado". Este investimento corresponde a realização da "vontade de vontade", característica da maneira própria de realizar-se do Dasein. O homem, enquanto lugar de múltiplas e variadas causas (exatamente por ter no seu fundamento o nada, sendo ele mesmo, a partir daí, "o fundamento nulo de um nada") precisa unificar-se para unificar o mundo. Esta unificação ele a faz através da ocupação, cujo fundamento aparece na forma da temporalidade.
É no vazio deixado pelo ser ao retirar-se, ao realizar-se, onde se fundamentará o lugar para o outro. Aqui se encontra o sentido existencial do acolhimento. Este vazio, com sua simplicidade, vai vir a compor as condições de possibilidades para o homem fazer habitar no mundo o ser em geral.

"Das Ding" e a habitação do ser próprio ao homem.
Para poder habitar o mundo, o homem precisa criar para si próprio uma habitação. É preciso introduzir um vazio nas coisas de forma que sejam "coisas para os homens". Significa terem um ser de maneira a tornarem-se viáveis para a linguagem, visto ser a linguagem onde os homens se encontram com as coisas, onde encontram o sentido prévio de seu ser, de maneira a poder abordá-lo enquanto ente, enquanto simples presença. Este é o sentido de das Ding ( a Coisa ). É no vazio da Coisa onde o homem fará habitar o ser (enquanto linguagem, na forma de nome) que se constituirá a linguagem não arbitrária, enquanto cheia de intenção. É dali, também, de onde emanará tanto a manifestação das coisas no sentido deste ser aparecer como brilho - como um dar-se para fora. - quanto, ao mesmo tempo, o recolhimento das coisas no sentido do ser aparecer também como recolhimento, como um dirigir-se na direção do seu nada. O nada a ser, ou o vir a ser nada, corresponde a maneira como a referência do ser como nada aparece depois de inscrever-se nela a temporalidade.
O ser enquanto ser-para-a-morte, no qual esta implícita a temporalidade, representa a presença daquilo que o Dasein exige como condição de apreender o ser dos entes, isto é, o limite. Um limite é o ponto a partir de onde algo pode vir a ser, trata-se da condição de liberdade do Dasein ao "trocar o ser pelo nada", de maneira a possibilitar o "pro-jeto": tanto o lançar-se, o ser projetado, quanto o preencher, a realização. É nesta troca onde se afirma o fim da metafísica, o fim da procura de se procurar fundamentar o ser enquanto ente, de se até confundir um com o outro.
Como a liberdade é a essência da verdade, esta é, por conseguinte, um efeito a aparecer no deixar-de-ser mais próprio - no sentido do Sorge (ocupar-se), significando "dar um tempo de si para um outro (ou uma outra coisa)". Ora, a morte é exatamente o infinito deste tempo dado a si-mesmo.
"A morte, escreve G. Vattimo, é a possibilidade da impossibilidade de qualquer outra possibilidade, a possibilidade da pura e simples impossibilidade do estar-aí. O primeiro aspecto da morte que se nos impõe, é o seu caráter insuperável."

A positividade do "perder tempo".
A temporalidade se apresenta na forma de um "perder tempo", de um investir. As condições de possibilidades para isso, repousam no afeto da angústia enquanto forma manifesta do sentido existencial para o nada - próximo do sentido de ser, mais exatamente, de poder-ser. A temporalidade, porém, não é o tempo. Precisamos percorrer esta diferença, bem como esclarecer melhor o já formulado. Para isso vamos ver como nos traça o perfil da temporalidade ligado ao ser-para-a-morte.
A temporalidade esta inevitavelmente associada ao Dasein:
"O que achamos foi a constituição fundamental desse ente tematizado, isto é, o ser-no-mundo, cujas estruturas essenciais estão centradas na abertura. A totalidade desse modo estrutural desentranhou-se como Sorge. Nela encontra-se inserido o ser do ser-aí. A análise desse ser tomou como fio condutor a existência que, numa concepção prévia, se determinou como essência do ser-aí. Enunciado formalmente, isso significa enquanto poder-ser que compreende o ser-aí, é o que sendo, está em jogo como seu próprio ser. O ente que desse modo está sendo, é sempre eu mesmo. A elaboração do fenômeno do Sorge permitiu vislumbrar a constituição concreta da existência, ou seja, em seu nexo igualmente originário com a facticidade e a decadência do ser-aí."

A finalidade do ser-para-a morte.
A presença da morte afirma a falta de totalidade, uma vez ela fazer parte do todo da vida, mas já ser, desde o inicio, sua privação. Não é nem aquilo a se dar no fim da vida, nem tem o sentido de finalização de algo que se totaliza - tal como uma fruta amadurece, por ser este amadurecimento parte de sua completude, ou o caminho termina por ter chegado ao seu fim - não é nesta proporção que o Dasein morre. Trata-se da intervenção e da sempre presença de um indeterminado e indispensável radical.
É a temporalidade aquilo a fazer um fundamento e um sentido ontológico para o Dasein, conferindo-lhe uma totalidade estruturante capaz de dar conta da ambigüidade produzida pela presença da morte. Esta ambigüidade é oriunda do fato do Dasein ligar-se ao "ter Consciência" e ao ter ( e para ter ) Consciência se tem Consciência de ser-para-a-morte. A temporalidade está vinculada ao tempo com que nos ocupamos. Este tempo é relativo à brecha aberta pela Consciência de ser-para-a-morte.
"Como a temporalidade constitui o sentido de ser mais originário e como estão neste Sendo as possibilidades de alcançar do próprio ser, então o Sorge ( ocupação, preocupação, cura) deve precisar (levar) "tempo" e, assim, contar com o "tempo". A temporalidade do Dasein constrói a "contagem do tempo". O "tempo" nela experimentado é o aspecto fenomenal mais imediato da temporalidade. Dela brota a compreensão mais cotidiana e vulgar do tempo. E essa se redobra na direção do conceito tradicional de tempo."
O tempo durante o qual ocupa-se de ser, faz surgir no Dasein a condição do "tempo". Este diz respeito a um "tempo ocupado" durante o qual se introduz a finalidade e se estabelece um "fim" enquanto substituto do próprio fim, cuja elaboração a ocupação serve para curar - curar no sentido de nos tornar aptos para . Daí se dizer, em várias concepções filosóficas, de como o viver corresponde a aprender a morrer.

A antecipação.
A antecipação da morte enquanto o sentido de ser-para-a-morte, cumpre o papel de formular uma totalidade estrutural para o Dasein. Estrutural tendo o sentido de um "feito", de um "artifício". A estrutura corresponde a um ausente, uma ausência da totalidade - cuja angústia produzida fará surgir uma "totalidade estrutural".
Quem compatibiliza esta presença desestabilizadora representada pela angústia é exatamente o Sorge. Este cuidado, até mesmo para poder acontecer, precisa do não-todo, de forma a poder estabelecer uma totalidade própria ao Dasein, diversa de outros tipos de totalidade. A morte suscita este trabalho de várias formas. Ela aparece:
1) Com o sentido de não-totalidade radical e em todos os níveis.
2) Não pode ser ligada apenas ao sentido genérico do "morre-se", nem pode ser apreendida mediante a "morte dos outros", apenas, ou a um "chegar ao fim". Não é suficiente o sentido atribuído a ela a partir da vida e pelo efeito dos vivos. A angústia gerada por ela se dá pela referência feita pela sua presença a algo de estranho - a um nada de sentido.
3) Ela se desentranha enquanto perda. Esta perda, mesmo vivenciada pelos que ficam, ocupa o lugar de uma brecha de sentido para estes mesmos. De tal maneira a se estabelecer, aí, a questão: quem fica, fica com o que? Sendo a existência, ela mesma, aquilo que é questionado pela morte. Mas é fundamental se distinguir a potência da morte da impotência do morto, evitando reduzir um ao outro.
4) Estabelece-se uma individualidade radical, na medida de ninguém poder assumir a morte de um outro. Mesmo sendo possível alguém morrer no lugar de outro, não poderá jamais evitar a este outro o seu deparar-se com a sua própria. Aqui não há qualquer possibilidade de substituição. "A mortalidade deve ser assumida a cada Dasein a sua vez como própria. A morte é, até onde se "é", essencialmente e a cada vez minha."
5) Não pode ser confundida com o evento biológico do findar. Pelo contrário, ele coloca o Seiende (sendo, ente) como sempre pendente, sempre à mão, disponível para àquilo do qual ele não sabe enquanto antecipação, enquanto poder-ser. Mesmo o Dasein incompleto finda, visto findar não significar, necessariamente, completar-se.
6) Estabelece-se como um "ainda-não" que, enquanto Sendo, cada Dasein tem de ser.
7) A chuva termina, um caminho termina, mas a morte é um modo de ser que o Dasein assume a partir do momento em que é. É próprio do ser, enquanto presença, já figurar no universo da ausência desde sempre.
8) Em um sentido amplo, a morte é um fenômeno da vida. Em um sentido restrito, o morrer exprime o modo de ser em que o Dasein é para sua própria morte.
9) É uma possibilidade privilegiada do Dasein, na medida em que o retira da cotidianeidade, esclarecendo sua existência, sua facticidade e sua decadência (Verfallen), condição perante a qual o existir se afigura em uma iminência.
10) Mesmo sem assumir, a morte está sempre ligada ao Dasein ( mesmo denegada ela se afigura a ele imanente). Trata-se de uma "impendência" , da possibilidade da impossibilidade absoluta de presença. Vem a ser, assim, a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável.. A própria abertura do Dasein traz o sentido de ser-para-a-morte, no qual o momento estrutural do Sorge possui sua concretude mais originária. O próprio morrer funda-se no Sorge ( na cura, na ocupação, na preocupação ).
11) A Ängst com a morte é a angústia com o mais próprio, irremissível e insuperável. Não se deve confundir a angústia com a morte com o temor de deixar de viver. O próprio ser-no-mundo é aquilo com que se angustia. Ängst diz, exatamente, respeito ao nada, uma falta "do que" temer. Daí se confeccionar objetos para angústia. Mas, nesta confecção, não se desfaz o aspecto inalienável da morte, uma vez que em se tendo um objeto, a angústia permanece, estabelecendo-se em referência ao objeto, ficando subterrânea ao medo.
12) A certeza da morte instaura um outro tipo de verdade relativa àquela a ter por verdade o verdadeiro. A morte estabelece que o Dasein está no não verdadeiro. Visto a certeza dela se dar em uma falta de evidência própria. Não é pela vivência que se chega a esta certeza mas, exatamente, pelas vias da linguagem, pelo "Lógos". Trata-se de uma referência a uma supressão "muito antiga", cuja noticia nos aparece na forma de uma convocação. Esta certeza estabelece, simultaneamente, o ser enquanto "poder-ser" e a impossibilidade da existência.
O ser-para-a-morte não tem nada a ver com ficar falando ou pensando na morte. Trata-se de uma atitude mais ou menos na mesma linha de Nietzsche e do ponto de vista trágico - onde o fato de ter a morte como horizonte, possibilita que se festeje a vida e se afirme a potência da alegria e da festa do Espírito. Por outro lado, onde se denega a morte através de uma formulação qualquer de eternidade, se tem a presença "a melancolia e do Espírito pesado.
Enquanto o sentido de temporalidade esta vinculado ao de ser-para-a-morte e, desde ai, a Ängst, o tempo não pode ser entificado e, por enquanto, o localizamos na forma daquilo que se perde para criar as condições do existir. Mas ainda não se decidiu bem sobre isso.

A propriedade afirmativa da angústia quanto a antecipação.
Sobre as condições nas quais a morte age na produção da temporalidade, Heidegger escreve: "O ser-para-a-morte é, essencialmente, angústia". Para enunciar a pressão desta angústia, subscreve Nietzsche: "evitar tornar-se velho demais para suas vitórias". Nisso reside a liberdade para a morte, condição de qualquer liberdade como substrato da Consciência. Consciência onde vamos encontrar o exercício da temporalidade e onde se fundamenta o sentido do testemunho.
Esta consciência da morte é, basicamente, a Consciência moral. Existe no alemão das Gewissen, cujo sentido teríamos que grafar em maiúscula (Consciência ), sendo este o termo usado por ele para lhe dar uma conotação moral - no sentido, por exemplo, de alguém reconhecido por seus valores morais, onde se diz dessa pessoa "ser alguém Consciente". Existe, também, die Bewusstsein, cujo sentido é consciência no sentido genérico do "ser sabido". É exatamente esta Gewissen a colocar-se em relação a angústia.
O Dasein precisa de um testemunho e é por aí onde entra a Consciência.
"O testemunho precisa de um poder-ser-a-sí-mesmo (Selbstseinkönnen) para dar a compreender. O si-mesmo do Dasein foi formalmente determinado como um modo de existir e não como um sendo do que está simplesmente disponível, dado... O Dasein precisa de um testemunho do poder-ser-si-mesmo que, como possibilidade, ele já sempre é. O que a auto-interpretação (Selbstauslegung) cotidiana do Dasein conhece com sendo a voz da Consciência, vem a ser, na nossa interpretação, (Interpretation) o testemunho".
Mas, o que precisaria com tal eminência de um testemunho a ponto de se produzir uma Consciência para isso?

A culpabilidade e dívida enquanto solo da " Ängst".
Trata-se de um Shuldgsein (ser ou estar em débito ou em culpa). Este sentimento clama por uma possibilidade de escuta. Este clamor clama pelo Sorge (por atenção, cuidado, cura, preocupação). Este ser devedor faz a Consciência aparecer empenhada em abrir-se, em dar-se - dar algo a compreender. Esta culpa, este débito, vem desde sempre, desde antes e precisa ser atualizado - daí a necessidade de um testemunho para esse processo - este Urteilen ( ajuizamento). Para isso se estrutura a Consciência. Permanece existindo, porém, a impressão disso ser uma "arrumação". Mantém-se no próprio âmbito da Consciência, um silêncio.
O silêncio reveste a presença de uma "voz estranha" no lugar mesmo da "voz da Consciência". Trata-se de um estranhamento. Um estranhamento radical onde o ser-em-si estranha-se. Esta estranheza sustenta um tanto de angústia, em relação a qual este procedimento surgiu para substitui-la e fazê-la decair. Este tanto, porém, implica o sujeito a um poder-ser, a uma saída da cotidianeidade dos hábitos - sustenta-o no procedimento do Sorge - de tal sorte que o próprio Sorge é impregnado de Nada, de maneira a fazer o ser decidir e, por aí, poder-ser. Este estranho faz semblante ao Nada, cuja presença já evocara tanto a angústia quanto a morte - é ele, também, a aparecer sob a figuração do clamor silencioso da Consciência por testemunho.
A presença deste Shuldgsein coloca o Dasein já sempre em falta. Não só em falta, como já sempre faltando, não sendo nunca um já dado, daí ele precisar curar-se. O poder-ser enquanto ligado ao decidir, instaura e resulta de cortes, cujos efeitos comporão a presença da temporalidade no Dasein, vindo isso a fazer simulacro para a morte. A temporalidade aparece aí como sentido ontológico do Sorge (da cura, do ocupar-se, do cuidar).
Vamos situar alguns pontos em torno da temporalidade, deixando, assim, ver a maneira pela qual ela articula-se com a morte, a Consciência e o Sorge.

Tempo originário e tempo comum.
1) A temporalidade e a intratemporalidade como origem do conceito vulgar de tempo. O tempo, tal como é tratado em geral pela filosofia, é originário (Urzeitig) Em relação a este se estabelecem os outros - os tempos comuns ou vulgares. Trata-se do "tempo público".
O tempo comum é relativo ao espaço, trata-se de um lugar onde se dão os acontecimentos e onde o Dasein habita. É neste nível onde se situam a maior parte das formulações a respeito do tempo. Trata-se da vigência do "agora" como uma seqüência infinita de instantes. Como "tempo público" confere impressões tais como: "perder tempo", "não ter tempo", etc.
Intratemporalidade significa o "estar dentro do tempo", do Dasein e dos acontecimentos se darem "no tempo". Este demanda uma medição, demanda aparatos de medida e máquinas precisas e adequadas para medi-lo. Trata-se do "tempo do mundo". Este encontra-se já dado e de forma igualmente imediata, tanto no físico quanto no psíquico. "É" anterior a toda subjetividade e a toda objetividade, constituindo, ele, a própria possibilidade deste anterior. Aparece em sua forma exemplar através da ocupação. A ocupação enquanto forma de investimento no tempo e maneira do Sorge , aparece ligado diretamente a aceitação da finitude, do "ser-para-o-fim".
Ocupar-se é uma forma de fazer acabar o feito. É introduzir no fazer uma forma de consumir-se através do obrar, integrando-o, desta forma, ao intra-mundano. Nem o tempo nem as ocupações, a nível público, deixam-se deter. Este tempo comum deve acolher em si o espírito. Nesta função, ele aparece usualmente como em Hegel, por exemplo - enquanto "a verdade do espaço". Mas a analítica existencial não localiza tão de pronto o tempo como negatividade do espaço:
"O espírito não cai primeiro no tempo, mas ele existe como temporização originária da temporalidade. Esta temporiza o tempo do mundo, em cujo horizonte a "história" entendida como acontecer intratemporal pode se "manifestar". O espírito não cai no tempo, mas a existência, de fato, "cai" da temporalidade própria e originária."
O tempo comum já aparece propondo um "o tempo é" ou já tomando o tempo como um ente, sem absolutamente ter respondido a questão desse "é" - ou seja, a questão do ser ligado ao tempo - nem a questão do "ser" daquele a afirmar. Mesmo sem este esclarecimento, o tempo é e está sempre em uso.
2) Temporalidade e historicidade. O Dasein não só faz uma narrativa "histórica" na qual se insere, como, também, distribui os acontecimentos em "camadas" cuja estrutura designamos como sendo a história. Historicidade é o campo onde se constitui a possibilidade da compreensão, fundamentalmente compreensão de si. Esta compreensão inclui o ser-para-a-morte, englobando na figura do devir tanto o nascimento quanto a morte. Figurando como uma flutuação do vazio, o Dasein constitui a história como parâmetro para abrir-se, para decidir. Por isso, ele escreve: "Enquanto die Sorge , o Dasein, é o "entre"."
A historicidade libera a temporalidade, colocando no fundo do ser, o temporal. A instauração do começo e do fim libera a temporalidade originária enquanto preocupação ontológica, levando o Dasein para o domínio da história. História significa uma oposição à Natureza, constituindo a história como contexto para o Dasein. Os movimentos da história e da natureza não vão ser os mesmos. Haverá uma intervenção transformadora da história, até mesmo sobre as potências do destino a representarem uma linha de força da natureza no Dasein. Enquanto Hegel conceitua o Aufhebung (suspensão), Heidegger conceitua um "Scritt zurück" ( passo para trás ), tal como se faz com um estilingue ou a corda de um arco, de maneira a tomar força para o arremeter-se, o abrir-se, decidir-se do Dasein.
O solo histórico é o contexto do Dasein - ele já é propriamente história. Neste sentido, todo o vigor aparece referido a um "ter sido", a uma afirmação da repetição, em deferência a uma repetição imprópria devido a uma falta de participação da memória. Ser livre para a morte significa assumir uma antecipação, cuja possibilidade se dá no campo da historicidade.
A repetição vem enfrentar as contrariedades do destino, colocando o "estar em débito" onde haviam as potências maiores do silêncio. O abrir-se, quando retorna a si, apresenta-se como repetição. Dessa forma, a repetição é já um legado da própria existência. Assumir a repetição significa aceitar ser a existência mesma aquela a escolher seus heróis. Esta escolha se dá no campo da historicidade. Repetir significa não abandonar nem o passado nem almejar ao progresso, de forma a afirmar a existência na finitude da temporalidade, que fica sempre velando por este sentido na historicidade do Dasein. Ela estilhaça o agora, tornando o mundo palco e fato. Desatualizando, ela introduz o Dasein no Sorge, levando-o a liberdade do poder-ser e do decidir-ser. É preciso se afirmar uma "repetição decidida" como solo do decidir. Este solo não se evidencia tal como "os nervos que, sendo determinantes para as realizações do corpo, também não aparecem".
Dizer de historicidade significa colocar a questão da repetição como forma de existência do Dasein. A historicidade aparece como uma maneira do Sorge situar o ser-para-o-fim, uma maneira de se fazer frente a angústia.
3) Temporalidade e cotidianeidade. A maior parte das vezes compreende-se o ser-no-mundo a partir daquilo com o que se ocupa. O sentido de cotidiano está ligado ao de um ocupar-se com precedência, um ocupar-se na forma de elos de uma cadeia dando consistência a historicidade na forma de um cotidiano. Isso mesmo que o cotidiano tenha como uma de suas funções obscurecer as diferenças na história deixando ver apenas "um grande ano de repetição". Não é, porém, em outro contexto que não o da repetição onde poderá se ver surgir uma diferença.
"Enquanto Sorge , o Dasein é, em sua essência, preceder-se". O preceder cria uma temporalidade própria, reunindo, através do Sorge, um estado múltiplo e disperso característico da totalidade originária.
Porisso mundo nunca é algo à mão e nem dado simplesmente. Ele se temporaliza na temporalidade. Trata-se do mais subjetivo e do mais objetivo dos objetos possíveis. O Sorge dá aqui, à temporalidade, seu sentido ontológico, criando uma estrutura existencial com possibilidades de ter à mão e atarefar-se, empenhando-se nas coisas. Para a cotidianeidade, o amanhã é o eternamente ontem, o modo de ser do início se mantém, na maior parte das vezes. Para a cotidianeidade, o herói é impessoal.
4) O poder-ser todo em sentido próprio do Dasein e a temporalidade como sentido ontológico do Sorge. Este poder-ser todo inclui a morte e a via pela qual ela pode ser feita é a temporalidade, sendo o procedimento, die Sorge. A angústia do - ser-para-a-morte é a via de entrada para o Dasein, sendo, através disso, por onde faz sua decaída para o intramundano. A temporalidade é o sentido ontológico deste acontecimento.
A temporalidade é o sentido ontológico do Sorge e este abriga em si tanto a morte quanto o Shuldgsein (ser ou estar em culpa ou débito). Fica implícita a ligação entre a temporalidade originária com a morte e o sentimento de culpa ou débito. Para o Dasein, para abrir-se e poder-ser é preciso um "estar certo originário" e este estar certo é produzido pela Consciência, onde a temporalidade originária se converte em tempo público. Dentro deste contexto o ser aparece como Sorge (seins als Sorge).
"Chamamos temporalidade este fenômeno unificador do porvir que atualiza o vigor de ter sido. Somente determinada como temporalidade, que a pre-sença possibilita para si mesma o poder-ser toda em sentido próprio da de-cisão antecipadora. Temporalidade desentranha-se como o sentido da cura propriamente dita".
Logo a seguir, complementa: "A unidade originária da estrutura da cura reside na temporalidade. A temporalidade não "é", de forma alguma um ente. Ela nem é. Ela se temporaliza....Temporalidade é o fora-de-si e para-si-mesmo originários".
Esta temporalidade originária é a finitude, criando o sentido do Sorge como ser-para-morte. A tentação de passar por cima da finitude do porvir originário é própria do Dasein e, com isso, nasce a compreensão vulgar do tempo. A maneira mais apropriada do Dasein afirmar-se é, exatamente, gastando seu tempo.

Resumo do capítulo
A filosofia constitui uma dimensão múltipla para o tempo enquanto princípio - enquanto Arché. Este tempo é a condição de possibilidade para qualquer outro, é dele que emanam e para ele que fluem os outros. Vamos vendo a maneira pela qual a concepção de tempo está, ela mesma, vinculada a maneira de viver das pessoas onde ela surge. Esta vinculação constitui um parâmetro originário, sendo impossível temporizar o tempo em termos de colocá-lo em um antes ou depois, visto, para isso, já ser necessário uma concepção a seu respeito.
Vimos como em Aristóteles o tempo aparece ligado ao movimento. Trata-se do número do movimento, segundo um antes e um depois. Platão também lida com esta forma do tempo enquanto Cronos, enquanto imagem móvel da eternidade. Este é um tempo presente, denso. Esta densidade aparece na forma de um presente antigo, como se fosse o passado (passado que quando sai do seu lugar, não deixa os acontecimentos "tranqüilos", como o faz o presente antigo, um deslocamento de elementos do passado. Vamos ver, mais na frente, como isso gera profundas turbulências) e de um presente avançado , confundido como sendo o futuro (este presente avançado aparece desprovido dos acasos e dos desvios entre o presente e o devir).
Outra forma do princípio aparecer é enquanto Kairós, o tempo oportuno. A vida feliz depende de saber reconhecer e oportunidade de um mundo sempre em movimento. Kairós opera na ordem do clinamen - fator de decadência dos átomos, levando todas as coisas a se transformarem na forma de um acabar.
Aion é outra forma onde o tempo, um tempo teológico, aparece na maneira do instante. Trata-se "do intervalo do movimento do mundo". Representa o destino enquanto vazio potente (enquanto Moira e Tiché). Retira do presente aquilo que pode ser ,fazendo-os existir.
Santo Agostinho apresenta uma virada no sentido de tempo, situando-o no indivíduo, na forma da memória. Trata-se de um "vestígio da eternidade". O tempo começa a figurar já na sua qualidade psicológica, enquanto relativa ao indivíduo.
Hegel introduz o tempo ligado ao processo histórico. A história representa um tempo que faz avançar, processa sínteses entre contradições, produzindo desenvolvimento. O sentido de Aufhebung ( suspensão, surgimento) liga-se a esta condição de fazer aparecer do tempo.
Heidegger localiza o tempo ligado à Consciência do ser-para-a-morte. Situa-se em uma crise da metafísica que vinha desde a muito tomando o ser enquanto ente e, aí também situava o tempo. O tempo não "é (sein)". A temporalidade introduz o Dasein na angústia, fazendo surgir dele a ação do Sorge (cura, cuidado, preocupação) ,sendo, este, o sentido existencial do homem.
Vivendo a contradição intrínseca à Arché a filosofia constitui-se em um polo acionador de práxis. É dela que surge e para ela que convergem as contradições de força do trabalho discursivo responsáveis pela energia necessária a tudo aquilo que se realiza.
É preciso ir deixando ver como a dissimilitude intrínseca ao conceito devido a presença do tempo, quanto - como pretendemos deixar ver aqui - inerente a tempo, ele mesmo, vai fazendo surgirem práxis como forma de escoar esta energia e maneira de acalmar a potências destes espaços atravessados pela crise.


3 O TEMPO MAQUÍNICO

A tecnologia surgiu entre nós muito antes do aparecimento das máquinas tal como as conhecemos hoje. Ela existe, desde sempre, como a maneira pela qual vivenciamos o tempo. Aparece, também, já na forma pela qual o fim e a finalidade se impõem ao vivenciar e ao percurso. Trata-se de uma das formas da letra e aparece junto com a pergunta: "O que é?".
A ciência sempre tratou de encurtar o percurso, tomando o tempo na forma de intervalo com direção. Classicamente, este aparece na forma de uma variável independente, em relação ao qual se definem os outros parâmetros.
Por mais que se varie a forma de construir estes intervalos com direção - relógios de água, mecânicos, eletrônicos etc. - a intenção é a mesma: constituir uma variação controlada em relação a qual se possa medir e, através disso, controlar e intervir nas outras. Este tempo construído não deixa de anwustiar. Seu repetir maquínico - frio e sistemático - faz figura para o inexorável. Diferente do movimento cíclico e repetitivo da "natureza" de onde aparentemente retirou sua forma e sua medida, este constitui uma direção linear, sempre apontando para "frente". A impressão estabelecida é no sentido do encurtamento do intervalo representar um aceleração do movimento, uma "rapidez", de uma possibilidade de aceleração e de uma intenção de, ao se lidar com o tempo nesta sua forma, se estar lidando com o Tempo enquanto tal. Longe de ser uma "medida", uma representação "do Tempo", um tempo criador, este se constitui como um tempo produtor, até mesmo representa "o produto" enquanto tal. Vamos procurar entrever aqui, como o rulógio se constitui no instrumento científico por excelência.
Para introduzir o tempo na ciência, sendo essa a nossa maneira mais comum de vivê-lo, vamos dizer uma construção mítica moderna para marcar onde pretendemos chegar nesta construção: O tempo é como um mar, sendo no quebrar de suas ondas, a própria constituição da matéria. A cada onda novos universos se constituem e outros acabam refluindo, retransformados em tempo - tal como uma onda reflui para o mar. A matéria é, ela mesma, apenas a espuma do quebrar das ondas do tempo, sendo o movimento um atributo deste movimento ondulatório permanente, mas variável do tempo.

3.1 Processos de marcação do tempo.
O sentido da marcação do tempo de forma alguma é universal. Vamos encontrá-lo ligado ao fator de produção e de intervenção no real. Lewis Carroll, no seu texto sobre Alice no País das Maravilhas, faz o Chapeleiro Maluco dizer de como "o tempo não tolera ser marcado como se fosse uma vaca". Enquanto o sentido de tempo se liga a linguagem, sua medição se liga aos números. Na nossa cultura constitutiva a marcação deixa uma marca muito precisa.

Tempo enquanto ritmo.
Toda marca produzida com a intenção de durar, desde as marcas deixadas no paleolítico até hoje, deve ter em si uma perspectiva de marcação no tempo. Enquanto isso, a marcação do tempo esteve originalmente ligada a acontecimentos repetitivos, mas sem deixar marcas, tais como: o canto do galo, o nascer do sol, o aparecimento de alguma estrela.
Vamos deixar para discorrer sobre as marcas no tempo quando abordarmos o sentido histórico e, aqui, tomar o corpo pleno da terra como sendo o lugar da marcação do tempo. Os acontecimentos repetitivos se vinculam ao tempo enquanto "ritmo". O ritmo é, na sua forma abstrata, número e na mais humanizada, tempo. Fala-se sempre em tempo musical para dizer da composição. No sentido dos marcadores sonoros, ligados quase sempre aos rituais, a intenção é capturar o ritmo das causas, o que significa o tempo dos acontecimentos acontecerem, de tal maneira a exercer sobre eles, um controle.

A marcação ritual.
Os rituais funcionaram sempre enquanto unidades sociais de marcação do tempo (ou, como veremos mais adiante, como marcações pessoais no caso das atitudes obsessivas, dos vícios e hábitos ). Trata-se, sempre, de se fazer os acontecimentos "naturais" serem acompanhados de marcações "humanas", de tal maneira a se subordinar aqueles a estes. O "ritornello" não é só aquilo a repetir-se é, mais exatamente, aquilo que faz repetir - estabelece-se como causa convocadora. Já diz respeito a um tempo produtor expressando uma imposição sobre o real, deixando ver a vontade de potência evidenciando nosso mundo como tendo na sua base uma imposição onde, através de marcadores temporais, nos introduzimos no regime das causas - quer de forma direta ou indireta.

O calendário.
A marcação do tempo não significa a existência de uma continuidade da história tal como a conhecemos hoje. Tanto no Egito quanto na Mesopotâmia, por exemplo, começava-se sempre a fazer a marcação a partir da posse do rei. Cada rei funcionava como um novo começo para o tempo. A imortalidade pessoal não estava relacionada com um sentido infinito de tempo - o tempo podia acabar e começar mas a alma tinha sua imortalidade, não padecia do tempo tanto quanto o fazia o corpo. Mesmo assim, por outros motivos - econômicos e astrológicos - os egípcios foram os criadores do "único calendário inteligente que jamais existiu na história humana".
Na verdade, eles tinham um calendário civil com finalidades políticas e um calendário com finalidades práticas de medição astronômicas e das cheias do Nilo - o calendário sotiacal.
Os egípcios constituíram um calendário com 12 meses de 30 dias cada um, tendo 5 dias adicionais, perfazendo 365 dias por um período ( um ano). Logo, também, descobriram uma anomalia nesta medida, a discrepância de cerca de um quarto de dia. Este calendário foi provavelmente introduzido no reinado de Imhotep. Criaram o relógio de sol para medições diurnas e, durante a noite - ou nos poucos dias nublados - usavam o relógio de água ou um fio de prumo denominado "markhet". Devemos a eles a divisão do dia em 24 períodos (horas) apesar de que, para eles, estes períodos não tinham uma duração igual.
"Na antigüidade, somente os astrônomos helenísticos usavam hora de igual duração, iguais às horas sazonais da data do equinócio de primavera. Dado que, de acordo com uma prática babilônica, todos os cálculos astronômicos que envolviam frações eram efetuados no sistema sexagesimal, em vez do decimal que hoje usamos, essas horas "equinociais" eram divididas pelos astrônomos em 60 segundos".
Foram os babilônios os inventores do cinturão do zodíaco. Concebendo a "impermanência", entendiam a marcação do tempo como uma medida de registrar, não a história, mas o fluxo. Este era o sentido originário do zodíaco - marcar a impermanência. Os signos falavam exatamente da inconstância do tempo, sua não linearidade. Prestavam especial importância aos períodos de 7 dias da variação da Lua, sendo que para eles, cada um destes ciclos terminava com "um dia maligno". Aí vamos encontrar a base de nossa semana de 7 dias e as restrições impostas a atividades no domingo.
Os gregos foram grandes agenciadores de conhecimentos. O agenciamento feito por eles dos instrumentos e das concepções a cerca da medição do tempo, os levaram a uma definição conclusiva sobre este no sentido prático: diz respeito a algo sem uma existência substantiva, trata-se de um conceito da alma (psique) ou um meio de medir. Passaram a aperfeiçoar os instrumentos de medição como, por exemplo: o gnômon (ou quadrante solar ) e a clepsidra (ou relógio de água). São os primeiros a introduzirem períodos iguais dividindo a unidade do dia. A Grécia constitui um solo propicio para a historiografia, localizando "o tempo como pai da verdade". Porém, é aos judeus que devemos a nossa concepção de temporalidade linear.
Os judeus têm uma concepção teleológica do tempo enquanto história, ao longo da qual Deus vai revelando seus desígnios. A imagética judaica de tempo é uma linha inclinada levemente ascendente, diferente da grega, egípcia ou babilônica, onde ele aparece como um círculo. Constróem um "tempo futuro", o próprio Iavé "será aquele que será (Irieh asher Irieh)". Esta visão unidirecional, não cíclica, nos chega até hoje. Seu calendário, porém, se baseava na Lua.
Os muçulmanos introduzem uma concepção do tempo composto de "átomos de tempo", unidades mínimas que não podem mais ser divididas. A existência de algo em uma dessas unidades não implica sua existência na seguinte. Este tempo contingente e causal será introduzido na concepção dos segundos enquanto sendo "unidades praticamente concretas".
Apesar de existirem medições diferentes durante a Idade Média, de forma ao período histórico não ser o mesmo em lugares distintos, se tornou de interesse para a Igreja, a medição do tempo. O próprio termo "hora" era o período ao longo do qual se orava durante o dia. Sua medição ligado a finalidades litúrgicas vincula-se, também, a um investimento feito pela igreja católica no atual como "clímax do tempo". O nascimento de Cristo teria marcado o atual como lugar do melhor, visto estar nele a realização de um privilégio. O medir já é uma forma de homenagem, de interesse. Há que se agradecer a cada bater de horas. A mesma arte do ferreiro em franco desenvolvimento devido a construção de armaduras é usada para se fazerem os relógios. O relógio obedece tanto a imagética cíclica quanto ao tempo judaico retilíneo.

O relógio.
A partir do século XV começam a surgir os primeiros relógios de algibeira. A horificação começa já a tomar conta do cotidiano das pessoas.
"É interessante retraçar o modo como o horário das refeições se modificou ao longo dos séculos, em particular porque na vida diária não é apenas o relógio a nos informar em que parte do dia estamos, mas, também, as refeições que fazemos. Assim, no linguajar comum, a "tarde" começa agora uma hora ou mais depois do meio dia segundo o relógio. Também o jantar passou a ser cada vez em hora mais avançada do dia. Os fascinantes detalhes dessa tendência histórica foram descritos por Arnold Palmer. E no século XVI, embora afetasse a maior partes das pessoas muito menos do que afeta hoje, o domínio do relógio já era suficiente para suscitar no Irmão Jean, no Gargantua ( 1545) de Rabelais, o protesto de que "as horas são feitas para o homem e não o homem para as horas!"
A contagem do tempo nunca foi uniforme e até o século XVII não havia unidade quanto a isso na Europa. Como aponta este trecho:
"Na Inglaterra, 25 de dezembro foi considerado o inicio do ano na Idade Média até o final do século XII, quando a data foi substituída por 25 de março. A Igreja decidiu começar seu ano nesse dia por ser o da Anunciação da Virgem ( Lady Day), precedendo o dia de Natal em exatos nove meses. Ao ano que começava em 25 de março deu-se na Inglaterra o nome de "Ano da Graça" até 1751, quando o ano oficial começou em 25 de março e terminou em 31 de dezembro. A partir de então, começou em 1 de janeiro. Essas alterações foram autorizadas por Ato do Parlamento de 1750. O ano fiscal, entretanto, sofreu apenas uma mudança mínima e até hoje termina no dia 5 de abril, data do novo calendário que correspondia ao dia 25 de março no antigo. Na Escócia ,o ano iniciou-se em janeiro desde 1600.
"Facilmente surgem confusões quando tentamos comparar datas entre 1582 e 1752 segundo o calendário juliano que prevalecia na Inglaterra, com as datas correspondentes do calendário gregoriano usado em alguns dos principais países do continente europeu. Afirmou-se algumas vezes, por exemplo, que Cervantes morreu no mesmo dia em que Shakespeare. Infelizmente, esta notável coincidência não ocorreu. Cervantes morreu em Madri num sábado, 23 de abril de 1616, segundo o calendário gregoriano já em uso alí, ao passo que Shakespeare morreu em Stratford-upon-Avon numa terça feira, 23 de abril de 1616. Assim, na verdade Shakespeare sobreviveu a Cervantes por dez dias."
"Até o século XVII, a maioria dos pensadores, até mesmo os cristãos, aceitavam a teoria das influências astrais. A palavra desastre, originalmente, designava o aspecto desfavorável de um astro (do latim astrum). A medição do tempo estava de tal forma inserida na concepção do tempo prático e do clima, que o relógio público de Mântua era usado, pelo menos por volta de 1470, para indicar o momento certo para flebotomia, para cirurgias, para confeccionar roupas, para cultivar a terra, para empreender viagens e outras coisas úteis.
A invenção do relógio mecânico foi simultânea à concepção mecânica do universo, tal como formula Kepler no século XVII, deixando ver a interação constante entre a maneira de se conceber o tempo e a maneira como se concebe o real.
Robert Boyle é outro a afirmar que:
"o universo não é um títere cujas cordas devem ser puxadas a cada vez, mas assemelha-se a um relógio raro, como talvez seja o de Estrasburgo, em que tudo é tão habilmente arranjado que, tendo o mecanismo sido acionado uma vez, tudo prossegue de acordo com o propósito inicial do artífice e os movimentos não exigem sua interposição especial ou o emprego de qualquer recurso inteligente, mas desempenham suas funções nos momentos exatos, em virtude do arranjo geral e inicial de todo o mecanismo."
Christian Huygens (1629-1695) defende como os fenômenos naturais são explicados "par des raisons de mécanique", sendo ele, também, o responsável pela conversão do relógio mecânico em um instrumento de precisão. Huygens segue indicações de Galileu que já havia chegado à conclusão de que todo pêndulo comum tem um período próprio de vibração, que depende do seu comprimento ( Galileu, no século XV, já imaginou a aplicação do pêndulo no mecanismo do relógio, que poderia, assim, registrar mecanicamente o número de oscilações).
"Em junho de 1657 o governo dos Países Baixos Unidos concedeu a Salomon Coster, de Haia, direitos exclusivos para fabricar e vender naquele país, por 21 anos, relógios baseados na invenção de Huygens. Dois anos mais tarde, Huygens descobriu que era possível obter uma isocronia (uniformidade de aceleração) teoricamente perfeita, impelindo o peso do pêndulo a descrever um arco ciclidial (uma ciclóide é uma curva descrita por um ponto fixo num círculo que rola sem deslizar sobre uma reta)...O relógio de Huygens incorporava o escapo de haste, mas, por volta de 1670, foi inventado um tipo muito mais aperfeiçoado, o escapo de âncora, que interferia menos no livre movimento do pêndulo. Embora não se saiba ao certo quem foi o responsável por esse invento, John Smith em Horological Disquisitions, de 1694, atribuiu-o ao relojoeiro Willian Clements, de Londres."
O relógio mecânico faz parte de uma metamorfose da construção do real onde este aparece sob a forma do "mecanismo". O relógio mecânico é o instrumento prototípico não só da concepção mecânica do universo, como da idéia moderna de tempo. Segundo Lewis Munford, "ele dissociou o tempo dos eventos humanos e ajudou a criar uma crença em um mundo independente de seqüências matematicamente mensuráveis: o mundo próprio da ciência.". Isso vai possibilitar Newton expressar, no seu Principia de 1697:
"O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e por sua própria natureza, flui de modo igual, sem relação a qualquer coisa externa. Leibiniz, porém, opunha-se a esta concepção independente do tempo, vinculando-o aos fenômenos : o tempo é a ordem de sucessão dos fenômenos, de tal modo que, se não houvessem fenômenos, não haveria tempo.
Jean Froissart em seu poema "Le orloge amoureus" apresenta uma elaborada alegoria, segundo a qual o próprio amor galante é comparado a um relógio mecânico.

A comunicação, as viagens e a informação decidindo sobre a unidade do tempo.
O movimento da comunicação - a correspondência e panfletos informativos - foi decisivo na produção da necessidade de uma ordenação na marcação do tempo. A mídia já se impunha. As táticas de gerenciamento e o fluxo de pessoas premiu o estabelecimento de um "horário" comum. O aparecimento da indústria, a criação concomitante do transporte ferroviário e as necessidades táticas das guerras emergentes participaram de forma intensa na constituição do tipo de gerenciamento de tempo do qual hoje fazemos parte. O tempo maquínico passa a ocupar o lugar da temporalidade, sendo ele aquele a marcar e demarcar os movimentos e mesmo os desejos. A precisão de suas medidas avança assustadoramente. Com isso surge a vivência da "pressa".
A medição pela freqüência atômica cria uma precisão da ordem de possibilidade de erro de apenas um segundo em três milhões de anos. Já temos os "segundos bissextos" devido ao fato dos anos não terem sempre exatamente o mesmo número de segundos, de forma a se ter de fazer, eventualmente, correções positivas ou negativas da ordem de um segundo ao ano.

Tempo-máquina.
Existe uma certa articulação entre o aprimoramento da medida com a aceleração dos movimentos vinculados às máquinas e com um embaralhamento nas condições do prazer. Não é por certo isso a origem do problema com o prazer, mas, sem dúvida, é nisso em que se metamorfoseia parte substancial desta problemática. O que é feito mais rápido, necessariamente não condiz com as condições necessárias para o prazer ou para uma assimilação efetiva no sistema anímico.
Podemos fazer uma hipótese segundo a qual o fazer mais rápido é também fazer menos da "coisa", deixar-se envolver e transformar-se menos por ela. Abre-se, assim, um vazio cada vez mais amplo onde se procura fazer com que ele seja ocupado por "mais coisas", portanto, em menos tempo....O nosso sistema de produção funciona mais ou menos apropriando-se destas condições, de forma a vir a ser o sujeito de nosso contexto, um exímio senhor da rapidez sempre crescente, mas com sérias dificuldades com a satisfação.
Alan Lightman exprime da seguinte forma esta questão do tempo máquina:
" Neste mundo, existem dois tempos. Existe o tempo mecânico e o tempo corporal. O primeiro é tão rígido e metálico quanto um imenso pêndulo de ferro que balança para lá e para cá, para lá e para cá, para lá e para cá. O segundo se contorce e remexe como um enchova na baía. O primeiro não se desvia, é predeterminado. O segundo toma as decisões a medida que avança.
"Muitos não acreditam que o tempo mecânico exista . Quando passam pelo grande relógio na Kramgasse, não o vêem; tampouco escutam suas badaladas quando estão despachando pacotes na Postgassse ou caminhando entre flores na Rosengarten. Usam relógios de pulso, mas apenas como ornamentos ou como cortesia para com aqueles que acreditam ser instrumentos de medição de tempo um bom presente. Em suas casas eles não têm relógios. No lugar deles, ouvem as batidas dos seus corações. Eles sentem os ritmos de seus humores e desejos. Essas pessoas comem quando sentem fome, vão para o trabalho, na chapelaria, no laboratório, na hora em que despertam do seu sono e fazem amor a qualquer hora do dia. Essas pessoas riem só de pensar no tempo mecânico. Sabem que o tempo se movimenta espasmodicamente. Sabem que o tempo se arrasta para frente com um peso nas costas quando estão levando uma criança às pressas para o hospital ou quando têm que sustentar o olhar de um vizinho que foi vítima de alguma injustiça. E sabem também que o tempo atravessa em disparada seu campo de visão quando estão saboreando uma boa comida com amigos ou sendo elogiadas ou quando estão deitadas nos braços de um amante secreto.
"Por outro lado, há aqueles que pensam que seus corpos não existem. Eles vivem de acordo com o tempo mecânico. Levantam-se às sete da manhã. Almoçam ao meio-dia e jantam as seis. Chegam aos compromissos pontualmente, na hora marcada. Fazem amor entre oito e dez da noite. Trabalham quarenta horas por semana, lêem o jornal de domingo no domingo, jogam xadrez nas terças à noite. Quando seus estômagos reclamam, olham para o relógio para saber se é hora de comer. Quando começam a ficar desatentos em um concerto, olham o relógio acima do palco a fim de ver quanto tempo falta para ir para casa. Sabem que o corpo não é o resultado de uma máquina fantástica, mas uma coleção de elementos químicos, tecidos e impulsos nervosos. Pensamentos não são mais que oscilações elétricas no cérebro. Excitação sexual não passa de um fluxo de elementos químicos para a extremidade de certos nervos. Tristeza nada mais é do que um pouco de ácido transfixado no cérebro. Em resumo, o corpo é uma máquina, sujeito às mesmas leis da eletricidade e da mecânica que um elétron ou um relógio. Portanto, ao falar do corpo deve-se usar a linguagem da física. E, se o corpo fala, é a fala de nada mais que um número de alavancas e forças. O corpo não é uma coisa a que se obedece e sim uma coisa em que se manda.
"Respirando-se o ar noturno ao longo do rio Aare, é possível encontrar evidências de dois mundos em um. Um barqueiro calcula a posição de seu barco no escuro contando os segundos em que é levando pelo curso da água. "Um, três metros. Dos, seis metros. Três, nove metros". Sua voz rasga a escuridão cm sílabas claras e seguras. Sob um poste de luz na ponte Nydegg, dois irmãos que não se viam fazia um ano bebem e riem. O sino da catedral de St. Vincent bates dez vezes. Em segundos, apagam-se as luzes dos apartamentos perfilados na Schifflaube, uma perfeita resposta mecanizada, como as deduções da geometria de Euclides. Deitados à margem do rio, dois amantes olham preguiçosamente par ao céu, despertados de um sono atemporal pelos distantes sinos da igreja, surpresos por perceberem que a noite caiu.
"Onde os dois tempos se encontram, o desespero. Onde os dois tempos se separam, a satisfação. Pois, milagrosamente, um advogado, uma enfermeira, um confeiteiro podem construir um mundo em qualquer dos tempos, mas não nos dois. Cada tempo é verdadeiro, mas as verdades não são as mesmas."
Qual o fantástico fascínio exercido por estas pequenas máquinas onde o tempo está aparentemente aprisionado, mas de onde, tudo indica, serve-se para uma função ordenadora do real dos homens? Como captura a atividade desejante de tal maneira a atrair para si um interesse fantástico de controle e de aperfeiçoamento? É preciso um homem-máquina para um tempo-máquina?
Podemos, pelo menos, adiantar como a medição do tempo privou sua vivência enquanto duração. A introdução do tempo medido é análoga à introdução do sentimento de culpa: produzem um alívio ambíguo no contexto onde se inserem. Graças ao sentimento de culpa a cultura cristã criou o perdão, sendo este, de certa forma, um grande alivio: evita-se a densidade da vivência que poderíamos designar como "responsabilidade" ou ainda, "ética". Nos contextos onde não se tem o sentimento de culpa, também não se tem perdão e um efeito sucede, inexoravelmente, um outro. No caso da medição temporal se dá o mesmo "alívio" da estrutura, o tempo medido se apresenta enquanto algo controlado e fora do corpo. Esta medição é, primordialmente, mediação - entre ser e tempo. Trata-se de uma entificação simultânea criando uma falsa impressão de ter elucidado o enigma do real através da produção de um artifício.

3.2 O tempo na ciência clássica.
O tempo a interessar a ciência é aquele a ser operacionalizado. Um tempo-coisa, um ente. Esta operacionalidade tem como objetivo "melhorar" as condições mundanas e ampliar um certo tipo de conhecimento. Este tipo apresenta-se como sendo apto a ampliação e a aplicação dado tomar como objeto as coisas. Trata-se de vincula-lo ao progresso.

Newton e o tempo matemático.
Dentro da ciência clássica, dois pontos de vista sempre estiveram contrastando-se: 1- O ponto de vista de Newton prevalecente entre nós. No seu livro "Principia", ele faz a seguinte definição: "o Tempo segue a natureza uniforme de seu curso.... O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e por sua própria natureza, flui de modo igual, sem relação a qualquer coisa externa". Esta imagética está no nosso imaginário até hoje. 2- Por outro lado, bastante esquecido, vamos encontrar a representação de um ponto de vista distinto em Nicholas de Cusa, depois levada adiante pelo também obscuro Giambattista Vico.
O ponto de vista de Vico e de Nicholas de Cusa, afirma só podermos conhecer alguma coisa depois de criá-la em nós mesmos. Daí a facilidade maior de se conhecer as matemáticas, as linguagens, as máquinas, aquilo feito pelo homem. Neste sentido, existe um "ponto de vista do tempo" implicado no conhecimento - tanto no sentido do tempo no qual o sujeito esta inserido ser decisivo na percepção quanto, mais importante, é preciso antes tornar-lo algo de próprio ( não exatamente no sentido de posse, mas no sentido de uma identificação entre aquilo que nele e em nós é próprio, particular, característico) na forma da história e da memória para, a partir daí, compreendê-lo. Não se pode atribuir o conhecimento relativo a um tempo para outros contextos fora deste particular - visto ser o processo de apreensão do tempo decisivo na constituição das formulações.
Temos, portanto, dentro da ciência clássica uma concepção para a qual a idéia de tempo é parte essencial da idéia de natureza, por outro lado, uma outra onde o homem só pode ser considerado historicamente - inclusive o próprio conceito de natureza. Esta segunda concepção faz parte de um ponto de vista da "ciência histórica".
A primeira faz um curso vinculado às "ciências naturais" e prevalece no campo das "ciências propriamente ditas". Quando o tempo matemático, verdadeiro, fluente como a própria natureza é tornado operacionalizado, produz-se a impressão de um domínio sobre a própria natureza. O desejo deste domínio faz parte de algo efetivo entre nós, de sorte a nos seduzir amplamente. É exatamente no campo do domínio do tempo onde a ciência nos seduz mais.
Newton associa tempo a velocidade. O cálculo infinitesimal permite resolver o antigo paradoxo do tempo levantado pelos estóicos no aforisma de Aquiles com a tartaruga. É já possível calcular a velocidade instantânea de um móvel obtida pela divisão da mudança minúscula de posição pelo intervalo de tempo, que também é minúsculo - a isso se designa derivada primeira. A derivada segunda permite relacionar-se diretamente a aceleração de um corpo com a força nele aplicada: a aceleração é a variação da velocidade com relação ao tempo, sendo a velocidade em si a taxa de variação da posição em relação ao tempo. A física newtoniana, porém, não pretende fazer nenhuma distinção quanto a direção do vetor tempo, trata-se de um vetor simétrico descrevendo um mundo perfeitamente reversível - onde se poderia ir para frente ou para trás.
A crença do mundo enquanto um sistema determinístico sempre serviu de base para a ciência. É também por estas vias, onde vamos encontrar o tempo. Lightman faz a seguinte construção poética do tempo absoluto newtoniano:
"É impossível caminhar por uma avenida, conversar com um amigo, entrar em um edifício, relaxar sob os arcos de arenito de uma velha arcada, sem ver um instrumento de medição do tempo. O tempo é visível em todos os lugares. Torres de relógio, relógios de pulso, sinos de igrejas dividem os anos em meses, os meses em dias, os dias em horas, as horas em segundos, cada incremento de tempo marchando atrás do outro em perfeita sucessão. E, além de qualquer relógio específico, uma vasta plataforma de tempo, que se estende por todo o universo, estabelece a lei do tempo igualmente para todos. Neste mundo, um segundo é um segundo é um segundo. O tempo avança com exuberante regularidade, com exatamente a mesma velocidade em todos os cantos do espaço. O tempo é um soberano infinito. O tempo é absoluto.
"Toda tarde, os habitantes de Berna se reúnem na extremidade oeste da Kramgasse. Ali, quando faltam quatro para as três, o Zygloggeturm homenageia o tempo. No alto da torre, os palhaços dançam, galos cantam, ursos tocam gaita e tambor, seus movimentos e sons mecânicos precisamente sincronizados pelo giro das engrenagens que, por sua vez, são inspirados na perfeição do tempo. Às três horas em ponto um imenso sino badala três vezes, as pessoas acertam seus relógios e voltam para seus escritórios na Speichergasse, suas lojas na Marktgasse, suas fazendas do outro lado do Aare."
"Os que têm alguma fé religiosa vêem o tempo como uma evidência de Deus. Pois, com certeza, nada que é perfeito poderia ser criado sem um Criador. Nada poderia ser universal sem ser divino. Todos os absolutos são parte do Um Absoluto. E onde houver um absoluto, lá está também o tempo. Assim, os filósofos da ética colocaram o tempo no centro de sua crença. O tempo é a referência com base na qual todas as ações são julgadas. O tempo é a clareza para ver o certo e o errado......"
"Um mundo em que o tempo é absoluto é um mundo consolador. Pois, embora os movimentos das pessoas sejam imprevisíveis, o movimento do tempo é previsível. Embora se possa duvidar das pessoas, não se pode duvidar do tempo. Enquanto as pessoas ficam divagando, o tempo prossegue em sua caminhada sem olhar para trás. Nos cafés, nos edifícios públicos, nos barcos no lago de Genebra, as pessoas olham para seus relógios e se refugiam no tempo. Cada pessoa sabe que em algum lugar está registrado o momento em que nasceu, o momento em que deu o primeiro passo, o momento de sua primeira paixão, o momento em que se despediu dos pais."

O tempo relativistico de Einstein.
Einstein, com a teoria da relatividade, acaba com o conceito de tempo absoluto. Este tempo absoluto sustenta ainda o senso comum moderno e deriva da concepção newtoniana. Segundo este conceito comum, dever-se-ia considerar que qualquer acontecimento do universo ocorrido em um ponto particular do espaço e em um dado instante do tempo, seria o mesmo em qualquer lugar. Em vez disso sugere uma exigência tetradimensional do espaço-tempo (três dimensões de espaço - largura, altura e profundidade - mais uma de tempo.)
Afirma a percepção enquanto algo dependente do ponto de vista de cada um: quanto mais depressa um relógio se desloca, mais devagar bate. A teoria da relatividade possibilita o conhecimento do passado e do futuro de qualquer sistema, desde que tenhamos o conhecimento preciso dessa estrutura em qualquer instante. Mas ela não deixa indício de como saber o que é presente e o que é futuro. Einstein, ele mesmo, era bastante cético em se tratando de tempo, quando uma vez lhe perguntaram "Onde está o tempo? Está na física?" ele respondeu: "Não. O tempo não está na física". Menciona, também, sua convicção de ser mera ilusão a diferença entre passado, presente e futuro - os três estão relacionados de forma simples entre si.
Tal como formula na sua teoria do espaço-tempo: a variação no espaço produz variação no tempo. O espaço não é mais pensado como o euclidiano - como plano - mas sim enquanto curvo, dobrado. Quanto maior a densidade de matéria em uma região do espaço, maior a sua curvatura - a distorção provocada no espaço por corpos densos de matéria (como a Terra, por exemplo) distorcem o espaço e também, o tempo. Qual seria a conseqüência de uma distorção desse nível no tempo?
Não se tem resposta alguma a esta questão, mas se sabe que as leis a regerem um espaço curvo (espaço geodésico) são bem diversas daqueles a regerem um espaço plano. Isso implica uma reavaliação da teoria da gravitação. Além disso, a propagação do raio luminoso não obedece mais as leis do senso comum - da linha reta :
"Existe uma massa associada à energia luminosa de um raio de luz e esta deveria sentir a atração gravitacional de outras massas; conseqüentemente, a trajetória do raio de luz vai se inclinar ao redor de qualquer corpo celeste de massa muito grande, como, por exemplo, de uma estrela."
Einstein percebeu que quanto mais forte o campo gravitacional, mais lento seriam os tique-taques dos relógios; quanto mais próximo está um objeto de outro cuja massa é grande ( o Sol, por exemplo), tanto mais devagar bate o relógio em relação a outro situado longe dali. A isso se chamou dilatação gravitacional do tempo.
Na ciência clássica o tempo está de tal forma associado ao espaço e à energia, que se fala em "anos-luz" para se falar de distância a ser percorrida a nível cósmico. Ora, anos é uma medida de tempo, luz é um coeficiente de energia e a distância se refere ao espaço. Atualmente, já vamos encontrar uma outra medida: o persecs. Estas unidades de medida referem-se a mudanças generalizadas no contexto onde se fundamenta aquilo a que eles se referem e medem.
É novamente Lightman quem nos faz uma bela alegoria sobre esta posição:
" Nesse mundo o tempo é um fenômeno local. Dois relógios, um ao lado do outro, batem quase no mesmo compasso. Mas relógios separados pela distância batem em compassos diferentes; quanto mais distantes, mais fora de compasso. Este princípio que marca o movimento dos relógios vale também para as batidas cardíacas, o ritmo da respiração e expiração, o movimento do vento no capim. Neste mundo, a velocidade do tempo varia de local para local.
"Uma vez que uniformidade temporal é necessária para a realização de negócios comerciais, não existe comércio entre cidades. As distâncias entre cidades são grandes demais. Ora, se para contar mil notas de franco suíços leva dez minutos em Berna e uma hora em Zurique, como podem as duas cidades manterem relações comerciais? Em conseqüência, cada cidade está sozinha. Cada cidade é uma ilha. Cada cidade precisa plantar e cultivar suas próprias ameixas e cerejas, cada cidade precisa manter seus próprios gado e porcos, cada cidade precisa construir seus próprios moinhos. Cada cidade precisa ser auto-suficiente."
"Ocasionalmente, um viajante se arriscará a ir de uma cidade a outra. Ficará perplexo? O que levava segundos em Berna poderá levar horas em Friburgo, ou dias em Lucerna. O tempo que uma folha leva para cair no chão em algum lugar pode ser o mesmo que uma flor precisa para desabrochar em outro. Durante o estrondo de um trovão em um lugar, duas pessoas podem estar se apaixonando em outro. O tempo que um menino leva para se tornar adulto pode ser o tempo que um pingo de chuva leva para deslizar pelo vidro de uma janela. Mesmo assim, o viajante não tem consciência dessas discrepâncias. À medida que viaja de um eixo de tempo para outro, o corpo do viajante se ajusta ao movimento local do tempo. Se cada batida do coração, cada o{cilação do pêndulo, cada desfraldar de asas de um corvo-marinho estão em harmonia entre si, como poderia o viajante saber que ele entrou em uma nova zona de tempo? Se o ritmo dos desejos humanos permanece proporcionalmente harmônico com o movimento das ondas em um lago, como pode o viajante saber que alguma coisa mudou?
"Somente quando o viajante se comunica com a cidade que deixou percebe que penetrou em um novo território temporal. Então, ele vem a saber que enquanto esteve ausente, sua loja de roupas prosperou e se diversificou extraordinariamente, ou sua filha já viveu uma vida inteira até ficar velha, ou talvez que a esposa de seu vizinho acabou de cantar a canção que estava cantando quando saiu pelo portão de sua casa. É neste ponto que o viajante descobre que está isolado no tempo e também no espaço. Nenhum viajante volta para sua cidade de origem."
"Algumas pessoas apreciam o isolamento. Argumentam que sua cidade é a melhor das cidades; então por que desejariam o intercâmbio com outra cidades? Que outra seda poderia ser mais macia que a seda de suas próprias fábricas? Que relógios poderiam ser melhores que os relógios que têm em suas próprias relojoarias? Essas pessoas ficam em suas sacadas pela manhã, quando o sol nasce por trás das montanhas e nunca lançam os olhos além dos limites da cidade."
"Outras pessoas querem conhecer coisas novas. Interrogam longamente o raro viajante que aparece em sua cidade, perguntam-lhe sobre os lugares onde já esteve, perguntam-lhe sobre as cores de outros pores-do-sol, sobre a altura das pessoas e animais, as línguas faladas, os hábitos de flerte, invenções. Eventualmente, um desses curiosos decide ver com os próprios olhos e deixa sua cidade para explorar outras cidades, tornando-se um viajante. Ele nunca regressa.
"Este mundo da localidade do tempo, este mundo de isolamento, gera uma rica variedade de vida. Pois, sem intercâmbio entre as cidades, a vida pode assumir milhares de formas diferentes. Em uma cidade, as pessoas podem viver vizinhas uma das outras; em outra, separadas por longas distâncias. Em uma cidade, as pessoas podem vestir-se modestamente; em outras podem usar qualquer roupa. Em uma cidade, as pessoas podem ficar enlutadas pela morte de inimigos; em outra podem não ter inimigos nem amigos. Em uma cidade podem caminhar; em outra se movem em veículos estranhos. Toda essa variedade e muito mais existe em regiões distantes apenas cem quilômetros umas das outras. Logo ali, do outro lado de uma montanha, na outra margem de um rio, há uma vida diferente. No entanto, essas vidas não se comunicam entre si. Essas vidas não caminham lado a lado. Essas vidas não se alimentam umas às outras. A abundância trazida pelo isolamento é sufocada pelo próprio isolamento".
Em geral a física toma o tempo como um problema seu. Pelo menos ele é um vetor fundamental para ela avançar em seus pressupostos. Tanto a nível teórico quanto a nível da produção de instrumentos, a física não pode prescindir de uma concepção de tempo. Vamos ver como a física quântica vai enveredar por rumos distintos destes produzidos pela ciência clássica.

A seta do tempo.
A termodinâmica, também, procura afirmar a unidirecionalidade do tempo. A segunda lei da termodinâmica - a lei da entropia (medição da capacidade de mudança de um sistema qualquer) - está intimamente ligada ao tempo. O aumento da entropia é sinal indicativo da direção do tempo - a entropia aumenta com o avanço deste. Segundo a linha de pensamento da entropia, o universo começou pequeno e muitíssimo compacto, em um estado altamente organizado e de entropia muito baixa. A passagem do tempo corresponde, inevitavelmente, a uma entropia de ordem crescente a aparecer na medida da expansão contínua, sendo a energia do universo distribuída em um caldo disperso de calor dissipado - processo conhecido como a morte térmica do universo.
Boltzmann evidencia com seus "princípios", a termodinâmica, destacando a flecha do tempo para frente. Com isso concorda, também, Darwin, apontando as espécies, indo do mais simples para o mais complexo. Boltzmann não fala, porém, de um declínio monótono do universo para a desordem, ao contrário, ele deixa ver a maneira como o universo consegue aproveitar a termodinâmica para criar, desenvolver e expandir. Entretanto, ele não deixa evidenciado se este efeito de "desenvolvido" não é um sentido dado pela nossa apreensão - tal como o fazemos quando dizemos ser a nossa cultura a mais desenvolvida - nada indica o sentido exato do desenvolvimento como sendo este visto por nós e não o inverso. Ou seja, aquilo afirmado por nós como sendo "desenvolvimento," pode ser, por outro ponto de vista, involução e decadência. De qualquer maneira, passa-se a se conceber um movimento irreversível no tempo ou, mais exatamente, o tempo como aquilo mesmo que impede a reversibilidade. Um tempo de (eterno ) retorno - repetitivo - contra um como forma de impedir o retorno, vamos vendo como as concepções de tempo variam e fazem variar.
A ciência está sempre tentando deixar ver, quer pela física, pela química ou pela biologia, que cada instante fica gravado como uma marca histórica individual. Esta marca agencia as "evoluções" e o aspecto "criativo" do tempo. Mas quanto a isso, também, vamos ver como já não se concebe a evolução - principalmente em se tratando das espécies - com esta linearidade e determinismo todo. A presença do acaso e a concepção da não-linearidade ou da teoria do caos, vão colocar novamente em questão esta direção dada pelo nosso ponto de vista comum como sendo, portanto, impregnada pelo nosso desejo. A ciência não está de forma alguma isenta do ponto de vista de seu formulador.
Poicaré, matemático, vem colocar em questão este movimento linear do tempo na ciência. Um de seus teoremas demonstra que, dado um intervalo de tempo suficientemente grande, qualquer sistema isolado - o universo, por exemplo - voltará ao seu estado inicial; de fato, numa quantidade de tempo ilimitada o universo faria isso indefinidamente. Isso não significa, porém, um movimento simples de recomeço daquilo que compõe o universo. Vamos vendo a maneira como a ciência, ela mesma, anda através de seus tropeços e conflitos. Dentro da própria ciência, também, não se apresenta nenhum tempo unificado.
No limiar da ciência clássica já se abandona o tempo absoluto. A aparente afinidade entre tempo e velocidade está já fora dos elementos evidentes da ciência. A velocidade não explica o tempo depois de um certo limite da velocidade - quanto ela escapa do limite da velocidade da luz. A partir daí se tem a "dilatação do tempo", instaurando-se uma dificuldade problemática com o "agora".
"A dilatação do tempo foi verificada experimentalmente inúmeras vezes. Certas partículas elementares chamadas múons, que se propagam na atmosfera da terra em altitudes de dez quilômetros pelo impacto de partículas rápidas conhecidas como raios cósmicos, sofrem decaimento radioativo tão depressa (no seu próprio sistema de coordenadas de repouso), que a maioria só chega até nós porque no nosso sistema de coordenadas o seu tempo de decaimento esta dilatado."
Deixar de ser absoluto não significa de forma alguma perder sua consistência ou sua realidade. A multiplicidade de sua abordagem assegura tanto sua realidade quanto sua potência. É próprio mesmo de qualquer real manifestar-se enquanto enigma e isso aparece na forma de formulações variadas. Enquanto concebido como abstração e como mera unidade de medida, o tempo podia aparecer enquanto absoluto.
Esta concepção de dilatação do tempo vivida antes apenas sob o prisma emocional, aparece, agora, no âmbito mesmo da ciência. Com isso se reaproximam de forma ainda enigmática as vivências íntimas com aquelas perscrutadas no real. Qual estaria se aproximando da outra? Haveriam um dia estado distantes? Não teria toda sociedade seus "artificies do imaginário" com a função de legitimar as subjetividades dando-lhes substratos objetivos?
Novamente vamos encontrar as formulações oficiais procurando uma explicação sobre as origens, assentando-se, para isso, nas formulações do tempo. Qual a intimidade entre o nascimento do universo e o nascimento do tempo? Teriam afinal eles "um nascimento"? De que tempo se está falando quando se pergunta isso? Stephen Hawkings afirma não ter o tempo nenhum significado fora do espaço múltiplo. Não se poderia nem mesmo afirmar a univocidade do espaço onde habitamos. Por ora, nada indica ter tido o universo um começo, apesar da gravidade sugerir a existência de um "universo agitado".
O aparecimento de situações descritas na matemática como singularidades , ou seja, pontos do espaço-tempo ocupando um volume nulo e tendo massa infinita, constituindo ao seu redor horizonte de eventos onde as leis da física não vigoram - uma singularidade não está sujeita a nenhum controle. A concepção da singularidade vai produzir uma metamorfose na maneira de se conceber o tempo. A singularidade se situa onde o espaço e o tempo terminam, tal como a física clássica pelo menos formula.
Dentro do ponto de vista clássico "mais avançado" pode-se sugerir: 1) um principio antrópico ( sugerido por Brandon Carter em 1.973), segundo o qual a vida e as leis que regem o universo existem desde o ponto de vista que nós o observamos ou, mais exatamente, com diz John Barrow: "Não deveríamos nos surpreender ao descobrir que o universo é tão vasto em escala, porque não conseguiríamos viver em um que fosse significativamente menor." O fato de vivermos em um espaço tridimensional está relacionado com nossa própria natureza, na qualidade de observadores a usarem a linguagem como processamento de informações. Como tal, estamos submetidos a esta estrutura da qual fazemos parte. 2) uma viagem no tempo: as equações da relatividade geral de Einstein tornam possível este tipo de viagem. Sugerem a existência de "buracos de vermes" atravessando a estrutura espaço-tempo, através dos quais se poderia cruzar "áreas" grandes de espaço pelo deslocamento no tempo. Tais buracos interligariam partes distantes do universo, ou mesmo universos diferentes, que de outra forma estariam separados. O espaço não é mais concebido como um lugar neutro ou passivo, o cosmo aparece atravessado por uma quantidade imprevisível de linhas de força.
O que vamos encontrar no limiar de esvaecimento da ciência clássica é um duro questionamento do sentido de causalidade. A ciência sempre foi rigorosamente determinística. Esse determinismo se sustenta em uma concepção de causalidade, ou seja, tudo aquilo que acontece o faz por ter uma causa sendo, ele mesmo, por conseqüência, causa de eventos subsequentes. Ora, a causalidade já havia sido questionada por algumas correntes filosóficas na Grécia, como vimos no primeiro capítulo e, vamos fazer uma hipótese aqui, mesmo não a discutindo de forma definida, que o sentido de causalidade depende da existência do sentimento de família e, mais amplamente, do sentido de estado.

O tempo quântico.
A teoria quântica faz uma reavaliação radical do conceito de causalidade. Ora, a causalidade sempre foi a base da explicação para o anterior e o subsequente, entre o antes e o depois. Explicação esta na qual sempre se sustentou uma formulação determinística e do senso comum a respeito do sentido do tempo.
A teoria quântica a respeito da regência do mundo atômico e molecular, oferece algumas bases para se formular uma direção do tempo possível de ser instrumentalizada.
"O estudo de uma partícula atômica designada por káon parece oferecer alguns indícios físicos para uma direção do tempo - uma assimetria entre momentos do tempo. O káon é uma partícula instável e em certos tipos de decaimento que sofre foi descoberta a formação de um píon negativo, um pósitron e um neutrino em um processo em que a simetria CP é conservada. Mas também podem decair ( cerca de um decaimento em um bilhão) e formar um píon positivo, um elétron e um antineutrino, com o que a simetria CP fica de fato violada. Pelo teorema CPT, nestas raras trajetórias de decaimento, a simetria T é conseqüentemente violada: o acontecimento em tempo inverso não pode existir e o processo é irreversível, proporcionando uma visão de relance da flecha do tempo."
Existe um paradigma do asno que serve para deixar ver a interação da quebra de simetria e o tempo, bem como a quebra da simetria entre causa e efeito. "Em se deixando um asno igualmente com muita fome e muita sede e colocando uma vasilha de comida de um lado dele e uma de bebida do lado oposto ele, hipoteticamente, por não ter o tempo incorporado a sua forma de agir, morreria de fome e de sede sem poder decidir em qual direção ir visto ser igualmente atraído pelas duas." A presença da temporalidade no homem representa a quebra de uma simetria fundamental para a decisão. Decidir significa "cindir" e quem faz isso é o tempo. No ponto de vista clássico se chama a esta quebra de simetria por "causa e efeito," sendo um, exatamente, o elemento dissimétrico do outro. Na situação quântica temos de falar em acontecimento, visto a dissimetria não se dar dentro de um contexto de causa-efeito.

3.3 A ciência "moderna"
Seria possível se fazer uma comparação entre os tempos subjetivo e objetivo ou entre o quântico e o cósmico?
A teoria quântica estabelece problemas para a ciência clássica ao mexer duramente com seus parmdigmas. Principalmente aqueles relativos à causalidade e ao determinismo. Nela a presença do observador funciona a um nível estruturante e isso sempre foi desvalorizado pela ciência clássica. A teoria quântica, é bom lembrar, trata das propriedades da matéria na menor de todas as escalas. No seu universo discursivo, o conceito de energia vem a ser determinante em relação ao conceito de matéria ou de força. Para o universo quântico o tempo e sua medição praticamente se eqüivalem. Neste sentido, trata-se de uma teoria participante do tipo de realidade na qual o tempo foi sendo inserido a partir do século XVII
Plank trabalha com pacotes de energia denominados quanta . Ele verificou ser possível calcular a energia do quantum multiplicando-se a freqüência da radiação por uma nova constante básica, hoje conhecida como "constante de Plank". Esta relação de Plank possibilita a leitura equivalente entre energia e freqüência. Como o sentido de freqüência se equipara ao de tempo, já se pode ver como este vai aparecer enquanto forma de energia na base da matéria quântica.
O trabalho com eletromagnetismo e com freqüências luminosas é bastante intenso na área quântica. Isso porque o fóton, unidade quântica luminosa, tem propriedades de onda (tempo), mas, também, de partícula (matéria). Enquanto qualquer partícula tem a própria massa concentrada em um só ponto, a onda é uma entidade sem massa e está espalhada numa região de extensão finita. A relação matemática entre o momento do corpo em movimento e a onda associada a ele é: o comprimento de onda da partícula é inversamente proporcional ao momento da partícula ( que é o produto da massa pela velocidade da partícula), sendo a constante de proporcionalidade novamente a constante de Plank. Portanto, quanto maior a velocidade ou a massa de uma partícula, menor é o comprimento de onda.
De Broglie formula o seguinte exemplo para termos uma idéia do universos quânticos:
"Imagine um jogo de bilhar quântico. As propriedades ondulatórias das bolas de bilhar levariam a inúmeros efeitos impressionantes. Independentemente de quão bem um jogador de bilhar mirasse a bola (por exemplo, se mirasse uma bola vermelha que estivesse vai-não-vai na borda da caçapa) , sempre haveria uma oportunidade da bola vermelha acabar em uma caçapa situada do outro lado do pano verde ( na qualidade de onda, a bola vermelha percorreria toda a extensão da mesa). Também seria possível superar uma "sinuca" por meio de um fenômeno quântico chamado "tunelamento", em que a bola branca passaria diretamente por uma bola intermediária. Também neste caso, as propriedades ondulatórias da bola branca permitiriam que a mesma se "espalhasse" através do obstáculo".
Na medida em que a propriedade ondulatória de uma partícula depende de sua massa, o tempo se faz registrar a nível quântico de forma diferente para cada partícula. A isso se denominou "tempo de vida médio da partícula". A função de onda fará com que, por ser tanto partícula quanto onda, ela possa estar em vários lugares "ao mesmo tempo". Isso coloca já um problema sério para a causalidade. Onde localizar a causa quântica? Ela pode estar em todos os lugares e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Na verdade, em se tratando, por exemplo, do elétron que é uma forma elementar de partícula, só se consegue ter um grau razoável de certeza sobre onde ele não vai estar em um determinado campo de fase - onde houver intensidade nula.
Heisenberg trabalha isso no seu princípio de incerteza: não se pode saber simultaneamente onde está e qual a carga de uma partícula. Deve-se substituir a teoria já sedimentada da causalidade por um angustiante principio de incerteza. Este princípio tem conseqüências na medida do tempo. Do mesmo modo que não se consegue conhecer simultaneamente a posição e o momento mecânico de uma partícula subatômica com algum grau de precisão, também existe uma limitação para a precisão com que podemos medir a energia em um dado intervalo de tempo. E o que interfere? Já é propriamente a Gedankenexperiment ( o experimento do pensamento). Paradoxalmente, a própria interferência do pensamento feita pela intenção do observador através de seus instrumentos de medição, altera o panorama quântico. É o próprio observador que introduzirá um vetor temporalizador no campo quântico. A medição produz já a introdução de elementos de forma distinta quando da sua não presença. Um desses elementos é o vetor temporal. O que acontece desta forma com o tempo?
A definição de um operador de tempo para desfazer a periodicidade de Poicaré depende da eliminação ou redução da função de onda. A função de onda significa a presença simultânea de todas as possibilidades. Para uma apenas acontecer é preciso a suspensão da função de onda. Schrödinger cria um paradoxo para falar disso - trata-se do paradoxo quântico do gato: sendo um gato colocado em um recipiente de chumbo e por meio de um dispositivo adequado, segundo o qual, quando um átomo que há dentro da amostra radioativa decai, um martelo quebra um recipiente contendo um gaz tóxico e mata o gato. O paradoxo é que o gato não está nem vivo nem morto e, simultaneamente, está vivo e morto enquanto Schröndiger não resolver dar uma olhada no recipiente. Neste caso, o estado do sistema é modificado pelo próprio ato da observação. A mente consciente aparece aqui como elemento eliminador da função de onda, excluindo um conjunto aberto de possibilidades para apenas uma possível. A passagem do tempo a nível quântico corresponde a esta intervenção do observador suspendendo a função de onda.
O suposto da função de onda cria a possibilidade de ocorrência de uma multiplicidade de universos paralelos possíveis, sendo a intervenção de um certo tipo de linguagem, através de um certo tipo de observação, aquilo a escolher entre eles. Evett propõe que um elétron - em uma posição de escolher entre duas fendas, por exemplo - não escolhe entre duas fendas, mas entre dois universos. Ao escolher uma fenda preferivelmente à outra, o universo está se dividindo em dois. A fenda que é utilizada depende do universo que ocupamos. Como o desaparecimento da função de onda é irreversível, a decisão marca a temporalidade. Isso decide entre um estado de potencialidade para um estado de realidade.
A teoria quântica coloca novamente o observador como sendo o "criador" da realidade. Além disso, a função de onda e sua varredura faz com que a interação entre as partículas se dê em uma velocidade superior a da luz - de forma que mesmo estando distantes no espaço interajam em sincronia. A isso se designa interações não-locais, de forma a ser o tempo mais determinante do que o espaço na decisão. Mesmo localizadas em pontos afastados do universo, duas partículas podem formar uma única entidade física onde o espaço não tem importância, mas sim o tempo - não estão no mesmo espaço, mas sim no mesmo tempo e isso já é suficiente para agirem em uníssono. Vamos vendo como a definição da causalidade e precisão a este respeito vai se decompondo.
Além da multiplicidade do estado de potência, temos a presença dos pósitrons ou unidades de anti-matéria, cujo movimento no tempo é "para trás" e cuja presença cria um estado de simetria no tempo. Para haver movimento no plano molecular é preciso que esta simetria seja rompida, que se instaure um desnivelamento - um estado de crise - pela introdução de uma flecha, de um vetor de tempo. Aliás, este acontecimento já é a presença do tempo quântico. Este estado de crise cria a concepção do vácuo, estando fervilhado de potencialidades. O estado critico pela presença do vetor de tempo será revestido por um processo designado como renormalização. Este procedimento vaz uma reabsorção das infinidades não absorvidas, através da criação de um conjunto de outras infinidades - universos múltiplos paralelos ou, no caso mais existencial, na forma de esperanças.
O mais próximo para se dizer das condições originárias neste sentido, seria um "estado gratuito" - onde o próprio universo existe por mera gratuidade e os acontecimentos se dão ex nihilo - a partir do nada, do ralo. Um estado de nada instável, originando uma cascata, conduzindo a criação de alguma coisa. A probabilidade de uma coisa surgir do nada é uma pedra enorme no sapato da ciência. A introdução do tempo estaria na base de alguma coisa emergir de seu nada. Neste nada só pode existir um tempo imaginário, formulado matematicamente por S. Hawkings: um número imaginário multiplicado por si mesmo dá como resultado um número negativo - enquanto número negativo de tempo-número. Isso significa um estado de indiferenciação na situação espaço-tempo, estando ambos nas mesmas condições de potencialidades virtuais. Tanto o universo quanto todo estado quântico apresentam-se, provavelmente, como contidos em duas dimensões - contidos em si mesmos - onde tempo e espaço não existem. A introdução dessas possibilidades é dada pela observação. Uma vez, porém, introduzido este vetor, ele se torna irreversível.

Na direção de uma concepção do Caos e sua relação com a temporalidade.
Illya Prigogine vai trazer para a concepção de tempo a teoria da não-linearidade, sendo assim possível, uma visão mais "moderna" da temporalidade. Esta aparecerá ligado às estruturas dissipativas, estando associado a um "ser-para-a-morte". Mas é essa direção na qual a vida se afirma, através da aleatoriedade, que vem marcar seu percurso singular na forma de inscrições depois reconhecidas como sendo "a linha do tempo". Essa linha, assim marcada, implica em uma irreversibilidade a posteriori, apesar de sua aleatoriedade originária e da decisiva importância de suas condições de origem, sendo estas condições de origem, porém, imprevisíveis na sua totalidade.

Tempo e entropia.
O aumento da entropia ( do grego: en (em) trope (transformação) indica o conteúdo de transformação ou capacidade de modificação de um sistema qualquer. A entropia crescente coincide com a flecha do tempo para frente. É uma grandeza a aumentar implacavelmente com a dissipação e atinge seu valor máximo quando todo o potencial de executar trabalho está esgotado. Este valor entrópico é, porém, um vetor de desordem, de desequilíbrio. O equilíbrio, em termos termodinâmicos, eqüivale à morte do sistema e a conseqüente indefinição da flecha do tempo.
Enquanto no estado de equilíbrio vamos encontrar os atratores de equilíbrio e equações lineares, nos estados entrópicos vamos encontrar atratores estranhos e equações não-lineares. A vida é algo a se dar longe do equilíbrio, vindo dizer a respeito de como as coisas se desenvolvem ao longo do tempo através de "saltos" dados dentro de regimes de desordem - entrópicos. Se a teoria quântica já havia colocado em questão o problema das causas, a termodinâmica coloca uma problemática também nesta área, afastando a importância do equilíbrio. É longe do equilíbrio que as coisas começam a se agitar.

Pontos de crise.
Os pontos de crise de um sistema, seus pontos de bifurcação, constituem a história deste sistema, sendo o seu estado, enquanto desequilibrado, aquilo a torná-lo inerente ao tempo. Nos estados longe do equilíbrio das estruturas dissipativas ocorrem os fenômenos de auto-organização. Em termos termodinâmicos este estado corresponde à origem do fenômeno vivo, bem como a sua presença no tempo.
Nos estados críticos é como se as moléculas percebessem a existência de um tempo único e sincronizado. Com este tempo, todas elas se movimentam em cadência. O sistema adquire vida própria, sendo o nome deste modelo onde se produz uma auto-organização a partir de um estado de desordem, Brusselator. Estes estados críticos são a base de qualquer processo de transformação. Turig mostrou como mesmo um ovo precisa sofrer uma quebra de simetria para dar origem à forma complicada de uma criatura viva. Esta quebra de simetria é, essencialmente, uma quebra na simetria do tempo, entre o para frente e o para trás, de forma a romper com o imobilismo do instante.
A evolução caótica vem derrubar o determinismo simétrico da ciência clássica, introduzindo uma invariância na escala, através do atrator estranho. O sistema apresenta diferentes configurações sem jamais se repetir, através de um rebater-se sobre si mesmo. Trata-se de algo designado com o conceito de fractal. Esta impossibilidade de repetição de fundo corresponde a um elemento fundamental na constituição do sistema anímico e dos recursos da linguagem - para tentar domar este panorama inóspito, para o tipo de anseio que domina na alma humana. Um tempo desta natureza se apresenta de uma forma selvagem e cruel para nós, corresponde ao esboroar do sonho de um universo mecânico e previsível, tal como se formulava até o final do século XIX.

Complexidade e caos.
A complexidade dos sistemas mundanos insere um nível de incerteza cuja característica é a de aumentar exponencialmente com a passagem do tempo. Esta incerteza é uma realização das condições complexas de origem, de forma a fazer aparecer flutuações estocásticas ou aleatórias - pela presença de intervenções imprevisíveis, externas ao contexto previsível e visível. Estes elementos aleatórios instauram um tipo de caos absolutamente aleatório, diferente do caos determinístico, cujas condições são explicáveis pelo sistema, só aparecendo, este segundo, como caos, devido a um pouco conhecimento do sistema e devido a uma precariedade de linguagem - por ser o mundo mais complexo do que qualquer linguagem e para qualquer sistema de explicação.
O caos determinístico está ligado aos fenômenos de auto-organização. Nesta trajetória para a auto-organização a função do tempo é essencial, mesmo que ainda não tenha sido efetivamente definida. Parece ser o tempo o eixo em torno do qual se constitui a auto-organização, ou seja, o tempo corresponde a um meio de inovação a partir das possibilidades levantadas pelo Caos.
O caos determinístico corresponde a chegada a um estado completamente aperiódico, isto é, o período é infinito e o relógio nunca se repete. Agora está perdido em um atrator estranho em que jamais percorrerá duas vezes a mesma trajetória. Isto, que é o limite da repetição da duplicação do período, é sinônimo de caos. É como se este surgisse quando existe à disposição uma sobrecarga de organização temporal. Esta é uma maneira bastante atual de se dizer o "Arché" - enquanto tempo e enquanto princípio.
O próprio corpo e a genética apontam para um sentido na flecha do tempo, mas é sempre melhor desconfiar das evidências. Tudo indica a direção do mais simples ao mais complexo e da vida até a morte. Mas estaria a nossa percepção aprendendo a verdade? O corpo deixa ver como as organizações aleatórias e caóticas estão ligadas tanto à saúde quando ao prazer. Um coração saudável é mais caótico do que um doente. O orgasmo corresponde a uma manifestação caótica e, vamos ver depois, as neuroses e as afecções anímicas correspondem a esforços de se operar dentro de um regime de equilíbrio econômico máximo. Os ciclos circadianos corporais deixam ver a presença de relógios biológicos distribuídos pelo corpo e, provavelmente, regulados pela glândula pineal. O tempo entre um tique e um taque corresponde a um discreto e definitivo intervalo entre a ordem e a desordem. Podemos postular neste lapso a presença daquilo que, em termos de ciência, poderíamos designar como sendo o tempo.
Tanto no corpo vivo quanto no corpo pleno da Terra podemos localizar uma espécie de "tempo profundo". Este é alheio a nós sem ser, porém, absoluto. A falta do absoluto no tempo profundo é já evidente pelo fato da flecha da evolução ser uma flecha quebrada, cheia de desvios e paradoxos. Por mais boa vontade que se tenha em formular um teoria da evolução coerente, não se consegue ir muito longe com isso. A natureza parece ser cega em se tratando de evolução, mas não se pode dizer ser isso um despropósito - tudo indica estar isso na raiz mesmo do processo criativo.

O tempo enquanto variável determinante.
A presença do tempo, não como marginal, mas como determinante de qualquer existente, revela-se a partir da tendência expressa de mudança - já presente na definição lida pela segunda lei da termodinâmica: a entropia. Quanto a isso, o caos estocástico, devido a presença de um elemento aleatório gerado por influências externas, parece ser a grande vedete deste acontecimento de deixar ver o tempo na base mesma dos acontecimentos.
Coveney e Highfield fazem uma convocação das mais provocantes: "Precisamos de uma nova teoria, uma teoria que ofereça uma compreensão mais profunda do tempo."
Ed Jayme introduz uma construção valiosa para nós nesta área. Ele diz: "o processo físico não é irreversível : irreversível é a nossa capacidade de acompanhá-lo". Novamente temos no campo mesmo da física um problema relativo à linguagem. A entropia, nos diz a teoria da informação, é a medida de nossa própria ignorância. Qualquer sistema de informação possui ruídos, intromissão de elementos estranhos imprevisíveis, cujo potencial de existência constitui um campo de fundo virtual para desfazer qualquer equilíbrio possível já na ordem mesma da linguagem e da comunicação.
A informação enquanto sendo o negativo da entropia (negentropia), coloca-se contra as transformações e contra o tempo através de seu interesse de durar. Porém, a presença destes ruídos introduz na informação um tipo de caos dos mais selvagens, não o determinístico, mas, sim o estocástico, absolutamente imprevisível e com as maiores conseqüências para um tempo, não do tipo determinístico, mas, do tipo "Arché", criador e onde o tempo aparece como um vetor selvagem de fazer surgir. Ora, tanto a produção quanto a transmissão de formulações quaisquer, dependem da informação. Esse pano de fundo caótico é fonte de criação e de produção de história. Isso na medida de um sistema em equilíbrio não ter - nem ser - capaz de produzir história.

3. 4 Sobre o nascimento do tempo.
Vamos ver como a ciência pode fazer uma construção do tempo como sendo uma espécie de "mar", cujas ondas, ao se quebrarem em espuma, geram a matéria.
"Devemos considerar o tempo como aquilo que conduz o homem e não o homem como o criador do tempo". O próprio homem, até onde podemos entender o que isso seja, provém do tempo. Corresponde a uma variação no tempo. Isso nos faz sensíveis ao tempo, aparecendo sua multiplicidade subscrita na construção de "tempos mecânicos", "tempos químicos", "tempos internos", etc. Desta maneira, fazer uma leitura sobre a história, quer do universo quer de um indivíduo em particular, como sendo a história de um tempo autônomo ou de uma autonomia crescente do tempo, corresponde a uma tentação da ciência contemporânea.
Ao fazer isso nos deparamos com um estado de desequilíbrio, um estado não-linear, correspondendo a introdução do vetor tempo deixado de fora até a ciência clássica. Esta presença torna a matéria "sensível" não só àquilo que lhe é circundante - como no caso das condições de equilíbrio - mas, sim, começa a interagir com aquilo que lhe é além. Vamos introduzir aqui, ainda de relance, a presença do outro como sendo uma maneira de se dizer da presença do tempo em termos de subjetividade.

Longe do equilíbrio e a temporalidade.
Longe das condições de equilíbrio as equações não são lineares. São possíveis muitas propriedades, muitos estados que são as diversas estruturas dissipadoras acessíveis. À medida que nos aproximamos do equilíbrio, a situação é oposta: tudo se torna linear e só há uma solução. É isso que leva Prigogine a afirmar: "A vida é o reino do não-linear, a vida é o reino da autonomia do tempo." O viver corresponde, assim, a uma inscrição do tempo na matéria, ou mais exatamente uma derivação do tempo em matéria.
Teria o tempo um inicio ou seria, ele mesmo, o inicio?
Desde há muito se suspeita já não ser o tempo apenas um conjunto de pêndulos se movimentando de forma periódica e simples. "O tempo precede ao universo, isto é, o universo é o resultado de uma instabilidade que sucedeu a uma situação que a precedeu. Em síntese, o universo será resultado de uma mudança de fase em grande escala".
Vamos acompanhar Prigogine na sua construção do universo enquanto variação no espaço de fase do tempo.
"A morte térmica, devido a entropia, está atrás de nós, nos primeiros exórdios do universo. O universo tem uma estrutura dupla, é formado por dois tipos constituintes: os barions e os fótons. Existem 10 elevado a 9 fótons por um barion. Os barions são objetos de não-equilíbrio, são os sobreviventes dos primeiros momentos do universo; portanto, continuam potencialmente as galáxias, os planetas e a vida. A entropia total do universo deriva do predomínio dos fótons. A desordem pode ser associada aos fótons enquanto os portadores de ordem são os bárions. Caso o sonho de toda molécula efetivamente for durar e reproduzir-se, então, isso só poderá ser conseguido através da introdução de uma complexidade crescente para se problematizar o fim."
"O universo, tal como o vemos, corresponde a transformação irreversível de um "outro" estado físico. A transformação do espaço-tempo em matéria no momento de instabilidade do vazio, corresponde a uma explosão de entropia, a um fenômeno irreversível. A matéria corresponde, na realidade, a um inquinamento do espaço-tempo. Mas, como já disse outras vezes, o inquinamento, a dissipação, são produtores simultaneamente de ordem e de desordem. O universo não possuiria um estado fundamental estável. Daqui se deriva o fato de ele poder diminuir a sua energia emitindo buracos negros, exatamente como um átomo pode passar de um estado excitado ao seu estado fundamental emitindo fótons. Este fenômeno é, evidentemente, irreversível."

Nascimento do tempo?
Seria o nascimento do nosso tempo o nascimento do tempo?
Existiria um tempo potencial que está "sempre já aqui" - em estado latente - não exigindo senão um fenômeno de flutuação para atualizar-se? Neste sentido, o tempo não nasceria com o nosso universo. O tempo precederia a existência e poderia fazer nascer outros universos.
A própria memória, se a ligarmos a manifestação objetiva do tempo em nós, deve ser postulada como a própria instabilidade. Todo o sistema anímico corresponde a uma instabilidade. Desta forma, o tempo sustenta sempre uma função criativa onde quer que o façamos aparecer. Os recentes desenvolvimentos da termodinâmica e da ciência em todos os seus níveis, propõem-nos um universo no qual o tempo não é nem ilusão nem dissipação simplesmente, mas no qual o tempo é, antes de tudo, criação.
S. Hawkings postula a presença do tempo relativo ao começo da matéria - com o "Big Bang". O vetor temporal aparece sempre dirigido para a frente, em um sentido de expansão. A presença do tempo em vez de associar-se a um fim, tal como faz ver o senso comum, associa-se a um vetor de "crescimento" e de expansão. A presença de singularidades - como os buracos negros - representam a presença de potências criadoras em estado máximo. Talvez "sementes" de outros espaço-tempos possíveis. A presença dos horizontes de eventos onde as leis físicas não agem, representam, possivelmente, estados virtuais de potência.
A concentração de matéria como possível origem destas singularidades, apontam para a forma criativa como o tempo age sobre a matéria na forma de alteração do espaço-tempo.
Teria afinal a ciência se afastado da teologia? Não seria a ciência expressão das ansiedades e da maneira de ser do homem, em geral regido por ela? A preocupação a respeito da origem e da finalidade, a presença do regime das causas, deixam ver um certo tipo de sujeito. O cientista, tal como o xamã, canta para a tribo o seu sonho estando convicto de ser, este sonho, um sonho da comunidade. E não seria?
Como forma provocativa para a maneira de pensar da ciência e seu tipo de técnica na forma de tecnologia útil e eficaz, vamos ver como se pode formular o tempo na arte - sendo a arte componente do mesmo paradigma onde aparece a ciência - para deixar ver um outro viés da técnica enquanto arte e de um tempo enquanto paixão. Vamos aproveitar para ver o tempo enquanto paixão, contraponto dialético para a maneira de ser daquele tecnológico. Não se trata de se distinguir um positivo e um negativo, um bom e um mal, ciência e arte dizem respeito a formas de ocupação do mesmo paradigma de tempo sendo, o conflito entre eles, aquilo a constituir a potência de realização emergente no seu obrar próprio.

3.5 O tempo na arte e na paixão. Introdução para o paradigma científico
Se o tempo tal como o vamos encontrar na ciência de ponta avança, aprimora-se, impõe-se como forma de ser a eficácia e o desenvolvimento, o que dizer deste tempo dito da paixão e da arte? É preciso introduzir uma questão relativa ao próprio sentido de arte para deixar ver a maneira como ciência e arte compõem uma mesma realidade - mesmo uma sendo, aparentemente, estranha à outra.

Arte e técnica.
É só a partir de um certo momento onde técnica se diferencia de arte. É no mesmo momento no qual razão se diferencia de paixão. À técnica passa a corresponder a presença da utilidade e da serialidade e à arte passa a corresponder o domínio puramente estético. A arte passa a defender uma outra temporalidade ameaçada pela tecnologia - trata-se de um tempo investido em potência de gozo, ou seja, em nada.
Até a era industrial não havia distinção nítida ente arte e tecnologia. Depois da indústria vamos encontrar a variação do termo grego tekhné , termo regulador do nosso sentido de técnica. Tekhné e Estética, ambos ligados ao sentido de arte e de tecnologia, estão articulados com uma atividade de reconciliação de opostos. Thais Curi Beaini escreve sobre isso:
"A tekhné, enquanto resguardo que capta a Verdade que a deusa lhe dá-a-ver, mostra a Arte como sabedoria que se desdobra em captar o momento mesmo da eclosão do Ser, nele penetrando cuidadosamente, para fazer surgir o que ainda não era, perpetuando-o."
O aparecimento da "pressa tecnológica", onde o homem se precipita sobre seu desejo confundindo-o com a vontade, vai fazê-lo afastar-se das condições de possibilidades da tekhné enquanto "captando o momento de eclosão do Ser e penetrar nele cuidadosamente, fazendo surgir aquilo que ainda não era". A tecnologia vai pretender "fazer a coisa toda". Com a distinção estabelecida entre Arte e Técnica se constituiu também um sentido de arte novo. A arte ficou, também, afastada desta concepção da Tekhné. Mas, ainda assim, o sentido de arte está mais próximo do sentido da Tekhné do que a tecnologia.
Existe na arte a necessidade de um "olhar prévio". Artista é aquele "a ver antes" o desabrochar do ser, conduzindo-o às suas condições de possibilidades que ele não conseguiria por si mesmo. Com isso reconcilia-se matéria com desejo, potência com força. O método, por sua vez, ligado ao sentido tecnológico, é um projeto que, de antemão, já supõe uma captura do mundo, estabelecendo aquilo no qual ele mesmo se constituirá neste mundo. A sociedade industrial implica a concepção de uma subjetividade estabelecendo-se sobre si mesma. Criar, sendo gestar, é também e porisso, um retirar-se de forma a fazer surgir do ser, sua Aléthea (verdade, desvelamento).
Arte enquanto pura decoração é ainda algo estranho à Tekhné, representando uma maneira de fazer resistência ao sentido mecânico da tecnologia. Resistindo ao tempo eficaz da tecnologia e seus objetos úteis, a arte põe o objeto estético. Ora, desde seu aparecimento, Estética representa a reconciliação entre o belo e o pior. Isso nos fica velado na medida de nosso raciocínio ter se conduzido no sentido de estabelecer diferenças e não produzir reconciliações. Devido a isso nos escapa o sentido da Tekhné. Devido a este escape, somos levados a dissociá-lo em tecnologia e arte. Esta dissociação, porém, não preserva de forma alguma o sentido original - apenas o lembra.
Por certo é o artista que faz a arte, mas arte é o sentido da presentificação do mistério da criação. Em um mundo assolado pela transformação de tudo em "objeto", em "coisas úteis", a arte tem por fundamento defender o nada, de forma a assegurar as condições de prazer e de gozo. Em um mundo marcado pela razão e pela procura da verdade enquanto "coisa", a arte tem por missão afirmar o velamento da Aléthea (sentido grego para a verdade enquanto des-velamento, ou seja, não como algo já sempre dado, como uma "coisa", mas sim enquanto processo de dar-se conta do mistério).

O tempo útil e a duração.
Opondo-se a um "tempo útil", pragmático e maquínico, a arte afirma a duração. Esta duração é antes de tudo um "nada de tempo". É preciso saber "perder tempo" para poder vivenciar o sentido daquilo que a arte afirma. Ela, antes de mais nada, visa retirar - "cavoucar" - tanto no sujeito quanto em seus objetos, um vazio. Este vazio é a condição de possibilidade tanto para o acolhimento do sentido quanto para o acolhimento do prazer. Não dá nem oferece, ela tira, tal como é a natureza da criação. E tira para fazer surgir.
A tecnologia procura confundir descartável com finitude. O problema é que, enquanto o descartável insere-se na produção em série onde sempre já se tem um substituto, a finitude diz respeito a uma singularidade indispensável para seu valor e vigor de sua consumação. Vale dizer que o "objeto" finito fundamental é a vida, ela mesma.
Quando nos referimos a alguns objetos de culturas remotas, no tempo ou no espaço, como sendo "arte", estamos falando de objetos cuja função, onde foram feitos, quase nunca correspondem ao nosso sentido moderno de "arte". Tratam-se de objetos ao mesmo tempo úteis e portadores de sentido (geralmente litúrgicos quando enfeitados, o enfeite servia - e serve - para remeter o objeto para seu além, remetê-lo às condições dos ideais e do para além do simplesmente mundano - aparente). A disjunção do prazer - ligado ao lazer - com o trabalho - ligado à produção - cria tipos de objetos diferentes. O sentido de arte vincula-se a esta diferença.
Enquanto um objeto tecnológico não tem a intenção te durar por fazer parte de um tempo cada vez mais rápido, a arte tem o objetivo de retirar das coisas o tempo, de forma não só a fazê-las durar, como, principalmente, introduzir nelas a eternidade. Apenas uma artista que conheci trabalhava com materiais rapidamente perecíveis, de forma a suas esculturas serem, antes de mais nada, um acolhimento do tipo de tempo enquanto aquilo que faz passar.
Existe um aparente antagonismo entre o objeto para a tecnologia e para a arte e esta diferença se estabelece na maneira de lidar com o tempo, como formas distintas de se introduzir o tempo. Este antagonismo fala de uma presença e de sua sombra, trata-se da maneira complexa como vivemos a presença do tempo. A arte não deixa de acontecer usando-se matérias tecnológicas, na verdade a arte corresponde ou a introdução da criatividade na matéria desprovida de afetividade, desumanizada, de forma a "humanizá-la" ( torná-la prenhe de sentido, introduzi-la no âmbito do político) ou, então, a retirada de sentido e de afeto de materiais por demais carregados de "humano" e de estética. Trata-se de um campo de produção de artifícios, da potência maior do artifício, tal como nos mostra a arte moderna através de seu sentido de "esquiza": a tendência ao nada de sentido.

Arte enquanto remetendo ao tempo original.
Enquanto a arte se remete a um tempo original - aos ancestrais com seus enunciados e suas verdades, ao ser com sua essência - afirmando as vias do eterno retorno como condição de reassegurar o sentido do ser do homem, a tecnologia se remete a um tempo futuro - a um desenvolvimento e a uma construção do presente, tendo em vistas a vontade de potência e o tipo de vontade imperante.
Desta maneira, a própria linguagem já é, simultaneamente, tecnologia e arte. Por ser a linguagem um artifício para se lidar com o real, bem como aquilo a constituir o homem ela vai torna-lo não só um habitante do universo do artifício, mas, será, ele mesmo, artificial. Vivendo no mundo da linguagem, utilizando-se tanto da tecnologia quanto da arte, afirmamo-nos na forma de ser enquanto retirada. O ser no homem significa retirar-se, velar-se, decair, sendo a isso que designamos com o sentido usual tanto de manifestação quanto de criação. Criar não é outra coisa a não ser o rastro deixado por um ser em seu processo de recolhimento. Este recolhimento é essencial para deixar condições de possibilidades para "o que se cria".

Oposição entre arte e instrumento.
O universo dos instrumentos não é o mesmo da arte. A arte é irredutível ao mundo, instaurando-se enquanto novidade radical. Os instrumentos não. Estes não chamam a atenção sobre si enquanto funcionam bem. Estão, desta maneira, perfeitamente adequados e adaptados ao mundo ao qual pertencem. A arte, por sua vez, emerge, impondo-se enquanto digna de atenção como tal. Não é preciso reconstruir o mundo onde surge para se ter o efeito da obra. Até mesmo o autor é prescindível ( como diz Nietzsche: a obra obscurece o autor), ela sempre funda e abre um mundo. O tempo da arte é ela mesma que faz, que impõe. E como abre a arte um mundo?
A arte abre ao ocultar, ao velar e ao instaurar um mistério. É preciso retirar das coisas sua significação para fazer delas recipiente para o sentido artístico. A arte do artista consiste em esvaziar. É no vazio deixado pelo artista onde brotará o sentido, onde cada um fará surgir um mundo. Não é a mesma função a da tecnologia e a do instrumento, estes impõem-se já junto com sua realidade própria - trazem sempre um manual de operações. Apesar de ser comuns às pessoas andarem perante as obras de arte munidas também de manuais de arte, ela, efetivamente, apresenta-se muito perto do sentido do ser do homem: sem manuais, enquanto ofertas ao devir, como formas de presença no mundo do velamento e do mistério, sendo exatamente esta, a maneira pela qual o viver usufrui-se.

As formas tomadas pelo tempo na arte.
A escultura corresponde a forma mais originária da arte. É um escultor grego anônimo quem a define melhor: "é preciso não bater o martelo muito forte no mármore, senão quebra-se com Apolo, o qual o artista pretende libertar do bloco de mármore, mas também, não se pode bater muito devagar, senão não se chega a libertá-lo." É preciso, pela arte, introduzir desde fora, o nada no bloco - retirar dele substância, convocar o vazio potente, de forma a não só acolher os muitos sentidos dos múltiplos olhares virtualmente possíveis a lhe conferirem sentido como, também, atrair e seduzir enquanto apelo de preenchimento a este vazio essencial e arcaico . Esta é uma forma de fazer nele brotar o Belo.
Desde o Paleolítico inferior temos notícias da presença do Homo Habilis, ou seja, desde então se esculpe o real com a finalidade de instaurar mundos possíveis, de deixar marcas no corpo pleno da Terra, de inscrever no plano de imanência do mundo, a presença de um ser a lutar contra o nada que o acossa a partir de sua própria cabeça - aparentemente assim o julgavam, visto sempre se notar o culto das cabeças.
A escultura representa a primeira e mais originária forma do homem lutar contra seu fim, em lutar contra um tempo passante. Este Homo Habilis ocupa-se de atividades misturadas de tecnologia e arte, uma com finalidades imediatas e outra com finalidades litúrgicas ou, mais propriamente, formas de proteger-se do estranho, dando sentido e habitantes para o vazio.
A pintura corresponde a uma forma invertida da escultura. Enquanto a escultura retira matéria, a pintura põe. Mas o que põe a pintura? Ela põe no mundo a presença do homem, põe sua imaginação, a Linguagem. A pintura inscreve no corpo pleno da Terra a temporalidade própria dos homens. Faz trilhas por onde os homens podem percorrer seu caminho desmarcado. Aquilo que o instinto deveria fazer, caso o tivéssemos adequadamente; aquilo que os deuses deveriam fazer, caso compreendêssemos adequadamente seus desígnios e sua linguagem, isso quem o faz é a pintura. Ela marca trilhas, deixa sinais, instauram no mundo um "lar" - reduz seu caráter inóspito e desolado. Quem não se sente alentado pela presença de marcas em um nada qualquer? Mesmo dizendo respeito a marcas de potências terríveis mas, mesmo assim, é uma presença e uma presença é sempre preferível a pura ausência.
É sempre de si mesmo que o homem retira os temas da pintura e do corpo pleno da Terra que retira o material.
Não se trata mais de instrumentos, mas sim de materialização da temporalidade. A pintura corresponde a um tempo tornado visível, tal como acontece com a representação pictográfica do sonho manifesto. Esse "si mesmo" de onde o homem retira o tema da pintura lhe transcende enquanto entidade, mas manifesta seu ser enquanto recolhimento para dentro do Outro. Neste processo de recolher-se, o ser do homem emite pictogramas cujas marcas encontramos desde as gravuras Rupestres até os tubos catódicos modernos.
A escrita surge aparentemente por volta de 3.000 anos atrás, no Neolítico Superior, na Mesopotâmia e no Egito - mais ou menos coincidindo com as pirâmides. A escrita corresponde a uma forma de esculpir na imanência vazia de um material qualquer, fazendo alí brotar um real todo próprio do homem.
A escrita é a forma através da qual o homem levanta-se perante as divindades, onde ousa instaurar também um mundo. No Egito a escrita correspondia "ao tipo de Linguagem das divindades", era pela escrita que os deuses e homens se comunicavam, era por ela, também, que os deuses se comunicavam entre si - daí ser uma arte eminentemente litúrgica. Trata-se de um escultura toda própria. Cada letra é uma forma de escultura, porta um certo tipo de real. É preciso, pela letra, retirar - tal como o faz o escultor.
Pela escrita, e não é de forma alguma um fenômeno universal, se luta incisivamente contra o tempo, instaura-se um tempo todo próprio. Ela visa opor-se ao tipo de esquecimento que faz acontecer de novo, ao colocar-se enquanto representante simbólico deste acontecido. Trata-se de uma espécie de anti-destino, algo através do qual uma certa linha civilizatória pretende opor-se ao sentido da "sina" e tomar o devir nas próprias mãos. Cria-se uma realidade virtual na qual o homem mergulha para escapar do abismo sem fundo do desconhecido. É, porém, nas próprias letras, que o poeta fará ressurgir esse fantasma mesmo que as originou. O poeta vazará as letras, incutirá nelas tal ordem de vazio que serão capazes de encantamento. E o que encanta aos homens na poesia?
Esse encanto corresponde a um misto de pavor e êxtase diante do desconhecido, mais arcaica presença no homem, presença originária da própria linguagem. Sem linguagem não há arte e a linguagem já é desde sempre, arte e, basicamente, poesia. A ordem da escrita, porém, é distinta da ordem da fala - tratam-se de temporalidades completamente diversas: uma pretende imobilizar o tempo em uma matéria resistente a ele, outra pretende lutar contra o tempo, inscrevendo-se enquanto presença no corpo de um outro próximo qualquer.
É neste plano da fala onde vamos encontrar a música e a dança. A música insere a harmonia, a transformação dos apelos e dos ruídos em entidades harmônicas. Nesta harmonia já está sempre presente o tempo. A música não corresponde mais a uma luta contra o tempo, corresponde a uma aceitação do tempo enquanto algo próprio e fundamental para articular o homem com seu além. Pelo menos desde o Mesolítico, há aproximadamente 8.000 anos, se encontram referências à presença da música e da dança. Originariamente, a música associa-se ao transe e este à verdade. A verdade, neste sentido, era entendida como a inter-relação do homem com o Outro.
A própria harmonia é uma forma do tempo. Trata-se de uma apropriação do homem das formas criativas e criadoras. Criar corresponde exatamente em transformar o ruído do real em harmonia, introduzindo-lhe um aspecto de temporalidade. A música, diferente do ruído, dura, significa, acaba. E não só isso, realiza-se dentro de um limite. Esse limite, cuja aceitação é o campo de possibilidades tanto para se criar quanto para se compreender o ser, é uma variação da temporalidade.
A fala já é, desde o inicio, música. Mesmo nas criancinhas, podemos ver já no inicio de seu balbuciar, a presença de uma harmonia, um estilo de enunciar-se ( do ser presentificar-se), antecedendo em muito as unidades significativas da Linguagem, as referências das palavras com as coisas e a própria identidade. Desta forma, a temporalidade apresenta-se para a Linguagem muito antes do significado, mas não antes do sentido - visto o sentido já estar presente na fala dos outros, antecedendo a cada um, tendo como referência imaginária o ancestral ou o Outro. É por isso que algumas tribos nomeiam a criança dependendo do grito inaugural dela no mundo, visto reconhecerem neste grito, a presença de qual ancestral ela faz penetrar na tribo através do buraco aberto por ela no vazio do mundo quando de sua materialização.
A dança corresponde a forma mais elaborada das artes. Ela acolhe em si todas as outras. O homem dança desde que perdeu o seu sentido de totalidade, dança como meio de fazer luto - afirmar a nova forma oriunda da pós-perda e tentar reparar o perdido. A dança procura tornar a harmonia algo de concreto, usar o corpo como letra esvanecente no espaço de imanência do mundo. Escrever com o corpo, esculpir uma palavra móvel, deixar marcas em uma matéria que é o próprio além - tais são as intenções vitais da dança. Vencer o tempo no seu curso, tal é o desígnio da dança. O dançarino é a própria imagem móvel do tempo. Com isso assemelha-se à própria designação platônica e agostiniana do tempo: uma imagem móvel da eternidade. Mas a dança faz mais: ela aceita também seu fim. A dança serve para dizer que mesmo a letra, mesmo a escultura, em se tratando da presença do homem, não é, não pode e nem deve ser eterna. Os deuses sempre dançaram - trata-se da própria maneira de manifestar-se dos criadores. Os deuses-dançarinos são os infinitos e não os eternos. Criar significa sempre fazer dançar as palavras e, se possível, o próprio sentido.
Na dança, o corpo deixa de ser um instrumento para vir a ser arte. Não se trata de uma atividade produtiva ou defensiva, não se trata de nenhuma resposta à natureza. Trata-se da afirmação do ser do homem como um ser de artifício e um ser-para-si. O corpo que dança apropria-se do tempo, tornando-o próprio. Este próprio não é, porém, nada de "pessoal". Trata-se de um "propriamente" humano ou mundano - corresponde a introduzir no limite mesmo do mundo aquilo que originariamente corresponde ao divino.
Quanto ao teatro ,ele sempre se apresentou como uma interpretação. Daí se dizer do ator como estando "interpretando". E o que interpreta o teatro na figura de seus atores? Interpretam o real de maneira a fazer ver o velado, velando o visível. Trata-se de deixar evidenciar que a realidade pode ser diferente. Toda potência da presença da linguagem e da maneira de ser do homem se deve a esta possibilidade. É nisso, também, por outro lado, que residem as maiores angústias. Mas é o teatro, ele mesmo, que ao remediar esta angústia, deixa ver a origem. Ele deixa parecer como se no palco fosse o lugar deste poder, deixa parecer como se apenas no palco se instaurasse a irrealidade.
Ora, esta irrealidade sempre foi a maneira mais efetiva de se fazer enunciar a Aléthea (Verdade), mas esse tipo perturbador de verdade que, ao aparecer, vai colocando em questão a realidade, suporte dela mesma. Servindo para apresentar não "um homem" mas "O Homem", não "os acontecimentos", mas "O Acontecimento", o teatro o faz de uma forma dramática. E que forma dramática é esta?
Na forma de, ao fazer contradição com o aparente, instaurar já um plano de multiplicidades e contradições. O palco sobressai-se do plano mundano e coloca-se fora do mundo. Este "fora" nem sempre é o "além" dos deuses superiores ou inferiores . Trata-se, tradicionalmente, de um "fora absoluto", fora do próprio além - lugar de enunciação possível do sentido radical da Aléthea (Verdade). Paradoxalmente, o sentido radical da verdade aparece não só como "interpretação," mas, mais exatamente, como "ficção". O teatro faz uma abertura no tempo, instaurando um "tempo de retorno e de repetição"; faz uma alteração no espaço, criando desde sempre um "cyberspace"; instaura um poder ficcional, deixando ver a brecha entre as palavras e as coisas - entre o real e o discurso e, finalmente, nos apresenta a verdade enquanto jogo de velamento e desvelamento, ficção e realidade.

O tempo próprio da arte.
A arte funda um tipo de tempo todo próprio, visto ela não carregar consigo o peso incômodo de seu contexto nem de sua história. Ela surge sempre de novo, afirmando-se como tempo inaugural. O instrumento precisa de seu contexto para operar. O que faríamos com um aparelho elétrico antes da eletricidade? De que nos vale atualmente uma lança? Ou mesmo um instrumento qualquer sem um manual de operações? Dentro da própria arte, porém, podemos encontrar formas distintas de lidar com o tempo - desde procurar fazer durar, até inscrever sempre de novo, não o conteúdo, mas o processo, o procedimento.
É o instrumento tecnológico, porém, aquele que faz uma secção tanto na continuidade do tempo quanto no seu ato de estar sempre originando. O instrumento, ao poder apenas ser circunscrito ao seu contexto, faz com que nos deparemos com as metamorfoses da história. Faz cortes. A relativização dos contextos e o fato de não se poder, a partir de um contexto, fazer aferições conclusivas ou evolutivas a respeito de outros, se deve ao tipo de temporalidade inerente aos instrumentos. Além disso, têm a função de carregar em si o contexto de onde surgiu e os períodos pelos quais passou.
Para podermos dizer um pouco mais sobre esta temporalidade da arte e da técnica, é preciso se introduzir algo sobre o tipo de tempo designado como paixão.

O tempo próprio da paixão.
Paixão diz respeito a um tipo de tempo todo próprio. É onde se dá a distinção e o conflito do tempo infinito com o eterno. Ao infinito corresponde ao máximo no instante, ao eterno corresponde a duração. A paixão pretende um tempo que seja simultaneamente infinito e eterno.
Vamos encontrar nela uma potência essencialmente "humana" do tempo, um investimento ardente e vivo nas condições contraditórias deste. Diante da impossibilidade de ser eterno perante a consciência da finitude, pior é a intuição da ligação essencial entre as condições da perda e do fim com as do prazer. O sujeito humano instaura neste contexto trágico, a paixão. Porque acaba e para não acabar o homem vive o tempo enquanto e da paixão.
Se a memória apresenta-se enquanto um anti-destino, enquanto um elemento de discernimento, a paixão é uma anti-memória. Se o tempo platônico e agostiniano - tempos para a memória - são a "imagem móvel da eternidade", o tempo passional é a "eternidade móvel da imagem e o empenho em capturar e fixar o móvel". Trata-se de um tempo de consumo e o tempo enquanto consumir-se. Apenas os seres "patológicos ( patológico e paixão vêm da mesma palavra grega: Pathos) acabam. É por se entregarem às condições deste tempo que o ser do homem é um ser para a morte e é apenas nesta condição onde pode afirmar sua condição mundana.
Se a razão cria seus instrumentos, é a paixão, ela mesma, a fazer existir a arte. Mas isso não é apenas em um sentido "instrumental" e sim de uma maneira fundamental: é por ser a razão tal como ela é que já é instrumento, já é maneira adequada do homem realizar e realizar-se; é por ser a paixão tal como ela é que já é arte, já é maneira própria do homem apresentar sua relação com a finitude e o gozo. Enquanto a razão implica um tempo criativo, a paixão implica um de "fazer existir". A criação implica uma atemporalidade, um "procedimento" de articular real com desejo. O fazer existir pode precipitar-se diretamente para a imaginação, fazendo existir aquilo que se deseja - impondo nesse objeto do desejo um imediato, dada a infinitude do apelo passional. Tanto um quanto outro já fizeram parte do sentido de Tekhné, mas, atualmente, aparecem de maneira diferenciada - apesar de sabermos de como é impossível deixar de ver na razão a paixão do homem pela certeza e pela dúvida e na paixão, o exercício radical de uma racionalidade da certeza.
Apesar de toda tecnicidade da ciência, não se aboliu esse tipo de tempo enunciado na arte e na paixão. Estas fazem surgir um caráter arcaico, iniludível, inultrapassável da forma de ser e de realizar-se dos homens. Apesar de todo o empenho em um mundo mensurável e previsível, a paixão continua a fazer buracos, a fazer vazar. Ficam ameaçados de soçobrarem perante o tempo da paixão os tempo da tecnologia. A própria forma apaixonada de se lidar com os instrumentos deixa ver como não se consegue impor um tempo racionalizado ao espírito. Não foram suficientes as críticas até hoje a este tipo de tempo "absurdo" para fazerem deixá-lo de existir. Ele continua apresentando não só a sua absurdidade própria, como, também, deixando ver o absurdo do fenômeno racionalizante.
Trazendo uma mistura para a analítica da ciência, trazendo uma coagulação e uma desrazão para o campo da temporalidade e da razão, a paixão faz existir o tempo enquanto problemática - na sua forma de angústia e de gozo, sem poder deixar de ser um para poder ser o outro.
Surpreendida pela paixão a razão não tem meios a não ser ceder as possibilidades da arte, mais exatamente da Tekhné. Tal como o que se faz de melhor tendo sempre na sua base um pior, tudo o que se distingue tem em sua base o indiferenciado e as concepções absolutas partem de um ser essencialmente finito.

O equívoco quanto a construção do objeto.
A tecnicidade promove uma alteração no sentido do objeto para acalmar as pulsões. Na língua alemã existe uma diferença entre Gegenstand (objeto, mas com o significado daquilo estabelecido, fixo = stand em referêcia, oposição, na direção de = Gegen ) e Objekt ( objeto, com o significado daquilo jogado, projetado, ejetado = jekt em referência, contra, na direção de). A diferença vai ser dada pelo sentido de movimento ou de fixo. Tanto Kant quanto Freud se utilizam desta diferença para dizer de como temos que fazer o objeto (Objekt) visto ser este aquele tipo a servir como resposta para as pulsões.
Winnicott vai mostrar isso através de sua formulação do objeto transicional, protótipo de todo objeto. Trata-se de um objeto qualquer com o qual a criança estabelece uma interação ambígua situando-o ao mesmo tempo enquanto corpo e enquanto símbolo. Com este objeto faz a conecção e um ponto de mistura entre a palavra e a coisa. Este objeto que a criança ora mantém aderida ao seu corpo, ora o distancia permite a ela a construção do tipo de objeto que lhe convém, ou seja, algo que ela retira do corpo próprio e vai paulatinamente estabelecendo como objeto. Lacan enuncia isso dizendo de como o objeto a é extirpado do corpo próprio.
Outra é a natureza destas maquininhas oferecidas pela tecnologia para ocuparem o lugar de objeto para as pulsões. Trata-se de Gegenstand (objeto = aquilo que está estabelecido, fixo contra ou em relação a), neste caso. Por mais que se tente fazer simular a construção do Objekt (objeto = aquilo que é jogado, projetado contra ou na direção de) através da atividade de montar brinquedos ou objetos, que se tente simular a temporalização imposta ao objeto - visto sua origem no corpo próprio o tornar atravessado pela finitude bem como o fato de ser investido pela paixão o tornar consumido - através da introdução do "descatável" e da rapidez com que um objeto tecnológico se torna obsoleto; por mais que se utilize destes meios estas maquininhas não respondem pelo objeto humano. É nesta brecha, nesta diferença onde vamos encontrar não só a intensidade da saída pela droga quanto a própria doença mental vindo, estas, tentar "enlouquecidamente" resolver esta diferença. Elas apontam para a falta de um sentimento de satisfação apesar da super-abundância de objetos, isso por esses objetos não serem do tipo a responderem pelo objeto humano.
Vamos encontrar na arte e na paixão focos de resistência desta atividade fundamental da construção do objeto para a pulsão. Toda o despretigio e equívoco na maneira de se situar a arte e a paixão na sociedade moderna vai fazer surgir um tipo de nervosismo e insatisfação toda própria. Este tipo é hostíl ao sujeito mas básico para o exercício do capitalismo e para um tipo equivocado de afirmação das subjetividades feito através da posse de objetos sendo que, esta afirmação, só pode ser feita através do procedimento da confecção do objeto do tipo que responde à pulsão.

Resumo do capítulo
O tempo se apresenta como diferenças dentro de diferenças. A própria concepção de tempo na ciência, que é uma de suas concepções e possui diferenças irreconciliáveis dentro de si. No entanto, cada uma delas é operacional e produz seu efeito de positividade . Existe uma imagética do tempo como sendo um "cristal", devido ao seu caráter multifacetado. O problema é no sentido do cristal ainda ser uma unidade, não sendo esse o caráter do tempo.
O tempo na ciência é, fundamentalmente, um tempo marcado. Sua marca corresponde a um anseio de domínio sempre presente no "Homo sapiens sapiens (ou Cro-Magnon)". Esta marcação pode aparecer na forma de pontuações no tempo, tipo os rituais e as variações naturais (dia/noite, estações, repetição de estrelas em certos quadrantes etc.) ou as marcações retilíneas e determinantes do tempo, onde ele aparece na forma de rapidez, de movimento - mais exatamente de desenvolvimento. Foi o processo de marcar-lo aquilo mesmo a caracterizar um certo tipo de constituição do real ao qual pertencemos. Não se marca o tempo impunemente, sempre se é marcado por ele quando se o marca. O homem "ocidental" é um tipo de sujeito definitivamente marcado pelo tempo. Mais exatamente, pelo mesmo tipo de marca que ele supõe fazer.
Através de toda a ciência clássica imperou a definição newtoniana: "O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e por sua própria natureza, flui de modo igual sem relação a qualquer coisa externa".
Einstein vêm revolucionar a física com a teoria da relatividade, atingindo, também, a concepção de tempo. Em vez do "tempo absoluto" newtoniano, ele estabelece a unidade "espaço-tempo", tornando-os indissociáveis. Apesar disso, e por isso, ele afirma não estar este na física. Dentro da teoria da relatividade, o tempo, além de deixar de ser absoluto, deixa, também ,de ser uniforme, variando de acordo com o referencial e dependendo da velocidade entre fonte e receptor. Porém, tanto para Newton quanto para Einstein, o tempo está implicado com a simetria.
A teoria quântica virá quebrar com a simetria do tempo. A quebra da simetria problematiza as "voltas no tempo", bem como atinge duramente a relação causa-efeito, tão vital para a ciência e para nosso pensamento em geral. Aqui aparece de forma insidiosa, dentro da própria física, a determinação enquanto acontecimento e implicando o observador como agente definitivo dos acontecimentos. A observação e a medição, a intervenção externa, interrompem a função de onda, interrupção esta imprescindível para o acontecimento definir-se através da exclusão do todo das possibilidades, viabilizando-se, assim, a decisão de uma delas.
A segunda lei da termodinâmica e a não-linearidade introduzirão ainda uma outra posição do tempo. Aqui ele aparece enquanto inevitavelmente apontando para a frente. Os atratores estranhos e a estrutura fractal servirão de meios para um tempo sem volta, elemento cuja presença constituirá o próprio Caos enquanto obedecendo a parâmetros, vetor de criação, autonomia e de associação entre coeficiente de liberdade de um sistema e sua dependência sensível às condições de origem. Tanto no caos determinístico, onde funciona como vetor de produção de auto-regulação, quanto no caos estocástico, onde aparece com toda sua radicalidade de "Arché" (princípio), assimilando em si as forças contraditórias da desordem e da criação.
Atualmente, como sempre aconteceu, existem vários mitos do nascimento do tempo, assim como do tempo enquanto aquilo a fazer nascer. Seria o nascimento do nosso tempo o nascimento do Tempo? Qual a relação entre a forma pela qual nós vivenciamos a presença do tempo e sua direção para frente - para o fim, a finalidade - e a forma efetiva do real? Se existe tal real, qual o nível de presença e de determinação exercida sobre ele e nele pelo tempo? Estas questões aparecem mesmo, atualmente, na sua forma de mito. Um mito fundamental atual seria o do Tempo como uma espécie de oceano, onde a quebra de suas ondas daria origem à matéria - a universos - criando-se e desfazendo-se tal como as espumas de um mar.
A forma dúbia, contraditória, do tempo na modernidade pode ser bem vista a partir de sua materialização enquanto instrumento e enquanto arte. Enquanto o instrumento fala de um tempo contextualizador, carrega consigo o seu próprio tempo e contexto sem o qual ele não faz sentido, nem exerce sua função prioritária: a de ser útil e eficaz. A arte refere-se a uma espécie de retirada do tempo enquanto duração, pretendendo não só a eternidade mas, principalmente, a presentificação das potências originárias, tanto do acontecido quanto do devir. Quanto à arte se costuma dizer que não tem tempo; ela aparece sempre, fazendo surgir.
Enquanto o instrumento fará instaurar um corte "entre tempos" de forma a inviabilizar a transferencia entre tempos diferentes, a arte fará ver o tempo da paixão enquanto vetor de indiferenciação, enquanto esforço por fazer coincidir as oposições entre infinitude e eternidade.
A ciência, de um modo geral, está sempre ocupada com uma determinação e um controle do tempo. Sempre envolvida com uma diminuição, indo até à privação, de uma "perda de tempo". Esta privação da perda de tempo gera uma dificuldade nas condições de possibilidade do prazer, produzindo uma espécie de "nervosismo".



4 O TEMPO NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO ( NA MÍDIA)

A mídia está intimamente associada a um tempo rápido. Ela instaura um tipo de temporalidade toda própria, que, de fato, está associada a forma de tempo tal qual vivemos regularmente. Isso na medida em que a mídia é aquela a performar nosso real na forma de realidade. São os meios de comunicação o lugar de emanação do Discurso, a partir de onde provém a construção da realidade. Desde os templos até os centros modernos de produção da comunicação, é sempre a mesma e única situação: a articulação do homem com a verdade e com seu além.
A tendência da passagem da informação em tempo real - ao vivo - instaura parâmetros novos de realidade e de irrealidade. A ação do paradigma da comunicação, segundo o qual a comunicação é inversamente proporcional à quantidade de informação, fica cada vez mais evidenciada.
A aceleração da passagem da informação, de alguma forma, age sobre a vivência da passagem do tempo subjetivo de maneira tal que, o sujeito moderno, na medida de ter à sua disposição cada vez mais recursos e mais informações, também tem cada vez mais a vivência de falta de tempo e falta de vivências fundamentais.
Sendo o homem mimético ao seu contexto, sendo o nosso contexto o dos meios de comunicação, o sujeito que somos só pode ser pensado a partir dos paradigmas da informação e da comunicação. E o tempo, neste contexto, é um tempo rápido - tendendo ao imediato. Vamos tentar deixar ver, aqui, a maneira pela qual a mídia faz um esvaziamento do tempo, reinvestindo-o na forma tanto de tempo artificial-imediato quanto na forma de uma convocação para um preenchimento. Sendo assimilado à memória, vamos ver como a mídia instaura uma forma toda especial de memória, portanto, um tipo todo especial de temporalidade. Decididamente, a mídia não apenas "informa" mas, sim, "forma" - produz e cria realidade, produz e cria temporalidades, mexe e remexe tanto com a memória quanto com a historiografia.
Aproximando-se cada vez mais evento e narrativa, potencializando-se de forma exponencial os dispositivos interativos e virtuais, introduz-se toda uma concepção nova de tempo e de realidade. A intervenção em tempo real, as máquinas de visão e a informática, constituem uma realidade cada vez mais composta de "bits". Mas qual a relação entre esta realidade eletrônica e uma suposta "realidade natural"? Seria a vontade de potência do indivíduo a única imperante nos controles eletrônicos de produção de realidade ou haveriam dispositivos políticos vigorosos neste incremento da potencialidade do indivíduo? Qual o efeito e o ônus desta ação sobre o tempo intermediário do acontecimento com a narrativa? Seria de fato este tempo nulo ou anulável como pretende fazer a informática? Se não, quais as conseqüências de uma ação sobre ele?

4.1 O tempo enquanto fator corporal e político
Para introduzir-se a referência do tempo nos meios de comunicação como sendo o simultâneo, vamos nos referir à concepção de Bergson, no sentido da presença do corpo na percepção e as concepções da política da comunicação de Muniz Sodré, quanto ao sentido político do tempo. Se até o século XVII o poder se fazia exercer sobre o território, desde então e cada vez mais, o exercício do poder exerce-se sobre o tempo. Basta se ver como a máxima de uma sociedade capitalista se constitui no "Time is money".

A tirania da informação.
Vamos introduzir esta temática subscrevendo Muniz Sodré e Henri Bergson.
Muniz Sodré escreve: "O mito da informação encobre o essencial, que é a atividade prática, o trabalho concreto. Na realidade, as pessoas são informadas para que não busquem a informação. Da mesma forma, as pessoas são condenadas a apenas ouvir, para que não falem."
A tirania da informação afasta as pessoas do socius, apresentando um social artificial, um social filtrado pelas finas tecituras dos veículos de informação; esta realidade filtrada se constitui em uma espécie de "hiper-real", vindo não só a ser preferida, como a validar a realidade. Só aquilo a ser vinculado pela mídia adquire caráter de acontecimento. Durante o processo de busca da informação se passa o essencial a nível tanto da comunicação quanto da produção da realidade. Este intervalo de busca é vital para o sujeito dar-se conta das vias através das quais o acontecimento acontece; a malha, a multiplicidade de elementos e de força inerentes à constituição dos acontecimentos; a marca da presença de quem apreende na apreensão e, principalmente, o coeficiente de inapreensibilidade de qualquer fato devido a um tanto, sempre presente, de mistério de qualquer real.
A marca registrada da presença decisiva dos meios de comunicação na sociedade moderna é a produção de um sujeito passivo, incapaz de decisões sobre si, alguém sobre quem se abatem as potências da sociedade de tal forma e com tal açambarcamento, que só pode responder e reagir, praticamente nunca produzir. Os espaços vinculados à fala só se abrem na medida desta fala ser a repetição de algo já proposto. Desta maneira, ficamos imersos em uma estrutura de tal forma reacionária, que a loucura, a violência e as drogas aparecerem como reações desesperadas do coeficiente ativo deste sujeito tornado passivo. Trata-se de um sujeito amedrontado. O monopólio e o totalitarismo dos meios de comunicação excluem o essencial, tanto da comunicação quanto do sujeito: o desejo. Com isso se tem um novo tipo de concepção tanto de sujeito quanto de realidade, referente a uma crise das representações, crise das essências, da ética, da verdade, dos fundamentos e da relação causal .
Ainda neste mesmo artigo Muniz escreve:
"Em outras palavras, ideologia não se define como o conjunto dos conteúdos veiculados pelos meios de informação, mas como a própria informação enquanto forma unilateral de relação social que separa radicalmente falante e ouvinte, censura a resposta e torna abstrata a situação concreta dos indivíduos."
Em outro artigo, ainda no mesmo tema, ele escreve: "O aumento da telerrealidade ou da telepresença do mundo consiste nessa circulação, no fechamento progressivo dos circuitos de comunicação."
Longe de ser meramente um lugar de "passe" de ideologias, os meios de comunicação já instauram um tipo de ideologia, uma forma de totalitarismo, negando a comunicação. Separam-se radicalmente os pólos comunicacionais, dando origem a uma problemática abrangente da modernidade: a instauração de "isolamento na massa", tal como quando se morre de sede dentro do mar, também se pode morrer de isolamento dentro de uma massa humana ( metrópole, família, relação etc.), visto existir a anulação das possibilidades de comunicação. A criação de universos artificiosos e abstratos torna as pessoas de carne e osso inadequadas e absurdas. Já se chegou a falar em "sociedade do narcisismo", devido a um super-investimento do eu pela anulação das condições de base da comunicação. No narcisismo, a vivência da temporalidade fica circunscrita ao território do imediato, visto o outro estar excluído ou, mais comumente, ser aceito apenas nas condições de admirador. Torna-se angustiante se lidar com um ambiente onde as soluções não são como "apertar um botão", onde o tempo não obedece ao quase imediato dos circuitos eletrônicos.
Seguindo no mesmo raciocínio, escreve ainda Muniz:
" A repetição resultante da teleorganização coletiva representa uma intervenção no tempo; o produto da indústria cultural (jornal, revista, programas de tevê, etc.) inscreve-se na uniformidade cíclica ( horária, diária, semanal, quinzenal, mensal, etc.)......Esse espaço simulado é esquizofrenizante: esvai-se o sentimento real, ao mesmo tempo em que o indivíduo parece aproximar-se absolutamente das coisas, através de um imaginário controlado."
O tempo repetitivo, reassegurador, simula o tempo mítico, com a diferença de não repetirem-se os conteúdos, mas, e isso é importante, esta situação provoca exatamente um desinvestimento paulatino dos conteúdos. A quantidade de informação e a repetição sistemática dos "meios" separam as pessoas de tal forma dos acontecimentos, habitua-as de tal forma aos "hiper-acontecimentos", que isso faz com que não produzam mais nenhum efeito, além do reasseguramento pela repetitividade. É este o tipo de espaço designado por Muniz como "esquizofrenizante". Por esta via, Deleuze e Guattari também apontam para uma unidade paradigmática entre esquizofrenia e sistema de produção capitalístico. Não se trata de uma circunscrição da situação esquizofrênica a este ambiente exclusivo, mas é nele onde ela se torna uma entidade mórbida, visto se procurar, com isso, salvaguardar o sistema da consciência em si das mesmas condições de base.
Os dispositivos maquínicos, a constituição de um homem-máquina deixa cada vez mais presente um sujeito do tipo autístico. Torna presente uma defesa vigorosa das condições "humanas" a partir de um procedimento mimético. O autista deixa ver, pela forma maquiníca com a qual se apresenta, a única condição encontrada por ele para responder ao desejo do outro.
Bergson nos introduzirá na questão apresentada aqui ,escrevendo:
" Todas essas imagens agem e reagem umas sobre as outras em todas as suas partes elementares segundo leis constantes, que chamo leis da natureza e como a ciência perfeita dessas leis permitiria certamente calcular e prever o que se passará em cada uma dessas imagens, o futuro das imagens deve estar contido em seu presente e a elas nada acrescentar de novo. No entanto, há uma que prevalece sobre as demais na medida em que a conheço não apenas de fora, mediante percepções, mas também de dentro, mediante afecções: é meu corpo."

O corpo na percepção.
Ora, o corpo é exatamente um ponto ideológico. Fazendo referência a uma construção tupi e àquilo em direção ao qual a atividade psicanalítica nos pode conduzir: o corpo é uma concentração do espírito. Sendo o espírito, para os índios, o resultado das energias geradas e excedentes dentro da comunidade e para nós psicanalistas, o contexto imaginário do qual cada um emerge. Simultaneamente, é o corpo quem, também, de alguma forma compõe o seu contexto. Pois o corpo não é puro efeito. Ele, também, e é isso que Bergson nos lembra adequadamente, produz - impõe. Nas interações de curta distância, principalmente, vigora bem o paradigma da física quântica, onde a relação causa-efeito suprime-se. A presença do corpo é o que faz a diferença. Ora, o corpo é, basicamente, uma figura da temporalização.
A comunicação vai nos deixar ver como esta diferença feita pela presença do corpo é devido àquilo que sua presença priva. É o privado pelo corpo e ao corpo aquilo que tem como devir a comunicação. Matéria e espírito, corpo e linguagem privam-se na mesma proporção em que se privam vaso e vazado, casa e lar, montanha e túnel...
Mais adiante, Bergson escreve:
"Chamo de matéria o conjunto das imagens e de percepção da matéria essas mesmas imagens relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada, meu corpo. Os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre eles. Meu corpo, objeto destinado a mover objetos, é, portanto, um centro de ação."
Para fazer o circuito onde formula a interação do corpo com a percepção escreve: "Na percepção pura, com efeito, o objeto percebido é um objeto presente, um corpo que modifica o nosso."
A maneira como nos apresenta o sentido da matéria é básico para se dar conta das vias pelas quais, tanto nosso corpo quanto toda a realidade "material", são afetados pela presença da imagem unida à afecção: o mundo material é o que surge, devido ao corte produzido na massa em vias de escoamento, através da percepção acontecida no tempo "quase instantâneo". A intencionalidade insinuante e o sistema de afecção entre matéria e corpo - de tal forma onde um já é o outro - constituem um real articulado por ações possíveis na forma de percepções e de modificações produzidas de corpos em corpos.
Nosso corpo age sobre os objetos afetando sua apreensão, mas, também, é modificado pelos objetos. Ora, um corpo modificado é uma construção vigorosa para deixar ver a maneira pela qual não é algo acabado. De fato, existem tantos corpos quanto discursos: existe o médico, o erótico, o erógeno, o astral etc. Isso devido a ação do objetos modificar o corpo. Os símbolos subjetivos e culturais inscrevem-se nos corpos dando-lhes não só uma estética, como materializam neles emoções, significantes e sentidos.
A própria forma da matéria trata-se de um acontecimento anímico: é a interrupção provocada pela percepção no fluxo do escoamento. A percepção interrompe, congela um fluxo de energia e este corte terá como imagem a matéria, tal como nós a apreendemos. Não se pode mais fazer aqui um mundo dividido entre sujeito e objetos. Os corpos não são entidades estabelecidas e determinadas, existem aberturas e misturas por todos os lados. Pode-se ver uma mistura quase voluptuosa entre corpos e objetos, não estando nenhum deles isento da ação do outro. Esta ação é direta, decisiva, tanto na constituição de cada um quanto da percepção.

Tempo e memória.
"As questões relativas ao sujeito e ao objeto, à sua distinção e à sua união, devem ser colocadas mais em função do tempo do que do espaço".
A percepção dispõe do espaço e isso, na exata proporção em que a ação dispõe do tempo. A memória é um elemento essencial para fazer agir o tempo a partir do corpo. Existem duas formas da memória: uma que imagina e a outra que repete. Para se evocar o passado na forma de imagem, ou seja, na sua potência maior, é preciso saber dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar. A memória se aproxima através daquela que imagina, com o sentido da "reminiscência". A reminiscência trata das lembranças do não acontecido. Platão vai dizer das vivências da alma no Eidos e nós vamos dizer dos resíduos de desejos nos acontecimentos a voltarem na forma de uma afecção, de uma convocação, para se repetir algo cujo acontecer efetivo é a primeira vez. Pois bem, a memória diz da presença daquilo a fazer a diferença entre sujeito e objeto - são os traços mnêmicos aqueles a fazerem esta distinção e aquilo com o qual operam é o tempo. É nos estratos do tempo onde se dara distinções imaginárias ( a título de imagens) desta diferenciação.
A memória quanto aos acontecimentos fortuitos é muito mais intensa em relação àqueles decorados, fixados pela repetição. A repetição só adquire sua potência maior através da ação do esquecimento, de onde ela retorna na forma de ação - ou seja, onde a lembrança volta na forma da ação. Por isso, é preciso se reconhecer uma diferença de natureza entre percepção e lembrança. Enquanto a lembrança é a representação de um objeto ausente, portanto, uma questão de tempo, a percepção trata de um recorte feito pelo corpo no seu plano de imanência, escolhendo e destacando objetos de uma ação possível do e para o corpo - portanto, trata-se de uma questão de espaço.
Para tratar de uma estratificação corporal do tempo, Bergson escreve:
"É próprio do tempo decorrer; o tempo já decorrido é o passado e chamamos presente o instante em que ele decorre. Mas não se trata aqui de um instante matemático indivisível que separaria o passado do futuro. Mas o presente real, concreto, vivido, aquele a que me refiro quando falo de minha percepção presente, este ocupa necessariamente uma duração. Onde, portanto, se situa esta duração? Estará aquém, estará além do ponto matemático que determino idealmente quando penso no instante presente? Evidentemente, está aquém e além ao mesmo tempo e o que chamo "o meu presente", estende-se ao mesmo tempo sobre meu passado e sobre meu futuro. Sobre meu passado em primeiro lugar, pois "o momento em que falo já está distante de mim"; sobre meu futuro a seguir, pois é sobre o futuro que esse momento está inclinado, é para o futuro que eu tendo e se eu pudesse fixar esse indivisível presente, esse elemento infinitesimal da curva do tempo, é a direção do futuro que ele mostraria.... O passado imediato, enquanto percebido, é, sensação; o futuro imediato, enquanto determinando-se, é ação e movimento; meu presente, portanto, é sensação e movimento ao mesmo tempo."
A temporalidade constitui-se na mesma natureza da carne, dos nervos e dos músculos do corpo. Apresenta-se, mais comumente, na forma da duração. Ora, a duração é ainda mais material que a matéria. A duração faz aparecerem estratificações de tempo, dependendo das afecções atravessando a matéria corporal e, também, da atividade de convocação e de deslocamento de possibilidades de preenchimentos de desejos e de respostas a demandas. A produção da apreensão de um sentido de passado e do devir, obedece a um imperativo do tempo, tanto na criação das condições de base para distinguir um sujeito de objetos, quanto para viabilizar tanto a ação quanto as sensações. Toda vez, e isso é acontece freqüentemente, na qual uma moção é feita desde o corpo, será preciso estar já ali, o tempo para viabilizar esta moção.
Com estas questões já podemos começar ir formulando as vias pelas quais a imagem produz ação no corpo - produz inclusive a imagem do corpo - e, também, as vias pelas quais esta imagem incide sobre a constituição dos objetos enquanto determinantes da ação. Na medida de ser esta imagem agenciada pelos meios de comunicação e introduzidas nelas o vetor do tempo imediato, este vetor passará a fazer parte constitutiva tanto do corpo quando de seus determinantes de ação. Vamos vendo, assim, a maneira pela qual se determina a nossa vivência de tempo.

Tempo-matéria.
O tempo para a informação e para a informática é esse tempo-corpo, mais exatamente, é um tempo cuja potência é a de ser via de acesso e de poder sobre o corpo, bem como sobre suas representações. Trata-se de um tempo-velocidade disfarçando um tempo-político. Esta rapidez interessa para a produção de um afastamento do pensar no sentido "mais profundo", visto este pensar levar tempo, freqüentemente longo; interessa, também, para a produção de insatisfação, já que esta passa a depender de um "tempo vago". Na manutenção da insatisfação, introduz-se um interesse político, visto as pessoas insatisfeitas serem mais facilmente conduzidas - mais seduzíveis pela evocação daquilo de que carecem. A rapidez, no sentido das convocações feitas pelas exigências da informação, é um elemento da política disfarçado em elemento de potência.
Primeiro se introduziu o tempo na imagem pelas vias da imagem-movimento (cinema); depois se acelerou esta imagem ( imagem em tempo real - "ao vivo"), produzindo, desta maneira, as expectativas de uma "realidade acelerada"( levar a um encurtamento sistemático das condições de decisão); a seguir se introduziu a interatividade, de forma a sugerir um controle subjetivo sobre os acontecimentos, transformados em simulacros ( não é sobre nem a partir do acontecimento mesmo que se decide), dentro de um tempo real - com isso se apresenta o sujeito controlador, para disfarçar um controle sem precedentes sobre a produção de sujeitos e de subjetividades massificadas em pseudo diferenças e isoladas pela impressão de individualidade e de especialidade.
Não são, de forma alguma, apenas os "meios" a serem operados quando se utiliza a informática; é o próprio corpo que entra em mimesis com as máquinas e as redes. Todo linguajar relativo ao corpo já assimila figuras maquínicas; já se fala sempre em "processos", "mecanismos", "aparelhos", enfim, sempre metáforas do corpo relativos a uma máquina. Mas não se pode esquecer o fato do homem sempre construir sua imagem enquanto um ser híbrido - quer seja com máquinas, com animais, deuses, forças naturais etc. - e, além disso, a realidade do poder acompanha seus passos, principalmente quando seu caminhar toma como objetivo um "desenvolvimento".

Tempo-corpo-máquina.
O tempo-máquina vai sendo, por estas vias, assimilado pelo corpo-tempo. Esta assimilação já traz em si os dispositivos políticos de alienação. Nada disso é recente, uma vez sempre ter acontecido a partir da letra e mesmo da linguagem. A novidade é a presença de dois elementos: a) a aceleração na base das expectativas íntimas a partir da aceleração do tempo nas imagens, nos simulacros, tomados como imagens-realidade e, b) a anulação do tempo "inútil" pela introdução do tempo "preenchido" - mesmo que seja em um preenchimento através de "passa-tempos" maquínicos - de forma a prejudicar, irremediavelmente, as condições de possibilidades do prazer. Trata-se de uma temporalidade toda especial, toda artificializada, uma temporalidade virtual, mas de enorme poder tanto sobre o corpo quanto sobre a memória, tanto sobre o desejo quanto sobre a consciência.

Função de tempo nas máquinas de controle.
Jeremy Benthan, pensador iluminista, formulou uma "máquina de controle" - o panóptico - através da qual se podia vigiar uma prisão, uma cidade, etc. Tratava-se dos olhos do poder aplicados sobre uma função do espaço, um espaço "adequadamente" vigiado através de um mínimo de pessoal - uma pessoa apenas seria suficiente para a vigilância. Este projeto não vigorou, surgiu uma alternativa mais eficaz na modernidade. Mais eficaz por inserir o poder aplicado sobre uma função do tempo. Trata-se das inúmeras máquinas de "tele (a distância) ". As pessoas não precisam ser vigiadas, elas mesmas submetem-se já passivamente a isso; graças a introjeção dos dispositivos de controle - elas mesmas já se colocam sob o olhar das máquinas. Além disso, cada um dispõe de seu tempo, ordena e organiza sua temporalidade em relação aos programas e às informações provenientes da mídia. Trata-se de um controle direto sobre a função temporal em vários níveis: tanto no de organizar o cotidiano, quanto o de influenciar nas tomadas de decisão mas, principalmente, em impor um determinado ritmo no estilo de viver e de vivenciar os acontecimentos - decide, também, sobre quando é o tempo de que, ou seja, sobre a adequação, alçando-se enquanto parâmetro de realidade.
Os dispositivos de distanciamento oferecem uma interatividade segura para a ilusão ( a qual depende de um desvio no tempo, pela ilusão não resistir ao tempo) e propondo, simultaneamente, um medium que não ofereça nenhum risco. Através deste procedimento, tanto o tempo quanto o real são esvaziados, ressurgindo na forma da angústia e do conhecido "nervosismo" da modernidade e na forma de um mundo sob o controle dos tubos catódicos, calcados pela letra da imprensa ou nas ondas de rádio.

Tempo rápido enquanto simulacro de tempo.
O recurso da imagem foi potencializado socialmente nas mesmas condições em que o é individualmente. No momento preciso onde a dor intervém e a porção do organismo interessada repele a excitação, em vez de acolhê-la, este repelir distingue a afecção da percepção enquanto aceitação da excitação. A percepção aparece, desta maneira, no lugar de uma afecção, sendo esta percepção vinculada à produção da imagem. A sedução da oferta de imagens exerce um amplo poder na medida em que se constitui como um recurso, uma barreira contra a afecção; denota a intensidade com que se repele uma afecção. Esta afecção repelida não só retorna na forma de sintomas como contagia a imagem percebida. A maneira mais usual deste contágio é, devido ao repelido ser uma excitação e portanto, representar um estado de urgência, o aparecimento do tempo apressado apoiado nas representações.
A crise das representações na qual entramos desde o final do século passado, cria dificuldades neste tipo de realização para as excitações. Além do mais, a forma da maquinaria capitalista operar gera excitações desenfreadas sem as condições para a satisfação e assim fomenta um tipo de consumo disperso, característico da nossa sociedade. A conseqüência disto é a produção de uma "ansiedade de fundo".
O tempo veloz introduzido dirá respeito à urgência destas excitações para as quais até mesmo as representações ficaram problematizadas, sendo as excitações intensamente produzidas nas linhas de montagem do tipo de desejo da sociedade de consumo. Este tempo rápido sobre o qual se intervém é, na verdade, apenas a apresentação das excitações desenfreadas.
São os instrumentos telemáticos aquilo que cria "um certo tipo de tempo", onde o passado aparece enquanto presente antigo, enquanto um deslocamento das faltas, carências e sentido do presente, na forma de uma imagética do passado. Este tipo de passado é passivo, tendo como finalidade apenas portar uma função ilustrativa ou explicativa. Por esta via, também , se retira do futuro toda sua potência de convocação de acontecimentos, toda a potência do tempo enquanto devir. O futuro aparece como um deslocamento no tempo das condições do presente, trata-se de um futuro previsível sem qualquer concepção para o inesperado. Trata-se de uma dificuldade nas condições da afecção. O homem moderno foi se tornando incapaz de lidar com as potências do inesperado, portanto, com as próprias condições do viver enquanto potência maior da presença da temporalidade. No lugar do tempo, uma imagem-movimento. Como distinguir um verdadeiro passado ou futuro, dos falsos?
O passado não surge efetivamente no presente, sem alterar completamente suas redes de representação e de perspectiva - sem causar uma crise generalizada. De fato, ele não poderia surgir na forma inócua de uma lembrança. Quanto ao futuro, ele está irremediavelmente vinculado à direção na qual o medo aumenta. A memória de forma alguma serve para, meramente, representar o passado. Ela serve efetivamente para encená-lo. Foram determinados movimentos telemáticos os responsáveis por colocar a memória enquanto um dispositivo maquínico, quer esteja ou não, situado fora do sujeito. De fato, a memória diz respeito a um tempo onde este é encenado, encenação de pedaços do tempo passado, deixados de fora da lembrança perceptiva, encenação de tendências de futuro, de pedaços de desejo deixados de fora das intenções, por serem incompatíveis. Ainda não se refletiu o suficiente quanto às conseqüências do deslocamento para o Estado, para a mídia ou funções semelhantes das potências deste material enquanto vinculados ao sujeito.
Mas, afinal, o que é uma imagem para o corpo e qual a maneira pela qual o tempo a constitui a partir da memória?

Imagem-tempo.
Uma imagem é uma pura evocação. Trata-se de um idolon ( ídolo ), a construção de um vazio convocativo, provocativo dos ideais , das aspirações mais onipotentes, as mais ideais do espírito. Uma imagem tem tanto mais força quanto mais ela esvazia-se de real, convocando o desejo de quem a apreende no sentido de preenchê-la, de lhe dar a realidade sugerida por ela, mas faltante a ela enquanto tal. É em quem a apreende onde ela se realiza. Mas não é de forma alguma apenas negativa à sua ação. De fato, ela é o sinal de como o ser do homem precisa de uma forma rebatendo sobre ele, na medida desta lhe faltar de forma própria. A imagem enquadra, formata e performa um real qualquer, criando as possibilidades do sentido, além de, como já vimos antes, ela depender de uma afecção. Como conseqüência disto, sempre acabamos por encontrar no lugar do "real" o imaginário. Tudo indica ser a imagem aquilo mesmo emitido pelo ser para proteger-se, para velar-se.
O feitiço da imagem diz respeito ao fato dela ser feita - ser um artifício, um fetiche. Sem ela, porém, não existem as condições para a percepção. Imagem não diz apenas do sentido óptico, mas inclui o sentido acústico, sensório e motor ( imagens sonoras, imagens sensórias e imagem motoras). A própria linguagem, os ícones e os significantes oferecem já uma forma para performar a realidade.
Vamos apresentar uma formulação literária para fazer ver a maneira como o tempo constitui a imagem e opera com ela.
Trata-se da aventura de Idriss, um garoto de uma tribo do deserto de quem uma turista francesa tira uma fotografia prometendo lhe mandar uma cópia. O espírito de Idriss pendula entre seu sangue Berbere, fascinando-se com a imagem e o seu invólucro muçulmano, para quem a imagem confunde-se com a alma. Esta referência entre alma e imagem já nos é bastante significativa. O fato da turista jamais ter lhe enviado a tal foto não lhe deixa outra alternativa senão ir em busca de sua alma, de sua identidade, em algum lugar de Paris.
Antes de sair Idriss assiste uma festividade de sua tribo, onde vê a exuberante Zet Zobeida dançar. Ela é o espírito de sua tribo Berbere fora da tradição muçulmana, ela é puro fascínio para Idriss. No raiar do sol do outro dia ele encontra na areia um enfeite da orelha de Zet Zobeida, uma gota de ouro assim definida: é uma jóia abstrata, absoluta, sem modelo na natureza. "Não se pode conceber um objeto de mais simples e mais concisa perfeição. Tudo parece contido naquele oval levemente arredondado na base. Tudo parece expresso no silêncio daquela gota solitária que nenhuma outra jóia toca nos seus breves balanços. Ao contrário dos berloques que imitam o céu, a terra, os animais do deserto e os peixes do mar, a gota de ouro não significa nada senão ela própria. É o signo puro, a forma absoluta. Que Zet Zobeida e a gota de ouro fossem emanações de um mundo sem imagem, a antítese e talvez o antídoto da mulher platinada da máquina fotográfica, Idriss começou a suspeitar esta noite." Esta peça, esta pura imagem, vai acompanhar de forma indômita sua aventura, marcando seus passos. Não é algo diretamente determinante, não é nem mesmo aquilo procurado e demandado prioritariamente por Idriss, mas, sim, uma presença aparentemente acessória, tendo, porém, na sua efetividade, todo o poder de determinação dos acontecimentos. A gota de ouro não é procurada, mas é sempre aquilo que inadvertidamente, a posteriori, aparece como determinante do movimento de Idriss para além de qualquer outra intenção sua. Idriss não se dá conta de como a gota de ouro condensa em sua imagem toda a potência do fascínio de sua tradição pela imagem recalcada através da intervenção muçulmana, ele não se dá conta de como é isso a impulsioná-lo para sua aventura. Vemos já aqui, onde começa a se situar o poder da imagem enquanto agenciada pelo tempo, no caso todo o tempo da tradição de sua tribo - seus percursos e desvios - convocando Idriss a atualizá-lo.
Esta imagem absoluta da gota de ouro, sem referência na natureza, deixa ver toda a potência da imagem. Não se trata de procurar uma cópia da natureza, não é isso o interessante para o exercício da imagem. O interessante é o simulacro e não a cópia, é a imagem absoluta. Uma imagem vindo a instaurar, ela mesma, uma realidade e não algo que só seria imagem por sugerir uma semelhança, uma cópia, uma transcrição do " natural". Todo movimento de afirmação do homem sobre a natureza, característico da indústria e da modernidade em geral, tudo isso está intimamente ligado a esse tipo de imagem absoluta, artificial. Esta imagem "feita" terá toda uma forma de tempo diversa daquele das "coisas naturais". Sendo feita e não copiada, ela terá na sua origem um ato criador, um ato ex nihilo . Partindo do nada insere-se no tempo enquanto principio, enquanto "Arché". Na sua referência ao nada, este convoca, desperta uma volúpia de preenchimento. Este preenchimento é feito as expensas do desejo e do imaginário de cada um. Trata-se de uma convocação vinculada à fruição. É o caso das máquinas e da própria linguagem, principalmente da escrita.
Uma fábula contidas na história de Idriss vão nos ajudar na nossa formulação sobre o imaginário. Sobre a maneira pela qual a história se mostra como sendo o percurso até a imagem, este percurso é a figura da duração.
A fábula é a de Kheir ed Dîn ou Barba Ruiva. O fato de ter nascido ruivo lhe conferiu seu destino - vamos vendo já o peso da imagem. Na sua tradição uma criança só nascia ruiva se fosse concebida quando a mãe estava mestruada, sendo isso algo vergonhoso. Para compensar seus infortúnios, Kheir ed Dîn foi se tornando uma pessoa temível, até vir a ser um terrível pirata. Em um dos reinos conquistados por ele se passa o seguinte: ali era tradição se fazer o retrato do rei, mas como retratar sua vergonha, sendo já a fuga dessa imagem exatamente o que o levara até ali? Aquilo do que fugia era o mesmo reencontrado no próprio lugar de seu esconderijo? Não há fuga das potências da imagem - para esta, medo e desejo dão no mesmo. Kheir se deslocou tanto que voltou ao mesmo lugar. De fato, ele se deslocou para chegar neste lugar, onde se depararia com a decisão sobre seu fantasma. De início, o tempo aqui já vai se apresentando na sua forma de sina, deixa ver como algo na memória torna impossível o esquecimento - de tal maneira que, no máximo, o faz retornar das entranhas na forma de reencenação ou de destino. Vemos tanto a maneira como uma imagem é capaz de constituir uma história, insistindo enquanto não for atravessada, quanto, também, a maneira tela qual a forma do tempo, enquanto sina, pode apropriar-se de uma imagem para fazer cumprir os seus desígnios. E que desígnios e atravessamentos são estes no caso de Kheir?
A questão de Kheir ed Dîn gravitava em torno de sua imagem e é a única pessoa que não fugiu diante de sua invasão e sua fama terrível, aquela a colocar-lhe perante isso. Toda a corte do reino invadido fugira apavorada com tal terrível invasor, menos uma pessoa - trata-se, exatamente, do retratista da corte: Ahmed ben Salem.
Ahmed afirma a Kheir ser o seu ofício retratar a verdade, o nome de sua honra é exatamente fidelidade. E aqui aparece algo primoroso sobre a verdade e a fidelidade. "Tu vês uma cara, olhas para ela um minuto, dois, no máximo. E durante esse espaço de tempo tão curto, a cara é assaltada por solicitações acidentais, absorvida por preocupações triviais. Depois guardarás na memória a imagem de um homem ou de uma mulher aviltados por aborrecimentos vulgares. Ora, supõe que essa mesma pessoa vem posar no meu atelier. Não um ou dois minutos, mas doze vezes durante uma hora, distribuídas por um mês inteiro, por exemplo. A imagem que pintarei estará lavada das sujidades do momento, das mil pequenas agressões diárias, das minúsculas baixezas que infligem qualquer banalidade doméstica...Eu sou um pintor da profundidade e a profundidade de um ser transparece no seu rosto, quando cessa a agitação da vida trivial, como o fundo rochoso do mar, com as suas algas verdes e os seus peixes dourados, surge aos olhos do viajante quando cessa a fraca ondulação provocada à superfície pelos remadores ou por uma brisa caprichosa". Esta pessoa que era a única que para Kheir devia ter fugido e, também, a única que devia ter ficado, seu pior inimigo e seu único remédio, acabou lhe fazendo o retrato fiel e como era tal retrato: 'Por trás do cortinado apareceu uma grande tapeçaria de lã espessa. Toda em relevo fulvo, representava uma paisagem européia de outono, um bosquezinho coberto de folhas secas onde rastejavam raposas, saltavam esquilos, fugia um rebanho de cabritos. Mas isso ainda não era nada. Ao espectador colocado bastante longe e mais atento ao conjunto do que aos pormenores, parecia que toda essa sinfonia em ruivo maior ,afinal, não era senão um retrato, um rosto cujos cabelos e barba davam em toda a sua opulência a matéria de todo esse mundo florestal - pele de animal, ramos de árvore, plumagem de aves aquáticas. Era assim o retrato de Kheir ed Dîn, reduzido à sua cor fundamental, de que todos os tons - desde os mais diluídos até os mais carregados - acariciavam a vista com uma suavidade deliciosa." - uma Anamorfose.
A fábula de Kheir ed Dîn mostra a maneira como a imagem tem a potência de estabelecer uma realidade, de ser sua fonte. Ahmed mostra a afirmação do simulacro como fidelidade e como verdade. O grego dizia do simulacro como afirmação da diferença necessária para o estabelecimento de qualquer existente. Todo existente só existe a partir de sua diferença e, esta diferença, é da ordem de um simulacro - tal como os textos acima deixam ver. O simulacro não é falso, é a verdade que ele parece encobrir que não existe. Toda sensibilidade do espirito Berbere aparece, em Ahmed, afirmando a verdade e a fidedignidade, não através da falta de vigor da cópia, mas no vigor afirmativo do sentido expresso na manifestação do simulacro. Ahmed mostra como não existia um Kheir feio ou bonito. Existia uma potência da imagem em seu curso de realização - não havia um Kheir "verdadeiro", a não ser aquele mesmo visto, sendo este atravessado pela imaginação e pela força do desejo a impor-se enquanto direção a realizar-se. Ahmed ben Salem sabe mostrar a distância existente entre olhar e imagem, distância esta essencial ao sentido. Lewis Carroll já havia falado desta distância em seu texto sobre "Alice através do espelho" . Esta é, também, a distância necessária para Idriss percorrer até sua imagem.
É fundamental se notar e se fazer ver a articulação entre a primeira imagem, representada pelo acontecimento da fotografia tirada em meio ao Saara - agenciando o entrecruzamento de uma multiplicidade de linhas de força como, por exemplo, a das culturas em que Idriss se insere: do território, da comunidade, do seu desejo nômade, etc. Esta potência vai aparecer como atrator na segunda imagem virtual da foto "pronta". Idriss não sabe onde está sua imagem, a não ser que deveria estar em algum lugar de Paris com uma loira em sua entranha e isso lhe parece impor um movimento inevitável.
Esta distância demostra que a imagem não está pronta, precisando ser construida pelas próprias realizações do sujeito de uma forma tal que, como se dá com Kheir em um certo momento, sua representação se torne possível. Trata-se de algo a posteriori. Sabemos bem da distância entre nós e nossa imagem no espelho ou em relação a imagem de qualquer outro, devido a interposição da imaginação.
Houve um desvio no ocidente ao se privilegiar a cópia em detrimento do simulacro, instaurando a verdade como efeito de semelhança com o Eidos. O Simulacro, vigoroso em afirmar uma diferença como sendo, exatamente, a marca da presença do sujeito desejante, foi desvirtuado como "perversão", como "resistência à verdade". O que Ahmed ben Salem afirma aqui é a imagem não como cópia do real, algo assistido como supomos fazer diante da mídia, mas sim, como algo que impõe a criação de uma realidade a partir dela, uma vez ser ela vazia. A imagem não é uma cópia, mas uma produtora de ação, ela não vem apenas depois, mas, também, está antes da ação. Por isso a mídia não só informa, mas impõe; não só mostra, mas, também, cria realidade.
Existe uma passagem gradual entre lembranças, movimentos e percepções. Isso fará os movimentos da imagem - a manifestação de sua forma de tempo - ir passando para o sujeito e aparecendo na forma de uma lembrança. Esta lembrança, introduzida a partir do tempo no movimento da imagem, surgirá no sujeito sob a maneira da percepção e decidirá sobre sua ação. Ou seja, a imagem virtual evolui em direção à sensação virtual e a sensação virtual evolui em direção ao movimento real.
Na temporalidade do corpo não só a lembrança do passado decide sobre o presente, mas, também, o presente desloca o passado, criando sempre um fluxo no tempo, vindo este fluxo dar o aspecto vivo e criativo do tipo de presença do ser dos homens. Qualquer sistema, envolvendo-se no controle das imagens e dos movimentos, tem um acesso razoável sobre a produção de lembranças e sobre os centros de decisão. Neste ponto, vamos encontrar o aspecto violento da mídia.

Mídia e violência.
Tal violência implica a construção e a monopolização de uma temporalidade para dentro da qual são deslocadas as expectativas e as vivências dos sujeitos, passando a ser, esta temporalidade, a que decide sobre os critérios de valores e das expectativas de satisfação. Toda a liberdade adquirida pelo homem com o uso da imaginação, através do qual ele se liberta de natureza, torna-se ameaçada pela mídia, no sentido desta promover a criação de uma "imaginação natural", ou seja, uma imaginação que perde sua característica de liberdade em relação às potências da natureza, devido a vir a ter uma existência concreta. Os circuitos nos dão cada vez mais condições de realizar nosso imaginário; mas, além de ser também nisso onde encontramos a privação de nossa liberdade mais essencial, também, não se perguntou o suficiente sobre qual a relação entre este imaginário realizado na tecnologia e a imaginação propriamente dita. Não se perguntou, o suficiente, a respeito da natureza do tempo manipulado - acelerado ou fixado - pela tecnologia. As angústias modernas deixam ver que, de fato, "algo deve escorrer" por aí.

4.2 O tempo livre e a liberdade do tempo. Ócio e tecnologia
Pelo prisma da tecnologia, pode-se dizer do tempo como sendo aquilo a introduzir cortes, segmentações na totalidade imóvel, gerando, assim, uma dispersão originária, um caos, criando, dessa forma, o movimento. Sobre esta dispersão originária incidirá o decalque da linguagem. Na linguagem, a totalidade imóvel é lembrada através da ordenação e o tempo é lembrado na forma da direção. O tempo, pode-se dizer isso, trata de um índice de liberdade. Enquanto a matéria é da ordem da necessidade, o tempo é da ordem do desejo. Daí todo o esforço dos sistemas de poder agenciá-lo e convertê-lo em uma forma de necessidade.

Tempo enquanto índice de liberdade.
O necessário é da mesma natureza daquilo designado por Nietzsche como sendo o "reativo". Trata-se de uma resposta. A liberdade diz respeito a uma ação, a um ato, não a uma resposta. Diz respeito a "Arché", a um princípio inaugural. O tempo é sempre aquilo que começa e começa sem causa. Representa um índice de liberdade do homem em relação ao espaço e à natureza em geral. Por isso ele é prontamente convertido para uma outra natureza, a natureza maquínica, devido ao fato de, para os homens, a liberdade esbarrar sempre na angústia. Entre a necessidade e a liberdade, vigia a angústia. Se hoje o tempo é agenciado pela tecnologia onde se cria para ele uma natureza de circuito, de dispositivos, é porque este ambiente é também o habitat do sujeito. Mas não devemos achar que este agenciamento é uma exclusividade pós-moderna. Antes já houve a religião, os mitos, etc. sempre avançando com dispositivos de naturalização do tempo.
Enquanto a imagem é da ordem da percepção, o pathos ( a afecção) é uma forma de tempo. A questão da liberdade está relacionada, desta maneira, ao regime da afecção e não onde a mídia - quando e enquanto funciona como máquina de política - a situa.
De fato, desde a introdução dos relógios e do estabelecimento de um tempo comum, coincidindo com o aparecimento da indústria tal como a conhecemos, se instaurou um "tempo vago", as "férias", um "tempo de lazer"....
O problema é saber qual a natureza deste tempo "libertado" pela máquina. Não seria, ele mesmo, maquínico? Seria o mesmo vivenciado nas realizações desejantes ou seria um tempo tornado ôco? A informática faz circular toda uma indústria do tempo. Mas esse não é, na sua natureza, o mesmo daquele retirado pela máquina ao se instaurar. Não é, portanto, o mesmo retirado que ela propõe devolver, oferecer ou restituir. Este libertado pela máquina não é o mesmo livre da atividade desejante, não é nem mesmo, apesar de ser oferecido como se fosse, o tempo enquanto representando a liberdade do homem em relação à natureza. Isso na medida dele ter sido tornado natural, da natureza da tecnologia, da natureza humana.

Distinção entre tempo vago e tempo livre.
A tecnologia cria o tempo vago. Pode-se ver sempre a maneira como a jornada de trabalho diminui nos países desenvolvidos, a maneira como o lazer vai sendo incrementado em relação ao esforço. Mas, é preciso insistir nisso, não seriam diferentes estes tempos, o tornado vago pela tecnologia e aquele vivido na interação do homem no seu esforço de libertar-se, afirmando-se sobre as necessidades? As angústias emergentes nos países tecnologizados deixam ver que, junto com esse tipo de vagar do tempo, se retira junto o próprio desejo. É o próprio sistema produzindo a vaga e já oferecendo a matéria de preenchimento. Inversamente às aparências, as condições do ócio são cada vez mais privativas. Todo tempo deve ser sumariamente preenchido. Não se deixa nenhuma condição para a atividade desejante. A pressa inserida pela quantidade de estímulos e de informação através da mídia, toma todos os espaços necessários para a realização do prazer - realização esta dependente da perda de tempo, dependente da liberdade do homem diante da necessidade. Com o avanço da tecnologia, interdita-se o perder tempo. Ora, a impossibilidade de se perder tempo significa a anulação da liberdade representada pelo tempo.
O tempo que não pode ser perdido é da ordem da necessidade. Esta já é uma vivência inerente ao universo tecnológico. A necessidade absoluta seria representada por uma equivalência perfeita nos momentos sucessivos da duração uns em relação aos outros. Ou seja, a necessidade diz respeito à ausência do espírito, à ausência do desejo. Ora, não é outro o plano de todo monopólio, não é outra a intenção dos mecanismo políticos da tecnologia.
O que vamos ver quando tratarmos do tempo a partir da clínica é, exatamente, como o sujeito evoca a necessidade, como a figura do censor é das mais queridas, a maneira pela qual sempre se atenta contra esta liberdade. Essa atração é bastante visível na medida de sempre encontrarmos seus administradores, bem como o fato de sempre podermos localizar dentro de cada indivíduo, a presença vigilante da angústia de fronteira. A temporalidade não é, assim, uma área de acesso fácil. Não é com pouco custo a se poder desfrutar da temporalidade. É preciso, antes, se romper com a corrupção das forças reativas.
Quando a tecnologia liberta o tempo, além do libertado ser apenas "o tempo tecnológico", ela já priva o sujeito de utilizá-lo, visto ser a própria tecnologia - através dos dispositivos da mídia, da propaganda - aquela a impor seus desígnios para serem realizados pelo sujeito, preenchendo, com isso, o tempo liberado. É apenas uma mudança superficial, apenas uma mudança de uma linha de montagem para outra. Quando ela liberta o sujeito da natureza, já não existe mais nenhuma subjetividade para agir livremente. Na verdade , se houvesse subjetividade não precisaria lhe ser "dada liberdade", esta é uma condição intrínseca à subjetividade. Quando oferece os elementos para o pensamento e para a decisão, já foram retirados os procedimentos para se pensar e para se decidir. Por isso Nietzsche afirma: ainda não começamos a pensar. As forças reativas e adaptativas permanecem dominantes. Cada um é já levado para a maioria e a maioria representa sempre o status qüo, as forças atávicas do sistema dominante. É por isso sempre urgente se dirigir para o tempo, convocar sua ação.
Para cada pedaço de tempo deixado vago pela tecnologia é convocada a informação para fazer o preenchimento. Ora, esse vazio representaria sempre uma ameaça para as redes de controle. No lugar da liberação da natureza se instaura uma "natureza simulada". O grande atrativo da telemática passa a ser a simulação da natureza. Veja-se o interesse sempre provocado por robôs capengando e o êxtase de quando simulam alguma atividade comum para os homens ou animais. É o próprio homem que, por ser mimético, vai se metamorfoseando em máquina. Sua forma de pensar e de agir vai se tornando maquínica, passando sua própria temporalidade a tiquetaquear.

4.3 A imagem-máquina e a imagem-tempo
O aparecimento do "cérebro" representa a metamorfose do homem em máquina. O cérebro é compreendido não só como um dispositivo maquínico mas, principalmente, enquanto o centro de um máquina.
Hubel, prêmio Nobel de 1981 por seus estudos da visão, fez a seguinte síntese sobre o cérebro:
"Há, simplesmente, neurônios de entrada e de saída: o único modo como o homem responde ao mundo exterior e influi sobre ele. E entre o sinal de entrada e o sinal de saída, há todo o resto: percepções, emoção, memória, pensamento e tudo que torna o homem humano"
O cérebro passa a ser o teatro onde se desenrola o mundo tecnológico. É nele mesmo onde se concebe a presença da temporalização e da espacialidade maquínicas. Ora, na medida dele ser concebido aos moldes maquínicos, tudo o que ele faz é feito de forma maquínica. A própria memória, hoje, já se concebe tal como a de um computador: ela armazena os elementos de um todo perceptivo em lugares distintos, ela primeiro faz uma análise ( separação ) dos elementos, deslocando cada um para áreas distintas no cérebro. A partir daí, as evocações da lembrança e o aparecimento de recordações já são sempre imagens de síntese. Quanto ao tempo, este fica contido em seu lugar próprio, sendo introduzido de acordo com arranjos intrínsecos ao funcionamento da estrutura cerebral.
O corpo é o nome de algo que responde à ação dos objetos sobre ele, na forma de uma imagem a lhe conferir uma entidade. Portanto, cada discurso irá estabelecer seu corpo ( ao mesmo tempo em que cada corpo vai gerando seu discurso) operando com ele através da realidade estabelecida pelos seus paradigmas. Desta maneira, na medida do corpo ir sendo hibridizado com a máquina, cada vez mais as intervenções são feitas através de máquinas e tomando o corpo como sendo máquina. Isso não é totalmente constrangedor, visto sempre ser o corpo algo estabelecido por um discurso e mimetizar-se com seu contexto de significações - reagindo em relação à intervenção destas significações tomando-as como efetivas e adequadas, ou seja, assumindo uma identidade entre a natureza da intervenção e sua própria natureza.
É a introdução da importância do cérebro o que vai coincidir e possibilitar a introdução do vigor da virtualidade, visto ser o cérebro, ele mesmo, uma virtualidade.

O mundo eletrônico.
O mundo eletrônico nos fascina por recolocar uma versão monádica do mundo. Ela faz da imagem um puro fluxo de entrelaçamento vertiginoso nos circuitos de comutação puntiformes, de tramas divergentes e convergentes numa dimensão planetária, seus circuitos transmutam a distância em interfaces luminosas. O instante anula o espaço.
De maneira geral a telemática não apresenta nenhuma novidade em relação aos demais sistemas monádicos - sendo os mais comuns, os religiosos. Ora, a tecnologia é apenas o aspecto religioso da ciência. A informática se constitui no culto religioso da linguagem maquínica. André Parente lembra: "Se cada sociedade tem seus tipos de máquinas, é porque elas são o correlato de expressões sociais capazes de lhes fazer nascer e delas se servir como verdadeiros órgãos da realidade nascente".
A novidade apresentada se liga, exclusivamente, a uma reversão quanto ao aspecto móvel do tempo. A imagem móvel introduz, na verdade, imagem no fluxo - no movimento. Com isso se cria a ilusão de se poder agir sobre o fluxo. De fato, a telemática cria as possibilidades de se figurar uma realidade menos inóspita e mais acolhedora aos desejos e carências produzidas pelas próprias condições de organizar-se da sociedade.
André Parente continua:
"Como a sociedade de controle pós-industrial, a civilização vive, pela primeira vez na história, uma ruptura em que o tempo tem um papel capital: a tecnologia mediática e informática, bem como as hibridizações homem-máquina provocam novos processos de memorização em escala planetária, que desterritorializam o tempo da história das culturas orais e escritas....Ao imperialismo do espaço se substituiu uma maquinação do tempo: o tempo do capital, o tempo dos transportes, o tempo da tele-visão e da tele-realidade. Todas as culturas definem as formas de um para além do real imediato, da atualidade, mas é a primeira vez na história que a realidade do aqui e agora se encontra imersa no fluxo de um tempo virtual, de imagens virtuais. A velocidade, por exemplo, é um modo de temporalizar não apenas o espaço, mas os corpos que o atravessam.".
Foi preciso a ciência médica formular um corpo maquínico e, na medida de ser o corpo aquilo a decidir sobre a percepção, com isso se estabelece um corpo pleno de máquinas do qual os corpos individuais são "peças componentes". Porém, não nos enganemos, como lembra Edmond Couchot: "Não há homem sem objetos técnicos, da mesma forma como não há homem sem linguagem." Mas, também, é preciso pôr em questão "O Homem". O Homem não diz respeito a algo que seja uma representação universal - é o imaginário europeu aquele a cunhar esta generalização de si mesmo. Não são todos os "homens" que fazem a concepção "d'O Homem".
Para a anulação do tempo enquanto intervalo, a constituição do tempo enquanto imediato - simultâneo - foi preciso criar dispositivos de imagem que "fazem viajar" - estabelecer as relações de imagens com imagens e não mais entre imagem com acontecimentos. A própria imagem já é, não só acontecimento como, principalmente, preferível ao acontecimento. Os programas de computação "dobram" a matéria sujeitando-a a modelos matemáticos. Nas imagens de síntese, o sensível só advém sensível na medida da sua sujeição ao controle de uma modelização que torna possível um cálculo estatístico.
A informática representa uma crise entre o homem-herói clássico, podendo este ser representado por Ulisses - o homem das representações, aquele que venceu as sereias sob o pretexto de serem suas evocações mera ilusão, pura quimera - não obedeciam ao padrão clássico da representação ( estavam tão fora da mulher quanto do peixe ). Ulisses é o herói cauteloso e sábio, ele tem um "olhar prudente" capaz de capturar os mecanismos produtores da ilusão.
Na vertente conflitiva à Ulisses emerge o homem-herói moderno, podendo ser representado por Proteu, aquele que é pura metamorfose, a imagem mesmo da diferença. Proteu é um mito fractal, se metamorfoseia a cada pergunta sobre quem é ele ; cada resposta nos dá a impossibilidade de uma resposta global. Proteu é fogo, é pantera, é rio.... Mas, para introduzirmos a maneira de como Proteu vem a representar o tempo, deve-se colocar a questão: quem é Proteu quando não é mais fogo e ainda não é pantera? Neste interstício puro se localiza a virtualidade criadora do tempo. Enquanto no mundo das representações, o tempo aparece estabelecido nos quadros e nos mármores, no mundo caótico e fractal, o tempo aparece intersticial e evocando um novo, mas cujo aparecimento é de tal forma perturbador, que no seu lugar se faz surgirem apenas "novidades". A produção alucinada de novidade faz barreira à apreensão do tempo, ele mesmo, enquanto introdução radical do novo.
Enquanto a fotografia aderia ao real - fixava pequenos elementos do tempo - agora, o automatismo analógico, o tratamento numérico da informação da imagem, faz um real. Cria-se uma relação biunívoca entre o real e sua imagem. A imagem se dá, então, como apresentação do real. A imagem traz a marca do real, assim, ela pode iluminar sua presença no tempo - pode permanecer, perdurar indefinidamente, visto ser no prazo, exatamente, onde o sujeito cria sua realização. A telemática suprime o prazo. Ora, esta supressão não é inócua: através da confecção do objeto do desejo pelas expensas de seu imaginário. Por isso, um homem do deserto vai impossibilitar-se a ida a algum lugar de avião: "Muito rápido para construir o lugar", diria ele. Na falta do prazo se adquire junto, já prêt-a-porter, o objeto - isso não é nada simples ou inócuo a nível desejante.
Enquanto o tempo introduz fraturas, brechas, o tempo virtual congela instantes, virtualizando o movimento. É ao não mostrar o que se dá no interstício do congelado - no espaço vazio - que se cria a ilusão de movimento virtual. Enquanto o tempo instaura um regime de dispersão, o virtual estabelece uma ordenação congelada. O meio, porém, é análogo: trata-se da introdução de pedaços (desordenados no primeiro caso e ordenados no segundo) de vazio.
A fotografia e o texto suspendem o instante ao fixarem o intervalo. As multimídias, pelo contrário, desmaterializam seu objeto, potencializando uma iconicidade gerenciada pelo tratamento numérico. Já não há mais quase distinção entre real e irreal. Não há mais um objeto concreto do qual emana a informação. Este objeto já pode ser criado às expensas das condições da informação. Trata-se sempre de números. Em termos técnicos, a informação eletrônica se resume a um ponto luminoso correndo por uma tela enquanto variam as intensidades e os valores cromáticos. Isso significa que, em cada fração de tempo, não existe propriamente uma imagem na tela, mas um único pixel, um ponto elementar de informação de luz.
A independência do real simulado gerada pela informática não traz, na sua radicalidade, nada de novo, a não ser o fato de poder ser, em tese, operada por qualquer um. Aparentemente tratar-se-ia de uma espécie de socialização do poder, daquilo antes exercido pelos sacerdotes e outras figuras de poder sobre aquilo que produzia o real e a realidade. Mas não devemos adotar uma atitude crédula e muito ingênua sobre isso. Não podemos deixar de perguntar se isso não é apenas um artifício, se o exercício do poder não permanece velado por este simulado produzido pela telemática. Não podemos confundir sensação de controle e de poder com o poder efetivo de manipulação das massas e do apossamento das condições e dos objetos de prazer - da atividade de privar os outros de seus bens, oferecendo-se no lugar um fetiche qualquer, ou ainda, pela introdução quase na raiz da constituição do objeto do prazer de uma isca.
Esta isca é a apresentação da liberdade na forma de um triunfo sobre o tempo. Apenas é isca por não se tratar efetivamente do tempo, mas quem morde a isca é efetivamente o sujeito.
A atividade da telemática é sempre a inscrição do tempo no espaço. É preciso o tempo produzir brechas na totalidade do campo de imanência para fazer aparecer o movimento. Quanto mais efetiva a incidência do tempo, quanto mais potente, tanto mais se suprime o espaço, a distância. A supressão da distância, porém, deixa sua marca nos efeitos da supressão - estes efeitos são a forma compulsiva pela qual se passa a tomar o tempo como "espaço de tempo", trazendo, assim, já no seu bojo, o luto do espaço suprimido pela simultaneidade em tempo real da informação.
Estamos falando de virtual freqüentemente. O que é isso?

Virtualidade
Jean-Louis Weisberg introduz assim o virtual:
"A operação da simulação nunca cessou: "Fazer parecer real o que não é" foi invocado para dar conta da escultura grega quando da perspectiva ( a famosa ilusão de profundidade), da pintura dita trompe-l'oeil até o apogeu do movimento barroco....Cada época teve seus simulacros....A simulação informática liga-se a esse estado não-separado entre imagem e objeto, num movimento em espiral que mobiliza uma enorme aparelhagem técnica e conceitual. Este arrombamento fora da representação, foi preparado por algumas rupturas essenciais, entre as quais se assinalam a constituição da aparência como objeto artístico na Grécia antiga, retomada em seguida pelo catolicismo como mediação até o sagrado; a codificação da perspectiva na Renascença, instituindo o espaço como lugar da experiência (técnica de descobrir técnicas) e por fim, o aperfeiçoamento da fotografia, primeira transferência totalmente automática da aparência para um suporte disponível, substituindo o olho humano. Desencadeado, desde então, o movimento de naturalização tecnológica da imagem visa obter um duplo cada vez mais conforme o seu referente, dotado das mesmas características e tornado assim substituível e experimentável.
"Obter representações melhores que as que foram colocadas aí, esvaziar a imagem para quebrar seu estatuto de dependência ontológica do objeto, tornou-se progressivamente um objetivo perseguido tanto pela arte moderna quanto por múltiplos projetos científicos.
"A aparição de um espaço ficcional autônomo como o surgimento do cinema e de seus derivados óticos eletrônicos, certamente reforçou esse movimento, constituindo, com a tela, um universo independente no qual se encarna o imaginário virtual.
"A informática, apoderando-se das funções de visualização, subverteu as regra do jogo. A razão essencial está nela ter trabalhado o elo que liga a imagem ao objeto pelos dois lados. Antes mesmo de tornar-se técnica visual, ela transformou as condições de modelização dos objetos e dos fenômenos físicos, abrindo largamente o espaço da numeralização e do cálculo dos modelos. É porque oferece um quadro adequado para a definição dos objetos (cuja CAO atual é a concretização viva) independente de toda visualização eventual, que ela renova a modalidade de exposição e de disposição desses objetos. A cadeia modelização-numeralização-programação constitui a virtualidade como espaço de e"perimentação disponível, intermediário entre o projeto e o objeto, enquanto o virtual permanecia até então prisioneiro da atividade imaginária. Ver o virtual, como nos propõe a engenharia informática da simulação, significa redefinir completamente as noções de imagem, de objeto, de espaço perceptivo."
Weisberg, porém, deixa escapar o fato da linguagem já ser, tanto enquanto imagem acústica quanto escrita, uma virtualidade. As palavras, principalmente nas línguas não pictográficas como a nossa, já fazem esta ruptura com o referente, na medida de não serem sua cópia, na medida de já serem mais apresentação do que representação. A tecnologia introduz uma série considerável de "efeitos especiais", mas não representa um avanço substancial na base, não "cria" exatamente algo de muito novo em relação àquilo que a palavra já é - a não ser espécies de efeitos "pirotécnicos" da palavra. A ação criativa da virtualidade é maior no campo do tempo e não exatamente no da representação.
A realidade virtual dramatiza a linguagem. Com a possibilidade de scanear pessoas para dentro das redes e operar com elas como unidades de informação, vamos nos aproximando da realidade proposta por Paul Klee: "Agora os objetos me percebem".

Objetos mentais.
Paul Virilo tematiza um imaginário maquínico sustentado não mais por imagens, mas por objetos mentais. A importância desta metamorfose se deve ao fato de se reconhecer que cada tomada de imagem é, simultaneamente, tomada de tempo. O próprio corpo está entre as coisas, o mundo é feito da matéria mesma do corpo. Pelas vias do scaner, o corpo aparece como um objeto entre outros, não mais como nas películas de celulóide, visto estas reproduzirem um real qualquer.
No caso da telemática, o corpo praticamente "ganha independência" de seu referente passado a atuar dentro das condições do programa. Enquanto isso, na "mente", não são mais só imagens a formatarem o real: os objetos mentais instauram um regime de temporalidade de sua exposição, nos fazendo ver, implicando uma intencionalidade antes do ato de ver através da ocupação de um tempo pelo objeto mental. Não se trata mais de pura forma como o caso da imagem, mas, também, de conteúdo enquanto tempo, de um tempo simulado decisivo. Ver é antes de tudo, prever. A visão vem de longe, a varredura perceptiva escolhe os objetos do olhar tendo como referente os objetos mentais a se imporem na percepção através de seu tempo de exposição.

O domínio público da imagem.
Paul Virilo preconiza que as atuais imagens fáticas, imagens de rede pública substituindo o antigo espaço público, antecedem as "máquinas de visão" capazes de ver, de perceber em nosso lugar - sendo, porém, um tipo de visão distinta da usual devido a mediação das máquinas. As máquinas de visão e a telepresença introduzem uma temporalidade perturbadora por anular os intervalos, suprimir o espaço e deixar ver como o real pode ser "feito". Neste sentido, cada vez mais nos movimentamos na direção dos objetos mentais e de um imaginário maquínico, visto estarmos cada vez mais acoplados a máquinas, funcionando no lugar da antiga e quase obsoleta "mente".
Félix Guattari evita um romantismo possível, a respeito de uma visão onde se poderia conceber a máquina como se fosse algo lesivo ao ser do homem. Ele diz:
"Na verdade, não tem sentido o homem querer desviar-se das máquinas, já que afinal de contas, elas não são nada mais do que formas hiperdesenvolvidas e hiperconcentradas de certos aspectos de sua própria subjetividade. Existe uma ponte em via dupla: do homem em direção à máquina e da máquina em direção ao homem...Agora é a máquina que irá ficar sob o controle da subjetividade, não de uma subjetividade humana reterritorializada, mas de uma subjetividade maquínica de um novo gênero. Algumas características da tomada de consciência dessa nova era:
"1) A mídia e as telecomunicações tendem a duplicar as antigas relações orais e escritas;
"2) As matérias-primas naturais vão se apagando aos poucos diante de uma imensidão de novos materiais fabricados por encomenda pela química;
"3) Com a temporalidade introduzida pelos microprocessadores, quantidades enormes de dados e de problemas podem ser tratados em lapsos de tempo minúsculos, de modo que as novas subjetividades maquínicas não param de adiantar-se aos desafios e aos problemas com os quais se confrontam;
"4) A engenharia biológica, por sua vez, abre caminho para uma remodelação das formas vivas que pode levar a modificações radicais das condições de vida no planeta."
É o imaginário do poder totalitário aquele a amedrontar-se contra este processo maquínico, uma vez este imaginário ameaçar uma perda de controle do poder - pela desterritorialização produzida nas subjetividades através da telemática, pelo fato dela tornar impossível localizar-se um centro de poder, bem como de reunir, reunificar os fluxos. De fato isso é vigente desde o começo da linguagem, a inconstância desta desterritorialização esta intimamente ligada com aquilo que, nos homens, sustenta a necessidade de um poder totalitário. Este poder pode, atualmente, muito bem ser assumido pela mídia.
O fato é estarmos perdendo os últimos elos com o "mundo natural" definido como sendo o lugar das coisas. Classicamente, referia-se ao ser como sendo informado da coisa pela coisa. A informação enquanto resultado de uma potência das coisas está em crise. Como escreve Adorno: "O surgimento de um não-ente como se ele fosse, eis o que suscita a questão da verdade da arte". Isso não é mais privilégio da arte, disseminou-se pela tecnologia. De alguma forma vão se misturando os fundamentos das coisas com o fundamento do intelecto. A tradicional diferença entre as palavras e as coisas fica cada vez menos sustentável.

A introdução do tempo e a crise das representações.
O tempo se introduz entre os figurantes da ruptura com as representações. De fato, o anunciado como sendo a "crise das representações" com desdobramentos generalizados se deve a tomada de posição do tempo enquanto questão: "O tempo é, por natureza, a conspiração da troca desigual ou a impossibilidade da equivalência".
Ele é evocado enquanto representante do não-todo, daquilo cuja presença anula o equivalente. Por isso sempre figura enquanto um figurante terrível para as consciências igualitárias. É, ele, a seduzir para o rompimento das possibilidades de equivalência. O tempo vai sempre "fazer a diferença" quanto às imagens. Ele vai apontar a distinção entre a imagem-lembrança, a imagem-percepção e a imagem-sonho, por exemplo. E como ele o faz?
Por estabelecer entre elas uma não equivalência. Existem desnivelamentos brutais entre elas responsáveis pelas ilusões e desilusões. Aparece na figura da cisão; por isso, a própria afecção de si e por si serve para fazer ver a presença do tempo. A afecção diz da presença de uma cisão. Quando a esta cisão se aplica uma desigualdade, ela se apresenta no regime do tempo, fazendo-se sentir.
"O tempo é a poderosa Vida não orgânica que encerra o mundo".
Já havíamos feito a construção do tempo como um oceano de onde advém a matéria. Agora o vemos nesta condição de uma: "Vida não orgânica encerrando o mundo". Como a vida sempre foi sinônimo de orgânico, de organismo, uma vida não orgânica nos escapa enquanto vida. Deste ponto já se pode localizar o tempo como determinante para o movimento e não o contrário, como tende-se a pensar comumente. Por isso, tempo é a afecção e, afecção, é uma forma de Vida, bem como detém a exclusividade sobre o sentido de subjetividade. A imagem do tempo enquanto cristal é boa: "Algo se forma no interior do cristal, que conseguirá sair pela rachadura e desabrochar livremente....Nascemos dentro de um cristal, mas o cristal só retém a morte, a vida deve sair dele, depois de ser ensaiada."
Sair do cristal do tempo é, exatamente, passar a "ter um tempo", tornar-se não só portador de uma finalidade, como, também, das condições de perder tempo - condições estas próprias ao prazer e decisivas para a "procura do tempo perdido" sobre a qual se sustenta a atividade desejante. A morte vivida pela subjetividade fora do cristal não é equivalente àquela deixada no cristal. Nem o tempo passado a ser vivido na forma da subjetividade vem a ser equivalente ao cristal. Nem o tempo reencontrado é o tempo perdido, na medida deste reencontro ser sempre sinal do tardio, do "tarde demais". Por isso a arte vai ocupar o lugar da queixa a respeito disso - a arte procura compensar o não equivalente. Ora, mas o próprio homem já é a arte na sua essência.

O tempo e a "feitura" da diferença.
Graças ao tempo, figurado nas faces do cristal, nas dobras de um lençol ou no rebater da massa de um padeiro, instauram-se as condições do falso. Toda a possibilidade do sonho, da arte, da virtualidade, enfim, da própria linguagem, paga seu tributo ao tempo. É ele a potência do falso a instaurar a condição de qualquer verídico possível. Poder fazer concentrar infinitamente o passado no sentido do presente, desatualizar o presente em espécie de "pontas de presente desatualizadas" criando a dúvida, o sonho, o delírio e a fantasia, convidando o futuro para, assim, poder tornar o presente uma lembrança, imortalizando-o e imobilizando-o. Ele criará as possibilidades de evocar o não presente, também instaurará a não equivalência, constituindo, desde o início, a potência do falso.
A potência do falso aponta para uma multiplicidade irredutível não se podendo mais falar de uma falsidade localizável. É preciso, isso sim, criar a idéia de um não-falso para fazer acontecer uma certa sedução, uma certa estética do discurso e, principalmente, possibilitando o julgamento - atividade esta onde a consciência funda suas raízes. Ora, o não-falso é uma imagem imobilizada e sabemos de como se trata do projeto de Sade imobilizar tudo aquilo que se mexe. Por isso, Nietzsche diz que "o homem verídico acaba compreendendo que nunca deixou de mentir". Também Artaud afirma ser a verdade uma questão de crueldade: "O movimento fundamental descentrado torna-se movimento falso e o tempo fundamentalmente libertado torna-se potência do falso, que agora se efetua no movimento em falso".
Sem o tempo não poderia haver o falso, sem o falso não haveria modelos nem a verdade poderia constituir-se enquanto criação, enquanto novidade. Sem o tempo no lugar do falso talvez só pudessem existir cópias, ou seja, os acontecimentos e os seres desprovidos de potência.

Tempo, diferença e violência.
Enquanto a verdade é uma questão de crueldade, a imagem (não a penas a visual mas, também, a acústica, a motora, etc) é uma questão de violência. Não se trata de existirem imagens mais e outras menos violentas. A imagem já é violência por inserir-se praticamente sem barreiras no sistema anímico - através do período - forçando-o a reagir através da produção de pensamento e de ação ( não que pensar já não seja agir).
Através do pensamento, o sistema anímico protege-se da violência da imagem transformando-a em conceito. Ora, o conceito é a imagem com um tempo de uma natureza não violenta, é um pretendente da eternidade e da generalidade, o conceito se pretende o todo. O conceito é o "bom pretendente". É por chegar sempre tarde, já como reação na forma de um "impoder", que o pensamento se vê forçado a pensar e para isso, antes, é preciso conceber um todo em relação ao qual pensa. Esse todo é mais seu objetivo do que alquilo que virá a pensar, visto ser, este todo, uma forma de sanar a ferida produzida pela invasão da imagem-tempo, trazendo desnivelamentos e deixando ver a brecha perigosa com os corpos. A presença do tempo faz com que a aproximação com o mundo só se possa dar através da crença - é preciso de razões para crer neste mundo.
Em que circunstâncias, sob quais condições se poderia romper com o sensório-motor? Sempre se privilegiou uma leitura "bruta" da imagem. Esta, por sua vez, sempre evocou movimentos e afecções. Como ela poderia evocar dispositivos mais sensíveis? Como poderia suscitar algum tipo de consciência sob suas condições de aparecimento, sobre aquilo que ela faz brotar e aquilo que ela vela?

4.4 O tempo nos instrumentos da mídia

A sedução da mídia.
Os instrumentos dos meios de comunicação insinuam-se sedutoramente, sugerindo a oferta de tempo em vários níveis. Ora, aqui como em qualquer outra situação, a fórmula da sedução é sempre a de dizer o desejo do outro de uma forma invertida, ou seja, apresentar ao outro seu desejo vindo de fora. Também é preciso complementar a fórmula, no sentido desse "objeto" oferecido apenas insinuar-se, sem deixar de fazer aparecer na sua sombra, exatamente a sua ausência. Isso na medida do desejo ser uma aspiração ambígua, de forma a não se atrair efetivamente por algo que fosse pura presença. Por isso, o feminino sempre representou a sedução por excelência. Como se realiza esta proposta?
O rádio representa o fascínio sempre presente no campo dos seres, relativo a um "barulho harmônico do real". A voz tornada desconectada de seu enunciador, desligada do corpo sempre foi fascinante. O corpo introduz tanto uma duração quanto um parâmetro de realidade para a voz. Sem esta conexão, a voz atinge o desejo nas suas paragens mais íntimas. Disso sempre nos falaram a criação das divindades - a aparecerem regularmente enquanto vozes. Nos falam, também, as alucinações acústicas. A presença do rádio, ao mesmo tempo introduzindo ritmo (tempo, harmonia) na realidade e retirando a co-propriedade insipiente e inadequada, faz acontecer a presença dos anseios mais íntimos. Vem a representar a própria voz dos ancestrais. O som arcaico e atávico do princípio, o "Verbo", o "Lógos". Insinua-se como um tempo momentâneo como a própria fala. É na sua natureza mesma do momentâneo, desde onde ele evoca todo seu poder, toda sua potência de ser desejado - exatamente por estar já sempre terminando, que é convocado novamente. As ondas sonoras substituem o incômodo barulho dos corpos, preenchem o insólito silêncio das coisas e das incertezas. Introduz um tempo no cotidiano não só no sentido do tempo-rítmo, como introduzindo informações, fazendo divisões no período, criando meios de deixar ver no dia, uma fragmentação animada.
Não é preciso mais criar vozes do além, nem é necessário alucinar para fazer surgir um significante forcluido do desejo - já temos nossas ondas sonoras a nos acompanharem por onde desejamos. Não precisamos mais da insólita e eventual inoportuna presença dos corpos de onde provém os sons - os botões de ligar e desligar resolvem este problema para nós. Mas, para poder convocar as potências do desejo, é preciso fazer presente o fato deste dispositivo tratar de um simulacro. É preciso a presença de uma sombra onde ele deixe ver o fato dele mesmo privar o que oferece: o som sensual do real e a voz verídica dos ancestrais.

A mídia enquanto religião moderna.
A imprensa torna parte sistemática do cotidiano, a instância da letra. A letra sempre representou um elemento litúrgico, sempre tratou de um calcamento do tempo. Está inevitavelmente ligada ao sentido da história e da verdade enquanto aquilo que permanece. A imprensa nos seduz com a idéia da verdade poder chegar até nós com o mínimo de empenho e de participação. Ela sugere uma verdade da qual o sujeito não teve qualquer participação. Trata-se de uma apresentação da sedutora alienação. Existe toda uma potência de tempo implicada na imprensa. Essa marca deixada pela letra vem a representar o próprio acontecimento. A informação im-pressa im-pressiona, tanto enquanto prensa, quanto enquanto pressa - há uma pressa, uma urgência convocada pela letra no sentido de ser preenchida e ter atualizada a verdade que supõe anunciar. De maneira geral as sociedades escritas são mais apressadas e tem uma urgência maior de desenvolvimento, como se o sinal impresso funcionasse como um dique barrando o fluxo para e do passado, como se marcasse sempre um passo enquanto referencial para o próximo. Ao instaurar uma memória exterior, ela funda defato um tipo de memória artificial - já está ai a inteligência artificial presente nos livros. Esta memória, como qualquer memória, tanto convoca o devir quanto interdita a repetição. A imprensa faz semblante para a verdade e para o fato.
O tempo inerente aos meios impressos é o que faz mais sentido para nossa vivência, visto sermos sujeitos de uma sociedade escrita. Mesmo quando falamos, o fazemos dentro de uma gramática e de uma ordenação dos códigos da escrita. Da mesma maneira, mesmo quando vivemos outras temporalidades, é na perspectiva deste tempo imprimido e de uma historicidade linear que o posicionamos. São os meios de comunicação impressos aqueles a convocar pelo poder litúrgico da letra, pela evocação imaginária portada por ela como se fosse o fetiche fundamental, aquilo que é preciso investir para continuar valendo as proteções contra o sentimento de inermidade, desamparo e orfandade radical do homem no mundo. É sempre urgente, desta maneira, não só obedecer à letra como tomá-la como sendo da mesma ordem, tanto do fato quanto da verdade. A impressa impõe um tempo a ser realizado com urgência, bem como ordena os fatos e os desejos dentro de uma linearidade. Ora, é por já evidenciar com sua afirmação a negação dos fatos que a escrita seduz. É por fazer surgir um tempo tal como se desejaria que ele fosse, que ela retira seu maior encantamento.
Os meios televisivos reunem vários elementos de potência para fazer buraco, criar vazios a imantarem o espírito, seduzindo-o. A imagem-movimento apresentada tanto pelo cinema quanto pela televisão, cria um vazio praticamente irresistível ao desejo. São as próprias imagens do desejo a serem apresentadas em um espaço plano. Ora, o espaço plano sempre é mais sedutor que o de três ou de quatro dimensões. Sem profundidade e sugerindo uma atemporalidade, se retira da imagem todo o incômodo daquilo que a ela faz limite. Cada um pode, assim, colocar-se na imagem, imprimir ao seu corpo a imagem motora sugerida pela imagem-movimento. A realidade é sugerida nos tubos catódicos. A televisão se alça no lugar de uma hiper-realidade, ocupando o antigo lugar dos oráculos e altares. Misturando realidade e fantasia no mesmo espaço, ela cria uma situação híbrida cada vez mais, deixando ver a sua indistinção.

O movimento da supressão do tempo pelo imediato.
Tanto o cinema quanto a televisão sugerem algo do mesmo universo da maneira como a droga é vivida entre nós. Não seria possível não existir este sentido da droga em uma realidade onde a fantasia aparece no mesmo plano da realidade e onde o tempo aparece na forma do imediato. Trata-se da mídia, cuja característica é suprimir o "meio". O meio é o tempo ao longo do qual se criam as condições do acontecimento acontecer e poder ser acolhido internamente. Este meio é a interação entre coisas e corpo na preparação do acontecimento. Sem ele o acontecimento não é absorvido, não se passam as vivências de prazer e sobrevêm sempre a angústia e a ansiedade. A imediatez das realizações e das apresentações provocadas neste tempo imediato, principalmente por parte da televisão, produzem um tipo de sujeito e um tipo de realidade muito específico. Não se trata de dizer de um pior ou de um melhor, mas de uma diferença sobre a qual em grande parte se sustenta a queixa na clínica.
O objeto da supressão do "ao vivo" é, exatamente, o tempo. Já está presente ali, a concepção futurística de se provocar dobras no espaço ( hiper-espaço) através de uma intervenção no tempo. Apenas de uma forma imaginária. Não é por outro motivo, a não ser os efeitos da supressão e da negativização da função do tempo, que se procura amalgamar desejo com realidade. Inclusive, se desviou da aparente direção no sentido das conquistas espaciais para as conquistas da telemática - provevelmente devido ao fato das primeiras implicarem a presença maior do tempo. Demorar representa feridas para um tipo de expectativa deste tipo de sujeito a tramar contra o tempo, tomando-o sempre na função de adversário ou de contra-tempo.

4.5 O tempo na informação e na ficção

A máquina e a indústria fazendo a diferença com a ficção.
Tudo indica ter sido a máquina, ela mesma, aquela a ter provocado uma diferença entre informação e ficção, entre fantasia e realidade e vem a ser, ela própria, aquela a confundir novamente estas posições.
O aparecimento da indústria, o exercício da razão, o plano da ciência se instauram no sentido de distinguir o plano do imaginário do plano da realidade. Vai ser ai mesmo onde se estabelecerá a loucura, a desrazão, a insânia, no sentido de uma entidade patológica, crivada pelo sinal de uma negatividade. O louco era aquele a ainda continuar misturando os planos, mesmo depois do estabelecimento da diferença feita pela razão. Razão e maquínico são gêmeos.
Enquanto no plano da informação existe a presença de um tempo de trânsito, uma demora, no plano da ficção existe um imediato. O tempo instantâneo onde o desejo já se apresenta realizado, onde o discurso já coincide com a realidade, é deslocado para o plano da ficção. Até então não eram tão nítidas estas distinções, o sonho não tinha sido retirado do cotidiano. É o aparecimento das máquinas que vai fazer esta retirada. Atualmente são as próprias máquinas - através da realidade virtual, da telepresença, da interatividade etc. - aquilo a perfazer o amalgamento desta fronteira, mas de uma maneira diferente.

Tempo ficcional.
O tempo ficcional é adequado ao desejo, obedece aos parâmetros requeridos para a realização do projeto da obra. Primeiro vem a idéia, depois adequa-se o tempo. Na ficção o interesse se liga a arte de bem dizer e não a uma referência ao concreto. Lewis Carroll, grande mestre da ficção mostra algo sobre o tempo na ficção:
"__ É doce de muito boa qualidade, afirmou a Rainha.
___Bom, hoje, pelo menos, não estou querendo.
___ Hoje você não poderia ter, nem pelo menos nem pelo mais - disse a Rainha. - A regra é: doce amanhã e doce ontem - e nunca doce hoje.
___ Algumas vezes tem de ser "doce hoje"- objetou Alice.
___ Não, não pode - disse a Rainha - Tem de ser sempre doce todos os outros dias: ora, o dia de hoje não é outro dia qualquer, como você sabe.
___ Não estou entendendo nada - disse Alice. _ Está horrivelmente confusa.
___ É o resultado de se viver para trás - disse a Rainha com benevolência - Sempre se confunde um pouco a princípio...
___ Viver para trás! - repetiu Alice com assombro. Nunca ouvi falar disso antes!
___ ....mas há uma grande vantagem nisso, pois a memória pode funcionar nos dois sentidos.
___ Quanto à minha memória, só funciona num sentido - observou Alice - Só posso me lembrar de coisas que aconteceram antes.
___ É uma pobre espécie de memória, essa, que só funciona para trás - observou a Rainha.
___ E a senhora, de que tipo de coisa se lembra? arriscou-se Alice a perguntar.
___ Oh, coisas que aconteceram daqui a quinze dias - respondeu descuidadamente a Rainha. - Por exemplo, agora - continuou enquanto fixava um grande pedaço de emplastro no dedo - há o caso do Mensageiro do Rei. Ele está na prisão, será castigado; o julgamento não começará antes de quarta-feira; e o crime, é claro, só virá no fim.
___ Vamos dizer que ele não cometa nunca o crime. E então? - sugeriu Alice.
___ Então seria ainda melhor, não seria? - disse a Rainha, enquanto fixava o emplastro no dedo com a fita."
Podemos ver através de Lewis Carroll a liberdade da ficção na colocação do tempo. A Rainha fala da ficção e Alice representa a informação. Na ficção, o futuro já pode estar logicamente definido antes, trata-se de um deslocamento do presente. As possibilidades de alteração são irrelevantes desde o ponto de vista onde são formulados, visto que este ponto de vista - o presente - nunca é. Mais adiante, Lewis Carroll continua:
"__ Sete anos e seis meses! Repetiu Humpty Dumpty pensativamente. - Uma idade bastante incômoda. Se tivesse pedido o meu conselho, eu diria: "Pare nos sete". Mas agora é tarde demais.
___ Nunca peço conselhos sobre o meu crescimento - disse Alice indignada.
___ Orgulhosa demais?
___ Tal insinuação indignou Alice mais ainda. - Quero dizer - explicou - que uma pessoa não pode deixar de ficar mais velha.
___ Uma não pode, talvez - disse Humpty Dumpty - mas duas podem. Com assistência adequada, você poderia ter parado nos sete."
Na clinica anímica é muito comum esta dimensão ficcional do tempo. Onde com a assistência de alguém da família, geralmente a mãe ou através da potências do inconsciente, faz-se o tempo parar. Com isso vamos ver a maneira pela qual tanto a ficção quanto a informação constituem a concepção de tempo inerente ao sujeito. São dispositivos secundários aqueles a distinguir um do outro. Em "Alice no país da maravilhas", Lewis Carroll vai ainda dizer:
"__ Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu conheço - disse o Chapeleiro - não falaria em gastá-lo como se ele fosse uma coisa. Ele é alguém.
___ Não sei o que você quer dizer - respondeu Alice.
___ Claro que não sabe - disse o Chapeleiro, inclinando a cabeça para trás com desdém. - Diria mesmo que você jamais falou com o Tempo!
___ Talvez não - replicou Alice cautelosamente - mas sei que tenho de marcar o tempo quando estudo música.
___ Ah! Olhe aí o motivo! - disse o Chapeleiro. - O Tempo não suporta ser marcado como se fosse gado. Mas, se você vivesse com ele em boas pazes, ele faria qualquer coisa que você quisesse com o relógio. Por exemplo: vamos dizer que fossem nove horas da manhã, que é hora de estudar. Você teria apenas que insinuar alguma coisa no ouvido do Tempo e o ponteiro correria num piscar de olhos: uma hora e meia, hora do almoço.
( "Gostaria que fosse mesmo" - disse para si mesma, num sussurro, a Lebre de Março.)
___ Isso seria formidável, com certeza - disse Alice, pensativamente, _ Mas então ... talvez eu não estivesse com fome ainda, entende?
___ A princípio não, talvez - disse o Chapeleiro - mas você poderia ficar em uma e meia o tempo que quisesse.
___ É assim que você faz? Perguntou Alice.
___ O Chapeleiro balançou a cabeça negativamente, com tristeza. - Não, eu não - replicou - Eu e o Tempo tivemos uma briga em março passado.... Foi quando estava cantando uma canção e a Rainha vociferou: Ele está aqui matando o tempo! Cortem-lhe a cabeça!
__ Mas que selvajeria, exclamou Alice.
__ E desde então - disse o Chapeleiro em tom melancólico - ele não faz mais nada que eu peço. É sempre seis horas da tarde.
Uma idéia luminosa ocorreu a Alice. - É por isso que tem tantas xícaras de chá na mesa?
__ Sim, é por isso - suspirou o Chapeleiro. - Está sempre na hora do chá e não temos tempo para lavar a louça entre um chá e outro."
A ficção não tem a liberdade de criar qualquer coisa. Trata-se dela deixar ver as condições de operação do desejo, de planos fora do consciente, mas de maneira alguma menos determinantes sobre os acontecimentos do sujeito.
Não se pode ser ingênuo a ponto de achar que no passado haviam as condições de "viver o tempo", como se a função existencial do "perder tempo" fosse algo "natural" e tivesse indo se perdendo com a civilização. Não, essa condição, é sempre uma conquista.

Tempo informático
O investimento da informação é a antiga concepção aristotélica da verdade como sendo "a coincidência entre discurso e fato". Mas estes dois planos, para coincidirem, teriam que excluir o tempo. A informática vem tratar desta exclusão. Ora, não se consegue exatamente o pretendido: em vez de atingir finalmente a verdade, os limites entre ficção e realidade se tornam novamente embaralhados - pelos dispositivos virtuais e de multimídia. Se o tempo é o pai da verdade, como dizia-se na Grécia, esta verdade não era a aristotélica.
A ficção deixou de representar a verdade quando esta passou a ser vinculada à objetividade das coisas e não mais aos efeitos vivenciais. As máquinas, se por um lado retomam a antiga conecção entre ficção e realidade, elas já o fazem mantendo o afastamento do homem de suas vivências íntimas. A mediação maquínica instaura um novo tipo de abordagem daquilo mostrado pela ficção. Sem dúvida, ela insere um tipo de temporalidade semelhante ao da ficção, mas mediado pela objetividade dos aparelhos maquínicos. Existe sempre a presença radical dos instrumentos.
Informar significa "colocar em uma forma"- tanto no sentido de tornar possível a apreensão, quanto no sentido de impor uma forma própria a conteúdos diferenciais quando não "informados". A presença da informação já altera o seu objeto, tanto quanto os instrumentos de medição e de aferimento já alteram as partículas subatômicas que pretendem medir.
Informar é temporalizar de uma forma específica. Fixar em um tempo, historicizar. É também criar um tempo de repetição - tal como o do Chapeleiro na história de Alice. Diferente, vamos ver isso, do tempo mítico do eterno retorno: sempre a retornar, mas nunca a se repetir, este da repetição pretende fixar elementos que sempre ao serem evocados repitam-se da mesma maneira. Para isso é fundamental a presença da máquina, uma vez ser a memória humana um dispositivo a fazer retornar seus elementos sempre diferentes. Para a memória, sempre que algo volta o faz de maneira diferente. Isso era o grande mérito da memória para Sócrates e a base de sua crítica a escrita. Porém, esse tipo de memória repetitiva é a base da idéia de desenvolvimento. Para se "desenvolver" é preciso marcar posições, fincar unidades de tempo, de maneira a evitar recuos e ciclos, evitar haver-se com as mesmas questões - como nos ambientes onde o eterno retorno é mais insipiente - mas sim introduzir a concepção do avanço, do melhor e do mais evoluído.
A informática possibilita um avanço sem precedentes e sem fronteiras dentro do seu tipo de território. Mas ainda não se esclareceu qual o tipo deste desenvolvimento, nem o que involui quando ele evolui.
Vamos dizer que enquanto a informação tem um tempo arborescente, coeso, a ficção nos apresenta um tempo rizomático, nômade. A ficção está em uma posição difícil para o progresso. Tal como o nômade está em uma posição difícil para os instrumentos do estado, para a formação do estado. Na ficção, o tempo escorre em muitas direções, com muitos sentidos, sem deixar possibilidades de uma conceituação precisa. Trata-se de uma forma ativa de realizar-se, deslocando-se sem plano de ação. Deleuze e Guattari usam o conceito de "máquina de guerra" para definir os movimentos nômades em oposição aos "instrumentos de captura" das sociedades sedimentarias. O saber sedimentar - nomeando-se de "desenvolvido" ou "evoluído" por deixar ver as camadas sedimentares de sua natureza - é compatível com a idéia que temos de progresso. Não é o caso do saber nômade. Ora, nada mais característico de um "instrumento de captura" do que a telemática.
Os instrumentos de captura aprisionam seus objetos, congela-os e os imobiliza, impondo sobre eles uma fôrma própria para torná-los instrumentos de políticas diversas, vinculadas a mensagem informativa. Para as máquinas de guerra o tempo afirma-se, mas para os instrumentos de captura o tempo deve compor tanto a fôrma de normatização dos objetos como, principalmente, deve ser cada vez mais eliminado enquanto "meio".

4.6 A comunicação e o amor
A mesma proporção, a mesma contradição entre ciência e paixão existe entre comunicação e amor. Nenhum dos dois pode se dar sem ter como campo de fundo o outro opondo-se para convocar.
Comunicação diz a "ação em comum", de forma a ser vivida igualmente para quem está dentro de seu campo interativo. É inversamente proporcional a quantidade de informação, requer a presença do tempo e só pode dar-se pelo reconhecimento tanto da diferença ( do outro) quanto de uma identidade comum.
Um paradigma clássico da comunicação é: tudo é comunicação, não é possível não comunicar. Isso sob o ponto de vista do receptor, daquele a interpretar os sinais como elementos de comunicação, como intenção de fazer ou deixar ver. Apesar disso, devido ao primeiro paradigma, a quantidade de informação no nosso contexto cria barreiras para a comunicação. De tal maneira que, mesmo com os meios sofisticados de interagir, o sentimento social é o de isolamento. Do ponto de vista daquele que comunica o paradigma se inverte: não existe comunicação. Apenas o afeto, o amor ou o interesse, vêm constituir o campo de possibilidades para a impressão da comunicação.
A comunicação e o amor repousam nas mesmas bases, no mesmo equívoco. Estas bases são bem definidas por Lacan quando diz: amar é dar o que não se tem. Para a comunicação vale o mesmo enunciado.

Comunicação enquanto desejo.
Comunicar não é, apenas, informar. A rigor, teríamos de dizer da mídia como sendo "meios de informação" e não "meios de comunicação". Quanto a comunicar, é preciso mais que meios: é preciso o desejo. Não se trata de uma necessidade ou de uma urgência, trata-se de uma aptidão a incluir uma diferença, interessar-se pela alteridade.
Todo o problema já começa pelo fato de nossa ideologia, tanto através da ciência quanto através da religião, agir no sentido de transformar a alteridade em "outro". Outro é uma instância passiva, uma sombra de mim mesmo. Alteridade significa uma diferença - mesmo toda diferença tendo sua intenção de identidade. Intenção de identidade, porém, é diferente de uma instância passiva de mim mesmo. Somos sempre levados a tomar os outros tendo como referenciais nós mesmos. Neste sentido, o outro é sempre uma instância hierarquizada em relação a nós. As condições do comunicar-se já começam a se arruinar desde o início.
Quanto à alteridade, somos convocados para uma situação radical: de paixão ou de guerra. As condições da comunicação surgem devido a desvios e relativizações destas vivências. Há uma moção na presença da alteridade que é neutralizada em se tratando da presença do outro. Quando a vivência da alteridade é mantida, pode surgir o desejo de se comunicar. Uma vez existindo o desejo, ele providenciará os meios; mas a existência dos meios de forma alguma pode fazer surgir o desejo - pode apenas fazer surgir interesse, vontade, etc. Os dispositivos de saber, principalmente os discursos sociais, antropológicos e psicológicos (relativos a diferenças dentro do mesmo contexto), são instrumentos de transformação sistemáticas de alteridades possíveis em outros.
Esta domesticação das diferenças, esta vulgarização da alteridade, cria uma espécie de "grande Eu", um verdadeiro "Eu universal", de tal forma a se poder ter a ilusão de ter todas diferenças a mão. Estaria tudo já codificado e adaptado ao meu conhecimento, "entregue a domicilio". Existem sempre dispositivos para evitar o contato com a alteridade, mesmo quando em um contexto diferente. A própria linguagem e a universalização de "postos avançados" da cultura "ocidental", tornam possível o deslocar dentro de espécies de "escafandros" sociais. O avanço dos conceitos e da intensificação do sentido de indivíduo, tornam o Eu e o corpo próprio elementos de prevenção contra a alteridade - sustentam uma atividade sistemática de produção de outros.

O colonialismo da informação.
O colonialismo e as grandes navegações constituíram um mundo repleto de outros. Porém, o tipo de ideologia imperante sempre impediu a comunicação. A cultura européia sempre se recusou ao diálogo. Os dispositivos imperantes ainda hoje na mídia são da mesma natureza daqueles subjacentes às caravelas e ao colonialismo. Se isso é feito pela via das redes de informação impondo sua fôrma e fazendo existir uma linguagem universal, pouco importa. O fato é a exclusão das condições para o desejo que sustenta as bases da comunicação. Mas a comunicação não está de todo excluída, caso contrário não estaríamos levantando estas questões.
Ela existe enquanto horizonte de possibilidades. Existe enquanto vazio. Não se trata de um vazio puramente negativo. Existe toda uma positividade neste vazio convocando. Esta convocação faz surgir os "meios" sobre os quais se acentam nossa sociedade. A forma mais inaugural de responder a este vazio é, porém, exatamente, a vivência designada por nós de amor.
O amor vem responder ao vazio da comunicação. Na sua base existe tanto a presença de um "si mesmo" que faz barreira a qualquer alteridade possível - trata-se de um sistema interpretativo que codifica tudo do objeto sob o ponto de vista do eu - quanto uma alteridade, cuja presença é sentida na forma de uma excitação cuja impossibilidade de resposta leva ao eu uma ameaça de pletora. O amor diz de como o vazio da comunicação produz uma cisão no eu, colocando-o em uma espécie de interação consigo mesmo, sendo que, em algumas circunstâncias, uma das "partes do eu" passa a ser ocupada por um outro.
Desde seu inicio, o amor é tal como o conhecemos enquanto amor romântico. Tal como fomos introduzidos em sua vivência pelos trovadores. Da maneira exemplar como Cyrano de Belgerac nô-lo apresenta e da forma como os cavaleiros medievais o faziam surgir ligados à sua "dama" - tal como a caricatura apresentada por Don Quixote, em relação à sua Dulcinéia del Toboso,o tornam evidente. O fato é que o amor não só é uma questão de discurso como, principalmente, é a sustentação de qualquer discurso possível enquanto tendo um destinatário.

Tempo, amor e comunicação.
O tempo aparece sempre contra o amor, mas favorável à comunicação. Se é preciso tempo para amar, o sentido do amor surge, exatamente, como efeito do reconhecimento de se estar, de alguma forma, privado do tempo necessário para a comunicação. Mas que tempo é esse? O amor quer "todo um tempo", como se o tempo pudesse ser Todo e a própria existência de um outro amado já não fosse sinal da falta de um Todo, a impossibilidade de Tudo. A comunicação se refere às possibilidades de uma "comunhão", situação apenas concebida, como o amor, a nível de uma possibilidade discursiva, visto a presença no homem, de um componente estranho - o inconsciente - tornar, na prática, inviável esta comunhão. Seria necessário se saber, no mínimo, o que comunicamos e é exatamente neste ponto onde temos mais dúvidas.
O tempo amoroso é um tempo preenchido. Trata-se, portanto, do preenchimento do vazio deixado pela barreira da comunicação. Sócrates trata bem deste tema no diálogo de Platão, "O banquete". "Amor," diz ele quando lhe convocam a definir o amor, "mas amor a que?" Veja-se como o grego ainda não tinha se tornado medieval ou romântico. Sócrates não se refere a um "amor platônico", ele associa a presença do sentimento amoroso a um objeto. Este objeto é, exatamente, a diferença. Tal como ele deixará ver ao longo de sua apresentação. Mas, esse objeto só surge por ser convocado por um vazio, por uma carência fundamental, mítica. "Só se deseja aquilo que não se tem." enuncia Sócrates. O amor é exatamente aquilo a fazer com que tenhamos e não tenhamos, de tal forma a se poder desejar e se satisfazer sem se poder decidir por nenhum dos dois, essencialmente. Filho de Pênia ( Necessidade, penúria, carência) com Póros ( Recurso), ele está sempre tanto em uma condição quanto em outra. Imortal e mortal, ele tanto morre quanto renasce. Sócrates situa a alteridade desde o início, na medida de em que se põe a falar do amor contando o que lhe dissera Diotima, uma mulher. Com isso, ele não só diz ser o amor uma questão de diferença, como, também, instaura já de inicio, a maneira como no amor o eu fala o discurso do outro. Mais básico ainda, tratam-se sempre de dizeres.
O amor, se for possível distingui-lo da paixão e de outras afecções semelhantes, trata de uma convocação às falas. Disso fala, também, Don Juan. A maneira como o ato de dizer é basicamente o ato de prometer. Isso que o prometer representa convoca aquilo que o amor ver representar. E o que é convocado?
Vamos fazer a hipótese de ser um tempo radicalmente faltoso. Um tempo que já deveria ter sido, por isso radicalmente já falta. A própria presença do sentimento amoroso já é o dar-se conta do tempo ter sido perdido, a falta está ai. Esta falta é sempre uma das formas da culpalidade. O sentimento amoroso é relativo a uma certa vivência simbólica, onde a culpalidade exerce um papel primordial. Tanto que é comum hoje se atribuir uma patologia de falta de amor a certas pessoas onde falta a presença da culpa, onde não existe dívida simbólica. Nestes casos, também, não está presente o desejo de comunicação como horizonte de apelo à diferença.
Isso vai nos levando para uma direção problemática entre informação e amor. Se o amor opõe-se à comunicação para constituir uma estrutura vivencial, se a informação, também, aparece contrapondo-se à comunicação, então existe uma ligação direta entre informação e amor. De fato, surgem mais ou menos no mesmo contexto. A prosa amorosa e os parâmetros da importância informativa aparecem mais ou menos simultaneamente. O amor não deixa de ser um "aparelho de captura", uma fantástica atividade de transformar alteridade em outro. Isso tal como o experenciamos, a partir da vivência do amor cortês.
Dizer que a comunicação é conseqüência do desejo de comunicar, não significa ter de se colocar no mesmo plano desejo e amor. Desejo implica um tipo de tempo completamente diferente do tempo amoroso. O desejo deseja desejar, enquanto o amor pretende o objeto. O tempo do desejo é o devir, o tempo amoroso é o agora: o sentido do amor se dá já e só no estar amando.
Contradição e complemento. De fato só sendo um por ser o outro. Constituindo uma unidade, ao mesmo tempo em que interditam qualquer unidade possível, o amor e a comunicação aparecem no horizonte do nosso discurso como bons pretendentes, sob a imagem sedutora de um bem. O problema é a inexistência de um bem, cuja existência não evoque uma privação.
Existe em todo anseio de comunicação, em todo desejo, uma problemática amorosa. Tanto quanto existe em toda vivência amorosa, em todo enunciado amoroso, uma problemática com o desejo e com a comunicação. O amor se vale de um crivo, uma falha qualquer, na comunicação. Trata-se, sempre, de um mal entendido. Nada menos interessante do que um "amor esclarecido". De fato, dificilmente um amor resiste ao esclarecimento, diz respeito a vivências secretas, condições obscuras, vivências que só existem substituindo certas palavras - mesmo que outras palavras venham tomar o lugar destas não enunciadas, não conscientes.
Por isso o amor resiste, também, ao tempo. Tal como a arte o faz. Mas não é apenas pela sua pretensão de eternidade, como no caso da arte, que ele é feito de forma a almejar esta duração. É por fazer suplência a uma perda que não pode ser sentida a não ser a duras custas. Trata-se, exatamente, da perda do tempo onde o desejo se realizaria. Trata-se do reconhecimento de um "tarde demais", de um "tempo perdido" proustiano.
O objeto amoroso é "cheio" de tempo. O amor faz um mundo cheio de tempo, cheio de disponibilidade. Como o sujeito apresenta-se nas mesmas raias do seu objeto, o sujeito amoroso é só disponibilidade, é puro tempo. Por isso Lacan diz que amar é dar o que não se tem..
Na atualidade, praticamente nenhum discurso levou tão longe as conseqüências dos efeitos da problemática amorosa e comunicativa quanto a psicanálise. Este seu enunciado, porém, é a tematização do levante feito por algumas pessoas ditas neuróticas. As doenças mentais parecem se localizar, exatamente, nesta problemática.
E por que, sendo assim, se trata disso em uma situação tão singular quanto a psicanálise, onde as condições para o amor e para a comunicação são tão austeras? Exatamente para deixar ver a natureza problemática e conflitiva destas condições, para além de toda afirmação social laudatória a respeito delas. Para fazer ver as condições radicais onde o indivíduo é convocado quando vai responder a demanda em si de realizar estas aspirações. A psicanálise vai deixar ver os aspectos ambíguos, turbulentos e conflitivos tanto da comunicação quanto da vivência amorosa. As doenças mentais representam o testemunho de um equívoco social, um equívoco discursivo. Mas o próprio amor já se dá por um equívoco - tal como a pretensão do saber comunicado.
Quem ama parece saber, situa-se no lugar de uma certeza. Também sobre o objeto parece estar cônscio aquele que sabe. Quanto a isso também os gregos parecem não participar das influências cristãs. Se dizia sobre isso que, nestes casos, diferente do resto para o qual se diz: "só se dá aquilo que se tem"; se deve antes dizer: " existe um privar em todo o dar". Isso na medida de o dar aqui ser na verdade privar o outro de suas condições, de sua potência de alteridade.
Seria propício dizer que, assim como a paixão está para a ciência e o amor está para a comunicação, a psicanálise está para a mídia? Tudo indica que sim. Mas, enquanto antíteses dialéticas, elas se opõem, apesar de ambas no seio da contradições (único ambiente onde se pode originar), representam as forças de contradição em um sistema dado. A manifestação desta diferença esta bem posta quanto à maneira pela qual a informação visa suprimir o tempo e fazer coincidir fato e enunciado e a psicanálise implica o perder tempo, além de introduzir o inconsciente entre fato e enunciado. Uma, porém, em absoluto, não é estranha a outra. Enquanto para a informática o tempo é um obstáculo, para a psicanálise ele é um bálsamo para a alma.

O mal entendido na base da comunicação e do amor.
É pelas vias de um mal entendido que a psicanálise veio a ser dita no sentido de um "Freud explica!" ou apontada como sendo algo através do qual alguém pode se conhecer, também, como sendo um espaço onde uma comunicação adequada suprimiria os mal entendidos gerados pelo inconsciente. Isso que faz parte de um certo "marketing" da psicanálise, é uma espécie de "ouro de tolos". Apresentar Freud como explicando, é como dizer a informática como comunicando.
Enquanto a informática oferecerá de volta para o sujeito seu desejo virtualizado em tempo real, a psicanálise fará uma privação do objeto desse desejo, através de uma intervenção no tempo do enunciado desejante. Enquanto a mídia faz seus comerciais atraindo o desejo das pessoas por apresentar a elas suas faltas, ao deixar claro o que cada um não vai ter quando comprar um certo produto, assegurando assim a manutenção da carência, a psicanálise sugere uma "falta positiva". Em algum outro trabalho deveríamos nos perguntar sobre a natureza da interpretação e àquela da propaganda.
Se do lado da prática a psicanálise introduz o tempo e os meios de informação visam suprimi-lo, pelo lado de seu objeto a situação se reverte. Enquanto o objeto da psicanálise - o inconsciente - é atemporal (Zeitlos), o objeto dos meios de informação - os fatos - são registros de acontecimentos, inscrições eminentemente temporizadas e temporalizantes.

4.7 Tempo, verdade e comunicação

O homem "ocidental" enquanto aquele que diz verdades.
A preocupação em medir o tempo, em lidar com o tempo nesta sua condição de número, faz parte de contextos onde existe uma preocupação com a verdade. Márcio Tavares d'Amaral já definiu o homem "ocidental" como aquele que diz verdades. Em uma sociedade calcada na verdade, portanto, uma sociedade ética, o sentido do tempo adquire esta face cronológica. A preocupação com o controle moral e com o tempo aparecem como partes do mesmo movimento. Ora, isso absolutamente não diz da presença de uma noção, uma vivência mais adequada e até mesmo mais efetiva tanto de um quanto de outro. De fato, enquanto sociedade, não nos caracterizamos como sujeitos éticos (pelo problema que temos com a alteridade e com o território) ou aptos a lidar com o tempo. A crise dos fundamentos no final do século passado aponta para novas possibilidades, visto serem, tais fundamentos, tanto a verdade (quer na sua concepção científica, quer na moral) quanto o tempo ( principalmente na concepção do instantâneo e quanto a causalidade).
A comunicação não se encaixa adequadamente na expectativa do tempo e da verdade. Ela introduz um elemento aleatório: a alteridade. A compatibilização destes elementos produz a informação, vindo a se manifestar na sua forma atual da informática. A informação pretende congregar uma dimensão oficial da verdade - enquanto coincidência entre fato e discurso - com uma dimensão oficial do tempo - um fato histórico tendendo para uma simultaneidade.
A informática, desde a letra usada para a comunicação entre pessoas e mesmo a palavra usada para transmissão de fatos, é uma maneira pela qual se procura resolver uma série de problemas inerentes a uma sociedade baseada em fundamentos. Esses fundamentos dizem respeito a um certo tipo de verdade e a uma certa dimensão do tempo. Nesta perspectiva, a teoria da informação vem responder a uma problemática inerente ao próprio sistema onde ela surge. Na medida de vir responder a uma problemática, ela acaba por absorver( na verdade já traz em si mesma) esta própria problemática.
A postulação da verdade dos fatos e de um tempo-número, define a ação da informação, mas cria problemas sem solução para a comunicação. Vamos ver, depois, como em sociedades com outros dispositivos há, pelo contrário, um prejuízo da informação e, portanto, do "progresso", mas há um vivência efetiva da comunicação. Apesar de, usualmente, colocarmos no mesmo nível a informação e a comunicação como se a segunda dependesse das condições da primeira, isto não é efetivo. Enquanto a informação tem como horizonte de sua perspectiva os fatos, a comunicação tem como suas condições de possibilidades o desejo e a alteridade.

Tempo e verdade na informação.
O tempo é o pai da verdade por instaurar tamanhas rupturas que libertam sua filha do julgo da mãe-terra - desprende-a dos fatos. Para a verdade ter sua forma afirmativa e ativa, é preciso esta libertação. Na nossa tradição cultural, esta possibilidade se encontra mais ou menos soterrada. A função paterna do tempo em relação a verdade, se manifesta neste ato de "fazer seu parto". Não é apenas em uma perspectiva simples, como se fosse ao longo do tempo que a verdade fosse se manifestando. Isso não significa, em absoluto, a posição de pai. Efetivamente, o pai deve liberá-la do corpo da terra. Deve, portanto, até mesmo, libertá-la da ética ( ethos - lugar). Sem a intervenção do Tempo-Pai, a verdade fica, tal como a conhecemos de maneira comum, ligada à informação, presa nos circuitos, sem nenhuma referência ao "espírito".
O espírito é essa força opondo-se à natureza. Opondo-se ao movimento "natural", em prol de uma potência do desejo. É neste ponto mesmo onde estamos localizando a função do Tempo-Pai.
Estamos fazendo referência à imagem (não se deve esquecer que imagem não se refere apenas ao visual), por prevalecerem nas linhas oficiais de nossa sociedade os referenciais platônicos e para estes, o tempo é "a imagem móvel da eternidade". Esta referência do tempo com a imagem o coloca mais na dimensão de uma estética do que de uma ética, propriamente. Estética é o nome dado a uma solução (no sentido de uma substância que se dissolve com outra formando outro composto) entre o belo e o pior. O belo é o nome dado à função a aparecer, quando o homem parece estar muito na direção de um bem supremo - esta função do belo vem fazer um recuo para o inumano. É ali onde devemos comumente nos deparar com o sentido mais radical para nós do tempo - de onde nos dizem de sua sombra causadora dos grandes terrores íntimos. Ao interromper ele afirma, também, o desejo de manter o acontecer em detrimento dos objetivos e finalidades do acontecer - visto a realização dos objetivos apontar para um suposto fim - sendo este seu vértice, ligado à eternidade.

A imagem e o eterno.
A imagem cativa por sugerir a presença do eterno, por lembrar o tempo. Enquanto o sentido do espaço se manifesta como ética, o sentido do tempo se manifesta como estética. A imagem (quer seja visual, sonora ou de movimento) diz respeito a emanações (defensivas) do ser das coisas enquanto se manifestam ao se recolherem. Esta imagem é, exatamente tal como vivenciamos, em função do tempo. O tempo esta, inevitavelmente, acoplado ao sentido dessa imagem. É, portanto, o tempo aquilo a conferir o sentido estético da imagem, ou seja, aquilo que faz presente a solução entre o belo e o pior..
Não se pode ver, também, tal como se faz comumente, a verdade como sendo um efeito ético, como se fosse algo da ordem de uma moral qualquer. Ela se manifesta como desvelamento, não significando, com isso, a "coisa desvelada", mas sim o próprio ato de desvelar. A verdade não é uma questão de objeto, mas sim de acontecimento. Para ela realizar essa sua maneira de ser, é preciso já "seu pai" ter realizado sua função. Porém, não nos iludamos, a verdade não é uma "boa coisa". Ela é apenas inevitável pela existência mesmo do tempo no espírito dos homens, fazendo-os proceder rupturas, tornando-os, já em sua maneira mesmo de ser, um rompimento.
Desta maneira, o sujeito já é, ele mesmo, a manifestação de uma verdade, a efetivação de um desvelamento. Quando lidamos com crianças fica sempre evidente a maneira como são a materialização de uma verdade. Para vir a ser o sujeito precisa do Tempo-Pai já ter agido, de maneira a tornar sua verdade possível. Mas onde age este tempo?
Este tempo age a partir dos códigos, dentro das redes da cultura, conduzido pelos símbolos. Age de forma decisiva desde dentro do imaginário da mãe precisando, esta posição, ser corroborada pela sua afirmação na figura do pai. Neste contexto, o ambiente para isso acontecer é, exatamente, o da comunicação enquanto ligação concreta entre pessoas. Na medida desse contexto entre nós ser em grande parte substituído pela informação, traz não só uma forma específica de subjetividade, como uma maneira circunscrita de se dizer do tempo.

Resumo do capítulo
Não se pode dissociar os meios de comunicação da política - da ideologia. A forma da comunicação já impõe uma forma de ideologia. Uma maneira de ser e um conjunto de valores.
O corpo e os objetos estão sempre em íntima relação de construção. Um age sobre o outro. O corpo atua sobre os objetos a partir da percepção e os objetos atuam sobre o corpo a partir das afecções. Esta interferência mútua constitui um universo sedimentado na linguagem. Neste sentido, os códigos inerentes à informação, têm ampla penetração na constituição de um real qualquer.
A memória subjetiva de um lado e os procedimentos da memória dos circuitos maquínicos de outro, estabelecem barreiras para o fluxo. Esta barreira acontece no sentido de usar as marcas produzidas pelo tempo através dos acontecimentos ou dos desejos, como alternativas de materialização da ação. O tempo virá fazer uma estratificação no corpo. Dividi-lo em períodos, em épocas. Estratificá-lo em passado, presente e futuro. A esta estratificação do corpo se fará corresponder uma estratificação dos objetos desse mesmo corpo.
Enquanto a memória faz barreira, a temporalidade cria a duração. Desta maneira, a memória e a temporalidade estão articuladas como condição da apreensão e da participação do corpo nos acontecimentos. Como os elementos da memória são estabelecidos pelo contexto vivenciado pelo corpo, estão já alí presentes a ideologia de onde este corpo participa. É de maneira direta que tempo e política atuam na produção de uma subjetividade: um fazendo durar e estabelecendo uma memória, outro preenchendo e dando o sentido da ação. E, como já vimos, a política é indissociável dos meios de comunicação. Nenhuma política é efetiva sem contar com estes meios. Faz parte de um ideal absolutamente romântico supor uma independência ideológica e política dos meios de comunicação em prol de uma "verdade". Isso não quer dizer uma ligação exclusivamente partidária da mídia, mas sim, a imposição de uma certa maneira de viver e de perceber.
Os meios de comunicação tratarão de estabelecer um "tempo rápido". Uma tendência crescente a eliminar o "espaço de tempo" criando o "ao vivo" e preenchendo o lugar do "entre tempos" com sua própria ideologia. É basicamente aí, onde reside a violência da mídia e não exatamente nas imagens que ela veicula.
O "homem" é sempre um constructo. Não há nenhuma negatividade pelo fato dele estar hoje hibridizado com a máquina. De qualquer maneira, ele sempre aparece em uma relação híbrida, mimética, com o regime de coisas a compor seu contexto. Porém, isso constitui um tipo específico de sujeito com um tipo específico de angústia e de prazer. Estamos longe de apostar em uma realidade russoniana do "bom selvagem", de um Leviatã. Como se fosse a sociedade a corromper a pureza do primitivo. Não, isso nunca aconteceu. Também estamos longe de apostar em um "futuro promissor" para os homens. Mas estamos, isso sim, levantando um tipo próprio pelo qual vivemos a temporalidade e suas repercussões como elemento de construção de um certo real. Por certo a máquina cria um tempo maquínico e os homens passam, eles mesmos, a tiquetaquear. Passa a haver uma espécie de horror a tudo aquilo que dura, tudo o que não é imediato. O problema é que as condições da produção do prazer dependem da perda de tempo. Sabemos como a própria matéria do capitalismo e da sociedade de consumo - o dinheiro - foi assimilado diretamente ao tempo - Time is money.
A informática, a telemática, a telepresença, a realidade virtual e o ciberespaço instauram um regime de temporalidade todo próprio para o sujeito, um tempo do desejo instaurando uma imediatez tal que a realidade não dará conta. Com isso ficam inevitáveis o surgimento das drogas. O próprio aparecimento dos "problemas mentais" , do sentido de síndrome das produções onírico-delirantes, estão intimamente vinculadas a este procedimento. É a máquina, ela mesma, a fazer em conjunto com sua base epistemológica - a razão, uma divisão entre o real e o irreal e é ela a embaralhar novamente estas fronteiras. Apenas de uma forma totalmente nova, introduzindo como condição de possibilidade para o embaralhamento das fronteiras a prevalência o desejo, a aceitação das condições impostas pelo operar maquínico. As possibilidades de se scanear uma pessoa, de tal forma a ela vir a fazer parte de um circuito, constitui um universo de possibilidades com um tempo bastante sedutor, mas, sem dúvida, com um custo nas linhas da subjetividade. Existe um tipo específico de subjetividade aparecendo como resposta à convocação feita por este tipo de linguagem.
A comunicação e a necessidade de transmitir informações criam uma agilização pela via das máquinas na informática. O objetivo de "ganhar tempo" é apenas sedutor na medida do tempo ganho por esta aceleração ser preenchido pelo próprio sistema. De fato, o tempo adquire um valor de capital, deixando de se prestar ao prazer. Mesmo investido em lazer, tratam-se de atividades já agenciadas.
As máquinas nada mais são do que efeitos "pirotécnicos" da linguagem. Toda condição virtual já é dada pela linguagem. As palavras são imagens virtuais das coisas. Desde aí, tratam-se apenas de sistemas mais ou menos sofisticados, dependendo das condições de necessidades e de desejos do contexto. Nascida para libertar o homem da natureza e estabelecendo um tempo para o desejo, as máquinas, de fato, criam apenas uma "outra" natureza, deixando apenas se evidenciar como qualquer natureza, ou seja, um constructo ao qual o homem se lança para assegurar-se e assenhorar-se do real, recobrindo-o com uma ordem simbólica.
O tempo libertado das "necessidades" torna-se uma potência do falso. O falso é a condição necessária para qualquer verdadeiro possível. Portanto, é a linguagem - da mais simples a mais complexa - aquela a constituir as condições do verdadeiro e isso se torna possível quando liberta o tempo. Existe uma simultaneidade entre linguagem e tempo libertado. Esse tempo libertado aparece na construção árabe do tempo: "O tempo é apenas uma parte da eternidade que atrasa". É preciso privar o tempo de sua "natureza" - a eternidade - para estabelecer o tempos dos simulacros.
A ficção, através da sua maneira de lidar com o tempo, rompe com a concepção de verdade aristotélica - a coincidência entre discurso e fato. O discurso aparece na sua plenitude de palavra, ou seja, oferecendo-se ao desejo. O mesmo tempo regente impassível da realidade é, ele mesmo, condição de manifestação - de realização do desejo. O desejo só pode se realizar com este tipo de aval do tempo, ou seja, apenas nas fantasias, nos sonhos ou nos sintomas. O tipo de tempo racional e maquínico criou um tipo de problemática específica para o desejo, vindo a dar um tipo de sujeito específico, cujas conseqüências são tanto o desenvolvimento quanto a "nervosidade moderna".
Existe uma certa contradição entre comunicação e informação. A bem dizer, o grau de comunicação é inversamente proporcional à quantidade de informação. Comunicação inclui uma alteridade e o desejo. A informação exclui a diferença e privilegia a cópia. Enquanto a comunicação implica uma "perda de tempo", a informação busca o instantâneo. O "vazio existencial", o sujeito "vazado", já é resultado da ideologia da informação, visto ser sua ideologia dominante entre nós.
O amor é um conceito, vindo a responder pelo vazio da comunicação dentro do mundo da informação. Está, assim, em uma posição de antítese dialética com a informação, na mesma proporção em que a paixão está em antítese com a ciência. Trata-se de uma espécie de "posto avançado" da comunicação ( do sentido da alteridade e do desejo), visto o nosso sentido de amor, o amor cortês, ser eminentemente do âmbito do discurso - o discurso amoroso.
Em termos do exercício prático, é a psicanálise aquilo que se opõe dialéticamente aos meios de informação. O saber psicanalítico e principalmente o seu exercício técnico, é de uma natureza e tem um tipo de tempo antitético àquele da informação. Para a psicanálise, vamos ver isso adiante, a perda de tempo se constitui não só nas condições de possibilidades do prazer, como, também, por isso, em um remédio para o anímico. Um sistema qualquer, como uma sociedade, por exemplo, se constitui como resposta a um real qualquer. Ao responder, algumas soluções serão realizadas e algumas problemáticas surgirão como efeitos do tipo de solução apresentada. Cada sistema terá, então, de ir constituindo "remédios" para as problemáticas emergentes relativas ao tipo específico de resposta para seu real. Os meios de comunicação e a psicanálise correspondem a algo da natureza desta resposta e deste tipo de remédio. Para uma sociedade que atenta contra a palavra e contra o sonho, surge um espaço onde isso se preserva.





5 O TEMPO HISTÓRICO E O TEMPO MÍTICO

Vamos aqui discutir como a história clássica é sempre a narrativa dos vencedores, o tempo histórico representa não só uma perspectiva de um tempo dominante, como uma tentativa de domínio sobre o Tempo. No nosso caso, vemos a nossa história cultural e a dos outros sob "o ponto de vista dos dominantes". Um dizer chinês aponta isso assim: "O vencedor, imperador; o perdedor, ladrão". Vamos tentar fazer ver a problemática da história tanto com a verdade quanto com o tempo. É preciso se suspeitar, na medida da história lidar com "restos", se este seu material não é significado sempre a partir de uma necessidade do sentido do presente e, principalmente, se uma vez sendo resto, esse material de fato foi importante no seu tempo. O significativo não seria "consumido" pela fruição de seu tempo?
A história clássica nos apresenta um tempo linear e com um sentido de desenvolvimento. O tempo histórico passou a ser um sentido comum, mas é preciso refletir sobre este sentido dado pela história ao tempo.
Como referencial articulador do paradigma deste tempo localizaremos o tempo mítico. Este, distinto do histórico, é circular, inevitável. Trata-se do círculo do Zodíaco, da Khalashakra, da Cabala, enfim, de círculos cujos sentidos são o de um retorno eterno, mas nunca o de uma repetição. Não se pode voltar ao que era, devido tanto as marcas deixadas pelos acontecimentos quanto, principalmente, pelas imposições dos desígnios do tempo. O que volta são "as mesmas coisas ( as mesmas causas)", como diz Nietzsche, mas não é o sujeito a poder recuar no tempo.
Dentro do tempo mítico vamos encontrar, por um lado, uma vertente "masculina" solar . Esta, tal como o Sol, serve-se enquanto um referencial permanente e imutável - e por outro lado, uma vertente "feminina" lunar (principalmente representada por Lilith, a Lua Negra) onde o tempo cíclico mítico sofre variações que interferem decisivamente no fluxo dos acontecimentos. O tempo "feminino" está intimamente associado ao corpo. A mulher traz em si esse tipo de referência à temporalidade - tanto devido ao ciclo menstrual quanto devido à gravidez e, também, pela maneira de ser das mulheres não ser, usualmente, constante. Vamos ver a positividade desta inconstância como sendo uma das figuras do "impermanente".

5.1 O ponto de vista da história

A história clássica enquanto discurso dos vencedores.
A história é uma forma específica de narrativa. É a narrativa dos vencedores - trata-se do discurso dos dominantes. Ela supõe um tipo de atitude sobre o tempo, o espaço e os acontecimentos, só podendo ser encontrada na mentalidade conquistadora. É um tipo específico de mentalidade aquela que constitui o tipo de discurso histórico. Além disso, ele surge já no ocaso do domínio. Existe uma espécie de nostalgia e de culpalidade na história. No caso da atualidade, esta culpalidade aparece, principalmente, pela introdução dos parâmetros da ciência na história. É como se houvesse uma dívida dos vencedores com os vencidos, o tributo da dívida é feito por uma pretensa ocupação discursiva do outro, a culpa e a nostalgia aparecem na preocupação com a verdade. Para uma narrativa do tipo histórico, tal como o conhecemos, é ainda preciso a escrita para congelar o acontecimento, constituindo a letra um parâmetro de verdade. Constituindo a história enquanto discurso dos dominantes, a escrita estabelece um tipo de consciência passiva relativa a um tempo supostamente dominado. Vem exatamente daí a concepção de um "sujeito" (sub-jectum).
É preciso esclarecer, porém, o movimento inevitavelmente simultâneo entre o calcamento das potências diferenciais e ativas para se formar o sujeito de forma a viabilizar uma norma qualquer e o retorno deste recalcado. Desta forma sujeito significa, simultâneamente, "aquilo jogado para baixo" e "aquilo a lança-se a partir de baixo". Se ele possibilita o estabelecimento de uma ordem é ele também aquele a ameaça-la.
Vamos ver no discurso mítico uma ordenação diferente constituindo um outro tipo de indivíduo. No mito, o acontecimento está sempre por acontecer, é preciso sempre fazê-lo acontecer, ele não jaz depositado em uma letra, é o próprio indivíduo aquele a vir a ocupar o lugar da letra.
O tipo de narrativa da história visa uma segunda conquista. Os conquistadores têm ainda de conquistar a conquista. A conquista da conquista é, exatamente, a narrativa histórica. Nesta, os acontecimentos e o tempo aparecem sob o jugo da escrita. Ela compraz aos que não participaram dos acontecimentos, dando-lhes a impressão de inseri-los nos mesmos através da sua participação imaginária e na linhagem daqueles que fizeram estes acontecimentos. Tal ponto de vista da narrativa é ainda preferível por ser mais idealizado, isso uma vez terem sido dele retirados os elementos problemáticos dos acontecimentos, deixando, como é próprio da narrativa, uma construção plana, "enxuta".

Tempo histórico e a ilusão do progresso.
Não devemos achar que a narrativa e o tipo de tempo histórico sejam "evoluções" ou "desenvolvimentos naturais" da narrativa ou do tempo mítico. Tratam-se de ordenações de real e produções de sujeitos diversas, não podendo serem relacionadas em termos de uma hierarquia. A impressão da história ser uma visão "mais real", "mais verdadeira" em relação à visão mais fantasiosa e irreal dos mitos, já faz parte do olhar do dominador, ou seja, já diz respeito a um movimento de nos colocarmos em uma posição de ápice. O ponto de vista mítico não é algo "antigo", anterior ou primitivo. Ainda hoje existem sociedades de temporalidade e de estruturação míticas. Do ponto de vista do "civilizado", estas organizações aparecem como se fossem "atrasadas" mas, se deixarmos de lado o parâmetro tecnológico para medir o desenvolvimento e usarmos outros parâmetros, o conceito de "desenvolvido" e de "civilizado", começa não só a ficar muito precário para ser mantido como, também, fica difícil de ser aplicado a uma sociedade problemática como a nossa, na qual o repúdio é o meio mais usual de se lidar com a diferença.
A narrativa e o tipo de tempo correspondente são ligados à presença da letra, correspondem a uma forma sofisticada de organização. Os romanos, porém, diziam: "Quando uma força começa a organizar-se, é, também, o começo do seu declínio". Este tipo de narrativa corresponde, exatamente, a esta organização. Principalmente, a uma organização do tempo.

História enquanto ideologia.
Feita de um ponto de vista específico, a história já possui em si a ideologia, uma maneira de ver e de atribuir sentido, daqueles que a constituem. Classicamente este ponto de vista serve, fundamentalmente, para distribuir as contradições e a problemática do presente em estratificações temporais. Qualquer tipo de subjetividade e de ideologia incapaz de lidar com as contradições, precisa dispersá-las de alguma forma. No caso do indivíduo, estabelece-se o recurso do inconsciente através do qual os desejos e as formas contraditórias a um certo "Eu" são deslocadas para fora na figura do outro ou da alteridade e para o passado - passando estes a serem apontados pelo sujeito como lugar da causa. Em se tratando da ideologia, isso é feito processando deslocamentos, tanto para fora da comunidade quanto para estratificações no tempo.

O surgimento do tipo de narrativa histórica.
Este tipo de narrativa aparece desde a Grécia do século V a.C. através de figuras como Heródoto e Tucídes. Passa a ter relevo a investigação de um passado "que ficou no passado", diferente do tempo mítico, sempre reinserindo-se, precisando ser sempre reconquistado e atualizado. Trata-se do estabelecimento de um tipo de vivência de tempo realmente inovadora. Ao romper com o ponto de vista litúrgico da realidade, emergem tanto os filósofos - se perguntando sobre "o ser daquilo que é" - quanto os historiadores - se perguntando sobre "os acontecimentos que aconteceram". Não era evidente para todos a importância de algo efetivamente acontecido, algo sem nenhuma potência de devir, sem nenhuma aplicabilidade no presente. A criação do passado enquanto um tempo passivo, enquanto algo já dado, fazendo parte de um ponto de vista inovador sobre o fim, sobre a morte, enfim, faz parte de uma estratégia particularíssima de se formular o real.
Roma tinha muitos motivos para este tipo de narrativa, afinal vencidos não lhe faltava. Políbio, César, Salústio, Lívio, Tácito e Seutônio fazem parte de um número razoável de historiadores a respeito dos acontecimentos temporalizantes, ou seja, eventos a fazerem época. Heródoto se mantém como uma espécie de referencial enquanto estrutura deste tipo de narrativa. Os fatos devem prevalecer sobre a imaginação. Para Roma, interessava fazer suas conquistas aparecerem "a sua maneira".
Podemos até mesmo sugerir a guerra como sendo uma forma de se decidir sobre quem vai ser narrado, quem vai ter o poder sobre a narrativa. O vencedor conquista o direito à palavra, tal como o vencedor do combate singular ganha direito a nomear-se.
Pelo menos na nossa tradição, esta narrativa é inseparável das guerras e das conquistas. É a história, para os historiadores, aquilo mesmo a se constituir em uma espécie de tribunal onde as ações dos governantes e daqueles a se destacarem são julgadas. Tal como a tragédia onde o destino e a natureza do herói seria desvelada, a história faria aparecer a natureza dos homens.
Entrar para a história passa a ser similar à consagração, a um substituto da imortalidade divina. Muitas vezes já se ouviu o eco da frase: "Sair da vida para entrar na história" por vários "heróis" de nossa cultura. Esta frase atesta suficientemente bem o valor da narrativa para nossa cultura. Trata-se de uma forma inusitada de se constituir modelos de conduta, tal como o fazem as figuras heróicas míticas e lendárias. Mas neste caso remete-se a um conteúdo mais sedutor e mais apto a gerar vivências de insignificância, na medida de apoiar-se em pessoas efetivas e acontecimentos reais. Recortando apenas aquilo que faz face aos ideais do narrador e à ideologia a que este faz parte, esta narrativa cria uma ficção com fortes indícios de realidade, de tal sorte a tornar a realidade efetiva insípida diante da ilustração gerada pela narrativa historiográfica.

O livro enquanto derivativo da história.
Pelas vias desta vamos estabelecer a nossa forma particular de "culto aos mortos". O livro de história, paradigma d'O Livro, é um livro de mortos. O culto deste é a nossa maneira de cultuar os mortos, de deixar ver como a sociedade dos vivos é comandada pelos mortos. Não se deixa, com isso, de introduzir e manter um aspecto religioso na "sociedade científica". Trata-se de uma disciplina fortemente moral. Para um certo tipo de individualidade específica, a introdução de modelos de conduta, de preceitos ideológicos e de definição sobre o devir, deve, necessariamente, apoiar-se em elementos aceitos como pertinentes a um certo tipo de verdade dominante ou oficial. A historiografia é responsável por produzir, definir e fundamentar estes parâmetros.
Este movimento faz parte da compulsão do homem "ocidental" em relação a verdade. Sendo esta verdade relativa a coincidência dos fatos com a narrativa. Porém, da mesma maneira que por trás da história existe sempre uma ideologia, por trás de seus personagens existe sempre a produção de modelos imaginários - de fôrmas e amolduramentos para compor ideais.

Depuração das multiplicidades e impressão da vontade de poder enquanto sentido do tempo histórico.
Tendo-se em vista o tipo específico da vontade de poder na nossa cultura, a pretensão de um tipo particular de verdade e a presença de um sentido amplo da escrita, a narrativa histórica não poderia não ter sido instaurada. Ela vai, desta maneira, deixar ver este tipo específico de resposta a uma forma também particular de real. Isso, inevitavelmente, vai constituir um tipo de indivíduo completamente tomado por esta forma específica de historicidade - aquela a afirmar a verdade pessoal como sendo a narrativa de fatos e realizações.
Depurando seus personagens pelo recurso do tempo e eliminando a multiplicidade no regime da produção dos acontecimentos, a história pode deixar ver uma impressão de um desenvolvimento, de uma evolução. Se não levarmos em conta nem a maneira pela qual o presente pode construir o passado, nem o tanto de extirpações necessárias para tornar os acontecimentos planos inserindo-os nas condições da narrativa, então a história pode demonstrar um desenvolvimento, uma evolução no plano da síntese das contradições.
Este tipo de temporalidade vai produzir a impressão de causas simples. Ela procura apenas mostrar uma linha seqüencial para os acontecimentos. Não deixando ver a natureza problemática e casual no regime das causas, muito menos ela chega a levantar a questão problemática em torno de se poder ou não estabelecer relações de causa-efeito nos acontecimentos. Ela neutraliza os elementos fortuitos, múltiplos e contraditórios. Uma vez constituida, nos dá a impressão não só dos acontecimentos terem um sentido e uma função precisa e determinada, como, principalmente, a existência de uma lógica clara na ordem dos acontecimentos - entre causas e efeitos.

5.2 Sobre os monumentos

Monumento e lembrança.
Quer seja na forma concreta ou na forma de lembranças, classicamente a história se assenta em monumentos. Para isso, associa-se fortemente tanto à arqueologia quanto à paleontologia. O tempo histórico apoia-se nos monumentos, sendo, também daí, retirado o critério de verdade da narrativa histórica. De fato, os monumentos atestam um tempo. Mantêm pontas de passado no presente.
No empenho de fazer um tempo linear a história cataloga os monumentos para dar substancialidade a esta linha de tempo. Estes monumentos funcionam como pontuações para se traçar uma linha de tempo ao longo da qual se distribuem os acontecimentos de uma forma causal, clara e cheia de um sentido de desenvolvimento. Nesta linha, o presente está sempre um front avançado.
Todo problema é o de se saber sobre a importância efetiva dessas marcas, a ponto de poderem dar atestado de sua época e explicitar um regime de causalidade. Os elementos de fato importantes no seu tempo, geralmente são consumidos pela fruição em torno deles. Os restos deixados quase nunca foram cercados de intensidade. A história, tal como o faz o senso comum, confunde intensidade com duração, importância com permanência. Comumente se associa aquilo que é consumido como sendo de pouca potência em-si, como se aquilo que acaba padecesse de alguma falta e a durabilidade fosse sinal de potência ou de importância. Não é nada disso. A fruição geralmente consome aquilo importante. Os romanos inclusive diziam: "O tempo poupa apenas aos fracos." Inclusive a própria memória, freqüentemente, não deixa registro de intensidades, deslocando-as ou distribuindo-as. Isso não significa dizer que nenhum dos resíduos sobre o qual a história tece sua narrativa não tiveram importância ou não são atravessados de potência. Isso não é regra, na verdade, isso se dá ao acaso.
Vamos supor alguns séculos adiante onde o Rio de Janeiro, por exemplo, esteja em ruínas. Teriam ficado apenas alguns dos monumentos mais estabelecidos. Vamos dizer algo como a catedral, pedaços do Cristo Redentor e alguns outros pedaços de edificações. Um historiador do futuro iria dizer de como a sociedade carioca vivia em torno de atividades religiosas. Quem vive no Rio sabe como a vida carioca (ou qualquer viver) se desenvolve em torno de centros múltiplos e de formas impossíveis de serem capturadas na sua ausência efetiva. Tratam-se de espaços de fruição intensiva não capturáveis pelas marcas monumentais. De fato, o carioca, ele mesmo, praticamente não se dispõe em torno destes monumentos, não é por alí onde flui a energéia da cidade.

A problemática dos resíduos.
A ordenação dos resíduos levantados pela arqueologia e paleontologia são usados para formar um grande quebra-cabeça histórico, como se fossem estes, resíduos do melhor deixado por cada sociedade. Como se não fossem elementos ao acaso, restos não utilizados pelo seu tempo próprio. Por outro lado, sem esta ordenação feita pela história o passado não ficaria amarrado nos monumentos, ficaria solto no tempo, não na forma de lembranças, mas na forma de reminiscências. Ou seja, o passado não passaria - ficaria sempre se presentificando através de "cópias" imperfeitas, deixando, desta forma, de se realizar o "progresso". Mas, não nos iludamos: primeiro, o passado não fica efetivamente amarrado aos monumentos - a não ser um passado instaurado pelo presente, ou seja, aquilo que o presente diz ter sido o passado em proveito de intenções ideológicas - segundo, o progresso conseguido como uma forma de linha de fuga intensiva em relação ao passado, não progride em nada em relação às questões humanas fundamentais.
Podemos notar a maneira como nas cidades ocidentais tradicionais os monumentos se destacam como pontas avançadas de passado. O presente, neles, visita o passado. É, porém, um passado desprovido de suas intensidades, desvirtuado de suas potências. Apenas na forma de atratores aparece sua potência de produzir acontecimento. Anteriormente, irradiando-se na forma de acontecimentos, hoje atraindo na forma de lembrança - antes uma força centrífuga, hoje uma força centrípeta. Esta diferença não é de forma alguma irrelevante, ela altera completamente o sentido do monumento. Enquanto no seu tempo era plena a potência de sua presença enquanto arcabouços de um outro tempo, fora de seu tempo próprio precisam do amparo e do cuidado para sobreviver, furtam-se ao tempo. Isso não o deixa absolutamente com as mesmas características. Não é por visitarmos um monumento do passado que podemos ter acesso ao que ele era efetivamente no seu tempo. Não é por visitarmos um museu de personagens de cera que vamos ter acesso a densidade da presença daquelas pessoas ali figuradas.
Podemos, de outra maneira, encontrar em cidades fora da sociedade "ocidental", monumentos antigos mas inseridos no contexto. De maneira diferente, eles parecem conter o tempo. Constituem um intenso campo de força segurando o tempo e mantendo a densidade de sua potência. Não se tratam de "monumentos", pois ainda mantêm a sua capacidade produtora e criadora de eventos. Não se trata aí de visitar o passado, mas de ser tomado por ele na forma da reminiscência. Não é preciso cuidar deles, tanto no sentido deles cuidarem de si mesmos, como, ainda, reservarem-se a potência de enfrentar o seu fim quando o limite de sua potência não puder resistir às pressões do tempo. Nestes contextos não se "faz história" - não se tratam de "sociedades históricas" - alí o tempo não se constitui em narrativa, mantendo-se e aparecendo na forma de vivências. Não se pode ali falar de "progresso"; as questões humanas fundamentais não são evitadas pelas maquininhas de produzir artifícios para o desejo - isso não significa serem resolvidas.

Historiografia e filosofia.
Este tipo de narrativa começou como uma atividade filosófica, ou seja, como algo ligado à importância da Aléthea ( verdade, des-velamento). Neste sentido, sua preocupação era fazer uma crônica documentada dos acontecimentos. Não mais como o Aedo, como o poeta cantador, mas como um narrador fidedigno dos fatos acontecidos. Porém, principalmente com o império romano, a narrativa histórica constituiu-se em uma função do império. A preocupação com a "história dos outros", ou seja, a introdução de uma "história universal", é bastante recente e ainda incipiente.
As sociedades históricas passam distinguirem-se das outras. Passam a apresentar uma relação singular com o tempo. Neste sentido, a tradição judaica é fundamental para este tipo de narrativa: o tempo linear. Apesar de realçar exatamente a função do tempo, trata-se de um tempo todo próprio.
Existe um conto que mostra bem a maneira como as sociedades históricas acabam por perderem muito da intimidade com o tempo. O conto é sobre o encontro do imperador do ocidente com o imperador do oriente.
"O imperador do oriente foi visitar o imperador do ocidente. Após as honrarias do banquete, o anfitrião disse: "Majestade como honra a sua visita e a sua sabedoria vou lhe apresentar o desafio pelo qual todo aquele que aspira um lugar de respeito aqui deve passar". O anfitrião levou o visitante até um lugar onde haviam wrandes paredes a se perderem de vista. "Isso é um labirinto, vossa majestade, trata-se de um embaralhamento do espaço onde apenas o coração pode decidir sobre o destino de quem ali penetra." De outra feita, o imperador do ocidente foi retribuir a visita do imperador do oriente. Terminada as festividades, o anfitrião disse: "Majestade, quando estive nos seus domínios me mostrastes o labirinto do espaço onde seus nobres provam seu valor. Agora aqui é minha vez de lhe mostrar onde não só os nobres, mas todos os meus súditos, mostram a sua presença de espírito". Dizendo isso, o anfitrião conduziu o visitante para a janela de seu palácio que dava para a imensidão do deserto. "Este é o labirinto do tempo. Não há nenhuma barreira, nenhuma parede ou divisão, mas existem infinitos meandros de tempo. Ali, apenas a presença de espírito pode decidir sobre o destino dos que por ali transitam".

A história e a espacialização do tempo.
A estratificação do tempo nas eras, épocas, períodos, corresponde a uma espacialização do tempo. Temos sempre, com isso, a impressão da humanidade se parecer com um indivíduo crescendo. Ainda mais, este indivíduo parece alguém rabugento o suficiente para não consumir aquilo de melhor de seu tempo nem de si mesmo, acabando por deixar os objetos significativos para o olhar curioso do futuro.
Para nós, é sempre preciso libertar o ato do passado, desligar-se do acontecido. Não nos assombramos mais com os espíritos, os fantasmas. O passado aparece em sua forma cristalizada nos monumentos e nas lembranças. Mas ainda não se decidiu, com clareza, qual a natureza deste passado neutralizado nem a deste presente liberto.
É claro que devia ser desagradável, antes do advento da influência da narrativa histórica aprisionando o passado aos monumentos, a convivência sistemática com a volta do passado. A presença dos fantasmas constantemente no cotidiano das pessoas, a maneira insidiosa de se inserirem nas atividades de forma tão viva quanto aqueles "atualmente vivos" . A maneira como os antepassados mortos eram tornados novamente presentes, era através da passagem de seus nomes para os que vinham nascendo, de forma a manter sempre vivo o antigo. De fato, a história nos livrou deste incômodo de sermos sempre perscrutados pelo passado solto nas estratificações do tempo. Mas este incômodo não parece deixar de ser um desejo, porque passamos depois a produzir nossas "maquininhas" de tornar presente o ausente - a televisão, a filmadora etc. - também o presente passou a ser habitado por figuras mais hostis: os ladrões, criminosos, etc., vindo estes a substituir os clássicos fantasmas tradicionais habitantes do vazio e do escuro. Esta parece ser uma forma do sujeito lidar com sua solidão. Solidão muito ligada a um efeito intensivo do tempo, tal como Heidegger deixa ver na sua concepção do ser-para-a-morte como sentido do tempo no ser.
A lógica dos monumentos é, assim, a mesma da telemática no que diz respeito ao tempo: tornar o ausente presente, mas de uma forma totalmente diferente, mantendo a ilusão de sua efetividade e deste seu tipo de presença ser a mesma de quando do fato sendo.

Dispositivos de criar ausências.
Isso deixa aparecer o fato de que não são exatamente os acontecimentos e as coisas a furtarem-se de sua presença. É a maneira de ser do homem aquela que precisa estabelecer sempre "uma certa distância", "uma determinada quantia de ausência", de um "subtrair-se" na medida de lhe não lhe ser dado um tipo de participação plena, por já ser ele, desde o inicio, dividido - alienado de si mesmo, estranhado por si próprio. É o homem, ele mesmo, aquele a ocupar o tempo presente com formas táticas de ausências, de tal maneira a dar uma forma a sua maneira, de só poder estar presente através do estabelecimento de ausências.
Esse tipo de preocupação faz parte da mesma ocupação de registrar a história individual. As fotografias, os filmes, as narrativas, a importância das datas, são maneiras pelas quais se procura fazer acreditar no desenvolvimento de um indivíduo, ao mesmo tempo se introduzindo formas controladas de ausência. É neste plano que fica mais evidente a maneira como o presente altera o passado. Do ponto de vista do presente, sempre parece que éramos menos dotados no passado, que de fato evoluímos. A clínica mostra sempre a maneira como as crianças, desde muito novas, têm uma capacidade bastante razoável de perceber o imaginário no qual estão inseridas e responderem a isso. Mas essas potencialidades são negadas, tanto por aqueles mais velhos como pela própria pessoa, conforme vai envelhecendo.

Historiografia e conhecimento.
As sociedades históricas investiram sempre na idéia do conhecimento, principalmente o conhecimento histórico, poder educar o homem para melhor. Como se fosse possível avançar na direção de um melhor sem ir ao mesmo tempo na direção de um pior. Eric Hobsbawn, no seu livro "Era dos extremos", vem demonstrar como a presença da história, o avanço educacional e a melhoria das condição de vida em nada influenciam - a não ser o notado avanço da violência, da intolerância e dos genocídios - no sentido de uma melhoria das condições humanas. Como fazemos parte de uma ideologia extremada, uma forma de dividir o real em absolutos, nossa visão do mundo e dos acontecimentos passam por este prisma. A história nos mostra, exatamente, este tipo de visão: uma leitura de extremos. Com isso, o saber formulado dos acontecimentos fica bastante comprometido pela nossa maneira própria de ser e de conceber a realidade.
Esta narrativa não é neutra. A multiplicidade de linhas de tempo cruzando os acontecimentos, o conjunto intrincado de onde emergem os acontecimentos, são recortados de maneira radical. Em uma sociedade como a nossa este tipo de narrativa, como seu tempo próprio, ocupam um lugar predominante na maneira de ser e de se realizar da sociedade.
A base de nosso discurso são os monumentos. São pontos de ancoragem tanto do tempo quanto do capital. É através deles que a história se valida como ciência - como verdade - velando sua função ideológica, estando esta, no nosso caso, intimamente ligada com o exercício do poder ligado ao capital. É preciso dar provas para garantir nosso tipo de verdade. Mas se disse, e ainda ecoa, de como "as provas cansam a verdade".
Mesmo o capital e o poder para se inserirem na sociedade precisaram ser convertidos em função de tempo. É preciso encontrarem alguma forma de se sinonimizarem com alguma linha de temporalidade para que se destaquem nas conjunturas culturais.

A hegemonia do tempo histórico.
Os demais tempos passam a ter importância na medida de prestarem reverência ao tempo histórico. É sempre tendo em vista as marcas deixadas, que cada tempo é tomado como via de realização e impõe-se como fonte de decisão e de ação. Cada realização tem como pretensão constituir-se em monumento, em nó por onde deve passar a tecitura das recordações futuras. É um tempo vindo sugerir as possibilidades da tão cobiçada imortalidade. Viver na lembrança e no olhar dos outros é a forma como o "além" apresenta-se nos moldes epistemológicos.
Existe uma espécie de "falta a ser" de tal monta nas sociedades deste tipo de tempo que se constitui uma verdadeira compulsão o "encontrar-se alhures" no tempo. Aparece, também, como sendo fundamental, preencher todas as lacunas do tempo - como se este fosse linear e plano - constituir um plano onde se afigura não só a linha de desenvolvimento dos homens, como a do próprio mundo, de tal forma a se "provar" que estamos no melhor dos mundos e no ponto mais avançado da humanidade até hoje. Não é por acaso que ao entrar em crise a concepção dos fundamentos e das causalidades, é a história quem vai sofrer mais de perto este furacão.
É nas linha deste tempo onde se localizarão os maiores levantes e onde a alteridade se mostrará de forma mais insidiosa. O próprio avanço do turismo pelos monumentos já é um sinal de crise nos fundamentos, uma certa vulgarização das potências do passado, um sinal da angústia perante a "falta a ser" proliferando-se, sendo esta angústia, própria deste tipo de sociedade. Ao retirar o passado do presente para fazer um presente antigo, diante da impossibilidade de se tematizar o passado propriamente dito, a história deixa um vazio significativo, vindo este a ser lugar de angústia. A angústia serve ali não só para sinalizar, como, principalmente, para salvaguardar as condições do tipo de produção de nossa sociedade, onde cada produto depende diretamente da angústia e da ansiedade - desde a concepção passando pela produção, até suas linhas características de consumo.
Sem monumentos e sem documentos não haveria datação, não haveria história. A datação é uma função dos monumentos e dos documentos. É com base na datação que o evento ficará sempre disponível e repetindo-se tal como ele foi filtrado a partir da memória. A data faz o evento ficar disponível para a repetição pelas vias da memória e, também, congela o acontecimento em um tempo-número.
As datas se espalham por toda parte de nossa sociedade. Parecem ser de uma importância "natural" e essencial. Não nos apercebemos do fato de, mesmo atualmente, muitas sociedades não guardarem datas - nem mesmo de nascimento ou de eventos significativos - nestas as marcações de tempo têm apenas uma função social de realização de encontros futuros ou rituais, mas não servem para nada no passado. Temos sempre a impressão que ao marcarmos o tempo passado nos distanciamos dele, nos destacamos do acontecido em direção ao devir. Para melhor fazer este afastamento é preciso colocar "coisas" no intervalo - para isso servem os documentos e os monumentos. Os monumentos servem igualmente para dar uma "realidade objetiva" à necessidade de causas para a ação devido a fragilidade, na nossa sociedade, do desejo.
Os tibetanos, por exemplo, não se importam com a marcação da idade, mas sim com o fato do sentido simbólico do período no qual nasceram e o valor simbólico do dia da semana - os compromissos são marcados seguindo este sentido simbólico. Os marroquinos, até o alistamento francês para a guerra, não marcavam seu nascimento, tanto que nos registros aparecem "mais ou menos" tal idade, nascido "por volta" do dia tal.

O corpo enquanto paradigma de monumento.
O monumento mais significativo e mais próximo é, exatamente, o corpo. Podemos ver como, ao se construir uma época, se constrói também um corpo para ela. Foucault começou a mostrar como existe um regime de prazeres muito distinto nas estratificações do tempo, de tal sorte que o corpo de um tempo não é capaz de compreender nem imaginar o corpo de um outro tempo. Já por aí fica difícil se compreender as ações das pessoas de outras épocas, visto estas ações emanarem de um corpo distinto. A presença do tempo no corpo é vivida de forma distinta em discursos diferentes. De qualquer maneira, pode-se ver como cada época apresenta sua própria estética e distribui suas áreas e formas de prazer pelo corpo. A posição onde nos colocamos - em um ponto privilegiado de significar e de hierarquizar tudo em função do suposto ápice onde estaríamos - nos inviabiliza de apreender a diversidade das formas de acabamento e de acabar-se do corpo. A maneira distinta pelas quais este cria e se utiliza de seu tempo.
A revelação da história faz criar uma concepção do Homem como tendo estado presente, de fato, em uma linha extensa do passado. Isso permite a cada um afirmar-se em um quase infinito para trás, na base de uma identificação com o corpo dos outros. Cada um pode, de alguma maneira, se sentir presente desde a muito. Visitar o tempo histórico é como re-conhecer o que o "eu-Homem" fez.
O Homem passa a ser visto como um fenômeno universal. Não basta a conclusão do mundo enquanto lugar de sentido que só começa quando o homem começa. É preciso provas para isso e, mais ainda, é preciso levar a presença do homem até para além de sua presença - para a pré-história. É nesta direção que a história, simultâneamente, des-diviniza a realidade e, também, instaura o Homem, ele mesmo, no lugar das origens - se presentificando pelas vias do conhecimento: onde chega o conhecimento do homem, chega o próprio homem. Mas, comprendre c'est pardonner ( compreender é perdoar).

A ideologia da compreensão.
A história procurando compreender e não julgar, procurando levantar um conhecimento neutro e não ideológico ou imaginativo, mostra-se como uma forma de religiosidade envolvida com o perdão. Mas ela mostra, também, como o perdão está na base do "apreender com" através do qual o homem moderno se sente, pelas vias da compreensão histórica, participante dos acontecimentos passados. Essa atitude de perdão necessário é paradoxal, porque ela acaba atestando uma grande dificuldade em se compreender o presente, visto não ser possível se perdoar algo que ainda está transcorrendo e, uma vez se produzindo um afastamento de forma a se criar as condições de perdoar, a compreensão já não servir mais. Ora, é este mesmo "sujeito compreensivo", esse sujeito do perdão, o mesmo arraigado na violência e na intransigência.
Tudo indica que a compreensão dos acontecimentos deixaria marcas suficientes para prevenções. Para isso, porém, seria preciso aquilo a que se tem acesso, pelo fato da compreensão fundamentada pelo perdão ser da mesma natureza do acontecimento. Não é por acaso que a compreensão do que está acontecendo fica inviabilizada - é devido a densidade de qualquer acontecimento. Quando é possível uma filtragem para a compreensão pela ação do perdão, é porque as intensidades mais intempestivas já foram deslocadas. O perdão vem colocar o sujeito da compreensão exatamente onde o "ocidental" olha para o mundo.
A partir do monumento do corpo emana a intenção compreensiva, cuja ação vem animar a atividade histórica. É este mesmo corpo aquele que procura objetos nos quais possa se apoiar. Os monumentos servem, basicamente, para este efetivar sua intenção compreensiva e "poder perdoar" o passado em detrimento de seu extremismo no seu tempo próprio.
A concepção da idéia de monumento só pode se originar de um corpo que se pretende, também, monumento. Cada corpo apresenta-se, já, como objeto para a história.

5.3 O tempo histórico como presente antigo. As expectativas de um presente avançado

A crise dos fundamentos ligada ao tempo histórico.
Entre as utilidades trazidas pela crise dos fundamentos está a perda da univocidade do sentido da história. Junto com o levante do discurso das mulheres, dos negros, das crianças, dos homossexuais etc., levantaram-se também novas versões em relação às versões clássicas. Passou-se a fazer um movimento reflexivo na forma de uma critica da história. Marx ,neste sentido, é bastante decisivo.
O presente, as intenções do presente, são decisivas na construção do sentido. A história serve, basicamente, ao presente. Seu sentido servirá para corroborar determinadas questões atuais, apoiando um certo sentido pretendido. Esta concepção bastante presente em Marx, coloca um problema no cerne mesmo da narrativa. A pretensão deste discurso colocar-se como fundamento fica abalada, mas isso não é nem localizado nem negativo. De fato, a falência dos fundamentos é algo de positivo e criativo em nosso tempo - mesmo sendo isso sentido na forma de uma crise pela sua novidade.
A maneira pela qual a intenção age diretamente na percepção e o desejo constitui-se na própria linguagem, cria uma condição pela qual o passado é interpretado pelas condições do presente. São os valores, as maneiras de ser e de viver a incidirem sobre determinados resíduos do passado, compondo desta mistura ( dos valores, maneiras de ser e de viver com os resíduos do passado), uma concepção de passado. Este passado composto teria sido desta maneira, caso as condições e o tipo de sujeito do presente fossem os mesmos do passado. Por isso, podemos apreender o passado como se fosse "um tempo primitivo" e seus habitantes como sendo igualmente primitivos.
Existe uma falta presente produzindo, inevitavelmente, este sentido. Esta falta está tanto no presente, de forma a se tentar suprimi-la pela introdução do passado, quanto no passado pela sua ausência. As sociedades históricas apostaram neste tipo de narrativa como possibilidade de suprimir sua falta de sentido. Graças a crise dos fundamentos estamos, finalmente, nos dando conta do inverso: a história deixa ver exatamente a falta. Estamos diante da possibilidade de perceber e refletir sobre o remendo.
Classicamente esta narrativa se ocupou em conduzir o presente ao passado, dando a impressão de fazer o contrário - trazer o passado para o presente. O sentido de "primitivo", "ultrapassado", "antigo", demonstra, exatamente, a presença deste equívoco de tempo: o equívoco de se tomar o presente antigo como sendo o passado. Ainda é difícil se responder a questão sobre a possibilidade de alguém de uma época - implicando toda uma rede complexa de constituir uma realidade - poder apreender uma outra época. Para isso seria necessária a presença de fundamentos permanentes, de um ser ou de uma essência e ainda não se decidiu se isso pode ser atribuído ao real ou a realidade ou mesmo a uma cultura ou sociedade.
A história já nos dá condições de interrogarmos se o Homem é o mesmo em todos os tempos e todos os espaços, se as diferenças entre tempos diferentes e culturas distintas é uma diferença de superfície ou se só existe mesmo esta superfície móvel. Para nós, "ocidentais", sempre foi muito importante tomar o fenômeno humano como algo universal e generalizado, isso pelo menos aparentemente, uma vez nossa cultura ser aquela a ter praticado os maiores genocídios de que se tem notícia. O fato, porém, é que são poucas as sociedades a terem este sentido de "humano", pelo menos não no sentido generalizado.
Quando se desloca o presente para o passado, por um lado se possibilita um alívio das tensões e contradições do presente, mas por outro se produz um vazio no presente deixado por este material complexo desviado para o passado. De início, a constituição de um presente antigo parece aliviar o presente de suas contradições, mas logo depois, esta solução se constitui em uma fonte de angústia e de falta de sustentação para os valores.

O tempo histórico enquanto justificativa dos valores.
Will Durant vai deixar isso evidente em seu livro "A história da civilização":
"Mas esse variado panorama tem para nós significação maior que a de mero quadro majestático, porque se assemelha muito a nossa civilização e a nossos problemas de hoje, iluminando-os ameaçadoramente. Oferece-nos a vantagem de estudar uma civilização em sua finalidade e vida total; permite-nos comparar cada momento ou aspecto de seu curso com um momento ou elemento correspondente de nossa trajetória cultural de hoje, esclarecendo-nos, desse modo, por meio do quadro do que foi, sobre o que pode vir a ser a passagem de uma ordem social para outra."
Com isso, ele deixa claro a maneira como a história, representando ela o tempo oficial da cultura, faz um embaralhamento do tempo. Parecendo tomar como semelhantes os homens de épocas distintas, também exclui uma grande contingência de "falantes indesejados", representados por um conjunto significativo de outras culturas deixadas de fora do sentido de "civilização".
Não abandonamos em nada a tendência, em qualquer sociedade, de excluir a alteridade. A aparente universalidade do "ocidente" quanto ao fenômeno humano não resiste a uma visão um pouco mais detalhada de suas ações e intenções. É a história, ela mesma, a deixar ver esta ilusão da história.
Além de criar um presente antigo o faz com pretensões a prevenir um futuro. Ora, o futuro, tal como o passado visto sob a perspectiva do presente, é, também, um presente avançado. Ou seja, trata-se de imaginar um futuro onde todas as condições do presente e do passado estejam preservados, não tendo os acasos gerado qualquer novidade. Só muito recentemente algumas áreas da ciência estão incorporando a possibilidade do acaso. Usualmente, as ciências positivas o excluíam e excluir o acaso é transformar o discurso em uma ilusão. Este tipo de tempo parece possuir a pretensão de um assenhoramento sobre a temporalidade. Para isso, teve sempre de recortar todas as linhas de fuga inerentes a qualquer acontecimento e a qualquer realidade.
É comum as pessoas usarem experiências passadas para fixarem os movimentos futuros. Mas o aparecimento de acasos altera novamente os planos, produzindo novas frustrações de intenções. O interesse sempre renovado enquanto intenção de melhor orientar as decisões do futuro, é onde se vela a parte mais ideológica do sentido da história. É preciso se prestar uma atenção toda especial ao sentido de "melhor", nele reside todo o drama da nossa sociedade e seus componentes. Esta intenção "futurística" já neutraliza, inevitavelmente, o acesso às linhas de força constitutivas do passado. Esta intenção responde a um temor atávico no homem. A história clássica dá a entender ter contido as potências do devir, apropriando-se da essência das causas. O estudo sobre os eventos passados dariam uma visão clara sobre a base do devir. Ora, para isso, no mínimo, seria necessário um acesso à realidade das causas. Porém, só é um recorte dos acontecimentos com a presença de uma intervenção decisiva do desejo. O que faz repetir é, exatamente, algo da ordem do desejo no sujeito e não podemos tomar o mundo dos acontecimentos e o campo da história como sendo o corpo pleno de um sujeito. Mas, também, é muito difícil isso não ser feito.

A narrativa histórica enquanto pretensão de vinculação entre acontecimento e tempo.
Vinculando o tempo aos acontecimentos na forma de épocas faz-se um tempo domado. Procura-se, através de uma grande quantidade de "material histórico", recobrir o aparecimento do tempo indômito na forma do acaso. Existe, sempre, a tendência de se fazer um recorte dos acontecimentos de forma a "humanizá-lo". Na própria atividade de passar os acontecimentos para a ordem do discurso já se faz este procedimento, devido a ser, a linguagem, a maneira própria de ser dos homens. Tudo aquilo a ser colocado na ordem da linguagem já passou por uma humanização.
Maurice Crouzet apresenta uma atitude menos altiva.
"Que não haja uma concepção UNA e estreita de história das civilizações, eis outro ponto que parece definitivamente aceito.".. "O passado da humanidade nos oferece um espetáculo de numerosas civilizações: cada uma se define por um conjunto de idéias e de instituições políticas, de condições de vida material e de técnica, de forças de produção e de relações sociais, por todas as manifestações da atividade religiosa, intelectual e artística."
Esta reflexão já faz parte do ponto de vista do século XX. Até então e mesmo atualmente em termos práticos, o sentido de civilização é dado tal como aparece no século XVIII: como sendo o contrário de barbárie, como sendo um conjunto de instituições capazes de instaurar uma ordem, a paz e a felicidade, mais ainda, de oferecer o progresso intelectual e moral da humanidade, assegurando o triunfo das luzes. Se a história não é una é porque o tempo histórico não é uno. Apenas, para nós, as "épocas" começam e acabam onde são localizadas e pelos motivos que nós atribuímos a estas mudanças. A história se define como sendo "a ciência do concreto" . Porém, o problema todo é se definir o que é esse "concreto".

Tempo histórico como tempo ativo.
Este tempo diz respeito a toda uma intencionalidade desejante do sujeito - daí fazer parte de uma linha de produção e de criação de narrativas. É para ali onde vai e dela de onde vêm as produções significativas de nossa cultura. Isso sempre no sentido de um empenho de domínio, ou mais exatamente, da manutenção do domínio.
Historicizar significa reger a distribuição dos acontecimentos em passado, presente e futuro. Esta regência tem como objetivo manter os acontecimentos congelados em estratificações e, com isso, manter o próprio tempo definido e já significado.
Recolhendo dos acontecimentos aqueles que são espetaculares e das pessoas aquelas que são figurativas, escolhe-se o sentido. Ela não deixa ver a densidade efetiva onde os acontecimentos acontecem, a quantidade de forças discretas e de figuras não eminentes no contexto onde se decidem os acontecimentos. Com isso, ela apresenta uma forma idealizada de acontecimento, sendo esta forma, uma força efetivamente repressora e ideologicamente reacionária. Por esta via formaliza-se um fórum onde se realizam os julgamentos, isso na medida desta temporalidade corresponder a um tempo censor, idealizado.
Corresponde a um esforço inusitado, porém, sem grande sucesso, do espírito em dominar o tempo.

5.4 A História e as histórias
Foucault, em "As palavras e as coisas", escreve: "A partir do século XIX, a história vai desenrolar numa série temporal, as analogias que aproximam umas das outras as organizações distintas. Com isso, progressivamente, imporá as suas leis à análise da produção, dos seres organizados e, enfim, dos grupos lingüísticos. A História dá lugar às organizações analógicas, tal como uma Ordem abria o caminho das identidades e das diferenças sucessivas.
"Mas bem se vê que a História não deve entender-se aqui como a recolha das sucessões de fato, tais como elas puderam ser constituídas; ela é o modo de ser fundamental das empiricidades, esse algo a partir do qual elas são afirmadas, colocadas, dispostas e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para as ciências possíveis."
Este descolamento em relação aos fatos faz parte da introdução de um tipo de sujeito e de temporalidade toda própria. O conhecimento começa a situar-se não mais como depositário, como cópia dos acontecimentos e dos objetos, mas, efetivamente, enquanto produtor. Esta narrativa passa a ser produtora, algo a portar uma finalidade e uma intencionalidade. Trata-se do solo, como aponta Foucault, fundamental das empiricidades. Todo fundamento empírico e tecnológico faz parte de uma sociedade histórica, se apoia em um tipo de temporalidade para a qual os outros tempos são inoportunos.
Perelman escreve assim:
"O historiador não é um romancista, não inventa sua personagem. Alexandre, César ou Napoleão verdadeiramente existiram, sabemos quando nasceram e como morreram,os elementos que conhecemos deles são inúmeros, mas o papel do historiador é o de organizá-los, relacionando-os à personagem, ao seu caráter, a seus projetos e intenções."
É na parte da organização e do estabelecimento das relações onde entra o anacronismo e o aspecto de intervenção nos fatos. É aí onde se faz o mundo. É isso o que diz Feuerbach no "Contribution à la critique de la philosophie de Hegel": "Demonstrar é, simplesmente, mostrar que o que digo é verdadeiro, simplesmente retomar a alienação (Entäusserung) do pensamento na fonte original do pensamento." É o próprio ato de demonstrar aquilo a estabelecer uma ordenação determinada, distribuindo os fatos dentro de uma linha específica de tempo. A história virá, assim, a se constituir em uma espécie de "natureza", onde cada práxis buscará conceitos para seu exercício. Ora, enquanto este tipo de natureza, ela deixa de se mostrar como um lugar conceitual, passando a ser encarada como um "lugar de coisas, de fatos e de acontecimentos".

A história vindo a constituir-se em um substituto da natureza para o pensamento.
Dizer da história como sendo uma espécie de natureza, significa dizer de algo já dado como sendo o lugar das causas do mundo, mas esse já dado precisa sempre ser conquistado para se exercer a liberdade própria da vontade, ou seja, a de opor-se à natureza, à tendência. Urge, sempre, fazer o tempo novamente na forma de um começo, como maneira de inscrever o mundo, por não haver outra maneira de se habitar o mundo a não ser instaurando-o, ou seja, ordenado-o. Para isso se inventou a narrativa e é nesse sentido que florescem as histórias - para dar conta de universos conceituais e de vontade distintos.
É conhecido o fato de Alexandre da Macedônia, por exemplo, ter tomado a liderança de suas milícias aos 16 anos. Podemos nos espantar com isso. Mas qual o significado de 16 anos, na sua época, para um príncipe macedônio? Uma época na qual os espartanos com 12 ou 13 anos eram admitidos na comunidade dos guerreiros, já com treinamento de guerra e com um escudo entregue pela suas mães, dizendo: " Com ele ou sobre ele" ( significa: voltar vitorioso empunhando-o ou morto sobre ele ). A vida média durante o Império Romano era de 20 anos. Não se trata, efetivamente, da mesma temporalidade nossa.. Hoje estranhamos ver no mundo árabe ou africano, crianças já nas forças armadas - mesmo a guerra do Vietnã e outras alimentadas por nós, tendo sido feitas por garotos em torno dos 18 anos. São fatos: a guerra de 1914 de fato se deu em 1914. Mas quais seus meandros iniciais ocultos? Se formos nos ater a isso, quando será que teria começado a guerra de 1914? Podemos, efetivamente, dizer que uma guerra durou 4 anos, mas o que são 4 anos de guerra? Seria a mesma duração de 4 anos sem guerra? Qual o efeito de uma temporalidade dessas em relação às forças de pressão da historicidade? Como acontecimentos convulsivos do tipo das guerras agem sobre a temporalidade? Fariam as pessoas "viverem um tempo concentrado" ou fariam uma privação na base da temporalidade de forma a produzir um vazio? Em qual sentido a densidade temporal dos acontecimentos influiria nas vivências do tempo histórico das pessoas?
Será apenas ao nível de "histórias" onde se poderá inserir uma crítica em relação a uma tendência homogeneizante d'A História. Esta homogeneização, esta normatização da temporalidade, calcando-a apenas na cronologia, precisa ser questionada.

Tempo histórico enquanto transformando acontecimentos em conceitos.
É preciso ver neste tipo de tempo a atividade de se transformar matéria de acontecimento em conceitos para o uso das empírias. Para isso, ele precisa transformar "materiais brutos", "matéria prima" em matéria elaborada: homogeneizada, devidamente empacotada e congelada. E isso o é tanto no sentido d'A História quanto no das histórias.
As histórias trazem a coabitação de tempos. Estilos de vida e de pensamentos de épocas diferentes convergem no mesmo espaço. Essa coabitação é um sinal de algo não homogêneo. Esse sentido diverge do hegeliano, para quem só existiria sentido na história se esta fosse unidirecional e se seu sentido fosse único e absoluto.
Este sentido não homogêneo e não linear encarrega-se de uma reforma de conhecimento e não uma busca de exatidão. Bachelard diz: "O conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão".... "Somos o limite de nossas ilusões perdidas".
Bachelard vai mostrar como é no escrever da história que se insere uma duração nos acontecimentos. Esta duração "psicológica" é distinta do tipo de duração interna das coisas. O plano da narrativa é sempre um plano psicológico onde os personagens são "tipos psicológicos", plano onde o próprio historiador aparece com sua subjetividade de fundo, por maior que seja o esforço para ausentar-se de julgamentos - a própria forma e a intenção de ordenar escolhendo os acontecimentos da narrativa inserem já uma subjetividade.

Burguesia e tempo histórico.
Existe no âmago da história uma pretensão da burguesia, levantada por Marx, em constituir o "homem burguês" como homem universal. A função básica deste tipo de discurso, porém, é a produção de novas necessidades. Esta função produtiva, criativa de novidades, se distingue da demarche repetidora da burguesia. A força do proletariado está do mesmo lado da força da história. A história enquanto evento criador de novas necessidades move-se pelo capital. Ora, para nós o capital já é tempo. O homem alienado é aquele sem consciência histórica, ou seja, sem a consciência das forças operantes sobre ele produzindo-lhe necessidades, bem como criando dispositivos de resposta para estas necessidades produzidas. Este alienado - "que não trabalha para si, mas para o capita" - é a grande força de consumo da sociedade industrial.
Vamos vendo como existem maneiras bem distintas de se tomar a história. Isso vai evidenciando o fato da temporalidade apresentar-se de uma forma múltipla, servindo para sustentar em universos conceituais, determinados e determinantes.
Claude Lefort vai desenvolver algo interessante a respeito do sentido histórico: "O sentido histórico é o avesso do bom gosto", escreve ele parafraseando o aforismo 223 de Nietzsche em "Para Além do Bem e do Mal". "Essa atividade desenfreada de nossos órgãos resulta da formação de um sexto sentido chamado "sentido histórico", o qual nos veio em conseqüência do estado de semibarbárie sedutora e louca na qual a Europa foi mergulhada em decorrência da mistura democrática das classes e das raças."
Enquanto uma das formas de ser do tempo, a história é diversa e múltipla em si mesma, deixando mais uma vez se ver a multiplicidade inerente ao conceito de tempo - trata-se de algo cuja potência é dada, exatamente, por ser díspar em si mesmo. É a história aquilo a impossibilitar sua totalização, uma vez ela acabar dando provas da parcialidade e da precariedade do sentido em relação aos fatos, bem como a maneira insidiosa pela qual o presente atua sobre a construção do sentido para o passado.

Foucault: história e genealogia.
A própria história vai acabar por, desde o século XIX, nos ensinar a rir da solenidade das origens. Ela vai deixar ver como são dispositivos de poder, extrínsecos aos discursos e às subjetividades, aquilo a lhes dar condições de possibilidades. O poder deixará de ser um lugar específico com figuras bem determinadas. Tratam-se de dispositivos, de uma rede aparecendo sob o signo da eficácia, do bom funcionamento, da disciplina ocupando o tempo. Este tipo de poder, porém, é parte de um certo tipo específico de dominação, começando a ser enunciado por Kant e desvelado por Sade - caso soubéssemos lê-los adequadamente.
O discurso histórico havia sugerido a possibilidade de se encontrar, nas origens, "as coisas" efetivamente em seu "ser" - a sua natureza, a sua essência. A genealogia fará parte de um movimento vindo a mostrar outra coisa:
"Que atrás das coisas há "algo inteiramente diferente": não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construida peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu de uma maneira inteiramente "desrazoável" - do acaso. A dedicação dos cientistas, de seu ódio recíproco, de suas discussões fanáticas e sempre retomadas, da necessidade de suprimir a paixão - armas lentamente forjadas ao longo das lutas pessoais. E a liberdade, seria ela, na raiz do homem o que o liga ao ser e à verdade? De fato, ela é apenas uma "invenção das classes dominantes". O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem - é a discórdia entre as coisas, é o disparate."
A sedução do discurso clássico como sendo uma possibilidade de se saber da verdade e se esclarecer sobre as origens, começa a despencar. A própria "história da verdade" começa a aparecer como a "história de um erro".

Genealogia.
A genealogia não aposta em um tempo linear para o surgimento, para um "broto". Trata-se de um tempo discreto, atravessado por incomensuráveis linhas de força, por movimentos imprevisíveis de interrupções, avanços e desvios sem deixar chance de se antecipar um sentido. O surgimento, o ponto de aparecimento, diz respeito a um tempo indômito, devido a entrada em cena das forças de um salto como irrupção e interrupção. A história havia apostado em uma possibilidade de perseguir o surgimento em seus meandros ocultos e originários, mas nos demos conta da presença de um "não lugar", de um "puro tempo" que rechaça o sentido, rechaça a palavra. A origem produz um efeito de falseamento no seu horizonte de eventos.
Tinha-se feito crer em uma "visão supra histórica", um olhar fora do tempo desde onde se observava os jogos do passado. Mas não é possível nenhum olhar deste to[p, nem qualquer visão dessa. O resultado positivo da história, embora inesperado , foi o de reintroduzir no devir tudo o que se tinha acreditado imortal no homem. É preciso despedaçar toda a visão histórica totalizante, desmantelar todo ideal de um "tempo-Todo". O tempo histórico só será efetivo na medida de reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser. Trata-se de se desfazer a ilusão segundo a qual este tipo de narrativa poderia, não só nos possibilitar um reconhecimento como, também, nos possibilitar reencontrar-nos.
Graças ao tempo histórico pode-se dar conta da não totalidade do tempo. Ele nos faz ver a ilusão relativa à expectativa da introdução de uma totalidade através da historicização: recolhendo-se os acontecimentos todos dispersos pelos territórios ( através da antropologia e da sociologia) e pelas camadas de tempo. Isso mostrou-se uma doce ilusão, só viável a nível de uma crença. É preciso, como sugere Nietzsche, uma "Wirkliche Historie" ( Uma história efetiva, de fato) para poder não ter receio de um "olhar baixo", distinto do olhar absoluto e supra histórico. Somente este olhar pode deparar-se com a intrincada rede dos "nervos" do tempo.
A genealogia usa o tempo não para reencontrar as raízes de nossa identidade, mas sim no sentido de dissipá-las: decididamente, não pretende usar-lo para marcar um território único de onde teríamos vindo - não é para afirmar esta ilusão que o usa genealógicamente: trata-se de fazer aparecerem as descontinuidades a nos atravessarem. Mas, isso só nos é acessível na medida em que abrimos mão de uma intenção de totalização e de garantias. A presença de "aparelhos de captura", de intenções intervenientes e de controle, constituem um contexto inviabilizante de qualquer possibilidade de abordar estas redes discretas e descontínuas. É preciso abrir mão de uma caríssima noção de "causas", "fundamentos" e "princípios".
A genealogia deixa ver como a origem é sempre uma questão de poder, uma questão de conveniências de poder. Enquanto o tempo não escolhe, não faz heróis nem recolhe os melhores - trata-se sempre de intervenções discretas em um "não local" onde sempre está uma repulsão à intervenção da linguagem. Esta "não-localidade" diz respeito a um tempo desvinculado da idéia tanto de espaço quanto de número. O sentido de "origem" é distinto tanto de "fundamentos" quanto de "princípios". A genealogia trata dos começos como manifestação das tranças do poder, trata de um tempo do começo como neutralizador de fundamentos e de causas. O poder não é a causa, o fundamento ou o princípio dos acontecimentos. Isso se decide dentro das tramas e das redes: "efeitos de poder", mas nunca "poder como causa", tal como se diz: " fiado só amanhã, nunca hoje".

Tempo histórico enquanto tempo restitutivo.
Aos resíduos deixados pelos estratos de tempo se pretende restituir aquilo mesmo retirado pelo próprio tempo. E o que é isso? Exatamente as palavras. Fazer história é restituir aos restos de coisas, as palavras. Mas como recompor o contexto de palavras onde tais resíduos eram coisas? Não devemos achar que os acontecimentos, quando aconteceram, eram incompletos e apenas com o avanço do conhecimento seria possível inserir neles sua falta, de forma a totalizá-los ou complementá-los. Deleuze esclarece bem isso, quando escreve - no seu texto sobre Foucault:
"Cada formação histórica vê e faz ver tudo o que pode, em função de suas condições de visibilidade, assim como diz tudo o que pode, em função de suas condições de enunciado. Nunca existe segredo, embora nada seja imediatamente visível, nem diretamente legível. E, de um lado e de outro, as condições não se reunem na interioridade de uma consciência ou de um sujeito, assim como não compõem um Mesmo: são duas formas de exterioridade nas quais se dispersam, se disseminam, aqui os enunciados, lá as visibilidades. A linguagem "contém" as palavras, as frases e as preposições, mas não contém os enunciados que se disseminam segundo distâncias irredutíveis. Os enunciados se dispersam conforme seu limiar, conforme sua família."
O tempo não vem acrescentar aos acontecimentos e às coisas algo que lhes faltou quando do seu tempo próprio de maneira a complementá-las. A possibilidade apresentada pela estratificação do tempo em criar condições de possibilidade de sempre se poder ressignificar, diz respeito, exatamente, à introdução de um regime de liberdade, segundo o qual a verdade nunca está dada da mesma forma que a liberdade nunca é dada.
A noção de interioridade não é dada pela verdade do ser - como se fosse o ser, na sua revelação ou ocultamento, aquilo a produzir uma impressão ou noção de "algo interior" - esta noção é dada por um tipo específico de dobra gerada pela sexuação. É o tipo de sexualidade humana, particularmente a nossa depois de ter passado por um regime muito específico de recalcamento, aquilo a constituir um sentido bastante singular para esta dobra e, portanto, também, uma interpretação bastante própria para o "interno". Quem faz esta dobra é, exatamente, um tempo que não é propriamente o histórico ( tanto que não se pode fazer uma história da sexualidade como se pode historicizar outra coisa qualquer - Foucault defende bem esta tese em sua "História da Sexualidade" - é preciso, para a sexualidade, um discurso especial). Este tempo "faz dobras," em vez de apresentar provas. Nestas dobras, ele neutraliza os enunciados, diferenciando-se do tempo histórico, sempre deixando a impressão de expor enunciados através de fazer aparecer, dentro de um contexto, elementos de outro regime.

Sexualidade e história.
Neste sentido, a memória é o avesso da sexualidade. A memória, diz Deleuze,
... "é o verdadeiro nome da relação consigo mesmo, ou do afeto de si por si."
Desta maneira: "Só o esquecimento ( o desdobramento, dépli) encontra aquilo que está dobrado na memória ( na própria dobra)."
Só a sexualidade, através da repetição, fará surgir aquilo que a memória oculta. Um dos resultados mais efetivos da repressão "ocidental" da sexualidade foi o desvirtuamento das superfícies, onde efetivamente está a sensibilidade de cada um. Com isso se "inventou" o profundo, o de dentro. Ora, isso foi desde pelo menos Santo Agostinho, identificado com a memória e esta, com o tempo subjetivo - vindo a se constituir no próprio sentido tanto de sujeito quanto de subjetividade. Foi preciso os "doentes mentais", particularmente as histéricas, conduzirem um levante neste sentido. Este levante possibilitou a Foucault uma formulação bastante significativa, no sentido de dizer de como antes dos efeitos mais complexos da repressão da sexualidade havia "carne", depois foi aparecendo o "sexo" e só já no século XIX apareceu a sexualidade, onde foi, desta maneira, passível de ser enunciada de uma forma discursiva, tal como a apreendeu Freud. O tempo significativo para o corpo não está decisivamente nas dobras da memória. Aliás, esta dobra é produzida por uma intervenção específica no regime da sexualidade; é preciso tomar a sexualidade enquanto o "não-local" por onde o tempo se faz presente no corpo. Mas para poder dizer melhor deste regime de tempo, é preciso retomar as dimensões da carne - visto ser ela tanto aquilo a responder ao tempo.
Mas a memória é, ela também, afirmativa afinal: "O tempo como sujeito, ou melhor, subjetivação, chama-se memória"
Este efeito subjetivante constitui o sujeito através de um ato de fazer esquecer, mantendo o esquecido impossibilitado de retorno na memória, criando por este dispositivo, a necessidade de recomeçar - mas recomeçar sem saber o que. Daí se introduzir neste espaço vazio, um estofo, na forma de "um desejo de recomeçar de novo sob novas expensas." O sentido de sujeito restrito a nossa forma de ser diz respeito a este efeito da memória. Vamos ver como é este efeito aquilo mesmo duramente atingido nas "sindromes anímicas". O sujeito será aquilo a se constituir enquanto velando e ordenando um caos qualquer. Será nas crises onde veremos surgir aquilo a dar causa e sustento ao sujeito, ou seja, revela-se aquilo cuja sua existência serve para velar.

As dobras do tempo fazendo a subjetividade.
Podemos, então, dizer de como enquanto a memória "dobra para dentro", a sexualidade "dobra para fora", mas e o que é dobrado? O dobrado é o tempo metamorfoseado em carne. Por isso, a sexualidade aparece sob o signo do obsceno em uma sociedade que só tem um grande apreço pela verdade, pela essência e pelo saber, exatamente por temer e fugir intensamente das condições de onde efetivamente emergem estas situações. Oque se pretende é uma verdade e um saber domado, algo a causar comoção alguma.
A subjetividade se instaura a partir do retraimento de elementos diferenciais para uma linha qualquer se estabelecer. Constitui-se, desta maneira, ao mesmo tempo, enquanto o retorno do recolhido na forma de criação, de transformações, crises etc. Trata-se de um dobra no tempo e não no espaço, daí sua primeira conceituação ter sido feito sob o título da memória. O sentido de "interno", em se tratando do psiquismo, deve ser tomado como uma referência a dobras no tempo e não no sentido espacial.

História e Sono.
Na medida da história requerer o sentido genérico de tempo para si, ela reivindica também para si, a posição da vigília do ser. Com isso, aquilo que não é histórico seria desprovido de tempo. Mas seria este tempo exclusivamente "O Tempo"? Não seria na medida do sono subtrair uma parte do tempo, subtrair por um tempo o sujeito da história que, com isso, ao retornar ele passa a ter a consciência tanto do tempo do tipo histórico quanto de sua própria existência? Este movimento é análogo àquele onde é a morte aquilo a estabelecer o sentido da vida - não pela morte se opor ou se distinguir radicalmente da vida - mas, exatamente, por deixar ver, afinal, qual a finalidade da vida. O sono - ou a privação do tempo histórico - é aquilo mesmo a deixar ver qual a finalidade da historicidade.
Não é por acaso a tendência de sempre se ver nas sociedades não históricas uma posição onírica, como se estivessem imersas em um "grande sono do ser e da verdade". Mas isso é um ponto de vista bastante simplório, tanto no tocante à complexidade inerente a qualquer sociedade quanto ao sentido e ao valor do onírico e do sono.
O sono não só mostra a impossibilidade de uma totalidade linear do sujeito, como, principalmente, instaura as próprias condições de possibilidade da historicidade ao privar dela seu negativo. Este negativo é aquilo mesmo restituído pelo sonho. Por isso, os algoquins dizem: "O sonho é ainda mais real que a morte". A introdução do sonho ou sua interpretação, porém, não instituem uma totalidade antes desmembrada. O sonho e o sono deixam ver as estratificação e as incompatibilidades inerentes à temporalidade própria do corpo. No mesmo sentido não é a imaginação ou a arte aquilo que vai estabelecer com a história a totalidade do sentido. Elas vão, isso sim, transparecer uma das formas da dobra essencial para a constituição do discurso, do saber e da própria linguagem. O sentido desta dobra é a manifestação de uma precariedade, de uma desterritorialidade e não-totalidade como condição de possibilidade daquilo que se manifesta.
Sono e história, sonho e vigília, imaginação e realidade não são oposições na mesma linha, no mesmo plano: um é essencial ao outro, sendo os "negativos" ainda mais essenciais. O fato de um ser essencial ao outro não significa ser o sono, por exemplo, necessariamente desdobrado em história, ou sonho em vigília, ou imaginação em realidade. Será o tipo de regime de tempo no qual estes elementos se inserem, aquilo a definir o efeito de suas dobras. Com isso se quer dizer de como a história, por exemplo, seria atravessada pelo tempo, enquanto o sonho não o seria. O fato do sonho ser atemporal significa o sono ser essencial à temporalidade. O sonho só é atemporal por estar imerso em tempo, mas não em um tempo qualquer: em um tempo privativo como condição do tempo do tipo histórico e da função do tipo consciência. Este tempo tem como sua materialidade o sono.
É possível se ver a presença deste tempo também na arte, devido a ser ela, por princípio, também atemporal. O tempo da arte não é do tipo histórico, nem serve para complementá-lo. Porém, sem a função estabelecida por este tipo de temporalidade, a história também não se constituiria. Não se constituiria por não ser privada de seu privativo e, enquanto totalidade, nada pode vir a ser. Estas temporalidades tem, por função, fazer faltar - introduzir um regime privativo como espaço para o negativo do tempo histórico, criando, por estas vias, as condições de possibilidades da realização.

5.5 O tempo mítico

O mito inserido no atual
O tempo mítico faz parte do mesmo paradigma do tempo histórico, do onírico e do artístico. Não se trata de um tempo antigo ou primitivo. Isso não só por ele estar presente atualmente - não só em outras sociedades como em nós mesmos, através dos sintomas anímicos e dos sonhos. C. G. Jung desenvolveu extensos trabalhos para fazer esta articulação.
Se o tempo histórico esta relacionado com a narrativa o mítico está relacionado com a ação. Esta articulado com o trágico, com a tragédia e, desde ai, com o cômico. Enquanto ação aparecem enunciados atualmente no sentido de "fantasia" ou "fantasma". Significa: trata-se de uma cena, de um acontecer, onde o sujeito é figurado. Este sujeito é aquele mesmo a defender velando as causas de sua origem. São estas causas que as crises e o desenlace trágico ou cômico deixa ver. O mito suscita, comove, convoca, apresenta uma ação, um ato do discurso. Enquanto ato do discurso não é permeável a um "além dele", a uma interpretação. O mito é o ponto onde começam os enunciados, a palavra enquanto ato.
Vamos reproduzir um depoimento de Davi Kopenawa para representarmos a formulação acima:
"Vou te dizer o que nós pensamos. Nós chamamos essas epidemias de xawara. [É] a xawara que mata os yanomami. É assim que nós chamamos epidemia. Agora sabemos a origem da xawara. No começo, nós pensávamos que ela se propagava sozinha, sem causa. Agora ela está crescendo muito e se alastrando em toda parte. O que chamamos de xawara , há muito tempo nossos antepassados mantinham isso escondido. Omanê (o criador da humanidade yanomami e de suas regras culturais) mantinha a xawara escondida. Ele a mantinha escondida e não queria que os yanomami mexessem com isto. Ele dizia: "Não! Não toque nisso!". Por isso ele a escondeu bem nas profundezas da terra. Ele dizia, também: "Se isso fica na superfície da terra, todos yanomami vão começar a morrer à toa!". Tendo falado isso, ele a enterrou bem fundo. Mas hoje os nabebe, os brancos, depois de terem descoberto nossa floresta, foram tomados de um desejo frenético de tirar essa xumara do fundo da terra onde Omanê tinha guardado. Xumara é também o nome do que chamamos booshikê, a substância do metal, que vocês chamam de "minério". Disso temos medo. A xamara do minério é inimiga dos yanomami, de vocês também. Ela quer nos matar. Assim, se você começa a ficar doente, depois ela mata você. Por causa disso, nós yanomami, estamos muito inquietos.
"Quando o ouro fica nos frio das profundezas da terra, aí tudo está bem. Tudo está realmente bem. Ele não é perigoso. Quando os brancos tiram o ouro da "erra, eles o queimam, mexem com ele em cima do fogo, como se fosse farinha. Isso faz sair fumaça dele. Assim se cria xamara, que é a fumaça do ouro. Depois, esta xamara wakêxi, esta "epidemia-fumaça", vai se alastrando na floresta, lá onde moram os yanomami, mas também na terra dos brancos, em todo lugar. É por isto que estamos morrendo. Por causa desta fumaça. Ela se torna fumaça de sarampo. Ela se torna muito agressiva e quando isso acontece ela acaba com os yanomami...
"Quando os brancos guardam o ouro dentro de latas, ele também deixa escapar um tipo de fumaça. É o que dizem os mais velhos, os verdadeiros anciãos que são grandes pajés. Quando os brancos secam o ouro dentro de latas com tampas bem fechadas e deixam estas latas expostas à quentura do sol, começa a sair uma fumaça que não se vê e que se alastra e começa a matar os yanomami. Ela faz, também, morrer os brancos da mesma maneira. Não é só yanomami que morre. Os brancos podem ser muito numerosos, mas eles acabarão morrendo todos também. É isto que os yanomami falam entre eles...
"Quando esta fumaça chega no peito do céu, ele começa também a ficar muito doente, ele começa também a ser atingido pela xamara . A terra também fica doente. E mesmo os bekurabê, os espíritos auxiliares dos pajés, ficam muito doentes. Mesmo Omanê fica atingido. Deosimê (Deus) também. É por isso que estamos agora muito preocupados.
"Tem, também, a fumaça das fábricas. Vocês pensam que Deosimê pode afugentar esta xamara, mas ele não pode repelir esta fumaça. Ele também vai ficar morrendo disso. Mesmo sendo um ser sobrenatural, ele vai ficar muito doente. Nós sabemos que as coisas andam assim, por isso estamos passando estas palavras para vocês. Mas os brancos não dão muita atenção. Eles não entendem isso e pensam simplesmente: "Esta gente está mentindo!" Não há pajés entre os brancos, é por isso. Nós yanomami temos pajés que inalam o pó de yakõana, que é muito potente, e assim sabemos da xamara e ficamos muito inquietos. Não queremos morrer. Nós queremos ficar numerosos. Mas agora que os garimpeiros nos viram e se aproximaram de nós, apesar do fato de Omanê ter guardado o ouro embaixo da terra, eles estão retirando grandes quantidades dele, cavando o chão da floresta. Por isso, agora a xamana cresceu muito. Ela está muito alta no céu, se alastrou muito longe. Não é só o yanomami que morre. Todos vamos morrer juntos. Quando a fumaça encher o peito do céu, ele vai ficar também morrendo, como um yanomami. Por isso, quando ficar doente, o trovão vai se fazer ouvir sem parar. O trovão vai ficar doente também e vai gritar de raiva, sem parar, sob o efeito do calor...
"Assim o céu vai acabar rachando. Os pajés yanomami que morreram já são muitos, e vão querer se vingar... Quando os pajés morrem, os seus bekurabê ficam muito zangados. Eles vêem que os brancos fazem morrer os pajés, seus "pais". Os bekurabê vão querer se vingar, vão querer ficar cortar o céu em pedaços para que ele desabe em cima da terra: também vão fazer cair o sol, e quando o sol cair, tudo vai escurecer. Quando as estrelas e a lua também caírem, o céu vai ficar escuro. Nós queremos contar tudo isso para os brancos, mas eles não escutam. Eles são outra gente e não entendem. Eu acho que eles não querem prestar atenção. Eles pensam: "Esta gente está simplesmente mentido!" É assim que eles pensam. Mas nós não mentimos. Eles não sabem destas coisas. É por isso que eles pensam assim..."
Podemos ver como isso é dito entre nós em termos de "poluição", "ozone", etc. A diferença é o fato das sociedades míticas tomarem a palavra como centro de importância, enquanto para as sociedades históricas, são os valores materiais e irracionais a tomarem o centro dos interesses. Com isso queremos deixar ver como a narrativa mítica não está em um tempo antigo, como se fosse a pré-história.

Mito e história
Ainda para dizer do tipo de diferença entre o tempo na narrativa histórica e no ato mítico, vamos encontrar nos próprios mitos, a presença da história enquanto um tipo de tempo particular. Trata-se de Clio, a musa da história.
Clio é filha de Mnemosine, a titânica irmã de Cronos (pai de Zeus), ambos gerados por Gaia ( a Terra), e Uranos ( os Céus). Tempo, Memória e História são, assim, originariamente anteriores aos reinados olímpicos presidido por Zeus e sua luminosidade ordenadora, expressa, também, na forma de razão. Mais arcaicos, a estirpe titânica marcada por insubordinação e violência, tempo, memória e história incessantemente questionam o instituído e o fixado, mantendo tensa a relação com a racionalidade olímpica, unificadora e sistematizante. Antes do surgimento de uma história "científica" a memória era um atributo do poeta - este é um antes lógico e não cronológico: lógico no sentido de ser a memória do tipo poética aquela a sustentar a memória do tipo científica -. A função poética é presidida por Mnemosine, a mãe das Musas. Poesia e adivinhação possuem grande intimidade. A memória mítica, como diz Hesíodo, é aquela a "reintegrar o tempo humano na periodicidade cósmica e na eternidade divina" A poesia não procura resgatar o tempo humano, vivido e perdido, mas, sim, procura romper as malhas e cadeias desse tempo "horizontal" - a cronologia dos eventos - para retornar ao Aion, ao "sempre" do instante infinito, característico da vida dos deuses, ao tempo que não envelhece, ao mítico Principio. Os deuses gregos eram concebidos como imortais, mas não como eternos, daí serem infinitos na sua manifestação - tal como é o sentido da poesia no seu tipo de convocação ao tempo, ao tipo de memória evocada por ela.
Vamos ver como esta concepção do tempo mítico nos remete a uma disparidade nele mesmo, disparidade esta, essencial para seu regime de complexidade. De um lado temos sua função titânica - impermanente -, de outro, sua função de permanência - daquilo que não envelhece.

5.6 Sobre o sentido do mito
O termo "mito" diz respeito aos referenciais conceituais dos "outros". O senso comum costuma chamar de mito a construção de sentido dos outros, enquanto se designa a própria com sendo da ordem da verdade, da ciência, etc.

Princípio e origem.
O tempo mítico se refere a um ( Prótos, antes, anterior), a um "Ur" (originário). A algo sempre antes do começo, algo a fazer o começo e a dar a finalidade do acontecimento. Para o mito, tudo está e é decidido "antes", mas não um antes exatamente cronológico e sim lógico, ou seja, é na trama conceitual, na rede da Linguagem e do sentido onde se dá a decisão. Aos homens, aos entes, compete a ação de atualizar e de conquistar aquilo da ordem do princípio e da origem. O mito trata não do acontecimento propriamente, nem de suas causas, mas, efetivamente, daquilo que ele sempre foi e é para além de sua aparência. O tempo mítico diz de como tudo se define em um antes lógico do acontecimento acontecer. O mito serve para dar uma causa e um fundamento, se presta a um tipo de subjetividade onde o sentido é a base da ação.
De maneira geral, a ação mítica aponta para o fato do mais essencial do real ser aquilo mesmo cujo sentido é, para nós, mais fugidio, evanescente e imperceptível. Que seja, exatamente, o Mistério. A essência da realidade, portanto, é imperceptível, não porque transcenda, mas porque está profundamente arraigada no seu interior. É só através da ficção, ou para as sociedades míticas através de um esforço de exegese, por onde se pode ter a experiência, a vivência desta essencialidade.
É preciso um movimento de conquista, de redescoberta do tempo, apesar dele ser sempre já dado, mas dadas as condições pelas quais se dão e a forma pela qual o homem é movido pelas aparências, ele só pode ser da ordem de uma redescoberta. É disso, por exemplo, que nos fala Proust na sua "procura do tempo perdido". Estando sempre já dado este tempo, é basicamente transitoriedade, essencialmente "impermanente". Por isso se diz de como o real deve ser sempre reencontrado, sempre conquistado, é sempre preciso a ficção para acessá-lo.
O tempo originário, mítico, é colocado antes, mas é constituído depois. Seu estabelecimento é análogo ao da teoria, ou seja, serve para dar sentido a um conjunto de acontecimentos lhes fornecendo uma causa com sentido. Por isso, trata-se de uma origem lógica e não cronológica.
Os deuses, eles mesmos, apresentam-se como manifestação disto. De que? Da necessidade de se fazer retirar o plano de imanência da realidade, de se fazer faltar nela o essencial mesmo, de tal maneira isso ser possível graças a esta privação.
Longe de dizer de um começo, como pode parecer, o mito fala de um originário. O originário é o contrário do começo. Trata-se de uma teoria do não-começo. Nada ainda começou e tudo já está se dando. "Mal começou e já está em ruínas", diziam os gregos.

Tempo e sentido.
O referencial hindu, por exemplo, nos apresenta a história de uma ausência. Nos Purana, cujo sentido é o de "antigüidade", não se trata do passado da humanidade e sim do futuro cíclico do cosmo - cosmos é o nome dado a um "mundo com sentido". Os próprios rituais, sempre vinculados com as vivências míticas, servem para preencher a angústia diante de um não-começo. O ritual procura tornar a idéia de um começo menos terrível. O tempo é um upanisad, um sistema de conexões na forma de um tecido, possuindo em si uma característica de nidana, de vínculo. Mas o hindu é uma língua rica em deixar ver as oposições. Nidana é o vínculo entre elementos situados em planos diferentes, portanto, ele também indica uma separação de cuja vinculação o tempo se responsabiliza.
Isso é, mostra como a narrativa mítica serve para dizer de um silêncio no começo. Um mistério.
Sempre encontramos as narrativas míticas ocupadas de um enunciado moral tratando acerca do bem e do mal. Por isso, não são todas as narrativas a ocuparem-se do tempo, visto o tempo não ser da ordem de uma moral, não estar condicionado ao território nem as leis do lugar. O tempo é da ordem de uma Physis e de uma elaboração sensível do corpo feminino. Este corpo, como depois virá mostrar Freud, é fracamente atravessado pela moral - ele responde a outra coisa e afirma outras condições de possibilidades.

Sobre a dubiedade do tempo mítico.
A ação mítica, como qualquer teoria, não se remeteu para fora dela para explicar-se - apresenta-se enquanto universalidade. Cria seus próprios referenciais de oposição para afirmar seus elementos. Com o tempo se dá o mesmo. Tratam-se de oposições entre physis e ousia , entre masculino e feminino, entre duração e período, entre cíclico e retilíneo, entre luz e sombra.

Tempo solar e o princípio masculino.
Os egípcios e os astecas desenvolveram um calendário bastante complexo e sobre o nosso ponto de vista, dos mais eficazes. Existem afinidades entre seus referenciais míticos. O Sol aparece no centro, principalmente em se tratando de tempo. Pode-se ver no calendário Asteca o Sol com a língua de fora para mostrar sua voracidade. Os sacrifícios humanos não são estranhos a nenhum deles e dão testemunho desta voracidade do sol-tempo.
O tempo solar é cíclico e perene. O Sol representa o permanente, aquilo mesmo sempre a retornar. O tempo solar é o tempo do retorno, porém, não da repetição. Sempre retorna, mas na forma de uma espiral. As suas figurações imaginárias são sacrificiais. É preciso contentar o Sol para ele manter sua perenidade. Este tipo de tempo oferece uma garantia, visto estar sempre presente. É um tempo fixo.
Os astecas sacrificavam só na Cidade do México em torno de 25.000 pessoas por ano, basicamente para "atar os anos", ou seja, para fazer o tempo "andar nos seus eixos". O tonalamatl, o calendário asteca para eles, era considerado a base, o princípio e o fim de todo conhecimento. O conhecimento do tempo era o conhecimento mor para a cultura asteca, sendo este tempo, o tempo solar. Podemos ver no calendário como o tempo gira em torno do Sol voraz. Este tipo de temporalidade sempre provoca esta impressão: oferece a segurança da perenidade, mas exige sacrifícios e nunca é aplacado em sua voracidade.
Os egípcios tecem a sua mitologia em torno de Amon-Rá, o deus Sol, cuja barca solar é responsável pelo fluxo do astro luminoso. Amon-Rá significa, originariamente, "escondido". Este era, para eles, o próprio sentido tanto do divino quanto do tempo. Tratava-se do mistério. Este mistério era também a morte. Ocupavam-se de maneira intensa com a eternidade. É claro que este mérito não era de todos os egípcios. Este privilégio era apenas para os conhecedores dos mistérios do tempo, ou seja, através da escrita. A escrita era aquilo através do que as divindades comunicavam-se. A letra é tão permanente quanto o Sol e quanto ao tempo. Letra, Sol e Tempo se enlaçam no imaginário egípcio. Este atributo de eternidade não deixava de ter seu ônus em sacrifícios. Milhares de pessoas eram sacrificadas em torno das pirâmides e ninguém era sepultado sem envolver sacrifícios. A escrita nas tumbas era para quando seu morto ressurgisse poder saber quem era, qual sua posição, seu nome e sua linhagem, já que durante a morte ocorre o esquecimento e a letra é a única coisa a permanecer como possível de reparar este esquecimento, isso por ela ser o instrumento mesmo de comunicação do espírito.
A mentalidade egípcia influenciou bastante os gregos, porém, originariamente, os gregos cultuavam a Mãe, não o Pai. Daí sua tradição oral até a idade clássica. A letra chegou tardiamente na Grécia, já como "canto do cisne" dos mitos, enquanto narrativa oral e fluída.
Por um lado, portanto, a imagem do tempo mítico se vincula ao Sol enquanto permanência, enquanto eternidade e eterno retorno. O sol não se repete, daí as estações e as divisões do calendário, mas ele retorna ciclicamente. A idéia deste ciclo avançar só aparecerá com a introdução do tipo de tempo linear judaico. O fato dele não se repetir, originariamente, não significava que ele avançasse.
O tempo solar é um tempo calculável, sua característica é exatamente esta. Apesar do ônus que exige dos homens, ele se presta para tarefas utilitárias no gerenciamento "das coisas humanas". Esta imagética de tempo - o ciclo - vigora de forma intensa no imaginário até hoje. As concepções dos períodos de tempo sempre implicam em ciclos dentro de ciclos baseados na referência solar. Vamos designar este tempo de um tempo fálico, masculino, ativo, servindo as condições de poder. O domínio e o exercício deste tempo sempre esteve associado ao gerenciamento do poder. Gerenciar o tempo, penetrar em seus mistérios, corresponde já ao exercício do poder. As culturas solares sempre se impuseram sobre as outras - sobre as lunares, por exemplo . Veja-se os Astecas, os Incas, os Egípcios, os Romanos, os Chineses etc. Geralmente, quando no exercício de expansão e de dominação, as forças estão sob uma representação solar do tempo. Uma exceção foram os muçulmanos com sua "meia-lua" e com um sentido acurado de tempo ligado ao instante.
O tempo solar diz respeito a um tempo hegemônico.
A astrologia, outro referencial mítico de tempo, liga-se, tradicionalmente, a importância da presença solar. O ciclo do sol através das casas do zodíaco vai determinando os acontecimentos. Apesar disso, algumas pessoas, como Diana Vergara, por exemplo, vão dar privilégio, na astrologia, a posição da lua - principalmente da "lua negra. É claro, que na sua origem, a astrologia não dizia respeito aos destinos individuais, a não ser das pessoas distintas dos "indivíduos", ou seja, de representantes de potências.

A divisão irreconciliável do tempo.
O referencial originário do tempo enquanto divisão, enquanto afirmação do não todo: o dia não pode ser "um todo", uma vez estar já dividido em pedaços inconciliáveis, visto serem de naturezas diferentes. O universo da noite e do dia são não só distintos como inconciliáveis - daí apontarem para "um" dia como um "não-todo". O dia é, exatamente, a afirmação originária da ausência da completude, das possibilidades de totalização e de complementaridade. A noite e o dia não se complementam, tratam-se de tipos de forças, de formas de potência distintas, apesar de fazerem parte do mesmo elemento. Por isso, é o tempo aquilo a introduzir uma desilusão na totalidade com a predominância do domínio baseado na força e na gerência fálica. Este tipo de predominância, porém, não é nem absoluto nem a única predominância a se exercer.
O império como representação solar refere-se ao exercício de um dos tipos de força do elemento do tempo. Que o dia se imponha sobre a noite, que o claro se imponha sobre a sombra, é uma impressão bastante difundida, mas vamos ver, não corresponde a um absoluto, visto o tempo introduzir uma espécie tal de não-todo que este poder não chega a atingir a natureza mesma da noite - esta, também, sempre retorna ao seu lugar e deixa aparecer a sua universalidade própria, como qualquer real.

Tempo lunar e princípio feminino.
Em oposição ao tempo solar temos, portanto, o tempo lunar. Trata-se de um tempo cujo fundamento é o próprio corpo feminino. O corpo da mulher sempre foi tido como composto de tempo. A mulher foi, originariamente, assumida como de natureza diferente do homem - tal como a noite o é em relação ao dia - são outras universalidades. As regras, a gravidez, a variação do humor da mulher, sempre a constituíram como um centro de temporalidade. Uma temporalidade, porém, diversa da solar, um tempo fracionado, instável, inconstante, impermanente, dizem os tibetanos. A mulher é uma das imagens do tempo.
A Lua não faz apenas variar como o faz o Sol, ela mesma varia. Existe uma variação no tempo, é para isso onde aponta o tempo lunar. Várias culturas têm seu calendário lunar. São culturas fluidas nas suas relações de poder e sensíveis em suas relações com as palavras e com o corpo feminino. Não é comum nelas o sentido de dominação e os prazeres ficam antes do sentido do desenvolvimento e da eternidade. A idéia de duração no tempo lunar, bem como a de período estável, é precária. Veja-se os povos da floresta no Brasil, os tibetanos e os homens do deserto.
A interpretação dos mitos com o sentido complementar entre Sol e Lua, entre Noite e Dia, são impregnadas pelo sentido "científico", é "muito solar". A narrativa mítica introduz um sentido não complementar no tempo e pelo tempo. O exercício do absoluto fica privado na narrativa mítica pela impossibilidade de unificação instaurada pelo sentido do tempo. Ora, essa cisão é introduzida pela Lua, pelo feminino. O Sol, como vimos - e podemos acompanhar isso nos movimentos de dominação - tem a intenção de unificar, de totalizar, de instaurar a ordem do absoluto. A narrativa mostra ser isso tão inevitável quanto seu fracasso. Mostra como é inevitável o tempo solar pretender a hegemonia, mas sempre instaurar-se o domínio lunar novamente. O feminino aparec, como o elemento não complementar no tempo, sendo esta a essência do tempo. É o feminino aquilo a fazer a diferença. Não só a fazer como a sustentar. É pelo feminino que o eterno retorno se instaura. O temor do tempo naquilo que ele representa de não todo e de fim é próprio do tipo de contexto solar.
É apenas através de um ponto de vista hegemônico, um ponto de vista implicado com a dominação, de um temor do tempo, que se pode constituir este tempo como "unidades", como "números" (tal como vemos aparecer, não só desde a Grécia clássica, como em estruturas do tipo de dominação absolutista). É este mesmo tipo de contexto a forçar um sentido para a narrativa mítica, como se esta colocasse Noite e Dia compondo uma complementaridade, uma unidade. De fato, trata-se de uma diferença já na base, impossibilitando qualquer unificação, qualquer totalidade. Esta impossibilidade de unificação se sustentando no tempo, sendo o tipo de tempo a sustentar isso, o tempo lunar, e este tempo se tornar materializado enquanto corpo na mulher.
Os sumérios e a tradição aramaica antiga localizaram na "Lua Negra - Lilith" esta potência privativa da totalidade. O mito diz: A Mulher não era da mesma natureza do Homem (Adam). A raça humana tinha sua parte fêmea, mas os machos faziam sexo com outras espécies, particularmente com a Mulher. Em uma certa ocasião, porém, Lilith resolveu querer "ficar por cima" na hora do coito. Adão se surpreende achando aquilo um despropósito impensável. Ambos se desentendem e Lilith decide não mais ter relações com Adão. Este, desolado, procura Deus para queixar-se deste "ser estranho" colocado por Ele no Éden. Deus, ouvindo o relato de Adão, chama Lilith, lhe perguntando: "O que você quer?" - pergunta essa que irá se manter ecoando por toda a tradição judaico-cristão a respeito da mulher.
Neste ponto, Lilith introduz-se exatamente como portadora e afirmadora do não-todo, atingindo duramente Deus na sua onipotência. Ela responde simplesmente: "Quem é aquele que pergunta?" Com isso, não só ela mostra-se desconsiderando a identidade divina, como, também, desconsiderando sua autoridade e onipotência, visto se fosse Ele onipotente, deveria saber já a resposta de sua pergunta. Além disso, como podia o criador submeter-se, com tal pergunta, aos desígnios da criatura? Lilith posiciona-se diametralmente oposta ao tipo de querer "dos homens" - o querer coisas, tal como Deus deixa claro na sua pergunta "O que?" Ela afirma-se como lugar desejante: não quer "coisa" alguma, quer querer, portanto, desejar. Ela afirma a falta, não tendo qualquer disposição em aceitar "algo" para suprimir ou "satisfazer" sua falta de "alguma coisa", não está a procura de um "o que". Isso lhe vale a expulsão do Éden.
Desolado, Adão ameaça colocar a criação divina em colapso. Deus introduz nele, enquanto dormia, um sonho, sendo para Deus o sonho análogo à realidade e através do qual Adão passaria a ver em "um pedaço dele", ou seja, em uma parte de sua raça - exatamente na parte fêmea - a presença, o semblante de Lilith. Esta figura assim formada é Eva: a mulher humana.
Eva tinha o semblante de Lilith, mas não tinha sua "técnica", não tinha seu corpo repleto de faltas afirmativas. Portanto, não serviu para iludir Adão. Foi preciso Deus convocar Lilith de volta, sendo aqui onde entra a serpente para "ensinar" à Eva sua "técnica". Ora, fazem parte de sua técnica os efeitos de sua atitude, de sua forma desejante. Ao introduzir sua técnica, Lilith introduz em Eva, também, um tanto de desejo. Isso levará a expulsão da raça humana do Éden.
Os índios, inclusive, contam cinco luas e não quatro, sendo a quinta, exatamente a lua ausente. Seu sentido é parecido com o dos sumérios: trata-se da presença afirmativa de uma falta no firmamento. O firmamento, com isso, não é de todo "firme". Ora, isso é próprio da atividade desejante. Daí o tempo com a presença da Lua Negra ser de natureza distinta do tempo solar, visto ser o solar um tempo preciso, linearizado.
Lilith, porém, não é apenas uma fase lunar. Trata-se, conceitualmente, da linha de força dos absindos lunares, representa a órbita da lua. Sua órbita é um movimento "inteiro", onde, no zodíaco, demora nove meses e dez dias em cada signo ( exatamente o tempo de uma gestação humana ). Seu ponto mais definido é quando está no apogeu de sua órbita, ou seja, no seu ponto mais distante da Terra - em relação ao seu perigeu. A órbita expressa a tendência de escape relativa a força de atração da Terra. Lilith expressa, assim, uma força sempre presente na Lua e não apenas uma de suas fases. Desta forma, ela seria uma força sempre presente na mulher e não apenas um de seus momentos. Apesar disso, ela se faz presente em alguns momentos de forma mais visível, visto ter na sua maneira própria, uma força.
Nas tradições védicas, sutras e do deserto, também, se faz menção clara a este tipo de tempo relativo à diferença do corpo da mulher. O corpo feminino é muito mais apropriado ao prazer e ao gozo. De fato, ele é feito com esta finalidade, diferente do corpo masculino, mais talhado para a ação. Com esta finalidade gozosa, o corpo feminino é "cheio de buracos". Este buracos não são negatividades, puros vazios. São hiâncias repletas de intensidades, cheias de potências, na forma de demandas e de volúpias. Trata-se de um vazio cheio de sensibilidades. A tradição diz ser o corpo feminino constituído por muitas áreas e formas de prazer diferentes. O prazer fálico, masculino, é até mesmo desconsiderado nestas tradições, não se dá muita importância à quantidade de mulheres do homem, visto ser isso uma espécie de compensação pela natureza precária de seu tipo de prazer. Existe toda uma anatomia e fisiologia do corpo feminino voltada ao erótico. Daí o corpo médico não ter sido de forma alguma adequado a lê-lo, donde a dificuldade da medicina em tratar as histéricas, sendo preciso Freud começar por reconhecer nelas a anatomia de uma outra corporeidade: um corpo erógeno.
O conjunto das faltas, dos buracos do corpo da mulher não deixam possível uma complementação, não deixam chance para a possibilidade de um "encaixe" de maneira a se poder fazer uma unidade. Aristófanes, inclusive, brinca com isso, fazendo comédia no "Banquete" de Platão sobre esta pretensão ilusória de se esperar do amor este tipo de "encontro da outra parte". O corpo da mulher não é um complemento, nem tem complemento. O sexo corresponde à presença e à sustentação deste não-todo. Por isso, o corpo feminino é uma forma de tempo.
Da mesma forma como os buracos, as dobras, reentrâncias e porosidades do corpo feminino apelam, demandam e reclamam por preenchimento, apresentando-se como tendências de acolhimento. Também, a partir de um certo ponto eles rechaçam, recusam e repudiam. Isso na medida de não serem vazios puros, na medida de serem ocupados por intensidades. Estas intensidades repudiam o complemento possível e uma ocupação, visto serem estes buracos não formas de desocupação e sim maneiras carnais do mistério se fazer presente. Mesmo na gravidez, o corpo da mulher vai, depois de certo ponto, repudiar este "complemento". As incompletudes do corpo feminino são responsáveis por instaurarem A Diferença, por isso Lilith é representante do "inumano". A afirmação do inumano corresponde, exatamente, a retirada do humano de seu negativo ,de forma a torná-lo possível. Este negativo, portanto, não é de maneira alguma o seu contrário nem o seu complemento. Para isso, Freud tematizará uma instância "inumana" no sistema anímico, o "Isso" ou "Id" ( das Es)
Considera-se o feminino como aquilo a fazer a diferença, sendo desta forma, aquilo mesmo a sustentar as condições de possibilidade da sexualidade e aquilo a mostrar a intimidade entre sexo e tempo na corporeidade. Como o corpo feminino representa as condições de exercício do prazer pela sexualidade, ele está em via direta de representar igualmente o tempo. Mas este tempo representado pelo feminino, pela Lua, é distinto do representado pelo masculino, pelo Sol, sendo sempre necessário afirmar esta diferença como não pertencendo a ordem de uma complementaridade.
Em um certo momento, Freud diz que as únicas contribuições das mulheres para a cultura foram o fiar e o tecer. Mas isso deve ser entendido de outra forma. No sentido do tecer e do fiar serem atividades de circundar em torno do nada para criar o vazio, sendo, este vazio, o sentido de acolhimento. É apenas em um sentido recortado de desenvolvimento e em um saber de tipo muito restritivo, onde a mulher parece não participar.
De fato, parece mesmo que este saber e este desenvolvimento do tipo falocêntrico não apenas não comporta a mulher, como, também, não interessa por não lhe parecer essencial. Haja visto como nas sociedades mais tradicionais as mulheres são excluídas do jogo político, mas dominam nos lares, como se ficasse para elas evidente o privilégio deste domínio, uma vez ser aí onde se produzem aqueles que vão decidir. No final do século XIX, as mulheres, particularmente na figura das histéricas, apresentam uma incisiva rebelião - se bem que de maneira um tanto atabalhoada - contra o "corpo cheio de órgãos" e contra o "organismo", colocando-se favoráveis ao desejo ( ao corpo erógeno ) e à superfície. Tanto que se costumava dizer da "superficialidade" das histéricas em particular e das mulheres em geral. É Lacan, inclusive, quem vai denotar a maior possibilidade das mulheres em compreenderem o inconsciente e lidar com ele, na medida de tanto A Mulher não existir quanto O Inconsciente também não. Tratam-se de afinidades. Tanto que foram as mulheres, as histéricas da época de Freud, que o "forçaram" a constituir o contexto da psicanálise.
Dizer da necessidade de uma privação para a viabilidade de qualquer realização, não significa apontar para a presença de uma possível totalidade nas origens ou "na essência". Significa apontar para uma expectativa de futuro. Ou seja, a expectativa de se esperar por uma "totalidade" como condição de realização, corresponde a inviabilizar qualquer realização. Esta privação, portanto, não diz respeito a se privar algo cuja natureza é ser inteiro, para assim possibilitar sua expressão. Significa privar a expectativa de qualquer "inteiro", de qualquer "totalidade", para viabilizar uma realidade qualquer. O que estamos formulando é que o dia enquanto "unidade" de tempo mais primitiva, já nos coloca diante disso, visto já não ser inteiro. É exatamente o ponto de vista mítico, particularmente o ponto lunar, aquilo a afirmar este sentido - mesmo isso sendo denegado em qualquer contexto hegemônico.
Estamos vendo como o sexo aparece novamente vinculado ao tempo. Isso no sentido de implicarem no não-todo. Como tempo diz, simultaneamente, mistura ( temperatura, têmpera) e separação, divisão, corte (temporalidade) e sexo conota também estes sentidos; então se deve refletir detidamente sobre esta comunhão de sentidos.

Resumo do capítulo
A história corresponde a um tipo particular de narrativa e um tipo específico de tempo. Sustentando-se em fatos, ela cria um passado a partir de significações do presente. Desta forma, ela constitui um presente antigo no lugar do passado. A potência do tempo histórico é a de ser uma força criativa, uma forma através da qual se pode ver bem qual a ideologia intrínseca ao presente, na medida desta fundar suas causas no passado historiográfico.
A arqueologia e a paleontologia oferecem subsídios para a narrativa histórica. Dão a entender os resíduos deixados pelo tempo. Aquilo não consumido no seu tempo próprio teria sido o mais importante e o suficiente para se fazer uma reconstituição do passado, ele mesmo. Ora, os restos correspondem, geralmente, àquilo não consumido pela fruição de seu tempo.
O tempo histórico deixa a impressão de um "desenvolvimento", sendo exatamente isso a deixar entender seu equívoco, ou pelo menos, a intenção "narcísica" de seu ponto de vista. Baseado em um ponto de vista linear, ela dá a entender uma espécie de linha ao longo da qual a humanidade vai evoluindo. Esta visão repleta de conteúdo ideológico é, ela mesma, a sustentação de toda ciência empírica de praticamente todo discurso epistemológico. Este tempo aponta para sedimentações, camadas de épocas, períodos como objetividade do tempo.
A história é a narrativa dos vencedores. As guerras, os combates não acontecem fundamentalmente para se definir sobre quem será o "dono da palavra". Dominar significa ser o senhor do discurso. Classicamente, a história é o ponto de vista dos dominantes. A isso nomeia-se história, ou seja, significa que onde está localizado o poder se faz localizar, também, a impressão de verdade e de realidade. Isso na medida do poder ser produtor. Somos uma sociedade que se diz histórica por estarmos em uma posição hegemônica, digo nós enquanto sociedade "ocidental" - entre aspas no sentido de haver "no ocidente" uma série de culturas não inscritas nesta territorialidade: o índios, os povos do deserto, os africanos, etc. - estão no "lado" ocidental, mas não pertencem à "cultura ocidental". Portanto, não se trata de uma definição geográfica, mas de uma hegemonia européia e atualmente norte-americana, a assenhorear-se totalitariamente do território. A partir daí, atribuimo-nos a característica de "fazer história", ou seja, a fazer um enunciado verídico.
O tempo histórico, juntamente com a narrativa fundada por ele, representa a hegemonia da razão. A razão coloca em hegemonia os instrumentos de captura, as armas de fogo e os exércitos organizados, a idéia de desenvolvimento e de evolução, bem como a dialética. A dialética é uma das formas da religião, principais produções da razão. E sabemos bem a intolerância característica da razão, sempre que ela está em posição determinante. Toda positividade do tempo do tipo histórico é deixar ver isso, ou seja, é possibilitar na análise de seu equívoco, algum efeito de verdade relativo ao lugar e ao sujeito onde ele se dá. É preciso se dizer sobre o tempo histórico como sendo aquele que vai possibilitar a emergência do equívoco da narrativa histórica e a revelação da ideologia da qual ela faz parte e sustenta. Isso na medida do tempo ser aquilo, exatamente, a inscrever brechas e provocar o aparecimento das impossibilidades do absoluto.
A genealogia, introduzida por Nietzsche e defendida por Foucault, propõe um ponto de vista critico quanto ao tempo histórico. Retoma um tempo produtor - tal como o eterno retorno. Não se pode aqui encontrar, efetivamente, o regime das causas sob os acontecimentos, visto alí se encontrarem sempre multiplicidades e máscaras, como se a essência, ela mesma, criasse falseamentos e máscaras.
Trata-se sempre de poder e de potência. Um não é de forma alguma o mesmo do outro, mas correspondem-se em termos de horizontes. O poder pretende-se eterno, mas a potência incompatibiliza-se sempre com a permanência. A potência quer o eterno retorno e a ordem das multiplicidades. Ela é polimorfa. Trata-se não de olhar "sobre" ou "super," mas sim de um olhar "baixo"; não de uma perspectiva "séria" e "bem fundamentada", mas daquilo designado por Nietzsche como "pensamentos de pés de pombo" - capazes de voar. Esses são os transformadores. A história, ao propor um, acaba por possibilitar a presença do outro. É a história, ela mesma, aquela a criar nos seus equívocos, a possibilidade dos desvelamentos - não como formas enfim de verdades, mas como apresentação da multiplicidade do regime do tempo e das condições das quais emergem os acontecimentos.
O tempo mítico faz parte do mesmo paradigma do tempo histórico. Mito é o discurso do outro. Cada discurso coloca-se no lugar da verdade e prescreve ao outro o lugar de meras confabulações alegóricas. Da mesma maneira como no tempo histórico temos a história e a genealogia, no tempo mítico temos um tempo solar e um tempo lunar. Isso para ir se vendo como ao tempo correspondem fracionamentos dentro de fracionamentos.
Ao tempo solar corresponde um tempo voraz, mas permanente. Trata-se de um tempo hegemônico. O sol se impõe na sua trajetória, na sua forma constante e permanente. Trata-se de um tempo cíclico do retorno do mesmo. Diz respeito a um "tempo masculino", fálico, estando sempre presente nos impérios. Está presente em organizações, sempre associado às condições du hegemonia e de falocentrismos. Ao permanecer constante, o sol deixa aparecer as diferenças, definindo-as.
Ao tempo lunar corresponde um tempo desigual em si mesmo, díspar. A lua não só marca as diferenças. Ela mesma varia. Com isso, os parâmetros são de uma natureza distinta da solar. A lua não é um complemento do sol, como a noite não o é do dia e o feminino não o é do masculino. Pelo contrário, ela serve para defender o não-todo. O próprio corpo da mulher - onde o feminino está em sua pujança - é uma das formas do tempo. O corpo da mulher não pode ser formulado nos mesmos paradigmas do masculino. Neste ponto, a biologia - produto de um discurso de uma sociedade falocêntrica - acaba falhando, como os neuróticos fizeram ver no começo do século. Os buracos do corpo feminino, apesar de convocarem um preenchimento, não são passíveis de serem "completados", por não serem puras ausências. Não estão vagos, estão ocupados por intensidades, repletos de linhas de força. Estes buracos correspondem a elementos de tempo. Para nós é tão difícil lidar com o tempo como com os "buracos" do corpo feminino, visto um corresponder ao outro.
A lua por um lado e a mulher por outro, atestam a falta de unidade não só do tempo, mas, principalmente, o fato de ser próprio do tempo, ele mesmo, produzir uma falta de unidade e de totalidade. O tempo mítico, incidindo sobre o tempo histórico - e vice versa - vão deixar ver como ao tempo não corresponde uma "unidade", mas sim é ele mesmo aquilo a produzir uma inviabilização de totalizações. Por mais hegemônico que o sol possa parecer em sua manifestação, a lua nem sempre se faz manifestar no seu tempo, trazendo consigo a sua forma díspar.
Esta linha de potência do tempo serve para dizer que qualquer manifestação depende do tempo. Significa dizer que para algo se realizar é necessário a privação de sua totalidade. Não no sentido desta totalidade lhe ser própria antes - tal como uma certa leitura de Platão ou qualquer formulação a respeito das "essências" ou de um "ser" pudesse fazer parecer - mas, sim, no sentido de uma expectativa de futuro. Ou seja, é preciso para que qualquer coisa se realize, uma privação de uma expectativa de esperar que ela se realize "totalmente", "integralmente", visto a presença desta totalidade neutralizar as condições de realização de qualquer realidade.


6 O TEMPO NA PSICANÁLISE

A formulação do tempo, mais ou menos implícita na psicanálise, corresponde a sua formulação em termos de subjetividade. A subjetividade é uma dobra no tempo fetia pela sexualidade. Mesmo Freud tendo dito em uma de suas interlocuções com Jung tratar-se o tempo "da questão mais espinhosa da psicanálise", é possível se fazer algum levantamento, mesmo sendo inconcluso, deste na psicanálise. Principalmente depois de algumas questões a este respeito terem sido levantadas por Lacan, basicamente no sentido técnico.
O sentido de período abordado por Freud no seu trabalho "Projeto para uma psicologia" é fundamental para se compreender a questão da consciência e da qualidade. Desses elementos dependem dispositivos como a memória, lembrança, provas de realidade e ajuizamentos.
A repetição comporta um forte elemento de tempo. Ela diz respeito tanto a uma retirada da memória quanto o empenho em criar um novo começo, uma nova causa. Vamos ver aqui como é sobre esta função da repetição onde se ancora uma boa parte da técnica analítica.
Faz parte da maneira do inconsciente o atemporal ( Zeitlos ), que significa algo de onde o tempo é retirado. Vamos ver o que pode significar isso e em qual constituição de inconsciente se insere. Qual o estatuto de algo no qual o tempo falta? Qual a natureza deste Zeit ( tempo)?
Na "Interpretação dos Sonhos" Freud faz uma inferência das mais importantes sobre o estatuto do tempo. "O presente é a forma temporal na qual o desejo é apresentado como preenchido". O preenchimento do desejo, da qual o sonhar é responsável corresponde a condição de possibilidade de se manter o presente. Sem este preenchimento o desejo mantém a sistema anímico fora do presente. O presente, forma temporal da qual depende as outras, não é algo dado ou imposto; é preciso fazê-lo, construi-lo. O presente se encontra onde o desejo aparece como tendo sido preenchido. Tanto o sonho como os sintomas serão formas de preenchimento do desejo estando, desta maneira intimamente relacionados com a construção do presente e, a partir daí, com a constituição do sistema anímico. Vamos ver nesta "aventura" as condições das afecções anímicas. Podemos notar assim as dificuldades apresentadas por Freud àquilo desenvolvido por Heidegger como sendo o Dasein. O inconsciente responde por um efeito "despresentificante" na medida em que responde pelos desejos não preenchidos.
Freud escreve sobre isso:
"Apresentamo-nos, portanto, o aparato anímico como um instrumento composto a cujos elementos damos o nome de instâncias ou, para uma plasticidade ainda maior, de sistemas. Assim feito manifestamos nossa suspeita de que tais sistemas apresentem uma orientação especialmente constante entre si, de um modo semelhante aos diversos sistemas de lentes de um telescópio, os quais acham-se situados uns após os outros. De fato não precisamos estabelecer uma ordem efetiva relativa a uma espacialidade dos sistemas psíquicos. Nos é suficiente que haja uma série fixa de sucessão estabelecida pela circunstância de que em certos acontecimentos psíquicos dos sistemas a excitação vão através de uma série determinada temporalmente. Esta ordem de sucessão pode vir a ser modificada em outros aconteceres, possibilidade esta que queremos deixar desde logo assinalada.
Primeiro o vemos desfazer, através do sentido de "sistemas", qualquer referência do aparato anímico a um lugar "orgânico", a um "topos" qualquer. Um sistema diz respeito a um operador, a um conjunto de determinação não-locais - como o sistema capitalista, o sistema de ensino etc. Depois, para nós o mais importante, ele vai dizer de como este sistema se ordena não só temporalmente como, também, de uma forma tal onde podem ocorrerem mudanças apesar de requerer sempre uma "série determinada" - aqui determinação não é sinal de não alteração. As marcações temporais constituem aparatos determinantes no transcorrer da percepção até a ação. É neste "inter" onde se constitue a complexidade do sistema anímico. As marcação temporizadas vão tornando o sistema mais complexo permitindo uma sofisticação maior de suas possibilidades. Para esta possibilidade temporal, porém, é preciso que o desejo seja apresentado como tendo sido realizado, preenchido, para assim efetivar-se o presente. Sem a constituição do presente não se temporaliza. Vamos começando a ver a forte determinação da temporalidade na construção do aparato anímico feito por Freud.
Vamos tentar apresentar um sentido dos mais determinantes para as fundações da psicanálise, tanto prática quanto teórica - trata-se do sentido do Nachträglichkeit ( ulterioridade, a posteriori ). Este sentido tanto pode dizer respeito ao sentido estar antes, mas só revelar-se depois devido a elementos que vão agregando-se, ou pode, também, dizer de como o sentido não está antes e vai sendo criado de acordo com as necessidades de se estabelecerem fundamentos e causas para serem colocados no lugar do desejo.
Em torno destes sentidos vamos tentar formular o "chicote do tempo", ou seja, a maneira pela qual o desejo enquanto projeto de futuro aparece em sua vertente inconsciente, formulado na forma de passado. O chicote do tempo diz respeito a maneira como as intenções inconscientes aparecem transcritas em uma teoria da causalidade.
Procuraremos apresentar o sentido existencial da "perda de tempo" ligado a cura ( o Sorge - cuidado, atenção ). Trata-se de algo essencial para a criança constituir-se e como "remédio das afecções da alma". Vamos ver como a sociedade moderna nos priva dessa perda e de como a psicanálise a defende.
Através de algumas formulações de Lacan e de teses lacanianas vamos tentar situar o tempo dentro da lógica da psicanálise e do sistema anímico. Isso no sentido técnico e pela maneira como aquilo designado regularmente como "estrutura" manifestar-se como forma específica de temporalidade. De tal maneira que o "manejo anímico" ( Seelichen Behandlung) corresponde a uma intervenção em um regime de temporalidade. Para evitar recair no anacrôncio modelo das estruturas psicopatológicas da psiquiatria clássica, que amordaça o "paciente" e deixa ver a rigidez anímica do "clínico", é preciso a sensibilidade de se manter o sentido de estrutura enquanto "o conjunto de um acionamento com que o sujeito propõe, provoca, o real na maneira do seu cultivo se revelar como existente. Esta provocação deixará a presença aparecer na irrevelabilidade".
Este sentido de estrutura é importante para a clínica. Isso permite se sair de um equívoco quanto as formulações freudianas. Um equivoco implicando diretamente a temporalidade. Trata-se de um equívoco tomar o tempo na clínica no sentido de causa ( Aitía ) de maneira a haver dois tempos: um onde se dão as causas e outro onde se processam os efeitos. Teríamos acesso já aos efeitos e quanto as causas só se poderia ter acesso através de uma dedução lógica e pelas vias de uma racionalidade explicativa. Esta forma na altera praticamente nada e permite ao desejo, que se realiza sob as manifestações, continuar sua forma de realizar-se. A retomada do sentido diz respeito a um tempo enquanto princípio (Arqué) onde não há este desbobramento e as causas não se encontram já fora do alcance, não, ainda está acontecendo e estamos dentro do regime de forças determinantes da realização. O inconsciente será um truque possibilitando a manutenção da causa e do efeito simultâneos através da produção de uma dobra na consciência e da retirada da força fixadora temporal de um dos lados desta dobra de tal forma a que a causa fique sempre ativa, ou seja, a constitui enquanto princípio. Estamos no campo da provocação do real de forma a cultivar sua presença enquanto existente na forma de uma indizibilidade. A clínica não é a narrativa de um tempo em outro. Estamos dentro da temporalidade do acontecimento.

6.1 O "Período" e suas conseqüências enquanto "ser ( ou estar ) consciente"
É preciso demarcar, de inicio, a presença na língua alemã, a partir de onde Freud faz suas formulações, uma diferença insofismável: o consciente é "Bewusstsein" e o inconsciente é "Umbewusste". A presença do "sein" no consciente é das mais decisivas, visto este termo significar o sentido latino tanto de "ser" quanto de "estar". Freud lembra de como o inconsciente, tematizado por ele, não tem qualquer referência ao "ser". A falta do ser no inconsciente não é uma simples ausência - trata-se de uma falta ativa, vigorosa, sendo aí onde vamos encontrar um dos sentidos mais densos da questão do tempo na psicanálise.

Temporalidade e período.
No "Projeto para uma Psicologia," quando está abordando o problema da qualidade, aparecem considerações importantes sobre o tempo na figura do período. A qualidade, é preciso lembrar, encontra-se referida aos "neurônios " responsáveis pela consciência. As "quantidades" de energia tanto internas quanto externas, chegando no sistema anímico são transformadas em qualidade, "de acordo com uma equação ainda desconhecida para nós", como afirma no "Projeto". Este sistema de neurônios, porém, não tem qualquer contato com o mundo externo, apesar de ser este sistema aquele a decidir sobre as "provas de realidade". É ele, também, a decidir sobre o que é ou não compatível com a realidade anímica, de forma a "defletir" para fora tudo aquilo de incompatível. Pois bem, neste processo entra uma característica de:
..."zeitlicher Natur ( natureza temporal), pois a mecânica dos físicos também atribui essa característica temporal aos outros movimentos de massa do mundo exterior. Para abreviar, designarei esta característica como Die Periode (o período). Admitirei que toda a resistência das barreiras de contato se aplica somente à transferência de quantidades (Q - quantidades provenientes do mundo externo), mas que o período do movimento neurônico se propaga a todas as partes sem nenhuma inibição, como se fosse um acontecimento indutor. Para o esclarecimento físico muito ainda resta a ser feito para se poder esclarecer isso, visto as leis gerais do movimento deverem ser aplicadas aqui com toda aceitação. A hipótese daqui ainda avança mais, admite que os neurônios sejam incapazes de receberem Q (quantidade de energia proveniente do interior do sistema anímico), mas que, em compensação, assumem o período de excitação e que essa sua condição de serem afetados por um período enquanto admitem uma carga mínima de Q constitui a base fundamental do consciente. Também os neurônios tem naturalmente os seu período, mas este é desprovido de qualidade ou, melhor dito, é monótono. Os desvios desse período psíquico específico chegam ao consciente como qualidades.
" De onde emanam essas diferenças de período? Tudo indica para os órgãos dos sentidos, cujas qualidades parecem exatamente estarem representadas por períodos diferentes no movimento neural. Os órgãos dos sentidos não só funcionam como telas de Q a exemplo de todos os sistemas das terminações nervosas, mas, também, como crivos, visto deixarem passar apenas estímulos provenientes de certos acontecimentos com períodos determinados. Eles provavelmente, então, transferem esta diferença para comunicando ao movimento neural períodos que diferem de maneira analógica (energia específica) sendo, estas modificações que passam de através de até , para alí, onde estão já quase desprovidos de quantidade, a produzirem sensações conscientes de qualidade. Essa transmissão de qualidade não é duradoura; não deixa rastro e não pode ser reproduzida"
A primeira aproximação relativa ao tempo coloca-o na base do consciente. É no consciente onde está o "ser" (sein). Freud tem um ponto de vista bastante ligado a physis, pois concebe um sistema anímico dentro de um ponto de vista físico, mecânico. A índole temporal aparece, neste contexto mecânico, ligada ao período gerado nas redes neurais pela excitação, devido a passagem das quantidades de energia provenientes dos estímulos. Diz respeito a algo físico, proveniente de um funcionamento mecânico, como resultado contingente da matéria viva. Vem a ser exatamente o período o que define a qualidade, sendo esta mesma qualidade, aquilo a determinar as bases do ser do consciente.
As determinações do ser são dadas por uma variação, por uma diferença através do período. Esta variação é estabelecida em torno de um "período monótono", desprovido de qualidade no sistema (psi). É neste sistema onde se localizam os processos "psicológicos", ou seja, a memória, a lembrança, a inteligência, o juízo etc. É aqui onde as quantidades de energia produzem suas marcas na forma de trilhas. Serão os desvios relativos a este período-padrão (monótono) específico aquilo que chegara como a qualidade do consciente. Até este ponto ele não nos esclarece sobre a natureza deste estranho e misterioso "período monótono" especificamente presente no sistema "psi," através do qual se determinam os desvios padrões, cujo efeito será o ser daquilo que é sabido (die Bewusstsein).

Temporalidade e "ser".
Quanto às diferentes modalidades dos períodos, a sua origem esta na quantidade distinta de energia, suscitada nos órgãos dos sentidos pelos diferentes tipos de objetos e, também, devido ao "peneiramento" realizado por aquilo denominado regularmente como "percepção" ou, então, pela "sensibilidade". Estamos nos introduzindo em um campo muito peculiar e cheio de desvios. Existem uma série de particularidades intervenientes por onde passa a energia, de forma a sua physis vir a tornar-se "ser". O ser, como fim e finalidade do período, vai sendo marcado por uma série de "interferências" sobre as "emanações" de sua fonte. Os órgãos do sentido interferem, recortando modalidades de períodos específicos - através da sensibilidade e da percepção. As marcas deixadas no sistema "psi" pelos estímulos já peneirados, vão depender de características específicas da "matéria" neural, destas funções presentes em "psi" ( memória, lembrança, etc. ) e, finalmente, por uma "fórmula ainda desconhecida" a fazer a transposição de quantidade para qualidade. Sabe-se, porém, que a temporalidade, na forma do período, está implicada diretamente nesta fórmula transformadora. Existe uma qualidade ligada ao sentido do ser e esta qualidade está intimamente implicada com o sentido de tempo na forma do período de excitação. Mas, isso é fundamental, existem muitas intervenções casuais e incidentais nesta linha de produção. Vêm destas condições de possibilidades de desvios, toda a pujança e toda a problemática do funcionamento anímico e do ser dependente dele.
A diferença entre os períodos, em termos intrínsecos, é dada de forma analógica. Ou seja, fornecida em relação a uma segunda grandeza que tem com a primeira uma relação biunívoca. Diz respeito a grandezas semelhantes em sistemas diferentes. A temporalidade está aqui condicionada, simultaneamente, por uma grandeza física de quantidade de energia e por uma grandeza qualificante definida pela analogia com um período mono-tônico presente entre os dispositivos "psicológicos".

A questão da Memória.
Para se tornarem compatíveis com o sistema "ômega" (sistema onde estão localizadas as qualidades e onde acontece o consciente) é preciso um nivelamento na quantidade, de forma a ela ficar bastante reduzida. As funções mais sofisticadas e sensíveis do aparelho anímico dependem de baixas quantidades, sendo estas, exatamente, as condições para a qualidade. A transmissão da qualidade não é duradoura, não deixa rastro e não pode ser reproduzida. Essa afirmação coincide com a concepção da memória humana já enunciada por Sócrates: tudo aquilo a voltar na memória e na lembrança volta de maneira diferente. O tipo de memória humana não é fundamentalmente reprodutora e sim produtora. Na base deste processo está, exatamente, a temporalidade na forma do período, agindo na fórmula de transformação de quantidade em qualidade.
O ser consciente é momentâneo e singular, como conseqüência da maneira pela qual a qualidade é transmitida entre os sistemas neurais. É exatamente nesta conclusão, onde se deixa ver toda a densidade da temporalidade e sua importância fundamental, tanto para o consciente quanto na "fisiologia" anímica.

O "ambiente" do período.
Até aqui a temporalidade aparece formulada enquanto um determinante "psicológico", inerente ao contexto onde acontecem a memória, as lembranças e os outros dispositivos psicológicos. Physis e Psyche estão juntos. O corpo e as pulsões com seus representantes. Corpo e linguagem. Nada disso pertence a registros diferentes entre si. O ambiente do período é um corpo-linguagem. Este corpo-linguagem tem seu regime de profundidade ligado a pele e seu coeficiente maior de profundidade localizado no outro, fundamentalmente no desejo do outro. É ali onde vamos encontrar as produções inconscientes mais intensivas.

Memória e historicidade.
A memória apresenta-se na mesma linha do pensamento. Para atuar deve funcionar imersa em um dispositivo sofisticado de esquecimento. É preciso dar-se uma intervenção, incisiva e generalizada, produzindo esquecimento para se realçar aquilo a aparecer pelas vias da memória. O controle deste dispositivo é feito através de uma regulação da "dor" e "prazer". A finalidade da memória é a de possibilitar trilhas mais adequadas à finalidade de descartar, do organismo, aquilo julgado como passível de gerar aflição, angústia e ansiedade, bem como dirigi-lo para as vias mais apropriadas às vivências de satisfação. Tendo como base os dispositivos da finalidade, mostra-se como não sendo uma função passiva, tal como o pensamento também não o é. Classicamente, ela é formulada como sendo o lugar responsável pela produção, armazenamento e cuidado com a história individual. Trata-se de tentar vincula-la ao tempo histórico. Estamos vendo que ela está situada entre os dispositivos psicológicos onde está a ação da temporalidade. Tal como a história, a memória seria uma força restritiva de intervenção ligada a uma finalidade.
A lembrança é um termo dos mais intrincados. Erinnerung é lembrança e reminiscência. Trata-se de se "colocar para dentro", "introjetar" - este sentido é dado pelo "inner". Tradicionalmente, "o corpo é o esqueleto da alma e a alma é feita de lembranças", isto é, tanto o lembrado quanto o pensado "vêm de fora" - o sujeito está imerso na memória e no pensamento. Aquilo ressaltado pela memória é objeto da lembrança. Tratam-se, porém, de marcas cheias de compromisso com as condições tanto de marcação ( das características de sensibilidade da "matéria" onde se produzem as marcas), quanto com o tipo de interesse agindo sobre seu reaparecimento. É mais apropriado defini-la no campo mesmo da reminiscência, ou seja, enquanto lembranças de vivências não acontecidas. A natureza do ressurgimento está comprometida com os dispositivos internos do sistema anímico, de forma aquilo a ressurgir ser mais um "surgimento" do que um "ressurgimento".
Esta construção faz parte de uma "topologia desespacializada de si mesma" mas onde a lembrança aparece relativa a um "interno", vindo levantar os substratos anteriores deixando aparecer uma imprecisão relativa a este "interno". As lembranças dizem respeito a vivências "internas", mas pertencem a um sistema descentrado - o sistema anímico - onde não só seus componentes não perfazem uma unidade como, principalmente, podem viver os acontecimentos nos sistemas "vizinhos" como externos, bem como tomar o externo ao corpo como sendo interno.
Quanto ao motor da memória e da lembrança, não se pode dizer que seja a potência do passado. É preciso colocar as intenções do desejo, as forças do devir como determinando as privações no campo de imanência do sujeito e de cujo efeito se farão presentes as lembranças. Tanto a memória quanto a lembrança dependem do afeto e servem para proteger o desejo (seu desvelamento). A principal função da recordação é procurar compor, com materiais imaginários, uma realidade capaz de dar conta de responder a um estado desejante, não de todo consciente, de forma a preencher as lacunas deixada pela realidade quanto ao reconhecimento do desejo e de seu objeto. Freud demonstra isso escrevendo:
... "ou seja, quando em presença de um investimento desejante se manifesta a possibilidade de uma percepção não coincidente de maneira alguma com a imagem mnêmica ( Erinnerungsbild ) desejada ( Rec. + ). Nestas condições surgirá um interesse para re-conhecer (erkennen) esta imagem perceptiva, de forma a, talvez, se conseguir encontrar, apesar de tudo, uma via entre ela e a imagem mnêmica desejada (Rec. +). É de se supor que, com esta finalidade, a percepção seja novamente hiperinvestida a partir do Eu, como aconteceu no caso anterior com apenas um de seus componentes - no caso o neurônio c. Se o percebido não for absolutamente novo fará recordar e evocará uma lembrança com a qual coincida pelo menos em parte."
Afeto é designado como sendo "restos de vivências" secretados internamente por um conjunto de neurônios - os neurônios chaves - agindo na forma de estimulação endógena sobre os trilhamentos do sistema "psi'. Trata-se, basicamente, da angústia (Ängst). Existe, portanto, uma razão quase direta entre a angústia e a atividade da temporalidade, visto a angústia estar, também, diretamente ligada com a convocação da memória e da lembrança para saná-la ou lhe dar sentido.
Outra fonte bastante importante da angústia é a "invasão", através das barreiras dos órgãos do sentido, de quantidades intensivas de energia, de estímulos. Esta invasão, uma vez tendo passado pelas barreiras dos sentidos e pelas barreiras de contato, inevitavelmente se convertem em período. A este tipo de presença, usualmente, se faz chamar de uma "invasão" ou "presença" do real. Enquanto período, trata-se de temporalidade. Daí uma outra vinculação de natureza temporal do período com a presença da angústia e, desde aí, a sua ação sobre o consciente.
A construção segundo a qual o sistema anímico não possui barreira, não possui defesa contra o período, é uma forma significativa de se deixar ver o nível de importância da temporalidade no funcionamento interno do sistema anímico. As proteções contra o período se localizam no sistema , ou seja, no sistema de recebimento das excitações. Internamente o sistema anímico vai depender das diferenças dos períodos para produzir qualidade e os "dados de realidade", por isso é preciso a liberdade do período para informar adequadamente, mas isso, também, significa a possibilidade do período gerar angústia, intrinsecamente, ao sistema anímico, no qual há pouca proteção interna - a não ser a deflexão operante no sistema "ômega". A partir daí, apenas tipos de atitudes já sintomáticas podem tentar evitar a angústia além de um nível tolerável.
O período fixo, mono-tônico, corresponde a um "ritmo interior", uma condição de possibilidade para uma "harmonia interior", dando o "tom" e a característica pela qual, juntamente com o tipo de sensibilidade dos sistemas de recepção do estímulo, se decidirá a maneira de serem qualificadas as vivências a partir de onde se decide, também, sobre a ação.

O ser consciente e sua decorrência do período.
Freud teria ficado devendo um trabalho a respeito da consciência. Mas tal como o tempo, não é de todo inviável encontrar sua importância exatamente na sua imprecisão e falta de menção direta. Ou seria isso devido ao fato dele nunca ter efetivamente se afastado o suficiente para ter dela uma visão mais clara?
O consciente não pode ser totalmente assemelhado à memória, visto o consciente ter a característica de ser momentâneo e não deixar rastros. Vincula-se às qualificações dos processos, à atividade de ajuizamentos e à presença da palavra. Sua característica de "ser" ( Sein - Bewusstsein) diz respeito ao seu enraizamento na atividade de natureza temporal do período de excitação diferido, analógicamente, em relação a um "misterioso" período monótono encontrado entre as funções psicológicas.
No "Projeto," aparece a seguinte formulação: "O consciente é aqui o lado subjetivo de uma parte dos processos físicos do sistema nervoso - ou seja, dos processos ; e sua omissão não deixa as ocorrências psíquicas inalteradas, mas acarreta a falta de contribuição de ."
A contribuição de ômega são as "provas de realidade", a qualificação dos acontecimentos anímicos e a definição tanto do "ser" quanto do "estar" ( Sein ). Sua omissão não é uma falta simples - ela altera substancialmente as vivências anímicas, produzindo vivências relativas ao modo inconsciente. Mais adiante, no mesmo artigo, ele continua:
" Até agora nos limitamos a uma descrição incompleta do consciente. Além de uma série de qualidades sensoriais, encontra-se nele algo de diferencial - as sensações de prazer - desprazer, cuja existência nos exige agora uma explicação. Já tínhamos evidenciado uma tendência do sistema anímico em evitar o desprazer, ficamos tentados a identificá-la com a tendência primária à inércia . Neste caso, o desprazer teria que coincidir com um aumento do nível de Q ou com um aumento quantitativo da pressão: eqüivaleria à sensação quando se produz um aumento de Q em .O prazer corresponderia à sensação de descarga..."
Logo em seguida ele articula o consciente, o prazer - desprazer e o período escrevendo:
" os neurônios mostram uma aptidão ótima para admitir o período do movimento neural quando têm uma determinada potência de investimento; quando o investimento for mais intenso causa sensações de desprazer; quando mais fraco, de prazer - indo até uma extinção completa da capacidade perceptiva, caso falte investimento."
Podemos ver o lugar estratégico onde situa-se a natureza temporal no sistema anímico nesta construção.
O consciente e suas produções estão intimamente relacionados às condições do eixo prazer\desprazer, sendo estes relativos aos efeitos dos períodos - com o movimento diferencial provocado por eles tendo como referente o "período monótono" em "psi" - e a vivência de apaziguamento.

Considerações sobre o período monótono.
Talvez se possa inscrever este período na categoria do originário uma vez ser em torno dele que se constitui a temporalidade anímica. O sentido de originário é importante para se dar conta da formulação freudiana. Esta formulação não fala nem uma "visão de mundo" (Weltanchauung) nem de uma "teoria do desenvolvimento". Fala, isso sim, de acontecimentos originários e de princípios sobre os quais repousam as manifestações e as entificações. O originário é algo decantado do presente para lhe dar sentido e causa - tal como uma teoria, um conceito ou um mito.

O mono-tom enquanto sentido subjetivo do originário.
Existe uma base de "originários": Urzeit ( tempo originário ) Urteil (juízo ), Urverdrängung (recalcamento originário ou primário ) e Urvater ( pai originário ou primevo ). Estes três "originários" articulam-se, constituindo uma armação. Vamos discorrer um pouco de cada um para situá-los naquilo que aqui interessa, para, depois, articulá-los entre si e tentar ver se seu sentido responde algo sobre este "misterioso período monótono" tão fundamental para o sentido da temporalidade e, desde aí, para o consciente.
Die Urzeit aparece ao longo de toda obra freudiana, principalmente no "Moisés e o monoteísmo". Este tempo originário emerge como um recurso em qualquer enunciado lógico. Qualquer sistema explicativo recorre a relações de causa-efeito e, com isso, necessariamente, deverá postular um "tempo originário". Mesmo a ciência formula o tempo do "Big-Bang", o "elo perdido", etc. Diz respeito a um tempo fora do tempo, mas essencial para aquilo que está no tempo a fazer sentido. O tempo originário é a dimensão própria para o atávico, o hereditário e o adquirido. Aponta para um vazio primordial para onde se decanta um "horror do viver". Neste tempo esta o infanticídio, o parricídio e o assassinato da horda totêmica, lugar da Ängst ( angústia, ansiedade, medo ) de devoramento, de esfacelamento.
O tempo originário sustenta a ambivalência dos sentimentos mais complexos como, por exemplo, os vínculos sociais, os sentimentos empáticos e amorosos. Tudo aquilo que se origina o faz em um tempo ou por um tempo. Este tempo ligado à origem é, ele mesmo, um tempo originário. No trabalho com os fantasmas neuróticos, psicóticos e perversos ficará evidente que o tempo originário não é apenas o do começo, está sempre ativo. O originário está sempre presente em tudo aquilo que é e que não é. As construções sobre a origem tratam de decantações do originário com seu deslocamento para um tempo próprio.
Das Urteil ( juízo ou ajuizamento - elemento ou traço originário ou primevo) aparece introduzido logo no "Projeto". É um termo caro à filosofia alemã principalmente a Kant, um dos filósofos com quem Freud dialoga constantemente, reinterpretado suas formulações filosóficas em termos de substratos anímicos - apesar de sistematicamente denegar a contribuição da filosofia e o "barulho" dos filósofos.O juízo surge ligado ao "complexo do semelhante" e desprovido de finalidade, sendo esta sua falta de finalidade essencial para participar do tipo de definição de objetivos e objetos inerentes a forma de ser e de realizar-se do sistema anímico.
A definição do ajuizamento aparece assim:
" Em compensação, as partes discrepantes ( da percepção ) "despertam interesse," podendo dar lugar a duas espécies de atividade de pensamento. Ou a corrente se dirigirá às lembranças (Erinnerungen) evocadas acionando uma atividade mnêmica sem propósito definido, sendo esta dirigida através das diferenças e não pelas semelhanças; ou a corrente permanecerá nos componentes da percepção recém surgidos, acionando a atividade judicativa igualmente carente de propósitos definidos".
Sua função está articulada com a percepção do semelhante, enquanto os elementos discrepantes estão articulados com as lembranças (ou as reminiscências ou as recordações). Mas de que semelhantes se trata?
"Suponhamos que o objeto deixado para nós pela percepção pareça-se com o sujeito - um Nebenmensch (próximo, semelhante, vizinho, literalmente: homem do lado). Neste caso, o interesse teorético que passa a ser dedicado a ele se explica pelo fato de ter sido um tal objeto o primeiro objeto a ter apaziguado o sujeito, também ter sido seu primeiro objeto hostil, tendo sido, também, sua primeira força auxiliar. É por este motivo que é através de seus semelhantes que o ser humano aprende a re-conhecer. Os complexos preceptivos emanados desses seus semelhantes serão, então, em parte novos e incomparáveis - por exemplo: seus traços na esfera visual e também, outras percepções, como os gestos, etc. Estas percepções coincidirão no sujeito com a lembrança de impressões muito semelhantes ligadas ao seu corpo próprio e associações a movimentos apresentadas por ele mesmo. Outras percepções do objeto - como, por exemplo, se este der um grito - também evocarão lembranças do grito próprio e, com isso, suas próprias vivências aflitivas. Desse modo, o complexo do Nebenmensch ( próximo ) divide-se em duas partes, uma das quais dá a impressão de ser uma estrutura que persiste coerente como uma "coisa" ( Ding), enquanto a outra pode ser compreendida (verstanden) por meio de um trabalho de recordação (Erinnerungsarbeit), isto é, pode ser conduzida a partir de uma informação a respeito do corpo do próprio do sujeito. Esta dissecação do complexo perceptivo se chama reconhecê-lo, implica em um juízo chegando ao seu término, uma vez atingida esta última finalidade. Como se verá, o juízo não é uma função primária, mas pressupõe o investimento das partes díspares (não passíveis de serem comparadas) da percepção a partir do Eu....
....o interesse primitivo em estabelecer a situação de satisfação ( de apaziguamento) que levou, em um caso, à consideração reprodutiva (Reproduzirende Nachdenken) e, no outro, ao juízo, como meios para chegar da situação perceptiva dada na realidade à situação desejada. Para tanto, o requisito indispensável continua sendo o de que os processos não aconteçam isentos de toda inibição mas, sim, submetidos à atividade do Eu. Com isso ficaria demonstrado o sentido eminentemente prático de toda atividade de pensar." Para podermos fazer a demonstração necessária para o sentido do ajuizamento, é preciso recolher mais algumas formulações de Freud neste mesmo artigo seu.
"O pensamento cognitivo ou judicativo procura uma identidade com um investimento corporal, ao passo que o pensamento reprodutivo procura uma identidade com um outro investimento psíquico do próprio sujeito. O pensamento judicativo opera antecipadamente ao reprodutivo, fornecendo-lhe trilhas já prontas para migrações posteriores. Se, uma vez concluído o ato de pensamento, a indicação de realidade chegar à percepção, então será obtido um juízo de realidade, uma crença, (Glaube) atingindo, com isso a finalidade de toda esta atividade." Logo depois ele fornece uma fórmula essencial para nossa construção aqui: "O que chamamos de coisas ( Dinge), são restos dos quais o ajuizamento desvia".
O aparecimento do outro no espaço vivencial do sujeito produz uma recorrência simbólica intensa em relação ao corpo próprio, bem como já é a constituição de sua possibilidade, em conseqüência da perda, de uma espécie de amputação vivida no corpo próprio referida como sendo o complexo de castração. A entrada daquilo que o pai representa, entre o corpo próprio e a totalidade reasseguradora sustentada pela mãe, produz este efeito. Ora, será exatamente o sentimento deste elemento, este pedaço imaginado perdido, amputado, aquilo a se tornar objeto de procura e de interesse do juízo ( Urteil - visto este "teil" significar, exatamente, pedaço ou elemento ). Quando advém o sentimento de falta, ela é interpretada como a perda de alguma coisa. O perdido é uma sensação de uma perda que é, de fato, provocada pelo avanço da própria estrutura. Trata-se de uma perda recorrente, de algo a só ganhar existência e potência a partir do sentimento de falta a reclamar por uma causa. Desde aí surgem a fantasia, a ilusão, a crença, a esperança. Este tempo pleno, onde supostamente estariam presentes os elementos perdidos, diz respeito ao tempo mítico - a esta referência feita pelo sentido de "Ur". O Ur apresenta a necessidade de se estabelecer um regime de causas e de fundamentos para a ação e para os acontecimentos.
Os elementos semelhantes do complexo do próximo despertam o interesse do ajuizamento, devido ao fato deste ser a procura dos elementos originários. E quais são estes elementos? Trata-se, primeiro, de elementos ligados ao corpo próprio, devido as vivências que deram origem e espaço à entrada do outro serem relativas a uma vivência de falta ligada ao próprio corpo e, segundo, a elementos ligados ao corpo do outro auxiliar que proveu o sujeito, de forma a produzir uma vivência de apaziguamento de suas carências corporais. Este outro virá a fazer parte de uma fantasia de completude, de pertinência, a partir do momento em que passa a saber já ter pertencido - enquanto parte - de um corpo provedor. Inventa-se, aí, o desejo enquanto aspiração à plenitude. O ajuizamento vai procurar estes elementos imaginados para uma suposta vivência de completude - o Urteil.
Porém, como se trata de um constructo, esta procura do objeto central do desejo - o centro das causas e o sentido próprio da origem do ser de cada um, onde tudo se esvaeceria - seria fadado a insatisfação, inviabilizando, assim, o funcionamento anímico que não trabalha em déficit de prazer, ou seja, com excesso de excitação. Para viabilizar a descarga - vivência do prazer - é preciso que o ajuizamento "desvie". Desvie daquilo designado acima como sendo a coisa (das Ding). O ajuizamento interrompe a procura criteriosa da semelhança, tomando um "complexo coisa" como sendo este elemento originário. Esta "coisa" gera o efeito que teria produzido o suposto elemento originário, quando de sua vigência. Mas, isso é fundamental, não se trata apenas de um direcionamento ao encontro da "coisa" a produzir o prazer, mas um desvio concomitante. É quanto a este desvio que precisamos entender o sentido tanto de Urverdrängung ( recalcamento originário ) quanto de Urvater (Pai originário), para ver se conseguimos produzir algum sentido para o período monótono em uma posição mais ou menos central na produção das qualidades.
O recalcamento aparece na seguinte forma:
"Pode ser que o destino de uma Triebregung (ânsia, agitação, moção, movimento, pulsional ) seja vir a ser, por lhe stösst ( vai contra, esbarrar ) a resistência, Unwirksan (ineficaz, irrealizada). Sob a condição, porém, de que sua próxima Untersuchung ( solicitação) esteja garantida de acontecer, chegando assim ao estado de Verdrängung(Recalcamento). Tratando-se da eficácia de algum perigo enraizado externamente, a fuga seria a atitude mais apropriada. No caso das pulsões a fuga não pode ter qualquer utilidade, visto o Eu não poder escapar de si mesmo. Mais tarde a rejeição se baseará na Urteilverwerfung ( verwerfung = forclusão, Urteil = elemento originário, juízo - julgamento) ( Verurteilung = sentenciar, condenação ), vindo a ser este um bom meio encontrado contra a Triebregung (moção pulsional). Die Verdrängung ( o recalcamento) é uma etapa anterior ao Verurteilung , um Mittelding (uma "Ding [coisa] " intermediária) `a fuga e à Verurteilung. Trata-se de um conceito que não pôde ser estabelecido nos tempos anteriores dos estudos psicanalíticos".
O recalcamento vem a ser situado antes do sentenciar ( do enunciado da sentença), ou seja, antes da ação decisória provocada pelo ajuizamento. Daí sua importância quanto ao desvio do ajuizamento no estabelecimento da coisa como condição de possibilidade de descarga - do prazer. Já se pode ir notando a maneira pela qual o recalcamento e o ajuizamento operam sincronizados em torno do processo decisório. Mas o recalcamento propriamente dito sustenta-se em um "recalcamento originário".
"Temos, portanto, base para nomear uma Urverdrängung (recalque originário, anterior a qualquer "um" outro, que dá causa de possibilidade aos outros), uma primeira fase do recalcamento, que consiste em vir a negar a Übernahme (recepção, aceitação, embarque, carregamento) no consciente do "psychischen (Vorstellung-) Repräsentanz" (representantes psíquicos daquilo colocado diante das) pulsões. Com isto, uma se dá uma fixação: o referido representante (Repräsentanz) fica, então, tornado unveränderlich (inalterável, imutável, invariável) e a pulsão a ele "gebunden "(ligado, coagido)...."
O recalque originário, ou primário, trata do estabelecimento na ordem mesma do simbólico, mais exatamente da cultura de uma determinada sociedade ou linhagem, de determinados elementos sobre os quais se estabelece um desvio ( tal como o sentido de Verdrängung faz ver). Estes elementos são já proscritos pela Lei, pelas tradições - usualmente padecem de algum tipo de exclusão na ordem mesma da linguagem. É preciso o estabelecimento deste recalque originário para "puxar" os elementos a serem recalcados. Sem esta atração, dificilmente o processo do recalcamento propriamente dito pode ter alguma eficácia. O que vamos encontrar na maior parte das vezes na clinica, é algum tipo de atrapalhamento no estabelecimento ou na passagem deste recalcamento originário.
Neste processo do recalcamento originário podemos ir tendo uma visão mais clara a respeito daquilo que faz o ajuizamento desviar da "coisa". Qualquer mudança mais significativa deve partir de uma transformação a ir sendo absorvida por este recalcamento, caso contrário só podem ocorrer alterações isoladas e mais ou menos forçadas e aparentes.
Ao negar o acesso do representante psíquico daquilo que foi colocado diante da pulsão - não é bom esquecermo-nos de como a pulsão só aparece através daquilo que foi colocado diante dela - a pulsão fica com uma problemática quanto a sua efetivação. Isso na medida dela depender deste procedimento para aspirar uma realização. Pela via do recalcamento originário, a pulsão ligada ao representante ao qual é negado o acesso no consciente só pode realizar-se por outras vias - ou não realizar-se, o que o leva a provocar "grandes confusões", vide, por exemplo, a situação usada por Freud no seu texto "Cinco lições de psicanálise" para falar sobre o inconsciente recalcado.
Originário é uma maneira de dizer dos pontos de referência. Portanto, de pontos fixos em relação aos quais se determinam os outros - quer de forma positiva ou negativa, seja para reafirmá-los ou confrontá-los. Se o recalcamento originário, além de sua característica originária que lhe confere o lugar de referência, também desvia, gera, através do desviado, uma alteração. Esta alteração começa a nos dar a idéia de qual seria a proveniência do sentido de "variação de período". A própria impressão de tempo parece estar vinculada a uma variação, a um intervalo, mas - e isso é uma problemática - só é possível uma vez em que se possa estar consciente num momento seguinte a respeito do anterior e para isso já é necessário tanto o consciente quanto o sentido de tempo. De outra maneira se pode sugerir que eles apareçam, nasçam juntos. Para se poder avançar um pouco nesta direção, precisamos nos remeter ao conceito do Pai originário.
"Se chamarmos ao nosso auxilio as celebrações totêmicas de refeição, poderemos encontrar uma resposta. Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos, retornaram e juntos mataram o pai e o devoraram, colocando, assim, um fim à horda patriarcal. Tiveram, unidos, coragem de fazer algo com sucesso, o que talvez fosse impossível singularmente (algum avanço cultural, talvez o domínio de uma nova arma, proporcionou-lhes um senso de força maior). Canibais selvagens, tal como eram, não é de se estranhar o fato de também devorarem as vitimas que matavam. O violento Urvater (pai originário, pai primevo ) fora, sem dúvida, o temido e invejado modelo (Vorbild) de cada um dos componentes da irmandade e, pelo seu ato de devorá-lo, realizaram a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica, talvez o mais antigo festival da humanidade, seria, assim, uma repetição e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião.
"A fim de que estas últimas conseqüências possam parecer plausíveis, deixando suas premissas de lado, precisamos apenas supor que a tumultuosa malta dos irmãos estava cheia dos mesmos sentimentos contraditórios que podemos perceber em ação no ambivalente complexo-pai visível, tanto em nossos filhos quanto em nossos pacientes neuróticos. Odiavam o pai, que representava um obstáculo tão enorme a sua necessidade de poder (Machtbedürfnis) e às aspirações (Ansprüchen) sexuais; mas amavam-no e também o admiravam. Após terem se livrado dele, satisfeito o ódio e colocado em prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo o tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma do remorso (Geltung). Uma sensação de culpa (Schuldbewusstsein) emergiu, a qual, nesse caso, coincidia com o remorso sentido por todo o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo - pois os acontecimentos tomaram o curso que com tanta freqüência vemos tomar nos assuntos humanos ainda hoje. O que até então fora interdito por sua existência real, foi, doravante, proibido pelos próprios filhos, de acordo com o procedimento psicológico que nos é tão familiar nas psicanálises, sob o nome de "obediência adiada". Anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai e renunciaram aos seus frutos, abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas. Criaram, assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por essa própria razão, corresponderam inevitavelmente aos dois desejos recalcados do complexo de Édipo. Quem quer que infringisse esses tabus, tornava-se culpado dos únicos dois crimes pelos quais a sociedade primitiva se interessava."
Com este mito se procura dar sentido a aderência ambígua dos homens à lei. Por que o período, por exemplo, não fica só monótono ou entrega-se a pura variação? É preciso uma força qualquer a "manter as amarras" e a processar o retorno para o "mono". Esta força é, exatamente, a força do Pai morto. Esta força já esta dada no recalcamento originário. O mito do Urvater aparece como um "explicador" tanto para a aderência praticamente erótica, ou pelo menos conflitivamente amorosa, de cada um com a lei - com o censor. Esta aderência aparecerá formulada através da instância do Über-Ich (Sobre-Eu, Super-Eu ).
Trata-se de estabelecer uma origem supra-individual para ao "Shuldbewusstsein" ( consciência de culpa ou de dívida). Este termo traz em si muitas nuances e uma importante articulação do "sein" (ser, ter) com a culpa e a dívida (Shuld). Já tínhamos visto uma articulação entre ser e tempo e agora temos a introdução da sensação de divida ou de culpa neste contexto. Portanto, não é por acaso a articulação do tempo com a produção e a maneira problemática como são tomadas as condições onde se "perde tempo".
O Pai Originário vem dar um sentido ilustrativo para aquilo a fazer uma aderência com a Lei, sendo esta um sentido para o "monótono", para o referente. Por esta via tanto Kant quanto Lacan vão colocar a Lei no lugar mesmo do real. Ora, quem sustenta a Lei é, exatamente, o Urvater - de fato ele, enquanto morto.
Sendo o modo de ser da pulsão o "retornar em circuito" devido a sua força constante, ela não inscreve, enquanto tal, nenhuma história e nenhum desenvolvimento, calcando um sentido monótono, constante e permanente. Com isso, temos estabelecido um conflito entre o pulsional e a Lei, sendo que, de fato, por um ser o negativo do outro, eles se afirmam mutuamente.
Tudo indica que este sentido de Ur diz respeito ao monótono em cada um. Na medida de ser ao mesmo tempo supra individual e também um índice máximo de singularidade, isto é, estes " originários" são espécies de universais, mas seus conteúdos são profundamente singular em cada sujeito. É exatamente a articulação destes elementos aquilo a conferir uma "harmonia" enquanto parâmetro da variação dos períodos. Ora, este parâmetro é, exatamente, o período monótono. Desta forma, nossa formulação é de que o período monótono trata de uma articulação original do ajuizamento com o recalcamento originário e com o pai originário em um tempo originário.
Tudo indica ser o sentido do originário o resultado de um trauma. Esse trauma representa uma brecha entre a causa e o efeito. Para se poder preservar o sentido de um rompimento neste nível, rompimento vislumbrado como bastante possível pelas vivências anteriores ao estabelecimento do sentido atribuído pela linguagem dos outros, são estabelecidas estas pontuações originárias para aportarem-se o regime das causas, fundamentando e lastreando o sentido.
Com isso, tentamos dar sentido a um dos tipos de temporalidade relativa ao acontecimento anímico.

6.2 A problemática do sentido de "Nachträglischkeit"
Vamos traduzir "Nachträglischkeit" como o faz Wilson de Lyra Chebabi: como "ulterioridade". A psicanálise vem desvelar o sentido das vivências como acontecendo ulteriormente, mas isso é problemático:1) o sentido seria algo dependente dos acontecimentos do futuro, deles vindo esclarecimentos e adendos que neles mesmos faltavam para poderem ter uma complementaridade, de tal forma que pudessem produzir então, no futuro deles, um sentido. 2) Ou o sentido deles já estava presente quando aconteceram, mas apenas mais tarde o sujeito pode aceitá-los ou compreedê-los. Ou, ainda: 3) seriam eles usados pelo presente para explicar e sustentar o presente ou o futuro?
A problemática de "Nachträglischkeit" é colocado já desde a "Interpretação dos sonhos" referente ao material dos sonhos.
Em se tratando do "material dos sonhos", apresentam-se como estando: 1) ligados a vivências de palavras e , 2) ligados a pedaços de recordações da infância. Não podemos acessar a maneira pela qual uma criança apreende o mundo, devido a já imperar em nós o recalcamento - a linguagem. Mas temos a impressão, pela clínica, de que as crianças apreendem muito bem a intensidade de seu contexto. Para uma criança, o sentido de uma palavra, de um nome qualquer, está diretamente ligado ao contexto dela, mais ainda, a palavra é parte integrante do acontecimento. A palavra trata do "som das coisas", portanto, de sua harmonia. Para haver um caminho até o ulterior é preciso as fundações da linguagem. É sobre ela onde se apoiará a fantasia por onde se pode interligar os tempos.
O sonho enreda o antigo com o atual visando o adiante. O sonho vem mostrar como um desejo procura ulteriormente uma maneira de realizar-se, para isso vai tentando ser reapresentar em contextos novos na tentativa de recuperar a ligação, interrompida pelo recalcamento. É ulteriormente, no sonho e mais além, na interpretação que o desejo, naqueles sonhos que interessam a clínica psicanalítica, vai adquirir seu sentido, ou seja, sua realização.

Nachträglischkeit e o "chicote do tempo".
O contexto de emergencia das palavras, mais exatamente, da palavra contextualizada (Wort), será referida no texto "O inconsciente" como relativo a Sachevorstellungen ( aquilo que é colocado perante, ou em referência, às coisas, às causas ou casos, isto é, os nomes, as palavras), sendo estas o que compõe o inconsciente recalcado. Inconsciente este que interessa à psicanálise pelo efeito provocado por ele na forma das afecções anímicas. São as palavras aspiradas por "isso colocado perante as coisas contextualizadas" que fará os sonhos. Ou seja, são convocas palavras ligadas a certos contextos para fazê-los surgirem novamente. E por que o faz? Para "preencher desejos". Preencher desejos é a função do sonhar tanto naquele que dorme quanto naquele que formula sobre o futuro.
Quando a pulsão introduz-se em um sistema onde impera a linguagem opera-se um recalcamento, de uma ordem tal, que transforma o tipo de realidade pulsional - efetivamente já faz parte do destino da pulsão este tipo de recalcamento pela sua introdução em um campo simbólico com condição de possibilidade de sua efetivação. A linguagem estabelecerá uma ligação dos símbolos (com o pulsional incrustado) entre si correlacionadas pela ordem da linguagem e pelo seu sentido simbólico, ou seja, do âmbito da cultura. Através deste incrustamento a moção pulsional pode insistir em sua efetivação graças a possibilidade do símbolo poder preservar-se em reminiscências.
As formações inconscientes - sonhos, sintomas e atos falhos - irão se constituir em apresentações do tipo de palavra primitiva, mas como aparecem introduzidas já em um outro tipo de contexto, será neste contexto onde se produzirá o seu sentido. Este sentido, que é a interpretação constituindo-se em uma forma de realização desta palavra, mas isso só quando a dita interpretação for a palavra correspondente a esta causa apresentada pela formação inconsciente.
Por isso, podemos formular que aquilo vivido - quer como excesso ou como carência - pela criança e marcado nela pelas palavras, visto o sistema anímico ser sensível aos enunciados simbólicos ( não estamos nos referindo aqui apenas a palavra falada, apesar de ser predominantemente ela devido a uma maneira toda peculiar que "entrada" sonora, ou do sentido, acessa o sistema anímico, e, sim aquilo a se constituir em um sinal da presença de um sentido, portanto, de uma representação (Vorstellung) ), isso aparecerá nas formulações do sujeito mais tarde, já através de seu discurso, como projetos ou como temor de futuro. Esta palavra, constituída às expensas do passado, trata-se do objeto para o desejo - tanto no seu vértice consciente ( onde aparece na forma de aspiração ou temor dirigida para o futuro ), quanto no seu vértice inconsciente ( onde faz surgir vivências inscritas na matéria mesma que compõe o sujeito). Realizar o desejo é fazer a conecção Sachevorstellung / Wortvorstellung compondo a Objektvorstellung, ou seja, constituindo pontos emergentes de sujeito.
O incrustrado nos símbolos fará aparecimento em outros tempo que não no passado. Aparecerá na forma de uma sombra no presente ou de uma expectativa de futuro. Desta forma, o tempo procede um "chicote de tempo", dando uma "volta" de tal maneira onde o passado aparecerá sob a forma de futuro. Este é o sentido mais sensível da "ulterioridade".
A clínica psicanalítica deixa aparecer constantemente a maneira como as marcas anímicas - os fantasmas - provenientes das vivências desejantes e recalcadas aparecem: na forma de concepção e projetos de futuro, na forma de impressões a respeito do presente ou, na forma de construções fantasios a respeito do passado. É a este movimento do tempo, devido ao efeito de princípio produzido desejo recalcado, que aqui nomeia-se chicote do tempo. Este movimento é possibilitado pelo inconsciente.
O inconsciente esta privilegiadamente situado no outro. O outro é situado como sendo o lugar das causas e como aquilo a minorar as contradições pessoais, enquanto assume para o sujeito o lugar do inconsciente, por este ser uma entidade "atópica". Desta forma é no outro onde, usualmente, o tempo parece fazer esta "curva". Usualmente é um outro a quem a pessoa coloca no lugar deste chicote do tempo. É este outro que o fustiga o ameaça ou representa suas aspirações.
"Todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo e que não sei como ligar ao resto de minha vida anímica, devem ser julgados (beurteilt) como se pertencessem a outrem; devem ser explicados por uma vida anímica atribuída a esta outra pessoa"._
Este outro não é só uma outra pessoa é, também, o outro do sintoma, do sonho e de um "outro tempo", ou seja, isso que digo que fui ou que serei, deslocalizando do presente. É comum o recalcamento fazer o desejo inconsciente aparecer transportado para um outro tempo e negativizado. As tendências e os desejos de futuro aparecem localizados em acontecimentos passados. Para dizer daquilo confabulado para o futuro e daquilo que se vive de forma inconsciente, lança-se mão de construções, não só de acontecimentos passados mas, eventualmente, de construções de um passado virtual - como é o caso das recordações encobridoras e dos mitos individuais, onde o sujeito insere-se em linhagens e em corpos imaginários.
A maneira através da qual o recalcamento opera com o tempo para encobrir o desejo é uma das partes mais vigorosas da clínica e onde as resistências mostram bem sua potência.

"Nachträglischkeit" como o "só depois".
O mito de Epimeteu - aquele que pensa depois - irmão de Prometeu - aquele que pensa antes - já colocava, desde há muito, esta problemática relativa ao "posteriori". Sempre se procura realçar o mito de Prometeu como o sentido do ser dos homens. Afinal, se pretende o homem como um ser reflexivo, alguém que pense antes de fazer, de tal forma que este fazer se apresente enquanto um operar racional e siga a linha adequada de seu desejo. Prometeu, porém, não termina bem, como aliás os homens, também não. Mas a psicanálise e desde antes, os gregos, tornam indissociáveis estes "dois irmãos." Epimeteu também fala da epopéia humana. Sempre tenta-se deixá-lo de lado, afinal ele é enganado por Pandora, sua mulher, em um episódio através do qual "os males" se introduzem no mundo. Epimeteu fala desta nossa característica de só acessar o sentido quando ele já está se consumindo, quando é muito tarde - só depois, ulteriormente.

6.3 Tempo e inconsciente
No seu trabalho sobre a interpretação dos sonhos Freud já começa a constituir o inconsciente como não tendo qualquer referência a um "ser", portanto, não padecendo de tempo, de espaço, nem de contradição. Como o inconsciente é o objeto da psicanálise, é preciso se refletir sobre esta formulação para, pelo menos, tentar se decidir sobre qual tempo ela se sustenta. Não tendo a presença do tempo enquanto marcação o inconsciente não opera contradições. Para desfazer a vivência da contradição, porém, é preciso fazer dobras no tempo e distribuir os elementos contraditórios por estas dobras. Ou seja, é preciso montar a historicidade.

O tempo e a materialidade.
Quando se trata da relação do sonho com as doenças mentais: " Em ambos, falta a zeitmass ( a medida, a proporção, a extensão do tempo)._
Aqui o tempo é referido no seu sentido newtoniano tanto no sentido da física quanto no senso comum. De maneira geral, supõe-se uma materialidade ou, então, uma subjetividade. Aquilo que dá realidade a algo teria a ver com este algo possuir uma "massa" ou, então, ser uma sensação, uma impressão - algo da ordem dos valores, do ajuizamento, de qualificações. Ora, a tese do inconsciente vem dizer de algo distinto, por não ser substantivo nem lógico.
Vamos procurar precisar aqui o sentido intrínseco ao termo "Zeit (tempo)". Trata-se de uma derivação do antigo "ti-di", cuja referência é a uma atividade de separar, dividir, fragmentar. O nosso termo latino "tempo" tem, também, uma referência análoga, significando a divisão dos dias, a separação das estações, etc. O sentido de tempo está, desta maneira, na linguagem ligada a atividade de dividir e de fracionar, divisão da qual depende a identidade das coisas - das partes.
No sonho e nas doenças mentais o tempo não é tomado enquanto "massa", enquanto "unidade de tempo" para poder ser medido e ter uma extensão, ou seja, não aparece, já de inicio, enquanto materialidade. Mas aparece na figura do executor de cortes de onde advém a angústia sendo, esta, aquela que as formações oníricas, delirante e sintomáticas tentarão dar uma resposta "eficiente".

O tempo e a introdução de cortes - a função anímica do dormir.
Outra característica da forma do sonho lidar com o tempo é a seguinte:
" Acrescento que o agente instigador de todo sonho encontra-se nas vivências sobre as quais "ainda não se dormiu - nenhuma noite ainda estabeleceu um corte".....Os sonhos podem selecionar seu material de qualquer tempo da vida do sonhador, desde que haja uma linha de pensamento ligando a vivência do dia do sonho ( as impressões recentes ) com aquelas mais antigas."
Aqui o tempo já aparece estabelecendo cortes e construindo a história. Existe uma problemática entre sonho e história, como vimos anteriormente. Para a história, é preciso "já se ter dormido" e o sonho afirma algo ainda no mesmo plano de tempo, algo ainda não cortado, não separado do plano do vivido imediato - ainda é potência. Este sentido colocado por ele é bastante sensível e podemos ver claramente a diferença entre sonho e história. Com o vigor da noite, enquanto sentido mais radical do tempo, o material do sonho não obedece a uma distribuição histórica e sim a uma distribuição no plano do pensamento. Trata-se de uma prevalência dos atributos associativos de linguagem e de desejo e não pela distribuição de época. O sonho, portanto, não reconhece a historicização - o sonho é, exatamente, o lugar ainda do não-sono, ou seja, aquilo sobre o que ainda não "se dormiu."
O sonho aparece aqui operando com o tempo. Para se poder operar com ele é preciso uma distância, uma diferença, de tal forma que ele possa constituir-se em um instrumento para o preenchimento de desejo. A clinica, principalmente de crianças, mostra freqüentemente como é preciso o distanciamento, a efetuação de uma "dobra" do corpo, para este poder ser operado e tornar-se útil. Daí sempre o aparecimento de noções como a de "alma", "psiquismo", "mente", etc, apontando para uma dobra do corpo, de forma a ele poder ser operado desde um "não-local". A mão, por exemplo, não pode operar sem a dobra do "anímico", ela não poderia agir sobre si própria - sem distância. A própria noção de inconsciente vem dizer de uma dobra destes tipo, visto nem o sujeito poder operar sobre si mesmo. Se o sonho opera com o tempo, é pelo fato do tempo estar "fora" do sonho - como dobra. O psiquismo é aquilo que do corpo não é corpo, na mesma proporção que o nome é aquilo que, da coisa, não é coisa. É graças a este fracionamento que o sujeito pode operar sobre si.

O tempo enquanto instrumento produtor de causalidades.
Uma outra passagem deste texto dos sonhos, aponta, claramente, este aspecto operador do tempo no sonho: "Os sonhos reproduzem a ligação lógica pela simultaneidade do tempo".
As relações de causalidade, tanto no sonho quanto fora dele, dizem respeito a um tipo de intervenção operativa do tempo. À ligação lógica, significante, de pensamentos, se faz apresentar uma simultaneidade no tempo e também o inverso, ou seja, aquilo percebido ao mesmo tempo se supõe compor a mesma unidade lógica.
"Os acontecimentos do sistema Inc. são Zeitlos ( atemporais, de onde o tempo é retirado, carente de tempo, mesmo havendo o tempo, ali não há). Continuando mais adiante:
"Colocando junto isenção de contradição mútua (Widerspruchslogkeit), processo primário ( mobilidade dos investimentos ), atemporalidade (Zeitlosigkeit) e a substituição (Ersetzung) da realidade externa pela anímica, teremos as características que podemos esperar encontrar nos acontecimentos pertencentes ao sistema Inc."

Atemporal enquanto indiferenciação e permanente.
Qual seria o sentido de Zeitlos? Uma primeira aproximação já poderia dizer de como zeit aponta para o significado de "divisão"; zeitlos diz de algo onde a divisão, a separação e, conseqüentemente, a identidade, são retiradas. Trata-se de um "continuo", de um "permanente". Vai ser a incidência deste permanente e deste contínuo sobre os processos de linguagem e do consciente, aquilo a produzir a "impressão" de repetição, de fixação, de regressão e de desenvolvimento. Trata-se de maneiras como o processo secundário apreende o primário, efeitos gerados quando uma Sachevorstellung ( aquilo coloca peranate as coisas contextualizadas) emerge sem acessar sua Wortvorstellung (aquilo colocado diante da palavra) correspondente, tendo, então, que se estabelecer um substituto compensatório (Ersatz). Esta apreensão não altera o apreendido, mas decide sobre a liberação dos investimentos.

Atemporal enquanto afirmação.
Uma segunda aproximação do sentido de Zeitlos ( atemporal) para o inconsciente seria uma afirmação. É preciso instaurar a retirada do tempo, estabelecer uma privação no tempo. Esta função deve ser estabelecida como condição do prazer e do ato. É preciso "perder tempo", este é o sentido de "Sorge" - do cuidado, da cura, do ocupar-se de.
Esta perda introduzida no tempo tem sua introdução e seu vigor maior no sentido existencial da criança. Criança é o nome para um "tempo perdido", não só por ficar fora da memória, como, principalmente, porque ali o sujeito não faz nada. Sua própria atividade cotidiana é "nadificar" as coisas, acabando com elas - introduzindo nelas o nada, privando-as de seu tempo, de sua existência, de sua duração. Quando Winnicott diz das afecções anímicas como sendo relativas a falta do sentido do brincar, ele fala disso: falta da criação positiva da atemporalidade. Esta característica do inconsciente, como qualquer outra, deve ser feita - o inconsciente deve ser estabelecido e afirmado pelo sujeito. É preciso se sonhar os sonhos.
É claro que nos dias de hoje, o sentido da infância vai, paulatinamente, anulando o sentido da criança. Praticamente não se pode mais perder tempo, mesmo nas crianças todo o tempo é "útil", tudo tem um sentido e uma função na direção de um "desenvolvimento". Este tipo de contexto vai estabelecer uma problemática com o prazer, onde surge a convocação de uma atividade como a psicanálise, por exemplo, a tentar restaurar as condições de possibilidades para o prazer. Isso inclui, na sua base, a perda de tempo.
Não vamos tratar disso aqui, mas deixaremos dito que esta introdução da perda de tempo está ligada, diretamente, com a negociação da pulsão de morte com as pulsões sexuais.]
A psicanálise surge em defesa desta perda de tempo. É preciso o sujeito interromper suas atividades "produtivas" e adentrar suas fantasias, seus sonhos aparentemente a deriva. É preciso se dispor a perder este tempo, do contrário o prazer escapa. Lacan no tempo lógico fazia com que se perdesse tempo. Apesar de freqüentemente fazer sessões curtas, ele fazia as pessoas irem para seu consultório e ficarem lá esperando. Este tempo perdido na espera, era, de fato, um tempo fundamental, talvez mais importante que a sessão mesma. Há um tempo lento, um tempo perdido, uma privação de tempo inerente ao cuidar, ao curar.

6.4 O atemporal como dizendo de um não-desenvolvimento
Um terceiro sentido para a atemporalidade do inconsciente diz respeito ao sentido de "desenvolvimento". Não se trata de um desenvolvimento vinculado ao inconsciente, visto este não padecer do tempo e, ao não padecer do tempo, não poderia desenvolver-se. Tanto nos "Três ensaios para uma teoria da sexualidade" quanto no "O Eu e o Isso" e ao longo de seus escritos, vamos ver o sentido de desenvolvimento ligado a uma complexização do sistema anímico, devido primeiramente, a libido não ter resposta para suas demandas e precisar procurar deslocar-se a procura de outras possibilidades e, segundo, devido ao sistema anímico ter de responder a evocação dispersa do corpo pulsional, devendo, para isso, constituir um regime de complexidade. O sentido de desenvolvimento não tem o significado usual de "melhor", nem necessariamente mantém-se no regime para o qual se desenvolve. Pode se mover e movimentar seus investimentos para posições onde vislumbre condições de descarga mais adequadas para si - mesmo que não o seja para o sujeito e para os outros.
Esta atemporalidade relativa ao desenvolvimento, tal como a relativa ao prazer, deve ser afirmada. Ela defende que o homem não se "desenvolve" - mesmo se estabeleço diferenças devido às vivências - significa, cada um deve sempre começar de novo e correr todos os riscos novamente - como um eterno retorno do mesmo. Devemos sempre nos deparar com as mesmas questões existenciais com as quais sempre nos deparamos de alguma forma. Não se pode estabelecer a tecnologia como sentido de desenvolvimento e onde estamos nos situando, são sempre as mesmas questões que devem ser retomadas, não só por cada um, como pelo mesmo sujeito sistematicamente. Nem se pode dizer que as formas mais complexas de resposta a libido suprimem ou são "melhores" que as mais primárias .
O inconsciente "defende" no homem o inumando, aquilo que não deixa o homem se humanizar demais, o que seria, inevitavelmente, seu ocaso - porém, não que o homem já não seja seu próprio ocaso, mas ele o deve fazer a sua maneira e enquanto assumindo o sentido de sua condição.
Os hindus dizem isso metaforicamente (metaforicamente para nós, realmente para eles) no sentido de afirmarem que o sentido de uma alma viver muitas vidas para se desenvolver é o de não precisar voltar mais, poder "sair do mundo". Os cossacos também diziam: quando um caminho se resolve, quando se vai nele até seu fim, ele não mais aparece para aquele que o trilhou. Não é um sentido muito diferente daquele convocado por Freud em "Repetição, sintoma e angústia" ou, como se diz mais genericamente, na "travessia do fantasma".
O sentido de atemporalidade não pode ser tomado como algo simplesmente "natural", como default do sujeito, assim, também, como o inconsciente não é "natural", não é parte do modelo standard, ele deve ser sempre instaurado, afirmado e reafirmado. A esquizofrenia é uma conseqüência de quando o inconsciente, apesar de feito, não é afirmado nem confirmado. Isso tem uma relação direta com o sentido da atemporalidade, no sentido de se introduzir uma perda no tempo.

O sentido próprio da temporalidade em psicanálise.
Estamos dizendo de um tempo próprio da psicanálise, a atemporalidade (zeitlosigkeit) - um tempo cujo pathos é uma privação. Talvez devêssemos nos ater um pouco mais para este sentido de los (a ). Este a privativo não é uma forma passiva e sim ativa, de intervenção - como diz o sentido grego de Aléthea ( verdade), enquanto privação ativa sobre o usual da Lethé ( velamento, engano). É análogo ao less do inglês, como quando se diz homeless para se falar dos desabrigados, sem lar - em se existindo o lar e o abrigo alguém afirma sua falta. Esta falta é ela mesma aquilo a dar todo o sentido e o vigor do abrigo e do lar. Ela deve ser, portanto, afirmativa sempre - tanto no "núcleo" do sentido de lar, quanto, principalmente, naqueles a tornarem sempre presentes, pela sua condição de desabrigados afirmativos ( por decisão ), a condição mesma do homem no mundo.

O problema do sentido de desenvolvimento.
A obra de Freud está cheia do termo Entwicklung (desenvolvimento, evolução, revelação), mas isso deve ser entendido mais no sentido daquilo que acontece com a fotografia ao ser revelada.
Não só existe toda uma possibilidade de se ler a psicanálise por um prisma psicológico, como, também, não existe uma oposição direta contra a noção de desenvolvimento. Apenas não é isso aquilo a interessar à psicanálise, particularmente no sentido clinico - seu sentido prioritário. O centro de interesse são as condições de prazer, particularmente ligadas a fruição sexual. Neste sentido, aquilo a se constituir nas suas condições de possibilidades são exatamente os gastos, o que é consumido. A compulsão a se repetir, as fixações e as regressões, apontam para o sentido do esforço do sujeito em resistir às condições de prazer, devido às imposições de seus recalcamentos. Estes elementos, apesar de aparentemente se oporem ao desenvolvimento, de fato, não representam oposições. Aquilo a abandonar realmente o sentido de desenvolvimento é o envolvimento com a fruição.
O investimento nos resíduos faz parecer que é o que fica de importante para a psicanálise, mas isso que fica só se torna importante pelas dificuldades com a consumação. O preenchimento da memória pelas lembranças e a pressão exercida pelas reminiscências, apontam para uma problemática com o prazer.
A pulsão, também, enquanto conceito de força sobre o qual a psicanálise formula seus movimentos, é uma força constante, cujo movimento é o de um retorno tangenciando seu objeto. Seria preciso, aqui, entender o sentido do "eterno retorno" nietzschiano, no sentido da presença permanente das forças convocarem o re-aparecimento do mesmo, não se devendo confundir o mesmo com o semelhante.
Desta forma não sustenta uma concepção evolutiva. Apesar do sistema anímico ir se tornando mais complexo e com isso ir precisando criar novos contextos de realização, não se pode, a não ser em se tomando a posição própria como referencial, se afirmar este sentido como sendo na direção de um "desenvolvimento". De fato, como em uma revelação, detalhes vão emergindo, mas as condições de aparecimento e aquilo que um aparecimento suprime deve, também, ser deixado em questão.
Os elementos prioritários para a psicanálise são condições discretas. Como a questão dos sonhos, dos lapsos, das lendas e mitos. Ou seja, um conjunto de elementos disjuntivos. Para se fazer uma "psicologia" ou uma "ciência" disso, é preciso se afastar muito de suas condições apropriadas. Trata-se de um tempo que se perde, da afirmação destas vivências de consumação. Fica muito difícil até mesmo se fazer uma "teoria do sujeito" a partir da psicanálise. Freud trata de parcialidades.
Existe uma certa proximidade disso com o postulado de Heidegger, do sentido existencial do Dasein ( forma de ser própria do homem ) ser a morte. Mas não é a morte biológica exatamente e sim o que é tomado como prioritário, consumido pela fruição, não deixar marcas nem resíduos.

6.5 Tempo e repetição

Repetição e memória
A noção de repetição está vinculada com uma falta na memória. Em vez de recordar, repete-se. Esta repetição diz respeito a uma insistência da demanda de satisfação de um desejo recalcado. A repetição se mantém enquanto as condições nas quais o desejo se constituiu não forem re-alizadas. Tal como um fantasma que volta por seu corpo ter acabado sem ter cumprido suas condições de potência.
O que se repete é um não acontecido - mais exatamente um não realizado -, trata-se da insistência de um desejo, uma reminiscência. Nas condições fora da transferência, existe sempre a tendência de uma repetição do contexto onde o desejo não foi reconhecido, onde seu aspecto de palavra - enquanto busca de reconhecimento - não é apreendido.

Repetição como criação de um começo virtual.
A função prioritária da repetição, porém, é criar um novo começo. No "Para além do princípio de prazer" aparece o exemplo de um garotinho "normal", cuja mãe sai de casa e ele se põe a brincar com um carretel. Joga o carretel em algum lugar onde ele some, dizendo em seguida: Oooh! = Fort! ( ali, sumiu, lá) e o traz de volta em seguida, exclamando: Aaah! = Da! ( aqui, apareceu). Freud apresenta este exemplo para mostrar o processo de simbolização. A maneira como a criança faz o carretel representar a mãe. Tendo sido atingida pela impossibilidade de controlar a mãe, a criança procura recompor este controle através do controle do símbolo da mãe, o carretel. Sua brincadeira visa restaurar um dano narcísico causado pela saída da mãe fora de seu desejo. Através do jogo, ela "cura-se" do efeito traumático de um abalo em sua onipotência.
Esta repetição é necessária para "criar um novo começo". Neste começo criado, a criança aparece, novamente, como sendo a "causadora" do aparecimento e do desaparecimento da mãe-carretel. Na medida de ser um começo "falso", ele precisa ser repetido sistematicamente, quer para, através de uma repetição intensiva, provocar uma marca passível de produzir a mesma intensidade provocada por um acontecimento efetivo, quer para recobrir, com isso, a memória do acontecimento tal como ele se deu. Quando o sujeito é pego por um acontecimento em uma posição passiva, ou seja, em uma condição traumática, ele vai tender a repetir este acontecimento em um sentido onde ele possa reverter sua condição passiva para uma posição ativa. Ou seja, cada um tende a transformar-se em agente daquilo vivenciado na condição passiva.
O tempo da repetição é um tempo ativo no sentido de fazer um novo começo, por isso a repetição não é apenas conseqüência de um fracasso da memória. Ela, usualmente, faz um movimento ativo, no sentido de atingir a memória com a intenção de produzir um novo começo, um começo mais adequado ao desejo.

6.6 Lacan e o tempo na psicanálise lacaniana, ou o "tempo lógico"
Depois de Freud é Lacan quem vai tomar a problemática do tempo como algo determinante. Ele o faz explicitamente, tomando o tempo na sua forma técnica. Trata-se, primeiro, de um "maniement du temps" ( manejo do tempo) e neste sentido, diz respeito ao tempo tecnológico, um tempo como conseqüência da linguagem e para o qual o sujeito deve já estar cônscio de si para manejar. Trata-se de uma arte sobre Kairós, o tempo oportuno. Mas, na verdade, esta questão do tempo é mais densa em Lacan. Vamos ver a maneira como ele a situa em um ponto estruturante, como toma o "Zeitlos" enquanto objeto de uma técnica.
A concepção de "manejo" (Behandllung) coloca um elemento técnico básico para a psicanálise. Trata-se do sentido de "mão". Este sentido aponta para uma condição anterior ao instrumento. Trata-se de uma experiência de precariedade, de falta de recursos. Uma posição onde o operador é também o instrumento. Optar pela psicanálise implica aceitar a precariedade como forma de afirmar a condição do homem perante o real, condição esta que aquilo a jazer no sintoma procura renegar.
Através do corte e do ato introduz-se, ou se sustenta, este "los" determinante para todo o aparato anímico. Podemos, também, encontrar nas formas clínicas maneiras de intervenção no tempo como medida de se preservar o desejo, evitando a ação separadora do tempo, desta forma conflituando a diferença sexual (e desde aí as diferenças em geral), cuja função é decisiva para o exercício das qualidades - onde se sustenta a consciência. Devemos ver nas situações clínicas formas "eficientes" de se dar conta de uma situação complexa. O sintoma é a única solução possível para uma certo campo de coisas, sua ausência só pode vir a dar-se na medida de se processar uma alteração, no campo ao qual ele responde enquanto solução.

Apresentação do paradigma.
É pelas vias da lógica de um sofisma, ou seja, por uma lógica indutora de equívocos, que Lacan vai propor o tempo na psicanálise. O sofisma é um discurso feito dentro das regras lógicas, não podendo, portanto, ser refutado, mas cujas conclusões são "visivelmente" enganosas. Os sofistas afirmavam a não existência da verdade. Trata-se sempre de amarradura lógica dos argumentos, técnicas de bem dizer, de convencimento, de opinião adequada. Os sofistas foram os primeiros "professores", "vendiam" saber, ensinavam como ser um bom político, um bom soldado, etc. Substituem o sentido de aptidão e de essência, pelo sentido do aprendizado. Existe um ponto todo especial em Lacan ao introduzir o tempo através de um sofisma e, particularmente, por um onde a função ver ( instante de ver ) é um ponto capital para a decisão proposta. É característico, exatamente, o "visível", onde reside sua natureza equívoca. Os gregos, e vários outros povos, acentuam o caráter excessivo do olhar, a forma pela qual o olhar é por onde o "mundo interior" sai recobrindo e velando o real. Geralmente se concebe o olho como sendo por onde o interior emerge e o ouvido como por onde o exterior acessa. Geralmente as figuras que lidam com a verdade são, efetivamente ou representativamente, cegos. É como, também, se a visão fosse excessiva para as nuances sensíveis da verdade.

O manejo do tempo.
A psicanálise não poderia furtar-se ao seu tempo, ao seu contexto. Principalmente, ao ter tomado as proporções de uma "profissão" e alastrado-se em inúmeras instituições, ela não pode mais afirmar uma posição por demais romântica enquanto "fora do tempo", enquanto "arte", sendo seu objeto - o inconsciente - atemporal. Mesmo que alguns analistas consigam sustentar posições "fora do mercado", ela, enquanto tal, não pode furtar-se ao seu contexto histórico e faz parte determinante deste contexto, a utilização do tempo. A sociedade atual tem como seu principal alvo a intervenção sobre o tempo no processo de virtualização. Sabemos bem como o pathos do tempo atual é a rapidez. De alguma forma, a rapidez deve fazer parte de qualquer exercício da sociedade atual. A psicanálise, tal como os mitos, deve ser sempre atualizada, sempre recontextualizada. É este o efeito da releitura feita por Lacan de Freud.

Os três modos de temporalidade do tempo lógico.
Lacan opera com três tipos de tempo e com três verbos na sua instrumentalização: o instante, o tempo e o momento; o ver, o compreender e o concluir. Sendo a tendência cada vez maior a de fazer coincidir o instante com a conclusão - está ai toda a questão moderna da rapidez. Enquanto estes três tipos de tempo são implicados no tipo de tempo da duração, estes três tipos de verbo estão implicados com um tipo de atividade de cortar, separar, escolher.
Freud já havia formulado no inicio de seu trabalho sobre o recalcamento, a necessidade de uma Urteilverwerfung ( um repúdio do juízo)- pare se poder chegar ao sentenciamento (Verurteilung) - é preciso interromper o processo de julgamento para se chegar a conclusão. Esta interrupção só se dá na forma de uma intervenção de força tal como a é denotada pelo sentido da Verwerfung ( repúdio ). O olhar é um sentido seletivo. Já se disse muito do olhar ser por onde o espírito recobre o mundo e não por onde o mundo entra no sujeito. A compreensão, também, implica uma atividade de juntar elementos dentro de uma intenção, de um desejo e a conclusão implica uma exclusão.
É uma exclusão lógica que dá a base ao movimento.
A intuição objetificará alguma coisa além dos elementos dados, tendo como objetivo definir uma finalidade. É no ato de concluir onde se define uma singularidade. O ato de concluir um julgamento, só é viabilizado por um "eu" resultante da realização de um sujeito que já tenha formulado uma asserção sobre si, é um processo de singularização feito sobre a antecipação de uma certeza devido a uma tensão temporal.
A intuição operante na base do acontecimento conclusivo é uma função:
... "aspirada entre o instante de seu inicio e a pressa de seu fim, parecendo estourar como uma bolha. Sob o golpe da dúvida que esfolia a certeza subjetiva do momento de concluir, eis que ele condensa como um núcleo no intervalo da primeira moção suspensa e que ele manifesta ao sujeito seu limite no tempo, para compreender que passou para os outros dois o instante do olhar e que regressou o momento de concluir."
Trata-se da manifestação de uma intenção. No caso do sofisma apresentado diz respeito a intenção do prisioneiro em sair da prisão ao resolver o sofisma. No caso do psicanalista, diz respeito a presença de seu desejo, cujo desfecho clínico deixará ver.

O ato raciocinante - " die Denkenarbeit".
O tempo lógico é um tempo epistemológico, isso diz de uma tendência no sentido de uma "desubjetivação". Refere-se, simultaneamente, a um procedimento de saber ver e saber decidir, a partir de um conhecimento objetificado tanto pela teoria quanto pela própria análise, onde se deveria chegar à primeira assertiva: a assertiva de si, como condição de possibilidade para se entrar na prova da dúvida, ao se chegar a primeira certeza - a certeza pela escanção lógica, relativa a afirmação do momento de concluir. Mas, também, manifesta o ato do analista perante o fato de ter sido surpreendido pelo inconsciente e ser convocado para dentro de uma situação transferencial, onde ele, como os prisioneiros do sofisma, só pode responder - uma vez ser qualquer atitude já uma resposta, visto a questão ter sido colocada.
O inconsciente, aquilo a convocar o sujeito ao ato de decidir, aparece como:
... "o nome mesmo da indeterminação do sujeito - nem ser nem não-ser, não-realizado".
Dentro de uma clinica psicanalítica efetiva, o analista não poderia ficar imune ao inconsciente, visto que este não se trata de um reservatório de lembranças, cuja análise pessoal e o exercício clinico habituariam o analista. Tratam-se de dispositivos intensivos. O inconsciente "trabalha" e o faz na transferência, na forma de uma convocação de cuja resposta depende o resultado de uma análise. Trata-se de uma representação a partir do automatismo do significante e está no máximo desta representação, exatamente lá onde ela falta. Desta maneira, ele não pode ser antecipado ou contido em um conjunto de receitas já prontas, tal como se tentou sempre fazer na clínica psicanalítica, para evitar o incômodo da condição analítica.
"O inconsciente", afirma Cottet, "revela-se como um saber, mas um saber sem conhecimento e como por uma atração do tipo newtoniana, inscrito no real"
Esta disjunção tramada pelo inconsciente entre saber e verdade, impede o analista de estar imune à verdade, por maior que seja seu saber. Essa verdade aparece nos pontos onde se fracassa, onde se falha, é ali onde o desejo deixa ver sua face - pontos de esgarçamento da malha do discurso, por onde emergem significações problemáticas. Mesmo tendo um aspecto seu designado pelo "infantil em nós", o inconsciente, também, representa aquilo "impossível de dizer". É o ato, ele mesmo, aquilo que faz precipitar o sentido recalcado.
Não se trata, em se dizendo do inconsciente, de uma "coisa", de um substantivo. Seu devir, sua condição de existência, depende estruturalmente de que alguém o escute. Sem isso, ele não se manifesta como inconsciente e sim como sintoma. Esta escuta não é passiva, é preciso o ato para romper com uma certa malha contextual prévia onde já. por princípio, o recalcado permaneceria recalcado ou apenas visível no seu aspecto racionalizavel. Na transferência, o real do fantasma do analisando é colocado em ato, a procura de uma satisfação - apenas o desejo do analista vai poder responder a esta convocação. É neste território arriscado onde se desenvolve qualquer análise possível.

A antecipação estrutural do tempo lógico. A falta e o tempo.
Existe um atraso estrutural no tempo para compreender, dependendo da capacidade de cada um, onde se darão as condições de uma precipitação - sendo este o sentido próprio do tempo lógico. Existe um equívoco neste ponto estrutural onde germina o atraso em relação a uma pressa, a uma precipitação gerada em função do objeto a.
Collete Soler, em seu artigo para revista da "La cause freudienne", já introduz esta questão no tema do artigo: "Le temps qu'il faut". Na psicanálise, diz ela, "falta tempo". E, além de faltar, o tempo é algo que caso seja economizado, impossibilita o sujeito quanto ao prazer. Eric Laurent coloca nesta "falta de tempo," um imperativo ético. Este tempo que falta é uma maneira de se introduzir o impossível de dizer. Sua afirmação é contingente ao fato da introdução do sujeito "custar" uma renúncia. O "a mais" de tempo requerido, faz face ao "a mais" do gozar paralisante. O tempo lógico é inseparável de um tempo que "ainda falta" para a admissão e o suportamento de um resultado. E que resultado é este? Prioritariamente, o resultado da intromissão da sexualidade.
No acontecimento da transferência, o sujeito produzirá sua alienação ao Outro do significante. Esta alienação constituinte do próprio sentido de sujeito, apresenta o efeito da irrupção da diferença sexual, criando uma possível perturbação no tempo, visto este estar implicado com a produção das qualidades na base dos dados de realidade.
O "pas-tout" ( não-todo) não trata do efeito de uma oposição de elementos, diz respeito a um indecidível. É este não-todo aquilo a ser o solo de uma análise, visto que enquanto não puder ser enunciado e suportável, cria o efeito comum nas afecções anímicas de se procurar evitar a certeza. Esta certeza, porém, não é aquela defensiva do paranóico, mas uma conclusão cuja lógica implica o impossível. Freud refere-se a isso quando fala da cura como sendo a transformação do mal estar pessoal em um infortúnio comum.
Mas, talvez, ainda não se tenha discutido o suficiente se a psicanálise se trata de uma cura ou de uma afirmação do inconsciente. Ou ainda, se há alguma diferença entre uma coisa e outra.

O fim de análise - o tempo em psicanálise como portando a finitude.
Jacques-Alain Miller apresenta a formulação do fim da análise desta forma: S(+)a, ou seja, implicando o emergir do objeto. Atualmente se sabe de como o aparecimento do objeto é simultâneo ao do sujeito. Para se poder avançar neste sentido do tempo lógico, é preciso situar sua relação com o objeto a , visto estar ele implicado na pressa relativa ao atraso, com a falta estrutural, onde vamos encontrar o sentido do atemporal com a conclusão da análise.

O objeto a e o tempo lógico.
Porge desenvolve em seu livro sobre o tempo lógico em Lacan, uma construção que nos auxilia para podermos fazer esta conexão necessária. É preciso introduzir, de inicio, que quando se fala da "divisão do sujeito" enquanto estruturante, não se trata da divisão de "uma coisa", cuja soma daria "um". Para isso se usa o sentido de "divisão anarmônica", ou seja, uma divisão cujo resultado não é "justo", não é uma medida cujo parâmetro é o "1". Trata-se de um fractal. "É a medida da perda própria para toda atividade significante".
Trata-se de uma medida "não comum" e só pode ser traduzida por um número irracional ( significando tanto o incomensurável quanto aquilo no qual falta a razão - o Lógos). Apresenta o resultado da ferida narcísica, enquanto reconhecimento assertivo por parte do sujeito, de que lhe falta "um pedaço". Ao se dar conta de si, ele já se dá conta de que padece de uma falta. Esta falta se fará sentir como pathos do tempo. Desta divisão e relativo a este pedaço faltante, será definido o objeto a.
Este pedaço é vivido, originariamente, enquanto tendo sido perdido. Vem daí a castração primária e a fantasia de uma vivência de totalidade com a mãe, aparecendo, o pai, enquanto elemento privador. Para este pedaço se procura apoio em objetos onde se procurará efetivar a suposta totalidade perdida.
Apesar de ser pedaço, de ser parcialidade, esta sua parcialidade não faz parte de uma unidade, de um todo, ele não tem medida comum com a unidade. Simultaneamente, impõe a procura de uma complementaridade e afirma seu fracasso.
O número irracional, enquanto forma de representar a divisão anarmônica, fala pelo objeto perdido. Desta forma, o objeto a porta consigo o número como uma qualidade. Isso significa uma abstração, um real. Ora, o real é aquilo mesmo a se produzir no cruzamento do simbólico com o imaginário. Trata-se, portanto, de algo relativo a uma força decisiva sobre o sistema anímico. Algo em torno do qual gira todo o seu funcionamento desejante.
O objeto a é uma maneira de se dizer de um resto não absorvível. Trata-se de uma falta cuja origem é um excesso. Faltam ao sujeito condições para dar conta da complexidade crescente de suas demandas, geradas pela libido nas zonas erógenas, pressionadas pelas pulsões em sua dubiedade. A não ser pelas vias da linguagem, do processo simbólico e com a assunção da impossibilidade, não há qualquer outra condição de se lidar com este resíduo sem ser através da apresentação de algum tipo de Ängst (Angústia, ansiedade, medo). Relacioná-lo ao número irracional significa dizer que ele só pode ser nomeado. Porge o define, enquanto ligado a sua função com o tempo, assim:
"Objeto a é o nome desse objeto elementar, tal que seria impossível dizer qualquer coisa sobre ele, nem que ele é, nem que ele não é; é impossível formular em qualquer destes dados primeiros por meio da linguagem, pois para ela, nada é possível, senão dominá-los apenas, já que sua nomeação é a única coisa que lhe pertence. A divisão anarmônica é a metáfora daquilo que se passa a partir do momento em que o sujeito, como produto ( dejeto) de uma história, tenta projetar seu ser sobre o ideal de uma fusão unitiva."
A ânsia, resultado da angústia devido ao objeto a, resulta na pressa em concluir, cujo efeito é o atraso. Este atraso, enquanto campo possível para o fracasso, corresponde a forma existencial de se apresentar a falta-a-ser. No caso dos prisioneiros do sofisma lacaniano, é a liberdade aquilo a fazer as vezes do objeto a, onde, em se tratando de prisioneiros, já se pode ver bem como a liberdade deve estar para eles neste ponto problemático.

Objeto a e corte.
A projeção deste objeto a sobre o "1" da unidade, revelará o incomensurável de 1 até a. A fórmula para isso é : a2 = 1-2, havendo, portanto, um resto enquanto sentido para o incomensurável de a. É nesta operação que Lacan se baseará para formular a sublimação. As potências pares e impares de a se repartem em torno de um ponto que converge para a reprodução de a2, a falta inicial. O sentido e o momento do corte é este mesmo ponto. A fórmula para o corte é: a2 + a = 1. O corte último corresponde a um limite de adição onde se reproduz a falta inicial.
O corte simboliza o termo de afirmação de "tamanho menor que qualquer tamanho dado antecipadamente".Corresponde a uma maneira de se fazer afirmar o resto, como uma medida de introduzir as condições de possibilidades do sujeito obliterado pelas incidências clínicas.
O número áureo dará sentido para a noção afirmativa, sem ser necessariamente positiva, da falha relativa a afirmação do objeto a. O número áureo corresponde a uma fração contínua do tipo: 1 + 5.
2
cuja representação seria do tipo: 1+ 1
1+ 1
1+ 1
1+…..

Este número áureo será, exatamente, o inverso do objeto a. Na medida do número áureo fazer fração contínua, o objeto a faz momento de corte. A este momento de corte corresponde a função da pressa em concluir, dando origem ao ato. "O ato, ele jamais tem tanto êxito quanto em falhar, o que não implica que a falha seja o seu equivalente, em outras palavras, que possa ser considerado como êxito."
Será o ato, ele mesmo, aquilo a "desentocar" o recalcado, fazendo falar o desejo naquilo que ele tem de enigmático e de complexo.
"O objeto a desloca a noção de intersubjetividade em direção à fantasia ( sujeito barrado para todo e qualquer objeto). A fantasia, na medida em que é referida a um mxioma, constitui um modo de acesso a um real do qual Lacan procura se assegurar através da topologia do nó borromeano."
Daí o tempo para compreender só funcionar se houver três, tal como deve ser a estrutura do nó borromeano ( por isso os três tempos e os três verbos, bem como os três indivíduos necessários para se formar um sujeito ). Esta fantasia será aquilo mesmo a conduzir as manifestações e as defesas do sujeito quanto a sua verdade. E que verdade é essa? Na sentido em que estamos desenvolvendo, pode-se dizer : "O objeto a tem duas faces: uma real e uma imaginária. A face imaginária serve para tapar o furo do real".
Este furo, dizendo respeito ao sentido do "los" em Zeitlos ( atemporal), apresenta a maneira pela qual o tempo participa do acontecimento psicanalítico e introduz alguma compreensão sobre sua instância no sistema anímico. Neste sentido, pode-se dizer que o tempo lógico responde àquilo que faria função de tempo.
Existe na lógica do objeto a, em sua escritura, algo de não-necessidade. Este algo é onde se fundamenta o desejo, ele mesmo. É onde, desde Aristóteles, se fundamenta toda a atividade humana desejante ( nomeada por Aristóteles de política), mas podendo ser nomeada, no nosso caso, de ética.

O tempo enquanto estruturante.
É o tempo aquilo a constituir as condições de possibilidades da lógica, na medida dele decidir sobre as qualidades e instaurar a presença do sujeito lógico, distinto do sujeito da relação de reciprocidade.
"O "Eu (Je)" da ação conclusiva se isola por um intervalo de tempo lógico do outro, isto é, da relação de reciprocidade. Esse movimento de gênese lógica do "je (Eu)" por uma decantação de seu tempo lógico próprio, é bastante paralelo ao seu nascimento psicológico. Da mesma forma que, para recordá-lo com efeito, o "je" psicológico se desprende de um transitivismo especular, como ciúme. O "je" de que se trata aqui, se define pela subjetivação de uma concorrência com o outro na função do tempo lógico. Ele nos aparece como tal para dar a forma lógica essencial ( bem como a forma dita existencial) do "je" psicológico."
Com isso evidencia-se o fato de ser a instância do tempo lógico aquilo a fazer eco ao período freudiano na base da produção das qualidades pelas quais opera a consciência, a constituir um ponto de virada decisiva na forma de ser do Eu. O Eu psico-lógico depende, para vir a ser, do tempo-lógico. A introdução do tempo lógico representa o rompimento com as relações de reciprocidades especulares do Eu. Ou seja, depende disso a autonomia do Eu enquanto subjetivação. O tempo vem aqui representar aquilo que corta o sujeito do outro, estabelecendo não apenas o sujeito como aquilo a emergir no coletivo como cifra do particular, mas, também, aquilo a sustentar a solidão enquanto sentimento existencial primordial.

Tempo lógico, corte e ato.
A instância do tempo lógico permitirá ao sujeito funcionar dentro de um registro lógico, onde o decisivo não é o visto, mas sim aquilo encontrado de positivo do que não se vê. Esta é a condição de possibilidade de qualquer lógica, de qualquer lógos. Apenas tendo este fundamento, se pode sustentar o ato. Ato não no sentido de uma cópia, de uma reprodução, mas sim, efetivamente, de uma produção.
Há um corte feito pelo tempo, corte ligado à função definidora do conceito próprio de tempo, trazendo como efeito a lógica e o je psicológico. Os outros, o coletivo (representado pelos outros prisioneiros) constituem-se como um chão fundamental, visto a verdade só poder ser engendrada, como demonstra a solução do sofisma apresentado através de uma confirmação do erro dos outros.
O coletivo, graças ao sentido de tempo, não se funda em uma comensurabilidade e nem sobre o pressuposto de uma medida em comum. As próprias condições de trocas e a maneira efetiva pela qual a sociedade se estrutura - e não seu modelo utópico - deixam ver o conflito emergencial na análise, onde por um lado se age no sentido de estabelecer uma identificação entre a imagem e o objeto e, por outro ( isso tendo de ser assumido pelo ato analítico, enquanto representando aquilo que o sujeito deve sustentar para estabelecer o instância do tempo lógico com suas conseqüências ) a presença da divisão anarmônica revelando sempre uma separação ( de onde provém tempo) entre a imagem e o objeto, toda vez em que se repete a operação de se procurar fazer com que eles se correspondam.
O tempo lógico vai vir ocupar e investir o lugar de uma falha, de uma falta. Falta esta relativa a um corte produzido pelo tempo, ele mesmo - o tempo de atraso relativo a uma precipitação estrutural. Ele vai , às vezes, apresentar a certeza como não sendo o resultado de um julgamento dedutivo, nem de uma teorização contemplativa guiada por um ato razoável e racional. A certeza está ligada a uma lógica da ação. Esta ação ligada a certeza, só pode surgir através de uma incidência da lógica sobre os dispositivos especulares. É preciso uma ação sobre o "tesouro dos significantes", representado pelo Outro, de forma a produzir um corte nas relações de reciprocidade nas quais só podem se dar os movimentos de massa - mesmo em se tratando de números reduzidos de indivíduos e mesmo subjetivamente, como é o caso das psicoses. O ato é necessário para que a dedução chegue a seu termo. Mas que ato é esse?
Trata-se da presentificação do tempo enquanto corte, por cujo efeito a superfície revela sua estrutura. Por esta via, o tempo lógico constitui-se em um dispositivo a colocar o real em uma forma significante, rompendo com possibilidades de especularização entre I (imagem) e a (objeto). Neste sentido, é onde se pode dizer do tempo como sendo o pai da verdade, ou seja, ele vem sempre produzir e comprovar a impossibilidade desta colagem, mesmo o sujeito insistindo nela na forma de construções delirantes. A relação sempre intuída do tempo com a morte se manifesta neste sentido, na medida dele constituir-se neste dispositivo de estabelecer a lógica dos cortes, de fazer a lógica das diferenças.

O acontecimento subjetivante.
A reflexão sobre o tempo lógico evidencia o surgimento do sujeito ligado a uma falta (manque). Esta falta se manifesta não só pelas vias de uma precipitação na base mesma do ato, pelas exigências feitas pela certeza, como, também, pela desubjetivação, ou seja, por também o sujeito "escapulir" sempre ao se dar. A desubjetivação aparece como o efeito de não se poder ver tudo de uma só vez e como derrotando a intuição. O surgimento do sujeito lógico, do Eu psicológico, marca um fracasso e um êxito sobre as formas procuradas em uma anterioridade lógica de certeza, quer através da reciprocidade, quer através da atividade do raciocínio (sujeito noético).
O sujeito do ato ligado ao tempo lógico emerge de um campo significante. Toda a sua complexidade e densidade devem-se a esta sua pertinência. O prisioneiro deve levar em conta o contexto significante no qual está imerso para poder decidir, mas sua decisão se dá efetivamente em um destacamento ativo seu sobre este campo significante. A dificuldade inerente a isso cria, eventualmente, uma selvajeria clinica do corte. Mesmo Lacan, pelo que sabemos de seus efeitos clínicos, nem sempre era preciso no seu ato de corte. Mas o sentido dos "efeitos da clínica" ainda são muito discutíveis.

Castração enquanto efeito de tempo.
O problema com o tempo começa por representar a problemática da surpresa. No plano anímico, a apreensão do tempo acontece junto com aquilo que nos surpreende. Os dispositivos anímicos, na sua grande parte, inclusive o exercício do tempo comum, são levantados enquanto medidas de proteção contra a surpresa. O fantasma acenando esta provocação é, exatamente, o fantasma da morte - representante da Ängst (angústia, ansiedade, medo) da castração. Desta maneira, o domínio sobre o tempo se afigura como o exercício fálico por excelência, ou seja, não o atravessamento ativo, mas sim o domínio passivo do complexo de castração. Da mesma forma como a morte sempre há de nos surpreender, a castração sempre já ocorreu. Podemos ver bem, a partir daí, a intimidade entre tempo e phallus.
O tempo - sua vivência ( sua arte) e não seu domínio - está do lado do atravessamento da castração. Com sua formulação sobre o tempo lógico evidencia-se o ponto decisivo para o sistema anímico naquilo que ele interfere no destino das pulsões. Isso é decisivo no que é apresentado e vivido enquanto plano de imanência da vida de qualquer sujeito.
Vamos encontrar as situações clínicas como sendo, exatamente, formas de se enunciar esta problemática com a castração, portanto, como maneiras de se conflituar com o tempo.

6.7 As situações clinicas como forma de objetivar a problemática do tempo

O "ser" enquanto sintoma do tempo.
Vamos encontrar o tempo como sendo aquilo a fazer o sintoma. De fato, o "ser" já é, ele mesmo, um sintoma do tempo. O "ser", a "essência", o "sujeito", são maneiras de se apresentar um sintoma ao tempo. É a problemática de se lidar com o tempo, ou seja, a problemática com o complexo de castração ligada a vigência da surpresa ( do estar aberto, do estar aí ), aquilo mesmo a dar origem a formação reativa, aparecendo sob os auspícios do "ser". É daí que Nietzsche e de certa forma Heidegger, Freud e Lacan vão atingir duramente a metafísica - enquanto postulação do ser. Por outra vertente, vamos ver os atingidos por situações clinicas fazendo este questionamento de maneira ambígua.
As situações clínicas correspondem a intensificações de determinados dispositivos usuais, mas, devido a pressões da libido, sofrem uma alteração quantitativa, criando um contexto identificável.

Nas neuroses.
A psicanálise, regularmente, apresenta seu discurso enquanto "revelação" (tal como uma fotografia o é de seu negativo) da neurose. Por isso, uma não pode ser "decifrada" sem a presença da outra. Este tipo de posição de uma em relação a outra, faz com que em alguns pontos se distinguem pelo oposto. Um destes pontos diz respeito àquilo que nelas representa o tempo.
Enquanto na psicanálise se fala de um "maniement du temps" (manejo do tempo), nas neuroses se processa um "emploi du temps" (emprego do tempo). E qual a pretensão do dispositivo neurótico em procurar tomar o tempo como um empregado seu? Pretende com isso manter o desejo. Enquanto não possui uma forma de lidar com seu desejo, a não ser por dispositivos inviabilizantes, acontece do tempo ser virtualizado nesta posição utilitária, empregaticia. Na cena neurótica, o tempo aparece domado e servil ou quando flutua para a cena da sua angústia, o tempo aparece adverso. De qualquer forma o tempo é apresentado enquanto um "ente".
A neurose corresponde a uma forma de se tentar empregar o tempo com o objetivo de realizar o fantasma fundamental, enquanto condição de mais gozar. A pessoa acometida em tal situação, precisa do outro enquanto garantia de criação deste tipo de tempo.
Na psicanálise se afirma o "não-todo", enquanto a neurose afirma a "falta-a-ser". O não-todo enquanto condição de possibilidade para as vivências do prazer, encontra-se prejudicado nestas vivências. No seu lugar aparece a queixa, cujo fundamento é esta "falta-a-ser" enquanto negação do "não-todo". Com isso, vamos ver nestas posições a "criação" de um outro tempo, onde o desejo aparece realizado ( fantasma ) sem o pathos do não-todo. Ora, o não-todo é a maneira de se dizer a afirmação do tempo. Os neuróticos fazem um avanço em relação às pessoas imersas no hábito, mas eles o fazem conflituadamente, daí a presença da angústia - o fazem cheios de pretensão e como medida de combater o tempo.
O sintoma corresponde, na neurose, ao significante da alienação do sujeito, ou seja, onde ele repete sem saber o momento onde se fixou seu ser. Ora, tanto o sentido de fixação quanto o de ser, fazem sintoma ao tempo. O ser vem corresponder a uma expectativa e empenho em tapar ( pelo menos velar ) a hiância do "não" relativo ao "não-todo". Freud é muito preciso com isso: quanto fala sobre o consciente (Bewusstsein) e inconsciente (Umbewusste), ele afirma como inconsciente, não algo a se opor ou negar o consciente ( como seria o não-ser para o ser, por exemplo ). Corresponde a uma instância que "não tem qualquer referência ao ser (sein) ". O inconsciente impede qualquer totalização do sujeito, não se pode pensar uma união do consciente com o inconsciente compondo um Todo, uma unidade ( muitos psicanalistas inclusive viveram muito tempo acreditando na possibilidade de se transformar o inconsciente em consciente e assim ter um "sujeito inteiro").
O inconsciente, como condição produtora dos sintomas, diz respeito às representações. As perturbações anímicas não se dão, portanto, a nível das pulsões, elas mesmas, mas, sim, devido ao sentido calcado nelas, dependendo já das condições do recalcamento.
Colette Soler escreve sobre o que a psicanálise oferece ao sujeito:
" Oferece a transferência, onde se pode mensurar pela palavra seu ser ao tempo. O tempo, nas diferentes estruturas clínicas, é o tempo onde se constitui o ser do sintoma."
Neste sentido, ela oferece as condições para intervir no sentido, cuja conseqüência é o sintoma.
Vamos encontrar na neurose, formas diferenciadas de reagir ao tempo próprio do inconsciente - ao Zeitlos, reação particularmente dirigida em direção ao los privativo - tempo este responsável pelo "não" do "não-todo".

a) A histeria.
O tempo a compor aquilo designado como sendo o modo histérico de responder ao desejo, se faz enunciar como um "não-ainda". A pessoa não sabe o que fazer com seu tempo. Trata-se de uma defesa contra seu desejo de ocupar seu tempo voluptuosamente.
É neste contexto onde vamos encontrar, com todo seu vigor, o "chicote do tempo", ou seja, uma projeção, no sentido literal do termo, do passado sobre o devir, sendo neste plano do devir onde se passa a sua Ängst ( angústia, ansiedade, medo), mesmo que esta apareça na forma da "belle indiferénce". Trata-se de um dispositivo para lidar com o desejo insatisfeito.
A histeria corresponde a um paradoxo do tempo. O prazer não pode ser vivido por não se poder deixar o tempo acabar. A impossibilidade do fim, o interesse pela eternidade, cria uma impossibilidade para a fruição, responsável pelo prazer. O infinito é trocado pelo eterno. Não se pode deixar o tempo acabar na medida de não ter sido preenchido, não ter sido satisfeito. Por esta via, se cria um segundo tempo, o tempo da fantasia ( do fantasma), onde o desejo fica acumulado, onde aquilo de que o sujeito privou-se aparece como realizado. A manutenção do desejo prevalece sobre o prazer. Para manter intacto o desejo, opera-se em um tempo virtual. O paradoxo corresponde, exatamente, ao fato do tempo não poder acabar por ter sido já denegado de inicio - na sua qualidade de apresentar o "não" do "não-todo".

b) A obsessão.
Trata-se de uma forma a se precipitar diante do tempo. Manifesta a antecipação. De tal maneira antecipa, que seu fantasma passa a ser a impressão de já estar morto - enquanto sujeito. Hamlet, com seu "Ser ou não ser," expressa o ponto onde leva a antecipação obsessiva. Sua maneira de velar e realizar seu desejo é "jogando de morto: " Quanto a mim, fala, já estou morto". O sujeito faz vigília à morte. Isso aparece manifesto na forma de automatismo. O automatismo é a maneira de se evidenciar a vigilância em relação a morte. Ora, sabemos já como a morte é aquilo a representar a Ängst da castração e esta, a maneira subjetiva do tempo enquanto "não" do "não-todo" apresentar-se.
São apresentadas renúncias enquanto simulações do não-todo. Estas renúncias, porém, correspondem apenas a formas de um mais gozar pelo sacrifício e não enquanto condição de possibilidade para o prazer. Diz respeito a um conflito com a castração e não a seu atravessamento.
Trata-se da manifestação da temporalidade enquanto seqüencial, no seu tiquetaquear mais próprio. Tudo para impedir o contingente, para impedir o acaso - a "perda de tempo" - todo o tempo deve ser preenchido, enquanto maneira particular de fazer operar o recalcamento, procurando fazer a manutenção do desejo intacto.
A cena deste fantasma bem poderia ser expressa na representação mítica grega, onde Saturno ( o tempo ) castra Urano ( o céu - o todo ). Esta representação, onde o tempo é apresentado como Zeitlos - como sendo aquilo a introduzir um corte, um "a menos" - corresponde ao ponto onde se dá o sentido da obsessão enquanto "neurose de violência". Esta cena de uma violência arcaica, assusta e atrai o sentido do desejo nesta forma de tempo designada como obsessão e é, exatamente, no automatismo, onde isso se expressa ( esta contradição ).
Manifesta o paradigma do tempo tal como ele é tomado regularmente, por isso foi na sua clinica onde se introduziu com mais propriedade o tempo lógico. Pretende fazer do outro um "assistente" e alguém a instituir para ele um tempo onde apresente a cena de seu fantasma, o contexto onde transcorre seu gozo - geralmente na forma de um sacrifício extenuante - principalmente a nível mental. O corte corresponde a uma possibilidade de saída deste buraco negro, para onde se eclipsa a própria linguagem na sua função criativa e de comunicação. A palavra eclipsada passa a servir a um mais gozar, a um a mais de tempo, a um automatismo - trata-se de um movimento de condensar, de concentrar a transferência, constituindo uma prisão do tipo do hábito.
O conflito compulsivo manifesta o fato do "fora do tempo" da pulsão intervir sobre o "atraso" temporal do sintoma. O esforço em curar-se aparece enquanto uma tentativa de antecipar o atraso relativo ao sintoma. O problema todo, porém, diz respeito ao recalcamento impedir que determinados representantes pulsionais sejam temporizados pela palavra e de como isso produz um pressionamento pulsional metonimizado na compulsividade. Este conflito produz um curto circuito repetitivo no lugar do dispositivo da linguagem (o sintoma), em transformar o retorno do mesmo em criação.
A compulsão visa prioritariamente evitar o equívoco. Este equívoco denunciaria para ele a "falha no Outro", a "castração materna", evento este do qual depende a atividade desejante e as condições de prazer, mas que fica interrompida neste contexto. Ao negar-se a sua alienação ao Outro significante, mantém-se fora das condições de sujeito - o que inclui a alienação estrutural - permanecendo, desta maneira, na condição de objeto.
O tempo enquanto Vorzeitig ( antecipado ) na obsessão, procura neutralizar o incômodo provocado pelo tempo, principalmente enquanto Zeitlos ( atemporal). Com sua antecipação, o obsessivo visa suprimir a vigência da privação, da castração mesma, relativa a presentificação do tempo inconsciente. Todo seu empenho racionalizante corresponde a este empenho em tentar demonstrar "não ter inconsciente", visto estar todo preenchido - tal como seu tempo se apresenta preenchido ( Erfüllen - para evocar o termo usado por Freud para dizer sobre o que o sonho faz com o desejo.) Procura-se "não chegar ao tempo", neutralizar as condições efetivas do tempo através de um tempo antecipado, precipitado, preenchendo-se como se isso pudesse evitar o efeito do tempo. Sua tensão, porém, deixa ver seu temor diante da ameaça de seu dispositivo.

c) A fobia.
Freud designa a fobia como uma histeria de Ängst. Corresponde a um congelamento do tempo. Este congelamento se dá onde o imaginário do ser fica ameaçado de romper-se, onde a angústia o alcançaria. O medo fóbico protege o sujeito da angústia. Esta angústia, Heidegger a diz bem, é a angústia de nada. Um nada de angústia e, porém, ela está ali. A maneira como a presença deste tipo de angústia presentifica a castração e a alienação do sujeito, em relação ao saber de si, faz o fóbico reagir contra ela tal como reage conta a castração. Para isso, congela o tempo. Após congelar o tempo "cria" um tempo virtual o qual ele "deixa passar," de tal maneira a não precisar fazer escolhas. O ato de escolher, de decidir, implica, exatamente, o tipo de temporalidade que nele ficou congelada.
Enquanto este dispositivo está funcionando, seu sujeito parece nunca perder o rumo, parece possuir uma bússola bastante precisa. Esta bússola, porém, funciona no sentido "contra-fóbico", ou seja, no sentido de desviar das direções onde poderia se deparar com ameaças ao imaginário do seu ser.
Quando o dispositivo deixa de funcionar, é o próprio sujeito que é atingido pelo congelamento do tempo, ficando, desta maneira, "disponível" para seu temor/anseio de castração. O último recurso passa a ser projetar este temor/anseio para um objeto fóbico. O paradigma da fobia é, exatamente, o fato de deixar ver como é o próprio tempo aquilo a ser espantado. Trata-se deste "los" privativo, apresentado por Heidegger como sendo o nada contra o qual o próprio ser é estabelecido. O "ser" é, ele mesmo, um efeito fóbico, uma construção contra-fóbica diante da vigência do tempo. O ser é aquilo a impedir o envolvimento com o tempo.
A morte enquanto referência fóbica maior, é, ela própria, apenas o relicário do nada e esse nada, é a forma do "los" privativo do tempo se fazer representar - enquanto presença inevitável da castração, enquanto condição de presença do homem em sua mundaneidade - para nós, em psicanálise, enquanto apresentação da diferença sexual e da condição sexuada humana. Tanto é assim, que o fóbico não teme exatamente morrer, mas sim a este estado da morte dentro da vida, representado em um objeto que ameaça escapar ao seu controle. É o significante da castração a assolá-lo na figura do tempo que ele procura congelar.

Nas perversões.
Como as perversões se apresentam enquanto o negativo das neuroses, uma sendo o "desenvolvimento", a "evolução" lógica da outra, na medida das neuroses representarem um empenho em recusar o "los" privativo do tempo, as perversões correspondem a formas onde o recusado é o "zeit" ( o tempo ele mesmo). Para isso o "los" privativo é afirmado no outro - mesmo a custa de uma retaliação do corpo ou do Eu do outro. Através deste tipo de calcamento do "privativo" se procura denegar o tempo. Esta condição é dada por uma repetição compulsiva do simulacro de seu desejo. Este simulacro é uma cena onde o "los" é incutido no outro. Esta cena, o seu fantasma, serve para fixar o desejo do sujeito a sua vontade de gozo.
Veja-se como o sujeito sadiano vai afirmar-se através da infinitude de sua vontade, através de um ultrapassamento tal dos limites, onde o próprio Eu, o próprio desejo e os sentimentos deveriam ser superados. A crueldade corresponde ao calcamento sublinhado do "los" privativo ao outro. O sublinhado aparece como a condição de, ao mesmo tempo, afirmá-lo através do outro, mas denegá-lo no sujeito, ou seja, sublinha realçando aquilo mesmo que procura esconder - conseguindo apenas mudar o lugar de sua apreensão. A ansiedade perversa expressa por sua "frieza," deriva do fato deste dispositivo sádico ser a reação a um originário logicamente "anterior," onde o próprio sujeito sente a presença deste elemento privativo - enquanto sinal da castração - enquanto produtor de uma vivência masoquista - ou seja, onde o sujeito não pode distinguir o valor, o sentido desta privação.
O projeto de Sade, isso ele deixa muito evidente, seria atingir uma "segunda morte", ou seja, uma anulação., visto a simples morte constituir-se em um mero dispositivo da natureza, da vida mesma, em se afirmar e se renovar. Ora, esta segunda morte corresponde, exatamente, a denegação do tempo, com a simultânea afirmação do "a (los)" privativo. Por isso, seu correlato inverso é a paixão (visto esta, também, corresponder a uma suspensão da diferença).
Denegar o tempo implica em tentar atingir o sentido da "ti-di" - a separação, a diferença. Pode-se ver como no homossexualismo, também, é exatamente esta diferença aquilo a ser atingido.
A perversão possui um caráter paradigmático em Freud, por ser a afirmação do indivíduo. O indivíduo é, originariamente, o herói, enquanto aquele que se levanta contra alguma potência originária, padecendo, devido a este ultrapassamento, a esta desmesura, de sua tragédia - tragédia esta paradigmática do próprio homem. A afirmação do indivíduo corresponde a uma denegação do tempo. Devido as implicações deste evento, o indivíduo aparece, formalmente, conjugado em sua voz passiva enquanto sujeito. A perversão, portanto, não corresponde a uma forma do tempo, mas, exatamente, ao empenho de sua supressão através da presença do indivíduo.
Os dispositivos de horários da modernidade e a maneira como o tempo é tomado na sociedade, implicam em uma defesa contra o desejo bastante intenso do "indivíduo" na nossa sociedade, mas ao mesmo tempo temido, devido as suas conseqüências imaginárias representadas nos mitos e apresentadas na clínica pelos fantasmas nas neuroses. Este empenho do indivíduo em afirmar-se, tem, porém, na sua origem, o reconhecimento desta potência contra a qual se levanta: é o caso das divindades, no caso do herói mítico e da castração ( a separação, o não-todo), no caso da subjetividade, cujo efeito, no que se refere ao sujeito perverso, é fixado enquanto masoquismo, ou seja, em uma cena onde é incutido ao outro a causa de uma crueldade em um momento lógico, onde prazer e desprazer são diluídos na mesma vivência de gozo.
O paradigma do tempo tal como ele faz aparecer na perversão, é o célebre aforisma grego: "o tempo é o pai da verdade". Freud vem mostrar como a perversão está implicada com a verdade do sujeito. O sentido da moral é indissociável tanto deste tempo pai da verdade, quanto do sentido da perversão. Ora, isso é correlato ao "sujeito de direito" ou, mais exatamente, a vigência do indivíduo. Este aforismo é a fórmula do indivíduo. O agente da vivência masoquista é o Tempo-Pai e a reação a ele se constituirá no indivíduo enquanto verdade deste encontro (denegado).

Nas psicoses.
Às psicoses correspondem maneiras intensivas do tempo. Estamos já habituados a relacioná-la, na psicanálise, com a função paterna. O pai, porém, enquanto vinculado a vigência da castração, é aquilo mesmo a emprestar um corpo e, desta maneira, minorar os efeitos do encontro com a condição própria do Dasein (não enquanto entidade metafísica, mas como uma forma de tempo ). Enquanto identificação primordial de qualquer sujeito, ele ocupa o lugar onde está a vivência fundamental deste Dasein, sendo esta condição a de "estar lançado" à condição de desamparo e de "falta a ser". A função paterna, portanto, vela o encontro de cada um com esta potência do tempo enquanto "Atemporal ( Zeitlos )".
A castração representada pelo pai é um "remédio" para esta "crua" feita pelo tempo. Tal como o pai a introduz, quando introduz - correspondente a este "a" privativo, deste tipo de tempo localizado por Freud no inconsciente. O pai, se pode dizer, corresponde a um "truque", um artificio do qual depende a forma do sujeito enquanto simbólico, ou seja, enquanto um "ser" de artifícios. Este truque implica uma "humanização" destes efeitos do real sobre o sistema anímico. A crueldade representada pelo pai quanto a castração protege o sujeito do pior. Na falha desta proteção dificilmente resta outra possibilidade a não ser a utilização dos dispositivos psicóticos.
Dá-se uma forclusão, um repúdio ( Verwerfung), à função paterna. Sem o pai com sua função, o sujeito mergulha nesta castração radical, apresentando com sua própria presença, isso no que ele mergulhou. O psicótico apresenta a castração tal como ela se constitui sem a mediação paterna.
O tempo adquire uma condição de redenção ou de catástrofe, de qualquer forma ele se torna "irreal". O psicótico apresenta-se em uma posição que se pode dizer como sendo hors-temps ( fora do tempo, prescindindo do tempo). O que é distinto do atemporal. Esta corresponde à maneira como a formação delirante já corresponde a uma tentativa do sujeito sanar-se deste seu mergulho na castração. Corresponde ao paradigma do homem na sua relação com seu mundo.
Apresenta um sujeito onde o significante "realizou-se", desta maneira tudo já está consumado. Esta visão fatalista corresponde a um efeito do encontro com este tempo fatalista do inconsciente, que, isso se tem dito na psicanálise desde Freud, corresponde a potência determinística do inconsciente enquanto correspondente ao recalcado. Mas é o tempo, também, a estabelecer um sentido onde esta consumação constitui-se ou irá se constituir em uma redenção. Esta redenção é aquilo mesmo a manter o sujeito vivo, enquanto sujeito.
Aquilo usualmente designado como esquizofrenia, corresponde, efetivamente, a uma maneira do sujeito embaralhar os códigos, criando um enigma para proteger seu gozo. Este gozo corresponde a uma forma de viver o seu mergulho pessoal para fora do tempo, no atopos (não-lugar) e na suspensão das contradições próprias do acontecimento primário. Uma maneira de desviar-se da ação perturbadora da castração sem mediação. Corresponde a um efeito pulverizante sobre o sujeito pela ação do tempo, uma fragmentação resultante de uma visão sem defesa da condição de não-todo, com uma ulterior reação radical contra isso, onde o sujeito irá proclamar-se pleno, ou então, fundir-se imaginariamente com alguém - a mãe, por exemplo, ou outra pessoa com quem possa imaginarizar uma situação onde, junto com esta pessoa, sempre tenha havido uma fusão sem faltas.
A paranóia corresponde à expressão de uma infinitude assindótica entre ser e verdade, cuja distância é mantida, exatamente, pelo tempo. Por isso, o paranóico está sempre ocupado com construções de verdades plenas. Aquilo apresentado por ele como a realização da verdade, é interpretado por outros como uma construção delirante. Este discurso do qual se retiram as brechas, corresponde a um esforço em velar o tempo, cobri-lo em sua presença obscena. Schereber, através de Freud, vai deixar ver como a paranóia corresponde ao assentamento da escrita enquanto aquilo a fixar a verdade, "cobrindo" o real de letras, de forma a velar a obscenidade de seu vazio.
A mania corresponde ao enunciado de um tempo enquanto justaposições de instantes em uma desordem a-histórica. O maníaco apresenta-se como o enunciado de alguém simulando ter o tempo. Ele apresenta-se como aquele que teria "feito o tempo em picadinhos" e não como quem, ao contrário, padece de sua apreensão do tempo.
A melancolia apresenta um tempo sempre presente. Apresenta a moral naquilo que dela é ocultado de patológico. O sujeito moral é, também, um sujeito melancólico. Isso pela versão moral apresentar a verdade na sua vertente "eterna". O melancólico retira seu gozo sofrido da eternização de um instante de perda, como forma dele enunciar e proteger-se da perda enquanto tal, produzida pela efetividade do tempo.
Porém, é no autismo onde vamos encontrar uma revelação muito apropriada para a comunicação. Corrusponde ao paradigma da comunicação e da sociedade moderna. Isso na medida do paradigma da comunicação ser: "não há comunicação". Não haver comunicação é um fato do qual decorre a construção lógica, como possibilidade de se criar a comunicação enquanto "invenção". As condições nas quais se interage em comunicação, implicam uma falta que a "existência" da comunicação suprimiria - tal como acontece quando existe uma informação ocupando o não-existente da comunicação. A existência do autismo é decisiva para se dar conta da situação do homem com a linguagem.
Pois bem, o autismo evidencia isso: não há comunicação. Corresponde ao estado básico da linguagem enquanto possibilidade para a comunicação. O aspecto inabordável do autismo evidencia o fato de não termos, ainda, condições de compreender o sentido existencial da comunicação. Qualquer abordagem possível desta condições, implica um trabalho bastante difícil com os "mitos" da comunicação e da palavra em nós mesmos.
No autismo faz-se uma diferença entre lembrança e memória. Dá-se uma impossibilidade de se reter os traços significantes. Esta condição retentiva é dada pela filogênese, ou seja, pela ação do nome do pai. Esta ação vai marcar a diferença entre arcaico e filogenético. O pai instaura um corte com o arcaico, estabelecendo uma filogenia. Sem isso, o sujeito ficaria imerso em uma dimensão da história a-histórica, por não ter qualquer marcação de um começo.
Nestas condições marcadas por este modo, se evidencia uma proposição freudiana no sentido do arcaico não ser uma ilusão, mas, sim, algo de concreto e de sólido na história a partir da hominização na beira da linguagem. Aquilo que o arcaico tem de ilusório, é o mesmo que a linguagem tem de ilusório. O autismo, principalmente o infantil, nos coloca diante da materialidade do significante,
Apresenta o Urzeit( tempo originário) enquanto um nó para as fantasias primordiais de infanticídio, parricídio, incesto, etc. Tratam-se de resíduos atávicos de fenômenos residuais, cuja realidade é comprovada pela atualização em uma situação de autismo. Evidencia-se, ali, o vazio primordial do ser enquanto ligado ao Urverdrängung ( recalcamento originário) . Quando a criança não pode emergir de um campo significante e colmatar as lacunas de sua verdade individual localizada na cadeia significante a qual pertence, ela nos apresenta este tipo de tempo, enquanto passado sem história.
O tempo das origens é apresentado sempre como onde se deu o recalcamento originário. Este tempo não se mostra efetivo no autismo. O sujeito deve, então, combater com aquilo suprimido pelo recalcamento originário - um vazio, cujo sentido imaginário é um horror à vida , um "écran" da morte. Devito apresenta o autismo como uma reação relativa a um "horror borromeano".
O Outro enquanto tesouro de significantes, condiciona uma estrutura a impor um silêncio à palavra, na sua forma de suporte do inconsciente. Desta maneira, o autismo apresenta este silêncio nele mesmo. O pulsional prevalecendo sobre o palavreado, o jogo sobre a palavra e o mutismo sobre o saber. Isso evidencia como estas situações se inter-relacionam.
Padecendo do recalcamento originário não tem acesso, a nível simbólico, nem às fantasias nem às lembranças. Permanece enquanto passado sem história, sem transmissão e sem aquisição. Recusa deixar-se sulcar pelos traços nominativos, introduz-se como um parêntese na linhagem, instaurando-se um trono intemporal. Esta intemporalidade corresponde a indestrutibilidade do desejo, onde nada acaba, nada passa e nem é esquecido.
Evidencia a tendência da sociedade moderna em uma a-comunicação. Trata-se de uma antecipação do homem-máquina-informativa. A tendência na direção deste corpo sem sexo, portanto, sem diferença, nos apresenta um futuro invadindo o presente, na forma de um passado escapado da historia. Este passado sem história, tipo de tempo próprio à palavra mesma, expressa o tipo de tempo inerente à comunicação. Apresentado pelo seu negativo no autismo, a comunicação manifesta seu real. Esta "fortaleza vazia" nos apresenta a palavra enquanto tal e uma primeira aproximação do real.

Resumo do capítulo
No seu trabalho "Projeto para uma psicologia", Freud monta uma psicologia, para dar conta de suas formulações, uma vez que a psicologia da época não era sustentáculo para o sistema anímico, tal como ele começava a se dar conta no trabalho clínico.
O sistema anímico, ele o apresenta composto de quatro tipo de "sistemas neurais", cuja distinção não é dada pela sua natureza, mas sim pela função que exercem, o que depende de sua localização. Os neurônios "fi" captam e filtram freqüências de intensidades, de fato freqüências de excitação, geradas pela percepção de objetos e situações. Os neurônios -"chave" secretam os afetos - compostos de resíduos de lembranças - funcionando como fonte endógena de estímulos; os neurônios "psi" são trilhados por marcas da passagem da intensidade - marcas estas constituintes das atividades psicológicas ( do tipo memória, raciocínio, pensamento etc.) - sendo ali, também, onde se localiza um "período monótono" em relação ao qual se estabelecem as variações das freqüências periódicas dos estímulos. Esta variação é intimamente responsável pela transformação da quantidade de energia característica do estímulo, em qualidade e os neurônios "ômega", operando com as qualidades, estabelecem onde se dá o consciente. Como no consciente se estabelecem os "juízos de realidade" e o "ser", o período - como sendo de natureza temporal - está intimamente ligado àquilo designado como sendo "o ser". Trata-se de um "ritmo", uma qualidade. Uma primeira aproximação a respeito da temporalidade se encontra assim introduzida e possui uma intimidade com o "ser", com o consciente e com a metabolização de quantidades de energia em qualidade.
O período monótono em torno do qual se produzem as qualidades relativas à diferenciação dos períodos de excitação entre si, sustenta-se - essa foi uma hipótese levantada aqui - em um complexo de situações originárias: o tempo originário, o pai originário, o ajuizamento ( os elementos originários) e o recalcamento originário. O originário não pode ser confundido nem com o começo nem com o início - ele diz respeito a algo fixo, em relação ao qual tudo o que acontece e não acontece é avaliado. Estes elementos originários são determinantes, desta maneira, para o sentido da temporalidade e, desde ai, da produção do consciente com o sentido para a realidade.
Freud freqüentemente recorre ao termo "Nachträglischkeit" para dizer do sentido. Este termo significa a posteriori, ulteriormente. O sentido vai dependendo de acontecimentos que o vão alterando. Um primeiro sentido para ele aqui foi levantado, ligado ao sentido de um "chicote do tempo". Com isso, se quer significar a maneira como aquilo vivido pelo sujeito antes de tomar posse da linguagem torna-se "filtrado" pela linguagem quando de sua instauração, sendo que alguns destes elementos vivenciais não serão aceitos na nova estruturação, devido ao que a linguagem traz consigo: o excluído da ordem social, a qual a linguagem representa e o excluído dentro das vivências edipianas. Este recalcado aparecerá na linguagem corrente enquanto projeto de futuro ou na forma da conhecida "neurose de destino", onde o sujeito apresenta-se como preso a uma "sina" - esta sina é, exatamente, o ressurgimento do contexto, na forma como figuram no seu imaginário, estas vivências antigas sustentadas no desejo recalcado.
Este sentido do ulterior está ligado, diretamente, aos fundamentos da clínica da psicanálise, na medida dela tratar dos acontecimentos a posteriori. Naquilo que de desejo existe incrustrado no passado e naquilo do passado a fazer interferências nas direções do futuro.
Freud introduz um sentido absolutamente inusitado de tempo a partir do inconsciente. Trata-se de um atemporal. Da mesma maneira como a ausência do consciente não deixa as vivências inalteradas, também a ausência do tempo não deixa o tempo inalterado. Não se trata de uma ausência passiva, mas sim de uma força privativa. O "a" do "atemporal" é uma privação feita no tempo enquanto manifestação própria da presença do homem, própria do sentido da linguagem.
Esta privação se manifesta na sua forma vivenciada enquanto necessidade de se perder tempo. Isso tanto para constituir as condições de possibilidade de qualquer atividade prazeirosa, quanto, também, enquanto o sentido próprio do cuidado. Onde elo está com sua potência mais ativa e mais necessária, é no sentido mesmo de infância, cujo sentido é, exatamente, o de um tempo perdido e de um tempo que se perde. Os dispositivos modernos de fazer com que as crianças "não percam tempo", tem inundado a clínica psicológica de problemas infantis. O tempo não perdido, o tempo onde se cria um conflito para o estabelecimento de uma privação, se converte em sintoma.
Lacan vem dar a importância devida ao tempo em psicanálise, introduzindo, também, o tempo da modernidade. As afecções anímicas se constituem na direção de um mais gozar, enquanto tipo de recusa à castração. O sentido mais fundamental do tempo em psicanálise é um tempo privativo - Zeitlos ( atemporal). Este tempo apresenta a castração no sistema anímico. Tecnicamente, o exercício do corte fará a função de lidar com o objeto a, sendo este, aquilo a articular o tempo privativo em termos de subjetivação. O manejo do tempo passa a ser o instrumental mais decisivo na clínica anímica, sendo esta a maneira evidente de se recuperar a importância e a função do tempo.
A introdução do tempo lógico representa, em termos de estruturação anímica, o rompimento com as relações de reciprocidades especulares do Eu. Ou seja, depende disso a autonomia do Eu enquanto subjetivação. Este tempo vem representar aquilo a cortar o sujeito do outro, estabelecendo não apenas o sujeito como aquilo a emergir no coletivo como cifra do particular, mas, também, aquilo a sustentar a solidão enquanto sentimento existencial primordial.
Ao tempo corresponde, no plano imaginário, a vivência da castração.
O conceito de "ser", "essência", etc. vem marcar a presença de um sintoma ao tempo. Correspondem a formas de evitar a dimensão do tempo naquilo em que ele é significado enquanto castração. Com isso se recusa a vigência do fim, da finitude - da morte dirá Heidegger, do "pas-tout," dirá Lacan. Cuidar e cura têm, assim, o sentido de uma retomada do tempo onde formalmente a metafísica e o pensamento comum colocam o "ser" e o "Eu".
O atemporal, enquanto forma paradigmática do tempo em psicanálise, apresenta-se problemático através das respostas dadas à sua presença nas situações clínicas. Os quadros clínicos correspondem a posicionamentos diante da castração. A castração é, ela mesma, resultante da diferença dos sexos e da realidade sexual dos indivíduos. O "a" do atemporal corresponde, exatamente, àquilo que sempre faz surgir esta condição de "castrado", sendo contra isso que se levanta o desejo. A função do pai será um "truque" através do qual o sujeito poderá suplantar estas condições problemáticas - através da identificação ao pai e de uma materialização nele das condições relativas às condições do homem no mundo, elas mesmas.
Nas neuroses vamos encontrar um movimento de se utilizar o tempo. Esta medida visa preservar o desejo inconsciente. O "não-todo" da castração é transformado em um "não-ainda" ou em uma precipitação, "antes que meu atraso abra brecha para o erro". As neuroses correspondem a disfarces para recobrir o "a" do atemporal. Este disfarce é no sentido de manter as condições de gozo do desejo inconsciente, em contrariedade com as condições de possibilidades para o prazer. Freud, através do sentido de "ulterioridade" e Lacan, através do "tempo lógico," visam inserir este regime de tempo recusado e cuja recusa tem como efeito as neuroses.
As perversões correspondem a empenhos de, Tal como nas neuroses se tenta recusar o "a" do atemporal, de se tentar recusar o "tempo" do atemporal, o perverso vai insistir em denegar o tempo através da imposição do "a" privativo ao outro. Quer pela crueldade, quer pela recusa da diferença sexual, se procura afirmar a privação contra o tempo. Tempo tem o sentido de "dividir", "diferenciar". A perversão corresponde ao paradigma mesmo do indivíduo. O sentido de indivíduo, de individualidade e mesmo o de individualismo na sociedade "ocidental" européia, é um sentido que se levanta contra o tempo - daí a dificuldade do homem "ocidental" em viver o tempo.
Nas psicoses, como a função do pai é foracluida (Verwerfen) o sujeito garante sua condição de gozo, mas fica sem nenhuma proteção em relação as potências privativas e vazias do real. Nestas potências, o atemporal é das mais efetivos.
Da mesma maneira como a esquizofrenia e a paranóia correspondem a paradigmas para a sociedade tecnocrática e capitalista, tal como demonstraram Guattari e Deleuze, o autismo corresponde ao paradigma da comunicação. A inacessibilidade do autista deve-se ao fato de não termos ainda dado conta da comunicação. O avanço das situações autísticas correspondem a uma complicação a nível da problemática da comunicação. Os dispositivos tecnocráticos de fluxo de informação não respondem em nada às questões da comunicação. O autista apresenta um passado sem história, um trono de intemporalidade ( esta intemporalidade corresponde a indestrutibilidade do desejo, onde nada acaba, nada passa e nem é esquecido), uma recusa tanto à linguagem ( por não se deixar sulcar pelos signos nominativos), quanto ao saber ( na medida do saber constituir sempre um campo de não saber). Isso deixa ver um demanda de comunicação. Este passado sem história faz aparecer o vazio e os fantasmas ligados ao recalcamento originário. O autista deixa ver o resultado concreto das tendências inerentes à ideologia moderna da comunicação e da informação.


7 CONCLUSÃO

Procuramos fazer ver o tempo enquanto o nome de uma multiplicidade - díspar em si mesmo. Com isso, não se pode chegar a um conceito unitário e definido de tempo. Mas em que esta impossibilidade é essencial?
Exatamente por ela introduzir brechas no pensamento. E por que o tempo faz isso? Talvez por ser ele mesmo aquilo a estabelecer a materialidade da matéria.
Pode-se dizer que o tempo se manifesta em cinco formas diferentes, entre nós, através da constituição de contextos distintos. Uma das formas exploradas aqui é onde ele aparece para explicar as origens. Na medida de um certo tipo de sistema anímico só poder agir reconhecendo-se e identificando seus objetos, só podendo reconhecer-se a partir de uma origem e os seus objetos a partir de fundamentos, é preciso criar um regime de causas e de fundamentos. Isto é efetivado a partir da constituição de um tempo originário. O tempo originário, figurado em qualquer tempo anterior, serve para sustentar o sentido, sendo o sentido, aquilo que vale pela causa a partir de onde se decide e se age, ou pelo menos, para onde se remete o sentido da ação.
Temos também um tempo de corte. Um tempo cujo sentido liga-se àquilo representado pela morte - o corte, um inesperado. Esta é a forma mais selvagem do tempo, aparecendo como diferença radical e como crueldade. É ele, porém ,aquilo mesmo a provocar o desejo e "puxar" o sujeito do seu princípio de inércia. Quem fica perante este tempo é a função do pai. É o pai aquilo a "humanizar" este tempo, dando-lhe um corpo e, inclusive, através do complexo de castração, torna a radicalidade do real mais "negociável". O pai, enquanto agente do tempo, faz corte. A própria existência do pai já faz uma secção entre o corpo da mãe e o da criança, estabelecendo, desde sempre, a origem sexual dos indivíduos ( por mais que as afecções anímicas demonstrem o empenho em se recusar esta realidade). O pai dá o nome, introduzindo o indivíduo na "natureza da tradição - da linhagem", para compensar o fato de sua existência ter excluído a possibilidade do indivíduo apreender-se enquanto continuidade do corpo da mãe, evitando, assim, ter de estabelecer o que é e quem é.
Temos, também, um tempo operativo, um tempo enquanto duração de algo. Este é um tempo facilmente confundido com o espaço, com um lugar. Tanto que se diz "espaço de tempo", para se dizer de uma duração. A duração, porém ,não é em nada semelhante ao espaço. É sobre a duração que se rebatem as maiores angústias da modernidade, entre se querer apressar algumas coisas e adiar outras. Para isso se criou um tempo virtual de duração sobre o qual se opera, mas, inevitavelmente, esta atitude é falhada e a angústia não sofre, nela mesma, nenhum retrocesso, manifestando-se em ansiedade social, medo e como um nervosismo próprio da civilização "ocidental". Esta configuração diz respeito a uma falta completa de habilidade com o tempo. Os povos do deserto, os hindus, os homens das florestas são especialistas neste tipo de habilidade que nos falta. Para isso de nada adianta, aliás, inclusive, atrapalha toda a tecnologia, tentando encurtar ou estender o tempo.
Ainda uma outra forma do tempo manifestar-se é na forma de matéria. Inclusive, se pode dizer que a própria matéria deriva do tempo. A matéria surge das dobras do tempo, ou ainda, de onde o tempo falta. Existe um ponto de vista oriental onde se diz de como os seres - aquilo que existe e mais radicalmente o homem - correspondem a "buracos," "brechas" no Pleno, no Todo - o vazio é o todo e a matéria corresponde a faltas no todo, existindo sempre uma pressão do pleno sobre estes "buracos" em si. A força desta pressão aniquila, eventualmente ( mata ), a matéria, a vida. Este tempo material constituiu-se enquanto número, passando a ser virtualizado nas maquininhas que aparentemente medem o tempo, mas que, de fato, criam um tempo material virtual em relação tanto ao tempo-matéria quanto ao tempo-número, sendo ambos semelhantes, uma vez tanto a matéria quanto o número representarem o real, evitando a sua potência de vazio.
Finalmente, o tempo se manifesta enquanto temporalidade. A temporalidade diz de algo intrínseco a qualquer coisa que pulse e, atualmente, com a teoria atômica, se sabe que tudo pulsa. No caso dos homens, esta temporalidade está na base de sua consciência e na forma de um tempo, não só que aparece enquanto privação, como, principalmente, precisa ser afirmado e conquistado enquanto "perda de tempo" para sustentar as vivências de prazer, sem as quais o sistema anímico não opera. Um dos paradoxos da modernidade, influenciando no surgimento da psicanálise, aparece como sendo o de que no momento mesmo em que o homem parecia instrumentado para não perder tempo, surgem os sintomas, exigindo a afirmação de um tempo que se perca.
A temporalidade constitui-se naquilo mesmo a devir no lugar do ser. O ser, o instituído, o estabelecido, são sintomas - formações substitutivas compensatórias - a fazerem sintoma ao tempo. Mas, para entrar nesta condição temporal é preciso uma aceitação do fim. Freud vai colocar este fim, este "furo," nas vivências ligadas ao sentido do complexo de castração.
Desde um referencial cosmológico onde o tempo aparece enquanto um "universo de princípios de cujo quebrar de ondas deriva a matéria e os acontecimentos", até um referencial corporal onde o sentido do corpo feminino já introduz um noção visceral de tempo, chegando até a uma vivência subjetiva relativa à variação dos períodos, vamos ver a maneira pela qual estamos imersos no tempo, sendo nós mesmos, formas temporais.
Por um lado, vamos encontrar a mídia constituindo-se em um ponto onde os sentidos de tempo se cruzam. Estabelece-se enquanto um movimento de tentar neutralizar o tempo, constituindo um preenchimento tal das vivências, que, com esse preenchimento, neutralize todas as forças criativas, com a aparência de estar introduzindo a realização imediata dos desejos. A mídia procura introduzir maquininhas de comunicar e de apontar preenchimentos maquínicos do desejo. Mas ela, também, produz uma perda de tempo. Esta perda de tempo é um resquício das condições de possibilidade, tanto para o prazer quanto para o "ser" ser ultrapassado até o tempo.
Por outro lado, vamos encontrar a clínica anímica constituida pelas desarticulações das linhas de força do tempo, pela problemática inerente à comunicação e pelos efeitos da própria mídia sobre o sujeito.
A presença negativa do tempo no todo e em tudo sempre foi afirmada, tanto no plano da filosofia quanto na cotidianeidade. Negativo no sentido privativo de fazer acabar, passar, acarretando fluxo.
Vamos encontrá-lo sendo operacionalizado em um momento segundo àquele no qual constitui, enquanto Arché, a realidade mesma que o vai operar.
Na nossa vivência ele aparece sendo operado pelas vias da ciência, onde sua materialidade é cada vez mais construída e operada, tanto a nível de "partículas de tempo" - o cronon - na física, quanto na virtualidade rápida da mídia.
Através da construção histórica onde se confirmam as conquistas ,de forma a estas virem a ser efetivamente conquistas, dando a impressão de um avanço tão querido pelo nosso tipo de mentalidade.
Nas manifestações da temporalidade interior, tanto na forma das bases para a consciência quanto na sua forma privativa, através do inconsciente, onde ele faz surgir as bases para as condições do prazer enquanto "perda de tempo", ou seja, como investimento.

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