Nas frestas do visível

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Nas frestas do visível1

Quem inventaria tem ambição de completude: uma vez eleito o fio condutor do levantamento a ser promovido, desenha-se o desafio de tudo observar e registrar. Na lógica do inventário, nada deve ser excluído. Por conseqüência, os mapeamentos de bens que neles resultam podem freqüentemente conformar uma coleção de elementos díspares ou pouco harmoniosos. Em arrolamentos de extensão variável, põem lado a lado bens de diferentes perfis, sejam grandes ou pequenos, eventuais ou cotidianos, sofisticados ou ordinários. Os valores atribuídos a eles também poderão variar, conforme os critérios adotados para sua apreciação: reuni-los, todos, generosamente, não elimina a possibilidade de discriminá-los. Nos primeiros momentos, impulsiona o inventariante a intenção de abarcar o todo, em sua diversidade. Nos momentos seguintes, impõe-se a reflexão sobre aquilo que é diverso, e então as especificidades dos bens são recortadas, classificadas, hierarquizadas, na busca de sua melhor compreensão, mas sempre à luz do conjunto que integram. Fica claro que, nesse empreendimento, não se busca obsessivamente o bem “excepcional” – caso exista, simplesmente aflorará dos levantamentos e registros feitos, devidamente demarcado pelo que se apresentar como rotineiro e comum. A presente publicação inventaria cemitérios situados na Grande Florianópolis que atestam, de forma significativa, práticas funerárias de imigrantes alemães e seus descendentes. Em função de elementos culturais por eles partilhados nas localidades que foram objeto do levantamento, imprimiram nos cemitérios, entre outras marcas, as da religiosidade luterana e católica. O fio condutor deste inventário reside, portanto, na experiência comum da imigração, bem como no compartilhamento e reinvenção de determinadas tradições culturais, uns e outros vislumbrados a partir dos cemitérios da região selecionada. Aos que não conhecem a região e não são estudiosos das práticas funerárias, o número de cemitérios mapeados (104, em 13 municípios) talvez surpreenda. Já a quantidade indica, de forma eloqüente, a importância de identificá-los e de refletir sobre seus significados ao longo do tempo, inclusive pensar sobre os sentidos que apresentam

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Publicado em: CASTRO, Elisiana Trilha. Hier ruht in Gott - Inventário de Cemitérios de Imigrantes Alemães da Grande Florianópolis. Blumenau, Nova Letra, 2008. p.7-8.

e podem apresentar contemporaneamente. As fichas de inventário, minuciosamente elaboradas e preenchidas, fornecem os subsídios indispensáveis para essa reflexão. Surpresa e estranhamento pode ainda causar, para alguns, a proposta de perceber os cemitérios como bens culturais passíveis de estudo e de ações de proteção, tornandoos inclusive objetos de atividades de educação patrimonial. Trata-se aqui de afirmar que a relevância dos cemitérios ultrapassa o seu valor de uso, não sendo meramente locais que, abrigando os mortos, permitem continuar a prestar-lhes homenagens. Trata-se de ressaltar que, nas relações entre vivos e mortos, sempre repostas pelos cemitérios, a materialidade, vetor de afetos individuais, serve igualmente à compreensão de experiências coletivas. Nas cruzes de madeira e de ferro, nas lápides em cerâmica, nas inscrições em alemão, na disposição das sepulturas – a história, enfim, se infiltra, ocupando as frestas do visível.

Florianópolis, abril de 2008.

Janice Gonçalves Professora do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina

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