Nas leis e na imprensa: a educação como campo privilegiado para reformas no início da República, 1890-1895

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Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH Especialização em História para Professores do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio

Nas leis e na imprensa: a educação como campo privilegiado para reformas no início da República, 1890-1895

RODOLFO CESAR MENDES DE ALMEIDA

Campinas, 2012

Aos meus pais

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— Mas o que é que há? perguntou Aires. — A república está proclamada. — Já há governo? — Penso que já; mas diga-me V. Excia.: ouviu alguém acusar-me jamais de atacar o governo? Ninguém. Entretanto... Uma fatalidade! Venha em meu socorro, Excelentíssimo. Ajude-me a sair deste embaraço. A tabuleta está pronta, o nome todo pintado. — "Confeitaria do Império", a tinta é viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então fazer outro. Eu, se a obra não estivesse acabada, mudava de título, por mais que me custasse, mas hei de perder o dinheiro que gastei? V. Excia. crê que, se ficar "Império", venham quebrar-me as vidraças? Machado de Assis, Esaú e Jacó

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RESUMO Este trabalho parte da investigação de algumas propostas de uso pedagógico-político da memória e do passado na formação da república brasileira. No que tange à metodologia, optou-se pela utilização conjunta de pesquisa bibliográfica e pesquisa documental. Partiu-se da hipótese de que nas propostas educacionais da Primeira República poderiam ser encontradas releituras do passado e a proposição de novos lugares de memória, numa relação dinâmica entre continuidade e ruptura. Para isso, foi analisada a relação entre duas iniciativas republicanas ligadas à educação – a Reforma Benjamin Constant de 1890 e a revista A Eschola Publica de 1895 –, depois, tendo em mente a comparação entre estas iniciativas, como o passado nacional foi interpretado durante o início da república no Brasil. A comparação destes documentos revelou muitas vezes uma complementaridade de interesses e de propostas. Memória, história e educação apresentaram, no caso estudado, uma relação dinâmica, onde o campo estava aberto para a construção de novos significados e interpretações. Palavras-chave: História da Educação. Primeira República. Memória. Legislação educacional. Imprensa periódica educacional.

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Introdução Quando do centenário da proclamação da República brasileira, em 1989, realizou-se no Rio de Janeiro um ciclo de debates organizado pela Biblioteca Nacional sob o título de E assim se proclamou a República em que diversos intelectuais apresentaram contribuições importantes sobre a temática dos primeiros momentos do republicanismo no Brasil. No mesmo ano, um dos textos discutidos no encontro foi publicado pela Revista Estudos Históricos, em número dedicado ao tema “República”: trata-se de uma discussão feita por Mattos sobre algumas das características da transição do Império à República no Brasil. Para este autor, a conjuntura de crítica ao regime imperial em suas diversas frentes, ou “questões”, configuraram uma situação peculiar quando do advento da República:

No fundo e no essencial, essas e muitas outras ideias, propostas e sentimentos, após terem contribuído para a erosão do edifício imperial, entravam em confronto a respeito da República que se pretendia implantar e da regeneração a ser realizada. As discordâncias a respeito dos fundamentos da nacionalidade, da amplitude da cidadania, do papel reservado à educação, entre muitas outras, [...] revelavam os diferentes projetos a respeito das novas relações entre o Populus e a plebe, engrossada pelos ex-escravos e pelos imigrantes, na nova nação república. O que estava em causa era a constituição, em última análise, de uma nova direção [...]. Se, para muitos, a Revolução Francesa se repetia na Proclamação da República no Brasil, a tragédia de Rubião [personagem de Machado de Assis em Quincas Borba] revelava a farsa da passagem do Império à República (pp. 170-171).

Por um lado, conforme Mattos em sua conclusão auxiliada pela fina ironia de Machado de Assis, a República, quando colocada em perspectiva com aquilo que era projetado para suas possibilidades, pode ser interpretada como uma farsa. Por outro lado, pode-se dar um destaque positivo ao menos para as potencialidades que o novo momento político brasileiro revelava: neste sentido, sem projetar na Primeira República uma visão do paraíso nem a expressão acabada da corrupção e do pacto entre poderosos. É útil pensar a transição do Império para a República como um campo aberto e rico em possibilidades interpretativas. As ideias, propostas e sentimentos que povoavam o imaginário republicano brasileiro durante o Império podem não ter sido concretizadas com a instauração da República, mas isso não significa afirmar que projetos não foram elaborados e iniciativas praticadas, mesmo que não necessariamente em escala nacional. Assim, tem-se como objetivo geral analisar a relação entre duas iniciativas republicanas ligadas à educação – a reforma de Benjamin Constant em 1890, cuja aplicação circunscrevia-se ao Rio de Janeiro, e a revista A Eschola Publica publicada no ano de 1895 no estado de São Paulo –, atentando para suas aproximações e distanciamentos tanto no que 1

concerne aos seus conteúdos quanto às suas apropriações e interpretações da história e da memória nacionais. Os objetivos específicos envolvem a investigação de algumas das formas nas quais o passado nacional foi (re)lido e também de qual maneira a questão da memória nacional pode e foi abordada em iniciativas educacionais no início da República. Consequentemente, coloca-se em questão como duas das primeiras iniciativas republicanas de gerir e discutir a educação no Brasil relacionam-se com o passado imperial e projetam-se para o futuro – em consonância com os ideais republicanos? Em outras palavras, quais foram algumas das propostas de uso pedagógico-político da memória e do passado na formação da república brasileira? Um diálogo com tais questões, na expectativa de obtenção de algumas respostas, será realizado com por meio da leitura da reforma Benjamin Constant de 1890, referente ao Distrito Federal, e da revista A Eschola Publica, publicada no estado de São Paulo no ano de 1895. Por meio desta comparação, cotejada com a produção historiográfica, analisar-se-á a maneira como a formação inicial da República no Brasil dialogou com o passado e com a memória nacionais, no esforço de afirmação da especificidade do presente, tendo na educação um campo privilegiado para a constituição e afirmação dos mais diversos projetos. No que tange à metodologia de coleta e análise de dados, optou-se pela utilização conjunta de pesquisa bibliográfica e pesquisa documental. Partindo do fato da inexistência de um sistema educacional organizado e centralizado tanto o Império e da permanência de tal situação após a proclamação da República (MAGALDI; SCHUELER, 2009), imagina-se que parte das iniciativas imperiais na área educacional podem ter influenciado os republicanos ao lançarem suas primeiras reformas e publicações educacionais. Para os republicanos, reinterpretar o passado pode ter sido um objetivo político alcançável por meio da intervenção na educação: defende-se a hipótese que nas propostas educacionais dos primeiros anos da República podem ser encontradas, explicita ou implicitamente, expectativas de rever o passado e construir novos lugares de memória, disfarçar continuidades e afirmar rupturas. Este tema, quando pensado na perspectiva de aplicabilidade na educação básica, possui grande importância, não restrita necessariamente a uma revisão, para o professor, do conhecimento sobre contexto de transição do Império para a República. A compreensão das dinâmicas da história da educação comporta em si, não somente para os professores de história, a potencialidade de uma tomada de consciência relacionada com a situação histórica do ensino no presente: não se vive um período estático, em que “nada pode ser feito contra o sistema”, mas alimenta-se a percepção de que o sistema escolar é em si mesmo uma 2

construção histórica muitas vezes transformada e passível ainda de novas transformações. De um lado, a revisão de um conteúdo tradicional do ensino de história do ensino fundamental e médio, de outro, a abertura de possibilidade para reflexão da educação enquanto objeto histórico no e do presente, com a expectativa de planejar ações que rompam o imobilismo algumas vezes observado na educação pública. Pensando em termos de transposição didática, ou seja, de transformar o conhecimento elaborado neste artigo em conteúdo curricular escolar (MELLO, s/d), pode-se cogitar o uso da análise referente à educação na Primeira República a partir de diversas frentes. Uma possibilidade, conforme mencionado acima, é apresentar nuances para o costumeiro enfoque de uma história política institucional, que privilegiaria, no caso, assuntos como coronelismo e política dos governadores. Não se trata de renegar tais vieses, mas de enriquecê-los com elementos que permitam perceber a construção de interpretações do passado como algo rico em potencialidades, como um tempo-espaço em que os mais diversos agentes históricos participam na criação de significados. Outra abordagem didática complementar possível para este tema concerne à apresentação da história da educação no Brasil como parte integrante das aulas de história, não necessariamente como um projeto desenvolvido paralelamente, mas como tema que perpassaria os conteúdos tradicionais presentes nos livros didáticos, os quais, em sua maioria, dedicam esparsas linhas para as mudanças ocorridas na educação durante a história nacional.

Na sequência deste trabalho, elabora-se uma discussão pontual sobre o conceito de memória, com a preocupação de relacioná-lo constantemente com a história, tendo como referências Le Goff (1990), Nora (1993) e Ricoeur (2007). Nesta perspectiva de um diálogo constante entre memória e história, intenta-se considerá-lo no contexto brasileiro do início da República, com destaque para o papel importante desempenhado pela educação como elemento decisivo na articulação deste diálogo. Em seguida, é apresentada uma discussão bibliográfica relacionada às características da educação no Brasil no Império, na transição para a República e nos anos de consolidação da Primeira República. Depois, apresenta-se uma revisão bibliográfica relativa à Reforma Benjamin Constant e à revista A Eschola Publica, destacando-se algumas aproximações preliminares. Procede-se, então, com o trabalho comparativo mais detalhado de alguns aspectos presentes na lei de 1890 e no periódico educacional paulista: recebem ênfase a instrução primária, o ensino de história, o discurso higienista aplicado à educação e a temática do civismo. Algumas ideias esboçadas 3

sobre o jogo ininterrupto entre memória e história perpassam o cotejo dos documentos analisados. Por fim, na conclusão, são retomados os objetivos, geral e específicos, comenta-se as hipóteses traçadas e deixa um campo em aberto para futuras questões e pesquisas. Considerações sobre memória e história Em seus textos enciclopédicos – “Memória” e “Documento/Monumento” – em que comenta os desenvolvimentos e usos da memória durante a história humana, Le Goff (1990) destaca que na modernidade, principalmente após a Revolução Francesa, a memória é instrumentalizada pelos Estados-nação em formação por meio da instauração e celebração de comemorações, no intuito de criar monumentos de lembrança. Progressivamente, memórias nacionais são construídas por meio da seleção de acontecimentos, pessoas, espaços e objetos que passam a ser reunidos com o objetivo da construção de identidades. Ainda segundo Le Goff (1990), estes materiais de memória operam com uma dupla e complementar funcionalidade: enquanto monumento – heranças do passado – e documento – escolhas do historiador. A tarefa necessária no presente é, com auxílio da crítica histórica, “transferir este documento/monumento do campo da memória para o da ciência histórica” (LE GOFF, 1990, p. 549). As contribuições de Nora (1993) para a compreensão das dinâmicas entre memória e história também devem ser levadas em consideração. Mais especificamente, vale destacar suas reflexões sobre os lugares da memória, criações humanas constituídas no “jogo da memória e da história, [na] interação dos dois fatores que leva a sua sobredeterminação recíproca” (NORA, 1993, p. 22). A inseparabilidade entre memória e história, proposta de tal maneira, parece flexibilizar a pretensão explicitamente científica proposta por Le Goff (1990) para o conhecimento histórico: ou melhor, nem mesmo a busca pela objetividade estaria livre do constante jogo entre memória e história. Também não se pode deixar de lado a dinâmica entre memória individual e memória coletiva. Para Ricoeur (2007, p. 142), “não é apenas com a hipótese da polaridade entre memória individual e memória coletiva que se deve entrar no campo da história, mas com a de uma tríplice atribuição da memória: a si, aos próximos, aos outros”. Sem pretender ignorar suas nuances e especificidades, as reflexões de Le Goff (1990), Nora (1993) e Ricoeur (2007) abrem um rico campo para reflexão na historiografia. Assim, ao sair de uma conceituação mais geral, pode-se transpô-la para uma discussão mais pontual sobre memória e história em um contexto específico: no caso, destacar-se-á a transição do Império para a República no Brasil. Neste sentido, o papel da “geração de 1870” 4

na construção do ideário republicano brasileiro merece destaque: ainda no Império, grande número de pessoas engajou-se na defesa do futuro que planejavam, usando para isso recursos retóricos e argumentativos que propugnavam muitas vezes a releitura do passado brasileiro no intuito de transformar o presente. Ao considerar a importância destes defensores da República em tempos imperiais, Ferreira; Gomes destacam que “a República fora, ante de tudo, uma "ideia" no sentido forte do termo. Um projeto de ação abraçado por uma geração de políticos e intelectuais que, como "mosqueteiros", por ele lutaram na virada do século” (1989, pp. 269270). Nesta luta, um dos campos de disputa que assume relevância é o da memória: quem estabelece – e como – a celebração e o esquecimento do passado? Aí, neste campo aberto, a temática da educação merece destaque, pois por meio dela defendem-se projetos civilizacionais, aplicam-se métodos de ensino voltados para fins objetivos, formam-se indivíduos para um tempo proclamado como novo. A educação torna-se um espaço privilegiado dos embates pela história e pela memória nos primeiros anos republicanos do Brasil. No Brasil pós-proclamação da República também se buscou a seleção e celebração de uma memória coletiva específica: nos dizeres de Magaldi; Schueler (2009, p. 37, grifos no original) o novo regime intentava produzir “outros marcos e lugares da memória para a educação republicana”, (re)inventar uma nação selecionando elementos do passado colonial e imperial. Para deixar ainda mais evidente esta relação dinâmica entre memória, passado e intencionalidades no presente – destinadas para a construção de um futuro novo –, citamos novamente Le Goff (1990, p. 426):

Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.

Ora, entende-se que esta busca de gerir a memória e o esquecimento era também preocupação dos republicanos, tanto militares quanto liberais, que assumiram as rédeas do governo brasileiro no ano de 1889. Para deslindar algumas nuances destes usos da memória no alvorecer republicano no Brasil, os esforços centrar-se-ão na análise de questões que envolvem a educação, iniciando com alguns comentários sobre este tema ainda durante o Império, pois, por mais que os republicanos pregassem uma imagem de renovação, na história da educação, como diz Nagle (1977), a República não se implanta em 1889. A dinâmica entre continuidade e ruptura é sutil e por trás da tentativa republicana de afirmar o novo no campo 5

educacional muitas vezes podem ser encontrados resquícios e releituras do passado imperial. Nem sempre a auto-proclamada modernidade republicana conseguiu efetivar-se na prática.

Educação no Brasil entre o Império e a República Um ponto de concordância entre diferentes autores (WEREBE, 1971; NAGLE, 1977; GOMES, 2002; FARIA FILHO 2005; VIDAL, 2005) sobre a educação durante o Império é o caráter descentralizador promovido pelo Ato Adicional de 1834, o qual deixou ao encargo das Assembleias Provinciais a elaboração da legislação escolar referente ao ensino elementar e médio. Isto não significa o mesmo que dizer que nada foi feito. Em seu levantamento sobre novas perspectivas para a história da educação brasileira, Magaldi; Schueler (2009, p. 39) destacam que:

Os pesquisadores da área de história da educação têm demonstrado que, a partir de 1835 e ao longo de todo o Império, as Assembléias Provinciais fizeram publicar um significativo número de leis, que visavam regulamentar a instrução primária e secundária nas diferentes regiões.

Pouco se diz sobre a efetiva aplicação destas leis, mas o fato de ter havido discussões revela alguma preocupação com os rumos educacionais no país recém independente. Além de leis, existiram também outras iniciativas, como os relatórios não muito alentadores de Abílio César Borges, em 1857, e do Conselheiro Paulino de Souza, em 1870, sobre a situação educacional durante o Império, os quais enfatizavam aspectos negativos do ensino no Brasil. Para Werebe (1971, p. 378), “os debates na Assembleia, sobre o ensino geral, bem como os relatórios nela lidos e discutidos limitavam-se, frequentemente, a constatar e lamentar os descalabros da situação vigente”. Outro importante esboço de análise da situação educacional, já no final do Império, foram os pareceres elaborados por Rui Barbosa sobre o ensino secundário e superior, em 1882, e sobre o ensino primário, em 1883. Neles, Rui Barbosa evidenciou as deficiências do ensino brasileiro ao mesmo tempo em que buscou em contribuições teóricas de educadores reconhecidos em outros países – com destaque para Pestalozzi (1746-1827), divulgador do chamado método intuitivo1– possíveis alternativas para

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De acordo com Zanatta, "Pestalozzi elaborou sua proposta pedagógica retomando de Rousseau (1712-1778) a concepção da educação como processo que deve seguir a natureza e os princípios como da liberdade, da bondade inata do ser e da personalidade individual de cada criança. [...] [Pestalozzi] concebia a criança como um organismo que se desenvolve de acordo com leis definidas e ordenadas e contém em si todas as capacidades da natureza humana. [...] A educação intelectual [da criança] resulta [para Pestalozzi] da organização das

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repensar a educação brasileira. Werebe (1971) considera tais pareceres característicos de certo romantismo, desprovidos de consequências práticas, principalmente por não terem conseguido relacionar satisfatoriamente as propostas com a realidade econômica e social do Brasil. Dando sequência ao seu argumento, Werebe (1971, p. 382) elabora da seguinte maneira um apanhado geral da transição do Império para a República no que se refere à educação:

Resumindo, podemos dizer que a República veio encontrar o país, no terreno educacional, com uma rede escolar primária bastante precária, com um corpo docente predominantemente leigo e incapaz; uma escola secundária frequentada exclusivamente pelos filhos das classes economicamente favorecidas, mantida principalmente por particulares, ministrando um ensino literário, completamente desvinculado das necessidades da nação; um ensino superior desvirtuado nos seus objetivos, e ainda – talvez esta seja a pior das heranças recebidas – com o desvirtuamento do espírito da educação, em todos os graus de ensino.

Passa-se a impressão de que, apesar da existência de alguma boa vontade, o período imperial brasileiro, quando se tratava de educação, apenas criou empecilhos para o seu desenvolvimento. A tentativa de Werebe (1971) de sintetizar as iniciativas sobre educação no Império brasileiro é necessária, contudo, o panorama de uma herança essencialmente negativa não é consenso na historiografia posterior. Pode-se observar em Gomes (2002, p. 390-391, grifos no original) uma tentativa distinta em seu balanço geral da educação na transição do Império para a República no Brasil:

Foi na segunda metade do século XIX que nasceu no país a prática do ensino seriado e começou a ser valorizada a profissão docente. [...] A maneira como cada província e estado da federação organizou seu sistema de instrução primária e secundária variou muito em características e ritmo. [...] A descentralização políticoadministrativa (existente até hoje) não impediu o desenvolvimento de nosso processo de escolarização, isto é, a formação de uma rede de instituições responsável pela educação que teve a escola como seu núcleo.

Além disso, também Nagle (1977) destaca que o final do Império no Brasil foi um período de intensas discussões referentes aos rumos da educação – por mais que esse autor defenda que o regime republicano, uma vez estabelecido, tenha diminuído o ímpeto dos impressões sensoriais obtidas pela relação homem-natureza. [...] Com a preocupação de viabilizar de modo articulado o desenvolvimento intelectual e moral do homem, Pestalozzi estabeleceu alguns princípios para o seu método de ensino, como: partir do conhecido ao desconhecido; do concreto ao abstrato, ou do particular ao geral; da visão intuitiva à compreensão geral, por meio da associação natural com outros elementos e, finalmente, reunir no todo orgânico de cada consciência humana os pontos de vista alcançados", ZANATTA, Beatriz Aparecida. “O método intuitivo e a percepção sensorial como legado de Pestalozzi para a geografia escolar”, 2005, p. 168-170. A influência do método intuitivo pode ser constatada diretamente no texto da Reforma Benjamin Constant, no Art. 3º, § 2º: “Em todos os cursos será constantemente empregado o método intuitivo, servindo o livro de simples auxiliar, e de acordo com programas minuciosamente especificados”. Optou-se, neste trabalho, pela atualização da grafia dos documentos citados.

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debates no intuito de harmonizar as diferentes opiniões em jogo. Assim, tem-se a proclamação da República no Brasil inserida em um contexto em que as discussões sobre educação abundam e há a necessidade de projetar alguma imagem de novidade por meio de leis, atos, comemorações. Neste contexto, a “novidade” muitas vezes poderia nada mais ser do que a tentativa de apagar feitos do passado e nomeá-los como inovações: tal é o caso com a afirmação republicana de que a escola primária foi uma invenção por ela realizada (MAGALDI; SCHUELER, 2009, p. 37). Aqui a operação com a memória e com o esquecimento é explícita. Com isso, pode-se colocar em questão a seguinte tentativa de sintetizar as iniciativas educacionais republicanas:

Um apanhado geral da educação na República Velha mostra o seguinte: a inexistência de dispositivos constitucionais configurando um projeto amplo e sistemático para a educação nacional; a ausência de órgãos administrativos superiores – Ministérios e Secretarias – para tratarem exclusivamente dos serviços da educação nas esferas federal e estadual; a falta de um plano nacional de educação; a permanência de um sistema escolar sem disciplinamento interno para integrar graus e ramos (NAGLE, 1977, p. 290).

Também nessa síntese encontra-se uma ênfase nas “ausências”: a política republicana para a educação é considerada por aquilo que ela não foi ou pelo que poderia ter sido. Não se desconsidera a necessidade de apontar desvios, falhas e ausências, contudo, não se pode ofuscar a multiplicidade do pensamento e das propostas educacionais da Primeira República como se pudessem ser resumidas em um grande balaio de erros ou de demagogia. Nesta linha de pensamento, torna-se mais clara a hipótese aventada por Magaldi; Schueler de que:

as disputas referidas a projetos de escolarização e de construção da nação tenham sido [...] desconsideradas pela historiografia, em nome de uma memória que confere centralidade à ‘novidade’ da institucionalidade republicana. [...] Um outro elementochave a ser observado no projeto da escola primária republicana diz respeito ao papel assumido por essa instituição na formação do caráter e no desenvolvimento de virtudes morais, de sentimentos patrióticos e de disciplina na criança (2009, p. 45).

De acordo com essa linha de raciocínio não há uma ruptura inequívoca quanto às políticas educacionais na transição do Império para a República: iniciativas são reaproveitadas, pareceres são levados em consideração, reformulações de ações já em prática são realizadas. O fator de novidade nesse momento de transição envolve diretamente a questões dos objetivos da educação. As “virtudes republicanas” passam a integrar o esforço pedagógico: se o advento da República não foi acompanhado por um movimento de aclamação popular ainda assim é premente realizar por meio da educação a tarefa de valorizar 8

elementos que condigam com o republicanismo, sendo para isso necessário lidar com a memória sobre o passado colonial e imperial. Para isso as comemorações e a celebração de heróis nacionais faziam-se importantes, e a escola era local privilegiado para a criação e desenvolvimento dessa consciência cívica.

A despeito dos obstáculos, as mudanças na concepção do que deveria ser a educação acabaram influenciando as políticas e práticas educacionais do período republicano. A escola começou a ser vista como a instituição mais adequada para o oferecimento da educação, que cada vez mais era associada à ideia de cidadania política (GOMES, 2002, p. 391).

É como forma de implementar essa ideia de cidadania política por meio da educação que as primeiras reformas educacionais podem ser interpretadas. Quando, em 1890, a Reforma Benjamin Constant para o ensino primário e secundário do Distrito Federal é aprovada dá-se o primeiro passo para repensar a educação como campo de ação do novo regime político. Quando iniciativas editorias na área da educação – como a revista do Pedagogium e A Eschola Publica – são realizadas nos primeiros anos republicanos também se coloca a questão de como pensar a prática pedagógica e os conteúdos nesses novos tempos. Convém lembrar que a Constituição de 1891 mantém a descentralização em matéria educativa advinda do Ato Adicional de 1834, mas isso não significou a ausência de propostas educacionais nos mais diversos estados da federação. O estado de São Paulo, após a reforma educacional no Rio de Janeiro, foi um dos primeiros a elaborar propostas de um novo projeto para a educação, preparando também a sua reforma em 1892, a Reforma Caetano de Campos. Com alguma pretensão de generalização, pode-se dizer que:

O discurso educacional que se articulou no início da República, não apenas em São Paulo, procurava assim marcar um corte radical com a experiência imperial, minimizando e obscurecendo o que havia sido realizado antes. Esse tipo de ação é um recurso político comum quando se vive um momento em que é necessário afirmar uma identidade ainda frágil e enfrentar ameaças que vêm do passado (GOMES, 2002, p. 394).

Esse corte radical mencionado por Gomes (2002) não significa apagar da história o passado ou considerá-lo pura e simplesmente inútil. Minimizar e obscurecer são partes de um processo caracterizado por reler, aproveitar o necessário, muitas vezes sem reconhecer publicamente, e construir algo com a presunção de total novidade. Conforme já exposto anteriormente, a dinâmica entre continuidade e ruptura na transição do Império para a República no que concerne à educação possui suas nuances. 9

A Reforma Benjamin Constant e a revista A Eschola Publica na historiografia O advento da República colocou em questão a necessidade de se repensar a noção de cidadania. Com a Constituição de 1891, os direitos de participação política foram ampliados em relação ao Império. Porém, havia interesse em garantir sua efetivação? Caso sim, como isso poderia ser atingido? Na visão de Cartolano (2004), a República inaugurava o princípio de direitos iguais para aqueles que eram considerados cidadãos, só que a realidade do ensino primário não contribuía para a efetiva garantia destes direitos. A Reforma Benjamin Constant, que inclusive precede a aprovação da Constituição de 1891, enfrenta diretamente este dilema, só que de maneira peculiar: A educação entendida como “salvação nacional” por Benjamin Constant não aspirava a “salvar” a todos, mesmo porque nem todos eram cidadãos – como os analfabetos. [...] A Reforma [Benjamin Constant] [...] vinha responder às exigências políticas de recomposição da hegemonia no poder (CARTOLANO, 2004, p. 62)

Nesta perspectiva, a “modernização” republicana aparece como instrumento para a continuidade da separação da sociedade entre aqueles que controlam o poder e aqueles que fazem o que podem para sobreviver. O que não significa classificar a Reforma Benjamin Constant com elitista ou segregacionista: foi uma iniciativa coerente com seu momento histórico, com intenções de colocar em discussão a importante temática da educação em um momento de transição. A Reforma corresponde ao decreto nº 981 de 8 de novembro de 1890, que aprovou o regulamento da instrução primária e secundária para o Distrito Federal, na época, o Rio de Janeiro. Composto por 81 artigos, o referido decreto possuía divisão em 9 títulos que versavam sobre os princípios gerais da instrução primária e secundária, as categorias e os regimes das escolas primárias e secundárias, as atribuições dos docentes, entre outros assuntos. A Reforma Benjamin Constant mantinha relação estreita com a descentralização educacional advinda dos tempos do Império, desde o Ato Adicional de 1834, contudo, tal fato não impediu que servisse como referência e modelo para iniciativas oficiais em outras unidades da federação (CARTOLANO, 2004), como, por exemplo, a já citada Reforma Caetano de Campos, executada no estado de São Paulo no ano de 1892. Este caráter exemplar é enfatizado por Cartolano (2004, p. 59):

Apesar de se restringir à capital da República, é provável que a Reforma, pela sua importância naquele momento histórico e conjuntural, fosse considerada modelo

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para o país e referência constante para as outras reformas que, por força da descentralização administrativa e política do novo regime, viessem a ocorrer nos Estados e Municípios.

Desta forma, como primeiro passo para se repensar a educação em tempos republicanos, a Reforma Benjamin Constant parece ter cumprido papel importante, apesar de sua circunscrição e da curta duração do Ministério sob a competência do qual foi discutida e aprovada2. Neste contexto, a influência da figura de Benjamin Constant torna-se importante: positivista, não necessariamente ortodoxo, republicano, diretamente envolvido com o processo de transição do Império para a República. A influência do positivismo3 sobre Constant – e sobre os republicanos brasileiros da segunda metade do século XIX em geral – não pode ser desconsiderada, contudo, não se pode caracterizar a Reforma educacional de 1890 como expressão pura e simples da mentalidade positivista. Conforme salienta Cartolano (2004, p. 70):

O Regulamento não se submeteu ipsis literis às propostas pedagógicas de Auguste Comte. Inspirou-se nelas, sem dúvida, da mesma forma que em algumas idéias pestalozzianas e o resultado constitui-se numa reforma que, embora vulnerável em alguns aspectos, refletiu as circunstâncias históricas daquele momento e as lutas de forças sociais contrárias.

Assim, o que se tem é uma apropriação seletiva de ideais e preceitos pedagógicos diversos, em um contexto caracterizado pela descentralização das políticas educacionais. A iniciativa da Reforma Benjamin Constant, ainda nos primeiros momentos do Brasil republicano, é, afinal, indicativa de um esforço inicial de pensar a educação em um tempo que queria afirmar-se como novo. Sua circunscrição ao Distrito Federal não impediu que iniciativas similares fossem adotadas em outras unidades da federação. Desta forma, o periódico paulista A Eschola Publica, iniciado em 1893 e que contou com oito números até o ano de 1897, não pode ser visto como uma exceção dentro do contexto das discussões educacionais republicanas. Pode-se caracterizá-lo como uma iniciativa de promover o debate, por meio da imprensa, das recentes discussões pedagógicas e 2

Em 1890, Benjamin Constant ocupava a chefia da pasta ministerial da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, que foi extinta em 1891, sendo a competência sobre educação transferida para o Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Benjamin Constant faleceu em 22 de janeiro de 1891, cf. CARTOLANO, Maria Teresa Penteado. Benjamin Constant e a instrução pública no início da República, 1994. 3 Positivismo foi o termo "adotado por Augusto Comte para a sua filosofia e, graças a ele, passou a designar uma grande corrente filosófica que, na segunda metade do séc. XIX, teve numerosíssimas e variadas manifestações em todos os países do mundo ocidental. A característica do positivismo é a romantização da ciência, sua devoção como único guia da vida individual e social do homem, único conhecimento, única moral, única religião possível", ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, 2007, p. 776.

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algumas de suas possibilidades de aplicação prática. Neste sentido, entende-se que as revistas periódicas educacionais são

(...) instâncias privilegiadas para a apreensão dos modos de funcionamento do campo educacional enquanto fazem circular informações sobre o trabalho pedagógico e o aperfeiçoamento das práticas docentes, o ensino específico de disciplinas, a organização dos sistemas, as reivindicações da categoria do magistério e outros temas que emergem do espaço profissional (CATANI apud PINTO, 2008, p. 114).

A revista Eschola Publica, conforme Pinto (2008), está inserida no contexto de movimentação política, social e cultural da transição do Império para a República e configurase como um instrumento criado por educadores que tem como público-alvo outros educadores, para, em sua continuidade, cumprir a função de instigar a discussão pedagógica no estado de São Paulo, inicialmente, e, se possível, em outras unidades da federação. O ideal progressista relacionado à revista Eschola Publica (PINTO, 2008) vinculava-se com a crença de que a disseminação da instrução pública era um caminho privilegiado para a formação cidadã na incipiente República.

Cabia aos republicanos a criação de um sistema de instrução pública que além de possibilitar os rudimentos básicos de instrução, ler, escrever e contar, desenvolvesse também a função de ‘abrasileirar os brasileiros’. Para suprir esta necessidade foram introduzidos os conteúdos de Educação Moral e Cívica, História do Brasil, cantos nacionais e hinos nas classes infantis, tendo como objetivo introduzir conteúdos morais e patrióticos aos brasileiros e integrar o imigrante estrangeiro (PINTO, 2008, p. 109).

Tais conteúdos recebiam abordagem não exaustiva, mas pontual, por meio de pequenos artigos em que professores e pedagogos defendiam e propunham as abordagens e possibilidades destes conteúdos morais e patrióticos (A ESCHOLA PUBLICA, 1895). Acabase por concordar com a opinião de que “esta iniciativa editorial [A Eschola Publica] está inserida no conjunto de práticas perpetuadas para dar sustentação ao regime republicano de governo” (PINTO, 2008, p. 114). O fato da revista ter sido publicada no estado de São Paulo também é significativo: a proximidade com as discussões educativas no Distrito Federal – com destaque para a Reforma Benjamin Constant – e a aprovação da Reforma estadual Caetano de Campos em 1892 estão no horizonte de referências possíveis e diálogos implícitos desenvolvidos pelos diversos autores que contribuíram com o periódico. Pinto (2008, p. 110) vai além e enfatiza ainda mais a importância do local de publicação da revista:

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São Paulo merece destaque neste contexto não apenas por ser o estado que produz e divulga a revista A Eschola Publica, mas também por ter influência modelar, na concepção e organização de um sistema de ensino voltado para as necessidades do sistema político, fazendo deste modelo uma espécie de manual sobre como se organizar a instrução pública no período, organizando inclusive missões de professores paulistas para divulgar esse conhecimento sistematizado pelo Interior do Estado.

Assim, a revista Eschola Publica apresenta-se como palco onde propostas pedagógicas são apresentadas com objetivos explicitamente práticos, com intenções de servir como modelo para a ação educativa. Todavia, convém frisar novamente que as discussões da imprensa periódica não constituem um mundo separado da legislação sobre instrução pública. Juntas, operam como um laboratório que conecta as propostas legislativas educacionais com uma visão mais próxima da prática cotidiana da sala de aula. Estas ligações, implícitas ou explícitas, entre imprensa periódica e legislação é o que se pretende abordar a seguir. A Reforma Benjamin Constant e a revista A Eschola Publica: convergências e divergências Para a comparação entre a Reforma Benjamin Constant e a revista A Eschola Publica destacar-se-ão somente referências feitas à instrução primária, mesmo porque muitas das indicações feitas ao ensino secundário foram, inclusive logo após a aprovação do decreto, consideradas irreais e inexequíveis frente à realidade do ensino secundário daquele momento histórico (PALMA FILHO, 2005). Além disso, a ênfase é justificada porque no início da República no Brasil, a educação primária assumiu importância tanto pedagógica quando política (CARTOLANO, 1994). O regulamento para a educação primária inscrito na Reforma Benjamin Constant não estava tão distante da possibilidade de aplicação e pode ter servido como inspiração à outras iniciativas. Especificamente, com a Reforma, organizava-se a escola primária em dois ciclos: o primeiro grau, destinado às crianças de 7 a 13 anos, era dividido em três cursos, o elementar, o médio e o superior, sendo cada um destes subdivido em duas classes; o segundo grau, destinado às crianças de 13 a 15 anos, era dividido em três classes. As escolas deveriam ser exclusivas para meninas ou para meninos, com a exceção de que meninos até os 8 anos de idade poderiam frequentar as escolas para o sexo feminino. Como anexos ao texto da lei, constavam também uma tabela com os vencimentos dos funcionários escolares e um programa com descrição rápida das disciplinas e conteúdos que deveriam ser abordados em cada classe de cada curso de cada ciclo de ensino. 13

Por sua vez, a movimentação para criação e aplicação de reformas educacionais no estado de São Paulo, em sintonia com as discussões do Distrito Federal, ganha ímpeto nos primeiros anos da década de 1890 (REIS FILHO apud PINTO, 2000). O papel da imprensa para reforçar as iniciativas legislativas no campo educacional é relevante. No volume selecionado da revista pedagógica A Eschola Publica, publicada em 1895, estão reunidos artigos sobre variados temas relacionados à educação, em que seus editores – Oscar Thompson, Antônio Rodrigues Alves Pereira, Joaquim de Sant’Anna e Benedito Maria Tolosa – procuram deixar explícito o enfoque “prático” da publicação: “por isso daremos publicidade em nossas colunas a pequenos trabalhos práticos de pedagogia que nos enviarem as escolas públicas, tanto da capital como do interior” (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 6). Em outras palavras, procurava-se estabelecer um diálogo ativo com os professores em atuação na educação pública, no intuito de renovar as práticas pedagógicas, em consonância com as reformas educacionais ocorridas na esfera estadual4. A apreciação rápida dos artigos publicados no volume de 1895 da revista A Eschola Publica revela a ênfase na instrução primária, com propostas aplicáveis para graus e séries variáveis nas seguintes temáticas: História, Geografia, Biologia, Matemática, Física, Química, métodos de leitura, educação moral e cívica, higiene, entre outras. Possíveis convergências entre o decreto nº 981 de 1890 e a publicação A Eschola Publica de 1895, além da partilhada preocupação com a instrução básica, podem ser encontradas em referências e assuntos pontuais. No programa escolar disposto como anexo na Reforma Benjamin Constant encontra-se, enquanto recomendação para conteúdo da primeira classe do curso elementar do primeiro grau, o seguinte: História pátria – Pequenas narrativas de história pátria e narrativas de viagens, com auxílio de estampas.Explicação de alguns fatos históricos capitais, por meio de biografias de: Cristovão Colombo, Pedro Álvares Cabral, José de Anchieta, Salvador Correa de Sá, Henrique Dias, Felipe Camarão, Joaquim José da Silva Xavier, José Bonifácio de Andrada e Silva, D. Pedro I, D. Pedro II, Duque de Caxias, generalíssimo Manuel Deodoro da Fonseca (BRASIL, 1890).

A preocupação de ensinar a história a partir da exemplaridade de figuras eleitas como marcantes também é encontrada em dois artigos da revista A Eschola Publica: um deles, 4

Como exemplo desse vínculo da publicação periódica com as iniciativas da administração estadual no campo da educação pode-se mencionar o caso de Oscar Thompson, que, após editar A Eschola Publica, tornou-se diretor da Escola Normal da Praça de 1901 até 1920 e foi, em dois momentos distintos – entre 1909 e 1911 e entre 1917 e 1920 –, diretor geral da Instrução Pública do estado de São Paulo, cf. ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. “Alfabetização, saneamento e regeneração nas iniciativas de difusão da escola primária em São Paulo”, 2011.

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escrito por A. Pereira e intitulado “Uma lição de história pátria”, é uma biografia de Pedro Álvares Cabral; o outro, sem identificação de autoria e intitulado “Ensaios de história pátria”, é uma biografia de Martim Afonso de Souza. Numa primeira vista percebe-se a confluência da proposta presente na Reforma Benjamin Constant com os textos do periódico: no artigo sobre Cabral, antes do pequeno esboço biográfico, há uma orientação geral sobre como o professor deve trabalhar o conteúdo histórico na educação primária:

Este estudo deve ser iniciado por meio de descrições simples dos episódios mais interessantes da vida dos homens notáveis. É conveniente o professor munir-se de retrato do herói cuja vida se vai estudar, e de estampas que representem os acontecimentos que se vão descrever (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 241).

A coincidência entre o texto legislativo e a recomendação prática da revista pedagógica é explícita. Ambos partilham de uma visão específica da história, a Historia Magistra Vitae, forma de se pensar e escrever a história cujas bases foram estabelecidas por Cícero ainda na Antiguidade, mas cujo uso foi profuso nas mais diversas nações em busca de criar um vínculo útil com o passado, conforme bem ressalta Koselleck (2006). Neste sentido, também Catroga (2001, p. 58 apud VIEIRA, 2012, p. 326) destaca que “os ritos de recordação, nos quais se inserem biografias de heróis nacionais, cumprem funções criadoras de sociabilidades. A biografia dos vultos considerados mais importantes insere o exemplo da ação no ato de recordação”. O outro texto mencionado de A Eschola Publica, “Ensaios de história pátria”, apresenta um viés peculiar: ainda apresenta positivamente a influência portuguesa, só que desta vez a partir da articulação dos primeiros momentos do projeto colonial português com a presença e colaboração indígena. Recomenda-se ao professor que escreva alguns tópicos na lousa – “Ararigboia significa cobra feroz”, “Martim Afonso de Souza-selvagem brasileiro, cognominado ‘Ararigboia’”, “Mem de Sá-terceiro governador do Brasil”; “El-rei D. Sebastião-soberano português” – e depois leia o seguinte trecho para os alunos: Ararigboia – Havia um selvagem brasileiro que tinha o nome, que quer dizer cobra feroz. Ele era muito valente e fiel amigo de Mem de Sá, a quem ajudou muito nas guerras contra os franceses e os tamoios. Ajudou muito na fundação da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro. Batizou-se e tomou o nome de Martim Afonso de Souza, pelo qual é conhecido na nossa história pátria. Contam os historiadores que ele morreu afogado (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 313).

A figura de Martim Afonso de Souza não está entre as personalidades escolhidas por Benjamin Constant para figurar como mote para o ensino da história nacional. O caráter 15

descentralizado da legislação educativa abria espaço para escolhas específicas de iniciativas educacionais nas distintas unidades da federação: como exemplo, além das minibiografias presentes nas folhas de A Eschola Publica, foram escritos livros como A história de São Paulo pela biografia de seus nomes mais notáveis, de Tancredo Amaral, publicado no ano de 1895 (VIEIRA, 2012). Ainda assim, os fins exemplares da utilização tanto de Cabral quanto de Martim Afonso convergem para a utilização didática da história como base importante para elaborar uma ideia de nação junto às crianças na educação primária e, complementarmente, vincular o quanto possível esta ideia ao projeto republicano. Outra preocupação recorrente dos republicanos após assumirem o poder refere-se à higiene dos alunos e do ambiente escolar como um todo, que ganha força expressiva a partir de finais da década de 1910 e 1920 (ROCHA, 2011), mas que já aparece esboçada tanto na Reforma Benjamin Constant quanto na revista A Eschola Publica. Na Reforma, encontra-se expressa, logo no Art. 1º – o qual, entre outras coisas, permitia à iniciativa particular prover o ensino primário e secundário –, a advertência de que condições de higiene nos estabelecimentos de ensino deveriam ser observadas e seriam vistoriadas pelo delegado de higiene do distrito. Além disso, no esboço de programa para as escolas primárias do segundo grau contido no Art. 4º, estipulava-se o ensino de “elementos de ciências físicas e história natural aplicáveis às indústrias, à agricultura e à higiene” (BRASIL, 1890). Por fim, os dizeres do Art. 8º completam:

O Governo providenciará para que se construam edifícios apropriados ao ensino, de acordo com os mais severos preceitos de higiene escolar [...]. Nenhuma edificação deste gênero se fará sem que o conselho diretor de instrução primária e secundária formule o projeto ou dê-lhe aprovação (BRASIL, 1890).

Por sua vez, na revista A Eschola Publica de 1895, encontra-se um artigo, com data de 24 de janeiro de 1894, sobre higiene escolar assinado pelo doutor Cesário Motta Junior, figura de destaque no âmbito estadual, com participação na elaboração de reformas educacionais, que na época de edição do periódico fazia parte da Secretaria de Negócios do Interior do Estado de São Paulo, com a responsabilidade de elaborar projetos para as áreas da educação e da saúde (VIEIRA, 2011; A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 334). O artigo, que ocupa quatro páginas no periódico, possui uma breve introdução de um parágrafo e é dividido em três pequenos capítulos. Na referida introdução, Cesário Motta delimita como critérios básicos de boas condições higiênicas nas escolas públicas: “suficiente cubagem do ar, colocação conveniente da mobília em relação à luz, proporção razoável entre o tamanho do aluno e as 16

respectivas carteiras”; a isso deveriam ser somadas as prescrições abordadas nas 23 instruções presentes capítulos apresentados em sequência (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 331). Os três capítulos do artigo de Cesário Motta são intitulados, respectivamente: “medidas tendentes a evitar manifestações de moléstias contagiosas nas escolas”, “medidas gerais quando se tenha manifestado moléstia contagiosa”, “medidas particulares”. Prevenção, tratamento, integração entre educação e saúde: estes podem ser resumidos como os pilares da iniciativa higienista proposta. As preocupações demonstradas no primeiro capítulo tangem os cuidados com o ambiente escolar como um todo – sua limpeza, a proveniência de sua água, a disposição dos dejetos – e algumas recomendações específicas aos alunos – verificação do asseio quando chega ao estabelecimento escolar, o hábito de lavar as mãos, educar sobre o uso de materiais escolares, como, por exemplo, que se evite colocar o lápis na boca (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, pp. 331-332). O segundo capítulo delimita as medidas que devem ser tomadas na escola caso algum aluno apresente moléstia: desde o afastamento temporário do aluno, passando pela desinfecção do ambiente escolar, pela informação à família do aluno sobre medidas necessárias de tratamento e prevenção, até a confirmação, por meio de um atestado médico, de que o aluno está em condições de retornar à escola sem riscos. Especificamente no terceiro capítulo, na última instrução presente no artigo, Cesário Motta afirma que:

As autoridades sanitárias deverão visitar frequentemente as escolas, sendo os professores obrigados a mostrar-lhes os alunos que apresentarem sintomas de moléstia suspeita, bem assim qualquer erupção, manchas e feridas de qualquer espécie, afim de que seja verificada a natureza do incômodo e indicado o procedimento que se deve ter em relação ao aluno (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 334).

Entre as doenças destacadas estavam a varíola, a escarlatina, o sarampo, a catapora, a caxumba, a coqueluche, as sarnas e a difteria, cada qual tendo para si uma breve especificação das medidas que deveriam ser tomadas na escola e com o aluno. Desta maneira, política educacional e política sanitarista aparecem já alinhadas desde os primeiros tempos republicanos, ao menos no estado de São Paulo. Se, de acordo com Rocha (2011), durante os anos 1920 “educação e saúde passaram a ser concebidas como questões indissociáveis” (p. 152), antes disso, na década de 1890, a preocupação com a integração de preceitos de higiene na formação primária já aparecia como preocupação tanto nas reformas educacionais quanto nos debates de profissionais envolvidos com educação e saúde. Para Rocha (2011, p. 152), as reformas dos serviços de saúde promovidas nos anos 1920 em São Paulo “calcaram-se na 17

crença na possibilidade de redenção do homem brasileiro, por meio de intervenções em que a preservação da saúde somente se mostrava possível quando articulada a medidas educativas”. Esta crença na formação do homem brasileiro renovado parece ter acompanhado a Primeira República desde seus primeiros anos, e não somente na junção entre saúde e educação: um elemento central expectativa de novas possibilidades, presente tanto na Reforma Benjamin Constant quanto na revista A Eschola Publica, são as questões do civismo e da moral. No Art. 4º da Reforma Benjamin Constant – o qual especifica os assuntos que deveriam ser ensinados nas escolas primárias do 2º grau –, em parágrafo único, diz-se que “a instrução moral e cívica não terá curso distinto, mas ocupará constantemente e no mais alto grau a atenção dos professores” (BRASIL, 1890). Já em A Eschola Publica editada em 1895 há dois artigos nos quais a temática da educação moral e cívica é abordada: um texto curto, sem autoria; e um texto provocativo elaborado pelos editores no qual se pede para que professores em atuação no estado de São Paulo respondam à indagação “será uma utopia o ensino cívico na escola preliminar?” (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 266). Especificamente no segundo texto apresentado no periódico encontramos a constatação, por parte dos editores, de que “em 1889 entrou [o Brasil] na fase de verdadeira autonomia, em que cada cidadão passou a ser uma fração positiva no exercício da soberania popular” (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 263). Disso se inferem ao menos duas conclusões: que o período imperial não era interpretado como um momento de desenvolvimento autônomo do Brasil na história; que, após a proclamação da República, ainda havia muito o que fazer no sentido de criar a prática da cidadania. Este segundo ponto é reforçado pela seguinte sequência do argumento dos editores:

Muito se tem falado, muito se tem ouvido sobre educação cívica, mas tal matéria tem permanecido sempre vendada por um véu de ignorância. Temos ouvido muitos discursos, temos lido muitos artigos retoricamente bem elaborados, e dessa atenção que temos feito, depois de debastados os cipós retóricos, que embaraçam tão magna questão, apenas temos aprendido que o povo “DEVE RECEBER EDUCAÇÃO CÍVICA”, que “A EDUCAÇÃO CÍVICA É A BASE DOS POVOS DEMOCRÁTICOS” e que por isso “É PRECISO EDUCAR O POVO NA ESCOLA DO CIVISMO E RESPEITO ÀS LEIS, ÀS AUTORIDADES CONSTITUÍDAS, ETC.” (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 263).

Aceita-se a importância do ensino para o civismo, mas critica-se a forma como este ensino costumava aparecer na prática pedagógica, pois, para os editores, “ensinar o mecanismo governamental a crianças não é de boa pedagogia, pois elas jamais compreenderão aquilo que nunca viram” (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 265). Tal 18

posicionamento é que instiga os editores a compartilhar suas dúvidas com seus leitores, professores atuantes no ensino público paulista, e pedir por contribuições que abordem a temática. Inclusive, é reveladora para as intenções deste trabalho a menção direta que os editores fazem às reformas educacionais, como a Reforma Benjamin Constant e a Reforma Caetano de Campos, integrando-as com a necessidade de diálogo com a categoria docente: “qualquer que seja a reforma adotada pelos poderes competentes, ela só será boa quando o professorado se aprestar para secundar os esforços do legislador” (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 267). Por fim, são encerrados os comentários editoriais com a seguinte colocação: Não mais “DEVE-SE ENSINAR”, mas sim o “COMO SE ENSINA”, é o problema que atualmente a Eschola Publica se propõe a resolver, confiando no concurso dos colegas que compreendem a nossa árdua missão, tão cheia de responsabilidades, qual a de educar filhos alheios, para com eles organizarem-se as grandes legiões do futuro (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 267).

Em seguida à interessante reflexão editorial, na compilação de 1895 de A Eschola Publica, encontra-se a resposta dada pelo professor J. A. Lopes Ferreira, atuante na rede pública de ensino na cidade de Taubaté, no interior de São Paulo: para este, o ensino do civismo não é uma utopia e, mesmo sem as crianças terem contato com o “mecanismo governamental”, seria possível educá-las para o civismo. Em suas palavras:

O princípio da liberdade, base necessária da educação moderna, apregoa-se, ensinase em comum com a justiça e o direito, não obstante o vermos violado a todos os momentos. Entretanto ninguém desanima e essas disciplinas fazem parte das instituições de ensino. (A ESCHOLA PUBLICA, p. 268-269).

Dando continuidade ao seu argumento, Lopes Ferreira opera com o conceito de tempo e com a comparação entre processos de desenvolvimento na natureza com processos de desenvolvimento humanos: “a terra está para incubação dos viventes como o cérebro para as inoculações das ideias” (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 269). Os responsáveis pela inoculação das ideias de civismo seriam os professores e estes deveriam ter consciência desse dever, exercendo-o com cuidado e reflexão, pois “não é o poder legislativo que há de vir ensinar a criança e a mocidade; nem o legislador, nem o juiz. Mas sim nós, os professores dos 3 graus, os intermediários do poder, neste ramo de serviço”. Desta forma, encaminha-se para a conclusão do argumento, em que é abordada a questão pertinente ao método que poderia ou deveria ser adotado na educação cívica: Lopes Ferreira aposta mais uma vez na responsabilidade individual de cada docente, e encerra seu artigo ao afirmar que “nós [os 19

professores] devemos ser o método, nós devemos ser o livro” (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 279). Tal demonstração de preocupação com o civismo coaduna com o ponto de vista defendido por Vieira (2012, p. 327) de que “destinado a formar cidadãos, a desenvolver sentimentos patrióticos, transmitir sistemas de valores ou a oferecer conhecimentos necessários para livre prática da liberdade do cidadão na vida pública, o civismo foi sendo escolarizado”. Todavia, há, ao comparar-se a perspectiva da Reforma Benjamin Constant com a revista A Eschola Publica, um ponto de possíveis conflitos no que concerne a esta escolarização do civismo: na § 4º do Art. 1º da Reforma diz-se que “é inteiramente livre e fica isento de qualquer inspeção oficial o ensino que, sob a vigilância dos pais ou dos que fizerem suas vezes, for dado às crianças no seio de suas famílias” (BRASIL, 1890); por sua vez, no outro artigo do periódico educacional cuja temática aborda o civismo, intitulado “Educação cívica e moral das crianças”, sem indicação de autoria, encontra-se uma opinião que diverge da letra da lei. A argumentação central gira em torno da seguinte colocação:

O professor primário pode, sozinho, segundo seus métodos de ensino, produzir verdadeiros prodígios na educação física e na intelectual dos seus alunos; mas na educação cívica e moral nada conseguirá sem os benefícios e eficazes auxílios paternais. O professor preliminar se vê a todos os momentos deveras embaraçado, sempre que trata de vivificar as mais simples máximas de moral, sempre que tenta dar uma noção de respeito mútuo nas relações sociais, porque as crianças ouvem tudo isso como um charlatanismo hipócrita que seu mestre trata de imbuir-lhes no espírito. E isto porque os pais são pouco escrupulosos nas palestras que mantém junto de seus filhos (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, pp. 259-260).

O problema da educação moral e cívica rompe as barreiras do ensino escolar e colocase o problema do civismo em um nível que abranja a totalidade da sociedade: não seria possível educar para a moral e o civismo crianças que vivem em um ambiente em que estes não se encontram afirmados enquanto valores positivos. O exercício retórico do autor vai além, quando completa: “e assim os pais inconscientemente vão arquitetando a infelicidade da família e da pátria, quiçá destruindo o futuro do filho estremecido!” (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 260). E a conclusão caminha em sentido oposto à orientação presente na Reforma Benjamin Constant de que a educação familiar deveria estar livre de inspeção, pois para o autor, caso necessário, deve-se “criticar alguns fatos do lar doméstico, e dar à criança uma orientação tal que seja ela o educador cívico e moral dos pais, onde quer que haja desses maus elementos a combater” (A ESCHOLA PUBLICA, 1895, p. 261).

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Desta forma, por meio da intervenção ativa do educador, é sugerida a inversão da hierarquia familiar, quando necessário, no sentido de que as crianças tornem-se multiplicadoras de comportamentos tidos como adequados para os novos tempos, objetivando a formação do cidadão participativo, consciente de sua posição no exercício da soberania popular. Conclusão Convém agora retomar alguns pontos, relacionando-os na tentativa de sistematizar de forma simples e objetiva os argumentos apresentados. As reflexões iniciais relacionando memória e história serviram como mote para colocar em perspectiva o momento histórico da proclamação da República no Brasil. Nas tentativas republicanas de afirmar a inovação no campo educacional encontram-se releituras do passado imperial e, além disso, nos documentos estudados o a relação entre memória e história aparece, mesmo que não explicitamente, em vários momentos. Em linhas gerais, a proclamação da República aconteceu em um contexto de discussões acaloradas sobre educação, no qual intelectuais, políticos e educadores colocavam para si a necessidade de projetar uma imagem de novidade, a qual poderia ser potencialmente alcançada por meio de leis, atos e comemorações. Apesar das pretensões republicanas, não há uma ruptura inequívoca quando comparamos as políticas educacionais na transição do Império para a República. Se há novidades, estas não estão em completa ruptura ou divergência com o que vinha sendo discutido até então. O estudo da política educacional no princípio da República brasileira não pode prescindir de uma apreciação, mesmo que não aprofundada, do desenvolvimento de políticas e iniciativas educacionais durante o período imperial. Aquilo que realmente aparece como novo, não necessariamente para a população em geral, mas para os republicanos entusiastas, é a expectativa de renovação de alguns valores e práticas. É neste ponto que se encontra o elo essencial que justifica o enfoque na educação: ele permite interpretar o início da República brasileira como uma disputa pela construção da história e pela releitura da memória nacionais. Os republicanos elegem as virtudes do novo tempo e buscam implantá-las por meio de suas propostas educacionais. As primeiras reformas na educação em diversos estados visam a formação de uma cidadania republicana. Especificamente, no texto da Reforma Benjamin Constant observamos a apropriação seletiva de ideais e preceitos pedagógicos diversos, com a indicação de um primeiro esforço de pensar a educação em um momento histórico que se afirmava novo. Por sua vez, a 21

vinculação entre teoria e prática pedagógicas estava no cerne da publicação A Eschola Publica, que propunha modelos para a ação educativa ao mesmo tempo em que estabelecia um diálogo com os docentes em exercício. A comparação destes esforços distintos revelou muitas vezes uma complementaridade de interesses e de propostas. Portanto, pode-se sugerir que por mais descentralizada que estivesse a gestão da política educacional, alguns ideais e projetos perpassavam iniciativas diversas no início da República. Nas relações estabelecidas entre a Reforma Benjamin Constant e a revista A Eschola Publica, alguns elementos merecem destaque: a preocupação com o ensino da história a partir da exemplaridade de “figuras ilustres” selecionadas do passado, o que tinha por objetivo transmitir uma ideia de nação em consonância com os valores republicanos às crianças da educação primária; a integração entre educação e saúde, entre política educacional e política sanitarista desde o início da República; e a preocupação constante e premente na época com a escolarização do civismo. Desta forma, consideramos que o objetivo geral de demonstrar uma relação entre duas iniciativas distintas relativas à educação no início da Primeira República – a Reforma Benjamin Constant e a revista A Eschola Publica – foi atingido. Inclusive, no percurso da análise, constantemente e temática da memória e da história nacionais fez-se presente, como frisado acima. Memória, história e educação apresentaram, no caso estudado, uma relação dinâmica, onde o campo estava aberto para a construção de novos significados e interpretações. Sobre a hipótese inicial – que nas propostas educacionais da Primeira República poderiam ser encontradas releituras do passado e a proposição de novos lugares de memória, numa relação dinâmica entre continuidade e ruptura –, afirmamos que se mostrou válida, pois em diferentes momentos a comparação entre os dois documentos escolhidos mostrou-se rica em paralelos significativos, conforme já comentado. Por fim, este estudo deixa em aberto a necessidade e a possibilidade de abordagens semelhantes. Com articulação construtiva de diversos elementos – estudos sobre memória, historiografia, documentação oficial, imprensa pedagógica e outros possíveis conjuntos de fontes – lacunas do nosso conhecimento sobre a história da educação no Brasil podem ser preenchidas e também generalizações ou interpretações reducionistas podem ser revistas.

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