Nas malhas da memória

July 9, 2017 | Autor: Luciana Silva | Categoria: Literary Theory, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa
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Anais do SILIAFRO. Volume , Número 1. EDUFU,2012

NAS MALHAS DA MEMÓRIA

Luciana Morais da SILVA (UERJ/UFRJ) E-mail: [email protected]

Resumo: O presente trabalho tem por objeto a narrativa A varanda do frangipani (2007), de Mia Couto. Nele, almeja-se, confrontando os diversos traços que compõem a narrativa, discorrer a respeito da constituição da memória, traço que percorre todo o texto. Mergulhando nas origens das personagens, ao travar contato com seus relatos, o narrador-personagem permite-se entretecer diálogos entre o ontem e o hoje, através da capacidade de ouvir, sendo testemunha das testemunhas de um tempo. Assim, ao tomarem-se as reflexões sobre a memória como paradigma, é possível pensar em uma literatura carregada de mistério e vestígios a serem desvendados ou revelados, como ocorre com a investigação na narrativa mencionada. A mistura de elementos, que compõem as narrativas, acaba propondo novos olhares sobre o mundo do entorno, transformando o sólito em insólito, ao formaremse como obras embebidas em um animismo telúrico, próprio à crença, em um plano auxiliar paralelo, descrito pelos asilados. O movimento de idas e vindas, concretizado no interior da narrativa, dificulta a pacífica investigação empreendida pela personagem IzidineNaíta, que não consegue desvendar pacificamente os insólitos mistérios da varanda, por acabar neles imerso. Em uma narrativa marcada por uma constante imersão em fluxos de consciência, tem-se a convivência harmônica entre os realia e os mirabilia. Palavras-chave: Memória; Insólito Ficcional; Personagem; Estudos da Narrativa A própria experiência ensina, não menos claramente que a razão, que os homens se julgam livres apenas porque estão conscientes de suas ações, mas desconhecem as causas pelas quais são determinados. (SPINOZA, 2011, p. 102)

O presente trabalho tem por objeto a narrativaA varanda do frangipani, de Mia Couto, e, por objetivo, observar o modo como o escritor promove um mergulho em memórias de ontem e de hoje. Primeiramente, notaram-se algumas escolhas do escritor ao eleger como narrador-personagem um ente perdido no tempo, existente entre o ontem e o hoje, que devido à sua continuidade, após a morte, é capaz de narrar histórias e a História. ErmelindoMucanga é um fantasma que vive sob o frangipani, portanto, dentro da fortaleza transformada em asilo. Ele viveu na época do colonialismo e morreu durante os conflitos de independência, sendo, nesse sentido, um falecido, um espírito (sobre)vivente na morte, sob o frangipani, reivindicando um novo status, ainda que preso a um espaço deífico, consequentemente, insólito.Ele é uma espécie de entidade pertencente ao campo do metaempírico. A leitura, tratando da constituição mosaica do grupo existente dentro da fortaleza de “São Nicolau”, buscou, na composição memorialística daquele lugar, alguns traços da formação individual das diversas vozes narrativas, às quais o narrador cede espaço no decorrer do texto. A origem das histórias contadas no asilo baseia-se em raízes diversas, debruçando-se sobre os espaços de memórias que misturam tempos passados e presentes. As vozes existentes no interior da fortaleza deixam-se guiar pelo impulso de narrar verdades subjetivas e, assim, terminam reelaborando um mundo de mistério, aparentemente, abafado

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pelos conflitos das guerras (COUTO, 2007, p. 121), traumatismos, que, após o inquérito instaurado pelo inspetor IzidineNaíta, permite aos idosos retornar às suas crenças na/da terra. A memória, como temática central, reproduz um labirinto no qual o inspetor IzidineNaíta, oficial designado para investigar o assassinato de Vasto Excelêncio, é inevitavelmente jogado. Seu percurso até a resolução do crime deve durar aproximadamente sete dias, contudo, é na constituição de idas e vindas que a narrativa consegue trazer a personagem, outrora afastada de seu país devido aos estudos, de volta à sua cultura de formação, permitindo-a lembrar, por exemplo, do ser mítico halakavuma, elemento da crença, aparentemente esquecido pelo retornado. O halakavuma ou pangolim é um “mamífero [que] mora com os falecidos” (COUTO, 2007, p. 13)e vai aomundo dos vivos para levar novidades.Sendo descrito a partir do olhar de um morto, o animal convivente entre dois planos de sentido, o dos vivos e o dos mortos, convence o fantasma a converter-se em xipoco, a “fantasmear-se” (COUTO, 2007, p.14). Logo, ErmelindoMucanga é persuadido a coabitar o corpo de IzidineNaíta, caminhando para uma nova morte pautada nos rituais em que o narrador deixaria seu estado prisioneiro do chão para tornar-se um xicuembo. Desse modo,o pangolim éo ser que “desperta” Mucanga de seu “exílio” no mundo dos mortos, trazendo-o ao mundo dos vivos,“revivido” no corpo de Naíta. A presença do halakavuma, no decorrer da história, representa, além do acesso de ErmelindoMucanga ao mundo dos vivos, um marco no retorno de Izidine à sua cultura.Ao longo da história, suas intervenções são cruciais, também, para a instalação e manutenção do insólito, uma vez que ele participa de outros episódios da ficção, vindo, mesmo, a promover uma tempestade nunca vista. O céu pegou-se em fogo, as nuvens arderam e o mundo se aqueceu como uma fornalha. De repente, o helicóptero se incandesceu. A hélice se desprendeu e o aparelho, desasado, tombou como esses papeizinhos em chamas que não sabem se descem ou se sobem. Assim, envolto em labareda, a máquina se derrocou sobre as telhas da capela. Afundou-se lá onde se guardavam as armas. (COUTO, 2007, p. 141)

O épico episódio da derrota do helicóptero frente à imensidão da tempestadeilustra bem os poderes desse ser mítico/mágico.As falas de Mucanga são conscientes, já que, diferentemente de Naíta, aquele sabe sua condição de hospedeiro, fato desconhecido por este, na condição de hospedador. A narrativa miacoutiana denota, portanto, um mundo de possibilidades inusitadas, principalmente ao dar voz narrativa ao xipoco, que ocupa os interiores do inspetor. Cada personagem relata sua própria verdade, testemunhando suas experiências de vida. Sobreviventes em um espaço onde o sonho e a realidade se confundem, elas vão apresentando seus cruzamentos, suas origens, para demonstrar as mazelas que as guiaram até o asilo, em que só encontram tranquilidade após a morte de VastoExcelêncio, seu diretor, vítima de um assassinato, aquele que Naíta vem para investigar. As memórias recolhidas, durante o inquérito, revelam-se resquícios de um mundo que parece familiar ao inspetor Izidine, passível de reconhecimento, ainda que não aceitável em um primeiro momento, mas admitido no final da história, quando, retornado, em sentido duplo da expressão, reencontra-se com sua cultura de base. O autor moçambicano elabora sua literatura a partir de um instrumental cultural matizado pela pluralidade, em que os elementos narrativos não são apenas parte da ficção, mas, como afirmam alguns críticos de sua obra, compor-se-iam de “várias vozes da cultura que se mestiçam e se cruzam nas múltiplas margens da sua enunciação” (MATA, 2008, p. 9). Mais do que produtor de uma ficção híbrida e multifacetada, o escritor seria “uma ponte ligando as diversas margens” (COUTO, 2005, p. 91), que estariam na própria composição de sua “moçambicanidade”, já que ele une traços de sua cultura e os amalgama para formar constructos ficcionais marcados pela inovação da palavra.

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O autor encontra caminhos para compor sua escrita não a partir do lugar comum, mas perspectivando a composição de uma identidade literária própria, marcada pelo “contar”, uma arte “encantatória”, que conjuga a oralidade e a escrita, pois, em geral, os narradores e, mesmo, algumas personagens, são aqueles que transmitem ensinamentos.Para Maria Fernanda Afonso, “o escritor africano sente-se profundamente ligado a um tipo de discurso proveniente da tradição oral, da sua herança comunitária” (2004, p. 70). Valoriza-se, portanto, uma escrita em que “se misturam as lembranças da casa e da rua” (SECCO, 2000, p. 264). Com as devidas diferenças e heranças culturais, pode-se apropriar da ideia de hibridismo ensaiada por Canclini (2008) para discutir o espaço explorado por Mia Couto em A varanda do frangipani (2007). Afinal, ainda que Canclini tenha um enfoque sobre a literatura latino-americana, ele levanta traços de culturas que buscam seu lugar. A abordagem do teórico argentino a respeito dos processos de hibridação evoca uma série de debates contemporâneos sobre as literaturas “pós-coloniais”, dentre as quais estariam, grosso modo, tanto as latino-americanas quanto as africanas em geral. Com uma diversidade de problemas em sua formação, as nações “pós-coloniais” demonstram sua composição “puramente” multifacetada, devido à sua formação colonial necessariamente conflituosa, que se traduziu, contudo, em uma união de elementos em contínuo crescimento. Nota-se, dessa forma, que há uma concatenação de traços para exprimir “o local da cultura” (PADILHA, 2007, p. 450), em que, “incandescendo-se” no papel, mitos e ritos se projetam imagisticamente.Afinal, “a verdade é que não existe ninguém que seja ‘puro’” (COUTO, 2005, p. 89). O hibridismo “intercultural” é, portanto, um fenômeno de amálgama cultural que promove a “dialogicidade heterogénea” (AFONSO, 2007, p. 549), em que há a dissolução ou permeabilização das fronteiras entre as partes envolvidas nas trocas culturais. Nesse sentido, a partir da formação híbrida dos moradores do asilo, depreende-se que suas histórias se constituem de experiências diversas, forjadas nos limites impostos por momentos conflituosos pelo quais passaram. Seus afetos são derivados de relações nem sempre tão harmônicas. Tendo como fundamento a esperança, que concede aos asilados a capacidade do sonho.Mesmo diante do esquecimento e das privações a que estão impostos, os idosos conseguem ensinar a Izidine, apesar da desconfiança entorno de sua presença.Depositários de uma nação em esfacelamento, eles ganham voz em uma narrativa que restitui o valor ao mais velho, permitindo-lhes trazer à cena memórias diversas, de ontem e de hoje, ainda que a contragosto do inspetor.Este, todavia, não almeja conhecer histórias, mas apenas desvendar um crime permeado por mistérios, a começar pela não existência de um corpo que corrobore o desaparecimento de Vasto, diretor do asilo, ex-fortaleza colonial. A continuidade da investigação interfere diretamente na vida das personagens, tornando-as presas a suas escolhas. Sem esquecerem o mal que Vasto Excelêncio promovia no asilo, as personagens narram sua morte como culpa individual, porém, na tentativa de garantir culpados a Izidine, mentem. A história de cada personagem busca, no passado, perambulando entre ruínas, sentidos para o estado das coisas. A experiência acaba colocada em primeiro plano, com homens e mulheres que trocam sua apatia característica, já que se aguentam aprisionados por uma força de combate, que extrapola muros ou bombas, ao tecerem em palavras discursos carregados de uma consciência de vida. O foco do inspetor não estaria nas diversas personagens, caso elas não fossem às únicas testemunhas do crime. Fato é que Izidine, em geral, não está atento às histórias, reiterando insistentemente seu objetivo, até opondo-se à personagem Marta, que repudia sua atitude impositiva em relação à investigação. Para ela, o grande assassinato não era o acontecido no asilo, a morte de Vasto Excelêncio, e sim outro, mais sorrateiro e perigoso, o apagamento de uma cultura que pouco a pouco se perdia diante das mazelas citadinas. De acordo com Marta:“o culpado que você procura, caro Izidine, não é uma pessoa. É a guerra.

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[...] Estes velhos que aqui apodrecem, antes do conflito eram amados” (COUTO, 2007, p. 121). O “ciclo dos sonhos”,permitindo a Marta Gimo sonhar com um mundo e um tempo em que a violência não estivesse tão presente, seria a possibilidade de obter uma nova vivência, existente, em aparência, apenas no interior do asilo.A dificuldade para entrar em contato com o mundo externo não se configura apenas pelas barreiras físicas, maspela convivência com ele, que, conforme Marta Gimo, “é um corpo que está vivo graças à sua própria doença” (COUTO, 2007, p. 122).As personagens miacoutianas não têm mais lugar no Moçambique do pós-guerra. Configura-se, assim, a constituição de uma narrativa marcada por estilhaços de imagens derivadas do contar, com personagens habilitadas a recuperar, por meio do inquérito, sua percepção de mundo. Nota-se, com base na perspectiva da personagem Marta, a origem híbrida que fundamenta a história e é explorada na construção de cada personagem. A narrativa guia, pelas margens de uma varanda nutrida de memórias de ontem e de hoje, que permitem aos seus moradores serem reconduzidos a outros tempos e novas experiências, reencantando e sendo reencantados por uma natureza multifacetada, capaz de promover a transição entre os planos dos vivos e dos mortos, o sólito e o insólito. O discurso do insólito ficcional não promove, conforme pretende o discurso realnaturalista, o emergir de “verdades”, mas, ao contrário disso, hesitação (TODOROV, 1992), ambiguidade (FURTADO, 1980), incerteza (BESSIÈRE, 2001), inquietação (ROAS, 2001).Logo, há, em A varanda do frangipani, harmonia ao se conjugarem o empírico e o metaempírico, contribuindo, assim, para a formação de um discurso por si só insólito, tanto em sua estruturação quanto em viéses de sua temática. O escritor Mia Couto, como crítico de sua sociedade,expõe, em diversas passagens eu tematizam a constituição mosaica de sua nação, sua própria condição múltipla. Sendo assim, há o convite a que se perceba, na elaboração da narrativa, a configuração de um espaço de profundas trocas culturais, uma varanda onde cessam as diferenças, tendo, como ponto máximo, a reconstituição do homem, que pretende manter-se fixo àquela terra e, principalmente, ao frangipani. As memórias colhidas em meio ao conflito, entre verdades e/ou invenções,dão relevo à dúvida entre a verdade e a mentira, como uma constante.Porém, é essa mesma continuidade da possível mentira que garante à narrativa a consolidação de uma verdade.A narrativa não promove inverdades, relatos completamente alucinados.Ao contrário, o questionamento sobre as memórias colocam-nas em maior evidencia, permitindo que ganhem relevo ainda maior. Os idosos e suas memórias deixam o espaço do anonimato para se tornarem testemunhas de um tempo,e, por conseguinte, guardadores de conhecimentos adquiridos na experiência do tempo, ou, como diria Benjamin (1987), na narração de uma geração à outra, trazendo em si margens de um mundo novo cunhado pelo respeito e pela possibilidade do sonho. O contexto pelo qual a narrativa se faz é o do pós-guerra, mas, como já comentado antes por diversos críticos da narrativa miacoutiana, a temática da guerra está sempre presente, conduzindo os homens a olharem o passado, temendo o retorno do mal. Em diversos momentos, o olhar sobre o contexto histórico e a percepção da dúvida no narrar põem em xeque, exatamente, a veracidade dos fatos. Isso ocorre porque as personagens estariam naquele espaço sujeitas a lembranças desagradáveis, com um passado de conflitos, querem pessoais, querem derivados das guerras, que as conduziriam a invenção. A narrativa remeteria, desse modo, a uma discussão que a ultrapassa, tecendo na origem daquela pequena pátria, percebida assim pela personagem Domingos Mourão, o questionamento sobre o Moçambique que luta para se forjar diante das agruras de tempos, em que a esperança não está em primeiro plano.

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Notou-se, em meio às diversas leituras realizadas para a concretização das aqui feitas, a reiteração da esperança, conclamada em suas ficções e em suas opiniões proferidas em textos ou palestras, como necessária à formação de um novo olhar para a nação, percebendo-a como dever de todos. É observável, por exemplo, na postura da personagem Xidimingo uma contínua valorização da cultura, com a qual decidira hibridizar-se, porém, traço ausente em Izidine, personagem assimilado, que não entende aquilo que o cerca. A manifestação dos elementos culturais e próprios a cada personagem é gradativo e com uma variada significação, mas foi possível notar com o percurso realizado, a combinação de elementos como essenciais para se pensar no mosaico existente em Moçambique, naturalmente maior e mais complexo que a referência do asilo. O que possibilitou a noção do asilo como uma referência menor do país foi a condição conflituosa presente na ex-fortaleza colonial, a qual discute uma gama de elementos já apontados pelo escritor Mia Couto. O trabalho debruçou-se sobre uma narrativa onde há a constituição, inegavelmente, híbrida das personagens, que almejam tocar as diversas margens do conhecimento. A exposição das memórias fragmentadas, como ponto chave para as reflexões, deveu-se à forma como a narrativa é conduzida, levando a perceber a memória em seu ápice, mesmo que inventada. Na verdade, partindo-se das concepções bergsonianas (2010; 2010a) as memórias são histórias, pois, ainda que surjam na mente, inesperadamente, e com riqueza de detalhes, estão facultadas ao desejo de cada ser humano em relatá-las ou não, conforme a lembrança. Dessa maneira, discorreu-se a respeito da constituição das memórias, observando a forma como irrompem. As lembranças são evocadas pelo inquérito, mas quebram barreiras ao trazerem experiências não esperadas.Izidine, como comentado, não esperava conhecer a vida das personagens, no entanto, toma contato com uma diversidade de saberes provenientes da memória. O mundo elaborado por Couto oferece um conhecimento sobre a experiência, presente no surgimento da memória, e, ainda, uma experiência sensorial, oriunda dos afetos que cercam cada personagem em seu quotidiano, tanto diante da percepção do mundo quanto da rememoração de algo. Nota-se que a concepção da lembrança, no sentido bergsoniano (2010; 2010a), possibilita olhar a experiência do contato com o mundo como essencial, pois o homem é resultado de suas percepções. O contato com algo remete a alguma lembrança, facilitando, portanto, o reconhecimento e a reação mental diante do mundo. É evidente que, no decorrer daleitura, percebe-se a natureza da lembrança como presente no aflorar das emoções e, assim, surgiram as noções sobre o desejo de liberdade alcançado pela esperança e pelo sonho.A esperança presente na narrativa pode ser observada em diversos momentos, mas revela, também, a experiência afetiva derivada da memória, pois cada vez que uma personagem tem suas lembranças questionadas, acaba reavivando uma tristeza ou alegria. A pesquisa possibilitou adentrar, de certo modo, a cultura de um Moçambique multifacetado, conhecendo seus universos simbólicos, e, principalmente, vozes a quem é permitido trazer à cena elementos vários e discursos silenciados. A memória, que, por vezes, promove um retorno aos/dos afetos, demonstra singularidades oriundas da experiência individual, além da derivada do narrar. Tais experiências ocorrem na varanda, nesse espaço multifacetado, território de guerra e de paz, onde os idosos lutam por meio da palavra pela liberdade, que é incentivada pelo sonho. Além de possibilitar, aos idosos,serem tomados pela esperança, a varanda também permite uma relação sensorial com aquele espaço, deixando-os viver pelos cheiros das flores da frangipaneira, pelos olhares para o mar e, ainda, pelo contato com a terra, simbolicamente com suas raízes. As memórias, que se vão gradativamente irrompendo, trazem em si afetos de tristeza e de alegria, ao tornarem as experiências parte de um novo plano de ações.Afinal, os relatos promovem uma relação entre imagem e conhecimento, com personagens que buscam, em

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suas memórias, fatos passados. Os idosos, ao trazerem suas lembranças até o presente, possibilitam um retorno dos afetos, que, devido às imagens reconstituídas pelas lembranças, reavivam tanto a experiência quanto o afeto outrora despertado. O mundo existente dentro do asilo nutre-se, de certo modo, de uma experiência de vida, formulada por um testemunho dos “aleijões” de uma paz sofrida e não vivida em sua plenitude. O testemunho de um tempo conflituoso, onde as memórias cultivaram raízes de uma guerra, demonstra a perspectiva de pessoas expropriadas da liberdade. Todavia, é combatendo o afeto do medo e da angústia derivada dele, que as personagens alçam os sonhos, tomando a esperança como força de combate, sem deixá-la extinguir-se. Nem sempre o retorno a algo pode ser frutífero, devendo-se, apenas, apropriar-se do melhor dos aprendizados e dos sonhos para aplicá-los a vida. A retomada de lembranças aponta esse caminho, tendendo para uma escolha diante da experiência despertada a partir do contato com o mundo.O homem que pode, através da lembrança, realizar-se por um cheiro, como o das flores da frangipaneira, pode vivenciar um afeto de grande tristeza ao sentir o mar, mas também pode rejubilar-se ao “embriaguar-se” nele. As personagens são afetadas pelas lembranças de ontem e, ainda, de hoje; atormentadas pelo crime que não cometeram, o sentindo como sua responsabilidade, pois todos naquele espaço desejavam livrar-se de seu malfeitor, o diretor do asilo, Vasto. A obra de Mia Couto manifesta uma consciência do mundo presente nas vozes das personagens, as quais relacionam as mazelas atuais, descritas por SalufoTuco e também por Marta Gimo, a perda do chão, do esteio que seguraria a sociedade, que seriam os mais velhos, ou os idosos ali esquecidos. O autor coloca-se no papel de desvendador de caminhos, ao narrar margens ou fronteiras de espaços de ontem e de hoje, que se unem. Dando voz aos esquecidos, ele permite aos alienados a consciência da força presente na esperança que cada um traz em si, capacidade individual de mudar qualquer sistema. A jornada de escritor promove uma reinvenção da linguagem, confeccionando uma escrita mais moçambicana, marcada, principalmente, pela mistura de valores e de culturas. Consciente de sua descendência portuguesa e criação ao lado de gerações de moçambicanos, o escritor almeja tornar seu mundo “prenhe de ideias”, evocando um olhar para seu Moçambique como uma nação em infância, mas consciente de sua grandeza cultural e, prioritariamente, histórica, tal qual qualquer outra nação. Assim, em A varanda do frangipani, há a constante reiteração do respeito, que deveria ser destinado aos velhos do asilo, que são singulares, exatamente, pelas diferenças que os constituem. Na fortaleza de “São Nicolau”, por exemplo, é-se apresentado a um português, chamado em Moçambique de Xidimingo, que se “desaportuguesa” a cada novo dia, tornando sua formação identitária diferente até mesmo para seus companheiros de moradia. Contudo, pode-se perceber que não há estranhamento ou medo por parte dessa personagem, que opta por ser afetado por uma esperança de inventar memórias e experiências mais plenas, sentindose não intruso ou preso aos muros da fortaleza, e sim, tomado por uma emoção inovadora, sendo afetado pela alegria de criar memórias de apenas um lugar, do Moçambique que o enche de alma. Xidimingo, o Domingos Mourão, poetiza a experiência presente em seus desejos, ao solicitar lembranças mais afeitas ao seu quotidiano, redescobrindo um novo mundo de sentidos, pois, segundo ele, chamar lembranças nem sempre acarreta uma experiência positiva, principalmente pelas memórias dos que já não convivem com o velho português. O idoso pretende chamar lembranças, mesmo que as tenha encontrado por invenção, demonstrando um receio diante do reencontro com sua experiência no/do ontem. Afinal, o velho nada sabia daqueles que deixara em Portugal ou dos que partiram para lá após a independência. Sua vida fundou-se na sombra da frangipaneira, perfumada pelas flores, ali

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mesmo naquela varanda, onde não há saída, apenas a possibilidade de ver e talvez até mesmo sentir o horizonte. A experiência sinestésica, que preenche a vida desta personagem, encontra suas bases ao redor de uma árvore plantada na varanda da fortaleza. Assim, as memórias são evocadas para o centro da narrativa e, a todo o momento, a varanda encontra-se em evidência, como participante do plano das ações, ainda que estática, sendo vítima, apenas, do fogo ao final, mas, porém, ressurgindo em seguida. O conhecimento derivado do percurso pela memória está exposto a cada novo relato, dividindo com o retornado uma sabedoria que não é sua, que passa a pertencer-lhe pelo contato com os idosos e, poder-se-ia dizer, também pela relação do inspetor com o narrador, que o habita. A memória, que, por vezes, promove um retorno aos/dos afetos, demonstra singularidades oriundas da experiência individual, além da derivada do narrar. Tais experiências ocorrem na varanda, nesse espaço multifacetado, território de guerra e de paz, onde os idosos lutam por meio da palavra pela liberdade, que é incentivada pelo sonho. Além de possibilitar aos idosos serem afetados pela esperança, a varanda também permite uma relação sensorial com aquele espaço, deixando-os viver pelos cheiros das flores da frangipaneira, pelos olhares para o mar e, ainda, pelo contato com a terra, simbolicamente com suas raízes. O metaempírico, o incomum, portanto, o insólito, surge na composição textual de Mia Couto como elemento auxiliar para que o autor aborde as mazelas da guerra, “temática onipresente em todos os [seus] romances” (FONSECA e CURY, 2008, p. 37). O fantasma transfigura a realidade tanto a partir do olhar estrangeiro, que pode, inclusive, ser representado pelos primeiros momentos do olhar de IzidineNaíta, quanto do olhar telúrico, próprio das demais personagens e recuperado por Izidine no final da narrativa.Não se trata de um narrador comum, que não faz parte do mundo dos viventes, nem é, de fato, o herói desejado pelos vivos, que o vão buscar. Morreu em sua terra, habita um entrelugar no plano dos mortos, mas, sem o lamento de seus parentes, que ele não tem, não consegue, sequer, encontrar-se em sossego. Como se pode observar, o insólito tende a aparecer na narrativa como um recurso para abafar os discursos do poder, que teimam em confrontar a experiência dos mais velhos, narradores da sua própria trama e testemunhas da narrativa principal, qual seja, desvendar o assassinato de Vasto Excelêncio.As personagens, por sua vez, extrapolam os limites da varanda, buscando reanimar seus mitos e ritos. “Em Mia Couto, o presente retoma a consciência mítica, buscando recuperar certos valores autóctones de raízes específicas, capazes de clarificar a consciência ou identidade nacional” (TUTIKIAN, 2006, p. 59). Assim, o encontro com as raízes garante um percurso renovador, em que a personagem se reconhece como parte de um mundo no qual “mito e realidade formam um todo coerente e denunciador, opondo-se ao discurso do poder” (TUTIKIAN, 2006, p. 59). O insólito tende a aparecer na narrativa como um recurso para abafar os discursos do poder, que teimam em confrontar a experiência dos mais velhos. Pode-se depreender, então, que Mia Coutoé capaz de formular uma narrativa que guarda em si elementos do ontem e do hoje, reestruturados, adaptados, enfim, constituídos para estruturar uma literatura que apreenda a múltipla realidade moçambicana, discutindo o universal e o local sob a égide do insólito, que é/está na realidade.Observam-se, assim, memórias insólitas estilhaçadas, que aos poucos surgem na narrativa, formando, por sua fluidez, uma história de idas e vindas, em que os espaços do ontem e do hoje se misturam. O narrador permite que diversas vozes sejam ouvidas, trazendo à cena identidades várias, amalgamadas por um encontro de almas, de histórias, enfim, de experiências, pois, como afirma Xidimingo, “África rouba-nos o ser. E nos vaza de maneira inversa: enchendo-nos de alma” (COUTO, 2007, p. 47).

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Desse modo, percebe-se que é na constituição afetiva individual que o homem miacoutiano forma sua história, cunhando na oralidade uma “ilha simbólica pessoal”. Ao buscar na varanda de encontros híbridos traços de afetos fragmentados, quer pelo esquecimento, quer pela ausência, na contemporaneidade, os homens e mulheres deparam-se com uma espécie de esquecimento que os quer abafar, silenciando-os, porém a necessidade destina-os a voltar a falar, narrando o ciclo dos sonhos, que os guia a novos horizontes, onde em “pequenas canoas (...) [capacitam-se a vencer] as águas lamacentas do esquecimento” (COUTO, 2005, p. 149). Referências: AFONSO, Maria Fernanda. O conto moçambicano: escritas pós-coloniais. Lisboa: Caminho, 2004. ______. “A problemática pós-colonial em Mia Couto: mestiçagem, sicretismo, hibridez, ou a reinvenção das formas narrativas”. In: NÓBREGA, José Manuel da; MOTA, Nano Pádua de (Ed.). Estudos de Literaturas Africanas - Cinco povos, cinco nações. Atas do Congresso Internacional de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Coimbra: Novo Imbondeiro, 2007. p.546-553. BERGSON, Henri. Matéria e Memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. ______. A evolução criadora (1859-1941). São Paulo: Ed.UNESP, 2010a. BENJAMIN. W. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. 1.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. BESSIÈRE, Irène. “El relato fantástico: forma mixta de caso y adivinanza”. In: ROAS, David (intr., comp.y bibl.). Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco/Libros, 2001. p.83-104. CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. 4.ed. São Paulo: EdUSP, 2008. COUTO, Mia. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. ______. Pensatempos – Textos de opinião. 2.ed. Lisboa: Caminho, 2005. FONSECA, Maria Nazareth Soares e CURY, Maria Zilda Ferreira. Mia Couto: espaços ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte, 1980. ______.“Os discursos do Metaempírico”. In: SEIXO, Maria Alzira (Coord.).O fantástico na arte contemporânea. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1992. Compilação das comunicações apresentadas durante o colóquio sobre O Fantástico na Arte Contemporânea. MATA, Inocência. Prefácio. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares ; CURY, Maria Zilda Ferreira. Mia Couto: espaços ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.7-10. PADILHA, Laura Cavalcante. “Um trânsito por fronteiras”. In: NÓBREGA, José Manuel da; MOTA, Nano Pádua de (Ed.). Estudos de Literaturas Africanas – Cinco povos, cinco nações. CONGRESSO INTERNACIONAL DE LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA.Atas... Coimbra: Novo Imbondeiro, 2007. p.447-454. ROAS, David.“La amenaza de lo fantástico”. In: ______ (intr., comp.y bibl.). Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco:Libros, 2001. p.7-44. SECCO, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro. “Mia Couto: e a ‘Incurável Doença de Sonhar”. In: SEPÚLVEDA, Maria do Carmo e SALGADO, Maria Teresa. (Org.). África & Brasil: letras em laços. Rio de Janeiro: Atlântica, 2000. p.261-286. SPINOZA, Benedictus de. Ética. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.

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