NAS MARGENS TERRITORIAIS: A CIDADE COMO REFÚGIO PARA OS DESVALIDOS

Share Embed


Descrição do Produto

NAS MARGENS TERRITORIAIS: A CIDADE COMO REFÚGIO PARA OS DESVALIDOS1

Urda Alice Kluger Doutora em Geografia – PPGEO-UFPR [email protected] Nilson Cesar Fraga Professor Doutor DGEO-UEL/PPGEO-UFPR Produtividade em Pesquisa CNPq [email protected]

RESUMO: O presente trabalho analisa o papel dos andarilhos urbanos, considerando que os mesmos se encontram nas margens territoriais das cidades formais e que ao mesmo tempo, as mesmas cidades, são o refugio destes cidadãos. Avalia o processo histórico da relação dos andarilhos e dos viajantes “livres” passando pelo processo de perseguição destes pelas sociedades ao logo da história da humanidade, chegando aos grupos de extermínio e “limpeza” das cidades modernas.

PALAVRAS CHAVE: Cidade, Território, Andarilhos, Perseguição.

INTRODUÇÃO

Não é neste momento do começo do século XXI que o mundo urbano passa a ser o refúgio dos que já não tem refúgio: inúmeras são denúncias feitas através da Literatura e da História desde tempos antigos: citamos o exemplo do romancista Victor Hugo (Os Miseráveis, escrito no século XIX); os pesquisadores Anne e Serge Golon, com a série Angélica (escrito no século XX, mas trazendo à luz pesquisas sobre o século XVII) e tantos dados que se têm sobre tempos como os do Império Romano2, dentre outros tempos.

1

Este artigo originou-se no Programa de Pós-graduação em Geografia (Doutorado), da Universidade Federal do Paraná – PPGEO-UFPR. Trabalho vinculado ao Grupo de Pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito, tendo como Orientador/Lider o Prof. Dr. Nilson Cesar Fraga. 2 HTTP://marfaber.vilabol.uol.com.br/antiga/roma/imperio/htm , consultada em 24.07.2010

1

Raras são as obras de Literatura que nos trazem heróis que se refugiam na mata e/ou no rural como garantia de sobrevivência, como o caso de Robin Hood, herói mítico inglês. Na grande maioria das vezes, as denúncias literárias ou referências históricas sobre o abrigo dos deserdados da sorte nos conduzem ao refúgio das cidades. Neste começo de novo milênio a situação da população mais desvalida se alterou em muito pouco, e é sobre tal situação que pretendemos discutir neste artigo: a(s) relação(s) das gentes mais pobres da nossa sociedade com o mundo urbano que lhe serve de refúgio.

1. OS CAMINHANTES

Logo no começo do milênio fazíamos o trajeto Blumenau/Florianópolis todas as semanas, além de percorrermos outras estradas em diversas direções, principalmente no Estado de Santa Catarina, e se tornava impossível não se prestar atenção a determinado tipo de viajante que sempre estava em tais trajetos, viajantes que não houvera em passado próximo: os caminhantes, quase sempre homens, solitários, em dupla ou pequeníssimos grupos, sujos, barbados, com nada ou pouquíssima coisa de bagagem. Via de regra, tais caminhantes eram homens – muito raramente uma mulher os acompanhava. Passamos a prestar sempre mais atenção a eles, curiosa com o fato de nunca pedirem carona, enquanto inúmeros veículos trafegavam ao seu lado3. Sempre que possível, passamos a falar com tais homens, tentando saber mais do seu universo e da sua realidade, e em setembro de 2003 escrevemos a crônica intitulada Também temos as vinhas da ira4, publicada inicialmente no Jornal Diário Catarinense5, a qual provocou diversas manifestações de leitores. Nestes tempos de comunicação rápida, não nos surpreendeu muito recebermos uma manifestação da cidade de Joanesburgo/África do Sul, mas sim o teor da mensagem recebida: Ulemo Mtekateka, de lá, nos dizia que: 3

Provínhamos de uma juventude acontecida nos anos de 1970, pleno período hippie, onde pedir e dar carona era algo natural, muito comum. 4 Referência feita ao romance-histórico “As vinhas da ira”, do autor estadunidense John Steinbeck, que retrata o período pós crise de 1929 nos Estados Unidos. 5 Em 24.07.2010 ainda encontramos tal crônica constante 11 (onze) vezes no WWW.google.com

2

Muito lindo, o seu texto, e só para clarificar, aqui na República da África do Sul também existem esses tipos, também só homens, também sujos, também com fome e sem mulheres. (...) E aqui, também, aliás, principalmente, ninguém pára para fazer as perguntas, porque a maioria é negra. Há alguns brancos, mas esses têm um sistema de apoio, deixado pelo governo anterior.”

Portanto, o fenômeno dos caminhantes era muito mais amplo do que pensáramos anteriormente, e então escrevemos como que uma segunda crônica chamada Ainda as vinhas da ira, publicada uma semana depois no mesmo jornal Diário Catarinense6. Nossa atenção e preocupação em relação ao fato havia aumentado, e passamos cada vez mais a aproveitar as oportunidades que surgiam para tentarmos contato com esses homens que caminhavam entre as cidades, e que depois se internavam nelas, vivendo nos seus esconsos, como em casas abandonadas, sob pontes e marquises, em albergues públicos, etc. Nem sempre tal contato foi fácil: diversos homens contatados estavam sob efeito de álcool ou de alguma droga e pouco conseguiam acrescentar ao nosso interesse, mas diversos deles se encontravam perfeitamente lúcidos e se detiveram a conversar demoradamente, respondendo a tudo o que perguntávamos. Alguém de quem lembramos muito é de um homem que se chamava Antônio. Encontramo-lo como aos demais, sujo, barbado e com os cabelos compridos, pedindo algum dinheiro para poder comer. Almoçamos juntos e conversamos longamente. Sua história não diferia muito da de outros: morador de Criciúma/SC, ouvira falar que no norte do estado havia emprego e, de bicicleta, empreendera a longa viagem de cerca de 350 km até a cidade de Joinville/SC, onde não encontrara emprego algum. Continuara, no entanto, a procurar trabalho nas cidades vizinhas, até que a fome obrigou-o a vender a bicicleta para transformá-la em alimento. É de se imaginar que a essa altura sua imagem já estivesse alterada pela sujeira, má alimentação e falta de cuidados, o que dificultara ainda mais o encontro do emprego sonhado. Houve um momento limite, onde Antônio entendeu que o melhor que faria seria voltar para a sua cidade natal, onde tinha diversos familiares que poderiam ajudá-lo, 6

Essa segunda crônica ainda consta 3 (três) vezes no WWW.google.com em 24.07.2010.

3

e encetou a longa viagem de volta a pé, já agora sem praticamente nenhuma bagagem além de uma garrafa para carregar água e uma pequena sacola de plástico, e foi na metade desta sua volta que o encontramos. Antônio nos contou muitas coisas, mas em nenhum momento falou da possibilidade de ter ido em busca de um emprego na área rural. O que nos falou sobre as regiões rurais por onde passou foram coisas ruins. Muito lhe doía o tratamento dado nas áreas rurais a pessoas como ele. Uma das coisas que mais lhe doía (e que seria confirmada por outros caminhantes, em outras conversas) era a forma como as pessoas do campo reagiam diante de tais seres: a aproximação de residências campestres, mesmo as situadas à beira das principais estradas, causava profundas reações de repúdio nos moradores. - Saíamos para viajar com a nossa garrafa de água e na metade do dia a água acabava, e então havia que se pedir água em alguma casa... As lembranças de Antônio eram cruéis. Longe de alguma cidade, a única fonte de água era a casa de algum agricultor, e ele (e outros, certamente) se aproximavam respeitosamente, e batiam palmas, este nosso antigo costume trazido desde a Ásia pelas navegações portuguesas7. Queriam água, precisavam de água, quiçá conseguissem algum alimento, e o respeito era mais do que necessário, mas não era compreendido. As populações rurais temiam pela própria segurança, e açulavam os cães contra os viajantes, quando não os recebiam a pedradas e impropérios. - Temiam que nós os roubássemos, temiam que roubássemos suas crianças – explicaram-me Antônio, e também outros com quem falamos. Havia que amargar a sede, então, e ir embora, até se deparar com um ribeiro, um posto de gasolina ou algo assim. Havia um outro dado que nos chamava a atenção: - Muitas vezes nos chamavam de ciganos... – o que denota um outro preconceito sobre o qual não ouvíamos falar há décadas, mas que deve estar latente na população, o que poderia dar origem a um estudo específico. Tomamos Antônio como exemplo, mas ele é como que um somatório das muitas conversas que tivemos com caminhantes abandonados pela sorte nas estradas do sul do Brasil. Simplificando as observações dos contatos que

7

Conforme Gilberto Freire, em Casa Grande e Senzala.

4

tivemos, dizemos que praticamente todos tinham como meta a cidade próxima, ou alguma cidade8. Sua segurança era a cidade. Na pior das hipóteses, na cidade haveria lixo onde poderiam procurar alimento e outras coisas, ou mesmo uma festa de Natal organizada por mendigos e catadores de lixo. As cidades produziam água potável para as suas garrafas de plástico, tanto em bares quanto em pontos de táxis, postos de gasolina, chafarizes, etc. As cidades produziam cozinhas comunitárias e albergues organizados pelas prefeituras, por religiosos ou por ONGs, além da alternativa do lixo, que além de conter comida, continha outras coisas que poderiam ser encontradas e vendidas, como papelão ou latinhas de refrigerante. As cidades tinham abrigos para a chuva, como marquises, a parte inferior das pontes, casas abandonadas, conforme já falamos, e outros. As cidades tinham como que “irmandades” de outras pessoas tão desvalidas quanto as que conhecemos – nas cidades podia-se alugar um carrinho coletor de lixo e pagar o aluguel com a própria produção do próprio trabalho, quiçá até comprar o carrinho, se esses homens tivessem sorte e trabalhassem muito. Nas cidades poderia até acontecer o milagre do tão sonhado emprego. Se chegasse o inverno e o frio fosse muito grande, prefeituras e organizações humanitárias distribuíam cobertores para esses homens que vínhamos observando nas estradas sempre a caminhar. Em caso de doença, as cidades tinham hospitais e outros recursos que só nelas existia. Nas cidades sempre se podia pedir alguma coisa, como comida ou dinheiro, que quase sempre havia alguém que dava. - Se bem que é mais fácil nos darem cachaça do que pão... – explicounos um velhinho – e cito tal coisa aqui porque faz-nos descortinar a existência de uma outra camada da população sobre a qual costumamos não lembrar, a dos bebedores de álcool, que, pelo visto, é mais generosa do que o cidadão comum. E nas cidades, também, havia as mulheres e as crianças. Entendemos então porque as mulheres não estavam nas estradas caminhando: a existência das crianças prendiam-nas às cidades, faziam com que lá sobrevivessem,

8

Outro exemplo é uma crônica que escrevemos chamada “Hoje encontrei o Natal”, escrita em dezembro de 2008 e publicada em diversas línguas e continentes. Em 25.07.2010 ainda pode ser encontrada 59 (cinqüenta e nove) vezes no WWW.google.com .

5

mesmo que em empregos menores ou degradantes, pois era mister que as crianças sobrevivessem. Se um homem daqueles que se movimentava entre as cidades tivesse sorte, poderia ser aceito por uma daquelas mulheres e ir morar no seu quartinho ou outro abrigo precário, e então teria como banhar-se, cortar a barba, quem sabe conseguir roupas limpas, tornando-se de novo apto a procurar emprego, e sua sorte poderia mudar a partir de uma mulher. Eram muitas as maravilhas que uma cidade oferecia a quem não tinha nada, a quem era escorraçado por cachorros e pedradas da área rural. Há que se pensar, também, que tais relações e redes de relações que se criam nas cidades são próprias dessa população excluída – que mesmo quando um desvalido dorme sob a mais luxuosa das marquises, em pontos valorizados das cidades, não faz ele parte daquele lugar, mas pertence a um outro extrato social, a uma outra população que se “infiltra” nas diversas áreas das diversas classes, mas que pertence a um mundo periférico e que habita lugares de baixa qualidade e esconsos muitas vezes impensados. De qualquer forma, é a cidade o seu abrigo e o seu destino, é na cidade que ele consegue sobreviver.

2. REFLETINDO

Esta distância existente entre as diversas classes sociais das cidades, no caso, notadamente a dos excluídos, faz-nos pensar no que escreveu Doxiadis (1966, s/p), “Enquanto nossas cidades crescem, a distância entre os homens aumenta”9. Milton Santos vai se manifestar a respeito do funcionamento das nossas cidades de hoje, a cidade que vai como que “engolir”, e ao mesmo tempo servir de abrigo aos desvalidos da sorte que caminham pelas nossas estradas: “A própria cidade converteu-se num meio e num instrumento de trabalho, num utensílio como a enxada na aurora dos tempos sociais. Instrumento de trabalho sui generis, pois sua matéria é 9

DOXIADIS, Constantino. In: SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: EDUSP, 2009.

6

dada pelo próprio trabalhador. Quanto mais o processo produtivo é complexo, mais as forças materiais e intelectuais necessárias ao trabalho são desenvolvidas, e maiores são as cidades. Mas a proximidade física não elimina o distanciamento social, nem tampouco facilita os contatos humanos não funcionais. A proximidade física é indispensável à reprodução da estrutura social. A crescente separação entre as classes agrava a distância social. Os homens vivem cada vez mais amontoados lado a lado em aglomerações monstruosas, mas estão isolados uns dos outros.10

Assim, os homens que caminham em todas as direções por este mundo afora e que têm por abrigo as cidades têm-na, na verdade, em condições precárias. Ao mesmo tempo em que nas cidades encontram a ajuda necessária para a sobrevivência, são também marginalizados provavelmente ainda mais do que um dia já o foram na sua cidade ou local de origem – párias das estradas, escorraçados da área rural, os caminhantes das estradas ocupam nas cidades a maior distância social possível das classes mais altas. Mesmo assim, a cidade continua sendo o seu abrigo, o único abrigo real que conseguem avistar. Segundo Sartre (1960, p. 427-428), “o objeto reúne os esforços dos homens em sua unidade desumana”11, e não se torna muito difícil comprovar tal coisa em se tratando dos mais desvalidos, que vivem precárias vidas em precários lugares dos aglomerados humanos aos quais chamamos de cidades. Relacionado com o processo de desenvolvimento que envolve o modo de produção capitalista e a cidade, o território produzido pelo homem assume características complexas que guardam as evidências do desenvolvimento contraditório, combinado e nos dias atuais, mais complexos. Essas evidências podem ser analisadas a partir das diversas categorias geográfias que procuram compreender a realidade produzida pela relação entre o espaço e a sociedade. A cidade é o locus onde se expressam todas as nossas contradições sociais (MORAGAS, 2006). É a dialética do estar vivo, do querer e do não querer. Parece-nos que na cidade todos os problemas são evidenciados, viram notícias, todas as mazelas sociais são mais profundas, pois no campo elas 10

SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: EDUSP, 2009. SARTE, Jean Paul. In SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: EDUSP, 2009 11

7

também existem, mas na cidade há um caráter próprio dela que é o de aglomeração, enquanto no campo é o da dispersão. De acordo com Santos (1997, p.22) apud Ribas (1998), “os homens vivem cada vez mais amontoados lado a lado em aglomerações monstruosas, mas estão isolados uns dos outros”, gerando com isso uma certa passividade em relação às decisões que atingem diretamente sua vida. Nas grandes metrópoles isso vem ocorrendo com maior ênfase, dando lugar muito mais ao consumidor do que ao cidadão. A monumentalidade, quando pensamos a cidade, atua na dimensão do simbólico, dando visualidade, representando e valorizando as idéias, ações e concepções daqueles que a utilizam. Ela tem sempre uma razão de ser, a qual pode estar bem explicitada ou não. A monumentalidade se difunde e se concentra, como diz Lefebvre, nas mais variadas formas, e aqueles que habitam as cidades, especialmente (mas não unicamente) os grandes centros e capitais, com ela convivem e a admiram ou odeiam, por ela são intimidados, e, às vezes, a ela tentam desafiar (RODRIGUES, 2001). O ser humano se comporta de acordo com suas crenças, valores, significados, modos de pensar e de agir, conforme o seu convívio com a família, com o lugar em que nasce e cresce, com o mundo em que vive e com a aprendizagem durante a formação escolar. Segundo Moreira (2005, p. 157): [...] as crenças cognitivas são construídas a partir da informação que a pessoa possui, e é definida como a convicção de algo que pode ser acompanhado de elementos emotivos e/ou afetivos. As atitudes são formadas a partir das crenças adquiridas e da experiência pessoal que estão acomodadas por elementos emotivos que auxiliam na criação de sentimentos positivos ou negativos, dependendo da situação.

Há vários fatores que podem influenciar uma pessoa no modo de ver as coisas, entre eles a cultura, idade e a diferença de sexos. Homens e mulheres percebem diferentes aspectos do meio ambiente e têm atitudes diferentes em relação a eles (TUAN, 1980). Podemos citar, como exemplo, a diferença de mentalidade do casal na sociedade ocidental. A mente da dona de casa em relação aos cuidados com as crianças pequenas, provavelmente é diferente da mentalidade do seu marido.

8

Em relação às definições de percepção, sobretudo numa perspectiva socioambiental, que amplia o entendimento da visão de mundo dos outros, encontramos interpretações de vários autores, mas para Tuan (1980, p. 4), percepção é: Percepção é tanto a resposta dos sentidos aos estímulos externos, como a atividade proposital, na qual certos fenômenos são claramente registrados, enquanto outros retrocedem para a sombra ou são bloqueados. Muito do que percebemos tem valor para nós, para a sobrevivência biológica, e para propiciar algumas satisfações que estão enraizadas na cultura.

Ferrara (1999, p. 264) faz a seguinte definição sobre percepção, ajudando no entendimento e visão de mundo socioambiental, como no caso dos caminhantes: Portanto, percepção ambiental é a forma de conhecimento, processo ativo de representação que vai muito além do que se vê ou penetra pelos sentidos, mas é uma prática representativa de claras conseqüências sociais e culturais. [...] supõe uma elaboração de informações que ocorrem no interior do indivíduo a partir de pequenas experiências, porém são apenas possíveis e, nesse sentido, não podem ser jamais previstas ou programadas.

Mas devido o curto tempo para incorporações referentes a essas interessantes leituras para a análise proposta por esse artigo, o olhar passa apenas pela possibilidade e por esse breve esboço referencial, pois a mesma exigiria profunda leitura dos autores e posterior incorporação dos discursos dos caminhantes. Dessa forma, brevemente é apresentado o olhar sobre eles e sobre Antônio, deixando para um trabalho futuro, a possibilidade de verificação da teoria com mais informações que podem ser colhidas, pois eles, os caminhantes, continuarão pelas estradas, seja de Santa Catarina, do Paraná ou de qualquer outro lugar do Brasil e do Mundo. Mas sabemos das limitações de tais leituras, as que envolvem a percepção, assim como outras análises possíveis sobre outros autores, pois ampliando um pouco a discussão de percepção, Oliveira (2002, p. 1992), diz que “a percepção é essencialmente egocêntrica e ligada a uma certa posição do sujeito percebedor em relação ao objeto, ao percepto, sendo estritamente individual e incomunicável (senão através da linguagem ou do desenho)”; no caso pretendido, se fez análise por meio dos discursos, ou seja, dos diálogos produzidos a partir do contato com caminhantes e em especial com Antônio. 9

Não podemos deixar de citar algo sobre aquilo que diz respeito às representações sociais, enquanto possibilidade de análise da percepção, Moscovici (2005, p. 9), estabelece que, “em síntese, o conhecimento surge das paixões humanas e, como tal, nunca é desinteressado; ao contrário, ele é sempre produto de um grupo específico de pessoas que se encontram em circunstâncias específicas, nas quais estão engajadas em projetos definidos”. Muitas leituras científicas poderíamos ainda fazer sobre a vida dos caminhantes e até mesmo dos andarilhos nas cidades e no meio rural, inclusive abrir um novo trabalho sobre a violência por eles vivida, mas há que se terminar este trabalho, mostrando apenas um exemplo da violência vivida por estes cidadãos (in)visíveis no cotidiano, que dá uma dimensão maior a esta questão, sobretudo a policial, hoje mais urbana do que rural: “Uma voluntária de um grupo religioso chegou a garantir para a reportagem que integrantes “dessas corporações costumam se dirigir a esses moradores já batendo. E se fazem isso na nossa frente, sem nem respeitar a gente, imagina na nossa ausência”, observou, temendo dar mais informações. “Nós também estamos na madrugada ajudando aqueles que vivem em situação de rua e corremos riscos. A gente prefere não entrar no assunto. Já temos problemas demais”, enfatiza.”12

Arlete Moises Rodrigues (2007, s/p) nos permite concluir e abrir novas questões, em A cidade como direito, onde abre diversas vertentes possíveis para se caminhar analiticamente sobre o que trouxemos neste artigo, ela coloca que: “Para analisar a utopia da “cidade como direito”, apontamos alguns pressupostos sobre utopia, heterotopias, topias, direito à cidade, cidade/urbano, movimentos sociais, desigualdades socioespaciais, cidade-mercadoria, com seus vários significantes, significados, conteúdos, definições, noções, conceitos, desigualdade sociais, econômicas, sócio-espaciais. O conhecimento cientifico é incompleto, inconcluso, o que segundo Morin (1996) é próprio da ciência. Destacamos, com fundamental, a incompletude da importância do espaço.”

12

DENÚNCIAS (8/9/2008), Violência põe em xeque direitos fundamentais dos ´andarilhos´, http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=570329, acessado em 24/07/2010.

10

Mesmo sendo uma utopia, acreditamos que o direito a cidade é algo fundamental e a grande luta deste século, para todos os cidadãos, aqui mais do que incluído o caminhante e o andarilho.

CONCLUSÃO

Apesar dos muitos testemunhos dados pela Literatura e pela História ao longo da vida da Humanidade sobre a existência dos desvalidos deste mundo caminhando em direção às cidades e se internando nelas como a proteção mais eficaz, houve um período recente da nossa História em que eles eram em muito menor quantidade, pelo menos no meio ambiente onde vivíamos. Referimo-nos às décadas de 1970/80. Já tínhamos automóvel, então, e andávamos por muitas estradas, sendo que nosso senso de observação sempre foi bastante aguçado para estar atenta ao nosso entorno. É possível que talvez fosse igual a quantidade dos caminhantes sem bagagem física pelos caminhos deste mundo, e que se tornassem menos visíveis devido ao hábito de se pedir e se dar carona que então vigia, hábito esse que nos traz à presença de um tipo de solidariedade que ora foi olvidada e de um sentimento de segurança que então existia. Parece-nos, no entanto, que a implantação do neoliberalismo foi um marco básico para que a atual realidade se concretizasse: o ser humano, acossado pelo grande Capital, tanto deixou de ter confiança no seu semelhante quanto “esqueceu” a solidariedade que o fazia dividir o seu transporte particular com os que pouco ou nada têm de material. O fato é que hoje a realidade dos caminhantes que sequer perdem tempo pedindo carona e dos motoristas que tem um grande medo de serem assaltados se casou e, acreditamos, tais fatos somados à nefanda implantação do neoliberalismo criou esta nova situação onde seres humanos perpassam pelas estradas quase que com invisibilidade, como um carreiro de formigas ao qual não se presta atenção, seguindo em direção às cidades onde poderão se internar e voltar a compor comunidades de sobrevivência, redes de mútuo apoio, e sobreviverem de novo como indivíduos, deixando de lado o estigma de

11

formigas invisíveis que caminham ao lado dos nossos automóveis como se já não existissem. Trazendo novamente um olhar utópico, acreditamos e reafirmamos que o direito a cidade é algo fundamental e a grande luta deste século, assim como o direito à vida e à diversidade para todos os cidadãos, aqui incluindo outra vez o caminhante e o andarilho. Mas a realidade é um pouco mais dura. No concluir deste trabalho, nos vem a notícia de que em Maceió/AL, vive-se uma onda de assassinatos de moradores de rua, onde há a desconfiança de que por trás dos assassinatos esteja um grupo de extermínio, que estaria realizando uma "limpeza social" nas ruas da cidade.13 Mesmo com essa notícia, mantemos o entendimento de que a utopia é um sonho possível e que em breve tais notícias não sejam mais corriqueiras e que a cidade seja, de fato, de todos.

REFERÊNCIAS FERRARA, L. D. Olhar periférico: informação, linguagem, percepção ambiental. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1999. FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio: Global, 2003 GOLON, Anne e Serge. Angélica, a marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987. http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=570329, acessado em 24/07/2010. HTTP://marfaber.vilabol.uol.com.br/antiga/roma/imperio/htm, consultada em 24.07.2010. http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia/2010/07/26/alagoas-viveonda-de-assassinatos-de-moradores-de-rua.jhtm acessado em 26/07/2010. HUGO, Victor. Os miseráveis. São Paulo: FTD, 2003. LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. MORAGAS, R. A. R. Concepção de cidade/urbano no ensino de Geografia: elementos para análise. Jataí (GO). Revista Eletrônica de Educação do Curso 13

Alagoas vive onda de assassinatos de moradores de rua. http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia/2010/07/26/alagoas-vive-onda-deassassinatos-de-moradores-de-rua.jhtm acessado em 26/07/2010.

12

de Pedagogia do Campus Avançado de Jataí da Universidade Federal de Goiás, vol. I, n. 2, jan./jul., 2006. MOREIRA, A. L. O. A floresta: um referencial para a percepção e educação ambiental. 2005. 218 f. Tese (Doutorado)– Centro de Ciências Biológicas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2005. MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: Investigações em psicologia social. Tradução: Pedrinho A. Guaresche. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. OLIVEIRA, Lívia. Ainda sobre percepção, cognição e representação em Geografia. In. Mendonça, F. A. & Kozel, S (Orgs.). Elementos de Epistemologia da Geografia Contemporânea. Curitiba: Ed. da UFPR, 2002. RIBAS, R. A. Subutilização dos espaços públicos de lazer: o caso do parque das andorinhas - Presidente Prudente-SP. Presidente Prudente,1998. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista. RODRIGUES, A. M. A cidade como direito. Porto Alegre: IX Coloquio Internacional de Geocrítica. Los problemas del mundo actual. soluciones y alternativas desde la geografía y las ciencias sociales. UFRGS, 28 de mayo - 1 de junio de 2007. RODRIGUES, C. M. Cidade, monumentalidade e poder. Uberlândia: GEOgraphia, vol. 3, n. 6, 2001. SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: EDUSP, 2009. STEINBECK, John. As vinhas da ira. Lisboa: Livros do Brasil, 2007. TUAN, Y-F. Topofolia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980. WWW.google.com.br , consultado em 24 e 25.07.10.

13

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.