NATURALISMO E CONTRATUALISMO

August 26, 2017 | Autor: R. Sá Pereira | Categoria: Moral Philosophy
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NATURALISMO E CONTRATUALISMO
I
INTRODUÇÃO

Não me parece exagero se afirmar que principais projetos de naturalização da moral se assentam no que aqui poderíamos chamar de modelo neo-humeano. Esse modelo, por sua vez, se assenta em uma oposição absoluta entre sentimento e razão, como se a primeiro pertencesse ao reino natural enquanto a segunda a um suposto domínio transcendental antinatural. Naturalizar a moral seria assim mostrar que uma determinado número de sentimentos ou emoções inatas constituiria uma condição não apenas necessária mas também suficiente para a moral. Assim, rejeita-se qualquer concepção de racionalidade prática que vá além da adequação dos meios aos fins, o que poderíamos chamar de racionalidade instrumental ou paramétrica.
Nesse breve ensaio, proponho uma visão alternativa do que seria uma moral naturalizada. Proponho uma visão naturalista que enseje um termo de compromisso entre duas tradições rivais: o comunitarismo e o contratualismo. Em consonância com o modelo comunitarista, creio que qualquer projeto de naturalização da moral tem que ter por ponto de partida a espécie humana, considerada na sua condição essencialmente cooperativa. Mas em consonância com o modelo contratualista, sugiro que a mesma cooperação voluntária que é necessária para espécie seja igualmente proveitosa ou "racional" em grande medida para os indivíduos membros da espécie. Nos termos então de um contratualismo naturalista que proponho, normas e valores não possuem origem filogenética, resultando antes de uma negociação permanente, e racionalidade prática possui uma dimensão estratégica, irredutível à dimensão paramétrica ou instrumental.
Defendo aqui duas teses fundamentais. Primeiro, enquanto os arranjos de cooperação voluntária são em maior ou menor grau adaptativos, o reconhecimento por parte do indivíduo da validade de um determinado conjunto normas de cooperação e a sua subordinação voluntária às mesmas é em maior ou menor grau racional ou proveitoso para o indivíduo. Segundo, em razão da plasticidade da nossa condição natural, somos naturalmente fadados à negociação permanente acerca do conteúdo das normas a que devemos nos submeter.


II
Meu ponto de partida consiste em uma definição sociológica da moral que seja filosoficamente e historicamente neutra. Em termos puramente sociológicos, podemos entender por moral com um conjunto de normas de cooperação, que exprimem exigências e interdições a todos aqueles concernidos por tais normas. Mas se tal definição deve permanecer histórica e filosoficamente neutra, é importante se deixar em aberto não apenas conteúdo das normas de cooperação (que variam imensamente historicamente), mas também se os concernidos pelas mesmas normas são todos humanos (universalismo) ou apenas um grupo étnico (particularismo). Pela mesma razão também é importante se deixar em aberto se as exigências colocadas aos concernidos são recíprocas e igualitárias (igualitarismo).
Isto posto, inicio meu texto retomando duas teses absolutamente triviais, mas nem por isso menos verdadeiras. O primeiro truísmo é o seguinte: nem a origem nem a legitimidade de normas morais podem ser mais vistas como o resultado de uma autoridade exterior à própria comunidade moral. O segundo truísmo consiste na suposição de cunho neo-darwinista de que a moral, entendida como um empreendimento cooperativo, teve e ainda tem um papel decisivo a adaptação da espécie homo sapiens ao seu meio natural.
O que não é mais trivial, mas ainda assim me parece sustentável empiricamente é a suposição adicional de que há uma interface entre o que se passa no domínio da espécie e o que observamos no plano individual: o que é adaptativo para a espécie humana como um todo é também em grande medida racional ou proveitoso para os indivíduos pertencentes à mesma. Nestes termos, creio que possamos tornar compreensível em termos naturais a própria capacidade da razão prática.
Meu ponto de partida aqui é o fato empírico que seres humanos nascem prematuros e dependem (mais do que os recém-nascidos de quaisquer outras espécies) incondicionalmente do amparo e proteção dos pais. Assim, parece-me plausível supor que neonatos sejam filogeneticamente programados com a capacidade natural de amar seus provedores e protetores bem como o medo natural de serem abandonados à própria sorte. De forma complementar, humanos adultos seriam também programados filogeneticamente para amar bebês. A esses sentimentos inatos, vêm se somar naturalmente os desejos correspondentes: o desejo de não serem abandonados à própria sorte e o desejo de serem amados pelos provedores/ protetores. Há inúmeras evidências empíricas que suportam tal suposição. A mais significativa delas me parece ser a seguinte: são a esses estados conativos que os pais apelam quando buscam educar e introduzir suas crianças à linguagem moral. Assim, por exemplo, quando uma criança pequena não age em conformidade com alguma norma cooperativa, ela é usualmente ameaçada pelos pais com os dizeres: "agindo assim, você não terá mais o amor dos seus pais/responsáveis".
Ora, mas tudo isso só parece fazer sentido sob a suposição representacionista de que tais estados conativos inatos (emoções e sentimentos) possuam uma dimensão ao mesmo tempo cognitiva e axiológica. Eles são conteúdos representacionais, ou seja, estados cerebrais que têm por função indicar do abandono ou da presença protetora do pais como eventos ruins e bons, respectivamente. A ideia fundamental aqui é a de que esses estados neuronais não apenas co-variam nomologicamente com o abandono e com a presença dos pais, respectivamente. Em razão da adaptação da espécie ao meio natural, e tendo em vista a sua natureza essencialmente cooperativa, é razoável supormos que esses estados neuronais foram recrutados por seleção natural com a função precípua de representar, respectivamente, a presença protetora e provedora dos pais como extremamente positiva e a possibilidade do abandono à própria sorte como extremamente negativa.
Algumas observações iniciais me parecem fundamentais a respeito. É importante ressaltar, em primeiro lugar, que tais estados conativos inatos não estão dissociados na primeira infância nem de estados doxásticos (crenças) nem do que aqui poderíamos chamar de razões primárias (crenças mais desejos). A representação do abandono à própria sorte como algo extremamente negativo (o medo de ser abandonado à própria sorte) só pode desempenhar algum papel na introdução da criança à linguagem moral na medida em que seus pais ou responsáveis a fazem acreditar que não agindo da forma cooperativa imposta pelos pais ela perderá o amor e no limite a proteção dos pais. Assim, por ocasião da introdução à moral, estados conativos inatos estão indissociavelmente ligados a estados doxásticos que são aprendidos nas primeiras interações pedagógicas com os pais.
Uma segunda observação crucial é a seguinte: essa interação primordial entre pais e filhos não é apenas paramétrica ou instrumental (adequação de meios a fins dados). Ela se dá desde sob uma forma estratégica, envolvendo desde o início uma barganha ou negociação implícita não-verbal: caso permaneçam se comportando de forma não-cooperativa, os pais ameaçam seus filhos com a perda do amor paterno e (no limite) com a ameaça do abandono. Em contrapartida, as crianças reagem de forma não verbal às ameaças paternas, testando os pais, como se estivesse negociando o conteúdo da norma moral que os pais querem lhe impor. Há evidências empíricas da existência dessa negociação implícita não-verbal entre humanos. Imaginemos uma criança que, em conflito com outra, enfia o dedo no olho da outra. Ao receber uma repreensão do pai ou responsável, ela pode recuar, mas pode também se por a chorar e espernear. Daqui a pouco, ele agride a outra criança de outra forma e fica na expectativa de como o responsável irá reagir. Trata-se ai de um caso de barganha em torno do que seria lícito fazer diante de um conflito: até onde ela pode ir na sua disputa. Ademais, há evidências empíricas da existência de negociações ou barganhas implícitas entre indivíduos de espécies cooperativas (como cães, leões, primatas, etc.) e mesmo entre indivíduos de diferentes espécies.
É importante salientar, primeiro, que na primeira infância esse árduo processo de negociação e barganha não é travado de forma consciente. Por essa razão, a barganha primordial não pode ter por modelo a famosa teoria dos jogos. Seria um intelectualismo concebermos as interações estratégicas ai como desdobramentos refletidos de um cálculo acerca do resultado mais vantajoso. O Pai reprende a criança pela sua conduta e ela reage ou (i) chorando (esperneando) ou (ii) reconhecendo a validade da norma imposta pelo pai. Mas obviamente ela não o faz, após ter efetuado um cálculo e chegado à conclusão que a subordinação à norma imposta pelo pai é a forma de ação mais racional ou proveitosa, ou seja, na teoria dos jogos aquela que melhor otimiza as sua utilidade.
É igualmente fundamental ressaltar que o processo de barganha e negociação é interminável e só finda com o fim da própria vida do indivíduo. À medida que a criança cresce, desaparece a sua dependência incondicional face aos pais e responsáveis ao mesmo tempo em que desaparece o medo de ser abandonado. Ademais, aumenta sua capacidade prática de argumentação e de negociação no seio da sua comunidade em favor ou contra normas que definem formas de cooperação que lhe são mais ou menos favoráveis. Entretanto, o liame moral fundamental que liga o adulto à sua comunidade continua ser assimétrico, uma vez que a comunidade sobrevive sem o indivíduo, mas este não sem a comunidade. O ponto crucial permanece sendo o mesmo: se os arranjos de cooperação voluntária regrados por normas são naturalmente adaptativos à espécie, a subordinação do indivíduo a tais arranjos continua sendo em grande medida racional para o indivíduo. O resultado das interações estratégicas é o seguinte: partindo das representações inatas do seu próprio abandono como algo negativo e da presença provedora dos seus pais como algo positivo, ao fim e ao cabo das interações, os indivíduos, agora adultos, passam a representar (conceitualmente) aquelas ações em conformidade com as normas por ele negociadas como boas e aquelas não conformes como más.
Absolutamente crucial a esse modelo naturalista-contratualista é a ideia de que tanto a adaptação da espécie ao seu meio natural quanto a racionalidade da condutada dos seus indivíduos membros são relativos e gradativos. No modelo proposto, não podemos falar que um determinado arranjo cooperativo seja adaptativo e ponto. A adaptação é por definição sempre relativa ao meio e o equilíbrio desse é notoriamente frágil. Ademais, um determinado arranjo cooperativo é sempre mais ou menos adaptativo do que um outro.
Mas tampouco podemos falar que o reconhecimento da validade de normas por um indivíduo seja racional e ponto. Ele é relativa a inúmeros fatores internos e externos. Internamente ela depende da intensidade dos estados conativos de medo e amor, cobiça, do da autoestima que cada indivíduo tenha de si mesmo etc., bem como da capacidade de argumentação do agente. Externamente, ela depende da relação de dependência do indivíduo para com a comunidade, da existência de normas alternativas etc. Assim, por exemplo, é racional ou proveitoso para qualquer neonato se submeter a quaisquer normas de cooperação impostas pelos provedores protetores uma vez que (i) a sua dependência face aos mesmos é incondicional, (ii) que o seu medo de ser abandonado à própria sorte é intenso e (iii) o seu poder de barganha ainda muito limitado (o que pode um neonato ou uma criança pequena senão chorar e espernear!). Entretanto, não é racional para um adulto se submeter da mesma forma a quaisquer normas ditadas por indivíduos em posição hierárquica superior à sua caso ele possua um considerável poder de barganha e uma razoável capacidade de argumentação moral.
Pela mesma razão, a autonomia do indivíduo face à comunidade é apenas relativa. Quando incondicionalmente dependente dos pais e responsáveis, a sua autonomia é nula, ou seja, é diretamente proporcional ao seu diminuto poder de barganha e inversamente proporcional à sua dependência absoluta. Mas na idade adulta, o indivíduo se torna relativamente autônomo na medida em que ele pode reconhecer determinadas normas cooperativas como legítimas enquanto recusa outras como ilegítimas. Mas mesmo muitas daquelas normas de cooperação que ele não considera moralmente legítimas e às quais ele não se submete voluntariamente, são-lhe impostas em razão de sanções sociais.
Da mesma forma, considerando agora uma comunidade humana, é mais adaptativo que seus membros se submetam voluntariamente a algum arranjo cooperativo do que a arranjo algum ou do que um arranjo estabelecido exclusivamente pela força. Entretanto, é certamente mais adaptativo para uma comunidade humana que seus membros se submetam voluntariamente a determinados arranjos do que a outros. Aqui não há espaço para desenvolver nenhum argumento a respeito, mas me parece intuitiva a ideia de Rawls de que arranjos cooperativos nos quais o mérito que esteja subordinado à igualdade (quanto a direitos fundamentais e bens essenciais) são mais adaptativos ao meio, por que mais estáveis, do que arranjos cooperativos nos quais o que temos é a relação inversa de subordinação, ou nas quais não se reconhece quer a ideia de igualdade quer a ideia de mérito. Tudo se esclarece à luz do modelo proposto: do ponto de vista individual é mais racional se submeter a um arranjo cooperativo no qual a ideia de mérito seja reconhecida, mas subordinada à ideia de justiça, do que o inverso (ou seja, se submeter a um arranjo cooperativo no qual a ideia de igualdade esteja subordinada à ideia de mérito), ou do que qualquer outro arranjo cooperativo que não reconheça nem a igualdade nem o mérito.
A primeira consequência imediata desse modelo proposto é a recusa de qualquer decisionismo moral. Se os neonatos humanos nascem prematuros e por isso possuem estados conativos inatos que representam o seu próprio abandono como extremamente negativo e o amor dos seus pais ou responsáveis como extremamente positivos, então não cabe a pergunta em primeira pessoa se quero ser moral ou quais seriam os motivos para que eu me decida pela vida moral (tal como foi sugerida por Tugendhat anos atrás e posteriormente abandonada pelo mesmo autor). Ademais, quando consideramos a situação original de dependência incondicional da criança face aos seus pais ou responsáveis, evidencia-se que, nesse momento inicial, não há vontade livre em sentido nenhum do binômio que permitisse a criança uma suposta escolha entre ser ou não ser moral. Ou bem as crianças pequenas possuem os referidos estados conativos de forma inata e, assim, são naturalmente constrangidas a aceitarem normas que exprimam formas de cooperação social a fim de que possam ser amadas e (no limite) não serem excluídas da cooperação social, ou bem, elas são privadas de tais estados conativos (sociopatas) e, assim, não há negociação implícita que possa vir a ter algum poder de coação sobre elas. Eles aprendem a simular um comportamento moral para evitar sanções externas previstas pelas leis. Em todo caso, a adesão voluntária a arranjos cooperativos só se torna possível na fase adulta quando o indivíduo se torna relativamente autônomo.
A segunda consequência é rejeição da ideia tradicional de que a justificação de arranjos normativos tenha a forma da refutação de um cético moral, ou seja, a figura fictícia do egoísta racional. Como não cabe a pergunta em primeira pessoa (por que devo ser moral?) não cabe tampouco uma justificação do porquê devamos ser morais em primeira pessoa. A pergunta mais geral acerca da racionalidade ou justificação da moral deve ser sempre formulada e respondida em terceira pessoa. Arranjos cooperativos voluntários são racionais (em maior ou menor medida) na medida em que foram e ainda são cruciais para a adaptação da espécie ao seu meio natural. A pergunta em primeira pessoa pela justificação moral só fazem sentido quando formulada por pessoas adultas, relativamente autônomas. E tal pergunta não diz respeito à legitimidade da moral como um todo, mas apenas à legitimidade dos diferentes arranjos morais alternativos.
Ora, mas isso me parece suficiente para excluirmos de uma vez por todas projetos naturalistas de "inspiração" humeana que se apoiam em uma oposição absoluta entre sentimentos e razões (oposição que se apoia por sua vez na contraposição ao mesmo tempo trivial e caricata entre as filosofias morais de Hume e de Kant: o primeiro defendendo a tese de que a razão seria "escrava das paixões", enquanto o segundo a tese que a razão deveria subjugar as inclinações naturais). Nos termos de tal oposição absoluta, está implícita, em primeiro lugar, uma suposição inatista igualmente ingênua: a naturalização da moral só seria possível sob a suposição de que a conduta moral deveria ser entendida de forma exclusivamente filogenética. Assim, estados doxásticos adquiridos ontogeneticamente em nada contribuiriam para uma explicação naturalista. Ademais, no modelo neo-humeano, a racionalidade prática se restringe à relação meio-fins e qualquer outra forma de razão prática é entendida como se fosse uma faculdade transcendental (nos termos aparentemente propostos por Kant) que resistisse a qualquer redução naturalista.
Quem melhor exemplifica esse modelo neo-humeano na filosofia contemporânea é Jesse Prinz. Para ele, naturalizar a moral significa mostrar que os estados conativos inatos supramencionados constituiriam condições não apenas necessárias, mas suficientes para a conduta moral. Ora, mas se estou correto em supor que os estados conativos inatos são representações e, ademais, que são indissociáveis de estados doxásticos aprendidos, (i) os primeiros jamais poderiam constituir condições suficientes para a conduta moral, (ii) a naturalização da moral dependeria também de uma compreensão naturalista das crenças primitivas associadas e, por fim, (iii) do próprio processo de negociação implícita não-verbal entre crianças e pais como um processo natural à espécie.
Ademais, nenhum desses estados conativos inatos constitui per se sentimentos morais propriamente ditos, como a indignação, o ressentimento, o rancor, a culpa, a vergonha dentre outros. Tais estados conativos são moralmente neutros, ou se preferirem pré-morais. Enquanto o medo do abandono à própria sorte e o amor pelos protetores e provedores são sentimentos inatos (à exceção dos sociopatas), sentimentos propriamente morais supramencionado são aprendidos. Eles dependem essencialmente de aprendizado e se apoiam claramente em juízos morais (justificáveis ou não) e esses sobre a aceitação de normas de cooperação. Assim, por exemplo, só assisto aos assentamentos israelenses nos dos territórios palestinos ocupados com profunda indignação por que julgo que um povo não pode subjugar outro. Se, pelo contrário, sou um fundamentalista judeu ortodoxo e julgo que Israel possui um direito legado por Deus nas escrituras a tais territórios, certamente eu não sentiria indignação com a referida ocupação, mas júbilo.
Mas sentimentos propriamente morais também dependem decisivamente do universo dos indivíduos que considero concernidos pelo meu sistema de normas morais. Assim, por exemplo, se sou um judeu particularista para quem o universo dos indivíduos concernidos pelas minhas normas morais se restringe aos povos semitas, então posso me sentir indignado quando observo um outro semita como eu comendo carne suína, mas sou inteiramente indiferente quando observo um cristão ou um islamita comendo carne suína.
A pergunta fundamental aqui é como devemos entender o trânsito dos sentimentos inatos moralmente neutros para aqueles propriamente morais. Se os sentimentos morais negativos que o sujeito tem de si mesmo em razão da sua inobservância de normas por ele reconhecidas como válidas podem ser tidos como "sansões internas", a pergunta é como passamos das sansões externas (punições) às internas. À luz do modelo proposto a resposta é simples e imediata. Como observamos, o medo do abandono à própria sorte e o amor aos provedores/protetores são estados conativos inatos que filogeneticamente adquiriram a função de representar axiologicamente, de forma não-conceitual, o abandono e a proximidade dos pais ou responsáveis como ocorrências intensamente ruins ou intensamente boas, respectivamente. Em contrapartida, os sentimentos morais são estados conativos aprendidos que adquiriram a função de representar de forma conceitual mas não doxástica determinadas formas de ação como devidas ou indevidas, boas ou más ontogeneticamente, ou seja, em razão do reconhecimento do indivíduo da validade de normas de cooperação. Assim, por exemplo, quando o indivíduo viola normas de cooperação que ele próprio reconhece como legítimas, ele sente culpa, vergonha ou remorso (sansão interna), ou seja, determinados estados conativos da sua mente passam a representar de forma não-doxástica as suas próprias ações como indevidas, errôneas ou más. Mas o indivíduo observa uma terceira pessoa violando normas de cooperação que ele próprio considera legítimas em detrimento do interesse de terceiros, ele sente indignação, ou seja, determinados estados conativos da sua mente passam a representar de forma não-doxástica as ações dessa terceira pessoa como indevidas, errôneas ou más. Por último, quando o indivíduo observa terceiros violando uma norma de cooperação que ele próprio considera legítima em detrimento dos seus próprios interesses legítimos, ele sente ressentimento e no limite rancor, ou seja, determinados estados conativos da sua mente passam a representar de forma não doxástica essas ações como indevidas, errôneas ou más.
Aqui é mais uma ocasião para corrigirmos o modelo neo-humeano. Prinz nos relata o seguinte experimento (que a seu juízo confirmaria a total independência do sentimento moral de indignação face a qualquer juízo). No experimento, pessoas são instadas a se manifestar sobre o casamento entre dois irmãos que cresceram separadamente e se conheceram apenas quando adultos. Segundo o resultado do experimento, a grande maioria dos entrevistados se manifesta indignação e aversão a tal união. Entretanto- segue o comentário- quando instadas a argumentar, apenas uma minoria teria sido capaz de alegar razões. E Segundo Prinz, essas razões não passariam de pseudo-razões insinceras (alegações religiosas por parte de pessoas não religiosas ou religiosas, mas praticantes). A conclusão dos autores do experimento endossada por Prinz é a de que indignação moral resultaria de um sentimento moral inato de aversão (pelo incesto).
Em primeiro lugar, não creio que a priori possamos impugnar razões religiosas como pseudo-razões insinceras, como propõe Prinz. Mesmo que os entrevistados não sejam religiosos ou religiosos praticantes, não podemos excluir a priori que suas crenças e convicções mais arraigadas tenham origem em dogmas religiosos. Ademais, mesmo que os entrevistados não sejam capazes de apresentar quaisquer razões, disso não se segue que eles não tenham formado um juízo ou uma convicção moral de forma irrefletida contrária ao incesto e, por conseguinte, que os sentimentos de aversão moral ao incesto não seja justamente o produto de tais juízos. Aqui Prinz abraça a mais ingênua das suposições iluministas: todos os juízos ou crenças morais seriam refletidas e plenamente conscientes e, portanto, quem as possui estaria sempre em condições de justificá-las.
Um exemplo em tudo análogo ao de Prinz é bastante ilustrativo a respeito. A grande maioria das pessoas também veem com indignação e aversão morais a união entre pessoas do mesmo sexo. Quando instadas a fornecer razões do porquê sentem tamanha aversão a relações homo-eróticas, elas efetivamente pouco têm a dizer, salvo repetir os jargões preconceituosos conhecidos: o homo-erotismo é pecado é antinatural etc. Homofóbicos não religiosos alegam as mesmas razões. Ora, como é sabido, em culturas pré-cristãs, como a grega e a românica, o homoerotismo era, prática usual. Fica claro, portanto, que o a aversão moral ao homoerotismo longe de ser um sentimento inato à espécie humana, é produto de uma crença moral arraigada (ainda que não refletida), oriunda das três principais religiões reveladas. Mas se isso vale para o homo-erotismo, tem que valer também para o incesto.
Ora, embora não sejamos "livres" em sentido transcendental para sermos ou não seremos morais (o decisionismo), é um fato empírico trivial que somos livres em maior ou menor grau para deliberar moralmente (dependendo da capacidade natural que possuímos de argumentar e submeter razões e argumentos práticos ao escrutínio crítico) e para negociar em maior ou menor grau (dependendo da nossa posição relativa aos demais membros da comunidade) e, assim, acolhermos determinadas normas de cooperação que reconhecemos como legítimas. Qualquer projeto de naturalização da moral que não conceba espaço para o processo natural de deliberação moral e para um processo natural de negociação das normas morais, supondo que sistemas morais seriam rígidos e inatos (filogeneticamente codificados) constitui, a meu juízo, total ignorância sobre condição natural da espécie, da plasticidade dos arranjos cooperativos a que nos submetemos.


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