Natureza e nação aos olhos de Johann Von Tschudi: imigração europeia e processo civilizatório no Brasil Oitocentista

Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

NATUREZA E NAÇÃO AOS OLHOS DE JOHANN VON TSCHUDI: IMIGRAÇÃO EUROPEIA E PROCESSO CIVILIZATÓRIO NO BRASIL OITOCENTISTA

Carlos Eduardo Nicolette – 8576870

História do Brasil Independente I Maria Helena P. T. Machado

São Paulo 2016

Não se pode subestimar o poder do olhar dirigido a um mundo com o qual não se está familiarizado. É preciso reconhecer, nos termos dessa relação entre sujeito e universo que lhe é estranho, a ausência da rede de significações imposta pela cultura, pela utilidade, pelo aprendizado (BELLUZO, 1994: 11).

1. INTRODUÇÃO Para a construção de pesquisas acerca da sociedade brasileira do século XIX, os escritos deixados pelos viajantes estrangeiros que percorreram o Brasil nesse período se mostram como notáveis documentos históricos. Destarte, o presente trabalho tem como objeto de estudo o livro Viagem às províncias de Rio de Janeiro e São Paulo1, de Jakob Von Tschudi. A partir dele, procurar-se-á discutir as seguintes questões: 1 – Qual é a importância da descrição da natureza e seu papel para a caracterização da nação brasileira recém-constituída? 2 – O Brasil seria um país possuidor apenas de uma história natural, ou teria uma História, que o definiria como uma nação civilizada ou em vias de civilização? 3 – Tschudi considerava possível a formação de uma nação brasileira a partir da população que ele observou, em sua estadia, no Brasil? 4 – De acordo com o autor, qual caminho o Brasil deveria seguir para poder se constituir como uma nação e um país civilizados? Dessa forma, o trabalho está dividido em três partes. A primeira parte correspondente às duas questões iniciais, a segunda problematiza as questões três e quatro, sendo que a última parte consiste nas considerações finais. Antes de mais nada, são necessárias algumas palavras sobre o autor. Tschudi é natural de Glarus, na Suíça, onde nasceu em 1818. Aos 15 anos, dirigiu-se a Zurique, dedicando-se ao estudo das Ciências Naturais. A Universidade de Zurique lhe conferiu o título de Doutor em Filosofia. Bem ao gosto da época, esteve de 1838 a 1842 viajando pelo Peru. Após esse período, dedicou-se à continuação dos estudos sobre minas de diamantes, em Minas Gerais, em que iniciou a segunda viagem para a América do Sul, chegando ao Rio de Janeiro, em 1857, onde se dedicou aos estudos de mineralogia e geologia. No início de 1859, retornou à Suíça, encaminhando relatório sobre a situação dos colonos suíços ao Departamento do Interior. Em seguida, foi designado, no dia 15 de novembro de 1859, Embaixador Extraordinário da Suíça no Brasil, cargo que ocupou entre 1860 e 1861. Foi nessa viagem ao Brasil que fez as anotações que deram origem à obra de 1

A edição usada para esse trabalho é de 1980 e os escritos do autor datam de 1861.

1

cinco volumes Reisen durch Südamerika, publicada entre 1866 e 1869 (DREHER, 2012, pp. 51–53). 2. A NATUREZA BRASILEIRA Para situar a questão da natureza em seu livro, Tschudi faz descrições geográficas dos locais nos quais passou, entretanto, fez de maneira bastante superficial. Consequentemente, a importância da natureza, em sua obra, bem como para a formação da nação brasileira é pequena. Entretanto, mesmo gastando pouca tinta com esse tema, o autor trouxe à baila três questões: a exploração irracional da terra, as estradas pelas quais ele passou e os produtos comercializados pelo Brasil – em especial o café. O autor inicia seu livro com uma breve descrição da costa do Rio de Janeiro2, não dando sinais de incômodo ao ver algo fora de sua realidade e após algumas semanas segue para a Província de São Paulo. Mas, de início, o que mais lhe chama a atenção é a falta de racionalidade do brasileiro em relação às madeiras nobres, “que são queimadas junto com as comuns, nas roças, pois ninguém observa um trabalho sistemático na derrubada dos matos; separam apenas as madeiras imediatamente utilizáveis e queimam o resto” (1980, p. 16). E nesse tom continua seu texto, discutindo as espécies de árvores exportadas pelo Brasil e enfatizando que uma racionalização do processo favoreceria a economia brasileira, bem como para os países que recebessem o produto. Dessa forma, esse tema complementa o que está discutido mais à frente, em relação à civilidade do brasileiro, pois aqui ele demonstra que, pelo menos no que condiz ao tratamento dado à agricultura, o brasileiro não se adequa ao padrão racional e civilizado do ponto de vista europeu do autor. Como expõe no próprio título do livro, Tschudi descreve a viagem feita às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo, passando, mais especificamente, por oito localidades – entre cidades e vilas. Uma crítica na qual ele se mostrou incisivo foi em relação aos caminhos percorridos, em geral ruins e com locais muito precários de parada. Entretanto, esses locais estavam, para o autor, sempre associados a uma paisagem bela e robusta, sendo interrompida, apenas, pelos cafezais. Para desenvolver a questão da produção cafeeira, Tschudi utilizou várias páginas (o trecho mais longo vai da página 45 a 55), demonstrando ter um vasto conhecimento sobre a realidade desta produção no Brasil. Ele retrata o modo com que a terra era cultivada, mantendo o “Durante parte do século XIX, os viajantes, mesmo quando desejavam ir para as demais províncias, detinham-se no inicialmente no Rio de Janeiro, para obter licença e cartas de apresentação” (LEITE, 1997, p. 27). 2

2

foco em toda a arquitetura da fazenda – incluindo a novidade dos terreiros de pedra –, no processo de colheita e beneficiamento, seus preços e qualidades no mercado internacional e, não menos importante, a mão-de-obra empregada para tudo isso funcionar. Nesse último aspecto, central no livro, há uma pequena descrição do tratamento dado aos escravos, mas o autor logo volta para os colonos como meio de transformação da sociedade oitocentista brasileira. Apesar da natureza estar presente em segundo plano nas descrições e análises de Tschudi, seu texto indica que a sociedade brasileira não estava vinculada ou subordinada à natureza; entretanto, enxerga que o Brasil teve um passado e teria um futuro agrário – no caso, ligado à produção cafeeira. Dessa forma, a nação brasileira não estava atrelada apenas a uma história natural, mas estava em vias de civilização – em situação atrasada a outros países da América, segundo o autor, pela colonização portuguesa – como veremos a seguir. 3. “QUEM FURTOU POUCO FICA LADRÃO, QUEM FURTOU MUITO, FICA BARÃO”3 Em seu livro, Tschudi deixa claro que sua viagem tem a intenção de analisar, mais do que a sociedade brasileira, a migração europeia em suas mais variadas influências. Contudo, devido a seu cargo de embaixador, seu foco é transposto aos imigrantes suíços. Exemplo é quando utiliza várias páginas para descrever a colônia de Nova Friburgo4, pois nesse local havia uma massiva colonização de suíços, que formaram “a melhor parte da população do distrito. Mesmo os brasileiros que são xenófobos lhes reconhecem estes méritos” (op.cit., p.112). Críticas às políticas brasileiras, em relação aos contratos de parceria, são abundantes e, para o autor, elas eram as grandes culpadas pelo fracasso da vinda de colonos até aquele momento. Para criticar a postura brasileira em relação à colonização, Tschudi demonstra se diferenciar de outros viajantes do século XIX, pois afirma que a mestiçagem entre brancos, indígenas e negros não se mostrava ser um problema – talvez influenciado fortemente por suas viagens a outros países da América do Sul. No momento em que fala sobre uma “depravação moral” na sociedade brasileira – a qual determina a violência realizada por capangas a mando de homens ricos e de posse – Tschudi diz: “Procurou-se explicar a razão de tal de cousas [a violência] argumentando com a mistura de raças, o que não é justo, pois no Sul do país, e na costa ocidental da América do Sul, onde também vivem povos latinos em mistura 3 4

Trecho retirado da página 83 do livro de Tschudi. Na edição aqui usada o trecho se encontre entre as páginas 107 e 112.

3

com negros e índios, existe maior respeito pelas leis e não existem capangas (...) [assim] esta repugnante covardia não é resultado da mistura de raças, mas um triste legado que a pátria mãe deixou aos brasileiros” (op.cit., p. 86).

Na reflexão acima, nota-se que o autor não credita a violência brasileira à miscigenação5 e, sim, na colonização portuguesa. Esse assunto lhe é caro e o traz a reflexões acerca da colonização do Brasil, tecendo críticas aos portugueses. Dessa forma, Tschudi trata Portugal como um país de segunda classe dentro do continente europeu, um país que não teve condições de colonizar terras americanas de maneira positiva, deixando rastros de incivilidade e, principalmente, corrupção do sistema colonial – o qual seria crucial para toda a presente corrupção política do período no qual o autor estava inserido. A frase que deu título a esse tópico6 é descrita pelo autor como sendo um ditado popular brasileiro oitocentista, o qual, para ele, ilustra toda a capacidade de corrupção que a colonização portuguesa gerou no território. Completa o autor: “Tal estado de cousas se explica pelo absoluto desprezo das leis em geral, do qual nos dá exemplos tanto o ministro do Império, como o caboclo da roça, e pela falta de energia e vontade por parte do governo em fazer com que se respeite a lei” (op.cit., p. 88).

Logo, os problemas brasileiros estão, além de atrelados à colonização portuguesa pouco racional, em todas as camadas sociais. Sendo que a única solução viável para a sociedade brasileira era a imigração em massa de europeus, de preferência suíços ou alemães. Entretanto, a imigração de europeus “civilizados” não estava sendo feita de maneira correta, segundo o autor. Ele relata diversas ocorrências de má fé dos contratantes e, também, o caso de Thomas Davatz, colono suíço que teve sérios problemas na fazenda dos Vergueiro e escreveu um livro7 para alertar sobre as precárias condições do sistema de parceria. Aliás, sistema bastante criticado também por Tschudi, que via na criação das leis o principal empecilho para o sucesso da parceria.8 A Província de São Paulo, para o autor, foi catalisadora dos problemas envolvendo os colonos, devido aos próprios donos de fazenda que os tratavam como escravos e, claro, dos políticos que não faziam nada para melhorar a situação do sistema de parceria. 5

Em relação a outros problemas da sociedade brasileira, Tschudi não expõe sobre opinião acerca da mistura de raças, mas seu texto sugere que sua posição seja a de se afastar da posição ideológica que colocava sociedade brasileira abaixo da europeia devido à miscigenação entre brancos, negros e índios. 6 “Quem furtou pouco fica ladrão, quem furtou muito, fica barão” (1980, p. 83). 7 DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil 1850. São Paulo: Edusp, 1972. 8 Apesar de concentrar seus esforços na análise e crítica na formação do sistema de parceira, Tschudi reconhece uma má vontade, bem como pouco esforço em alguns colonos. Entretanto, esse problema seria local e não afetaria o lado positivo trazido pelos colonos civilizados.

4

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tschudi, dessa forma, não escreveu seu livro com a intenção de mostrar a paisagem brasileira, como Rugendas, Ender e Burchell, por exemplo (BELLUZO, p. 11). Muito em função de não ter vindo da Inglaterra ou dos Estados Unidos, como a maioria dos viajantes, não é pitoresco ou naturalista, não fazendo exposições da beleza natural. Seu interesse é a imigração europeia e a análise da sociedade brasileira. O autor tece mesmo críticas à política brasileira e a cultura herdada dos portugueses. Primeiro faz um geral da corrupção e dos problemas de impunidade, chega até a mencionar o grande poder dos senhores dentro de sua fazenda (não obedeciam às leis do Estado, faziam suas próprias), para depois mencionar o caráter das políticas migratórias brasileiras e como o sistema de parceria tinha um caráter maléfico aos imigrantes. Entretanto, ressalta que a população brasileira era semicivilizada e que o caminho a se seguir era, além do trabalho livre, a imigração em massa dos europeus que ele considerava civilizados. Dessa forma, Tschudi, ao falar de São Paulo, afirma que a “imigração alemã nesta Província não deixou de exercer influência favorável sobre a população nacional” (op.cit., p.159) e que nesse sentido dever-se-ia caminhar a constituição de toda a nação brasileira; o caminho dos imigrantes civilizados e, consequentemente, o esfacelamento da herança portuguesa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes: A Construção da Paisagem. São Paulo: Metalivros, Salvador: Odebrecht, 1994. DREHER, Martin N. “O suíço Johann Jakob Von Tschudi (1818-1889) e suas leituras da América do Sul”. Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v. 38, pp. S50-S60, nov. 2012. FILHO, Alípio de Sousa. “O Brasil e os brasileiros em relatos de viajantes - ou representações depreciativas do mestiço e das mestiçagens brasileiras na pena de viajantes estrangeiros entre

os

séculos

XVI

e

XIX”.

Encontrado

em:

. Visto em: 17/07/2016. LEITE, Miriam Moreira. Livros de Viagem, 1803 – 1900. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. TSCHUDI, Johann Jakob Von. Viagens às províncias de São Paulo. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1980. 5

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.