Natureza Morta: o regime imagético do banal no estado de exceção

September 8, 2017 | Autor: Dmorfel Aguiar | Categoria: Digital Cinema
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Natureza Morta: o regime imagético do banal no estado de exceção

David Leitão Aguiar

Programa de Pós-Graduação em Fotografia e Audiovisual 2014

 

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1. INTRODUÇÃO Na ocasião do colóquio “Pós-cinema, pós-fotografia: o devir das imagens contemporâneas da arte”, realizada pelo programa de pós-graduação em comunicação da Universidade Federal do Ceará, tive o encontro com o documentário expandido Natureza Morta. Fui afetado, a princípio, pela potência do extraordinário das imagens e dos sons. A obra em questão era composta por três telas e outros tantos dispositivos sonoros (caixas 5.1) que emanavam significâncias de um período trágico da história portuguesa: o regime ditatorial de 48 anos comandados quase em sua totalidade por Antonio de Oliveira Salazar. Em cada tela surgiam imagens quase aleatórias sobre as quais tínhamos certa liberdade para estabelecer diálogos enquanto nos tornávamos participantes viventes da experiência narrativa sensível ali estabelecida. Mas o que poderia haver de extraordinário numa pilha de botas abarrotadas até o teto, em pessoas em festejos folclóricos, conduzindo porcos, acendo velas num gestual cristão tão comum? Todas as imagens ali presentes eram de arquivo, produzidas pelo próprio Estado Novo português, refiro-me, portanto, as imagens de Natureza morta. Numa observação mais atenta que percorreu o processo constitutivo da obra foi possível perceber, ou mesmo presumir, um outro nível de potência presente nestas imagens, e que o método fílmico de Suzana Sousa Dias poderia ter feito emergir outras potencialidades latentes em tais registros imagéticos. No processo fílmico de Sousa Dias, foram realizadas transformações na modulabilidade de tempo-movimento, bem como postas em diálogo imagens que pareciam lançar-se em algum nível de contraposição (as ações militares de extermínio e destruição) ao delicado humanismo comunitário que estava, de alguma forma, inscrita em algumas outras. Portanto, realizando o caminho inverso do filme, dissecando cada sequência de imagem como uma unidade separada, única, restituindo seu tempo-movimento natural, eliminando as novas potências que o desenho sonoro agregou à obra, podemos chegar à conclusão que, no entanto, eram ordinárias, senão em sua totalidade, ao menos em sua maior parte. Percebendo esse particular jogo de imagens ordinárias e extraordinárias, e algumas outras um tanto indiscerníveis (qual a medida do comum?), acabamos por chegar à seguinte questão: como um regime político pode a um só tempo ter produzido imagens tão contraditórias? Haveria dentre elas um regime imagético que exponha uma melhor noção dos fatos do que o outro regime? Qual a relação entre tais regimes imagéticos e o regime do  

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Estado Novo? Quando Souza Dias opta por arrancar do ordinário a potência adormecida do extraordinário, quais métodos e significâncias são extraídos? Haveria realmente algo de invisível na escritura dessas imagens? Seriam elas como problematizou Benjamin uma estetização da política como um ato publicitário que preconiza valores que justo no seu âmago persistem, muitas vezes ao inverso? Tais questões aparecem um tanto presentes na leitura conjuntural que Peter Pál Pelbart realiza numa comunhão entre política, economia e produção de subjetividades: Através dos fluxos de imagem, de informação, de conhecimento e de serviços que acessamos constantemente, absorvemos maneiras de viver, sentidos de vida, consumimos toneladas de subjetividade. Chama-se como se quiser isto que nos rodeia, capitalismo cultural, economia imaterial, sociedade do espetáculo, era da biopolítica, o fato é que vemos instalar-se nas últimas décadas um novo modo de relação entre o capital e a subjetividade. O capital, como disse Jameson, por meio da ascensão da mídia e da indústria da propaganda teria penetrado e colonizado um enclave até então aparentemente inviolável, o inconsciente (Pelbart, 2009, p. 20).

Encontramos, então, uma nova questão: como poderia um regime totalitário em pleno século XX produzir imagens de um cotidiano trivial, banal, se neste regime político tudo o que não for consenso absoluto deve ser extirpado pela produção da violência? Estamos, pois, perante dicotomias: o regime imagético do ordinário e o regime imagético do extraordinário; a produção de um cotidiano banal como maneira de vida e a produção da violência para assegurar este suposto modo de vida simples e banal. Mas não seria um contrassenso sustentar o cotidiano justamente com a quebra desta, pela produção da violência? Essa vida simples não seria então somente possível pela banalização de um estado contínuo de violência? Benjamin alertava, ainda no início do século XX, que vários regimes políticos camuflavam seus reais estados de autoritarismo e violência (BENJAMIN, 2010) na produção de uma vida em comum, mas que se sustentava na violência da coerção, da exclusão reificante e da manutenção do poder de exploração regulado pelo estado. A política, portanto, vira um ato profundo de violência em demasiados disfarces, e será na constitucionalidade jurídica que ela encontrará um magnífico dispositivo para legitimar o despotismo que em pleno século XX luta-se para extirpar. A tradição dos oprimidos ensina-nos que o estado de exceção em que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de história que corresponda a esta idéia. Só então se perfilará diante de nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadeiro estado de exceção; e assim, a nossa luta contra o fascismo melhorará. A hipótese de ele se afirmar reside em grande parte no fato de os seus opositores o verem como uma norma histórica em nome do progresso. O espanto por as coisas a que assistimos ainda poderem ser assim no século XX não é um espanto filosófico. Ele não está no início de um processo de um conhecimento, a não

 

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ser o de que a idéia de história de onde provém não é sustentável (Benjamin, 2010, p. 13).

Podemos chamar de estado de exceção um regime político em que existe uma dada constitucionalidade e certa divisão de poderes que seriam, teoricamente, o alicerce de um estado democrático e não excludente, entretanto, tais dispositivos apenas regulam e legitimam convenientemente a violência que constitui modos de dominação e exploração, pensamento que numa análise à contrapelo (BENJAMIN, 2010), os regimes contemporâneos não fogem tanto à regra. Tais dispositivos podem se tornar anômicos a qualquer instante, desde que se apresente uma necessidade de imposição para que o estado regule a ordem vigente de violência e pela violência. É pela produção da subjetividade que o capital realizará, e ainda tem feito, sua constituição de um povo. Somente quando os métodos de produção dessa subjetividade não podem mais dar conta das profundas contradições que lhes são inerentes, a violência sai de sua forma latente legitimada pela salvaguarda deste mesmo povo que foi sequestrado na sua autonomia identitária, em constituição, comunidade em devir. O cotidiano é aqui um método de negação desta dupla violência: silenciosa na imposição dessas identidades e ruidosa quando o medo deve coagir qualquer foco de insatisfação. Bem como a exceção jurídica tornou-se regra nestes regimes, o cotidiano é banalizado como fundamento deste sequestro das subjetividades pelo capital. A exceção como regra. O cotidiano como campo de experimentos e modelagens identitárias, ou “resgate de almas” (ROSAS, 2001). Corpos disciplinados pelo banal, por mitos de uma suposta história áurea portuguesa de um império que não se concretiza no passado e, em um dado momento, retrocede como dispositivo ideológico de salvação que responderia, acreditavam muitos e outros necessitavam crer, as muitas investidas do neocolonialismo europeu, dividindo povos na África e modelando espíritos em todo o império português. Sousa Dias empreende, então, um trabalho de desmascaramento de tais técnicas políticas que tiveram na estetização um de seus suportes mais potentes, e deixando que as virtualidades latentes dos gestos do salazarismo tomassem formas arrebatadas pela intencionalidade sensível e soterrada nos mecanismos de produção e de camuflagem ideológica, a autora realiza procedimentos que buscam trazer à tona estas intencionalidades gestuais e fundantes de tais barbáries, e reconstitui a historia não por um processo de  

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discursos inteligíveis, mas por um método histórico-sensível, resgatando significâncias cujos métodos históricos passam ao largo. Ponto alto de sua obra, o sensível como possibilidade histórica demonstra como as produções industriais da subjetividade do cotidiano foram uma ontologia constitutiva de tal regime político, bem como o banal da vida no Estado Novo português assumiu a banalização do estado de exceção como regra.

2. A ESTETIZAÇÃO DO BANAL NO ESTADO DE EXCEÇÃO PORTUGUÊS A formação do Estado Novo português nos anos 30 nos conduz ao projeto de produção de uma comunidade consensual, disciplinada em seu decadente romantismo histórico, que, por vezes, esteve à parte do próprio desenvolvimento histórico europeu em nome da produção idealista dessa comunidade mítica portuguesa alicerçada num “aparelho de inculcação ideológica autoritária mergulhada no quotidiano das pessoas (ao nível das famílias, da escola, do trabalho, dos lazeres), com o propósito de criar esse particular homem novo do salazarismo” (ROSAS, 2001, p. 1031). O investimento na banalidade do cotidiano, esse criar-se um comum que ao mesmo tempo negue o regime extraordinário que é o totalitarismo do Estado Novo, é característica essencial desse regime político que fora inscrito no regime imagético pela exaltação das potencialidades mítico-disciplinadoras das identidades que construiriam o “império ultramarino português” . Portanto, assim como o estado de exceção fez-se regra, o cotidiano fez-se dispositivo de uma produção de subjetividades que ancoraram este ideal neoimperialista português: o mito paligenético (do começo de uma renascença e regeneração lusitana) que apontava o caminho genuíno da história portuguesa, ao exemplo do seu dever de colonizar povos, sua predestinação ruralista para a simplicidade da vida campesina e a subserviência católica (ROSAS, 2001). A produção de um regime do cotidiano balizou ontologicamente o estado de exceção lusitano. Imagens que produzem imagens. Imagens de atividades ecumênicas, uma autoridade católica abençoa e caminha em cortejo com a dificuldade natural de quem quase não suporta o peso de tal indumentária, passeatas comemorativas nas colônias e na metrópole, até mesmo com traços de festejos folclóricos tradicionais, bem como atividades “cotidianas” do exército português. Registros ora do encontro com o ordinário, ora com a produção desse ordinário, de subjetividades que davam-se a essa “renovação”, ou melhor colocando, subjugação de  

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identidades que se prestavam como exemplo deste regime político-moral, que camuflando seu estado ditatorial, encontrava sua inscrição estética também na representatividade da imagem, ora imposta-produzida, ora captada no purismo do outro filmado, este, porém, perante certa ingenuidade ao procedimento das tecnoimagens, e que nada sabia ao certo a que viria se configurar ambos regimes inseparáveis: o estado de exceção como regra e o regime imagético do banal, cujo segundo lastreava o primeiro e ambos se retroalimentavam. A regra que ficcionalizou um regime político, banalizou a vida em imagens. Eis a estetização da política que Benjamin (1994) tanto temia: uma instrumentalização das identidades em prol da manutenção de um poder ditatorial que molda comunidades em busca de um consenso ideal e mítico. Um ideal de cotidiano é reciclado e fomentado como produção da vida da comunidade deste império português. O Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) foi o principal dispositivo indutor desta “política do espírito” (ROSAS, 2001). Para o salazarismo, nos “Estados renovados há uma concepção da vida e do homem, um princípio que se traduz na política e economia, na ciência, cultura e educação” (ROSAS, 2001 p. 1041). O império imposto pelo Estado Novo salazarista far-se-ia naturalmente pelo controle e disciplina, apropriando-se da vida como matéria prima a ser “industrialmente” seriada, pensamento este que cumpria seu papel nos planejamentos de ações sócio-políticas de seus idealizadores e executores. No século XX, o poder industrial estendeu-se por todo o globo terrestre. A colonização da África e Ásia chegam a seu apogeu. Eis que começa nas feiras de amostras e máquinas de níqueis a segunda industrialização: a que se processa nas imagens e nos sonhos. A segunda colonização, não mais horizontal, mas desta vez vertical, penetra na grande reserva que é a alma humana. A alma é a nova África que começa a agitar os circuitos dos cinemas (MORIN, 1997, p. 13).

A fundação de tais regimes, falamos especificamente do Estado Novo português, baseia-se, portanto, numa incoerência que tende à “normalização do cotidiano”, incoerência que alicerça suas estruturas: para “salvar” uma constituição e seu Estado, procede-se uma salvaguarda constitucional que se apropria destas técnicas jurídicas modernas, ignorando-as quando conveniente, uma tecnologia política que faz da imposição das regras e modelagem das vidas uma falsa negociação, e somente pela banalização do consenso, um consenso cada vez mais produzido, como qualquer outro produto industrial, é possível chegar numa estrutura que capte este nomos como conveniência e una-o à anomia jurídica, ponto de ligação que funda o estado de exceção como regra, uma jurisdição de fato e fictícia, pura contradição (AGAMBEM, 2004).  

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(…) a própria possibilidade de distinguir entre vida e direito, anomia e nomos coincide com sua articulação na máquina biopolítica. A vida pura e simples é um produto da máquina e não algo que pré-existe a ela, assim como o direito não tem nenhum fundamento na natureza ou no espírito divino. Vida e direito, anomia e nomos, auctoritas e potestas resultam da fratura de alguma coisa a que não temos outro acesso que não por meio da ficção de sua articulação e do paciente trabalho que, desmascarando tal ficção, separa o que se tinha pretendido unir (AGAMBEM, 2004, p. 132).

Agambem propõe ainda que tal estado se reformou no âmago dos regimes democráticos, e neste deslocamento de percepção do contemporâneo, não estaríamos na regra do estado de exceção? É importante não esquecer esse contemporâneo processo de transformação das constituições democráticas entre as duas guerras mundiais quando se estuda o nascimento dos chamados regimes ditatoriais na Itália e Alemanha. Sob a pressão do paradigma do estado de exceção, é toda a vida política-constitucional das sociedades ocidentais que, progressivamente, começa a assumir uma nova forma que talvez, só hoje tenha atingido seu pleno desenvolvimento (2004, p. 27).

Essa nova colônia a ser explorada, o espírito-matéria-prima, a alma, a cultura, é instrumentalizada pelos dispositivos da biopolítica, cujo contexto atual torna quase indiscernível o ponto de emissão radiante desta modelação identitária. Radiação acêntrica ou policêntrica, em rede. Mas o banal do cotidiano permanece capturado por certa instrumentalização deste mesmo ordinário, a estetização deste banal corresponde à escritura dessa instrumentalização política, tanto no passado como nos regimes presentes. Retrocedendo a Benjamin acerca do estado de exceção: “Temos de chegar a um conceito de história que corresponda a esta ideia” (2010, p. 13). Benjamin postula que a ficção dos regimes totalitários e suas estetizações da política sejam desmitificados: o desmascaramento dos dispositivos que sustentam tais contradições eclodem por vias de choques. Tal choque, no caso específico do documentário expandido Natureza Morta, de Susana Sousa Dias, é o da reversibilidade (GIL, 2005) do regime de imagens banais, ou ordinárias, ao regime de imagens extraordinárias, portanto, processo que dá a ver a violência mascarada numa banalização do cotidiano imposto-produzido no estado de exceção português. Natureza Morta compõe-se de imagens de arquivo que, sobretudo, foram inscritas como registro de uma ordem natural da vida, mas esta vida foi cada vez mas disciplinada e tolhida para corresponder a uma cosmovisão política e existencial: o Estado Novo. Dito isso, percebemos que Sousa Dias escava fissuras, percebe a produção das contradições nessa estetização do banal e, trazendo à tona, realiza uma troca de regimes

 

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estéticos que abordaremos adiante, realocando no mapa da história a ditadura salazarista, da mítica renascença portuguesa para a concepção de estado totalitário. Pensando na desmitologização do banal dos regimes totalitários, Benjamin (2010) sugere uma “violência pura” para contrapor-se à “violência do direito”. Nesse mesmo vetor, apontamos que Glauber Rocha vê uma potência virtual em certo regime de imagens que abre fendas nas banalizações das violências do cotidiano impetradas por séculos de despotismos no Brasil, bem como no caso específico da ditadura militar brasileira, que usou dispositivos semelhantes ao salazarismo, tanto no que tangiu à criação de um cotidiano “normalizado”, seja por sua produção estética e informacional, seja por seus brutais atos em nome da salvaguarda dessa ordem. Rocha propõe uma violência estética que choque a violência jurídica banalizada, teorizando na “Eztetyka da Fome” (2004) e realizando em suas imagens. Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnocólor não escondem, mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência (ROCHA, 2004, p. 66).

3. CHOQUES E REVERSIBILIDADE NOS REGIMES DE IMAGEM: DO ORDINÁRIO AO EXTRAORDINÁRIO Percebe-se, na inscrição de Natureza Morta, que certas imagens sob a tutela da produção de um banal normalizante possuem fissuras que alojam algum nível de contradição no contexto da banalização do cotidiano: o olhar de colonos que parecem escandalizar-se diante do dispositivo imagético, talvez o reconhecimento de mais um dispositivo do opressor, talvez a dor incorporada do flagelo que os supostos libertadores por mais uma era há de lhes impor. O corpo comunica não verbalmente. É que com o passar dos anos a hegemonia ditatorial salazarista degrada-se, portanto, degradam-se também as produções imagéticas em seu método do banal. A violência vai saindo dos porões: vemos uma sequência de botas militares produzidas em escala (produção industrial da tecnologia da coerção), crianças regimentadas numa prémilitarização (produção da banalização da indústria da violência), e pouca a pouco este cotidiano desfaz-se em suas contradições: corpos são mutilados para suprirem um estado mitológico-moral, referimo-nos acerca dos perseguidos políticos, assim como aos que  

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sobrevivem no silêncio. São imagens que se misturam em seus níveis de banalização e de quanto suas contradições estão inscritas pela produção desta contradição inerente aos gestos desse corpo: um regime totalitário que tenta o disfarce, mas aos poucos suas inscrições lhes denunciam a degradação de tais gestos dissimulados. Sousa Dias pressupõe uma nova constituição sensível dos arquivos imagéticos da ditadura de Salazar, uma reversão que apreenda as contradições mais ínfimas que as imagens ordinárias creem camuflar. Dessa forma, temos em diálogo um incêndio nas colônias (predestinação “heróica” da civilização?), a glorificação comunitária do regime do Estado Novo por parte da população portuguesa e retratos que denunciam o corpo aprisionado e transformado pela mutilação do sistema disciplinador, que por meio da fotografia mal enquadrada, displicente (a tecnologia burocrática fotografa como quem acumula números e papéis numa gaveta esquecida, gesto que denuncia sua regra da banalização da violência seriada), e tantas outras que já claramente elucidavam contradições inteligíveis em suas imagens, outras escamoteadas ainda, mais passíveis das potencialidades opressoras que as produziram. Portanto, a produção da “violência pura” benjaminiana na reversibilidade de Natureza Morta vai-se estabelecendo pela realocação de códigos sensíveis. Sousa Dias realiza uma reversibilidade sensível (GIL, 2005): transmuta o método de produção do banal, sustento ideológico de um regime ditatorial que impõe uma normalização do cotidiano como camuflagem de seu autoritarismo, como ato de violência pelo regime de imagens extraordinárias. Este novo regime de imagens desmonta um discurso que baliza a regra do totalitarismo biopolítico, colocando ao nível do sensível as reais potências que tentavam permanecer no campo do invisível no salazarismo. Portanto, a reversibilidade da qual falamos em Natureza Morta, remete-se do regime imagético do banal do cotidiano ao extraordinário que expõe que um estado de exceção virou regra. Mas por que métodos e ontologias isso seria factível? Sousa Dias experimenta possibilidades sensíveis diversas e complementares. Apontamos uma hipótese que se nos apresenta central e que nela nos fixamos em nossa pesquisa diante das vastas possibilidades da obra. De facto, as pequenas percepções desempenham um papel semelhante ao de um operador ou código de tradução, apto a traduzir imediatamente o não-verbal numa outra linguagem não-verbal, as cores em sons, as figuras nos gestos, a poesia em música, a pintura em poesia ou em música (…) estas propriedades do invisível sensível que Merleu-Ponty designava por “equivalência” “parte-total”, etc., são, todas elas, garantidas pelas pequenas percepções (GIL, 2005, p. 99-100).

 

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Segundo o pensamento de José Gil (2005), existe na produção estética algo ínfimo e escondido que traz novas alocações de significâncias, sobretudo sensíveis, algo que a visão não percebe senão por meio de métodos que façam emergir virtualidades inscritas, presença sensível que necessita de processos estéticos para eclodirem. Ainda segundo Gil, a linguagem verbal forma-se por meio das necessidades práticas da vida, mas não dão conta das novas possibilidades, ou mesmo das virtualidades escamoteadas dos processos humanos, políticos, subjetivos e existenciais, que denunciam as potencialidades que em seu âmago geram as essências alocadas no invisível das percepções, como palavras que se esvanecem em palimpsestos. “Na massa das sensações e das percepções que pertencem ao conjunto do significado, só uma pequena parte é colhida pela camada expressiva verbal” (GIL, 2005, p. 97). Sendo finitas tais possibilidades das expressões verbais, é por meio das restituições não verbais que importantes presenças e significados atualizam-se, presenças que a intelecção consensual ainda não admite em seus códigos e sistemas lógico-morais, as pequenas percepções escavam a visão, e em seu lugar introduzem o olhar. No pensamento de Gil (2005), as pequenas percepções são estes fósseis, ou mesmo atos falhos, que a suposta objetividade tenta, por vezes, anular como gesto fundamentalmente criador de uma significância e que um determinado modelo lógico nega a apreensão desta, ou simplesmente ainda não foi capaz de apreender-lhe. Em suma, o mundo oferece sempre muito mais sentido virtual do que o significado actualmente nele pela linguagem, mas também por todos os significantes disponíveis. Há “significado flutuante” infinito transbordando o mundo que é exprimido, e são as pequenas percepções que se encarregam de o significar (GIL, 2005, p. 99).

Em Natureza Morta, há um método de montagem e de realocação dessas imagens, no diálogo estabelecido umas com as outras no todo fílmico, na disposição temporal de três telas, seja na duração dessas imagens ou na mutação do tempo-movimento. Deste último, apontamos uma força de suma importância na estratégia estética. Segundo José Gil (2005), entre a percepção visual da imagem e a sua significação do invisível, existe o intervalo, ou melhor, a escavação da visão pelo olhar: são estes choques em suas realocações na montagem, no diálogo das imagens que expande suas contradições (Natureza Morta), mas sobretudo na mutação do tempo e do movimento. Jean Epstain, em sua estratégia fílmica, propõe o cinema como produção do tempo em sua busca pela inscrição da verdade: “Por desenvolver o alcance de nossos sentidos e jogar com a perspectiva temporal, o cinematógrafo torna  

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perceptíveis pela visão e pela audição indivíduos por nós considerados invisíveis e inaudíveis” (EPSTAIN apud AUMONT, 2004, p. 37). Dando continuidade a este pensamento de Epstain, Jacques Aumont desenvolve: Nessa condição, vemos que a própria vida é relativa, que é possível suscitar seu aparecimento onde não a vemos. Basta para tanto imaginar que se modula o tempo natural indefinidamente como por uma espécie de projeção sobre o mundo natural dos princípios de modulabilidade (aceleração/desaceleração, inversão) do tempo cinematográfico. Serão obtidas transformações radicais do tempo que farão perceber de outra forma os seres apanhados no tempo e darão origem ao que aparecerá eventualmente como vida (AUMONT, 2004, p. 40).

Em Natureza Morta, a vida apreendida pelo regime de exceção português é recomposta na sua quase imobilidade e congelamento temporal, o que escava a percepção imediata da imagem e faz emergir uma nova potência vetorial: o vetor não nos dirige mais para a banalização de um gesto cotidiano, mas para uma sensação profunda de violência, deslocando o banal institucionalizado para o regime imagético extraordinário, da dor extraordinária e também extraordinária opressão. É rompido o intervalo entre a visão e o olhar, este último, antes como o inconsciente separado do ser, mas que agora vem à tona e não mais abisma a possibilidade de se chegar ao olhar: eis o que significa esta concepção de intervalo em Gil (2005). O invisível é atualizado nas pequenas percepções escavadas: um homem (Natureza Morta) em sede descomunal é sentido pela apreensão sensível dessa potência em sua quase imobilidade fotográfica e temporal, como se estivéssemos perante o “instante decisivo” de Cartier Bresson. Portanto, doravante, a violência brota de onde outrora a visibilidade apontava para a saciação da sede e não para a sede que se apresentava insaciável. As invisibilidades de tais imagens aos poucos se chocam umas nas outras e eclodem novas camadas de significância. Por vezes, as pequenas percepções, arrancadas a fórceps, sobrepõem-se às visibilidades do banal, e neste choque dialético-sensível, o ordinário destas últimas são revogados. São métodos de violências que arrancam a violência muda e passam a dar formas a outras imagens: algumas um tanto mais já decompostas da banalização pela contradição da escritura sensível que aos poucos o regime já não pode sustentar. As formas visíveis exibem-se apenas para melhor se negarem, enquanto o invisível transforma a própria visibilidade delas (...) Desaprender o visível para aprender o invisível: entre os dois, corte e descontinuidade. O instante em que a cisão faz nascer a forma inédita, instante de recusa e invenção, é um momento de caos (GIL, 2005, p. 136-137).

 

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4. VIRTUALIDADES DO TEMPO E MÉTODO HISTÓRICO-SENSÍVEL Os corpos e seus gestos não podem esconder as marcas que lhes fundam e dão forma, bem como estão para sempre consolidadas as intenções das mãos do pintor que marcam a tela em pinceladas com impressões específicas. Os dedos do pianista podem tocar as teclas em pianíssimo, mas sua ínfima nota, na verdade, pode gritar. A certas distâncias, as inscrições sensíveis podem esconder as marcas das mãos, dos pincéis e dos gestos que lhes fundam, mas estes sempre terão indissociavelmente as potências das intencionalidades gestuais. Estas são como o inconsciente freudiano em que a pequena ponta do iceberg (o que chamamos de consciência), esconde na fácil visibilidade o seu verdadeiro jogo de intenções, dando a ver apenas sua camada mais à superfície. Ranciére propõe que o trabalho do artista contemporâneo é uma arqueologia para se chegar a estas marcas indissolúveis: “O artista é aquele que viaja nos labirintos ou nos vestígios e transcreve os hieróglifos pintados na configuração mesma das coisas obscuras e triviais” (2009, p. 36). Não havendo, portanto, detalhe desprezível que não tenha a capacidade de dar mínimos indícios de potências, vetores, intencionalidades, que movam gestos, transformem corpos, moldem matérias, e deixem vir a história que por vezes, na maioria talvez, esteja soterrada nos escombros banalizados de nossas paisagens. Para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado. A casa ou esgoto falam, trazem consigo rastros do verdadeiro (...) O escritor é o geólogo ou o arqueólogo que viaja pelos labirintos do mundo social e, mais tarde, pelos labirintos do eu. Ele escolhe os vestígios, exuma os fosseis, transcreve os signos que dão testemunho de um mundo e escrevem uma história. A escrita muda das coisas revela, na sua prosa, a verdade de uma civilização ou de um tempo, verdade que recobre a cena de outrora gloriosa da palavra viva (RANCIÉRE, 2009, p. 38).

Natureza Morta trabalha sobre tais vestígios, na busca de desembaraçar as marcas e intencionalidades latentes, virtualidades que venham a se atualizar. Quando Sousa Dias dispõe três telas e nestas as temporalidades, as presenças imagéticas, as modulações tempomovimento (desaceleração), ela realiza uma montagem por meio da coalescência virtual: o virtual é este misto de potências e vetores, intencionalidades latentes, numa existência muda, mas a qualquer momento prestes a emergir e atualizar-se. O dispositivo de telas em que cada uma trabalha de forma quase independente, proporciona-nos o poder de certa escolha de montagem, na simultaneidade das potências realocadas, e que no olhar do observador afetado  

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é dada a este a proatividade de realocar as imagens por mais uma vez no fluxo das impressões. Impressões do passado que se dilatam por sobre o presente (DELEUZE, 2005), atualizam porções de virtualidades e passam a dar suas presenças simultaneamente: o olhar desamparado dos colonos que, de uma presença em uma das telas choca-se com a presença de um militar lusitano que caminha entre estes mesmos colonos, e, no entanto, o olhar e o caminhar mostram-se numa coexistência em dimensões díspares. Eis, então, sua coalescência: uma fissura no discurso histórico inteligível, pela potência do sensível realocado e provocando dissensos. Um processo dialético de choques, sim, mas um processo, sobretudo, sensível, mais que propriamente inteligível, e a cada nova aparição imagética, ou mesmo anulação na tela negra, potencializam-se tempos e contradições: o afetivo cortejo de uma autoridade católica contraposta às fotos de um padre negro (seria ele um preso político das colônias?), seu corpo fora apanhado no sistema disciplinar carcerário e temos, então, não apenas uma imagem vulgar de um preso fotografado pelo método banal e seriado da burocracia, mas a disposição desse método repetido em tempos diferentes que denunciam a mutilação e modelagem desse corpo, tempos de registros banais que se sobrepõem, e podemos sensivelmente juntar diferentes camadas do passado numa única sensação chamada barbárie. Dessa forma, cada imagem realocada de sua banalidade entrega-se às sensações do receptor, que montando sua narrativa sensível, cria uma onda de choques, choques em cadeias, redes ou orbitais. Chegamos finalmente à camada de composição que unifica os três dispositivos: o desenho sonoro. O som metálico de grades a cada ranger no abrir e fechar de celas, a cada novo corpo encarcerado que não vemos, mas podemos sentir, lançar aos olhos do espectador a ferrugem que corroía o Estado Novo português, e caso estiquemos as mãos, podemos quase tocar um dos dispositivos técnicos que sujeitaram vidas. Grades que irrompem subterraneamente e assombram a obra em sua fantasmagoria que parece não haver luto suficiente para transcendê-la. Como leitmotiv da obra, o ranger de grades acaba por solidificar-se como o som de um tempo, bem como a ferrugem que pode ser imaginada, mesmo sentida, o fóssil táctil de uma história.

 

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Natureza Morta não reconstitui a história por meio dos processos de constituição historiográfica ou mesmo crítica. A história tende a fixar-se como significância, excluindo virtualidades e devires dos processos, bem como assinala fatos sem levar em conta a vivência do sensível. Somente uma história instável, reconstituível poderia apoderar-se do invisível e do devir. A história fixa-se como o comunicável que somente tem sentido na estabilidade inteligível da palavra escrita, mas que a ela sempre escapa um novo devir: de uma verdade do sensível, que os fatos não transmitem, quando muito afirmam, especulam e fixam apenas uma parte. Que o povo africano foi submetido aos regimes totalitários europeus é de conhecimento histórico, mas a vivência sensível, que extrapola o sentido das palavras em seus símbolos bem alocados, estabilizados, códigos comuns, reconduz-nos a uma nova experiência histórica que retira da frígida palavra a desestabilização de tais códigos e nos coloca em possível diálogo com o real da experiência histórica: a vivência sensível. Não quero com isto dizer que este que chamo método histórico-sensível seja uma apreensão totalizante da verdade pura, seria idealismo essencialista, mas que esta forma de abordagem escava arqueologicamente a história que não pôde ser reconstituída de outra forma, posto que o sensível, parte imprescindível da constituição do poder biopolítico contemporâneo, não estaria disponível pelos códigos estabilizados de nossa cultura historicista. Antes de ser um “ser histórico”, o homem é um “ser sensível”, isso está pressuposto no método sensível de recomposição sígnica de Natureza Morta e tal método histórico sensível pode ser configurado como a violência pura que Benjamin propõe como desarticuladora, no plano ideológico do estado de exceção, dando a este seu estatuto que tanto tenta renegá-lo se auto-afirmando como um processo natural do progresso (2010). A razão de esquerda revela-se herdeira da razão revolucionária burguesa européia. A colonização, em tal nível, impossibilita uma ideologia revolucionária integral que teria na arte sua expressão maior, porque somente a arte se aproxima do homem na profundidade que o sonho desta compreensão possa permitir (...) a ruptura com os racionalismos colonizadores é sua única saída (...) na medida em que a desrazão planeja as revoluções a razão planeja a repressão (Rocha, 2004, p. 250).

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA AGAMBEM, Giorgio. A comunidade que vem. Lisboa: Editora Presença, 1993. ______. O estado de exceção: homo sacer II. São Paulo: Boitempo, 2004. ______. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

 

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AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campina: Papirus, 2004. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. ______. O anjo da história. Lisboa: Assírio & Alvim: 2010. DELEUZE, Gilles. Cinema: A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 2005. GIL, José. A imagem-nua e as pequenas percepções. Lisboa: Relógio d’água, 2005. MORIN, Edgar. Neurose: O espírito do tempo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2009. RANCIÉRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2009. REZENDE, Luiz Augusto. Microfísica do documentário. Rio de Janeiro: Azougue Editora e eventos, 2013. ROCHA, Glauber. A revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004. ROSAS, Fernando. O Salazarismo e o Homem Novo: Ensaio Sobre o Estado Novo e a Questão do Totalitarismo. Lisboa: Análise Social, vol. XXXV, 2001.

 

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