Negras, universitárias e sem futuro

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CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, segunda-feira, 19 de maio de 2014 • Opinião • 11

Negras, universitárias e sem futuro » GLÁUCIO SOARES Sociólogo, é pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj)

u conversava com H.S., negra, 29, formada em sociologia por uma universidade federal, com P.A., negra, 28, e D.E., negra, 27, formadas em sociologia e economia por uma estadual. Elas, que não se conheciam, tinham muito em comum: mulheres, negras, formadas e desempregadas. Eram vítimas de sistema educacional irresponsável. Há mais semelhanças: moram fora dos bairros elegantes do Rio; têm origem humilde, mas não despossuída, de famílias incompletas, com pai ausente. Trabalhavam enquanto estudavam, mas não estavam entre as piores da turma. Os professores não se lembram delas. Buscam trabalho, sendo comuns os concursos, as agências de emprego, as reprovações e a extensa experiência de rejeição. Sofrem com pesada discriminação e não têm os conhecimentos que as vagas exigem delas, a despeito de inteligentes e estudiosas. Por quê? Em conversa, sublinharam as deficiências da formação. Não sabem como pesquisar. Não leem um idioma estrangeiro; álgebra, nula; cálculo, inexistente; estatística, lastimável; nunca estudaram métodos e técnicas de pesquisa, não sabem o que é lógica. Não conseguem ler uma tabela nem um gráfico. Um triste contraste com a formação oferecida há algumas décadas por instituições públicas secundárias de ponta, como o Pedro II, ou com a que meus filhos obtiveram em colégios públicos nos Estados Unidos. Não obstante, têm potencial: não falta inteligência, falta formação. O problema atinge brancas pobres também. Entretanto, as negras e pobres acumulam discriminações. Se enfrentassem o mercado capacitadas, o resultado já seria duvidoso; sem capacitação, é um massacre. O que fazem, hoje, os alunos que entraram há 10 anos nas universidades públicas para estudar uma das ciências humanas? Ninguém sabe. São aceitos, todos os anos, milhares de estudantes, sem preocupação institucional com o futuro profissional. A expansão acelerada do mercado de trabalho acabou e não há mobilidade de intercâmbio. Quem está nas universidades públicas fica, trabalhe ou não. O corporativismo impede a substituição do pior no corpo docente pelo melhor entre os jovens recém-formados. Poucas instituições repensaram a graduação. Na USP, o Núcleo de Pesquisas sobre o Ensino Superior (Nupes) iniciou um projeto em 1991 para mapear o destino de graduados. A UFRJ fez algo nesse sentido. Entretanto, as universidades, como um todo, continuam, mecanicamente, abrindo vagas, sem se preocupar com o futuro dos alunos. Em outras conversas com professores, verifiquei que muitos não sabiam quantos entravam no curso, quantos desistiam, quantos se formavam. E ninguém sabia o que aconteceu com os que entraram e desistiram, nem com os que se formaram. Conheciam, por razões pessoais, o destino de três ou quatro. Ensinavam, sem saber a quantos nem para quê. O compromisso com os alunos terminava na saída da sala de aula. O contraste entre o desconhecimento desinteressado a respeito do futuro dos alunos e os acalorados

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debates teóricos a respeito das disciplinas e do currículo é psicodélico. Põe Weber, tira Weber; marxistas estruturalistas enfrentam marxistas historicistas; põe Dürkheim, tira Dürkheim; põe Poulantzas, põe Merton, tira Parsons, tira Althusser etc. É preciso ler os clássicos! pontificava um professor branco, de classe média, que nunca subiu uma favela. As leituras estavam dominadas por autores franceses, alemães e americanos. Poucos brasileiros, nenhum do Terceiro Mundo. O conteúdo das matérias era discutido independentemente do destino ocupacional dos alunos. O mercado de trabalho exige conhecimentos — alguns simples, como dominar uma planilha — que as estudantes desconheciam, e não emprega alguém que sabe discorrer sobre a obra de Simmel e nada mais.

Esses professores são os sérios, que ensinam, estudam, dão aulas. Há os que nem isso fazem, origem de cenas deprimentes: corredores cheios porque os professores faltaram, aulas não preparadas, cursos com décadas de atraso. Há vários anos, um professor de economia faltava três aulas cada vez que dava uma prova. Outro levou quatro anos em licença com vencimentos, pagos pelos cofres estaduais, para escrever uma tese que nunca terminou (e continua lá, sem dar explicações); um dos salários mais altos da universidade há anos não aparece. E, ironia, nem todos são conservadores: alguns militam em partidos de esquerda. Há estudos, em países diferentes, que esclarecem as relações entre a família, a escola e o conhecimento dos alunos e alunas. A importância do ensino formal é maior quando o nível educacional da família é baixo e/ou quando há pouca interação entre pais e filhos, mas a importância da família decresce com a idade: forte no primário, menos depois. H.S., P.A. e D.E. cresceram em famílias dirigidas por mães solteiras ou descasadas, de baixo nível educacional. Os reacionários culpam a “desagregação da família pobre, particularmente da família negra”, por todas as deficiências educacionais dessas jovens negras. Erro crasso: as mães dessas negras apoiaram ao limite as ambições educacionais das filhas, por momentos privando-se da contribuição financeira delas para o reduzido orçamento familiar; algumas trabalharam dois turnos, tudo para que as filhas pudessem “fazer” a universidade. Deram tudo, menos o que não tinham: o conhecimento. Suas filhas se beneficiariam muito com um ensino público de qualidade. Não obstante, o dedo acusador só aponta para a família pobre, particularmente a negra. P.A. afirma: “Muitos acham que basta ser negro e de mãe solteira para ser criminoso. Eu e meus irmãos não conhecemos nosso pai, somos negros e pobres, e nenhum esteve nem sequer perto do crime. Todos terminamos o secundário e dois chegaram à universidade. As escolas e as universidades é que não nos ensinaram nada”. O caminho mais comum é que, reprovadas nos vestibulares, terminem numa universidade caça-níquel. A família conta muito, mas, prejulgar sem dados a família de todas as estudantes pobres e negras, exculpando a universidade branca e de classe média, mostra o lado racista do corporativismo universitário. Essas jovens são cavadoras, trabalhadoras que lutam pela educação. Nada lhes chegou fácil. Hoje, formadas, se dão conta de que as exigências do mercado de trabalho não são satisfeitas pela formação pseudoerudita que as universidades lhes deram. Enquanto elas trabalhavam de dia e estudavam à noite, ou vice-versa, os professores, teóricos, brancos, com a subsistência assegurada, continuavam discutindo se punham mais Weber ou tiravam Dürkheim, sem se preocupar com as exigências que as alunas negras e pobres teriam que preencher para poder trabalhar. Muitas H.S., P.A. e D.E., ingênuas e cheias de esperança, ingressam todos os anos nas universidades sem saber que estão condenadas a entrar para a categoria de negras, formadas e sem futuro.

A maquiagem da Copa » ISAAC ROITMAN Professor emérito da Universidade de Brasília e membro titular da Academia Brasileira de Ciências

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mão. Quero dinheiro pra saúde e educação”. O clamor popular justifica uma reflexão profunda sobre as prioridades de investimentos governamentais. Os gastos com a Copa do Mundo serão da ordem de R$ 28 bilhões. Segundo Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito da Educação, tomando-se o estudo do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) como referência, com R$ 25,3 bilhões daria para construir unidades escolares para todos os 3,7 milhões de brasileiros de quatro a 17 anos que estão fora da escola. O descaso com a educação pode ser ilustrado pelo Plano Nacional de Educação, que tramita há mais de três anos no Congresso Nacional. A inflexão na educação é necessária e prioritária. Se continuarmos nessa política de avestruz, como alertava Paulo Freire, o educando continuará a receber passivamente os conhecimentos depositados pelo educador. Dessa forma, os nossos estudantes não serão formados como cidadãos pensantes, críticos, capazes de lutar por seus direitos, emancipando-se. Ao contrário. Serão alienados, facilmente manipulados à frente da televisão, assistindo a espetáculos tais como jogos de futebol, novelas, programas de entretenimento que reproduzem uma realidade fictícia, de tal forma que não se preocupa com os graves problemas sociais do cotidiano. Atualmente, presenciamos uma era de produção acelerada de conhecimento e não é suficiente o estudante acumular informações. Eles precisam ter a habilidade de utilizá-las por meio de simulações que vão aprimorar o seu senso crítico.

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iquei surpreso com a quantidade de imagens ao clicar no Google o título deste artigo. As cores da Bandeira Nacional são usadas em diferentes combinações, revelando a criatividade dos esteticistas colorindo diferentes partes do corpo. O verde e o amarelo estarão, certamente, não só nos rostos e cabelos mas também nas roupas, bandeiras, bolas e em outros adereços. Sob os olhares vigilantes da Fifa, os responsáveis pela organização da Copa correm contra o tempo. Não poderia ser de outra forma. O brasileiro deixa tudo para a última hora e, na correria, não tem tempo de pensar nas prioridades. As autoridades responsáveis pela segurança, em verdadeiro clima de guerra e de alta tecnologia, anunciam que robôs antibombas serão usados nas cidades sedes da Copa do Mundo e que medidas preventivas estão sendo implantadas para neutralizar possíveis ataques cibernéticos. O investimento na segurança chega a R$ 1,9 bilhão, dos quais três quartos para a compra de equipamento e o restante para o custeio do sistema. É inegável que em junho e julho, o Brasil se tornará uma vitrine para o mundo ao sediar a Copa do Mundo. No entanto, é importante que, na ressaca da Copa, a partir de agosto, o país sem maquiagem vai novamente se defrontar com nossa desigualdade social, nosso precário atendimento na saúde, nossa educação vergonhosa e nossa frágil segurança. Nas manifestações de junho de 2013, um dos gritos mais ouvidos foi: “Copa do Mundo, eu abro

Para isso, precisamos formar o “novo professor”, bem formado e valorizado, e que possa promover uma sensação de prazer no cotidiano escolar. O Brasil precisa fazer um mutirão pela educação. O nosso grande desafio é a “Copa da Educação”, sem maquiagem e pensando no futuro. Vamos valorizar o professor com a federalização do ensino básico. Vamos excluir do currículo escolar o que Darcy Ribeiro chamou de“conhecimento inútil”.Vamos usar a criatividade de nossos arquitetos, construindo ambientes agradáveis e lúdicos para os estudantes. Vamos usar com inteligência as novas tecnologias, visando a avanços na aprendizagem. Vamos envolver a família na educação escolar. Vamos criar espaços culturais para complementar a educação informal. Vamos revisar e simplificar os marcos regulatórios para uma gestão eficiente. Vamos substituir a avaliação quantitativa maquiadora de nosso sistema educacional por uma avaliação qualitativa. Vamos torcer pelo Brasil na Copa do Mundo e vamos também torcer para que possamos comemorar, finalmente, a conquista da qualidade da educação básica para todos os brasileiros. É pertinente lembrar o grande valor tesouro que representa a educação na famosa frase do Padre Antônio Vieira: “A boa educação é moeda de ouro, em toda parte tem valor”. Se ele estivesse entre nós, certamente seria valoroso torcedor verde e amarelo pela qualidade de nossa educação.

Em defesa de um Brasil mais humano » VANESSA GRAZZIOTIN Procuradora da mulher do Senado e senadora pelo PCdoB do Amazonas

Brasil registra uma onda de crimes que indica a escalada da violência gratuita, com linchamentos e espancamentos coletivos, como se o país vivesse a era medieval. É preciso reforçar a defesa dos direitos humanos na sociedade e em todas as instituições. A cada dia, torna-se mais urgente a necessidade de garantir ações conjuntas e concretas no Executivo, no Legislativo e no Judiciário para que se construa um país mais justo, humano e menos bruto. No mês dedicado à celebração do Dia das Mães, mulheres foram protagonistas de tragédias. No início de maio, a vítima foi a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, no Guarujá, litoral paulista. Mulher, mãe de duas meninas, ela foi espancada e morta, depois de confundida com suposta sequestradora de crianças a serem usadas em rituais de magia negra. Em 12 de maio, veio a público a história da manicure Ane Kely Santos, 26 anos, morta por ter furtado um pacote de bolachas em São Paulo. Três suspeitos foram presos. A polícia não revelou os detalhes, mas uma denúncia anônima levou a um vídeo em que a mulher aparece sendo brutalmente torturada. Conforme levantamento divulgado pela imprensa, já ocorreram 36 casos semelhantes ao de Fabiane em 2014. Do total, 19 resultaram na morte da vítima — um caso a cada oito dias. Entre 1980 e 2006, foram registrados 1.179 casos de linchamento no Brasil, segundo o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). No estado recordista de casos, São Paulo, os principais motivos de linchamento foram roubo/sequestro, homicídio e estupro e atentado violento ao pudor envolvendo crianças. Infelizmente, não há estatísticas nacionais mais recentes. Há dois meses, a auxiliar de serviços gerais Cláudia Silva Ferreira, 38 anos, foi baleada em uma favela da Zona Norte da capital fluminense. Ao ser socorrida por policiais militares, foi colocada no porta-malas da viatura, que se abriu durante o deslocamento até o Hospital Carlos Chagas. No trajeto, Cláudia foi arrastada por cerca de 350m, o que causou mais ferimentos a ela. A jovem chegou morta ao hospital. Segundo parentes, sua perna direita estava em carne viva. Seis policiais militares foram indiciados em inquérito aberto na 29ª Delegacia de Polícia (Madureira). Como procuradora da Mulher do Senado, tenho a obrigação de chamar a atenção para essa realidade. Essas histórias recentes são apenas alguns exemplos de que as mulheres são cada vez mais o alvo do descaso e de todas as formas de violência que ganham força na sociedade. É muito mais difícil registrar casos brutais como esses, tendo como vítimas homens. Nesse aspecto, as mulheres são mais frágeis até mesmo pela estrutura física. Em outra frente, grande preocupação da Procuradoria Especial da Mulher do Senado são os nomes e rostos que permanecem anônimos. Diariamente, milhares de mulheres são agredidas física e psicologicamente, mas não denunciam os algozes por vergonha ou medo. O Amazonas, por exemplo, estado brasileiro que represento, foi onde menos se denunciou violência contra as mulheres pelo Disque 180 em 2013: 2.463 registros. Em contrapartida, o Distrito Federal é o lugar onde mais se denuncia: 15.665 registros. Os dados são da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República Diante desse cenário com desafios enormes, a Procuradoria da Mulher foi criada no Senado, em 2013, com a missão de zelar pela defesa dos direitos da mulher. É mais um canal de valorização das mulheres na sociedade, de recebimento de denúncias e de elaboração de propostas que melhorem as condições de vida dessa camada social tão importante. Uma das nossas grandes metas agora é expandir esse trabalho para as assembleias legislativas e câmaras de vereadores de todo país. A ideia é impulsionar ações que garantam mudanças em médio e em longo prazo. Todas as instituições, portanto, devem se envolver nessa tarefa de transformar o Brasil num ambiente mais justo, humano e menos bruto.

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