Negro em Preto e Branco - História Fotográfica da População Negra em Porto Alegre

May 24, 2017 | Autor: E. Santiago Joaquim | Categoria: Historia, Negritude, Porto Alegre
Share Embed


Descrição do Produto

Irene Santos ORGANIZAÇÃO

NEGRO em Preto e Branco História Fotográfica da População Negra de Porto Alegre

2005

© 2005 - Irene Santos Todas as imagens e os textos foram gentilmente cedidos para esta obra e só podem ser reproduzidos, total ou parcialmente, com a autorização expressa da autora, conforme a legislação vigente.

Coordenação editorial, projeto gráfico, diagramação

Irene Santos

Textos e entrevistas

Vera Daisy Barcellos Silvia Abreu Pesquisa histórica

Elenir Gularte Marques Revisão

Oliveira Silveira Consultoria de Artes Gráficas

Zoravia Bettiol

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Negro em Preto e Branco: história fotográfica da população negra de Porto Alegre/ Irene Santos (org.) Porto Alegre:Do Autor, 2005 184p.:il ISBN 85.905353.1.2 1.Fotografia histórica. 2.Fotografia em preto e branco 3. População Negra. 4.Porto Alegre: 1850 - 1980 I.Santos,Irene. II.Titulo. CDU 77.065(=414) (816.51) CDD 779.96.816.5 Bibliotecária Responsável: Sabrina Clavé Eufrásio - CRB10/1670

DISTRIBUIÇÃO

Irene Santos

Rua Vasco da Gama, 187 - Bom Fim - CEP 90420-111 Porto Alegre/RS 051.3533.2781 [email protected]/ www.irenesantos.fot.br

FINANCIAMENTO

Irene Santos ORGANIZAÇÃO

NEGRO em Preto e Branco História Fotográfica da População Negra de Porto Alegre

2005

Texto para uma foto Oliveira Silveira

O açúcar, o algodão dos cabelos Montanha com túneis de mina. O eito, as vergas e leivas da testa. O charque do tempo no rosto. Que céu nublado se reflete nas duas cacimbas dessa terra seca? E que profundezas afloram a esses dois olhos-d’água?

Irene Santos/1979

Dedicatórias

Para Fabia e Otelo Santos e para todos os negros e negras que já concluiram sua luta por afirmação e reconhecimento

Para Ricardo Costa e Juliano Barcellos Costa e para os negros e negras de todas as cores e etnias, que enfrentam desafios diários para manter sua dignidade e cidadania

Irene Santos

Para Mariana Abreu Marmontel e para todos os negros e negras que ainda estão aprendendo a enfrentar as lutas diárias e os desafios futuros

Silvia Abreu

Agradecimentos A todos que, acreditando no projeto deste livro, dedicaram generosamente o seu tempo, compartilharam seu conhecimento ou cederam para publicação, a memória de suas famílias, gravada em fotografias Adão Alves de Oliveira (Seu Lelé) Alceu Collares Aldino Paixão Flores Alpheu Cachapuz Battista Jr Altair Garcia Fogo Amara Lopes da Rosa Antônio Carlos Côrtes Antônio Carlos Santos Rosa Berenice Silva e Silva Carmem Amora Carlos Alberto Brito (Biá) Claudinho Pereira Deise Nunes Dirney Alves Ribeiro Dirnei Prates Éder Luis Farias Edilson Nabarro Eloy Dias dos Angelos Érico da Rosa Machado (Érico do Ogum) Elenir Gularte Marques Elza Ferreira Alves Eni Neves Família de Everaldo Marques da Silva Família de Jacob Prudêncio Herrmann Família de Julio Ferreira Família de Pedro Homero Gelson Oliveira Giba Giba Guarani Santos Iara Neves Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Jr Isete Maria do Nascimento Irma Nascimento Irmã Élida de Bastiano Irmã Zuleima Maria Perondi Ivone Fontes Joaquim Lucena Neto João Augusto Santos Silva (Caco) Jones Lopes da Silva Jorge Alberto da Silva Nascimento José Laurindo Lopes

José Tarcisio de Souza Júlio José Nunes Loma Berenice Gomes Pereira Lourdes Rodrigues Lidia Garcia Varella Lucia Helena Lúcia Regina Brito Pereira Luis Flávio Nascimento Manoel Fernando Rosa e Silva Maria Conceição Lopes Fontoura Maria da Graça Magliani Maria de Lourdes da Luz Maria Guedes Maria Isabel Ribeiro da Silva Maria Lidia Magliani Maria Helena Andrade Maria Helena Montier Maria Luísa Pereira de Oliveira Maria Noelci Teixeira Homero Marilene Leal Paré Nádia Andrade Freitas Najara Santos Silva Neura Santos da Silva Nilo Alberto Feijó Odyla Junqueira Oliveira Silveira Olivia Pereira Osvaldo Ferreira dos Reis Paulo Chimendes Paulo Paim Paulo Ricardo de Moraes Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva Renato Costa Renato Rosa Rui Barbosa Sabrina Clavé Eufrásio Sandra Maria da Rosa Sirmar Antunes Tamara Quiroga Brum Maria Regina Borges Pinto (Tia Regina) Vera Neuza Lopes Vera Lucia Lopes Waldemar Pernambuco Moura Lima Wilson Pereira (Turquinho) Zilah Machado Zoravia Bettiol FUMPROARTE Memorial do Rio Grande do Sul/ Arquivo Histórico Museu Joaquim José Felizardo/ Fototeca Sioma Breitman

16 - NEGRO em Preto e Branco

OLHOS DE

Acervo Renato Costa

OS

ANASTÁCIA

Anastácia viveu escravizada na Bahia na primeira metade do século 19. Inconformada, lutou como pôde contra sua situação. Aos seus irmãos negros, também escravizados, falava sempre, estimulando-os a lutar contra a humilhação e a injustiça. Deve ter sido uma oradora brilhante pois seu discurso incomodou tanto seus algozes que a decidiram calar à força. Colocaram-lhe uma mordaça de folha-de-flandres e uma coleira de ferro, tão pesada, que dificultava, até, seus movimentos. Não adiantou. Anastácia continuou a transmitir sua revolta e a exortar à luta pela liberdade e pela dignidade, através da força do seu olhar. Não existem fotos de Anastácia. A fotografia só seria inventada por volta de 1840, tempos após sua morte. As fotografias de negros, escravos, libertos ou nascidos livres só começaram a aparecer na segunda metade do século 19. Em Porto Alegre, o primeiro estúdio fotográfico foi inaugurado pelo imigrante italiano Luiz Terragno em 1853. Ficava na esquina da Rua da Alegria [General Vitorino] com a Rua do Rosário [Vigário José Inácio]. No século 19, os negros eram exóticos para o olhar dos europeus. Por isso, fotografados nas ruas ou mesmo em estúdio, tinham suas imagens copiadas sobre papel, exportadas e vendidas como curiosidades no Exterior. Homens-objeto, modelos ingênuos que não posavam, deixavam à mostra seu pensamento, seu sentimento. O observador cuidadoso, veria no fundo de seu olhar, eterna, a chama dos olhos de Anastácia. Tempos depois do 14 de Maio , muitos negros estavam tão bem de vida que já podiam ir aos estúdios encomendar suas próprias fotos. No início do século 20, era de bom-tom ofertar aos amigos fotografias de momentos importantes. Iam famílias inteiras, casais que noivavam, meninas de vestido novo; tudo era motivo para uma boa foto. A comunicação se estabelecia com o olhar de quem olhava a foto, pelos olhos dos modelos. Seria o olhar altivo, direto, fitando a lente do fotógrafo, uma atualização do olhar de Anastácia? O objetivo desta obra é revelar o amor-próprio e a alegria da identificação com a etnia negra, que se revela nos olhares preservados nas fotografias de nossas familias porto-alegrenses. Auto-retrato

Irene Santos

Fotógrafa. Licenciada em História/ UFRGS. Microempresária. Trabalha nas áreas de fotografia , programação visual, design gráfico, web design.

18 - NEGRO em Preto e Branco

Índice Os Olhos de Anastácia - Irene Santos

.........................................................

18

Prefácio - Marilene Leal Paré .................................................................... 20 A Casa de minha Mãe - Vera Daisy Barcellos .................................... 22 Os Primeiros TTempos empos - Guarani Santos ............................................. 24 Ter ritórios Negros - Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Jr ......................... 36 erritórios Galinha com farofa, vinho sabiá e muita dança ............................... 50 Um dia Luanda foi aqui ................................................................... 54

Trabalho de Negro - Antonio Carlos Santos Rosa ............................... 58 Julinho Alfaiate .................................................................................. 66 As Caras Pretas - Antônio Carlos Côrtes ............................................. 68 Educação dos Negros e das Negras - Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva ........................................................................................................... 72 Com as bênçãos e a guarda de São Benedito ................................. 75 Doutor Veridiano Farias vence a intolerância racial .......................... 79 Cobrando a Dívida - Edilson Nabarro ................................................ Carlos Santos .................................................................................... Alceu de Deus ................................................................................. Paulo Paim ........................................................................................

81 82 84 85

Cabelo Bom - Isete Maria do Nascimento ............................................ 86 Pentes, tesouras e chapinha .............................................................. 92 A Bela Olívia ..................................................................................... 96 Beleza Pura ....................................................................................... 97

A Canela Preta - Jones Lopes da Silva

................................................................. 99

Futebol de Salão: Flávio ainda é o melhor “frente” ........................ 103 O homem das corridas de rua ........................................................................104 Atletismo ................................................................................................................. 106

Cor rentes da Fé - Osvaldo Ferreira dos Reis .................................... 108 Correntes Origens do Batuque - Norton Figueiredo Corrêa ......................... 111 Palavra de Negro - Oliveira Silveira ................................................... 114 Como Negro - Paulo Ricardo de Moraes ........................................ 121 Teatro e Carnaval - Waldemar Pernambuco Moura Lima ................... 122 Recordar é viver - Nilo Alberto Feijó ................................................. 124 Seu Pretinho, o Moleque Tião ......................................................... 137 O Enredo do Nosso Samba - Claudinho Pereira ......................... 138 Chama que não se apaga - Joaquim Lucena Neto ....................... 142 Seu Lelé e as histórias de um rei negro .......................................... 149 Carlos Alberto Barcellos, o Roxo .................................................... 151 Cantando prá subir - Silvia Abreu ..................................................... 152 Ar te em Preto e Branco? - Renato Rosa ........................................ 166 Arte Pedro Homero: a arte regida pelos Orixás ................................... 171 Com os pés na cozinha - Jorge Nascimento

172 Cardápio Afro-gaúcho .................................................................. 174 ..........................................

Negro de Alma Preta - Maria Conceição Lopes Fontoura

....................

176

Fontes Consultadas .......................................................................... 180 Índice - 19

20 - NEGRO em Preto e Branco

PREFÁCIO Marilene Leal Paré

Peço licença aos mais velhos, aos antepassados africanos e afro-descendentes, para abrir as páginas dos nossos retratos de orgulho de sermos negros nesta terra chamada Brasil! Através das fotografias,minha amiga artista Irene Santos, abre o álbum de recordações dos momentos belos e felizes dos afro-gaúchos, mescladas com textos brilhantes de estudiosos dos Movimentos Negros do Estado do Rio Grande do Sul. São os encontros, as comemorações, as festas familiares, os aniversários, as viagens, as formaturas, as crenças,... o Carnaval! A beleza e elegância, as alegrias, as famílias negras sempre as mostraram, às vezes fotografando e muitas vezes sendo fotografadas, apesar do preconceito racial existente em nosso meio que procura esconder a verdadeira cor da cara deste país! A metodologia comportamental skinneriana de reforço negativo à nossa auto imagem foi e continua sendo, maquiavelicamente, empregada pela sociedade brasileira.

“Há um racismo histórico implícito nas relações em nosso país expressando, nas mais diversas formas, uma pretensa superioridade branca e uma inferioridade negra [. . .] A afirmação do mundo branco pela dominação do povo negro trouxe consigo a depreciação estética, a igreja a dizer que preto não tinha alma, o desmerecimento da cor da pele e dos traços físicos dos escravos e das suas manifestações culturais e artísticas. Embora as bases científicas do racismo fossem frágeis no âmbito acadêmico, ele foi capaz de se afirmar como ideologia” (PARÉ, 2000, p. 94). Nossa mente de negro brasileiro é condicionada a uma “feiúra física” a qual não pode aparecer nas imagens públicas quaisquer que sejam. Esse reforço condiciona trabalhando ora “suavemente”, como na expressão “negro de alma branca”, ora com agressão direta, como em “seu negro macaco”. Imagine sendo introjetados na psique da pessoa negra, desde a tenra idade e por toda a sua vida, diariamente, elementos condicionantes de baixa auto-estima, inibitórios e, conseqüentemente, marginalizantes.

Cooley (1912)diz que o autoconceito pessoal é influenciado de maneira significativa pelo que o indivíduo crê que os outros pensam dele. O autor descreve a formação da auto-estima com base na interpretação da realidade física e social por parte do indivíduo. No livro Tornar-se Negro , da Dra. Neusa Santos, há a afirmação de que

“[. . .] o negro brasileiro sofre uma violência racista exercida pela tendência a destruir a identidade do sujeito negro. Este através da internalização compulsória e brutal de um Ideal de Ego branco, é obrigado a formular para si um projeto identificatório incompatível com as propriedades biológicas de seu corpo. Entre o EGO e seu IDEAL cria-se, então, um fosso que o sujeito negro tenta transpor às custas de sua possibilidade de felicidade, quando não de seu equilíbrio psíquico” (SOUZA, 1983, p.03). A auto-estima depende da qualidade das relações existentes entre a criança e os que desempenham papéis importantes em sua vida. Embora haja valorização da criança na família negra, ela se defronta com uma batalha de autovalorização interna proveniente das relações adversas que encontra fora dela. A família negra brasileira constitui-se provedora de afeto, principalmente na presença da figura feminina da mãe que protege, como observamos no texto sensível de Vera Daisy Barcellos; é ela que vem dando sustentabilidade emocional à comunidade afro-descendente. De nossas infâncias negras comuns na dor da pobreza material, a riqueza do afeto das mulheres mães-avós-negras guerreiras a abarcarem os filhos(as) de todos(as)...herança africana... Salve Irene, que tal qual Mamãe OXUM, generosa, nos presenteia com esta obra, resgatando e publicando o quanto nós nos gostamos, mostrando nosso valor e amor próprios, ainda tão invisíveis para a comunidade brasileira em geral, contribuindo, assim, no reforço positivo à auto-estima da população negra de Porto Alegre!

Irene Santos

Marilene Leal Paré

Pedagoga com Habilitação em Orientação Educacional pela UFRGS. Especialista em Aconselhamento Psico-Pedagógico pela UFRGS. Mestre em Educação pela PUC/RS. Orientadora Educacional no Colégio de Aplicação da UFRGS.Coordenadora do Programa de Educação Anti-Racista junto à pró-Reitoria de Extensão da UFRGS.

Prefácio - 21

22 - NEGRO em Preto e Branco

A CASA DE MINHA MÃE Vera Daisy Barcellos

A idéia deste texto nasceu numa roda de conversa informal. Ali estávamos a fotógrafa Irene Santos, a jornalista Silvia Abreu e eu. Na ocasião, uma tarde fria de agosto, entre xícaras de chá quente partilhadas, definíamos alguns passos para incrementar o projeto deste livro. Falávamos das nossas características e do nosso comportamento como mulheres negras, homens negros, enfim da cara, do estilo e do comportamento da família negra sempre tão ausente e invisível nas publicações de nossas leituras. Somos diferentes! Dizíamos e enfatizávamos em uníssono. E naquela sala, com rabos de gatos se enroscando em nossas pernas, falávamos alto e gesticulávamos muito, como se a nós ouvir, ali estivesse uma imensa platéia. Éramos apenas três. Nossas vozes ressoavam através das paredes no silêncio da noite que se fazia num bairro de classe média, reduto de moradores judeus, mas que antigamente levava o nome de Colônia Africana. Que ironia... No fluir da conversa, meditávamos. Ponderávamos sobre essa incrível resistência e sobre essa capacidade de superação por tudo que a população negra havia passado. Indagávamos: - Que poderosa força é essa que nos mantém desde a brusca arrancada do solo africano, da travessia mórbida nos navios tumbeiros, da perda de identidade, da baixa-estima, da violência dos anos de escravidão e o ficar à margem da sociedade brasileira num pós 13 de maio até os dias de hoje? A história aflorava aos borbotões e a vivência de cada uma também. E resolvemos traçar nosso auto-retrato e escrever, cada uma a sua maneira, os nossos sentimentos e as características de um povo diferente, especial, guerreiro e, fundamentalmente, inteligente para superar todos os reveses. E, logo, nascia da percepção das risadas, das gargalhadas e das falas altas misturadas, a lembrança das cantorias dos nossos familiares. Na explosão de idéias, a constatação de que não somos adeptos do silêncio em nossas casas e nos demais lugares que circulamos. Os encontros festivos nas ruas são acompanhados de amplos gestos de afeto, batidas nas costas, passos de dança e chamadas de nomes num tom de voz acrescido de alguns decibéis. Esta é a nossa marca. A nossa essência negra. Nada é feito com discrição como se fosse uma resposta ao longo silêncio a nós imposto. Somos abertos, sonoros, gritões e solidários.

A palavra solidariedade me remete à minha origem-matriz, ao meu passado. Me transporta à casa de minha mãe localizada numa “avenida”, assim chamados na época os espaços que os donos dos terrenos dividiam para alugar. Ali, uma mínima infraestrutura ou quase nada. A casa de minha mãe ficava no Bairro Cidade Baixa, mais especificamente na Rua Joaquim Nabuco. Era a última de uma fila de casas, uma ao lado da outra. Eu era criança. Não morava com a minha mãe. De tempo em tempo me levavam para visitá-la. Mas me lembro bem daquela casa pequena e apertada que zombava da lei da física por sua inclinação indevida. O quarto, a sala, e um arremedo de cozinha. Uma “meia aba”, assim diziam. No pequeno espaço do pátio, uma fileira de vasos de argila e latas de banha de côco com espadas de São Jorge, arrudas, dálias vermelhas cor de sangue e amarelas, e copos de leite, suas flores favoritas. No ar, o cheiro das ervas pulverizado. E naquele espaço, além dos meus irmãos e irmãs, minha mãe acolhia os filhos dos outros, afilhados, sobrinhos, enfim uma multidão para os meus olhos infantis. Criei-me vendo aquela casa sempre cheia. “Onde comem cinco, come mais um”, dizia, com sabedoria, minha mãe sempre disposta a partilhar sua mesa tosca coberta por uma toalha essencialmente branca, engomada e passada com pesado ferro à carvão. A humilde casa de minha mãe, que pela solidariedade ampliava suas paredes, tinha constante mesa farta. Adepta do ditado “de quem convida dá banquete”, os aniversários eram regados à grande quantidade de comida. Cozinheira de mão cheia e doceira, a “velha” Eva se empenhava. “Pode sobrar, mas comida não pode faltar”. Uma tirada, fruto do inconsciente coletivo, para superar os tempos de apenas sobras e pouca comida nas senzalas da casa grande. Dessa forma, múltiplos pratos se expandiam pela mesa e as sobremesas marcadamente divinas, do pudim de leite ao sagú com creme, complementado com o bolo com merengue e confeitos de prata. Bom tempo aquele de saborosas lembranças... que me conduzem às várias casas por onde minha mãe se fixou nos diferentes bairros da Cidade. Mas será esta que descrevo a mais marcante de toda a minha infância. Ainda vejo minha mãe me esperando, no abraço dado apertado, com cheiro de sabonete lavanda, naquela porta sempre aberta a todos, sinônimo de aconchego recheado com odor de bolo de milho recém-feito sob o fogo baixo do fogareiro Primo. Que Deus a tenha, minha mãe! Arquivo Particular

Vera Daisy Barcellos Jornalista, empresária,militante do Movimento Negro. Atua no Núcleo de Comunicadores Afro-brasileiros do Sindicato dos Jornalistas Profissionais/RS. Assessora de Imprensa de Maria Mulher - Organização de Mulheres Negras. Foi editora de projetos especiais do jornal A Voz da Serra, de Erechim. Foi repórter da editoria de Esportes e de Carnaval de Zero Hora por 16 anos. Fundadora da revista Tição no final dos anos 70. Recebeu o Prêmio ARI de Jornalismo em 1998. Carnavalesca atuante na Academia de Samba Praiana.

A casa de minha Mãe - 23

Ruge

OS

PRIMEIROS TEMPOS

Guarani Santos

A diáspora negra, o maior crime continuado da história da humanidade. Seguramente foi o mais terrível, jamais acontecido em todos os tempos. A mãe África, mãe de todos os homens e de todas as raças, teve seus filhos negros jogados para fora do seu ventre. Até hoje é complicado explicar a origem territorial de nossos antepassados; no caso brasileiro, após a Proclamação da República, em 1889, o ministro Rui Barbosa mandou incinerar todos os documentos oficiais relativos à importação, venda e compra de escravos. Literalmente o ministro queimou o passado de todos os afro-descendentes.

ndas

Rugendas

Entretanto, se a presença branca no Rio Grande do Sul está fartamente documentada, a presença negra aparece nos documentos de forma subalterna e ocasional. Utilizada esta documentação oficial, sabe-se que a presença negra no RS começou com a expedição vinda de Laguna (SC ), comandada por João de Magalhães.

Aquarela de Hermann Rudolf Wendroth / Acervo Memorial do Rio Grande do Sul

V.Calegari/M.J.J.Felizardo/Fot.S.Breitman

Vista total de Porto Alegre em 1852

Foram trinta e um expedicionários e destes, vinte e quatro eram negros escravos. Essa expedição era de reconhecimento, pois o governo português projetava fundar uma base militar. Em 1737 fundou o Forte Jesus Maria e José que daria origem à cidade de Rio Grande. Portugal ocupava militarmente estas terras. Negros libertos pertencentes à tropa, escravos e escravas, também estavam no início da história do RS.

Acervo Zilah Machado

Porto Alegre inicia sua vida com a vinda dos casais açorianos, ocupando partes da beira do Guaíba. Não era para ficarem ali, mas problemas político-militares no interior do RS determinaram sua fixação neste sítio. Este fato determinou que a governança organizasse o vilarejo. Com a vinda dos agentes do governo também vieram os escravos. A partir de 1772 não há registros históricos documentais do número de escravos e seus nomes. Seguramente todo o trabalho era feito por eles. O calvário urbano em Porto Alegre começaria e também a resistência contra a opressão escravista, por meio de constantes fugas de escravos formando os primeiros QUILOMBOS da cidade. Vejam a Ata da Câmara de Porto Alegre em 31/03/1798:

1896 - Mulher com sombrinha

“Nesta vereança se proveu a Estácio Dutra para capitão de mato do distrito da freguesia desta vila e se passou edital sobre as rondas que o mesmo devia fazer de noite”.

Os primeiros tempos - 25

26 -NEGRO em Preto e Branco

Mais adiante outra Ata da Câmara de 18/04/1798: “Nesta vereança se deferiu a vários requerimentos, e se mandou fazer hua marca F para marcar os escravos apanhados em quilombos, e assim mais um tronco para o capitão de mato segurar os escravos que forem apanhados em quilombos para neles se fazer a execução que a lei determina antes de entrar na cadeia” O primeiro jornal gaúcho foi o Diário de Porto Alegre, editado de 1º de junho de 1827 até 30 de junho de 1828. Esta coletânea de alguns anúncios, todos de 1827 (e conservando a grafia da época), nos dá uma visão sobre a condição negra : - Uma escrava de nome Francisca de nação rebola, idade de 25 anos, estatura ordinária, beiços grossos e um sinal na testa como um círculo de um vintém, fugiu em março. Quem a trouxer dirija-se a rua do Cotovelo (atual Riachuelo) n º 70, que ganhará boas alvíssaras. - Vende-se uma escrava parda, cozinheira, costureira, engomadeira e rapariga. Quem a quiser comprar procure na rua da Igreja nº 25, à direita, na esquina dos Pecados Mortais (trecho da atual Bento Martins). - Quem quiser comprar uma molequinha nova (escrava-criança) cozinha o ordinário. Quem pretender comprar dirija-se a rua do Arvoredo a casa nº 13 e ali achará com quem tratar. - Quem tiver uma ama-de-leite que seja sadia e saiba tratar crianças e queira alugar, anuncie a sua moradia para ser procurado. - Quem quiser comprar hum escravo marinheiro dirija-se a rua do Cotovelo (atual Riachuelo), casa n0 70, ali achará com quem tratar. Anúncios semelhantes eram comuns até 1884, quando no RS terminou a escravidão formal.

Desenhos de Rugendas

Hugo de Biasi / Memorial RS

Engel Jr / Memorial do RS

Quiosque na Praça XV no final do século 19

Praça XV de Novembro em 1888

A palavra Redenção tem sua origem do latim redemptio, que significa libertação. Daí explica-se o nome Parque da Redenção. A palavra fotografia é oriunda do grego: photo, que tem como significado luz e graphein, que significa gravar. Portanto este trabalho é de extrema importância, pois, trás uma luz que grava de maneira inédita nossa presença em Porto Alegre.

Irene Santos

Guarani Santos Professor e Historiador LIVROS PUBLICADOS: - A violência branca sobre o Negro no RGS - A Epopéia do Quilombo dos Palmares, 1987 - O Negro e a Constituinte, 1986 - O quê ler sobre o Negro no RS, 1984

Os primeiros tempos - 27

28 - NEGRO em Preto e Branco Lunara /Acervo Museu JJosé Felizardo - Fototeca Sioma Breitman

1752 - chegada dos primeiros casais açorianos que iniciaram o povoamento oficial da gleba que daria origem à cidade de Porto Alegre.

1772 - fundação em 26 de março da Vila de Porto Alegre.

1773 - a Vila de Porto Alegre é elevada à condição de Capital do Continente em 25 de julho.

Libertos no final do século 19 em Porto Alegre

Durante 300 anos de tráfico, foram trazidos para o Brasil cerca de 4 milhões de indivíduos negros escravizados. A maior parte pertencia à etnia banto e era proveniente da Costa de Angola e de Moçambique, da Guiné e do Congo.

H.R.Wendroth/ Memorial do RS

1822 - em 14 de novembro a Vila ganha a denominação de Cidade de Porto Alegre.

1852 - Igreja Matriz e Palácio do Governo com procissão

Mapa reproduzido do livro : A Fundação de Porto Alegre / Clóvis Silveira de Oliveira

Engel Jr / Memorial do RS

Museu J.J.Felizardo/ Fototeca Sioma Breitman

Rua de Bragança (Marechal Floriano)

Rua da Ladeira, atual Gen.Câmara, no final do século 19

Antigo Caminho Novo (Voluntários da Pátria)

Os primeiros tempos -29

30 - NEGRO em Preto e Branco Memorial do RS

Vista da Cidade Baixa

Durante a administração de José Marcelino de Figueiredo a cidade foi dotada de fortificações que a preservassem de investidas armadas. A entrada para a povoação foi fixada num só ponto sendo praticada por um portão. Dito portão ficava na atual praça Conde de Porto Alegre, por muito tempo chamada de Praça doPortão. (FORTINI,1962) 1826 - Inauguração da Santa Casa de Misericórdia.

no século 19

Porto Alegre-Biografia de uma cidade

Aguadeiro no final do século 19 Affonso Amoretty / Memorial do RS

Praça do Portão em foto reproduzida do livro: Porto Alegre-Biografia

de uma cidade

Homem com menina - 1868

Memorial do RS

Solar da família de Bento Gonçalves em Camaquã

Hugo de Biasi / Memorial do RS

1835 - Em 20 de setembro um enfrentamento entre tropas governistas e rebeldes gaúchos, nas proximidades da ponte da Azenha, iniciou a Revolta Farroupilha. A cidade era constantemente sitiada e os farrapos procuraram isolá-la ao máximo. 1841 - A resistência aos vários cercos que sofreu no período da Revolta dos Farrapos valeu à cidade o título, dado pelo Imperador, de “mui leal e valerosa”. 1842 - Por um convênio especial, a Santa Casa de Misericórdia tomou a si a sustentação dos filhos abandonados, criando a “Roda dos Expostos.”

Santa Casa de Misericórdia no final do século 19

Os primeiros tempos - 31

32 - NEGRO em Preto e Branco

Voluntários do Brasil

1845 - O barão de Caxias ordenou a demolição das fortificações e do portão de entrada da cidade. 1850 - Lei Euzébio Queirós proibiu o tráfico de escravos para o Brasil. 1853 - Luiz Terragno, italiano, chegou a Porto Alegre e abriu um estúdio fotográfico na esquina da Rua da Alegria (General Vitorino) com a Rua do Rosário . 1864 - Início da Guerra do Paraguai que se estendeu até 1870.

Os negros escravos oriundos de diversas nacionalidades africanas foram importantes na ocupação e na defesa das fronteiras do Estado do Rio Grande do Sul, juntamente com os primeiros povoadores, as primeiras expedições militares e demarcadoras, bem como tiveram uma participação importante na Revolução Farroupilha, uma vez que teriam composto de um terço à metade do exército rebelde, conforme os cálculos do exército imperial. Na defesa do território e dos interesses rio-grandenses, mais de 100 negros ex-escravos que integravam o corpo de 600 Lanceiros Negros, foram dizimados no célebre combate de Porongos, na madrugada do dia 14 de novembro de 1844, depois da traição promovida após acordo estabelecido entre o comandante farroupilha Davi Canabarro e o barão de Caxias, este, representante das forças imperiais.( I. Bittencourt Jr)

1887 - Assinados convênios entre Brasil e países da Europa que viriam facilitar a entrada de perto de tres milhões de imigrantes europeus até 1914 1890 - Em 13 de maio, por ordem do Ministro da Fazenda, Rui Barbosa, foram incinerados todos os registros relativos à escravidão no Brasil.

Museu do Exército\Porto Alegre

Os uniformes dos batalhões de voluntários não obedeciam um plano padrão, mas todos ostentavam no braço esquerdo um distintivo de metal amarelo com a Coroa Imperial e os dizeres: Voluntário da Pátria

Memorial RS

Praça da Matriz em 1864. Soldados em formação de despedida na manhã da partida para o front da Guerra do Paraguai

Os Voluntários da Pátria foram criados pelo decreto 3371 , de 7 de janeiro de 1865, para reforçar os reduzidos efetivos do exército de linha, quando da eclosão da Guerra do Paraguai. D. Pedro II declarou-se o primeiro voluntário. Foi grande o número dos que acorreram ao chamado às armas, o que permitiu a organização de 57 batalhões. Ao término da campanha no teatro de operações existiam 19 batalhões. “É a mais linda tropa do Exército Brasileiro. Compõe-se unicamente de negros. Brancos, indígenas ou mulatos, são dela excluídos. Os oficiais são também negros: e nem por isso piores oficiais, pelo contrário. Conversei propositadamente muito tempo com eles:. Estavam inteiramente a par de todos os pormenores do serviço e orgulhosos do seu batalhão” São palavras do Conde D’Eu em seu livro Viagem Militar ao Rio Grande do Sul.

“A guerra ... não foi um bom negócio para os milhares de escravos libertos e ex-escravos mandados para a linha de frente com a promessa, muitas vezes não cumprida,de ganharem a liberdade depois do conflito. As piores tarefas eram sempre entregues a eles.” (BUENO,2004) 1870 - soldado negro com grupo de oficiais na Guerra do Paraguai (Memorial do RS)

Os primeiros tempos -33

34 - NEGRO em Preto e Branco

Liberdade sem asas* *Verso do poeta Oliveira Silveira

Virgilio Calegari/Museu J.J.Felizardo - Fototeca Sioma Breitman

28/09/1871 - Lei do Ventre Livre torna livre qualquer filho de escrava nascido no Brasil. Os filhos menores ficavam em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe tinha a opção de receber do Estado a indenização de 600$000 (seiscentos mil réis) ou de utilizarse dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. 28/09/1885 - Lei Saraiva-Cotegipe mais conhecida como Lei dos Sexagenários, liberta os escravos com mais de 60 anos, mediante compensações a seus proprietários. Na época, ainda existiam no Brasil, perto de 800 mil indivíduos escravizados e a média de vida entre eles não chegava a 40 anos de idade. Os sobreviventes não tinham condições de indenizar seus senhores e nem de onde tirar o seu sustento sozinhos.

Museu J.J.Felizardo/Fototeca Sioma Breitman

Porto Alegre foi a primeira cidade brasileira a abolir a escravatura em 12 de agosto de 1884, quando um grupo de abolicionistas caminhou pela Rua da Praia protestando contra a escravidão. As páginas 2 e 3 do Livro de Ouro da Câmara Municipal registram ata da sessão comemorativa da Abolição, que aconteceu ao meio-dia de 7 de setembro de 1884. Nessa mesma sessão, a título de celebrar a libertação dos escravos na Cidade, os vereadores aprovaram que o Campo do Bom Fim passasse a denominar-se Campo da Redenção.

Vendedores ambulantes no final do século 19

Ferrari/Museu J.J.Felizardo-Fot.Sioma Breitman

Original cedido por Maria Luiza Pereira de Oliveira

Cozinheiro e alfaiate - final do séulo 19

Ferrari/ Museu J.J.Felizardo-Fototeca Sioma Breitman

O original escrito à mão numa folha de papel almaço é uma carta de alforria concedida em 1884 por Maria Assumpção Barreto Vianna à sua escrava Maria Rita em reconhecimento aos seus bons serviços.

As cartas de alforria podiam ser onerosas, quando vendidas aos cativos ou gratuitas, quando concedidas sem ônus financeiro.

Estivadores no final do século 19

A alforria gratuita costumava impor condições ao liberto como o cumprimento de determinada tarefa e o tempo em que ele ficaria à disposição do seu ex-dono, na média 4 anos, mas também poderia ser até à morte de quem lhe havia dado a alforria. Já o pagamento da carta onerosa, poderia ser parcelado em vários meses ou até anos. Os primeiros tempos - 35

TERRITÓRIOS NEGROS Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Jr

P orto Alegre foi testemunha de uma mobilidade territorial demarcada por ampla exclusão social, no período após a abolição do regime escravo, quando as famílias negras foram obrigadas a se mudarem de lugares sem nenhuma estrutura para outros piores...

Arquivo Imágica

Remetidos para o campo da Redenção, atual Parque Farroupilha, os contingentes de negros ex-escravos deram origem à Colônia Africana. Na capital gaúcha, a partir da segunda metade do século XIX, o maior contingente de negros se encontrava nas cercanias da cidade, no Areal da Baronesa, na Cidade Baixa, imediações da atual Rua Lima e Silva, e nas chamadas Colônia Africana e “Bacia”, atuais bairros Bonfim, Mont’Serrat, Rio Branco e Três Figueiras. Nestes territórios negros desenvolveram-se intensamente os cultos afrobrasileiros. No caso destas últimas áreas tratava-se, em sua origem (em torno da época da abolição), de uma “zona insalubre, localizada nas bordas de chácaras e propriedades que ali existiam, de baixa valorização e de pouco interesse imediato para seus donos, que foi sendo ocupada por escravos recém-emancipados”. Mais tarde, habitando em cortiços e “avenidas”, isto é, conjunto de famílias negras ocupavam um

Irmãos Ferrari/ Memorial do RS

Vista da Cidade Baixa - início do século 20 Jacob Prudêncio Herrmann/ Acervo Bruno Herrmann

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Osvaldo F. Reis

Moradores do Mont’Serrat nos anos 50

mesmo espaço e valiam-se de serviços sanitários e de fornecimento de água coletivos. Deste modo, os negros constituiriam os segmentos populacionais que caracterizariam os denominados pioneiros do solo urbano, já que seguiriam ocupando as áreas menos nobres da cidade, sem a mínima ou com precárias condições de infra-estrutura urbana ou, então, distantes e de difícil acesso viário. Consolidaram, assim, inúmeros territórios negros urbanos, a exemplo da Colônia Africana, da comunidade da Luiz Guaranha, no Areal da Baronesa, além de ocuparem os seguintes espaços urbanos: Navegantes, Santana, Partenon, Ilhota, Vila Santa Luzia, Vila Maria da Conceição, Vila dos Marítimos, Vila Jardim, Vila Mirim, Rubem Berta, Vila Grande Cruzeiro, Vila Grande Pinheiro, Cohab Cavalhada, Jardim Dona Leopoldina, Vila Restinga Velha e Vila Nova Restinga. Compreendo “Território Negro Urbano”, aqui, como um espaço de construção de singularidades sócio-culturais de matriz afro-brasileira e que, ao mesmo tempo, é um objeto histórico de exclusão social, em razão da expropriação estrutural dos direitos sociais, civis e específicos fundamentais dos negros brasileiros. Os territórios negros urbanos podem perfazer um conjunto de quilombos urbanos, vilas ou bairros com densa presença de cidadãos afro-brasileiros ou localizados na Grande Porto Alegre. Territórios Negros - 37

38 - NEGRO em Preto e Branco

Nas primeiras décadas do século XX, os negros estavam, em grande parte, nucleados por sociedades, clubes ou associações, a maior parte constituída por negros. Em 53 edições do jornal O Exemplo, para o período entre os anos de 1909 a 1913, foram feitos os registros presumidos de 62 clubes e associações negras e de caráter recreativo,dançantes e de mútua ajuda. Estas instituições comprovam a existência de uma ampla rede de relações sociais no território urbano, entre os integrantes da população negra de Porto Alegre. Dentre elas, as atuais Sociedade Floresta Aurora e a Associação Satélite Prontidão. Acervo Julio J.Nunes

Por este período, os negros ocupavam a esfera pública, e sendo absolutamente normal “...o trânsito de biscateiros negros pelas ruas e praças de Porto Alegre nos anos que se seguiram à proclamação da República. Negras doceiras, negros carregadores, barbeiros, moleques de recado...”. Os negros, sem dúvida, existiam por toda a cidade, desde as ruas do Centro e, até mesmo, nas casas assobradadas da elite provincial. Grande parte da memória do campo afro-gaúcho está marcada, em Porto Alegre, por meio da rede de relações políticas da religiosidade. É uma referência primordial à figura do príncipe Custódio e do seu respectivo assentamento de Bará, o qual fora plantado na área central do centenário Mercado Público. Para muitos batuqueiros, que realizam o ritual do passeio como exigência da fase final de aprontamento, o assentamento foi obra dos negros escravizados, enquanto ritual de proteção. No Mercado Público fica, ainda, o Bar Naval onde os negros se reúnem, ao final do dia, para uma ampla sociabilidade informal que faz persistir o ethos do negro brasileiro, de matriz africana . De acordo com dirigentes de federações, existiriam

nos dias atuais, mais de dois mil terreiros em Porto Alegre. Além de templos religiosos, os terreiros são assentamentos urbanos e representam o modo como os negros, apesar da discriminação, organizadamente ocupam o espaço da cidade. Eles cumprem um papel religioso, cultural, social, histórico e ecológico, no âmbito da metrópole. A partir da década de 70, do século XX, os negros de Porto Alegre foram bastante influenciados pelo movimento para a garantia dos direitos civis dos negros norte-americanos e seus líderes Martin Luther King, Malcolm X, Angela Davis, enfim, pelos movimentos black-power e black-muslims; pelos processos de descolonização e libertação das antigas colônias africanas e

Arquivo Tição

das ações de seus respectivos líderes Agostinho Neto, Leopold Senghor, Amílcar Cabral e Samora Machel e acabaram por estimular os processos políticos de reafricanização e do resgate afirmativo do célebre herói negro Zumbi dos Palmares e demais importantes personalidades negras brasileiras, assim culminando com o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR). Os negros passaram a ocupar os espaços de sociabilidade pública, no centro da cidade de Porto Alegre, por meio de algumas esquinas, pontos de encontros, bares e galerias e shopping centers . Foi no âmbito deste território negro que o Grupo Palmares foi criado, por iniciativa de Oliveira Silveira, Antônio Carlos Côrtes, e outros, e que viriam a ser os mentores da proposição da criação de uma data para a comemoração e exaltação nacional Territórios Negros - 39

40 - NEGRO em Preto e Branco Memorial RS

do herói negro Zumbi dos Palmares, atualmente consolidada, também, como o Dia Nacional da Consciência Negra. Nesses territórios, por meio das relações socioculturais, os negros não somente realizam, até hoje, uma inscrição com acento étnico-cultural afro-brasileiro, com um ethos singular, como imprimem uma específica subjetividade, um estilo de vida social multifacetado. Praça da Matriz em 1940

F.Engel Jr/ Memorial RS

O Mercado e a antiga doca no século 19

Memorial do RS

Assim, os valores culturais, estéticos, éticos, sociais e lúdicos são vivenciados pelos negros, que afluem ao centro da cidade, valendo-se de um modo afirmativo da cultura afrobrasileira. Muitos segmentos que surgiram persistem até os dias atuais, enquanto outros desapareceram para dar lugar a outros desejos, outras reivindicações políticas, outras demandas sociais ou lúdicas, consolidando uma dinâmica sociocultural na ocupação desta parte da cidade Cito como exemplos os seguintes pontos de encontros: a Esquina do Zaire, que foi ocupada pelos integrantes do Movimento Negro, adolescentes e carnavalescos negros; à frente da Confeitaria Matheus, pelos antigos carnavalescos; os Negros da Masson, na esquina da ex-Casa Masson; os pagodeiros e sambistas que eram freqüentadores dos antigos bares, situados nas ruas Riachuelo, Andrade Neves e José Montaury; os DJs, MCs, rappers, funkeiros, dançarinos e donos de equipes de som que se reuniam na Rua dos Andradas, Galeria Chaves e no Shopping Rua da Praia; na Galeria Luza; Lojas Guaspari, Mercado Público, em frente da Galeria Malcon; no antigo Rian (lancheria) e à frente da Panvel;

Vista do Centro em 1940

Museu JJ.Felizardo/ Fototeca Sioma Breitman Memorial do RS

1910 - Beco do Rosário (atual Aveida Otavio Rocha) vendo-se ao fundo a Igreja Evangélica Luterana da Rua Senhor dos Passos

Praça da Alfãndega em 1928

em diversos bares como Caruso, El Bodegón, Sua Casa, Palloti, Joa Jo, Pasteleto, Bar do Carioca e Bar JB. Atualmente, a “Família Silva” é uma comunidade negra que constitui um dos primeiros quilombos urbanos do País, situado na cidade de Porto Alegre. O conjunto das famílias negras é oriundo dos moradores da antiga Colônia Africana que reuniu os negros ex-escravos, logo após a Abolição da Escravidão, em Porto Alegre. Localizado no atual bairro Três Figueiras, o quilombo urbano da “Família Silva” foi objeto de realização de um laudo histórico-antropológico, sob a orientação da Fundação Cultural Palmares, culminando com o reconhecimento da identidade afro-brasileira e do direito ao território ocupado há mais de setenta anos.

Irene Santos

Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Jr

Professor da PUC/RS. Jornalista. Mestre em Antropologia/UFRGS. Doutorando em Antropologia Social/UFRGS. Membro do IACOREQ (Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos).

Territórios Negros - 41

42 - NEGRO em Preto e Branco

Os territórios e seus habitantes Museu J.J.Felizardo - Fototeca Sioma Breitman

Irmãos Ferrari /Museu J.J.Felizardo - Fotot. Sioma Breitman

Praça da Alfândega no final do século 19 Virgilio Calegari - Museu J.J. Felizardo - Fototeca Sioma Breitman

1890 - Rua Lima e Silva e Praia de Belas

Atelier fotográfico de Calegari

Arquivo Imágica

Acervo Renato Costa

Acervo Maria Noelci Homero

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Antono C.Côrtes

Acervo Luciana Abreu da Silva

Museu J.J. Felizardo/Fototeca Sioma Breitman

Ponte de Pedra sobre o Riacho no início do século 20

Territórios Negros - 43

44 - NEGRO em Preto e Branco Arquivo Imágica

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Carlos Alberto Brito

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Marilene L Paré Acervo Éder Luis Farias

Acervo M.Noelci Homero

Acervo Irma Nascimento

Acervo Irma Nascimento

Arquivo Imágica

Territórios Negros - 45

46 - NEGRO em Preto e Branco

Acervo Manoel F.Rosa e Silva

Arquivo Imágica

1940 -Auditório Araújo Vianna localizado na Praça da Matriz Arquivo Imágica

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Luis Flávio Nascimento

Arquivo Imágica

Acervo Osvaldo F. Reis

Arquivo Imágica

Territórios Negros - 47

48 - NEGRO em Preto e Branco

Domingo no Parque Acervo Antonio C.Côrtes

Considerado o “pulmão verde” da área central de Porto Alegre, o Parque Farroupilha tem uma longa história, reveladora das muitas etapas do crescimento da Cidade. 1807 - em 24 outubro essa área, inicialmente com 69 hectares, localizada nos arrabaldes da antiga cidade foi doada pelo governador Paulo Gama, para fins de conservação do gado destinado ao abate. Por isso ficou conhecida como Potreiro da Várzea, ou ainda Campos da Várzea do Portão. 1870 - em 26 de abril, a Várzea passou a denominar-se Campo do Bom Fim, em decorrência da proximidade com a recém construida capela do Senhor do Bonfim . 1884 - em 7 de setembro, a Câmara Municipal propôs a denominação de Campo da Redenção, celebrando o movimento popular que libertou os escravos de Porto Alegre.

Acervo Osvaldo F. Reis

Revista do Globo - 8/ 11/ 1947

Acervo Antonio C. Côrtes

Acervo Maria Isabel Ribeiro da Silva

Acervo Manoel F.Rosa e Silva

1935 - o parque serviu à instalação de exposição comemorativa do Centenário da Revolução Farroupilha. Em 19 de setembro , por Decreto Municipal, o Campo da Redenção passou a ser denominado Parque Farroupilha. Mas o nome Redenção continua firme na memória do povo e, na maioria das vezes, se sobrepõe à denominação oficial.

1997 - foi efetuado o tombamento do Parque como Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre. Dos 69 hectares originais, doados pelo Governador Paulo Gama permanecem apenas 40 hectares como área efetiva do Parque.

Acervo Valdemar Brum

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo M.Noelci Homero Acervo Antonio C.Côrtes

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Maria Regina Borges Pinto

Territórios Negros - 49

50 - NEGRO em Preto e Branco

Galinha com farofa, vinho Sabiá e muita dança Acervo Vera Neuza Lopes

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Odyla Junqueira

“Só restaram boas lembranças!” O comentário de dona Altair Garcia Fogo, 85 anos, vem recheado de sonoras risadas que ativam a memória para os piqueniques dominicais da sua juventude. Festas campestres, roupas coloridas e bailes vespertinos fizeram a alegria de muitas famílias negras porto-alegrenses. “Posso dizer que o auge dos piqueniques foi quando eu era bem jovem. A década de 30 estava, penso, no seu início e eu deveria ter uns 15 ou 16 anos. Ia acompanhada por um grupo de amigas. É claro que não íamos sozinhas, a família sempre estava junto. Afinal, naquele tempo, moça direita não andava só”, conta dona Altair. Mas quando aconteciam os piqueniques prevalecia a informalidade e as regras eram relaxadas. Estes encontros sociais, como alternativa de lazer para a população negra, vão durar até os anos 60. Programados para a primavera e o verão, eram ansiosamente aguardados pela comunidade. “Normalmente, os melhores piqueniques aconteciam logo após o Carnaval.”, lembra dona Altair, ao explicar que a rotina da semana era quebrada, inicialmente, pelas festas de sábado à noite nos salões localizados na Colônia Africana e nos bairros Cidade Baixa, Santana, Mont’Serrat e Auxiliadora. Para ela, os piqueniques eram um complemento dos bailes. Promovidos por clubes de futebol, sociedades e entidades

Acervo Antonio C.Côrtes

carnavalescas, os piqueniques aconteciam aos domingos. Congregavam grupos familiares e tinham o propósito de arrecadar fundos. Cada grupo familiar convidado levava suas cestas com salgados, sanduíches e doces colocados à venda nas barracas improvisadas. Não faltavam gasosas geladas, refrescos feitos com xarope de frambroesa, vinho Sabiá, cervejas e a “cachacinha”. Aliado a tudo isto, o tradicional churrasco e o frango assado com farofa. Depois do almoço, era aberto espaço para as danças com a presença de orquestras e conjuntos musicais.

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Osvaldo F. Reis

Os piqueniques, também, marcaram a infância e a adolescência de Lídia Garcia Varela, 62 anos. “Sou do tempo em que a gente precisava pegar a balsa para chegar nas praias da Alegria, das Pombas e do Veludo”. Júlio Ferreira, o seu Pretinho, se notabilizou pela organização de piqueniques que fizeram história em Porto Alegre. Um dos seus locais preferidos era a Parada 32 da Estrada Passo do Feijó. Mas as famílias também iam para o campo do Rio Guaíba F.B.C, ou para a Ilha da Pintada. O Grêmio Gaúcho era outra opção de encontro para as domingueiras. Dono de memória privilegiada, Érico da Rosa Machado, 72 anos, tem saudosas histórias dos encontros organizados pelos blocos Embaixada da Alegria, Piratas do Amor e Boêmios da Cidade. Esses grupos carnavalescos aproveitavam os campos do bairro Mont’Serrat para promoverem seus animados piqueniques. Um outro anfitrião e forte concorrente para o festeiro Júlio Ferreira, lembrado por Érico Machado, “era o velho Aparício, um antigo motorneiro da Carris, que se destacava por suas bem-sucedidas festas campestres, na antiga Bacia do Mont’Serrat, que congregavam uma multidão nas manhãs e tardes de domingo”.

Acervo Odyla Junqueira

Acervo Antonio C. Côrtes

Acervo Osvaldo F. Reis

Territórios Negros - 51

52 - NEGRO em Preto e Branco

Acervo Osvaldo F. Reis

Uma das bandas que animava piqueniques em 1939

Territórios Negros - 53

54 - NEGRO em Preto e Branco

Um dia, Luanda foi aqui Acervo Lucia Regina Brito Pereira

Tide em destaque abaixo e entre seus amigos e frequentadores do Luanda Bar

Nunca Luanda, capital de um país africano de língua portuguesa, esteve tão perto dos noctívagos porto-alegrenses, quanto o bar do Aristides da Silva, o Tide. Localizado na Rua José do Patrocínio, quase esquina da Praça Garibaldi, o Luanda Bar, um minúsculo botequim da Cidade Baixa, fez história entre os amantes da noite e da madrugada. O bar do Tide era um universo democrático protegido pelo manto da noite. Deixou saudades e boas lembranças, entre os seus freqüentadores, quando fechou suas portas no mês de janeiro de 1988. A história desse boteco começou em 1960. Seu primeiro dono foi o artista plástico e pai de santo João Altair. Admirador do continente africano, Altair batizou o bar com o nome da capital de Angola e criou um cenário valendo-se de máscaras e pinturas de guerreiros africanos que resistiram à passagem do tempo. Depois de João Altair, o Luanda teve mais dois donos que não deram ao local a devida expressão. Quando Aristides da Silva, o Tide, se interessou pelo bar, ali permaneceu

por 17 anos. Para bem receber seus clientes, vestia um avental, gravata e um boné branco. Respeitava os bêbados, desde que eles não ultrapassem os limites e não ficassem chatos. Aos que desrespeitavam as normas da casa, a expulsão era certa. O Luanda foi palco de frenéticas conversas, debates e de muitas promessas não cumpridas. O bar de porta e janela, com três ou quatro mesas alinhadas, abria depois das 21 horas e só fechava depois das oito horas da manhã. Bom conversador e ouvinte,Tide aguardava pacientemente a saída dos seus últimos clientes naturalmente embalados pelos múltiplos copos de bebida. No decorrer dos anos, figuras ilustres marcaram presença e o bar serviu também de ponto de encontro para acaloradas discussões de propostas do Movimento Negro. A atração do Luanda Bar, no entanto, era o sopão servido em todas as estações. A idéia do caldo quente surgiu numa madrugada fria de inverno. As pessoas chegavam ao bar e pediam cachaça. Só que a bebida não era suficiente para espantar o frio. Daí nasceu o sopão do Tide que ganhou fama na cidade e passou a ser conhecido nacionalmente. O sucesso do caldo residia na simplicidade da receita que ganhava reforço de um molho picante feito com pimenta vermelha. O ritual acontecia todas as noites. Tide arregaçava as mangas da camisa... A galinha era lavada, cortada e fervida aos olhos de todos os clientes na pequeníssima cozinha que ficava atrás do balcão. Quando pronto o panelão, ele gritava: “- olha a sopa quente...vão se afastando do corredouro”. Incrível ilusão, o corredor não existia naquele pequeno espaço lotado. E as pessoas encostadas ao balcão, entretidas em suas conversas, apenas arredavam um pé, para deixar passar, muitas vezes por sobre suas cabeças, o fumegante caldo até a mesa de quem pediu. Uma outra característica do bar, era a cerveja servida em canecas, idéia que Tide trouxe dos bares do Mercado Público. O Luanda funcionava de segunda a segunda, inclusive nos feriados. Não fechava no Natal, nem, tampouco, na virada do ano. As portas só foram definitivamente fechadas, quando Aristides da Silva ficou cego e doente e não encontrou ninguém com vontade e disposição suficiente para enfrentar, como ele, as muitas noites e madrugadas atrás de um balcão.

Territórios Negros - 55

56 - NEGRO em Preto e Branco

A Rua da Praia é a mais antiga de Porto Alegre. 1799 - data provável do primeiro calçamento da rua, no trecho que vai do início até a Rua General Câmara. Deste ponto em diante era denominada Rua da Graça. 1820 - viajantes europeus como Saint-Hilaire e Nicolau Dreys mencionaram a Rua da Praia como a única via comercial “extremamente movimentada,” a rua mais extensa e a mais importante em respeito ao comércio e à população. 1843 - as ruas da cidade receberam placas pela primeira vez, predominando a denominação de Rua da Praia desaparecendo definitivamente a Rua da Graça. 1865 - em 17 de agosto, a Câmara Municipal resolveu comemorar o aniversário da Independência trocando o nome da Rua da Praia para Rua dos Andradas.

O “footing” na Rua da Praia e na Galeria Chaves Acervo Carmen Amora

Acervo Alpheu C.Battista Jr

Arquivo Imágica

Acervo Julio J.Nunes

Acervo Najara S Silva

Acervo Odyla Junqueira

Acervo Julio J.Nunes

Acervo Alpheu C.Battista Jr

Acervo Antônio C.Côrtes

1885 - o calçamento de pedras irregulares é substituído por paralelepípedos. 1913 - iniciou-se a construção intensiva de esgotos em Porto Alegre, sobretudo no centro da Cidade, atingindo a Rua da Praia. Como a obra implicava “o revolvimento do solo”, a Intendência Municipal aproveitou para trocar o calçamento das ruas em grande escala.

Acervo Odyla Junqueira

Acervo Amara Lopes da Rosa

1923 - o trabalho finalmente foi concluído com o requinte do calçamento de parelelepípedos de granito em mosaico. 1930 - inaugurado o edifício Chaves Barcellos com a primeira galeria comercial da Cidade.

Arquivo Imágica

Acervo Dirney A.Ribeiro

Acervo Vera Lúcia Lopes

Territórios Negros - 57

TRABALHO DE NEGRO Antônio Carlos Santos Rosa

H omens de pele escura, de sorriso largo e sonoro, de alma límpida e serena como um lago ao amanhecer, fontes irradiantes de felicidade, caráter firme, profunda lealdade aos de seu entorno, artesãos, músicos, poetas e guerreiros. Quem são eles? Por que apesar de todas as suas qualidades morais, profissionais e intelectuais, sempre apareciam como atores em papéis secundários nos grandes festivais que a vida proporcionava? Suas histórias são tão grandes quanto diversas, tão heróicas quanto naturais e rotineiras, tão emocionantes quanto as desprovidas de qualquer sentimento. Alguns, apesar das restrições de ordem social, conseguiram sobrepujar as barreiras que lhes foram impostas e tornaram-se estrelas em uma elite restritiva e conservadora. Daí surgiram médicos, advogados, engenheiros, sociólogos, professores, músicos, escritores, poetas e atletas que por suas qualidades e denodo, deixaram o estrato em que viveram e

procuraram novos desafios, deixaram o planeta e foram ao universo. Muitos preferiram manter o status quo. Constituíram família, foram bons pais, bons irmãos, cunhados, amigos. Desses ainda, alguns se destacaram em atividades subalternas até onde lhes foi possibilitado o conhecimento. Foram diretores, chefes, (lembram das portarias das instituições?), especialistas e com uma característica fundamental: extremamente zelosos de seus cargos e reconhecidos por seus superiores hierárquicos. Outros não viram a luz da oportunidade e ficaram marginalizados à beira do caminho, sobrevivendo apenas, pela caridade das instituições assistenciais. A grande interrogação que por certo perdurará por muito tempo é por que apenas uns poucos se atreveram a desafiar o contexto e partir à luta por um lugar ao sol? Espírito livre e destemido? Sonhador e visionário? Estrategista social? Estudioso, competente e audacioso? Poderíamos alinhar uma centena de qualificativos aos homens de pele escura, dentes alvos, sorrisos largos e almas bondosas, mas deixemos que os estudiosos e cientistas respondam com segurança nos anos vindouros. O que é relevante é que eles se diferenciaram dos demais, saíram do anonimato para o destaque, lutaram contra as concepções conservadoras e ortodoxas, não tiveram medo de buscar seus ideais, não se amedrontaram frente aos desafios que os aguardavam, venceram e vencendo entraram para a história pela porta da frente e hoje fazem parte do patrimônio social e cultural. Foram políticos importantes, médicos famosos, desembargadores, juízes, advogados, cientistas, músicos, artistas e atletas que orgulham a todos nós seus familiares, descendentes e admiradores.

Irene Santos

Antônio Carlos Santos Rosa Mestre em Administração pela University of Southern California, Los Angeles, Califórnia, USA. Graduação em Administração de Empresas pela Faculdade de Ciências Econômicas/UFRGS. Diretor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS.Vice-Presidente da Federação Espírita do Rio Grande do Sul. Professor dos cursos de Graduação, Extensão e Pós-Graduação e Mestrado da Escola de Administração da UFRGS

Trabalho de negro - 59

60 - NEGRO em Preto e Branco

Pegando no pesado... “Aqui - prestem bem atenção porque vale a pena - como em todas as possessões espanholas e portuguesas os negros e mulatos são OPERÁRIOS, quer dizer, homens esforçados, trabalhadores, aqueles que têm necessidade de exercitar mais a inteligência, mas têm a desgraça de serem escravos e, sobretudo, de serem negros.” ARSÈNE ISABELLE, viajante francês que percorreu o Rio Grande do Sul nos idos de 1830 Irmãos Ferrari/ Museu J.J.Felizardo - Fototeca Sioma Breitman

Lavadeiras na Praia do Riacho no final do século 19 Arquivo Imágica

Memorial do RS

Acervo Maria Guedes

Acendedores de lampiões em 1901 Babá

Soldado

Acervo M.Noelci Homero

Revista do Globo/PoA

Estivador Jacob Prudêncio Herrmann/ Acervo Bruno Herrmann

Engraxate

Santeiros da Capela do Divino Espirito Santo nos anos 40

Virgilio Calegari / Museu J.J.Felizardo - Fototeca Sioma Breitman

Colocação de trilhos na Avenida 24 de Outubro em 1907

Trabalho de negro - 61

62 - NEGRO em Preto e Branco Acervo Zilah Machado

1928 - As duas moças, empregadas domésticas, faziam suas próprias roupas, costurando à mão durante dois meses para aprontar um vestido

Arquivo Imágica

Motorista Virgilio Calegaria/ Memorial do RS

Serviço de Assistência Pública inaugurado em 1901 pelo Intendente Municipal José Montauri

Trabalho de negro - 63

64 - NEGRO em Preto e Branco Jacob Prudêncio Herrmann/Acervo Bruno Herrmann

Barqueiros vendedores de lenha no riacho da Cidade Baixa em 1930

Acervo Najara Santos da Silva

Acervo Julie Jorge

Julie Jorge, manequim e modelo fotográfico Oficiais da Brigada Militar

Acervo Oliveira Silveira

Armando Hipólito dos Santos, advogado provisionado

Antonio Roneck - Foto reproduzida do livro Testemunha Ocular/Ed.Abril

Acervo Oliveira Silveira

Professor José Maria Vianna Rodrigues Cozinheiro do Palácio Piratini, na época da Campanha da Legalidade, em 1961 Acervo Luis Flavio Nascimento

Acervo Carmem Amora

Soldados em 1932

Acervo Manoel F.Rosa e Silva

Professora Celestina Rosa e Silva com suas alunas do Curso de Magistério

1940 - Dona Joana Pires, empregada doméstica

Trabalho de negro - 65

Julinho Alfaiate

Nos últimos tempos, a memória tem traído “seu” Júlio José Nunes, o Julinho Alfaiate, morador antigo do bairro Rio Branco e proprietário de uma casa de esquina da Casemiro de Abreu, uma rua que no passado foi base do território da Colônia Africana. Aos 84 anos, dono de um corpo que, ainda, o envaidece - fruto de caminhadas, hoje mais raras, e ginástica para idosos no Parque Moinhos de Vento. Julinho Alfaiate definiu sua história de vida entre linhas, tecidos e máquinas de costura importadas. A pisada firme, a calça de linho displicentemente amassada, o sapato branco de bico fino são herança de um passado clássico da costura que preservava o estilo de cada cliente. “Naquele tempo não se privilegiava a confecção seriada, como é hoje”, explicou ao mostrar casacos e outras roupas com etiquetas de sua grife pessoal e controle de qualidade por parte da associação que congregava os alfaiates. A escolha profissional de Julinho foi motivada pelo menino que assistia a vida cheia de dificuldades do pai, “um simples operário” e da mãe, “uma simples lavadeira”. Quando jovem, ele sonhou ser poderoso. “Eu não queria ser mandado, queria, sim, era mandar”. E foi este o lema que norteou sua bem sucedida carreira de alfaiate independente.“Fiz roupa para muitos magnatas, pessoas importantes da Capital e do Interior do Estado. Era um doutor daqui, era um professor dali, ou seja, só gente cheia de títulos que batia na minha porta”.

Irene Santos

Hoje a máquina Singer, uma de suas fiéis companheiras de mais de 60 anos de profissão, está aposentada e já virou objeto de decoração, assim como as linhas, réguas, tesouras, moldes e os ferros de passar. Nos cabides, antigas roupas complementam o cenário do atelier montado à entrada da casa que resiste ao apelo da expansão imobiliária de olho nesse metro quadrado valorizadíssimo, num bairro considerado nobre da zona central da Cidade. A folia carnavalesca também fez parte da vida de “seu” Julinho Alfaiate e serviu para marcar a referência do seu atelier. Da sua alfaiataria saía o bloco carnavalesco Imbrutus, integrado só por homens, que percorria as ruas da Colônia Africana com suas fantasias nas cores preto, azul e branco. Para Julinho Alfaiate, o antigo álbum de fotos amareladas foi, aos poucos, ativando nele saudosas lembranças desse bloco que marcou uma época do Carnaval de Porto Alegre.

Trabalho de Negro - 67

AS CARAS PRETAS

Antônio Carlos Côrtes Arquivo Imágica

Ao longo dos meus 56 anos de janela sobre a história do negro em Porto Alegre, deito o olhar à paisagem não de um Movimento Negro mas à ação, ao longo da nossa história recente, de um Negro em Movimento . Como agitador cultural, move-se em diferentes direções: artes visuais ou plásticas,artes cênicas e carnaval de rua; cinema e vídeo; literatura, música, artesanato, folclore e o acervo concernente ao patrimônio histórico e cultural.

Arquivo Imágica

Acervo M.Noelci Homero

Acervo Luis Flavio Nascimento

Arquivo Imágica

Acervo M.Noelci Homero

Acervo Nádia A.Freitas

Acervo M.Noelci Homero

Acervo M.Noelci Homero

Acervo Antonio C Côrtes

Acervo Valdemar Brum

O Negro em Movimento é a forma que melhor explicita a dinâmica de um grupo social ajustado à sua verdadeira história real e não à oficial e duvidosa. Meu saudoso pai, Egydio Ribeiro Côrtes, no final dos anos 50 e início dos 60, ao ler os jornais da época, Correio do Povo, Diário de Notícias, Folha da Tarde e A Hora, demonstrava indignação pelo modo como eles tratavam os negros. Eis que na crônica policial, escreviam: “eram quatro assaltantes, um negro”. Não diziam a etnia dos demais. Quando todos eram brancos, os jornais não destacavam isso para identificação da matéria. Era flagrante aí o preconceito. Ao deixar em relevo seu desconforto, meu pai ensinava a mim e aos meus irmãos Egydio Filho e Elias, as primeiras lições de luta pela dignidade da cidadania: que era um orgulho ser negro e que nossos antepassados, rotulados de escravos, haviam construído esta nação.

Acervo M.Noelci Homero

Acervo M.Noelci Homero

Arquivo Imágica

Lembro que o pai desligava o rádio quando tocava a música Mulata Assanhada cantada pelo Miltinho, cuja letra dizia. Ah! meu Deus que bom seria se voltasse a escravidão, eu comprava esta mulata e prendia no meu coração. O pai bem avaliava as agruras de uma escravidão e ainda que fosse em música, não gostava que sequer se cogitasse de uma volta à senzala. Meus ouvidos ainda guardam a voz do pai, recomendando a mim e meus irmãos, quando saíamos: - Levem a Carteira de Identidade! O pai era contínuo do Departamento da Loteria do Estado, mas embora transitasse pelo inglês, italiano e espanhol, possuindo ainda sólidos conhecimentos de português, mais o curso de datilógrafo e caligrafia exemplar, não era valorizado por seus chefes. Hoje, compreendo os motivos que o levaram, a certa altura da vida, a experimentar depressão. Em 1966, contando 18 anos, chamou-me a atenção o enredo Trevo canta Zumbi, todos vestindo branco e pés descalços, descendo a Avenida Borges de Medeiros. Nasciam em mim duas paixões: Trevo de Ouro, campeã naquele ano, e o despertar pela saga de Zumbi. Nos anos 70, me vejo em meio aos militantes negros em movimento: Roberto Rodrigues, Luiz Paulo Assis dos Santos, Jorge Antônio dos Santos (Jorge Xangô), Ilmo Silva, Vilmar Nunes, Dirney Alves Ribeiro, Luiz Carlos Barcellos, Sílvio Almeida e Oliveira Silveira. Local: Rua da Praia. Esquina com a Borges de Medeiros,Porto Alegre. Hoje, Esquina Democrática. Nós, sem saber, antecipávamos o nome pelo qual ficaria conhecida, As Caras Pretas - 69

70 - NEGRO em Preto e Branco Acervo Luis Flavio Nascimento

Acervo Oliveira Silveira

Acervo M.Noelci Homero

Fundação do Grupo Palmares em 1971

Arquivo Imágica

Arquivo Imágica

Ali discutíamos por horas a fio. Como rato da Biblioteca Pública, descobri o livro do Edison Carneiro - O Quilombo dos Palmares , o qual indiquei para Oliveira Silveira, consoante ele mesmo registrou em bilhete manuscrito. Foi inspiração para em 20 de julho de 1971 iniciarmos o Grupo Palmares , ao lado de Vilmar Nunes, Oliveira Silveira e Ilmo Silva. Este o real motivo porque passamos a dizer NAO ao 13 de maio, da Princesa Isabel, que assinou um ato burocrático formal, e SIM ao 20 de novembro de Zumbi dos Palmares (data da morte do líder negro). Não admitíamos uma data imposta. Avançamos na história, sem olhar pelo espelho retrovisor. Guiamo-nos pela luz dos Orixás seguindo a trilha dos nossos antepassados. Guerreiros. Heróis. Dignos. A vanguarda apenas lançou uma semente de mostarda, cuja árvore nasceu frondosa para proporcionar sombra e abrigar irmãos sofridos.

Acervo M.Noelci Homero

Em 1969, participei do Grupo de Teatro da Sociedade Floresta Aurora que levou ao palco do Theatro São Pedro a peça de Vinicius de Moraes, Orfeu da Conceição , sob a direção artística do Aírton Marques. O elenco era composto por 32 atores negros. A mídia registrou que a casa atingiu sua lotação. A história registra que o Brasil incentivou e financiou campanhas na Europa pela vinda maciça de trabalhadores do campo e da cidade das regiões ibéricas e anglo-saxônicas,

criando mecanismos de bloqueio para evitar a expansão da miscigenação dos negros e índios brasileiros com migrantes oriundos de países não-brancos. É o que observamos em dois decretos. O primeiro, de 28 de junho de 1890, determinou que os agentes diplomáticos e cônsules brasileiros e a polícia dos portos deveriam impedir a entrada de criminosos, mendigos, indigentes e indígenas da Ásia e da África. Os africanos e asiáticos só poderiam ser admitidos mediante autorização do Congresso Nacional. O segundo, de n° 7.967, de 18 de junho de 1946, estabelecia: “ imigrantes serão admitidos de conformidade com a necessidade de preservar e desenvolver o Brasil, na composição de sua ascendência européia”. Hoje, entendo porque os governantes tinham tanto medo das caras negras. Era porque se os negros soubessem que a Abolição não foi um ato de bondade da Princesa Isabel, mas uma conquista da gente negra, que resistindo à escravidão fugiu para formar muitos quilombos e estabelecer estratégias de combate em busca da liberdade, começariam a elevar sua auto-estima e fariam uma revolução na busca da dignidade que lhes foi rasgada. Na realidade, o negro foi personagem da sua própria história, e, de forma subversiva, foi articulando e transformando um jeito de ainda hoje, depois de ter passado por dura escravidão e sofrer genocídio, estar presente neste País, compondo a maioria da população. Por tudo isso, a história do negro no Brasil merece correção de rumo. Como ensina o poeta do samba Jorge Aragão: no carnaval, “o negro faz a produção e assina a direção”.

Irene Santos

Antônio Carlos Côrtes Advogado criminalista com atuação na área dos direitos civis. Radialista e apresentador de televisão. Pesquisador da Cultura Negra, painelista e conferencista.Foi Secretário Geral da Junta Comercial do RS- JUCERGS. Professor da disciplina Estado e Segurança Pública, na Secretaria da Justiça e da Segurança Pública.-Academia de Polícia, em 2002/03. Foi Conselheiro Fiscal da Associação Riograndense de Imprensa. Foi presidente da Sociedade Floresta Aurora.

As Caras Pretas - 71

EDUC AÇÃO DOS NEGROS E DAS NEGRAS Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva

Educação é tudo... educação que a gente recebe na vida

e também aquela da escola. (Euclides Amaral)

Para ser uma pessoa educada, africanos e também afro-descendentes por este mundo afora concordam, é preciso freqüentar escolas. Quanto mais avançados forem os níveis de estudos que se atingir, mais educado se é. Isto, evidentemente, se esta educação não nos afastar do nosso povo, das suas tradições, da nossa identidade africana. Se os estudos em escolas e faculdades nos levarem a esquecer nossos antepassados, nossa comunidade, negar nossa negritude, seremos, de acordo com a sabedoria de raiz africana, muito escolarizados, mas nada educados.

Acervo Petronilha B.G.e Silva

Nós negros gaúchos, nós, negros brasileiros, se se avaliar a profundidade da nossa educação simplesmente pelo tempo que freqüentamos escolas, haverá julgamentos apressados que dirão sermos pouco educados. Durante o período escravista e no pósabolição leis e normas sociais não escritas impediam nosso acesso a escolas. A partir da Lei do Ventre Livre, criaram-se patronatos agrícolas para acolher os meninos negros; orfanatos, as meninas negras. Ali, pensava-se preparar trabalhadores e trabalhadoras

Acervo Antonio C.Côrtes

para as atividades menos valorizadas, tidas como pouco complexas e por elas pagarem-se salários baixos. Tentavase, assim, criar um lugar de negros na sociedade e no mundo do trabalho. Conscientes desta situação, nossos bisavós, avós, pais e mães rebelaram-se e resistiram. Filhos de analfabetos se alfabetizaram, concluíram o primário, o ginásio, chegaram à faculdade. Filhos das lavadeiras, das cozinheiras, das costureiras, dos foguistas, dos bedéis, dos operários se tornaram professores, médicos, advogados, arquitetos, funcionários públicos de escalão superior. Eles não vão passar o que eu passei, eles vão estudar, estas palavras do maquinista Ramão Fernandes, referindo-se aos filhos, ecoaram e ainda ecoam no universo das nossas famílias negras.

Acervo Oliveira Silveira

Tios, primos, amigos se unem aos pais e irmãos do estudante, seja moça ou rapaz, jovem ou nem tanto, para dar o apoio afetivo, intelectual, material. Grupos do Movimento Negro incentivam e criam condições com a oferta, entre outras, de reforço escolar, de curso pré-vestibular. A família e a comunidade, cada uma a seu jeito, se vêem responsáveis pelo sucesso dos que se empenham nos estudos. Cada estudante que vence, a família se realiza, a comunidade também. Educar-se, para nós negros, não é caminho de realização individual. Toda a comunidade que representamos e da qual fazemos parte, se afirma, torna-se mais forte com a nossa realização. Somos ainda poucos os licenciados, os bacharéis, os mestres, os doutores negros. Muito poucos se considerarmos o total da população negra, o total de mulheres e de homens negros em idade de serem portadores destes títulos. Mas mesmo assim, nem tão poucos: - Tu conheces o Fulano de Tal? perguntou-me Vera Triumpho – Não, respondi – Graças a Deus! Já tem negro que é doutor e a gente não conhece! Já não somos tão poucos! - regozijou-se ela.

Acervo Valdemar Brum

Embora nossos antepassados escravizados tenham chegado, ao Brasil, há quinhentos anos, os doutores e doutoras, notório-saber negros, vivos, seniores no campo da pesquisa, estão na faixa entre 50 e 60 anos de idade e começaram a obter titulação a partir da metade dos anos 1980. Por isso, ainda não temos negros, com formação em nível superior, em número significativo para participar dos diferentes níveis de decisão político e social. Por isso, batalhamos por programas de ações afirmativas que garantam o acesso dos Educação dos negros e das negras - 73

74 - NEGRO em Preto e Branco Acervo M Regina B.Pinto

negros aos bancos universitários, e a realização de seus estudos com sucesso.

Acer vo Manoel F.Rosa e Silva

Somos poucos, mas temos educação de qualidade, porque não meramente técnica nem restrita a benefícios individuais. Nossa educação,nos faz responsáveis pela felicidade e progresso das nossas famílias e da comunidade negra. Razão porque precisamos estar atentos à ação e ao pensamento daqueles dentre nós que tem a formação de escola e também aquela que vem da história e da cultura do nosso povo afro-brasileiro, dos africanos. Juntamente com eles e com nossa comunidade, que inclui a todos, também, é claro, os que têm mais educação da vida do que de escola. Tendo como suporte a nossa espiritualidade, vamos cada vez mais participar da construção de uma nação brasileira democrática que respeite, considere e se proponha a transformar, naquilo que indicarmos, nossa situação históricocultural, social, econômica de povo negro. Continuemos buscando os bancos escolares, fortalecendonos como negros, descendentes de africanos, participando da construção da nação brasileira.

Irene Santos

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva

Docente da Universidade Federal de São Carlos/ SP. Participa da coordenação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros desta Universidade. Conselheira da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, por indicação do Movimento Negro.

Com as bençãos e a guarda de São Benedito Arquivo Revista do Globo

Arquivo Instituto São Benedito

O Asilo São Benedito foi fundado em 12 de maio de 1912, destinado a atender crianças negras, especialmente meninas, órfãs e desvalidas, com o objetivo de serem amparadas e educadas. Funcionou no Centro de Porto Alegre, na Rua da Praia, depois na Rua Avaí e, mais tarde, na Rua Ramiro Barcelos. Era mantido por donativos da comunidade e dirigido pela Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria. As asiladas, desde cedo, mesmo brincando com suas bonecas, aprendiam a cozinhar, bordar e costurar. Também recebiam aulas de música e “um curso básico de letras primárias e rudimentos em geral”. As meninas ali cresciam. Adolescentes,”eram encaminhadas a casas de famílias, aptas a tomar conta dos serviços domésticos”, escreveu o jornalista Carlos Reverbel em 1948 para a extinta Revista do Globo. Muitas casavam na Igreja das Dores, tinham filhos e trilhavam outros caminhos bem longe do Asilo.

Muitos anos depois, o Asilo virou Instituto e passou a ter sua base de atendimento no Bairro Belém Velho. Foi também alterado o regime de internato para semi-internato a fim de manter as crianças mais ligadas à família. Atualmente, o Instituto São Benedito acolhe crianças e adolescentes de famílias pobres, de 4 a 14 anos de idade, que permanecem na instituição, diariamente, enquanto seus pais trabalham. Recebem três refeições diárias, reforço escolar, formação religiosa e pedagógica, atividades esportivas, recreação, clube da árvore, trabalhos manuais, aulas de culinária e oficinas (artesanato, pintura em tecido, dança, canto, teatro, iniciação à informática e língua inglesa). Contam, ainda, com atendimento psicopedagógico, dando ênfase a um trabalho preventivo junto às famílias, para que as mesmas tenham condições de se estruturar e assim, alcançar melhor qualidade de vida.

Educação dos negros e das negras - 75

76 - NEGRO em Preto e Branco Acervo M. Conceição L Fontoura

Acervo Maria de Lourdes da Luz

Rapaz com o uniforme da Escola Pão dos Pobres

ESCOLA PÃO

DOS

POBRES

“Bonequinha Preta” na festa da creche Acervo M.Noelci Homero

A Escola da Fundação Diocesana Pão dos Pobres de Santo Antônio, é uma instituição que faz parte da história de Porto Alegre. Foi fundada em 1895 pelo Cônego baiano Marcelino de Souza Bittencourt com o propósito inicial de atender viúvas e órfãos de soldados mortos na Guerra do Paraguai e na Revolução Federalista de 1893. O primeiro abrigo foi construído às margens do Guaíba num terreno que pertencera à Baronesa do Gravataí e ao Barão do Nonoai, no chamado bairro Praia de Belas. Era um conjunto de pequenas casas feitas para alojar 18 famílias que viviam na extrema miséria. Passados alguns anos, a escola volta-se somente para crianças, adolescentes órfãos e excluídos sociais, acolhendo-os em regime de internato. Em 1930, o presidente Getúlio Vargas inaugurou o prédio, onde os meninos passam a aprender o artesanato da carpintaria, da encadernação e impressão de livros, bem como atividades relacionadas à funilaria, fabricação e restauração de calçados.

Acervo Sirmar Antunes

Acervo M Noelci Homero

Acervo M Conceição Fontoura

Acervo Odyla Junqueira

Acervo M Noelci Homero

Formanda de Contabilidade Acervo Neura Santos da Silva Arquivo Imágica

Acervo Marilene Paré

Formando de Administração de Empresas Arquivo Tição

Acervo A.C.Côrtes

Professora Geraldina da Silva

Educação dos negros e das negras - 77

78 - NEGRO em Preto & Branco

Doutor Veridiano Farias vence a intolerância racial Se não fosse a persistência, o primogênito do casal Frankilin e Maria Farias teria passado a vida conduzindo os bondes pelas ruas de Porto Alegre. Não que essa profissão de motorneiro fosse um demérito. Só que esse não era o desejo do então jovem Veridiano Farias. De dia, o bonde. À noite, a música. “Um músico completo”, assim dizia quem o conhecia. Os elogios se justificavam. Veridiano era um multiinstrumentista. Passava com facilidade suas pautas musicais no piano, violino, saxofone, bateria e por todos os instrumentos de percussão. E, de quebra, era ensaiador do bloco carnavalesco Os Prediletos. Na coletânea dos amigos conquistados nas noites de muita música, os nomes de Lupicínio Rodrigues, Rubens Santos, Túlio Piva e do carioca Jamelão, entre tantos outros. Com todo esse talento, Veridiano Farias buscava outros caminhos e tinha um sonho: queria ser médico. O tempo, no entanto, mostrou para ele, jovem condutor de bondes, que perseguir sonhos numa sociedade recém saída do período escravocrata era uma tarefa nada fácil, principalmente para quem era negro. Por três vezes, Veridiano fez o vestibular para ingressar na Faculdade de Medicina de Porto Alegre. E por três vezes, o resultado apresentado era a reprovação. Muito estudioso, ele sabia que tinha se saído bem nas provas e não admitia os resultados negativos. Pleiteava revisão de provas e explicações para as reprovações, mas a direção da Faculdade sequer lhe dava atenção. Após estas tentativas, Veridiano Farias foi para o Rio Janeiro, onde fez sua inscrição para mais um vestibular de Medicina. Foi aprovado, obtendo a segunda colocação. Foi a vitória da persistência. Permaneceu por um ano na, então, Capital Federal.

Acervo Éder Luis Farias

Para sobreviver e sustentar a família - a mulher, Isabel, e os filhos Judith e William Jurandir - Veridiano tocava nas orquestras cariocas. E fazia sucesso...

Acervo Éder Luis Farias

A vitória no vestibular da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro avalizou a carta enviada ao presidente Getúlio Vargas. Nesse documento,Veridiano expôs a intolerância do reitor e da direção racista da Faculdade de Medicina gaúcha. O presidente deu devida atenção ao pleito de Veridiano Farias. Ordenou que ele fizesse novo vestibular no Rio Grande do Sul e tivesse acesso a todas as provas e solicitasse a revisão necessária. Resultado final: aprovação e classificação geral: 2º lugar. Por cinco anos, Veridiano cursou a Faculdade de Medicina. Fez mais dois anos de Especialização em Dermatologia, prestou concurso para a Saúde Pública, obtendo o primeiro lugar. Com esse currículo de aprovações era o candidato certo ao cargo de Diretor do Leprosário, em Itapuã. Não houve tempo. Um dia antes de assumir, veio a falecer.

Irene Santos Irene Santos

O Dr. Veridiano Farias foi homenageado pela municipalidade e seu nome foi dado ao logradouro que inicia na Rua Eça de Queiróz e finda na Rua Farias Santos, no bairro Petrópolis. Por coincidência, seu neto Éder Luis Farias, na foto ao lado, funcionário da ECT, durante dezesseis anos entregou correspondências nesta rua.

Educação dos negros e das negras- 79

COBRANDO Edilson Nabarro

A DÍVIDA

O Movimento Negro experimenta uma de suas fases mais ricas e decisivas, caraterizada pelo inconformismo, resistência e positivação. Durante quatro séculos, a lógica exploradora ocidental naturalizou a idéia de que a inferioridade étnica, biológica e cultural dos africanos justificava a humilhação e o sofrimento de milhões de criaturas humanas. As estruturas religiosas, jurídicas, ideológicas e políticas trataram de criar os instrumentos práticos que produzissem as desigualdades, baseadas na cor da pele e na origem cultural dos indivíduos. Assim, Estado e Sociedade se fundiram em um só Ente. Erigiram discursos, condutas, atitudes e leis, de modo a consolidar o mundo dos brancos , com seus símbolos, ícones e um amplo inventário de conquistas e virtudes. Aos negros restava a resignação e a tarefa de dia-a-dia sepultar suas esperanças. Estamos agora diante de um novo tempo. A luta negra já não mais suporta a idéia de que a inferioridade seja a responsável por todos os indicadores de desvantagem social e econômica que as famílias negras vivenciam. Tornou-se insuportável um conformismo inócuo e dilacerante. Descobriu-se também que o Estado brasileiro não apenas nada fez para efetivar a integração do negro na sociedade como estabeleceu os limites dessa integração. A herança do domínio colonial e as leis republicanas fundamentaram a desproteção dos exescravos. O 14 de maio ainda está por vir com toda a plenitude das medidas que garantam o estabelecimento de reparações sociais. A sociedade brasileira aboliu a escravidão enquanto modo de

produção, mas manteve um preconceito e discriminação muito mais perverso que o antigo regime. Passados mais de um século, ou seja, três gerações, o Movimento Negro contemporâneo reinventa um novo 14 de maio, dando significado à luta de Zumbi dos Palmares e tantos outros guerreiros negros que lutaram por liberdade. As políticas públicas voltadas à recuperação social e econômica dos negros, antes de tardiamente representar uma obrigação do Estado Brasileiro para com uma parcela significativa da sociedade, é ação indispensável para a afirmação da democracia, da justiça social e do cumprimento de todos os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. A mão “generosa” do Estado, que tantos recursos públicos disponibilizou às elites, agora deve assumir suas responsabilidades com a “parte de baixo” da sociedade. Como pode um País com uma população de significativa presença africana não defender as virtudes da diversidade e praticar a tolerância e o respeito a todas as culturas que sintetizam os valores nacionais ? A afirmação do orgulho da raça e a reconstrução de uma identidade étnica, desprovida de ódios e temores, muito dependem da aceitação por parte do Estado e da sociedade brasileira de um novo pacto de relações políticas e sociais. Combater o racismo até as últimas conseqüências, incluir com mais rapidez e extensão os negros no centro dos benefícios, das oportunidades e dos direitos, eis a tarefa que cabe aos governos e à sociedade. O Brasil não será altivo, verdadeiro e justo se não apagar o rastro de iniqüidades provocadas pela escravidão, o preconceito e o racismo. Caberá aos novos Zumbis manter intacto a sua utopia e adubar o solo da liberdade e da

Irene Santos

Edilson Nabarro Sociólogo Pós-Graduado/UFRGS. Militante do Movimento Negro desde a década de 70. Um dos fundadores da Revista Tição e do MNU/RS. Nos últimos anos participou de inúmeros debates, painéis e conferências sobre a temática racial. Tem diversos artigos publicados em jornais e revistas. Foi assessor técnico do CECUNE, Conselheiro do CODENE e Membro do Projeto Negro na Educação da SE-RS. Atualmente é membro do Conselho Universitário da UFRGS

Cobrando a Dívida - 81

Carlos Santos COBRANDO A DÍVIDA Edilson Nabarro

Nascido em Rio Grande, Carlos Santos foi o primeiro negro a assumir, em 1967, a presidência da Mesa Diretora da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Igualmente, inscreveu seu nome na história do Executivo gaúcho ao exercer por duas vezes, interinamente, o Governo do Estado.Sua trajetória de vida teve início em 9 de dezembro de 1904. A infância foi interrompida quando, ainda menino, começou a trabalhar numa metalúrgica em Rio Grande. Dedicado, fez carreira em seu local de trabalho. O jovem operário mostrava uma visível liderança que o conduziu, em 1935, ao cargo de Deputado Classista na Assembléia Legislativa. Sua ascensão ao Parlamento foi um fato inédito na sociedade gaúcha. Com o advento da ditadura do Estado Novo, em 1937, o Legislativo foi fechado. Carlos Santos retorna à sua cidade. Deixa de ser operário e passa a trabalhar no Ginásio Municipal Lemos Júnior. Estudar era preciso principalmente para concluir o curso primário. Incentivado por amigos, foi adiante. Fez o secundário e ingressou na Faculdade de Direito de Pelotas, onde recebeu o diploma em 1950. Mais do que a advocacia, a carreira política o fascinava. Nas eleições de 1958 seu nome foi consenso na convenção do PTB e Carlos Santos voltou a ser no ano seguinte deputado estadual. Situação que se repetiu nos pleitos eleitorais de 1963, 1967 e 1971. Com uma carreira solidificada no legislativo estadual, Carlos Santos exerceu o mandato de deputado federal de 1975 a 1982, ocasião em que elaborou projetos voltados para a área dos direitos humanos,

Arquivo da Assembléia Legislativa/RS)

ecologia, previdência, crianças carentes, pessoas portadoras de necessidades especiais e questões habitacionais.

Diplomação do deputado Carlos Santos

Arquivo da Assembléia Legislativa/RS)

Inauguração do prédio da Assembléia Legislativa em 1967

Quando todos julgavam que iria pleitear mais um mandato na Câmara Federal, Carlos Santos resolveu parar. Estava com 78 anos e julgava que não tinha fôlego para enfrentar mais uma maratona de vida pública. Suas atuações no plenário estadual e federal tiveram o reconhecimento do Estado, em 1988, quando recebeu do Governador Pedro Simon a medalha da Ordem de Ponche Verde, no grau de Cavaleiro. O discurso de despedida parlamentar demonstra a preocupação do Deputado com o preconceito e discriminação racial presentes no País:

“Minha esperança é de que esta nova geração saída das universidades tenha força para realizar o que sempre foi meu grande sonho: a elevação dos negros brasileiros a uma situação condigna e reconhecida. Por três vezes da Tribuna da Câmara, fiz apelos ao Presidente da República para que não fizesse mais referências à não existência do preconceito de raça ou de cor no Brasil. Ao afirmar que isto não existe ele está prejudicando o negro porque realmente existe preconceito. Já José do Patrocínio dizia que, preconceito de raça, só nós negros, podemos sentir. E é preciso sentir na própria carne a “inexistência” do racismo no Brasil”.

Irene Santos

O logradouro situado na Avenida Ipiranga com São Manoel, recebeu a denominação de Esplanada Deputado Carlos Santos, em 2004, como homenagem da Prefeitura de Porto Alegre ao ilustre homem público no ano do centenário de seu nascimento

Cobrando a Dívida - 83

84 - NEGRO em Preto e Branco

Alceu de Deus Fui o primeiro negro a chegar à Prefeitura de Porto Alegre e ao governo do Rio Grande do Sul. O povo gaúcho depositou em mim, filho de um negro analfabeto e de mãe índia, a confiança para administrar este Estado e sua Capital. Fui uma exceção.Tive forças para superar todas as dificuldades e, durante quase cinqüenta anos, acordei às quatro horas da manhã para estudar e ter condições de competir. Não quero ser exceção. Quero ser uma regra. Nós, negros, somos discriminados porque não recebemos oportunidades iguais. Eu poderia dizer que não há racismo, mas ele existe . Temos que reivindicar nossos direitos. Outras etnias vieram ao Brasil por livre e espontânea vontade. Os negros, não. Foram atirados em porões de navios imundos, tiveram suas famílias separadas e enfrentaram o horror da escravidão. Não somos superiores, nem inferiores. Somos iguais. Não queremos enfrentamento com pessoas de outras raças mas é preciso entender que o Brasil tem uma dívida social com os negros.

Alceu de Deus Collares 1964 - Vereador em Porto Alegre 1970 - Deputado Federal mais votado 1974 - Deputado Federal mais votado do Estado 1978 - Deputado Federal 1986/1988 - Prefeito de Porto Alegre 1991/1994 - Governador do Estado do Rio Grande do Sul 1998 - Eleito pela 4ª vez Deputado Federal (1999/2003) 2002 – Eleito pela quinta vez Deputado Federal 2004 - Completou 40 anos de vida pública. http://www.collaresonline.com.br

Ser um político negro Falar sobre esse assunto, sobre nossa trajetória e sobre a importância de “ser um parlamentar negro no Brasil”, representa para nós, afro-brasileiros, um motivo de alegria. Não apenas por termos nosso trabalho reconhecido, mas, principalmente, por considerarmos as conquistas de cada um dos negros de nosso País como grandes vitórias. Dizemos isso porque, apesar de sermos praticamente metade da população brasileira, infelizmente, ainda não nos encontramos no mesmo patamar dos brancos. Muito já se avançou, mas ainda não chegamos ao ideal. Precisamos, no caso da vida pública, atentar para o fato de que existem setores da sociedade que não são representados nas instâncias do Estado e, na maioria das vezes, acabam sendo esquecidos. Como diz a frase: “quem não é visto, não é lembrado”. Nós, afro-brasileiros, somos agentes da mudança. Por pensar assim é que, enquanto sindicalista, fui vicepresidente da CUT em âmbito nacional. Fui deputado federal por quatro mandatos e, atualmente, como senador, pauto meu mandato nos direitos sociais. Isso para defender os cidadãos, brancos ou negros. Cumpro meu papel como vice-presidente do Senado, período em que vi aprovado o Estatuto do Idoso. Agora trabalho para a aprovação dos Estatutos da Igualdade Racial e da Pessoa Portadora de Deficiência. Minha intenção é contribuir para elevar e melhorar a qualidade de vida dos brasileiros, assim como a distribuição de renda em nosso País. Por isso, ocupo um espaço que entendo ser legítimo de homens e mulheres que têm compromisso com a questão social. Nossa sociedade precisa ter consciência da importância da nação negra na construção de nossa história e, quando falamos em construir, devemos olhar para nosso passado, nosso presente e caminharmos para o futuro que desejamos: um Brasil solidário e, de fato, igualitário.

Senador Paulo Paim

Cobrando a Dívida - 85

CABELO BOM

Isete Maria do Nascimento

A sociedade tem atribuído relevante valor social e cultural à moda, que se manifesta não só no vestuário como também na maquilagem e nos cabelos. Deve-se ressaltar que o vestuário não é fator distintivo da população negra no período retratado, razão pela qual não nos deteremos neste aspecto. O cabelo, este sim, é o traço mais relevante e o que mais a diferencia.

Acervo M.Noelci Homero

Assim, a construção de uma imagem e de uma estética tipicamente negras remete à importância do rosto no realce da beleza e na valorização de traços, onde o cabelo exerce papel fundamental quando se quer compor um visual.

Acervo Valdemar da Silva Brum

Arquivo Tição

Acervo Elenir G.Marques

Acervo Antonio C.Côrtes

Arquivo Imágica

Acervo Maria H.Ancrade

Acervo Marilene Paré

Acervo Manoel F.Rosa e Silva

Acervo Carmem Amora

Acervo Neura Santos da Silva

Acervo M.Noelci Homero

Acervo Osvaldo F. Reis

Cabelo Bom - 87

88 - NEGRO em Preto e Branco

Em Porto Alegre, quase não existiam salões de beleza com cabeleireiros especificamente voltados para a população negra; os precursores foram o Marujo e a Georgina, o primeiro localizado na Zona Norte e o último no bairro Bom Fim; ambos utilizavam processos diferentes de tratamento, mas com a mesma finalidade: alisar os cabelos. Mais tarde, surgiram novos salões, com propostas diferenciadas. Um aspecto importante a ser salientado é o da utilização do cabelo, também, como símbolo de uma luta para elevar a auto-estima e fortalecer a identidade racial, como fizeram os movimentos negros, inspirados no Black Power. Nesse período, que corresponde ao final dos anos 60, além dos cabelos, houve a adoção de toda uma estética, incluindo roupas e acessórios, como reflexo do “black is beautiful”, movimento cultural e comportamental norte-americano. Por conseguinte, a valorização da consciência racial leva a população negra a repudiar expressões desrespeitosas e eivadas de preconceito como “cabelo ruim”, “cabelo duro”, largamente difundidas, inclusive através de músicas que depreciam principalmente a mulher negra. Na verdade, nosso cabelo é diferente e, através de cortes e penteados, busca-se a valorização dessa diferença. Nas imagens, estão retratadas inúmeras possibilidades que o nosso cabelo oferece, adotando estilos diferentes, que vão desde os penteados mais simples, leves e despojados até os mais elaborados e charmosos; assumindo formas diversas, ora soltos, ora presos, trançados, torcidos, enfeitados, moldados em coques e topetes, exibindo volumes simétricos ou não para realçar este traço da beleza negra.

Irene Santos

Isete Maria do Nascimento

Licenciada em Letras/ UFRGS. Professora de Literatura e Língua Portuguesa

Acervo Maria Guedes

Acervo Vera Neuza Lopes

Acervo Maria Regina Borges Pinto

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo M.Noelci Homero

Acervo M.Noelci Homero

Acervo Odyla Junqueira

Cabelo Bom - 89

90 - NEGRO em Preto e Branco Acervo Zilah Machado

Acervo Marilene L.Paré

Arquivo Imágica

Arquivo Imágica

Acervo M.Noelci Homero

Acervo Irma Nascimento

Acervo M.Noelci Homero

Arquivo Imágica

Acervo Renato Costa

Acervo Paulo Chimendes

Acervo Renato Costa

Cabelo Bom - 91

92 - NEGRO em Preto e Branco

Pentes, tesouras e chapinha O primeiro salão de beleza aberto para mulheres e jovens negras em Porto Alegre nasceu do desapontamento de uma adolescente com 16 nos de idade. Frustrada e humilhada porque nenhuma cabeleireira branca quis cortar seus longos e crespos cabelos, Georgina Pinto definiu o curso de sua vida e tornou-se uma especialista no trato dos cabelos. Abriu o “Salão Colored” sob a influência dos cortes e penteados das cantoras do jazz norte-americano que via nas fotos das revistas dos anos 50. Inicialmente aproveitou a garagem de sua casa localizada na Rua Francisco Ferrer, em plena Colônia Africana, para atender amigas e primas. A notícia se espalhou pela cidade e logo o espaço tornou-se pequeno. Sua marca registrada foram os alisamentos com pente quente e os penteados sofisticados para festas. Mais tarde, ali por volta dos anos 70, o mais antigo salão de beleza voltado para mulheres negras lançava um novo método: o alisamento a frio que logo ganhou um grande número de adeptas. Ivone Fontes, 71 anos, que acompanhou Georgina desde o início - eram primas - lembra dos penteados elaborados feitos com o pauzinho lixado e encerado, “ótimo para fazer os bucles, muito em moda na época”. Além disso, prossegue Ivone, havia a tesoura marcel que servia para frisar os cabelos. O pente quente está na lembrança de Maria Izabel Ribeiro da Silva, 58 anos, que morava no Interior e não tinha acesso aos salões de beleza. “Minha mãe é que cuidava dos nossos cabelos e segundo ela o segredo de um bom alisamento estava na lavagem. Se os dedos rangiam no couro cabeludo era sinal que a cabeleira fora bem lavada. O passo seguinte era separar os cabelos desde a raiz, passar vaselina ou brilhantina Gessy e fazer anéizinhos. Cobrir com um lenço e aguardar o dia seguinte. Mas o melhor mesmo para deixar os cabelos bem lisos era untá-los com óleo de mocotó misturado com duas gotinhas de alfazema ou água de colônia. O processo era o mesmo da vaselina; só no dia seguinte é que se soltavam os anéis e começava o alisamento com o pente de ferro que era aquecido no fogão a lenha”.

Acervo da família

Irene Santos

Silvio Alencastro - Arquivo Tição

Georgina Pinto Pauzinho para fazer bucles Irene Santos

Irene Santos

Salão Colored atualmente na Avenida Osvaldo Aranha Acervo Adão Alves de Oliveira

Penteados da moda dos anos 50

Cabelo Bom - 93

94 - NEGRO em Preto e Branco

A bela Olivia

Realmente, parece que o tempo parou. E, na maturidade, Olívia Maria Bica Pereira mantém, serenamente, a beleza e o charme. Dois quesitos fundamentais para que ela, uma negra, conquistasse, em outubro de 1969, o título de “A Comerciária do Ano”. Recordar esse evento e a trajetória de Olívia é lembrar uma Porto Alegre muito antes das galerias refrigeradas dos shopping centers. Afinal, o melhor do comércio se concentrava no centro da cidade. E a vitrine da moda e da elegância tinha um nome pomposo: Rua dos Andradas, a nossa Rua da Praia. O estrangeirismo - nomes alemães e italianos - marcava as fachadas das lojas. O povo soletrava mal. Atrás dos balcões de atendimento somente funcionários brancos. Não havia no comércio porto-alegrense central reserva de mercado para a população negra. Por isso, quando cruzavam a porta de vidro da hoje desaparecida e famosa Casa Louro - esquina da Avenida Borges de Medeiros com a Rua da Praia -, muitos clientes se surpreendiam ao ver a bela e serena Olívia Pereira. “As pessoas não conseguiam esconder a surpresa e o embaraço ao se deparar comigo à frente, ou atrás do balcão”, lembrou. Mais do que pela beleza, Olívia Pereira entrou para a história do comércio como a primeira balconista negra da série

de lojas existente no perímetro da Rua da Praia. “Com a minha contratação abri espaço para outras pessoas negras. Naquela época não havia negros no atendimento ao público ”, recordou Com o decorrer do tempo, o que era espanto virou atração da loja e Olívia passou a ser disputada pela clientela feminina e masculina que queria ter o privilégio do seu atendimento. Ao recordar sua trajetória de vida, Olívia revela que a sorte foi sua grande aliada desde a conquista do primeiro emprego. Com 19 anos começou a trabalhar como ajudante de costureira na Casa Louro. Segundo ela, seu primeiro sinal de sorte. Como costureira, sua produção, no entanto, não correspondia e veio o aviso da demissão. O segundo sinal da sorte aconteceu quando o dono da loja – João Sondermann – a encontrou chorando pelos corredores e Olívia explicou que ia ser despedida sem ter uma outra oportunidade de trabalho. Da conversa com João Sondermann resultou a chance de mudança de setor. Na ocasião, alguém lembrou ao dono da

Desfile exclusivo para clientes da Casa Louro nos anos 60 (fotos do acervo de Olívia Pereira)

Casa Louro que as vendas poderiam ser prejudicadas pelo fato de ter uma negra no atendimento direto ao público. “Ele ignorou o aviso e apostou em mim”, enfatizou. Olívia fez um estágio e em poucos meses conseguiu atingir o mesmo grau de eficiência das demais comerciárias. “A Comerciária do Ano” foi um concurso em que as candidatas recebiam o apoio da população, através de votos, para passar à etapa final, ocasião em que eram avaliadas por um corpo de jurados. Cabelo Bom - 95

96 - NEGRO em Preto e Branco

A beleza era um pré-requisito, “mas não significava tudo”, recorda Olívia ao dizer que se somava a este quesito o domínio no desempenho da tarefa como balconista, a elegância, o comportamento (etiqueta). “As exigências eram muitas – fizemos três testes escritos e passamos ainda por entrevistas individuais - nesse que foi, na minha opinião, um dos maiores concursos já realizados no comércio gaúcho”. Olívia Pereira chegou ao título superando mas de 50 candidatas do Interior e da Capital. A festa foi realizada no Teresópolis Tênis Clube. Como prêmio à sua eficiência, beleza e elegância, ganhou um apartamento de 32 metros quadrados e uma viagem para Nova Iorque, onde viveu por duas semanas seu sonho de cinderela. Hoje, passados 36 anos dessa conquista, Olívia continua fazendo aquilo que mais gosta: deixar as mulheres mais bonitas com as roupas que vende.

PERNAS FAZEM PERDER A CABEÇA...

Linha 74 -Glória “Na esquina da Av Borges de Medeiros com a Rua dos Andradas, manequins estavam desfilando na passarela armada pela Casa Louro, na sobreloja, para o público. O motorista do ônibus número 113, da Glória, não se conteve ante o espetáculo. E com o veículo cheio de passageiros, uma das mãos no volante, o resto do corpo para fora, procurou observar melhor as jovens que desfilavam acima de sua cabeça.” (Folha da Tarde, 05/11/1970)

Beleza Pura

“Minha participação no “Rainha das Piscinas” foi um ato de coragem. A gente nunca sabe quando pode mudar a história. As pessoas deixam de fazer as coisas por medo. Devem ter em mente que são capazes, que podem. Decidi participar dos concursos porque, até então, não havia sofrido nenhum tipo de preconceito. Depois, as discriminações me fizeram ver o mundo de outra forma.” Conta a lenda que foram necessárias três votações para que o seu nome se confirmasse como o de Rainha das Piscinas do Rio Grande do Sul naquele ano de 1984, o último concurso promovido pela Empresa Jornalística Caldas Júnior. O cenário era o Gigantinho, onde o público aguardava o nome da vencedora, entre as 78 candidatas representantes do Estado. Depois de três nervosas apurações, e como se mantivesse o resultado, o corpo de jurados decidiu confirmar o inesperado veredicto. Aos 16 anos, Deise Nunes de Souza mudava um padrão de beleza, tornandose a primeira mulher negra a conquistar um título estadual. Naquela época, o Rainha das Piscinas superava em importância o concurso Miss Rio Grande do Sul, evento que, historicamente, revelara mulheres bonitas para o Brasil e o mundo. “Foi uma surpresa para mim, que não imaginava vencer o concurso. Foi, também, a primeira vez em que percebi que minha cor era motivo de discriminação”, revela. Deise começou a tomar gosto pela passarela ainda cedo. Aos 13 anos fez seu primeiro desfile, no Salão da Igreja Pão dos Pobres. Criou-se nas piscinas do Grêmio Footballl Porto-alegrense, mas foi pelo Sport Clube Internacional que disputou o título, a convite da direção do clube. O título lhe abriu portas e ela continuou trabalhando como modelo e manequim. Em 1986, por influência da mãe, Deise decide participar do concurso Miss Brasil, promovido pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), tornando-se a primeira mulher negra a conquistar esse título. Curiosamente, Deise conquistou projeção nacional patrocinada pelo município gaúcho de Canela, e não por Porto Alegre, sua terra natal. Cabelo Bom - 97

A CANELA PRETA Jones Lopes da Silva

C uriosa a situação do inventário das pessoas. Suas provas mais definitivas estão aninhadas no fundo de uma gaveta, sumidas no roupeiro ou bem guardadas em pastas de papelão, caixas de sapato, às vezes. É um montinho de fotos presas por atilho, outras estão ali amassadas, amareladas, rasgadas, renegadas. De qualquer jeito são reveladoras. Pois bem, vamos vasculhar esse armário da casa da mãe preta.

Acervo Osvaldo F. Reis

Lembra daquela foto do seu Pretinho? Uma em que ele aparece com outros dois amigos em pose num campo de futebol. Há uma bola de couro na frente deles, na época em que existia bola de couro. Não se conhece a data. Nem se sabe de onde veio. Quantos anos teria seu Pretinho? Ele jogava assim, de gorrinho? Quem o conheceu das redondezas de Porto Alegre? Um craque de bola, logo se vê pela imponência da figura e pela esperteza do olhar. Como o nosso personagem nunca obteve a devida atenção de alguém que escrevesse suas histórias, restam as fotos. Que aliás dizem tudo. Aqui há uma outra foto dele. Observem a intenção de mostrar ao fundo uma várzea seguida de um povoamento.

Acervo Osvaldo F. Reis

Afinal, quem era o nosso craque, agora de boina em vez do gorro? Vejam as pernas franzinas do seu Pretinho, entre as meias erguidas e o calção de cano longo. Talvez seja ele um descendente da histórica Liga Nacional de Futebol PortoAlegrense. Ou melhor, a Liga da Canela Preta. Pouco se sabe dela. Nasceu antes de 1920 na Colônia Africana e se manteve até o início do profissionalismo no futebol, em 1933. Sem chance nos times de gente de bem, negros, mulatos e correlatos criaram campeonato próprio, algo como um certame interno do apartheid de então. Era uma polvadeira só, e dali brotaram craques anônimos de canelas magrelas como as do seu Pretinho. Com o tempo, clubes tradicionais como o Americano e o Internacional cresceram os olhos e arrebanharam destaques da Liga. Ainda assim, no início, incorporaram apenas mulatos, sararás, sarobas e saribas.

Acevo da familia de Everaldo Marques da Silva

Uma outra foto. É o esquadrão do valoroso Leão da Montanha. O nome é vistoso, o registro de 1940 e a formação sugere um time de vila da Capital. O Leão, assim como está, alinhado, nos conduz à idéia de seqüência: muito tempo depois, a Canela Preta continua. Persiste até hoje. Seria Osmar Fortes Barcelos, o Tesourinha, a legítima perpetuação da Canela pelas pontas? Seria Everaldo um de seus ídolos? Dos campinhos do morro da Glória à entrada triunfal na cidade assomado em um carro de bombeiros com a Taça Jules Rimet em punho. Enfim, Oreco, Claudiomiro, Juarez, o Tanque, Escurinho, Tarciso, Doval, Dorinho, Alcindo, Ronaldinho, Roger, Tinga, Diego e Diogo teriam emergido da poeira dos redutos carecas da Liga, mesmo fora da época e mesmo os não porto-alegrenses? A Canela Preta- 99

100 - NEGRO em Preto e Branco Arquivo Tição

Como seria a zaga do Canela? Com Aírton e Florindo? Quem treinaria a seleção da Canela? Quem sabe o senhor desta foto? Chama-se Cândido José dos Santos, o Bataclã. Reparem a simetria dos braços em meio a um exercício físico, dos tantos que fazia pelas ruas da cidade. Pelo rigor do rosto, é ele o indicado ao comando deste time. Já podemos devolver as fotos à caixa de sapatos.

Bataclã

Irene Santos

Jones Lopes da Silva

Jornalista há 27 anos. É repórter e faz parte do grupo de editores do jornal Zero Hora. Participou da revista e do jornal Tição no início dos anos 80.

Acervo Wilson Pereira

LIGA D A CANELA PRET A DA PRETA 1910 é a data provável da criação da Liga Nacional de Football Portoalegrense, apelidada Liga da Canela Preta, que concentrou, inicialmente, os seguintes clubes: Primavera, Bento Gonçalves, União, Palmeiras, Primeiro de Novembro, Rio Grandense, 8 de Setembro, Aquidabã e Venezianos.

1950 - Esporte Clube 13 de Maio, da Colônia Africana

O SPORT CLUB INTERNACIONAL,

fundado em 1909, tem o primeiro registro de um jogador negro apenas em 1925 com a entrada do zagueiro Dirceu Alves

EVERALDO MARQUES

DA

S I LLVV A

lateral-esquerdo, foi um dos maiores craques da história do Grêmio. Tinha 13 anos de idade quando entrou para o Clube. Em 1967 ajudou o Brasil a conquistar a Copa Rio Branco, em Montevidéu, Uruguai. No ano seguinte, suas atuações mereceram o aplauso da torcida e da crítica especializada e foi consagrado como um dos melhores laterais-esquerdo do País. Em 1970 sagrou-se tricampeão mundial no México. Em sua homenagem, naquele mesmo ano, o Conselho Deliberativo do Grêmio fixou uma estrela dourada na bandeira do clube e entregou a ele o título de atleta laureado. Em 27 de outubro de 1974, quando tinha 30 anos, um acidente de trânsito encerrou sua carreira.

Acervo Família de Everaldo Marques da Silva

Everaldo

Jogadores do Grêmio e do Internacional, posando juntos para uma foto rara

A Canela Preta - 101

102 - NEGRO em Preto e Branco

Osmar Fortes Barcelos, Te s o u r i n h a , ponta-direita, assinou o seu primeiro contrato com o Internacional em 1940. Dois anos depois, o Vasco da Gama, o levou para o Rio de Janeiro. Foi considerado o jogador mais completo pela velocidade que impunha em suas jogadas e pelo drible desconcertante que aplicava em seus adversários.

Flávio Pinho - Florindo - também conhecido como Gigante de Ébano, (à esquerda na foto) nasceu em 1929, em Nova Friburgo/ RJ. No campo atuava como zagueiro. A torcida e a mídia o reverenciavam pelas jogadas fortes e combativas, capazes de parar um dos melhores centroavantes da época: o gremista Juarez (a direita na foto). O catarinense Juarez Teixeira começou a jogar no Grêmio em 1955, onde ficou até 1962. Tanque e Leão do Olímpico foram dois apelidos marcantes do lendário penta-campeão gaúcho (1956/1960). Entrou para a história do Grêmio por ser o primeiro jogador negro a integrar o Conselho Deliberativo.

Acervo José Tarciso de Souza

Sioma Breitman/ Acervo Alpheu C.Battista Jr

O mineiro José Tarciso de Souza foi trazido do América/RJ em 1973 . Durante 13 anos defendeu as cores do Grêmio tendo sido o jogador que mais participou do clássico Gre-Nal. Graças à sua velocidade, o pontadireita recebeu o apelido de Flecha Negra.Seu nome está na Calçada da Fama do Olímpico. S.C.Internacional em 1939 Acervo Alpheu C Battista Jr

Alpheu Cachapuz Battista foi considerado um dos mais perfeitos e velozes zagueiros do futebol gaúcho. Levava o apelido de Soneca por causa de sua calma preguiçosa f ora do campo. Começou a jogar no Internacional no início da década de 40, onde sagrou-se hexacampeão gaúcho - 1940-1945; bi em 1947/1948. O início da carreira foi em Bagé, jogando primeiro na várzea, depois no Grêmio Bagé e mais tarde no Guarani.

Futebol de Salão: Flávio ainda é o melhor “frente”

Ele parou de jogar futebol de salão há mais de 40 anos, mas dizem os especialistas e entendidos no esporte que ainda não surgiu um “frente” tão bom quanto Luís Flávio Silva Nascimento. Flávio foi o primeiro jogador negro a pisar numa quadra de futebol de salão no tempo em que a pequena bola era bem mais pesada do que é agora e era recheada com crina de cavalo. O garoto franzino e magro, mas rápido como um raio, era o terror das defesas adversárias. Flávio lembra que o futebol de salão veio para o Rio Grande do Sul por meio da Associação Cristã de Moços do Uruguai. Num encontro das duas ACMs - a gaúcha e a uruguaia - o esporte foi implantado no Estado por volta de 1956. Tempos depois, Flávio cruzava as portas da ACM para aprender a jogar. Uma vez por semana, a entidade abria seu ginásio de esportes para os não associados. A iniciativa tinha a função social de oportunizar o acesso a uma modalidade esportiva para aqueles que não tinham recursos para freqüentar um clube.

Fotos do acervo de Luis Flávio Nascimento

Dos jogos que não valiam nada na ACM, o juvenil Flávio foi convidado a integrar o time do La Salle e começou acumular títulos. Foi bicampeão porto-alegrense e bicampeão estadual. Suas atuações chamaram atenção dos adversários. O Esporte Clube Cruzeiro resolveu investir no talento do guri, colocando-o no time adulto. Não deu certo. Foi emprestado para o Gaúcho, de Canoas, onde permaneceu um ano jogando na categoria juvenil. Neste mesmo período foi convocado para a Seleção Gaúcha e logo conquistou a vaga de titular. Da Seleção Gaúcha foi para o Selecionado Brasileiro. Sua grande fase esportiva foi no Wallig, um dos melhores times que surgiu no futsal gaúcho. Dono de uma jogada rápida, bom drible e chute forte de bico, ele conta que o grito que mais ouvia na quadra vindo dos seus adversários era: “não deixa o Flávio jogar...” O preconceito racial se revelou por inteiro quando no auge da sua carreira, recebeu um convite para integrar o time do Petrópole Tênis Clube, na época, um clube da classe média alta. “Fiquei todo entusiasmado com o convite e, também, com a possibilidade de freqüentar, principalmente, a piscina, sonho de todo jovem negro e pobre em pleno verão”. As negociações para a assinatura do contrato estavam bem encaminhadas, mas uma observação feita, na última hora, pelo dirigente do clube mudou tudo e ficou gravada para sempre: “Nós te queremos no Petrópole, mas tu não podes freqüentar as dependências do clube. A mensagem para mim foi clara, ou seja como jogador eu servia, mas como cidadão, não. Não assinei o contrato”.

A Canela Preta - 103

NEGRO em Preto e Branco - 104

O homem das corridas de rua O ritmo das passadas é sensivelmente lento, mas ainda detém pique. Nem sempre foi assim. Houve uma época em que Rui Barbosa, 90 anos, era o dono das corridas de rua e literalmente voava para ser apontado como um dos melhores pedestrianistas do Estado. A velocidade era sua marca e os cronômetros atestavam. As pistas de atletismo e as avenidas de muitos bairros de Porto Alegre foram cenários para treinos diários, ritmos acelerados e muitas vitórias. Mas não é a idade avançada que impede as participações de Rui Barbosa nas corridas. Ele estaria correndo se não fosse uma persistente lesão no joelho esquerdo. O repouso é por recomendação médica, mas o temperamento inquieto faz com que Rui não desista dos exercícios. “Em casa eu não paro um instante. Estou sempre fazendo alguma coisa. Aqui, as tarefas de limpar, lavar e passar roupas são minhas. Se as pessoas observarem, cada um tem dentro de casa uma academia de ginástica completa. O pessoal da minha idade tem que perceber isto e dar um basta ao ócio”, salienta ao exaltar o trabalho do cotidiano caseiro como cura para diversas doenças que afetam os idosos. Dono de uma memória privilegiada e capaz de reeditar os melhores momentos e fatos folclóricos de sua vida esportiva, Rui Barbosa relata que a paixão pelas corridas - foi várias vezes campeão dos percursos de cinco, 10, 20 mil metros e Maratona começou na década de 30 quando cumpria o serviço militar. Naquele tempo nada indicava que a sua vida estaria definitivamente ligada à carreira esportiva. Muito magro - pesava apenas 56 quilos - o soldado 39, assim era chamado no quartel, não agüentava as sessões de corrida realizadas sob o sol forte da Avenida Mauá e encerrava os treinos antes do tempo sentando à beira das calçadas. “Não dava para resistir... ainda mais que botavam a gente para correr carregando nas costas uma mochila pesada e com coturnos em vez de tênis”, conta. Logo ganhou fama de preguiçoso e quase foi expulso do quartel.

Acervo Rui Barbosa

Felizmente, a magreza não era indício de alguma doença, o que foi devidamente comprovado pela bateria de exames médicos solicitada pelo comandante da corporação. A punição por burlar os treinos foi cumprir uma longa maratona que teve início na Salgado Filho, onde ficava o quartel, com prosseguimento pela Borges de Medeiros, Voluntários da Pátria, São Pedro, Benjamim Constant, Cristóvão Colombo, Ramiro Barcellos, Osvaldo Aranha, Venâncio Aires, João Pessoa e novamente Salgado Filho. Sem o peso da mochila e sem coturnos, correu sem parar. A conclusão do percurso, feito num tempo recorde, surpreendeu o batalhão inteiro. Festejado, recebeu um prêmio de incentivo: bananas, leite e aveia. acrescido da notícia que passava a integrar a equipe do quartel com a condição de apenas treinar. Nascia naquele momento o atleta Rui Barbosa. 14 de setembro de 2003

”Foi um adeus às instruções e à farda - passei a andar à paisana - e ganhei algumas mordomias, como ser levado todos os dias de carro para casa. Desde então não parei mais, são mais de 70 anos dedicados ao esporte”. Quando deu baixa no quartel foi para o Esporte Clube Cruzeiro, antes havia passado pelo Gloriense. Defendeu as cores da Sogipa e do Internacional e fez carreira no Grêmio Porto-Alegrense, conquistando diversos títulos e tornando-se atleta laureado. Orgulhoso de sua longa carreira esportiva, Rui Barbosa só tem um fato a lamentar: a perda de um álbum com suas melhores fotos e textos publicados nos jornais relatando suas múltiplas vitórias. Sobraram, no entanto, as medalhas de prata Acervo Rui Barbosa

7 de setembro de 1940 , Desfile da Mocidade na Avenida Borges de Medeiros. Rui Barbosa é o segundo à direita na segunda fila

A Canela Preta - 105

106 - NEGRO em Preto e Branco

Atletismo Elza Ferreira Alves começou no esporte defendendo a equipe de vôlei do Clube Náutico Marcílio Dias, clube fundado por negros. Nos anos 1957 e 1958 o Marcílio se destacava nas competições de vôlei, basquete, atletismo e remo. Elza foi a primeira atleta negra a competir pela Sogipa. Esteve também no Grêmio e no Internacional. Sua especialidade no atletismo era o heptatlo.

Acervo Elza F..Alves

Revista do Grêmio/ 21 - 1959

Grandes destaques do atletismo gaúcho e do Troféu Brasil na década de 50/60 foram Érica Lopes da Silva Silva, Íris dos Santos Santos, Aida dos Santos eixeira dos Santos, Maria de Santos, Leda T Teixeira Lourdes da C o n c e i ç ã o . Érica Lopes da Silva

Acervo Aldino P. Flores

Aldino Paixão Flores foi considerado o maior fundista do Rio Grande do Sul de 1958 a 1969. Conquistou 11 títulos estaduais defendendo sempre o Grêmio Porto-Alegrense. Tem mais de 320 medalhas individuais e 15 troféus por equipe. Foi recordista gaúcho e brasileiro e campeão do Troféu Brasil. Sua especialidade eram as provas de 800, 1.000, 1.500, 3.000 e 3.000 com obstáculos, 5.000 e 10 mil metros. A carreira começou, em 1957, na 11ª Companhia de Comunicação, em São Gabriel. Um ano depois veio para o Grêmio. Em 1962 foi apontado como um dos melhores no esporte gaúcho, merecendo destaque como atleta de pista e asfalto.

Acervo Aldino P. Flores

Isolino T aborda defendeu o Cruzeiro, o Grêmio e Taborda o Internacional. Foi campeão brasileiro, vice-campeão sulamericano, várias vezes campeão estadual e da cidade, recordista gaúcho e brasileiro de arremesso de peso e de disco e ganhador do Troféu Brasil.

Isolino Taborda

No vôlei e no basquete um jogador é sempre lembrado: Kalunga Kalunga. Destaque nas equipes do Grêmio, Petrópole e Inter Integrou a seleção gaúcha de basquete e a brasileira de vôlei.

A Canela Preta - 107

CORRENTES DA FÉ Osvaldo Ferreira dos Reis

A religiosidade do povo negro está presente em todos os momentos de sua existência. Quando os negros foram arrancados de suas terras e trazidos para as terras brasileiras, separados de seus familiares, reunidos a outros negros que, muitas vezes, não falavam a mesma língua e tinham outros costumes, restou-lhes apenas a fé em seus deuses, para obterem as forças necessárias para sua sobrevivência. Museu J.J.Felizardo-Fototeca Sioma Breitman

Cultuando os Orixás conseguiram estabelecer uma linguagem comum. A religiosidade foi a grande ferramenta para preservarem a cultura africana no período triste da escravidão. Praticar a religião africana é acreditar nas forças da natureza, seja dentro das casas de matriz africana ou durante as festas dos santos católicos que os negros incorporam ao seu culto: aquilo que era uma imposição, virou uma oportunidade de fortalecer a fé em suas crenças.

Os negros podiam participar, na confraria da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, na Confraria de São Benedito, nas festas da Nossa Senhora dos Navegantes, de São Jorge. Não importa, o que realmente interessa é a fé que une este povo na certeza de que os Orixás jamais lhes virarão as costas, pois todos somos filhos de pai e de mãe. A religiosidade africana está alicerçada nesta união, na junção das forças, na corrente da fé, que ilumina a nossa estrada e na certeza de que os ensinamentos não foram esquecidos. A religiosidade do povo negro está associada à alegria, ao culto dos antepassados e o principal motivo da festa é o povo. Quem não ouviu falar do toque do tambor nas festas para orixás nas casas de: Xangô Omi (uma liderança religiosa importante que ficou conhecida pelo nome do seu orixá ), do Príncipe Custódio, do Antoninho da Oxum, da mãe Andreza, do Manuelzinho do Xapanã, do Vô Idalino do Ogum, da mãe Moça da Oxum, do Pai Jauri, da mãe Nicola do Xangô, da mãe Apolinária e de tantos outros que reverenciavam os orixás com toque forte do tambor que se unia ao som da Banda de Música comandada pelo Maestro Mendanha, na festa da Capela do Senhor do Bonfim. A Banda do Maestro João Pena de Oliveira, acompanhava os festejos da Nossa Senhora do Rosário e da Nossa Senhora dos Navegantes. A fé dos negros se renova e se expressa através do canto, da dança, das oferendas que são dedicadas aos orixás, mas a energia é distribuída a todos aqueles que necessitam e que acreditam na força divina dos Deuses Africanos. Axé!

Irene Santos

Osvaldo Ferreira dos Reis

Advogado. Pesquisador da Cultura Africana

Correntes da Fé - 109

110 - NEGRO em Preto e Branco

Festa dos Navegantes

Museu J.J.Felizardo - Fototeca Sioma Breitman

Acervo Lucia Regina Brito

Procissão de Nossa Senhora dos Navegantes em 1918

Grupo na festa da melancia nos anos 70 Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Osvaldo F. Reis

Acervo Osvaldo F. Reis

1940 - O barco Geni Naval transportando a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes

Irene Santos

Acervo João Augusto Santos Silva

Origens do Batuque Norton Figueiredo Corrêa

Mãe Rita (Museu J.J.Felizardo-Fototeca Sioma Breitman)

A fundação de grandes charqueadas de nível industrial, nos finais dos anos 1700, em Pelotas, foi a razão principal para a importação de escravos negros para o Rio Grande do Sul. A maior parte deles foi trazida de outros locais do Brasil, destacando-se o Rio de Janeiro, mas é possível que alguns tenham vindo diretamente da África. Da mesma forma como ocorreu em todo o País, cerca de 70% dos cativos eram bantos (do antigo Congo, Angola e Moçambique), e 30% sudaneses (Nigéria e Benin). Para se ter uma idéia da importância do charque, em 1833, em Pelotas, havia 5 mil escravos, além de pardos e livres. Graças à atividade charqueadora, também, quase um terço dos 285 mil habitantes da população rio-grandense, em 1858, era composta por tais categorias.

Correntes da Fé - 111

112 - NEGRO em Preto e Branco

Destinado principalmente à alimentação dos escravos da mineração, nas Minas Gerais, e às tripulações dos navios, o charque produzia rios de dinheiro. Entre outros resultados, temos o luxo e a suntuosidade da arquitetura de Pelotas, o crescimento de sólidas empresas locais e a fundação do primeiro banco gaúcho, o Banco Pelotense. Algo diretamente relacionado a esta explosão de riqueza, mas muito dificilmente mencionado na historiografia, é o fato de que o Rio Grande do Sul deve à mão-de-obra escrava no mínimo a construção das bases de sua infra-estrutura econômica. Não custa lembrar, quando os primeiros imigrantes europeus chegaram, já nos anos 1820, encontraram uma economia regional em franco andamento, governo, estradas, cidades. Por volta de 1850, o grande comércio charqueador entrara em declínio. Paralelamente, o incremento da produção do café, em São Paulo, demandava mais e mais braços, determinando a venda de boa parte da escravaria gaúcha para o Sudeste. Neste meio tempo, o crescimento de cidades, principalmente Porto Alegre, provocara o surgimento de um mercado de serviços urbano de consideráveis proporções – carregadores, artesãos, serviçais domésticos e públicos, vendedores etc. - o que também provocou o deslocamento de escravos para a capital da província. Muitos deles foram atuar como “negros de aluguel” ou “de ganho”, como eram chamados, que deveriam trazer para o senhor, no fim do dia, semana ou mês, o que recebera. A vida de muitos escravos urbanos era bem diferente dos das charqueadas ou fazendas. Pelo fato de exercerem suas atividades na rua, não podiam ser tão controlados como os outros, sumiam mais facilmente da vista do senhor, além de conseguirem juntar dinheiro com serviços extras, o que muitas vezes resultava em alforria. Aos poucos, a resistência constante do escravo em se submeter às dificuldades cada vez maiores de fiscalização, vai contribuir também para a desagregação progressiva do sistema escravocrata. É nessa época – já estamos nas primeiras décadas dos anos 1800 – que surgem as condições para a fundação dos primeiros núcleos religiosos afro-brasileiros nas cidades mais importantes do País. No Sul, esta religião é chamada de batuque. Ao que se pode supor, o primeiro templo teria sido fundado em Rio Grande, outros, depois, em Pelotas e finalmente Porto Alegre, de onde, a partir do final dos anos 1950, a religião cruzou as fronteiras do Uruguai e Argentina. Estimativas sugerem um número

Memorial do RS

em torno a 40 mil casas de culto no Estado, muito mais do que no Rio, São Paulo e mesmo Bahia. O ritual, dirigido pela figura da mãe (ou pai) de santo, cultua orixás africanos, sendo os cânticos sagrados executados em jêje, ijexá, oió e nagô, línguas originárias da África. Na Capital gaúcha, o templo mais antigo de que se tem notícia foi o da Mãe Rita, na Várzea, hoje Parque Farroupilha, nos anos 1800. Após a Abolição, principalmente, as famílias negras foram se instalando na então Colônia Africana, hoje bairro Rio Branco e na Bacia (Auxiliadora-Mont’Serrat), naquele tempo subúrbios da cidade, onde também surgiram muitas casas de batuque. Dentre todos os chefes destaca-se a figura legendária do Príncipe Custódio, integrante de uma família real africana que, exilado pelos colonizadores ingleses de seu país, se instalou em Porto Alegre na década de 1930, fundando uma casa de culto na Cidade Baixa. Recebendo uma gorda pensão em libras, convivia muito familiarmente com a alta sociedade local, incluindo-se o Governador Borges de Medeiros que, diz-se, era seu filho de santo. Os templos religiosos afro-brasileiros exerceram e exercem papel social importantíssimo na sociedade gaúcha, atuando como locus de resistência, proteção, sociabilidade e de construção de uma identidade coletiva para grandes segmentos das massas negras urbanas.

Custódio Joaquim de Almeida, o Príncipe

Norton Figueiredo Corrêa Professor da Universidade Federal do Maranhão. Doutor em Antropologia, especialista em religiões afro-brasileiras. Autor do livro “ O Batuque do Rio Grande do Sul – antropologia de uma religião afro-rio-grandense” . Porto Alegre, EDUFRGS, 1992.

Correntes da Fé - 113

PALAVRA Oliveira Silveira

DE

NEGRO

Afora o trabalho braçal dos quatro séculos em que trabalho era sinônimo de negro construindo o Brasil para beneficiários de outras raças, etnias ou procedências nacionais, a imprensa, a literatura, outras artes e formas culturais demonstram eloqüentemente a participação negra na vida brasileira enquanto manifestação de seres pensantes, expressão de sensibilidade e ação por vontade própria. A partir do século XVI (16 em arábico) o negro criou a liberdade de Palmares - estado, país, reino, república... adentrando e ocupando nisso toda a centúria seguinte. E nesse mesmo XVII, os anos 1600 no calendário parcial dos cristãos, a oratura negra das letras de lundu, a literatura oral ou oralitura, como diz a afro-mineira Leda Martins, estavam bem presentes, com certeza.Já no setecentismo, o século XVIII dos minérios, o maior brilho é do escultor, o artista Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Na literatura e na música, já aparece o sangue negro em Caldas Barbosa e José Maurício, respectivamente. No XIX (19 em arábico), quando nasce verdadeiramente a literatura brasileira, o primeiro romancista é o negro Teixeira e Sousa, mulato.E o primeiro editor nacional é um negro, o mulato Francisco de Paula Brito, justamente o precursor, também, da Imprensa Negra. Seu jornal, O Homem de Cor Cor, 1833, mudado para O Mulato ou o Homem de Cor Cor.Tudo em

lições de mestre Oswaldo de Camargo, escritor negro paulista, em O Negro Escrito, livro de 1988. Paula Brito, editor ainda de A Marmota Fluminense Fluminense, o seu jornalismo em ação. A pesquisa da jornalista negra Ana Flávia Magalhães Pinto para o mestrado em História na Universidade Nacional de Brasília, UNB, localiza novos títulos inclusive em 1833. O maior escritor da época ou além dela, um polígrafo, senhor dos gêneros literários e do estilo é o homem negro Machado de Assis. Mulato, negromestiço, negróide ou misto afro....é tudo negro no Brasil. E tem Luiz Gama, Cruz e Sousa – um continuum literário, artístico, cultural, em crescendo, impondo-se aos séculos XX e XXI. Sim, vinte e vinte e um. Se ainda no século dezenove (XIX) José do Patrocínio era escritor, empresário e jornalista negro dono de jornais – Gazeta da Tarde arde, 1877-1887, e A Cidade do Rio Rio, 1887-1903 – ou se o poeta Cruz e Sousa tinha escritos abolicionistas ou simplesmente literários em jornais de Florianópolis, em Porto Alegre quem marca forte é o grupo do jornal O Exemplo Exemplo. Cobrindo com interrupções e fases o período 1892 a 1930, O Exemplo é iniciativa e organização de negros. Antecipa-se à importante imprensa negra paulista e paulistana: O Baluarte Baluarte, Campinas, 1903, A Pérola Pérola, São Paulo, 1911, O Menelick a seguir, O Clarim da Alvorada mais adiante. O Exemplo Exemplo, exemplar, foi seguido por outros órgãos gaúchos como os pelotenses A Cruzada Cruzada, 1905, e A Alvorada Alvorada, 1907, ou A Revolta Navalha, 1931 em Santana do Revolta, 1925 em Bagé, A Navalha Livramento – informes de Marco Antônio Lírio de Melo, revista Porto e Vírgula nº 29, novembro de 1996. Em O Exemplo (mais vinculado ao meio negro nos primeiros tempos), do diretor inicial Arthur de Andrade à derradeira direção de Dario de Bittencourt, o grande destaque é para a visão, a coerência, o espírito crítico e combativo de Esperidião Calisto, um barbeiro jornalista muito politizado. E tem literatura, humor, informes sobre teatro e clubes como o Floresta Aurora. Se a imprensa negra de São Paulo acelerou com O Menelick Menelick, O Clarim da Alvorada oz da Raça (da Frente Negra Alvorada, A V Voz Brasileira) e seguiu em frente, e se, no Rio de Janeiro, Abdias do Nascimento e o Teatro Experimental do Negro lançaram o também histórico Quilombo Quilombo, 1948-1950, com sucedâneos na cena carioca SINBA, Boletim do IPCN, IPCN na década de 70), no Rio e fluminense (SINBA, Grande do Sul houve, parece, um hiato a partir de 1930. Ou nos

Palavra de Negro - 115

116 - NEGRO em Preto e Branco

faltam registros. Mas a partir dos anos 60 sabe-se de informativos de clubes – Sociedade Floresta Aurora, Clube Náutico Marcílio Dias, Associação Satélite Prontidão... O Ébano é de 1962. Marco inequívoco é Tição Tição, de Porto Alegre (grupo Tição, 19771980). Revistas Tição em 1978 e 1979, dois números, e a publicação única do jornal Tição em 1980. Apresentação cuidada, boa diagramação e conteúdo envolvendo história, debate sobre racismo, questões sociais, políticas e culturais em geral, reafirmaram a possibilidade de uma imprensa negra vigorosa, renovada, séria e rica em abordagens, temas, profundidade. Referência importantíssima, Tição dialoga com a imprensa negra da década: o anterior e clandestino A Árvore das Palavras alavras, Afro-Latino-América (in Versus), Jornegro, todos paulistas,, e outras publicações do Rio já citadas, sobre as quais Amauri Mendes Pereira poderia falar melhor. Assim Tição participa, muito significativamente, da construção dessa história jornalística longa e heróica em nosso país.

Continuum literário nos séculos XX e XXI ccc (calendário capenga dos cristãos ou calendário capenga cristão para quem prefere as coisas mais ajustadinhas). É que além dos citados Machado de Assis, Luiz Gama e Cruz e Sousa o século dos anos 1900 teve o romancista e cronista Lima Barreto, poetas como Líno Guedes e Solano Trindade, seguidos por nomes como os de Oswaldo de Camargo e Carlos de Assumpção que iniciando antes mas juntando-se aos novos, fazem uma ponte para a literatura negra contemporânea. Negra ou de negros. O vigor dessa fase iniciada nos anos de 1970 é atestado pela obra de escritores como Cuti, Éle Semog, Geni Guimarães, Arnaldo Xavier, Paulo Colina, Adão Ventura, Miriam Alves, José Carlos Limeira, Jônatas Conceição, Edson Cardoso, Conceição Evaristo, Salgado Maranhão, Lepê Corrêa, Elisa Lucinda, Eustáquio Lawa (Eustáquio José Rodrigues), Edimilson de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo, Lande Onawale, Cristiane Sobral... A lista é longa.Os citados representam os omitidos, injustiças à vista. E Cadernos Negros, com Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa na trincheira, representam uma periodicidade anual iniciada em 1978, alternando conto e poesia nas 27 edições completadas em 2004 com a marca do Grupo Quilombhoje, em São Paulo. Machado em seu tempo já escrevia peças teatrais. Em meados do século XX Abdias do Nascimento escreveu e fez montagens com o grupo do TEN. Rosário Fusco, Romeu

Crusoé e Ironides Rodrigues são também autores desse período rico. E Cuti, Joel Rufino dos Santos e outros fazem a dramaturgia contemporânea. No Rio Grande do Sul, o poeta Luís da Motta publicou comédia em O Exemplo (coleção 1902 -1905). O mesmo jornal registra atividade teatral na Sociedade Floresta Aurora desde o final do século XIX, resultando num duradouro Centro Dramático do clube em começos do século XX. E desde o início o semanário ostenta poemas de negros, seções humorísticas deliciosas, prosa variada. Semanário de LeoPardo traz em livro de 1926 as crônicas de Paulino de Azurenha, escritas e m estilo primoroso entre 1905 e 1909 para o Correio do Povo. Mais uma preservação de Aníbal Damasceno Ferreira. Preciosidade. O negro ou misto afro Azurenha - LeoPardo - estava ao lado de Caldas Júnior na fundação do Correio e continuou como redator do jornal. Na última fase, 1916-1930, O Exemplo publica também autores brancos, alguns poetas da época, e seria preciso estudar a freqüência de negros em suas páginas. Para a lacuna entre os anos de 1930 e 1960, é bom lembrar que Antônio Lourenço, redator do jornal nos anos 20, publica sonetos no Correio do Povo ao menos na década de 70 e início dos anos 80, quando falece. Haverá outros autores entre o período Vargas e a ditadura militar de 1964? Pe s q u i s a r. A p a r t i r d e 1 9 6 5 o Te a t r o S a c i f e z b o n i t o vencendo um Festival Martins Pena ou montando a peça Um Cravo na Lapela, do dramaturgo branco Pedro Bloch, organizado sob a presidência de Eloy Dias dos Angelos e tendo Horacilda do Nascimento como vice-presidente. A atriz Eni Maria das Neves e o ator Airton Marques representam os seus demais colegas nesta citação. Da mesma época, surgindo em 1964 ou 65 é o GTM, eatro Marciliense Teatro Marciliense, liderado por Luiz Gonzaga Grupo de T Lucena e integrante do Clube Náutico Marcílio Dias. Aírton Silva e Gelci Lemos exemplificam voz e talento no GTM. Pois o GTM eatro Novo Floresta Aurora (com os irmãos e o Grupo T Teatro Mauro Paré e Marilene Paré, entre outros) montaram juntos lá por 1969 o Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, no Theatro São Pedro, tendo Aírton Marques como Orfeu.O ator negro gaúcho Breno Melo desempenhou esse papel no cinema em Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus, produção franco-brasileira. O filme ganhou Palma de Ouro em 1959 no Festival de Cannes. Lá por 1971, ano em que surgiu o Grupo Palmares, de Porto Alegre, lançando a data 20 de novembro, foi Palavra de Negro - 117

118 - NEGRO em Preto e Branco

possível assistir a uma atividade teatral no Floresta em que sobressaíam o talento de ator não burilado e o potencial de Jorge Antônio dos Santos. eatro O Grupo Cultural Razão Negra iniciou como Nosso T Teatro em meados dos anos 1970 com a dramatização do conto Esperando o Embaixador, de Oswaldo de Camargo, montando, na seqüência, três peças escritas e dirigidas por um componente do próprio grupo, Jaime da Silva: E Agora, Negra? (1979) e O Convite (já em 1980) e uma outra intitulada o It.. A década de 70 tem na poesia o trabalho de Alsina Alves de Lima, que em 1966 já mostra um poema sobre a condição feminina em obra coletiva, Nossa Geração, do Diretório Estadual de Estudantes (RS). Talvez não tenha conseguido publicar seu livro Roda d’Água d’Água, de modo que, após a sua morte, torna-se mais precioso o volume 6 dos Cadernos Literários do Instituto Cultural Português, editado em Porto Alegre em 1982. Ali estão um comentário crítico de Antonio Soares sobre a escritora e uma valiosa coleção de 15 poemas datados: 1966 a 1981. Em Meu Poema, de 1971, ela diz:

Sendo pobre e mulher/ e sendo negra quero meu poema/ como quero a vida sem cerceamentos/ sem desencontros sem segregação. Palavra de negra. E numa trilha em que apareceriam, dos anos 80 ao final do século, autores como Paulo Ricardo de Moraes, poeta e contista com experimentações no texto dramático e na área de vídeo; Ronald Augusto, poeta inventivo, inquiridor da linguagem, com incursões também na crítica literária, além de compositor e intérprete musical; Maria Helena Vargas da Silveira, com poemas e prosa vária - contos, crônicas e outras utilizações artísticas da palavra; ou Jorge Fróes, inédito em livro mas com poemas e contos publicados esparsamente. Irene Santos

Oliveira Silveira Professor graduado em Letras e estudioso da Cultura Negra. Integrante do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial da SEPPIR e da Comissão Gaúcha de Folclore. Poeta, tem dez livros publicados a partir de 1962 e participa de antologias e coletâneas no País e no Exterior. Militante do Movimento Negro.

Reprodução da edição facsimilada de O EXEMPLO feita em 1992 por Oliveira Silveira para celebrar o centenário de lançamento do jornal

Palavra de Negro - 119

120 - NEGRO em Preto e Branco

Tição n 0 1 (março de 1978) Redação: Edilson Nabarro, Emílio Chagas, Jeanice Viola, Jorge Freitas, Nazaré Almeida, Oliveira Silveira, Vera Daisy Barcellos, Walter Carneiro

Jornal Tição Tição, publicado em 1980 Redação: Carmem Marilu, Ceres Santos, Edilson Nabarro, Emilio Chagas, Helena Machado, Jones Lopes, José Vainer, Jorge Freitas, Maria Lucia, Nelcira Nascimento, Oliveira Silveira

Arquivo Tição

Tição n 0 2 ( agosto de 1979) Redação: Edilson Nabarro, Jeanice Viola, Jorge Freitas, Oliveira Silveira, Valter Carneiro, Vera Daisy Barcellos, Vera Lopes

Como Negro Paulo Ricardo de Moraes*

O negro é como um remo enfrentando a maresia enverga, entorta e não quebra transfoma a vida num dia é o mar em céu aberto é a imensidão vadia. O negro é como uma folha que responde à ventania balança, dança e não morre tem a briga por mania é lindo que só o tempo e feito de poesia. O negro é uma folia de dores e sentimentos é corpo velho salgado é jovem querendo vento é busca de liberdade em canto, guerra e lamento.

* Paulo Ricardo de Moraes é escritor e jornalista. Palavra de Negro - 121

122 - NEGRO em Preto e Branco

Teatro e Carnaval Waldemar Pernambuco Moura Lima O teatro, como arte, expressa os sentimentos mais íntimos dos seres humanos. Sua origem, remonta aos primórdios das civilizações.As liturgias religiosas, os momentos de conquistas e perdas, alegrias e tristezas, foram e são as matérias primas na construção do drama, da comédia, da tragédia humana.A arte teatral tem, portanto, o compromisso de expressar o que vem da alma simples do povo e, mesmo os autores clássicos, renomados internacionalmente, trabalham com estes sentimentos humanos para produzir suas obras de arte. A comunidade negra de Porto Alegre não poderia ficar omissa, fora do seu processo histórico, sem desenvolver ações ligadas ao campo da dramaturgia, da arte teatral.

ecologia, da fauna, da flora e falam das lendas, das glórias e derrotas das grandes nações indígenas.Estas encenações burlescas, realizadas pelas tribos carnavalescas, passam a ser a expressão mais pura dos sentimentos dos negros que usam as tribos e o carnaval como meio de se auto afirmar e, de uma forma concreta, demonstrar, sua capacidade inventiva, sua criatividade, seu senso estético, sua dança, sua música contagiante.O sucesso das tribos carnavalescas junto ao povo, que delirava com as músicas, as danças e encenações as quais, só ocorriam na época do Carnaval, fez com que alguns dirigentes destas agremiações promovessem Festivais de Arte Popular.

As primeiras informações que nos chegam, nos dão conta da presença do poeta, artista, agitador cultural e teatrólogo, negro Solano Trindade, criando aqui em Porto Alegre um grupo de ativistas culturais negros, que iniciam apresentações de recitais poéticos em saraus nas casas de família ou nas sociedades negras da época.Os encontros culturais tinham, como não podia deixar de ser, uma proposta clara de incentivar a auto-estima dos negros porto-alegrenses, mostrando para a sociedade em geral, porém, mais especificamente para os próprios negros, sua competência criadora, seu espírito combativo. Usando, desta forma, a arte como meio de contextualizar o entorno social em que viviam.

Estes Festivais, aonde as tribos apresentavam suas peças teatrais, com um formato de grandes shows musicais, tinham um apelo muito forte e a comunidade negra porta-alegrense participava em massa destas tardes festivas que ocorriam aos sábados ou domingos no então Cinema Castelo. É importante lembrar que estas tribos carnavalescas surgiram nas Casas de Religião Afro e tinham tudo a ver com o sincretismo religioso africano que deu origem, aqui, a umbanda.Paralelamente a estas ações culturais de cunho estritamente popular, temos informações de grupos teatrais que encenavam peças e pequenos esquetes nas sociedades beneficentes e bailantes da época.

Com o passar dos anos e a própria evolução da sociedade, a ação teatral patrocinada pela comunidade negra porto-alegrense, antes limitada aos pequenos encontros culturais, toma uma outra dimensão e ganha as ruas.Surgem as Tribos Carnavalescas, cujos temas enfocam os conflitos entre as diversas nações indígenas, os casos de amor entre pajés e índias de tribos rivais. Teatralizam, cantam, e dançam também em defesa da

Podemos registrar, também, a tentativa de profissionalização de um grupo, através da criação do Teatro Infantil, onde se formou uma troupe de músicos, bailarinos, bailarinas e cantores que partiram em excursão para os países vizinhos, Uruguai e Argentina.

Irene Santos

Waldemar Pernambuco Moura Lima

Estudioso da Cultura Negra. Militante do Movimento Negro.

Acervo Olivia Pereira

Programa e parte do elenco da peça Orfeu da Conceição montada pelo Grupo de Teatro Novo Floresta Aurora em 1969

Acervo Eni Neves

Aplausos em cena aberta 26 de outubro de 1959. No palco do Teatro São Pedro, atores negros apresentam Orfeu da Conceição, texto poético de Vinícius de Moraes. A peça - uma tragédia em três atos, adaptação da lenda grega de Orfeu - começa morna, segundo os críticos da época, mas cresce no segundo ato com a entrada de Eni Neves (no papel de Clio, mãe de Orfeu). Num magnífico trabalho dramático, Eni leva a platéia a um aplauso insistente e espontâneo em plena cena aberta. A estreante e jovem atriz negra iniciava naquele ano uma longa e visceral relação com os palcos de Porto Alegre.

Na capa do disco de Vanja Orico, a fotografia de Breno Melo, ator gaúcho protagonista do filme Orfeu do Carnaval. O filme de Marcel Camus recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1959, e é um dos clássicos do cinema franco-brasileiro

Palavra de Negro - 123

RECORDAR É VIVER Nilo Alberto Feijó

Acervo M.Noelci Homero

Historicamente é confirmado o Entrudo como o início do Carnaval no Brasil. Em plena fase do colonialismo português, até o século XVIII. Mais tarde, nos séculos XIX e XX, com o declínio do Zé Pereira, confirma-se um estilo de Carnaval realizado na Europa, com a participação das Sociedades e onde surgiriam os préstitos que eram os desfiles de Carros Alegóricos, também chamados de “Corsos”. . Em Porto Alegre, o Carnaval apresentou quase o mesmo modelo e a mesma trajetória que o Rio de Janeiro, diferindo apenas nos períodos. No século 19, despontavam com expressivo brilho as entidades da elite com desfiles alegóricos dos Cordões de Sociedades.

Entretanto, é preciso destacar que as sociedades que representavam a elite porto-alegrense, não aceitavam os negros em sua esfera de convivência e muito menos permitiam que participassem dos ricos e pomposos desfiles realizados nas avenidas centrais de Porto Alegre. Apesar do risco da intolerância e a perseguição das milícias da época, - sempre mais rigorosas para com os negros, normalmente vítimas e alvos das brincadeiras da aristocracia,- o carnaval de rua para eles era uma opção de divertimento tendo como alternativas a periferia, locais como a Cidade Baixa, mais especificamente o Areal da Baronesa, a Colônia Africana e outros considerados menos nobres por serem zonas habitadas predominantemente por negros. Os negros perceberam muito cedo que necessitariam criar os seus próprios espaços, pois faziam parte de um Estado cuja composição étnica abrigava também portugueses, italianos, alemães, e outros grupos fechados onde eles eram rejeitados pela cor e condição social. A idéia da organização e formação de grupos que pudessem associar aos divertimentos a discussão de problemas comuns, a difusão de culturas, conhecimentos diversos e outros paradigmas aos poucos se incorporou ao sonho de materialização de locais próprios para exercerem suas atividades. Na verdade passaram a entender que, se não podiam freqüentar a sociedade dos outros teriam que construir as suas. No ano de 1872, dia 31 de dezembro, um grupo de , homens e mulheres, todos negros, alguns já tendo conquistado a alforria, criava, no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, a sua primeira sociedade: a Sociedade Floresta Aurora. Esta não nascia carnavalesca, mas já em 1885 participava dos desfiles de Carnaval das sociedades de Porto Alegre. Esta idéia serviu como exemplo e logo no ano de 1902, também em Porto Alegre, surgia a Sociedade Bailante SatélitePortoalegrense. Outras viriam depois, a maioria com enfoque social, esportivo e carnavalesco, mas muitas delas com caráter cultural e beneficente. As grandes sociedades como os Venezianos, Esmeralda, Menestréis, Sociedade Germânia, Os Vagalumes e outras também importantes agremiações, por opção ou declínio, diminuíam suas atividades quanto ao Carnaval de rua. Representavam, no entanto, a parte mais seleta do Carnaval da cidade, principalmente pelos bailes que realizavam em suas sedes ou no Theatro São Pedro. A Sociedade Floresta Aurora, instalada em sua sede à Rua Lima e Silva (Antiga Recordar é Viver - 125

126 -NEGRO em Preto e Branco

Olaria) número 316, participava tradicionalmente das folias de Momo tanto no Carnaval de rua como promovendo grandes bailes para a coroação das Rainhas. A Satélite possuía um terreno mas ainda não tinha sede. Realizava seus bailes no Salão Ariopa, na antiga Ilhota ou no Theatro São Pedro. Participava dos Corsos sempre destacando suas Rainhas. O Carnaval passava a uma nova fase e trazia consigo os Cordões e os Blocos Carnavalescos, que se destacavam pela simplicidade das fantasias, o colorido das “lanternas”, a competência das “cozinhas” e a harmonia das “estudantinas” que acompanhavam as belas músicas feitas por compositores consagrados como Lupicínio Rodrigues, Johnson, Caco Velho, João Pena, Nelson Lucena, Veridiano Farias, Albino Rosa , Alberto Martimiano e outros. Além de alguns remanescentes, passaram também a fazer parte desta etapa do Carnaval Cordões como os Turunas, Tesouras, Prediletos, Chora na Esquina, Fazendeiros, Divertidos e Atravessados, Passa Fome e Anda Gordo, Ideal da Zona, Filhos do Sul e outros como o Zona U, Tigres e Batutas. A maioria destas entidades não tinha o luxo e a suntuosidade das grandes sociedades, por não estarem como elas agregadas ao poder. O Carnaval de rua sem o fausto das sociedades tradicionais ganhava um novo colorido, uma condição mais democrática e mais popular. Estava se reformulando e tinha agora, o negro como ponto de referência. Deve ser ressaltado, também, que boa parte destas entidades carnavalescas possuía suas sedes, ainda que alugadas ou emprestadas, o que garantia a elas presença nos carnavais de rua e de salão. Nos períodos de Carnaval, alem de assistir ou participar dos desfiles de rua, a comunidade se programava para os bailes mais tradicionais que aconteciam no Salão dos Prediletos,, que passou por vários endereços mas que esteve mais presente na Avenida Protásio Alves nº 809, e que algum tempo depois, transferiu-se para a Rua Felipe Nery na Auxiliadora e ali encerrando suas atividades, no Salão do Rui ou do Alípio, onde os Turunas promoviam seus Bailes e que posteriormente foi ocupado pelos Bambas da Orgia, na esquina da Casemiro de Abreu com a antiga Esperança, hoje Miguel Tostes, e ainda no famoso Salão do Licurgo, situado na Auxiliadora ao lado da Igreja de igual nome.

Foto Barbeitos/Acervo Irene Santos

Rainha do Carnaval de 1932 da Sociedade Promptidão

Recordar é Viver - 127

128 -NEGRO em Preto e Branco Acervo Osvaldo F. Reis

Baile no Saláo do Rui em 1940

O Floresta Aurora realizava festas burlescas em seus salões na Lima e Silva. A Sociedade Prontidão também em seus salões na Lima e Silva nº 377. Decorridos alguns anos, mudou para outros endereços, fixando-se mais adiante na Rua Barão do Gravataí nº 649 e atualmente tem sede própria na Avenida Coronel Aparício Borges, 288. Promoviam-se festas de Carnaval no Salão Ariopa, que era um clube esportivo da Ilhota e no Theatro São Pedro. Mais tarde encontraríamos o Salão da Cabral, dos Democratas na Praça Garibaldi, o Tablado montado todos os anos pelo Clube Náutico Marcílio Dias para os Bailes de Carnaval e cuja sede se situava à Avenida Praia de Belas, quase esquina com José de Alencar. O Carnaval da Capital sempre foi seguido de perto pelo Interior do Estado. Muitas sociedades foram fundadas ao longo dos tempos e, em alguns momentos, Porto Alegre quase foi superada pela organização de algumas cidades do Interior. Em Pelotas temos ainda em atividade a Sociedade Fica Aí Pra Ir Dizendo, e a Sociedade Chove Não Molha, mas outras, já extintas tiveram também o seu apogeu. Em Rio Grande, o Braço é Braço, depois o Oriente e o Recreio Operário e ainda, com enfoque mais cultural, a Sociedade Floresta Aurora, certamente uma homenagem à veteraníssima de Porto Alegre.Bagé encontraríamos os Zíngaros e mais tarde o Aurora Social Clube, também uma referência à Floresta Aurora, e que por longos dez anos produziu as grandes festividades da cidade bajeense. Em

Acervo Éder Luis Farias

Os Prediletos com seu estadarte no carnaval de 1937.Na segunda fila, o quinto da esquerda para a direita é o Dr. Veridiano Farias, mestre ensaiador do grupo.

Arquivo Imágica

Bloco dos Tesouras com seu estandarte, no início do século 20

Recordar é Viver - 129

130 -NEGRO em Preto e Branco Acervo Osvaldo F. Reis

Camaquã, a Honorato Soares. Em São Jerônimo, a comunidade encontrava na sede do Grêmio Jeronimense o espaço para os seus divertimentos esportivos e principalmente carnavalescos. Em Santa Maria foi constituída uma das sociedades mais antigas do Estado, a Treze de Maio, famosa pela realização de bailes e festividades que marcaram época. Em São José do Norte a comunidade construiu o seu espaço ao fundar a Sociedade Recreativa Nortense, porém, fato de significativa importância, ocorria em um distrito do município com o nome de Capelinha. Como havia apenas um Clube, colocava-se a orquestra no meio do salão e esta tocava ao mesmo tempo para os negros que dançavam em um lado e os brancos que dançavam no outro. Vamos encontrar no Interior situações em que a orquestra tocava em dias alternados pra uma e outra etnia. O período de após guerra, especialmente em Porto Alegre, produziu algumas transformações no carnaval de rua. Os grandes Cordões foram cedendo lugar a grupos menores. Com o tempo surgiram as Tribos Carnavalescas.

Participantes do Bloco Não Vai Prá Ti com seu estandarte, em 1937

Os Blocos Humorísticos e de Sociedades mudaram suas estruturas e propostas. Os bailes de carnaval das Sociedades, no entanto, permaneceram com o mesmo gás, até o aparecimento das Escolas de Samba. Não há dúvidas que as Escolas de Samba, pelas suas peculiaridades, conquistaram a comunidade carnavalesca, colocaram-se numa posição hegemônica e iniciaram, embora Acervo Osvaldo F. Reis

Não Vai Prá Ti em 1940

Acervo Socedade Floresta Aurora

Placa com o logotipo da Sociedade Floresta Aurora

Rainha do Carnaval de 1936 Acervo Berenice Silva e Silva

Acervo João Augusto Santos Silva

Baile Carnavalesco na sede da Floresta Aurora ainda no Bairro Cristal

Grupo na sede campestre do Cristal nos anos 50 Acervo Berenice Silva e Silva

Acervo Alpheu C.Batistta Jr.

Carnaval de 1973 Grupo em baile na Sede da Floresta Aurora nos anos 50

Recordar é Viver - 131

132 -NEGRO em Preto e Branco

que timidamente, um processo de entrelaçamento étnico. Em conseqüência, deve-se a elas e evidentemente a outros fatores o declínio dos Bailes de Sociedade. Não vemos hoje o estardalhaço da mídia destacando e anunciando os bailes tradicionais das sociedades nem o entusiasmo e os preparativos para as noites de Momo que aqueciam as pequenas e médias sociedades. Em contraposição, a mesma mídia hoje investe pesado nos desfiles de Escolas de Samba e acaba com isto produzindo um êxodo expressivo de carnavalescos para outras praças como Santa Catarina, São Paulo e especialmente o Rio de Janeiro, além, é bem verdade, de outras concorrências como o Axé Baiano, o Frevo Pernambucano e outras culturas. Os Bailes de Carnaval perderam para as passarelas. É tempo porém de retornar à poesia e o encanto dos tempos de Ala Laô, Chiquita Bacana, Quem Sabe Sabe e outras. Esta iniciativa, cabe especificamente às nossas Sociedades.

Irene Santos

Nilo Alberto Feijó

Compositor, pesquisador e estudioso da Cultura do Carnaval e da História das Escolas de Samba de Porto Alegre. Presidente da Associação Satélite Prontidão. Foi presidente do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra /CODENERS. Julgador de Carnaval de Porto Alegre.

Arquivo A.Satélite Prontidão

Logomarca da Associação Satélite Prontidão Arquivo A.Satélite Prontidão

1956 - inauguração da Sede Própria da Associação Satélite Prontidão Acervo A.Satélite Prontidão

Acervo Eloy Dias dos Angelos

Miss Brotinho 1969 e 1970 Acervo Maria Regina Borges Pinto

“Miss Simpatia” no Clube Marcilio Dias

Recordar é Viver - 133

134 - NEGRO em Preto e Branco Arquivo Tição

Acervo Renato Costa

Fantasiadas no carnaval da Colõnia Africana no início do século 20

Acervo Eder Luis Farias

1929 - Rainha do Bloco dos Tesouras Acervo Osvaldo F. Reis

Integrantes dos Turunas nos anos 30

1954 - Bloco Não Vai Prá Ti

Acervo Irma Nascimento

Fantasiadas

- carnaval de 1935

Recordar é Viver - 135

136 -NEGRO em Preto e Branco

Seu Pretinho, o Moleque Tião Júlio Ferreira, que, na juventude, também foi chamado de Moleque Tião, nasceu em 10 de dezembro de 1921, filho de Possidônio Ferreira e Doralice Monteiro Ferreira. Seu pai integrava tradicional família negra que residia na Rua Joaquim Nabuco, no bairro Cidade Baixa. Pretinho nasceu nas imediações da Colônia Africana (atual bairro Rio Branco). Jovem, passou a residir no bairro Auxiliadora/ Mont’Serrat. Por duas décadas - 1940 a 1960 - ele ocupa o cenário social promovendo várias festas na Capital e nos salões da Grande Porto Alegre. Deixou também sua marca na organização de tradicionais piqueniques nos campos da Vila Jardim, Três Figueiras, Passo do Feijó. Os mais antigos, ligados ao futebol, vão lembrar dos torneios que eram disputados nos campos de várzea da Cidade, especialmente daqueles que aconteciam em pleno dia de Natal. E, mais ainda, das competições futebolísticas realizadas nos campos do Rio Guaíba, no bairro Navegantes. Pretinho foi, em sua época, um animador social. Promovia bailes nos movimentados e animados salões da cidade: Salão dos Turunas, Salão do Rui, Salão Natal e outros que eram animados por músicos da mais reconhecida competência. Carnavalesco, fundou e desfilou em muitas entidades: Grupo Carnavalesco Não Vai Prá Ti, Olho de Lá, Ai Vem a Marinha, Fidalgos e Aristocratas, União da Vila do IAPI . Desfilou em blocos humorísticos e ficou conhecido com a personagem “Nega Maluca”. Nos últimos anos de sua vida integrou ativamente a Velha Guarda, da Academia de Samba Praiana, honrando as cores da escola em seus trajes, nos quais o verde e rosa eram uma constante. Faleceu em 19 de novembro de 1999, perto de completar 78 anos idade, após viver uma vida intensa, casado com Dona Corália Marta dos Reis Ferreira, teve 4 filhos, 10 netos e 2 bisnetos.

Tenda de lanches no carnaval do bairro Mont’Serrat

Fotos do acervo de Osvaldo F. Reis

“Nega Maluca” com o Rei Momo Vicente Rao

Recordar é Viver - 137

O

ENREDO DO NOS SO SAMBA

Claudinho Pereira

“O Brasil é um país mestiço, com algumas ilhas negras”. (Glória Moura, no livro “Os herdeiros da noite”)

A música popular brasileira sempre desmentiu os temores de perda da nossa identidade nacional. A “invasão” da produção cultural estrangeira, embalada por tangos, boleros, guarânias, fox-trotes e o que mais chegasse pelas ondas do rádio, o berço esplêndido do Brasil, nunca deixou os seus filhos sem trilha sonora de choros, maxixes, emboladas, baiões - batuque das nossas raízes mestiças. “A autenticidade” nacional, como afirma o historiador inglês Eric Hobsbawn, é construído “essencialmente pelo alto”, mas deve também ser analisada “de baixo, ou seja, em termos das suposições, esperanças, necessidades, aspirações e interesses das pessoas comuns, as quais não são necessariamente nacionais e menos ainda nacionalistas”. Ou, como escreve Hermano Vianna, em seu livro “O mistério do samba”, não é porque ficou definido que o samba é a música brasileira por excelência, o “nosso” ritmo nacional, que todo brasileiro vai se identificar com essa definição. Ele pode continuar pelo resto da vida preferindo forró, vanerão e nunca ouvindo samba.

Sergio “Japa” Sakakibara

Como lembra Hobsbawn, não podemos presumir que, para a maioria das pessoas, a identificação nacional - quando existe - exclui ou sempre é superior ao restante do conjunto de identificações que constituem o ser social. De novo Vianna: “a homogeneização nunca é perfeita a ponto de excluir toda a heterogeneidade”. Assim, é de se perguntar: e o nosso samba-enredo, ligação negra com os nossos antepassados, onde fica? Será parte desta historia toda: “o samba agoniza, mas não morre” - ensina um verso de Nelson Sargento. O

samba é matriz da música popular brasileira e sua corrente principal. Reza a lenda que o vocábulo teria nascido do encontro de dois verbos da língua nagô/iorubá: “san” (pagar), “gba” (receber). O pesquisador (e sambista) Nei Lopes, em seu livro “Sambeabá”, confirma que o vocábulo é sem dúvida africaníssimo – mas não iorubano, e sim legitimamente banto. Buscando comprovar a origem do samba, veremos que o termo foi corrente também na região do Prata, como “semba”, para designar o candômbe, gênero de música e dança dos negros bantos da região de los hermanos. Não quero fazer uma tese sobre a palavra samba, tenho mais perguntas que afirmações. Aqui, minha principal indagação diz respeito às características próprias do ritmo do samba-enredo de Porto Alegre.

Acervo Vera Daisy Barcellos

Afinal, por que o samba-enredo no Rio Grande do Sul é mais acelerado do que o do Rio de Janeiro e de outras regiões do País? Será influência da cultura dos imigrantes alemães ou italianos, impondo um ritmo de marcha? Ou será herança de alguma cultura africana específica, conservada pelos africanos que chegaram escravizados ao sul do Brasil? Mas, se é um critério geográfico ou não, pouco importa. Certa vez, recebendo em Porto Alegre o grande mestre de bateria carioca Marçal, víamos e ouvíamos o desfile das escolas de sambas da Cidade quando percebi que ele ficou encantado com o ritmo apresentado na avenida. Burramente, falei para o O enredo do nosso samba - 139

140 -NEGRO em Preto e Branco Sergio“Japa” Sakakibara

mestre que o samba das nossas escolas deveria ter uma batida mais lenta, menos acelerada - como a das escolas do Rio de Janeiro. Marçal me olhou com um ar estranho e respondeu: “Aqui, o samba-enredo é lindo no ritmo e tem uma cadência que eu nunca tinha ouvido. E esta é a beleza do samba da sua terra; tem um diferencial do samba ouvido no resto do País. O samba é isso: assim como o jazz, o samba tem variações em cima de seu ritmo”. A partir daquele dia, passei a ouvir o nosso samba com outros olhos, digo ouvidos. Samba-enredo é uma modalidade de samba que consiste em letra e música criadas a partir do assunto escolhido como tema de alguma escola de samba (a nossa grande ópera popular). E quando, em 1997, fui realizar o documentário “Ilha Negra”, sobre o maçambique na comunidade negra de Osório, no litoral norte do RS, pude observar que ali havia uma verdadeira resistência negra, o ritmo ali estava preservado, garantindo sua identidade cultural através de festas e congadas (que existem, resistindo, em todo Brasil – como verdadeiros quilombos). A dança das congadas, a batida dos pés negros no chão batido, tinha a sonoridade acelerada das nossas escolas de samba, exemplo da característica sonora do nosso sambaenredo, em virtude da nossa forte herança africana, no som dos tambores e nos gestos dos corpos que dançam. A travessia da calunga grande (o mar) trouxe a religião na alma, e o ritmo no sangue.

Sergio “Japa” Sakakibara

A partir dali, passei a amar o nosso carnaval - como o Cláudio Brito (o branco mais negro que conheço). Acelerado sim, o samba-enredo gaúcho é deste jeito graças aos orixás e ao talento dos nossos ritmistas, como Neri Caveira, Caloca, Irajá e Mestre Nilton, e às composições de autores como Nilo Feijó, Wilson Nei, Leleco Telles, Bedeu, Alexandre e tantos outros de igual talento. Certa vez, conversando com Nei Lopes, ele me disse que era necessário que os nossos sambistas assumissem a tarefa de falar sobre o samba - e creio que nós gaúchos precisamos falar sobre o nosso samba-enredo para valorizá-lo, mostrá-lo ao Brasil e ao mundo. Para mostrar aos contaminados pela massificação cultural emburrecedora e discriminatória, que gaúcho tem samba - na letra, no pé e no ritmo. Só não podemos cair no polo oposto, uma armadilha que terminou dizimando nossas tribos carnavalescas - outra característica do carnaval popular de Porto Alegre (embora algumas continuem resistindo heroicamente). Fica a tarefa. E aqui vai também a saudação ao Charuto, nosso grande folião do carnaval, e ao inesquecível Vicente Rao. Além de um brinde para o carnaval da Rua Santana, para a “Rua do Perdão” e para as muambas. “Quem samba fica/quem não samba vai embora”.

Compadre, laroie.

“Diz-me o que cantas... /direi de que bairro és...”. (Raul Pederneiras, início do século XX)

Irene Santos

Claudinho Pereira

Documentarista, radialista e DJ em Porto Alegre.

O enredo do nosso samba - 141

CHAMA QUE NÃO SE APAGA

Joaquim Lucena Neto

Pobre carnaval... O tempo passa, a luta é constante como a própria realidade da qual participa. A classe dominante é camaleônica, ideologicamente, e impõe seus interesses. Sempre foi assim ao longo dos anos. O estudo do Carnaval nos propicia o aflorar de passagens e trajetórias da etnia negra em nossa Cidade. Arraiais diversos, ligados ao Carnaval, mostram, geograficamente, o seu território urbano. A Colônia Africana, hoje bairro Rio Branco, o Caminho do Meio, hoje bairro Bom Fim, a Cidade Baixa e a Ilhota, hoje Areal da Baronesa; Joaquim Nabuco, Venezianos, Praça Garibaldi e, mais recentemente ,os bairros Santana, Partenon, Cavalhada, IAPI, Mont’Serrat, São José, Jardim Botânico organizavam os coretos. Mas tudo começou com a etnia branca, principalmente, quando os açorianos vieram florescer o Porto dos Casais. Na sua bagagem trouxeram, também, um belíssimo tesouro cultural: o Entrudo. Um legado que cresceu, dividiu opiniões e cooperou para que em 1837 ocorresse sua proibição. Acervo Nilton V .Amaral

Por volta de 1875, um Carnaval requintado e luxuoso deslumbrava e alcançava seu apogeu. Sociedades carnavalescas - Esmeralda e Venezianos -, cada uma delas com mais de 25

carros enfeitados e cenografados, desfilavam nas ruas ornamentadas de flores e lanternas de papel. Este foi, com certeza, um evento majestoso e de imaginável alegria. Em 1886, manchetes de revistas, jornais e folhetins da época retratam a anemia folieira do Carnaval, com os seguintes dizeres:

“Forças ocultas levam a um visível declínio o Carnaval portoalegrense. Os conservadores acabam com o Carnaval”. No final do século desaparecem as sociedades carnavalescas. É preciso, também, pinçar da memória o século XX. Mais precisamente 1939, quando da fundação da primeira escola de samba em Porto Alegre denominada “Loucos de Alegria”. A idéia trazida do Rio de Janeiro por Nelson Lucena (violonista) e seu irmão Joaquim Lucena Filho. Juntaram-se a estes: Valdemar Lucena, Oswaldo e Mário Barcelos e Heitor Barros. No ano seguinte, 1940, a família Lucena deixa esta Escola e funda uma outra, a Escola de Samba “Gente do Morro”. A “cariocarização” do nosso Carnaval tinha seu início, mas entremeando esse período, ali pelos anos 40, surgem as tribos carnavalescas que tiveram na década de 60 um esplendor esfuziante. A Academia de Samba Praiana no Carnaval de 1961 traz inovações de desfile inspirado na folia do Rio introduzindo no Carnaval gaúcho a estrutura de uma escola de samba. Em 1972 a Academia de Samba Relâmpago, idealizada por Joaquim Lucena Neto, é uma escola igual às do Rio de Janeiro. Traz para Porto Alegre um novo ritmo, introduzindo o repenique e o maracanã e propondo diversas modificações para o nosso Carnaval: direção empresarial, quadras de ensaio, gravação de samba-enredo, retirada dos instrumentos de sopro, grandes bailes e participações em projetos sociais. Essa escola fez um grande evento com as escolas cariocas Mangueira, Portela, Império Serrano, Imperatriz e Salgueiro que a batizam no estádio Olímpico. Em 1973, a Relâmpago vai ao Rio de Janeiro, apresenta-se no programa Flávio Cavalcanti e recebe as bandeiras das escolas co-irmãs cariocas. Ao final do século XX, Bambas da Orgia e Imperadores polarizam a preferência popular. Enfim, vamos viver o presente século XXI. Vamos voltar à alegria de outrora de um carnaval pomposo, vamos construir a pista de eventos (sambódromo). Envaideço-me, lacrimejo de alegria, mas, é no Porto Seco... lacrimejo de tristeza. Lampejos na memória lembram a religião afro perseguida e, depois, por interesses políticos, sendo liberada. Nessas casas, o samba era acolhido e fortificou-se na clandestinidade. Era difícil para as autoridades perseguidoras dos sambistas diferenciá-los na roda de samba ou nas rodas de orixás. Chama que não se apaga - 143

144 - NEGRO em Preto e Branco

Hoje atiraram as cinzas do Carnaval no Porto Seco, esqueceram de tirar as brasas. Tenho certeza de que elas acenderão a chama da cultura. Esta nunca mais se apagará e o sambista poderá cantar “... A vida só tem valor com o samba/o povo sorrindo/a avenida se abrindo”. Mas sempre foi assim....pobre Carnaval!

Acervo Joaquim LucenaNeto

Primeiro titulo dos Acadêmicos da Orgia em 1971. À esquerda Joaquim Lucena Filho

Irene Santos

Joaquim Lucena Neto

Advogado. Militar da Aeronáutica. Mestre de Bateria Diretor de Harmonia, compositor e incentivador do Carnaval de Porto Alegre

Acervo José Laurindo Lopes

Acervo Irma Nascimento

1954 - Rainha do Carnaval do Bambas da Orgia

Hemetério Barros, um dos fundadores do Bambas da Orgia Acervo Adão A.de Oliveira

Desfile dos “Intocáveis” em 1977 na Avenida João Pessoa. Tocando o gongo, Adão Alves de Oliveira, o seu Lelé

Chama que não se apaga - 145

146 - NEGRO em Preto e Branco Acervo Julio J Nnes

Sociedade Carnavalesca Imbrutus nos anos 40 Acervo Osvaldo F. Reis

Coreto e Rainha do Carnaval de rua na Mariland em 1964

Acervo Renato Costa

1959 - Ranha do Carnaval da Rua Leopoldo Bier com São Manoel

Acervo M.Regina B.Pinto

Acervo M.Helena Montier

1975- Maria Helena Montier com o Rei Momo Miudinho.Maria Helena foi intérprete dos sambas da Imperadores e da Realeza e cantora de vários conjuntos de sucesso nos anos 70 Acervo Renato Costa

Fidalgos e Aristocratas recebem a taça do Carnaval de 1975

Acervo M.Regina B Pinto

1957 - Bambas da Orgia

Acervo Dirney A. Ribeiro

Alegoria e integranes do Aí Vem a Marinha

1967 - Trevo de Ouro desfila com enredo Brasil Império

Chama que não se apaga - 147

148 - NEGRO em Preto e Branco

Acervo M. Noelci Homero

Acervo Lúcia Regina Brito Pereira

Correndo para chegar a tempo de assistir o desfile da Rua Santana Detalhe da platéia de um desfile de Carnaval no bairro Santana nos anos 50

Lista das ruas onde aconteceram os desfiles do Carnaval de Porto Alegre, na memória do carnavalesco Érico Rosa Machado, da Academia de Samba Praiana: 1949 - Praça Senador Florêncio (Praça da Alfândega) 1951 - Rua do Arvoredo, atual Fernando Machado 1953 - Rua General Bento Martins esquina com Rua Fernando

Machado

1955 - Praça da Alfândega 1956 - Rua da Margem do Arroio, hoje Rua João Alfredo 1960 - Avenida Borges de Medeiros esquina com a Rua da Praia

(Esquina Democrática)

1962 - Avenida Presidente Franklin Roosevelt 1963 - Avenida Borges de Medeiros 1965 - Avenida João Pessoa 1970 - Rua João Alfredo 1971 - Avenida Loureiro da Silva conhecida como Avenida Perimetral 1980

- 2003 - Avenida Augusto de Carvalho

Seu Lelé e as histórias de um rei negro As histórias contadas por Seu Lelé sobre o Carnaval da década de 40, especialmente do Areal da Baronesa, já valeram importantes pontos no mundo acadêmico. Seu Lelé, que é Adão Alves de Oliveira, 80 anos, exibe sempre com disfarçado orgulho a publicação Rio Grande do Sul, Brasil, Etiópia: os negros e o Carnaval de Porto Alegre nas décadas de 30 e 40. Uma dissertação apresentada como requisito à obtenção de grau de mestre em História pela Ufrgs assinada por Iris Graciela Germano. Neste documento, em diferentes páginas, Seu Lelé, que foi o primeiro Rei Momo Negro do Carnaval de Porto Alegre, serve de fonte para explicitar o diferencial do carnaval do Areal da Baronesa e da Rua Miguel Teixeira, duas bases marcantes da folia momesca da Cidade Baixa. Seu Lelé conta que a escolha do Rei Momo Negro nasceu de uma aposta entre amigos feita em fevereiro de 1948. Com uma coroa de papelão e um pano branco amarrado pelo corpo, Lelé foi sagrado rei do Carnaval do Areal da Baronesa. No primeiro ano, o título não passou de uma brincadeira para testar a coragem daquele que se vestiria de rei. No ano seguinte, 1949, foi para valer. Consagrado soberano, Lelé teve uma chegada apoteótica no bairro: ele e sua corte (com apoio financeiro dos moradores) pegaram um barco na Avenida Praia de Belas, passaram pela Travessa Pesqueiro e desceram, sob o rufar dos tambores, na Ponte de Pedras. Dalí seguiram para o coreto montado entre as ruas Barão do Gravataí e Baronesa do Gravataí. “E a festa pegou com a batucada do Nós Os Democratas, Grupo do Marquinhos, X do Problema, Clarim, entre outros”, lembrou. Seu Lelé dividiu o reinado do bairro até 1952 com outro Rei que, também, marcou o Carnaval do Areal da Baronesa, o branco Alfredo Raimundo Macalé que dominava o reduto da Rua Miguel Teixeira. Mas a vida não foi só folia para Adão Alves de Oliveira. Em sua carreira profissional o registro de porteiro de teatro, onde fez ponta em algumas peças, o trabalho no extinto Banco Nacional do Comércio e na Livraria do Globo e muitas outras andanças.

Acervo Adão Alves Oliveira

O apelido Lelé foi herdado dos campos de futebol, onde mostrou habilidade e talento nas equipes do Nacional, depois Força e Luz, Cruzeiro e por último o Flamengo, de Caxias do Sul. Hoje, aos 80 anos, Seu Lelé se queixa das rasteiras que a memória lhe prega, mas, organizado, soube guardar sua história de vida nas muitas fotos e reportagens feitas com ele. Chama que não se apaga - 149

150 - NEGRO em Preto e Branco

Carlos Alberto Barcellos, o Roxo O porto-alegrense Carlos Alberto Barcellos herdou do padrasto o apelido - Roxo - que o tornaria conhecido nos clubes de futebol, nas escolas de samba, nos conjuntos musicais e na vida cultural de Porto Alegre e do Estado. Nascido em 5 de novembro de 1941, ele cresceu embalado pelos acordes musicais do samba que “rolava” na Ilhota, Cidade Baixa e, mais especificamente, no Areal da Baronesa. Era tempo de jogo de bola, de batucada em lata de banha e de couro de gato virando tamborim. O menino cresceu, virou homem e sua trajetória de vida acabou aos 47 anos na fria manhã de 1º agosto de 1989. Hoje, como ontem, seu nome ainda circula de boca em boca numa lembrança de quem abriu algumas significativas fronteiras para a comunidade negra gaúcha e porto-alegrense. Foi um tempo curto de existência para quem fez muito. O cidadão Carlos Alberto Barcellos, o Roxo, foi um autoditada por excelência. De bem com a vida, fez dela a sua grande escola. Em seu currículo, o Carnaval vai estar sempre presente. Na folia carnavalesca exerceu quase todas as funções. Dono de um ouvido privilegiadíssimo, marcou presença como mestre de bateria, ensaiador de “beleza” (alas), foi presidente e conselheiro da Imperadores do Samba. Não ficou apenas na Vermelho e Branco: dividiu seu conhecimento pela Academia de Samba Praiana, Bambas da Orgia, Acadêmicos da Orgia e pelo bloco carnavalesco “Prá Que Tristeza”. Espalhou, também, sua energia pelas cidades do Interior: Pelotas, Uruguaiana, Santa Maria, Campo Bom, Taquari, São Leopoldo, onde a folia reinava soberana. Em todos os lugares por onde passou deixou a marca de sua luta permanente pelo respeito e reconhecimento do samba e do carnaval como cultura popular e afrobrasileira. O futebol também o encantou. Muitos dos seus amigos o apontam como um grande talento no trato com a bola nos clubes de Porto Alegre, Interior e fora do Estado. Roxo não foi apenas sinônimo de Carnaval. Ao liderar o conjunto musical “Café Som e Leite”, na década de 70, estimulou o surgimento de inúmeros outros conjuntos que marcaram época em Porto Alegre. Foram grupos de Acervo Vera Daisy Barcellos

samba que romperam o círculo fechado das casas noturnas, embalaram festas em clubes tradicionais da cidade e abriram espaços de manifestação não restrita ao Carnaval, revelando assim, grandes nomes da música gaúcha. Na universidade da vida, Roxo ganhou diploma de jornalista. E como cronista em Zero Hora criou espaços para a comunidade negra que passou, como nunca, a ver seus nomes e suas atividades registradas num jornal de grande circulação. Em sua “Ala do Roxo”, fez folclore, centralizou informações e polemizou. Do jornal se alçou às emissoras de rádio e à televisão. Como comunicador da Rádio Princesa, onde mantinha o programa “Tarde de Sucesso” - antes havia passado pela Rádio Gaúcha - abriu os microfones para o samba e para todos os assuntos que envolviam a população afro-brasileira do Estado. Além de comunicador, Roxo buscou a integração e o intercâmbio com sambistas cariocas e paulistas trazendo, pela primeira vez, para Porto Alegre nomes como Aroldo Melodia, Bebeto, Luís Melodia, Neguinho da Beija Flor, Alcione, Leci Brandão, Marquinhos Satã, Reinaldo. Empreendedor por natureza, foi, também, responsável por uma série de promoções e eventos que mexeram com a vida cultural de Porto Alegre, sendo o maior deles o Samba Sul. Carlos Alberto Barcellos, o Roxo, é nome da pista de eventos do Complexo Cultural Porto Seco, como antes no Carnaval da Avenida Augusto de Carvalho. Esta denominação foi aprovada na sessão solene realizada no dia 09 de agosto de 1989 na Câmara Municipal de Vereadores, oito dias após a sua morte, num reconhecimento por tudo o que fez pela cultura do povo gaúcho.

Chama que não se apaga - 151

CANT ANDO PRÁ PRÁ SUBIR SUBIR ANTANDO Silvia Abreu

A música teve um papel importante na ascensão social do negro em Porto Alegre, tornando-se impossível dissociá-la da história deste povo. Aliviando a rudeza do trabalho escravo, a música manteve viva a noção de pertencimento, preservando o vínculo com a Mãe África, e garantindo sua identidade cultural. Cantando, os negros exorcizavam seus medos e reverenciavam seus mitos. Ao som de tambores e atabaques, emprestavam seus corpos, que, “cavalos”, serviam de suporte para a passagem dos orixás durante as cerimônias religiosas. Findo o ritual, cantavam para que os espíritos “subissem”. Daí a expressão “cantar prá subir”, que também descreve o esforço de superação das adversidades cotidianas, fato que se aplica, plenamente, à luta histórica dos afro-brasileiros por justiça e dignidade.

Acervo Zilah Machado

No período colonial, escravos e negros livres constituíram a maior parte dos conjuntos instrumentais atuantes em funções teatrais, religiosas e festivas em geral. No século XIX, o emprego de escravos como músicos tende a diminuir, mas não desaparece, conforme observa Maria Elizabeth Lucas, no artigo Classe Dominante e Cultura Musical no RS:do amadorismo à profissionalização: “ ( . . . ) e x- e s c r a v o s e mestiços livres continuam a predominar como profissionais de música em diversas regiões do País, e o Rio Grande do Sul não fugia a isto”.

Arquivo Imágica

Um bom exemplo é o maestro Joaquim José de Mendanha, que foi mestre da capela da catedral de Porto Alegre (18501885) e exerceu a função de regente da maioria das festas religiosas, espetáculos teatrais e saraus. É dele a autoria da música do Hino Riograndense, encomendada pelos farroupilhas.A partir da promulgação da Lei Áurea, em 1888, começaram a se formar os primeiros redutos de negros em Porto Alegre.

Maestro Mendanha

Acervo Sirmar Antunes

Violonista nos anos 40

Acervo Éder L. Farias

A região escolhida ficava entre os atuais bairros Rio Branco e Bonfim, e foi batizada de Colônia Africana. Nesta região, os moradores realizavam suas festividades religiosas, as quais atraiam a atenção da população do centro da cidade, conforme descreve o cronista Achylles Porto Alegre: “(...) Nos dias de folia, já de longe se ouviam a melopéia monótona do canto africano e o som cavo de seu originalíssimo tambor. (...) O batuque prosseguia pelo dia e pela noite adentro (...) Não havia, porém, algazarra. O africano não grita. Era a melopéia, em coro, e ao som compassado do tambor. (...) Havia também os batuques ao ar livre. (...) dos mais populares era o do Campo do Bonfim, em frente à capelinha então em construção. Cada domingo que Deus dava era certo um batuque ali, e o interessante é que muita gente se abalava da cidade para ir ver a dança dos negros”. (FARIA, 2001). O nascimento dos ranchos, como os Benguelas, Os Baianos e Os Moçambiques, ainda no final do século XIX, favorece a inserção dos negros no cenário musical portoalegrense. O músico Hardy Vedana observa, no entanto, que, “muito mais do que o rancho, será o jazz, pela diversificação dos instrumentos, que oferecerá maior oportunidade para a demonstração do talento e criatividade musical dos músicos negros (VEDANA, 1987). Acrescenta que este estilo representou uma possibilidade para a independência financeira por meio do trabalho autônomo. O autor ressalta, ainda, que será o jazz que vai abrir as portas dos clubes, uma vez que estas associações antes não aceitavam negros. Fotos do início da década de 20 mostram a presença de negros na recém fundada Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. No jazz, e não somente neste estilo, dois nomes se destacaram: os saxofonistas Marino dos Santos e Paulino Mathias, que, por cerca de quatro décadas, atuaram em vários grupos, entre eles a Jazz Band Espia Só. Com o surgimento do rádio, um promissor mercado de trabalho se abre, oferecendo aos artistas negros possibilidades de mostraram seu talento. O período conhecido como Época de Ouro do Rádio, compreendido entre o início dos anos 30 e o final dos 50, foi o mais importante, destacando-se nomes Cantando prá subir - 153

154 -NEGRO em Preto e Branco Jazz em Porto Alegre/ H.Vedana

Horacina Corrêa

HORACINA CORRÊA Um nome que brilhava em 1936, em plena Época de Ouro do rádio, era Horacina Corrêa, a soberana dos programas de auditório. Dona de uma voz potente que dispensava, muitas vezes, o microfone, ela fazia sucesso. Integrou vários conjuntos musicais e no carnaval se destacava como uma das principais intérpretes do bloco Turunas. De Porto Alegre foi para o Rio, onde fez diversos shows e participou de filmes feitos pelos estúdios Cinédia e Atlândida.

como os cantores Bruno Thomas, Zé Carlos, as cantoras Horacina Corrêa, Carmen Del Campo, Dalila, Branca de Neve, Maria Helena Andrade, Lourdes Rodrigues e Zilah Machado. Lupicínio Rodrigues foi o nome que pontificou nesta época. Como compositor ainda é o músico gaúcho mais significativo na história da música popular brasileira. Ele também marcou presença como animador da noite, apresentador de programas de rádio e embaixador do samba e da boemia. Um fato novo surge nos início dos anos 60. O advento da televisão retira o espaço do rádio como mercado de trabalho e palco de atrações musicais. A televisão conquista o grande público e desperta o interesse dos patrocinadores. Na programação musical das rádios, o disco substituiu os grandes elencos. A nova mídia, entretanto, não ofereceu a todos igual oportunidade. Os músicos negros, em maior parte, não foram acolhidos por estarem em desacordo com o padrão estético imposto por esse novo veículo de comunicação. Começa aí, um gradual e contínuo processo de invisibilidade do negro na televisão. O músico João Augusto Santos Silva, o Caco, coordenador do grupo afro Odomodê, considera que os anos 50, 60 e 70 foram pródigos em criatividade, principalmente para Porto Alegre, que vivia, ainda, os ecos da sonoridade proporcionada pelos blocos carnavalescos originários dos redutos populares e concentradores da população negra. “Era a musicalidade feita por pessoas que encontravam nesse meio a oportunidade de mostrarem o seu talento”, salienta. A década de 70 também será importante pelo surgimento de novos grupos musicais. “O tom reivindicatório presente nas letras da música negra norte-americana influenciam o samba, alterando seu ritmo, dando origem ao chamado samba/swing ou o samba-rock, em Porto Alegre”, afirma Caco. Esta mudança musical, segundo ele, é bem representada pelo grupo Pau-Brasil (Bedeu, Leleco Teles, Alexandre, Lequinho, Nego Luis e Cy) e pelo “guitarreiro” Luis Wagner. A partir dessa proposta, que ganhou o Brasil graças ao trabalho feito por Bedeu e companhia, os compositores negros “começam a dar preferência à batida de raiz africana, fonte de múltiplas diversidades sonoras e criativas”, conclui. Os anos 70 também marcam o surgimento de conjuntos musicais, quase pequenas orquestras, influenciados por similares do Rio de Janeiro e São Paulo. Estes grupos, presença constante nos bailes de entidades negras, eram contratados para animar os bailes dos grandes clubes e sociedades porto-alegrenses.

Acervo Neura R.S.Silva

No repertório, imperavam sucessos da MPB e da música internacional, com destaque para o samba. Entre estes grupos, estão “Café,Som e Leite”, “Musical Porto Alegre”, “Evolução” e “Samba Asfalto Show”. A década de 70 também é marcada por uma profunda renovação na música brasileira e seus reflexos são percebidos na Capital. O romantismo boêmio dá lugar à modernidade. Surgem os festivais universitários, que expressam uma sonoridade tipicamente urbana. Estão em atividade Giba-Giba, Neri Caveira, Loma, Lúcia Helena. Ainda hoje, a música é uma espécie de salvo-conduto para as populações marginalizadas que não têm acesso aos bens culturais. Ainda hoje, a música é instrumento imprescindível de luta e de pressão social. Ainda é ela que permite a superação dos revezes cotidianos e faz crer que tudo pode mudar. Os sons dos tambores do passado ecoam no ar, reverberando o clamor ancestral por justiça e dignidade. Ainda é preciso cantar prá subir...

Neura da Silva no dia do seu recital de piano no Theatro São Pedro em 1953

Irene Santos

Silvia Abreu Jornalista com atuação em veículos da Capital, Interior do Estado e centro do País. Produtora cultural, recebeu, em duas ocasiões, o Prêmio Açorianos de Produção em Artes Cênicas. Pós-graduada em Administração e Organização de Eventos/ Faculdade de Turismo e Hotelaria Senac/SP. Integra a executiva do Núcleo dos Comunicadores Afro-brasileiros do Sindicato dos Jornalistas/RS.

Cantando prá subir - 155

156 -NEGRO em Preto e Branco

Álbum de retratos Jazz em porto Alegre/ H.Vedana

JAZZ BAND ESPIA SO O Regional Espia Só, que depois seria a Jazz Band Espia Só, foi a primeira banda de jazz a surgir em Porto Alegre, em 1923, em plena febre das jazz bands. Liderado pelo flautista Albino Rosa, o grupo era formado apenas por músicos negros. Integraram a banda, Veridiano Farias, Binga, Severo, Heraldo Alves, Marino dos Santos e Paulino Mathias. A Jazz Band Espia Só era presença marcante nas festas dos clubes Satélite e Prontidão e ainda animava bailes no Interior. Manteve-se em atividade até o final de 1932.

Jazz Band Espia Só

L UPICÍNIO R ODRIGUES É no final dos anos 30 que um rapaz tímido, de voz curta e extenso talento, começa a expandir o nome do Rio Grande para o Centro do País. Lupicínio Rodrigues nasceu em 19 de setembro de 1914. Criado na Ilhota, um reduto pobre da Cidade Baixa, o moleque bom de bola cresceu e foi autor do Hino do Grêmio, seu time de futebol preferido. Foi um homem de muitas paixões, transformadas em letra e música e que atravessaram o tempo sem perder a validade. Versos que falavam das dores do seu coração. Boêmio, teve várias casas noturnas e restaurantes na cidade. Entre eles estavam o Jardim da Saudade, o Clube dos Cozinheiros, O Batelão, o Galpão do Lupi, Vogue e o Bar Vingança. Sua grande alegria era reunir os amigos e cantar à mesa de um bar. Criador do gênero dor-de-cotovelo, Lupi deixou um rico acervo, com letras que falavam dos seus muitos amores. Seu coração, que tanto o inspirou, falhou em 27 de agosto de 1974, deixando uma cadeira vazia em muitos bares de Porto Alegre.

Capa da Revista Aplauso/ setembro de 2004

Deste grupo, dois nomes se destacaram: Marino dos Santos e Paulino Mathias. Virtuose no saxofone, o compositor Marino dos Santos aprendeu a tocá-lo sozinho e ganhou fama nos bailes da Colônia Africana. Na década de 30 foi para o Rio de Janeiro, onde virou sargento-músico aprovado em concurso. Deu baixa no quartel, retornou para o Sul e acompanhou a evolução musical de Porto Alegre tocando no Jazz Carris, no Café Colombo, na Rádio Farroupilha e, mais tarde, na Rádio Difusora com seu próprio conjunto. O também saxofonista Paulino Mathias tocou nos melhores clubes noturnos da cidade. Com 15 anos formou seu primeiro conjunto, Os Boêmios , que se exibia em piqueniques e aniversários com grande sucesso. O músico Hardy Vedana assim se referiu a ele no livro Jazz em Porto Alegre: “Paulino exibia uma grande técnica instrumental, como também improvisava com muito gosto e maestria os sambas, choros e os fox-trotes de sucesso (...)”. (VEDANA, 1987).

R UBENS S ANTOS O grande parceiro de Lupi e um de seus melhores intérpretes foi Rubens Santos, também seu sócio em vários restaurantes e casas noturnas. Carioca, Rubens veio parar em Porto Alegre por volta de 1941. Estava indo para Buenos Aires, mas acabou o dinheiro. Decidiu ficar por aqui, até conseguir algum dinheiro.Nunca mais voltou. Na década de 90 gravou seu primeiro CD pela Secretaria da Cultura de Porto Alegre e voltou a reviver os anos de glória, cantando em Buenos Aires e Montevidéu, com grande sucesso até o final de sua vida em 2000.

Acervo Gelson Oliveira

Gelson Oliveira e Rubens Santos

A

NEGRA

B RANCA

DE

N EVE

Zilah da Rosa, mais conhecida como Branca de Neve, foi uma cantora que se consagrou nos programas de auditório da fase áurea do rádio gaúcho, ao lado de outras estrelas como Maria Helena Andrade, Zilah Machado, Elis Regina e Lourdes Rodrigues. Assídua freqüentadora do Clube do Guri, da Rádio Seqüência, e, mais tarde, do Programa Maurício Sobrinho, no Cine Castelo da Azenha, ela se destacava pelo estilo romântico de cantar incluindo no seu repertório boleros e sambas-canção. Nascida em Bagé em 30 de abril de 1932, desde pequena mostrava talento para o canto. “A música era tudo na vida da minha mãe”, conta a filha, Sandra Maria da Rosa. De temperamento alegre e ousado, Branca de Neve rompeu com os padrões da época quando optou pela carreira musical. Acompanhando orquestras e conjuntos musicais da época, fez várias turnês pela Argentina, Uruguai e Chile. Morou por 20 anos em Buenos Aires. O retorno definitivo para Porto Alegre ocorreu em 1986, aos 54 anos. O convívio com a família durou pouco. Em novembro desse mesmo ano veio a falecer, deixando um legado de rebeldia e talento musical.

Acervo Renato Costa

Branca de Neve com o Conjunto Vocal Coringas do Ritmo em 1958

Acervo Sandra M.Rosa

Acervo Renato Costa

1959 - Conjunto Vocal Coringas do Ritmo em apresentação no Salão Modelo

Branca de Neve

Acervo Lourdes Rodrigues

L OURDES R ODRIGUES Lourdes Rodrigues é uma casa cheia! E quando canta, todos os santos descem para lhe fazer coro. Foi sempre assim, desde pequena. Aos 10 anos, ela já encantava parentes e amigos, cantando nas escadarias da João Manoel com a Fernando Machado, no Alto da Bronze, ao estilo das divas que admirava, como Dalva de Oliveira e Carmem Miranda. Cantar seria o seu sacerdócio e, mesmo hoje, passados mais de cinco décadas de dedicação ao palco, continua a professá-lo, toda a vez que sua voz se derrama generosamente sobre a platéia. Lourdes Rodrigues nos ano 50

Cantando prá subir - 157

158 -NEGRO em Preto e Branco

Acervo Lourdes Rodrigues

Considerada a dama da canção, Lourdes Rodrigues acompanhou os áureos tempos do rádio, testemunhou o surgimento da televisão no RS e viu, aos poucos, os espaços para os cantores da noite se estreitar. Poucos resistiram. Ela é uma dessas que permanece. O grande impulso para a carreira profissional veio aos 14 anos, quando venceu, por unanimidade, o concurso “A Mais Bela Voz de Estudante do Rio Grande do Sul”, na Rádio Farroupilha. A final foi disputada no programa de Ari Barroso, no Rio de Janeiro, onde se sagrou vencedora. A este primeiro título, somar-se-iam mais outros 54, entre os quais: Favorita dos Estudantes, Rainha do Rádio, Rainha do Carnaval e Cidadã Emérita de Porto Alegre; posteriormente, receberia o Prêmio Açorianos de Música, em duas ocasiões. A consagração no Rio lhe valeria um contrato com a Rádio Farroupilha, onde estreou profissionalmente no dia de 31 de agosto de 1952, no programa Roteiro de um Boêmio, apresentando por Lupicínio Rodrigues. Junto com Jonhson, o trio animava as noites de quinta-feira. Na mesma emissora, ela era a atração do programa de auditório Rádio Seqüência, que ia ao ar das 11h30min às 13h. “O povo fazia fila para entrar. Eu tinha o maior fã-clube da cidade”, relembra. O sucesso no rádio tornoua uma pessoa conhecida. “Eu e o Lupi éramos muito requisitados para shows, tanto no Interior do Estado como em São Paulo e Rio de Janeiro.” Com a inauguração da TV Piratini, em 1959, Lourdes ganha um programa semanal, A Rainha Canta, acompanhada da orquestra de Salvador Campanela. Era exibido semanalmente, às 21h. A carreira musical não a impediu de levar uma vida como de qualquer mulher de seu tempo. Formou-se professora pelo Instituto de Educação, lecionou na escolas Presidente Roosevelt e Inácio Montanha e durante 26 anos trabalhou num cartório de Porto Alegre. Teve dois casamentos e três filhos. Depois vieram os anos de chumbo. “Havia muita repressão, com a censura determinando o que se poderia cantar”, comenta. Surge, no centro da Cidade, o antológico Adelaide’s Bar, na Marechal Floriano, onde se reuniam expressões da música como Alcides Gonçalves, Darci Alves, Johnson, Demósthenes Gonzáles, Jessé Silva e, claro, o velho Lupi. Foram muitas as casas noturnas por onde se apresentou: Clube da Chave, Clube dos Cozinheiros, Carinhoso, Batelão, Clube da Saudade, Chão de Estrelas. “Eu inaugurava todas as casas que abriam”, comenta. Foram bons tempos. “Tínhamos trabalho, liberdade e segurança.”

GIBA GIBA Gilberto Amaro do Nascimento ou Giba-Giba, nasceu em Pelotas em 06 de dezembro de um ano que ele faz q u e s t ã o d e n ã o r e v e l a r. S e u s p a i s , p e r c e b e r a m a inclinação musical do menino, que aos oito anos já presidia um bloco carnavalesco infantil, chamado “Meninas Afobadas”. Instrumentista, intérprete, letrista, notabilizou-se pela popularização, no samba da Capital gaúcha, do sopapo, instrumento de percussão oriundo da região das charqueadas. Entretanto, cabe ressaltar que o primeiro a introduzir o sopapo em Porto Alegre foi o pelotense Luiz Carlos Machado, o Caloca.

Lourdes Rodrigues em 1975, no Restaurante Chão de Estrelas

Em 1949, sua família muda-se para Porto Alegre, indo morar na Cidade Baixa. O ambiente boêmio foi propício para o desenvolvimento do talento musical do garoto. Foi um dos fundadores da primeira escola de samba da Capital, a Praiana, em 1960 e seu primeiro presidente. Na década de 60, Giba-Giba integra-se à vida cultural de Porto Alegre, como músico e produtor cultural. Entre outros trabalhos, integra, em 1967, o grupo “Canta Povo”, ao lado de Ivaldo Roque, João Palmeiro, Mutinho e as irmãs Silvia e Laís. O grupo se manteve ativo até o final de 1969, quando implodiu, paradoxalmente, logo após o anúncio de sua contratação pela gravadora Continental. O sucesso viria a se repetir com estréia do antológico “Uma Mordida na Flor”, espetáculo que estreou no Teatro de Arena em 1970, no qual dividia o palco com o violonista Wanderley Falkemberg, a cantora Graça Magliani, o compositor Luíz Santana, o percussionista Neri Caveira e Chaplin. Giba-Giba define o espetáculo: “era um misto de musical e movimento cultural, politico e estético. Reunia a intelectualidade alternativa em plena época da repressão. “Uma Mordida na Flor” trazia elementos novos para o palco: figurinos coloridos (concebidos pela artista plástica Maria Lídia Magliani), pés descalços, textos e música, um certo tom de rebeldia e inconformismo traduzido pela irreverência e pela voz potente de Graça Magliani. “Era a africanidade natural, a brasilidade, a fusão do Rio Grande do Sul com a cultura real brasileira: índio, negro e europeu. Era, como disse o crítico Tarik de Souza, a

Acervo Giba Giba

manifestação do antropofagismo gaúcho”, conclui Giba-Giba. “Uma Mordida na Flor” ficou cerca de seis anos em cartaz, sempre lotando os teatros por onde passou. Outro grande momento foi sua participação no espetáculo “Em Palpos de Aranha”, que estreou em 1975, ao lado de Cláudio Levitan, Chaminé, Zé Flávio, Graça Magliani, Neri Caveira e Inácio do Canto. O trabalho misturava rock e elementos regionais, música negra e solos da cuíca do mestre Nery Caveira; unia as linguagens da música, do teatro e das artes plásticas. Até o final da década a produção seria intensa, com a estréia dos espetáculos “O Osso – Uma Reflexão” (1976), “Própolis – Cidade a Favor”(1977) e “Corredor da Esperança” (1978), nos quais atuou como roteirista, compositor ou diretor.

GRAÇA MAGLIANI Na década de 1970, a presença da cantora Maria da Graça Magliani era marcante nos palcos porto-alegrenses, principalmente nos shows “Uma Mordida na Flor” e “Em Palpos de Aranha”. Instintiva, dramática, dona de uma voz grave e rascante, ela causava furor em suas aparições por sua maneira irreverente e despojada de se portar em cena. O reconhecimento de seu talento não ficou restrito à Capital. Graça atuou em São Paulo e no Rio de Janeiro. Gravou com Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e, a convite do empresário João Araújo, cantou com a grande diva do jazz, Ella Fitzgerald, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Nascida em Pelotas, Graça Magliani mudou-se com a família para Porto Alegre aos dois anos de idade. Irmã da artista plástica Maria Lídia, Graça começou a cantar ainda menina. Aos cinco anos já participava de programas de calouros na Rádio Farroupilha. Participou de vários festivais universitários, sempre vencendo como melhor intérprete. Aos 16, ouviu “Canto do Encontro”, de Wanderley Falkemberg, e constatou que só a música poderia expressar o que sentia. Uma tarde, encontrou o compositor na loja “Aldeia 2”, ponto de encontro de artistas e intelectuais da época, o qual a convidou para conhecer sua banda. Os ensaios começaram no porão casa de Falkemberg. O show “Uma Mordida na Flor”, marca a estréia profissional de Graça, que, a convite do empresário Rui Sommer, estreou no Encouraçado Butikim, na época, a mais famosa casa de espetáculos de Porto Alegre. O espetáculo ficou três meses em cartaz. Pela primeira vez, a casa abrigou um grupo local. Após, o show foi para o Teatro de Arena, onde permaneceu mais de um ano em temporada. O sucesso se repetiria no Teatro de Câmara e no Israelita. Seu último trabalho foi no show “Em Palpos de Aranha”. Depois, Graça foi morar no Rio de Janeiro, a convite de Antunes Filho e Flávio Império, onde permaneceu por seis anos. Quando regressou a Porto Alegre, a cidade já não era a mesma. O País passara por transformações sociais, políticas e culturais. A discomusic explodia e a noite já não oferecia espaço para o trabalho dos músicos. Graça Magliani não voltou mais aos palcos. Sua voz, entretanto, ainda ecoa nas ruas da cidade, as quais percorre cotidianamente cumprindo seu destino de intérprete.

Giba Giba em 1975 no show Em Palpos de Aranha Arquivo Tição

Graça Magliani

LUIS VAGNER Figura indissociável do movimento samba-rock ou swing, Luis Vagner vem influenciando várias gerações de músicos brasileiros. Natural de Bagé, vive há mais de três décadas em São Paulo, onde desenvolve intenso trabalho como músico, compositor, arranjador e produtor musical. Luis Vagner Dutra Lopes, o “Guitarreiro”, o “Doutor Swing, começou sua carreira musical aos nove anos de idade tocando bateria na Orquestra Copacabana Serenaders, do maestro Vicente Lopes, seu pai, em Santa Maria. Em 1962, já em Porto Alegre, formou o conjunto “Os The Jatsons”, com repertório de música instrumental. Em 1966, surgiu “Os Brasas”, que foi contratado pela TV Excelsior de São Paulo. Na Paulicéia, seu talento foi reconhecido e logo passou a ser um dos músicos de estúdio mais requisitados da época. Com a extinção de “Os Brasas”,na década de 70, Luis Vagner se tornou produtor, arranjador e compositor da RCA Victor.

Cantando prá subir - 159

160 -NEGRO em Preto e Branco Acervo Luis Vagner

The Jetson’s com Luis Vagner no centro da foto Acervo Gelson Oliveira

No início da década de 70, lançou o compacto simples “Moro no Fim da Rua” (Continental). Seu primeiro LP sairia em 1974, “Luis Vagner Lopes Simples”. Seguiram-se “Guitarreiro” (1976), “Fusão das Raças” (1978), “Pelo Amor do Povo Novo” (1980). Em 1985, apresenta o seu primeiro disco totalmente reggae, “O Som da Negadinha”. Em 1987, converteu-se ao Budismo Nitiren Daishonin. Nesta fase, produziu dois discos independentes: “Cilada” e “Vai Dizer que não me Viu”. Integrou a primeira formação da Banda do Zé Pretinho, de Jorge Ben Jor, em 1981. Ben Jor o homenagearia com a música “Luís Vagner Guitarreiro”. Seus mais recentes trabalhos foram lançados em 2002: o CD “Swingante”, uma coletânea de seus maiores sucessos, e o “Brasil Afro-Sulrealista” (Paradoxx), que como diz Luis Vagner, “(...) tem resgate, tem o agora e tem o futuro, compreensão e aceitação da maravilhosa confluência oculta da nova mestiçagem(...)”

1980 - Gelson Oliveira em show no Salão de Atos da Reitoria da UFRGS

GELSON OLIVEIRA No início dos anos 70, Gelson Oliveira era um tímido observador da cena musical de Porto Alegre. Nesta época, ele morava em Gramado, onde trabalhava como artesão e, nos finais de semana, como músico de baile. Na Rádio Continental, ouvia Giba-Giba, Nelson Coelho de Castro, Jerônimo Jardim, Fernando Ribeiro, Hermes Aquino, Carlinhos Hartlieb, músicos que, direta ou indiretamente, o incentivaram a vir morar na Capital para aprimorar-se como compositor. “Era uma época de muitas mostras e apresentações. Em todos os bares havia artistas tocando. Ocupávamos todos os espaços, inclusive os DCEs (Diretórios Centrais de Estudantes) das universidades “, relembra. Foi em uma destas mostras universitárias que conheceu, em 1978, o cantor Nei Lisboa, que também iniciava sua carreira. Juntos, estrearam, em 1979, “Lado a Lado”, seu primeiro show em teatro, no Clube de Cultura. Um grande sucesso. “Foi meu primeiro show profissional e com ele inaugurei minha carreira”, comenta. Logo depois, conheceu o maestro Paulo Moura, que lhe fez o convite para estudar Música na Escola Villa-Lobos, onde permaneceu por dois

anos. Quando retornou, gravou seu primeiro disco, “Terra”, em dezembro de 1983, em parceria com o baterista Luiz Everling. “O disco tocava direto na Rádio Band FM. Os shows lotavam. Era popular e sofisticado; tinha jazz, samba e sotaque gaúcho”. Em 1993, lançou “Imagens das Pedras”, com participação de Gilberto Gil e Paulo Moura, disco com o qual ganhou o Prêmio Sharp de Artista Revelação em MPB. Depois viriam “Tempo ao Tempo (1977) e “Júlio Rizzo & Gelson Oliveira” (1999). Músico consagrado, apresentou-se pela Europa e é hoje uma referência como cantor, compositor, arranjador e diretor musical.

LUCIA HELENA Sua vocação para o canto se manifestou ainda nos pátios escolares, onde cantava para as colegas. O início da sua profissionalização se deu em 1970, aos 15 anos, quando participou de um festival de música, em Bento Gonçalves. Lá, conheceu Luiz Coronel, Marco Aurélio Vasconcelos, Jerônimo Jardim, Ivaldo Roque e Mauro

Marques, artistas que viriam a despertar seu interesse pela música do Rio Grande do Sul. Nessa época, fazia aulas de canto. Aos 16 anos, participou da coletânea “Porto do Sul”. Para satisfazer a família, que a queria médica ou advogada, Lúcia Helena chegou a cursar Direito, mas, aos 20 anos, abandonou o curso para se dedicar exclusivamente à música. Foi cantar no “Emboscada”, entre as ruas João Alfredo e Venâncio Aires. Eram os “anos de chumbo” e cantar certas canções era perigoso. O local começou a chamar a atenção pela proposta musical. O samba-canção e o estilo dor-decotovelo, que imperavam nas casas noturnas, deram lugar à modernidade, representada pelas letras engajadas de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque de Holanda, alternados com canções em francês, italiano e inglês. Lúcia Helena teve destacada participação em inúmeros festivais. Na Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, em 1972, defendeu um dos clássicos do cancioneiro gaúcho: “Gaudêncio 7 Luas”, de Marco Aurélio Vasconcelos e Luiz Coronel. Participou também da 3ª Califórnia, com Jerônimo Jardim e o grupo Pentagrama. Na década de 1980, lançou seu primeiro LP “Lúcia Helena”, pela gravadora Velas. Nos anos 1990, foi morar no Rio, onde permaneceu por cinco anos atuando no meio musical. Em 2001, lançou seu primeiro CD, “Foi a Noite” (Velas). Recebeu vários prêmios ao longo de sua carreira, entre eles o Açorianos de Música em 1996 e em 2001.

BEDEU “... um coração percussivamente sofrido, apaixonado, vagabundo e sonhador...” Uma frase sonora e poética pinçada da apresentação escrita por Bedeu para o disco “África no Fundo do Quintal” (1983). Bedeu nasceu Jorge Moacir da Silva em 04 de dezembro de 1946. O apelido foi dado pelo avô e ninguém nunca soube de onde ele o tirou. O certo que o menino chamado Bedeu ficou Bedeu pelo resto da vida e assim foi conhecido no mundo musical gaúcho e pelo País. A ligação com a música começou cedo. Aos seis anos já brincava com um pandeiro com devido ritmo e sonoridade. Aos 12 anos já dominava

Acervo Lucia Helena

1973 - Lucia Helena na Califórnia da Canção. À direita, Ivaldo Roque Neguinho da Beija Flor, Bebeto e conjuntos como os Originais do Samba. Suas atuações como compositor e percursionista se dividam entre Porto Alegre e São Paulo e foi assim por um longo tempo. O carnaval foi também uma paixão dividida entre os Acadêmicos da Orgia, Imperadores do Samba, Garotos da Orgia e Areal da Baronesa. Ao morrer, em 1999, deixou uma extensa obra musical e uma discografia que precisa sempre ser constantemente ouvida para se entender porque Bedeu foi predestinado.

com talento uma bateria e curtia Jackson do Pandeiro. Em 1965 abandona os estudos e passa a viver da música tocando nos bares e bailes acompanhado dos parceiros Luís Vagner e Franco, integrantes de “Os Brasas”. Com eles, voa para São Paulo disposto a ser famoso. O êxito nacional estoura, no início da década de 70, com “Menina Carolina”, uma composição dividida com Leleco Teles, gravada por Franco num compacto cuja venda atinge 100 mil cópias e lidera as paradas de sucesso de todas as rádios. A genialidade de Bedeu está no novo ritmo que impõe na linha do samba rock, batida alegre e leve e muito suingue. Desperta a atenção de Jorge Benjor, Jair Rodrigues e Moacir Franco, que pedem exclusividade das suas composições, mais tarde também gravadas por

IVALDO ROQUE O catarinense Ivaldo Roque veio para Porto Alegre em 1957. Tinha 18 anos e buscava uma nova vida longe de Laguna. Na bagagem, o violão e o cavaquinho, companheiros inseparáveis das muitas noitadas de samba e chorinho em sua cidade natal. Em Porto Alegre, a constatação de que a sobrevivência não viria apenas com os embalos musicais. Faz um curso de linotipista e vai trabalhar na montagem do jornal Correio do Povo. No início da década de 60, Ivaldo Roque busca o aperfeiçoamento musical freqüentando aulas de violão clássico. Redescobre a música. Faz parceria com Zé Gomes e Vladimir Latuada e o sucesso acontece. O meio universitário é o universo de inúmeras de suas apresentações. O

Cantando prá subir - 161

162 -NEGRO em Preto e Branco Acervo Loma B. Gomes Pereira Som do Sul/ H.Man

Ivaldo Roque marco de sua carreira artística, no entanto, tem como referencial o show “Rio Grande do Som”, num encontro marcado com Luís Coronel, Jerônimo Jardim e Mutinho. Logo depois, intensifica uma aliança criativa com o compositor Jerônimo Jardim e dá um salto de qualidade na sua carreira musical. A Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana e as Cirandas de Taquara são cenários, onde suas canções ganham projeção. . Em 07 de abril de 1986, Ivaldo Roque morre, deixando para todos um inventário musical que o tempo não apaga.

LOMA Loma descobriu-se cantora nos terreiros de umbanda e foi aprimorar sua arte, a partir dos 12 anos, no coral da escola. Aos 14 anos já trabalhava na produção do programa Vovô Bicudinho, na TV Gaúcha. Também atuou na TV Piratini, onde participava do programa de Antônio Gabriel nas manhãs de domingo.No início de sua carreira, na década de 70, atuou na publicidade e sua voz embalou vários jingles de sucesso. Em um destes trabalho, conheceu Jerônimo Jardim, que a convidou p a r a i n t e g r a r, c o m o v o c a l i s t a , o Pentagrama, em 1973. O grupo foi um dos principais responsáveis pelo movimento renovador da música produzida no Rio Grande do Sul e que projetou nacionalmente vários compositores e intérpretes radicados em Porto Alegre. “Fazíamos um trabalho de fusão da expressão campeira com a linguagem

Loma no 60 Festival Terra & Cor de Pedro Osório, no final dos anos 70 urbana”, resume. Em poucos anos de carreira, firmou-se a ponto de ser apontada pela imprensa gaúcha como a melhor cantora em três anos consecutivos: 1978, 1979 e 1980. No início da década de 80, já em carreira solo, parte para o Rio de Janeiro. Lá, apresenta-se ao lado de artistas renomados como Amelinha e Zé Ramalho, e participa de gravações de discos de Alceu Valença, Elza Soares, Cristina Buarque, Gilberto Gil, Monarco e a Velha Guarda da Portela. Em 1983, lança seu primeiro disco, “Loma”, considerado pela crítica como o melhor LP do ano. A partir de 1985, volta a fixar-se no Rio Grande do Sul. Lança um novo trabalho, “Toda Mulher”, e ao fim de 1989 é eleita pela crítica especializada e por representantes de entidades de produção musical e de produção cultural “a Melhor Cantora da Década”. Em 1992, lança seu terceiro disco, “Um Mate por Ti”, e é indicada ao prêmio Sharp na categoria Cantora Regional. Já por essa época acumulava aproximadamente 30 troféus de Melhor Intérprete, conquistados em festivais de Música realizados no Estado. Em 1999, lançou “Além-Fronteiras”, que lhe conferiu o Prêmio Açorianos de Melhor Intérprete e Melhor CD da categoria MPB. Neste trabalho, sua versatilidade e força interpretativa se manifestam na forma de sambas, salsas, maçambiques, maracatus, maxixes, carimbós e músicas do cancioneiro gaúcho. A partir da década de 80, Loma passa a divulgar a cultura afro-litorânea, representada pelas composições de Carlos Catuípe e Ivo Ladislau, com o objetivo de divulgar o maçambique,

ritmo genuinamente africano e que mantém suas características originais. Hoje, integra o Grupo “Cantadores do Litoral”, ao lado de renomados e talentosos músicos e compositores nativos do litoral gaúcho.

Capa do LP: O samba e suas Origens do conjunto Pau Brasil nos anos 70

Acervo M.Helena Montier

Acervo Julio Ferreira

Propaganda do Jazz Cruzeiro em 1940

Conjunto Satirisamba com a cantora Maria Helena Montier em 1975

Acervo Maria Guedes

Acervo Sociedade Floresta Aurora

Conjunto Comodores nos anos 70

Acervo Sociedade Floresta Aurora

Conjunto atração de uma festa na sede da Sociedade Floresta Aurora nos anos 70

Conjunto musical nos anos 20

Cantando prá subir - 163

164 -NEGRO em Preto e Branco

Fotos do acervo de Maria Helena Andrade

MARIA HELENA ANDRADE, A ETERNA RAINHA DO RÁDIO Orgulhosa, ela abriu a caixa do tempo. E dali guardadas, com presente carinho, saíram todas as glórias do passado: a faixa bordada, a coroa de ouro e pedras semipreciosas, as fotos de uma época e os recortes de jornais. São tesouros que atestam uma de suas maiores conquistas: o título de Rainha do Rádio de 1957. Aliás a eterna, porque depois de Maria Helena Andrade, ninguém mais ... “é um título que guardo com muita honra, afinal eu fui a mais jovem rainha do rádio do Brasil, tinha apenas 15 anos”. A fase de ouro do rádio gaúcho foi marcada pelos programas de auditório lotado, ao meio-dia na Rádio Farroupilha - “Rádio Seqüência”- e nas tardes de sábado, os concursos de calouros do Clube do Guri. Foi neste cenário que Maria Helena brilhou. No centro do País - Rio e São Paulo – o público suspirava ao ouvir as divas do cancioneiro nacional: Ângela Maria, Nora Nei, Elisete Cardoso, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba . Um seleto grupo de musas inspiradoras de Maria Helena Andrade. Nascida em Rio Grande sob o signo da música e embalada pelo som dos discos de 78 rotações, aos nove anos já soltava a voz, cantando nos programas das rádios Cultura Riograndina e Minuano. A cidade natal logo ficou pequena para o grande talento que emergia. Aos 14 anos, acompanhada da mãe Enedina, Maria Helena veio para Porto Alegre. As indicações a levaram à Rádio Farroupilha. Lá foi ouvida por Nelson Silva, cantor, ator e autor do Hino do Inter. No teste, Maria Helena cantou “Ave Maria do Morro”, um sucesso da consagrada

Maria Helena no programa Rádio Seqüência Dalva de Oliveira. A aprovação foi imediata. Ao ouví-la, Nelson ficou encantado, não resistiu e passou a chamar outros músicos para apreciála. Com a aprovação de todos, o primeiro contrato foi a s s i n a d o e Maria Helena passou a ser a sensação musical da Cidade. As apresentações no Cine Castelo e nos programas de auditório da Rádio Farroupilha deram-lhe, também, o apelido de Sapoti do Sul. “Eu era fã de Ângela Maria - que tinha o apelido de Sapoti - e cantava a muitos dos seus sucessos , principalmente Orgulho, uma música lindíssima. Eu não imitava a Ângela, mas meu timbre de voz era muito semelhante”. A carreira de Maria Helena se expandiu por um período de cinco anos. “Foram momentos especiais. O Cinema Castelo era o termômetro do sucesso, assim como te elevava, o público te derrubava. Felizmente eu me saí bem”. A crítica da época a e l e v a v a . Em seis meses, Maria Helena assinalou um recorde de sucesso e prestígio no r á d i o . F o i contratada pela Rádio Farroupilha e pela gravadora Mocambo, onde gravou um disco de 78 rotações. Escolhida candidata a Rainha do Rádio foi apontada como a maior revelação do rádio sulino.Aos 19 anos, o casamento e a opção de parar em 1961. “ Parei porque quis, ninguém me pressionou”.

A carreira foi interrompida, mas o canto não. A voz, que encantava a multidão dos auditórios, passou a e m o c i o n a r uma outra platéia. As cerimônias de casamento, os jantares de casais, as festas de aniversário e eventos especiais em clubes da Cidade servem, ainda hoje, de palco para a arte de Maria Helena Andrade. A música romântica tem sido pauta no repertório que aquece os corações apaixonados. “Sou uma romântica incorrigível ”, afirma Maria Helena, enquanto rememora momentos do passado através das muitas fotos e recortes de jornais de um tempo em que uma menina simples e elegante subiu ao estrelato do rádio gaúcho.

1958 - apresentação ao vivo no Grande Show Wallig, da TV Piratini

Acervo Zilah Machado

Apresentação ao vivo na televisão nos anos 50

Z ILAH M ACHADO Em sua modesta casa, na Rua São Francisco, no bairro Partenon, Zilah Machado faz planos para o seu próximo disco, o quarto de sua carreira. Sua intenção é realizar um trabalho que evoque suas raízes, as lembranças familiares, os cantos primitivos legados de mãe para filha, geração após geração, e que ela, ainda hoje, entoa durante as obrigações religiosas. Não será, contudo, passadista. Zilah está sempre sintonizada com seu tempo. Afinal, poucas carreiras têm tamanha longevidade. A veia poética, revelada na maturidade, se manifesta nas canções que compõe cotidianamente, e que, a despeito de revelar a influência do mestre Lupicínio, seu padrinho musical, identificam um estilo muito particular. Além de compositora e intérprete, Zilah também produz quadros de motivos afro, elaborados com desvelo. Zilah não têm a preocupação de exibí-los ao público. São, antes, mais uma manifestação da vocação sensível da artista. Outro talento da cantora está nos tambores que confecciona. Zilah ocupa-se de tudo: da escolha das peças ao acabamento, com pintura caprichada, em que predominam cores fortes e contrastantes e desenhos de motivo tribal. Mais um capricho para o seu próprio deleite. Zilah toca os tambores para evocar os santos e, também , sempre que compõe. . O crítico Carlos Callado, ao ouvir seu último disco, “Passageira da Nave

dos Sonhos”, lançado em 2000 pela Prefeitura de Porto Alegre, referiu-se a ela como “pérola escondida no Sul do Brasil”. A convite dele, presentouse, em janeiro de 2004, no SescPompéia, em São Paulo, no projeto “Sotaques do Samba”, ao lado de 14 expressões nacionais do gênero. Zilah Machado nasceu em 13 de abril de 1928 e foi criada na Ilhota, em Porto Alegre. Sua mãe, que era lavadeira, morava ao lado da casa de Lupicínio Rodrigues, que muitas vezes a pegou no colo. “Essa menina vai ser cantora porque já chora afinado”, vaticinou ele, contrariando o desejo da mãe, que queria que sua única filha fosse professora. Aos três anos de idade, Lupi lhe ensinou a “Marcha do Jacaré”, uma marchinha de Carnaval. Estudou no Colégio Paula Soares, onde participou do coro orfeônico. Como gostasse muito de samba e seresta, sua mãe tentou dar outro rumo à vocação da filha, colocando-a para estudar canto lírico com o maestro Roberto Eggers, com quem permaneceu durante onze anos. Em 1962, abandona definitivamente o canto lírico e embarca para a Argentina para uma temporada de três meses com a orquestra do Maestro Délcio Vieira. É o início de uma carreira internacional, que a levaria até o México. De volta a Porto Alegre, passa a cantar na Rádio Gaúcha, quando vence um concurso para substituir

Elis Regina. Apresenta-se no Clube dos Cozinheiros, casa de shows de Lupicinio e Rubens Santos e em programas de auditório. Em 1971, Zilah vai tentar a sorte no Rio de Janeiro, cantando em casas noturnas e programas de rádio e TV. Lá permanece até 1982. Reveza-se entre o trabalho como diarista e as gravações para a Odeon e CBS, como integrante de coro. Em 1980, lança seu Já se Dança Samba primeiro LP,, ““Já como Antigamente” (CBS). No Rio, cantou ao lado de Cauby Peixoto, participando também de musicais de Sargentelli, no Hotel Nacional, e na Rádio Globo. Atuou como atriz de teatro, cinema e rádio. Participou dos filmes “Quem Matou Pacífico?”, “As Manicures” e “Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia”. No teatro, atuou nas peças “A Volta do Araraí” e “Sem tua Presença” e i n t e g r o u o e l e n c o d a n o v e l a “A Cabana do Pai Tomaz”, exibida no Canal 5, em Porto Alegre. Em 1988, já em sua terra natal, lança seu segundo LP, “Lupiciniana” (CBS) e é homenageada pela Prefeitura Municipal com a Medalha Cidade de Porto Alegre.

Silva Abreu

Zilah Machado com seus tambores

Cantando prá subir - 165

166 - NEGRO em Preto e Branco

ARTE

Renato Rosa

EM

PRETO E BRANCO?

A jornalista Silvia Abreu me comunica, via e-mail, em função do presente volume que “No capítulo sobre arte, incluímos pequenas biografias e fotos de trabalhos de Wilson Tibério, Magliani, Djalma do Alegrete, Paulinho Chimendes e Pedro Homero. Então, acredito que está tudo resolvido. De certa forma esta é quase a real ordem de entrada em cena. Wilson Tibério efetivamente precede Magliani (Maria Lídia dos Santos Magliani) mas o mesmo não ocorre em relação a Djalma do Alegrete (Djalma Cunha Santos). Mais jovem, Magliani situa-se entre os dois, mas entre esses pintores e ela, interpõem-se o nome de J. Altair (João Altair Barros), autodidata, que começou a pintar em 1950. Wilson Tibério, nascido em 1923, é o mais velho dos artistas citados, saiu do Brasil em 1943 e sua trajetória é inteiramente desconhecida no País. Uma clara desatenção das pessoas que lidam com a questão da memória no Brasil, sinalizei esse fato, em co-autoria c o m D e c i o P r e s s e r, e m n o s s o d i c i o n á r i o d e a r t e s plásticas, um verbete redigido em 1996. Até hoje a situação de Tibério permanece a mesma: um verbete aparentemente imutável porque esconde a desatenção citada. Pode-se fazer múltiplas leituras desse fato. No início de sua carreira, em Porto Alegre, nos anos 50, Djalma Santos agregou o nome da terra de nascimento a seu prenome, para diferenciar-se do grande esportista campeão do mundo da seleção de 1958, seu homônimo Djalma Santos. Ele representou, até as últimas conseqüências, e de modo exacerbado, a tragédia do artista/negro/ brasileiro/marginal/homossexual, usou e abusou e pirou em sua liberdade individual sem poupar-se, sem medir esforços. Imolou-se em vida, tornou-se um herói de si mesmo. Morreu pobre, desamparado, vitimado pelo mal do final do século passado: Aids. Uma pena. Mesmo assim, para que não se acuse o mercado de arte, o artista recebia apoio da galeria Edelweiss, espaço tradicional de Porto Alegre, dirigido pela marchand Anne Lore Kley. Sou testemunha do que afirmo. Djalma tentou a sorte no Rio de Janeiro, onde conseguiu desenvolver um trabalho pioneiro junto ao que hoje se convencionou chamar de comunidade de base, favelados, que – ironicamente – não moram na base mas nos píncaros dos morros da cidade, donos das vistas mais belas – essa posse talvez seja um dos motivos de tensão entre os donos da terra na base. Como sabemos, todo preconceito é perverso e um de seus lados mais manifesto brota na diferenciação econômica. Paulo Chimendes representa a opção da permanência. Talentoso, ainda é um jovem artista, não recebeu o reconhecimento do público (por enquanto, forçosamente terá sua hora e vez) mas seus pares e alunos o tratam com muita cortesia e veneração. Justo e merecido. Magliani e Paulo Chimendes percorrem o caminho tortuoso da

expressão artística conhecida como erudita, por ser um trabalho com um matiz mais intelectualizado e sofisticado, apesar da alta carga de dramaticidade que o trabalho dela encerra. Djalma e J. Altair - este talvez por ser um artista naïf e também pai de santo - aventuraram-se em suas raízes afro-descendentes, utilizando os deuses africanos como referência em muitas passagens de suas obras. Outros artistas que enveredaram por esse caminho foram Jaci Santos na escultura em pedra e madeira e Afro Marco (Marco Antônio Lopes), este influenciado pelo entalhador pernambucano Maurício Pacheco, um dos poucos casos de artista negro, vindo de outra região, que se instalou em Porto Alegre nos anos 70. Afro Marco dedica-se ao entalhe em praça pública, no Brique da Redenção e Jaci Santos teve uma morte estúpida após longo encarceramento em sítios prisionais. Começou garoto, guiado pelas mãos dos professores do Atelier Livre e ainda adolescente, chegou a inaugurar, com exposição individual, a sala de exposições da sede provisória na rua Lobo da Costa. De Pedro Homero, artista de extração mais recente, nada posso acrescentar porque desconhecia sua atuação até o presente momento, uso palavras da jornalista Silvia Abreu: “...posso dizer que, a n t e s d e s e r p i n t o r, e l e e r a m ú s i c o . C o n s i d e r a d o primitivista, desenvolve seus trabalhos tendo como base a religiosidade de matriz africana. “Minha arte é o meu referencial e a forma de eu viver o mundo negro em todos os sentidos”, afirma ele. Seus trabalhos têm percorrido o mundo. Sua última série sobre os orixás chegou até à Bélgica, na forma de cartões postais. Ele foi citado na revista norte-americana “Callaloo”, editada por Steven White, e recebeu, em 2001, elogios do artista plástico francês Jean Durin.” Dispo m o s t a m b é m d e u m a r t i s t a , c o m b r e v e s participações em Porto Alegre, nos anos 80, hoje é uma referência da arte em Portugal, chama-se Renato Rodyner e sua formação ocorreu no Atelier Livre da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. E agora um momento Caras: encontrei Renato em Paris, num vernissage (atenção, esta palavra não leva eme ao final!!) em 2001, na Galerie Debret. Alguns meses depois, recebo de Lisboa, a Caras/Portugal, em cuja edição loiríssima star Vera Fisher ganhara quatro páginas e ele, sete. Nessa proporção. Um vitorioso. Outro artista que atua em Porto Alegre desde os anos 70/80 chama-se Carlos Alberto Oliveira, pintor. Uma verdadeira revelação. A primeira pessoa a defender seu talento foi o renomado artista plástico Danúbio Gonçalves, uma autoridade, cuja opinião é indiscutível. Carlos Alberto participou de diversas e importantes exposições coletivas e destacou-se numa das edições

do Salão do Jovem Artista da RBS e a seu favor contase uma curiosidade, é o único que faz uma abordagem social mais direta, retrata operariado calçadista e impôsse num meio claramente germânico: Novo Hamburgo. Seu trabalho apresenta características de um pintor primitivo mas não é, considerando a elaboração e tratamento dispensados a seus temas. A pessoa, sim, um homem simples, do povo. Destacam-se ainda Sérgio Vergara e Luiz Armando Vaz, fotógrafos, Grace Patterson com seus retratos em pastel seco e pinturas em acrílica e o escultor Nilton Maia com suas mulheres brihantemente modeladas em terracota.Ocupandose com a impressão serigrafica e litografica, tornam-se fortes presenças os impressores Donato e Nelcindo da Rosa, este no Atelier Livre da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Outro valor da escultura em madeira chama-se Gutê (Carlos Augusto da Silva) artista que viveu um longo período na capital paulista. Creio que esse panorama se completa com a citação de Miguel Barros(O Mulato) artista pelotense que, na década de 40, foi aluno do genial João Fahrion em Porto Alegre e que granjeou projeção fora do RS. Por fim, dizer mais de artistas negros em Porto Alegre, de modo assim tão localizado é bastante delicado, primeiro porque nenhum usa, como vejo aqui no Rio, camisetas estampando “100% negro”, um meio válido de assumir-se já que, na outra ponta, contamos de modo folclórico com Ronaldinho, o fenômeno, que afirmou não ser negro, um engano de identidade que – a meu ver – “mancha” uma biografia numa seara onde Pelé é considerado “o orgulho da raça”. Da raça humana espero. Negro é quem declara ser. Mas isso, aparentemente é outra questão, mas não é.

homem para contar sua história. É um modo de contar (marcar) sua presença na vida, sua individualidade, sua afirmação como pessoa e isso importa muito. É o começo da liberdade entre os iguais. Depois disso é que seremos um quando o outro nos considera. Então, ressalvando a dita etnia - pegando por esse viés político, de todos, a pintora Magliani é, sem dúvida, o artista mais destacado do Rio Grande do Sul. Sua foto encontra-se em exibição permanente no Museu do Negro, situado no Parque do Ibirapuera, São Paulo. Visitamos juntos esse museu em dezembro de 2004, uma criação e antigo sonho do genial artista brasileiro Emanoel Araújo, um defensor da afirmação do negro brasileiro. Magliani consta numa espécie de Pantheon ao lado de Ruth de Souza, Milton Gonçalves, Pixinguinha, Pelé, Leá Garcia e outras personalidades nacionais. Esse destaque foi pago com seu próprio sangue, sua necessária luta, sua solidão, um talento enraizado e entranhado, inabalável, porque apesar de todas as dificuldades que tenha enfrentado – e segue enfrentando – sem fazer concessões, soube colocar-se acima de todas as bandeiras. Sua obra é apreciada em estados brasileiros como São Paulo, Minas, Bahia e Rio de Janeiro. Sua obra tem significado no difícil mercado de arte nacional, isso é raro, e mais ainda, é quase “impensável”, mesmo agora nessa entrada de século, quando o mundo teima em manterse, por exemplo, ainda “masculino”, sem contar outros preconceitos. Ou seja: a luta continua.

Rio de Janeiro, 29 de junho de 2005

E antes que esqueça não posso me furtar a responder a minha própria pergunta: Arte em P&B? Nem em p&b – que para mim é fotografia – nem nada, mas sim, arte como toda forma de expressão feita pelo

Irene Santos

Renato Rosa Marchand e pesquisador. Autodidata. Desde os anos 60 publicou perfis de artistas plásticos gaúchos nos jornais Zero Hora, O Exemplar, Jornal da Semana, Revista Imagem News e Jornal do Brasil. Co-autor do “Dicionário de Artes Plásticas no Rio Grande do Sul”, 1 ª edição, 1997, 2 ª edição, 2000, Editora da Universidade, UFRGS - Prêmio Açorianos de Literatura 1998 – Categoria Especial.

Arte em Preto e Branco? - 167

168 - NEGRO em Preto e Branco

Litografia de Paulo Chimendes

Desenho de Maria Lídia Magliani feito para matéria publicada na revista Tição em 1 977

Arte em Preto e Branco? - 169

170 - NEGRO em Preto e Branco

Auto-retrato Wilson Tibério: 1916 [Porto Alegre] ~ 2005 [França] Escultura de Wilson Tibério

Acervo Dirney A Ribeiro

Acervo Dirney A Ribeiro

Djalma do Alegrete nos anos 60, em atividade com alunos da Funabem Figurino criado por Djalma para uma escola de samba de Pelotas/RS, em 1972

Pedro Homero: a arte regida pelos Orixás Texto de Oliveira Silveira O artista Pedro Homero [ 26/03/1936 ~ 01/8/2005 ] era natural de Porto Alegre, onde viveu 69 anos, 40 dos quais na companhia dedicada de Ivete, sua esposa. Muito conhecido enquanto músico, era também artista plástico. Na atividade musical teve larga atuação na noite e participou ativamente do carnaval, sendo por muito tempo jurado no quesito harmonia. Como compositor, criou sambas e também músicas enquadradas em outros gêneros ou formas afro, além de composições na linha regionalista que o levaram inclusive aos palcos de festivais como a Califórnia da Canção Nativa, em Uruguaiana, ou a Gauderiada, de Rosário do Sul, tendo Adair Antunes, o Lalau, como um dos principais parceiros. Não se dizia cantor, mas fazia a interpretação vocal quando necessário. Instrumentista de cordas, executava violão, violão tenor, cavaquinho e banjo, mas sua versatilidade incluía a flauta transversal e o manejo talentoso da marimba, um xilofone. Como artista plástico, produziu bastante em pintura e artesanato. Deixou o álbum Orixás, com 12 trabalhos, editado pela Secretaria Municipal da Cultura e com uma terceira edição no livro O povo negro no sul, da Associação Riograndense de Imprensa e Sociedade Floresta Aurora. Houve quem pensasse que os trabalhos de Pedro Homero fossem ilustrações aos poemas que os acompanham no livreto. Na verdade, quatro poemas tinham vida independente e já haviam sido publicados: No caminho da casa-de-nação (Bará), No mapa (Ogum), Batuque (Xangô) e Oferenda (Oxalá). Os oito restantes foram criados especialmente para o álbum, motivados pela obra do artista e como homenagem à força e à riqueza das vertentes religiosas e culturais jeje e iorubá. Portanto, os poemas, na sua maioria, é que ilustram os trabalhos de Pedro Homero. Cinco de suas telas foram editadas em cartão postal na França em 2003, fotografadas com maestria em Porto Alegre pela belga Christine Leidgens. Esse fato o deixou muito contente e foi sentido por ele como um justo reconhecimento ao seu talento.

Oxalá, Mensageiro da Paz - pintura de Pedro Homero A obra deste negro gaúcho valoriza muito os temas alusivos à religião de matriz africana de que era praticante com reiterada paixão. Numa conversa com ele, informal ou mesmo de trabalho, era comum, fácil e inevitável o assunto resvalar maciamente para orixás, batuque ou casa-de-nação, bacias, povo de santo. Pedro Homero era um cativante contador de histórias vivenciadas em Porto Alegre e dava gosto silenciar para ouvir esses relatos. Compreendendo a importância do coletivo e do intercâmbio com outros criadores, integrou o grupo Frente Negra de Arte.

Irene Santos

Frente Negra de Arte: Silvia Viitória, Pelópedas Thebano, Pedro Homero, Tania Maria Borba, Américo Souza

Arte em Preto e Branco? - 171

COM OS PÉS NA COZINHA Jorge Nascimento Acervo Luis Flávio Nascimento

Festa de aniversário

Existe uma relação muito íntima entre os negros e a arte de fazer comida . Foi através do ato de transformar ingredientes em refeições completas, que muitos hábitos alimentares, bastante singulares, foram transmitidos para famílias inteiras. A cultura vinda da África foi fundamental para a criação, evolução, transformação e conceito da atual gastronomia brasileira. Foi com cuidado e com carinho que as mãos negras pilotavam fogões de fumegantes panelas, soltando seus aromas e perfumes e conquistando estômagos sedentos de momentos prazeirosos . O olhar das cozinheiras e a habilidade de suas mãos negras criaram delícias como o ponto da gema dos ovos, os molhos mais ou menos picantes, as crostas de carnes mais ou

Acervo M. Noelci Homero

Acervo Julio J. Nunes

Acervo M. Noelci Homero

Mesa de doces em festa de aniversário

menos crocantes, leites com chocolates contendo misturas secretas e pessoais que encantaram e ainda continuam encantando cada comensal.

Cortando o bolo dos 15 anos

As mãos negras, ao longo destes últimos 500 anos, aprenderam, copiaram e puderam, através da comida, perpetuar os hábitos alimentares das variadas etnias e culturas que formaram o mosaico brasileiro. São estas mãos negras responsáveis pela evolução e estilo da cozinha brasileira. Quando estas mãos negras mexiam as panelas com olhos atentos aos gostos dos comensais de suas mesas, colocavam pitadas e mais pitadas de muito amor, carinho, respeito. Ofertando as iguarias mais esperadas, tanto no frugal almoço quanto no jantar mais elaborado, são mãos negras que nos bastidores das cozinhas nos fazem até hoje lembrar fases de nossa história e constróem a real gastronomia brasileira.

Irene Santos

Jorge Alberto da Silva Nascimento Chef Jorge Nascimento tem reconhecida atuação no cenário nacional. Autor do livro “OCASIÕES - Receitas práticas e dicas de culinária para todas as situações”. Professor do Curso Superior de Gastronomia da Unisinos/RS, e do Curso de Hotelaria da PUC/RS. Membro da Abaga (Associação Brasileira da Alta Gastronomia).

Com os pés na Cozinha - 173

174 - NEGRO em Preto e Branco

CARDÁPIO AFRO-GAÚCHO ou comida de santo na mesa de todo dia Entradas pipoca................................................................ Bará e Xapanã amendoim .....................................................................Xapanã acarajé............................................................................... Iansã

Refeições sopa de legumes com carne de galinha ....................... Ibêji peixe assado ......................................................................Bará peixe ensopado com pirão.............................................. Bará camarão frito ....................................................................Xangô churrasco de costela acompanhado com farofa de mandioca bem soltinha misturada com azeite de dendê ........... Ogum galinha assada ............................................... todos os Orixás carne de ovelha assada no forno ..............................Yemanjá carne de carneiro assada no forno ...............................Xangô carne de porco assada no forno, com farinha de mandioca temperada.................................................................Odé e Odi milho verde, cozido na água e sal ......Ogum e Nanã Boruku caranguejo ou siri ......................................................Yemanjá lingüiça com farofa .......................................................Ossâim

Sobremesas canjica ...............................................................Oxum e Yemanjá quindim ..............................................................................Oxum pé-de-moleque ...............................................................Xapanã pudim de leite ....................................................... Oxum e Ibêji merengue grande ...........................................Oxalá e Yemanjá laranja doce ou fruta .............................................................Obá bananas ..............................................................................Ogum cerejas ...................................................................................Oyá bolos de farinha de trigo sem recheios ...........Xangô e Xapanã doce de leite ..........................................................Oxum e Ibêji doce de côco cozido com a casca .................Yemanjá e Oxalá sagú com suco de uva .....................................................Oxum salada de frutas .............................................bebida de Ogum abacaxi...................................................................................Obá

Bebidas cerveja ...............................................................................Ogum champanha .........................................................................Iansã vinhos ...............................................................................Xapanã

Fonte: Érico do Ogum A grafia dos nomes dos Orixás está de acordo com o Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros de Olga Gudolle Cacciatore

Com os pés na Cozinha - 175

NEGRO

DE

ALMA PRETA

Maria Conceiçao Lopes Fontoura

Dizem que uma mentira repetida infinitas vezes pode transformar-se em uma verdade. As mentiras racistas tentam assumir esta dimensão. Repetidas de forma não crítica engrossam o cotidiano de discriminações negativas. Ter alma branca é uma delas. Quantas pessoas dizem, com orgulho infantil, possuir alma branca. Isto me faz recordar uma história do meu livro de religião, quando estava no quinto ano primário. O texto falava de dois meninos. Um era negro como uma noite sem lua, de nome Xingu. Estudioso, obediente, não dizia palavrões e nem jogava pedras. Como prêmio, dizia o livro, tinha a alma branca. O outro menino era o Paulinho. Tinha a pele branca como um papel, entretanto possuía a alma preta. A cor de sua alma se relacionava ao fato de ser mau estudante, fazer mil estrepolias e jogar pedras. O ensinamento da história reforçava a importância de se ter a alma branca. Por que não podemos ser negros de alma preta, sem que isto signifique estar aliado com o mal ? Há quem não ligue para o conjunto de expressões e frases que dão à cor preta um significado negativo. Existe, sim, intencionalidade, ao se atribuir à cor preta a característica de ser algo ruim. Assim como é possível escolher uma roupa para usar, o mesmo se dá com as palavras. A cor branca é associada a coisas boas. A pomba branca da paz. O contrário ocorre com o preto, como na história de Xingu e Paulinho. É preciso estar atento para o

Acervo Maria Noelci Homero

significado das palavras utilizadas. Através delas, muitas vezes, podemos estar reforçando a discriminação negativa. Existe um longo caminho a ser trilhado para vencer o preconceito, a discriminação racial e o racismo que adoecem a sociedade brasileira. Estes males sociais prejudicam tanto as pessoas discriminadas quanto as discriminadoras. O grupo dos discriminados precisa diariamente reafirmar sua humanidade negada pelos racistas. De outro lado, o plantel dos racistas padece do mal da ignorância, que os fazem negar os direitos humanos das pessoas às quais discriminam negativamente. Analisar a presença negra, através de diferentes desenhos e retratos, é um dos caminhos para desconstruir o racismo, a discriminação racial e o preconceito. Gravuras feitas por Jean-Baptiste Debret e Johan Moritz Rugendas reproduzem figuras de mulheres e de homens negros sempre exercendo uma atividade. As imagens confirmam que as africanas, os africanos e seus descendentes escravizados são os construtores históricos do Brasil. Desempenharam, com exclusividade, todos ofícios durante os quase quatro séculos de escravização. Atividades do campo e da cidade eram feitas por mãos negras. Os desenhos e as gravuras foram substituídos por fotografias. Uma antiga máquina de tirar retrato ou uma moderna câmara fotográfica digital capta diferentes momentos de histórias negras. Resgatam a importância das famílias negras circulares. Núcleo familiar que acolhe parentes de sangue e por afinidades. Todos são bemvindos a este clã. Negro de Alma Preta 177

178 - NEGRO em Preto e Branco

Outros retratos mostram que nossa beleza negra tem cabelo bom, do nosso jeito. Crespo, carapinha, anelado, trançado, mostrando a ligação com as raízes africanas. O nariz é não-afilado. Os lábios são carnudos. As negras são acinturadas e a bunda é saliente. Existe uma diversidade negra que se apresenta e exige respeito. O intelectual negro Hélio Santos afirma, com muita propriedade, que no Brasil se tem a presença negra no sangue ou na cabeça. A forma como o povo brasileiro se comporta tem marcas indeléveis de africanidade.. Em todos setores da cultura brasileira está presente uma parcela de África. Na literatura, escritoras e escritores negros constróem uma estética literária negra. A música e a musicalidade do povo brasileiro estão impregnadas de marcas negras. As religiões de matriz africana e afrobrasileira respeitam, valorizam e dialogam com a natureza. Acervo Osvaldo F. Reis

Milhões de brasileiros professam as religiões de origem africana. Porém o racismo faz com que elas ainda não recebam o respeito merecido. A participação negra está presente de modo indissociável em toda sociedade brasileira. Vai do lúdico ao mundo da ciência.Quando conhecemos a importância e o valor da presença negra no Brasil, temos a certeza de que não precisamos de uma alma branca.

Irene Santos

Existem generosidade, beleza e esplendor em nossa alma preta. Para quem ainda tiver dúvidas, volte ao início do livro. Olhe atentamente nossas fotografias. Elas retratam diferentes momentos da história de vida de mulheres e homens negros, construtores históricos do Brasil, que repartem graciosamente o seu largo continente de Cultura Negra. Só age assim quem tem verdadeiramente a alma preta!

Irene Santos

Maria Conceição Lopes Fontoura

Professora Licenciada em Letras Clássicas e Vernáculas /UFRGS. Mestra em Educação/ UFRGS. Técnica em Assuntos Educacionais/ UFRGS. Diretora Executiva de Maria Mulher --Organização de Mulheres Negras

Negro de Alma Preta - 179

180 - NEGRO em Preto e Branco

FONTES CONSULTADAS ACHUTTI,Luiz Eduardo R. Ensaios (sobre o) Fotográfico . Porto Alegre: Prefeitura Municipal, 1998 BUENO, Eduardo. Brasil: Uma História . 2. ed. São Paulo: Ática,2003 CACCIATORE,Olga Gudolle. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros . 3.ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988 CARNEIRO, Luiz Carlos. P orto Alegre – de Aldeia a Metrópole? Alegre: Marsiaj Oliveira: Officina de História, 1992.

Porto

FARIA, Arthur de. Um Século de Música . Porto Alegre, CEEE, 2001. FLORES, Moacyr (Organizador). Cultura Afro-brasileira. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980. FORTINI, Archimedes. Porto Alegre através dos tempos . Porto Alegre: Divisão de Cultura, 1962 FRANCO,Sérgio da Costa. P orto Alegre: Guia Histórico . Porto Alegre:Ed. da Univesidade/UFRGS, 1988 GERMANO, Iris Graciela. Rio Grande do Sul, Brasil e Etiópia: os negros e o carnaval de Porto Alegre nas décadas de 1930 e 40 . Porto Alegre:Dissertação de Mestrado em História UFRGS/ 1995 MANN, Henrique. Som do Sul – A História da Música do Rio Grande do Sul no século XX . Porto Alegre.TCHÊ, 2002. RUSCHEL, Nilo. Rua da Praia . Porto Alegre:Prefeitura Municipal, 1971 OLIVEIRA, Clóvis Silveira de. A Fundação de Porto Alegre: Dados Oficiais . Porto Alegre: Ed.Norma, 1987 PREFEITURA Municipal. Porto Alegre - Biografia de uma Cidade . Edição comemorativa do Bicentenário da Cidade, 1940

orto Alegre . Ed.Sulina, 1967 SPALDING, Walter. Pequena História de P Porto orto Alegre . Porto Alegre: LP&M, 1987 VEDANA, Hardy. Jazz em P Porto

Fontes Consultadas - 181

O livro NEGRO EM PRETO E BRANCO - História Fotográfica da População Negra de Porto Alegre, recebeu o prêmio Açorianos de Literatura - Categoria Especial em dezembro de 2006. Publicado na web em novembro de 2009 Porto Alegre/RS - Brasil

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.