Negros diaspóricos, migrações e transitos na Pan Amazônia: Acre, o não-lugar

May 27, 2017 | Autor: F. da Silva | Categoria: Acre, Migração haitiana
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Negros diaspóricos, migrações e trânsito na pan-amazônia: Acre, o não-lugar. Francisco Bento da Silva* Resumo: este artigo é um pequeno ensaio, originalmente produzido para uma exposição oral no I Encontro de História da seção amapaense da ANPUH. Trata-se de uma breve introdução na temática da migração, majoritariamente haitiana, nos anos iniciais da década de 10 do século XXI para o Brasil, tendo como porta de entrada o estado do Acre. O Acre é neste contexto uma espécie de não-lugar, pois esses migrantes não intencionam ficar no estado, mas apenas entrar no Brasil através da sua fronteira e daí se deslocarem para outros estados do país em busca de empregos. O Acre é espaço de trânsito, passagem repentina, lugar deslizante e móvel. Trabalhamos basicamente com fontes oriundas de reportagens publicadas no site do jornalista acreano Altino Machado e estabelecemos diálogos com alguns autores do campo dos estudos culturais. Palavras-chaves: Acre, haitianos, migrações. Resumen: Este artículo es un breve ensayo, producido originalmente para una presentación oral en reunión de la sección de história ANPUH Amapá (Brasil). Esta es una breve introducción sobre el tema de la migración, en su mayoría haitianos, a principios de la segunda década del siglo XXI en Brasil, con el punto de llegada en el Acre (Brasil). Acre es en este contexto, una especie de no-lugar, ya que estos inmigrantes no tienen la intención de permanecer en el estado, pero despues que entran en Brasil a través de su frontera, luego se trasladan a otros estados en busca de trabajo. Acre es el espacio de tránsito, el paso repentino, deslizamiento y lugar de moverse. Trabajamos principalmente con los suministros procedentes de los informes publicados en el sitio del periodista acreano Altino Machado. Tambien tratamos de establecer diálogos con algunos autores en el campo de los estudios culturales. Palabras-claves: Acre. Haitianos. Migraciones.

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Revista Tempo Amazônico “uma vez que devem cessar, necessariamente, todas as distinções de cor entre os filhos de uma mesma família, doravante os haitianos serão apenas chamados de negros”. Constituição haitiana (1805) Introdução

Este artigo é a versão derivada de minha participação no I Encontro Estadual da Anpuh Amapá em dezembro de 2012, quando compus junto com outros participantes uma Mesa Redonda intitulada Poderes transnacionais, Estado e políticas públicas na Panamazônia. Na ocasião comentei na abertura da minha exposição da alegria de estar pela primeira vez em terras do Cabo Norte e da acertada escolha da organização em propor aquela Mesa, pois desde muito tempo a Panamazônia (para ficarmos somente na brasileira) foi e é atravessada por migrações, diásporas e territorialidades das mais diversas. Migrações com certa intensidade e regularidade, seja de estrangeiros e de gentes de outras regiões do Brasil, é algo marcante após a segunda metade do século XIX. Diáspora forçadas por questões de nacionalidade, pobreza, conflitos, criminalidade, punições dos poderes públicos, remetem já ao período colonial, passando pelo império e até a república. Só para citar alguns casos na Primeira República, temos as revoltas da Armada (1894); da Vacina (1904), da Chibata (1910), as secas periódicas no nordeste (1877, 1915, 1932), a revolta durante a presidência de Artur Bernardes (Clevelândia – 1924/1925) e durante as 1ª e 2ª guerras mundiais. Grupos étnicos (judeus e ciganos), militares a serviço, capoeiras, escravos fugidos, ex-escravos,

estrangeiros,

apenados,

prostitutas, povos

indígenas

em

correrias

e

deslocamentos impositivos, entre outros, transitam diaspóricamente pela panamazônia desde muito tempo. Territorializaram e ainda territorializam os espaços geoculturais com suas andanças desejadas e indesejadas. A panamazônia desde muito se caracteriza por ser esse multi espaço de encontros em grande medida fortuitos, desiguais, doloridos e inesperados entre gentes de outros lugares e os que nela vivem. Portanto, discutir tais dimensões é algo carregado de historicidade e de atualidade. *Professor da Universidade Federal do Acre – UFAC. Vinculado ao Centro de Filosofia e Ciências Humanas desta instituição, atuando nos cursos de bacharelado e licenciatura em História. É também professor do Programa de Pós Graduação em Letras: Linguagem e Identidade. *

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Revista Tempo Amazônico Neste sentido, este pequeno artigo está voltado para algumas questões mais contemporâneas. Escolhi abordar a temática da diáspora e da imigração de haitianos, dominicanos, africanos de etnias diversas e asiáticos idem, tendo como uma das portas de entrada na panamazônia o estado do Acre, principalmente após o ano de 2010. Esse fluxo contínuo e incessante de homens, mulheres e crianças impactou e impacta algumas cidades acreanas que fazem parte dessa rota em território brasileiro: Assis Brasil, Brasiléia, Epitaciolândia e Rio Branco. Esses contatos diversos de gentes diversas, não estão imunes aos choques identitários e conflitos entre os próprios migrantes e deles com as pessoas das cidades por onde passam. As assimetrias e ambivalências são patentes. No caso específico dos afrocaribenhos, genericamente chamados pela imprensa de haitianos, a migração se ampliou após o terremoto no Haiti em janeiro de 2010. Embora a migração deles para o Brasil, entrando Acre, tenha registro desde 2009. O percurso mostrado no mapa abaixo (MAPA 01) é marcado por dificuldades de ordem linguística, financeira, física, cultural e associada às peculiaridades das fronteiras nacionais por onde passam.1

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SANTOS, Armstrong da Silva. Haitianos na Amazônia Sul - Ocidental: identidades e narrativas em trânsitos. Dissertação de mestrado. PPGLI Ufac, 2014.

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100 MAPA 01: Rotas de migração haitiana para o Brasil . Fonte: Estudio de la Migración Haitiana hacia Brasil y el Diálogo Bilateral. Pós-graduação em Geografia Tratamento da Informação Espacial. PUC Minas. Duval Magalhães Fernandes e Andressa Virginia de Faria

Além da exploração desses migrantes pelos chamados “coiotes” (no Haiti, na República Dominicana, no Equador e no Peru, principalmente), existem relatos corriqueiros de estupro de mulheres, roubos, ameaças (físicas e psicológicas) e fome através daqueles que chegam até a fronteira acreana. O fato é que há uma rede organizada e ilegal que lucra com esse fenômeno da migração, desde o Haiti, passando pelos países acima citados até a chegada ao Brasil por onde entram através das fronteiras com a Bolívia (Corumbá); Colômbia (Tabatinga) e Peru (Assis Brasil). Nessas cidades de fronteira, eles requisitam a condição de refugiados junto à Policia Federal. De posse deste documento, podem tirar CPF e carteira de trabalho e logo migram para outras cidades brasileiras, geralmente nas regiões do sul sudeste.2 Temos que considerar que estes sujeitos se inserem desde a partida em situações de extrema vulnerabilidade. Como bem afirma Mary Douglas, (apud McClintock 2010), as

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Revista Tempo Amazônico situações de transição são sempre perigosas. Tanto para os sujeitos em movimento quanto para aqueles que eles vão encontrando pelos caminhos, pois nenhum dos lados tem condições de estabelecer a priori relações de confiança seguras. Para o caso que estamos discutindo, os perigos reais ou imaginários se apresentam também através das doenças, entre elas o temido Ebola. Pois genericamente todos são vistos como potencialmente portadores do vírus, já que todos negros que chegam são “africanos” ou “haitianos”. A priori não existe forma de distinção por parte dos moradores da localidade além destas duas, pois os traços do rosto e cor da pele “mostram o caráter da raça”.3 Na fronteira acreana com o Peru, talvez o primeiro contato desses migrantes em trânsito seja com os taxistas brasileiros que atravessam de Assis Brasil, cruzando a ponte sobre o rio Acre, até a cidade peruana de Iñapari e lá assediam essas pessoas cobrando preços exorbitantes para atravessá-los ao lado brasileiro ou leva-los até a cidade de Brasiléia distante cerca de 80 km. Existem informações que estes taxistas impõem medo aos migrantes, ao falarem de perigos irreais no trajeto, da fiscalização rigorosa, apenas com o intuito de cobrarem preços abusivos. Mas nem todos querem transportar os migrantes, principalmente se forem identificados como africanos. Estes imageticamente são identificados através de uma série de signos (fala, vestimentas, grupo) ou através dos documentos. Com a recusa de taxistas em transportarem ou pela falta de dinheiro para pagar a passagem, alguns de forma desesperada tentam fazer o trajeto entre Assis Brasil ou Brasiléia Rio Branco (232 km) a pé, como mostra a foto abaixo.

FERNANDES, Durval Magalhães; DINIZ, Alexandre Magno & FARIAS, Andressa Virgínia de. “Migracion en la frontera Norte del Brasil: flujos e nuevas redes”. V encuentro nacional de demógrafos y estudiosos de la poblacion. Caracas, noviembre de 2011 (http://somosavepo.org.ve/download/cdt_570.pdf). 3 McCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero, e sexualidade no embate colonial. Campinas: Edunicamp, 2010. P. 87. 2

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FOTO 01: Haitianos caminhando na BR que liga Brasiléia a Rio Branco (232 km), 2014. Fonte: www.altinomachado.com.br, acessado em 28 de novembro de 2014.

Devidos os casos de Ebola que começaram a aparecer na televisão como epidemia em alguns países africanos, estes migrantes daquele continente logo ficaram estigmatizados como perigosos a salubridade local. Inclusive autoridades acreanas foram à imprensa e se manifestaram, ora reforçando a preocupação com a chegada da epidemia via migrantes, ora usando desse fator para solicitar ao governo federal verbas e equipamentos para o controle sanitário da fronteira. Passou a ocorrer uma espécie de institucionalização do medo, continuamente na mídia no ano de 2014. A ideia de contágio (na sua múltipla significância) é algo muito presente nas fronteiras.4 Vejamos ainda a notícia abaixo, publicada em abril de 2014 em um site noticioso onde se afirmava que o governo federal estava omitindo a chegada do vírus para não atrapalhar a realização da Copa do Mundo no país.

E segundo relato de um imigrante haitiano ao repórter da Folha de São Paulo, Brasiléia está um caos, esgoto a céu aberto e ausência total de qualquer saneamento básico, com imigrantes se amontoando onde podem, fazendo suas necessidades orgânicas onde achar necessário, lavando suas roupas, se conveniente, ou não, dependendo da disponibilidade de água, onde alguns ficam dias sem tomar banho; e restos de comida, são jogados em qualquer lugar, junto com as embalagens 4

Idem

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Revista Tempo Amazônico descartáveis. Quer dizer, ambiente mais que propício para a deflagração letal do ebola em todo país. 5

O fato é que o Acre tornou-se um espaço notadamente de trânsito. Parada para regularização de documentos e ida para um “destino final” fixado muitas vezes já na partida, mas que nem sempre se realiza da forma como imaginada pelo migrante. Mas em sentido amplo, eles dizem que o Brasil também é algo provisório. Um dia querem voltar para a pátria natal. O retorno como promessa, nos dizeres do intelectual jamaicano Stuart Hall, é uma das características daqueles que estão em diáspora. Embora, muitos desses sujeitos desejem voltar melhor do que saíram, ajudarem os familiares que ficaram e trabalharem logo, o certo é que a imprevisibilidade é uma das marcas da diáspora.6 Esse processo migratório não deixa de acarretar uma significativa reelaboração de suas identidades nessas zonas de contatos fluídas e moventes que eles vão palmilhando, geografando e historicizando. Hibridismos e permutas diversas entram em cena e fazem parte do enredo. Como bem diz outro intelectual diaspórico, Edouard Glissant, a partir do movimento não dizemos aquilo que somos, mas o que estamos sendo. Nesse processo de movimento, o idioma espanhol é para a maioria deles a “língua de contato”, pois muitos viveram ou viviam na República Dominicana antes da partida diaspórica para terras brasileiras. Algo que é muito mais complicado para os migrantes de origem africana e asiática, pois a ausência da comunicação através da língua torna a vida deles mais difícil.7 No inicio de 2011 o governo brasileiro passou a adotar restrições de entrada no país ao fechar a fronteira e fixar a retirada de alguns documentos para entrar e sair do Acre (visto humanitário, Identidade de estrangeiro, Carteira de Trabalho e CPF. Para as crianças, foi exigida autorização da Vara da Infância e Juventude para poderem seguir em direção a outros estados da federação. O visto humanitário somente é válido para os haitianos e foi instituído após o terremoto de 2011. Ele é válido por 05 anos e se assim desejarem, após ficarem 09 anos no Brasil eles poderão pedir naturalização. Para dominicanos, africanos e asiáticos é mais complicado obter o visto permanente, pois o processo é mais lento e necessitam comprovar 5

Fonte: (http://www.sobral24horas.com/2014/04/atencao-o-virus-ebola-pode-ter-chegado.html, acesso em 20 de fevereiro de 2015). 6 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG 2003. 7 GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: UFJF, 2000.

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Revista Tempo Amazônico perseguições de ordem política, religiosa ou de outra natureza para darem entrada no pedido de refúgio no país. Com a instituição do visto humanitário, a chegada de haitianos no Brasil foi se ampliando. A imprensa local e nacional passou a dar visibilidade regular a esses migrantes que começaram a ficar represados na fronteira entre o Brasil e o Peru e na cidade de Brasiléia (vide fotos abaixo).

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FOTO 02: Haitianos em praça pública na cidade de Brasiléia (AC), 2014 Fonte: www.altinomachado.com.br, acessado em 28 de novembro de 2014.

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FOTO 03: “Abrigo” na cidade de Brasiléia fechado em abril de 2014 Fonte: http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/17008-governo-fecha-abrigo-parahaitianos-em-brasileia, acesso em 28 de novembro de 2014.

Com esse represamento migratório de gentes foi se avolumando e os problemas daí gerados se ampliaram cada vez mais: falta de alimentação, superlotação no abrigo em Brasiléia, doenças e falta de higiene nos abrigos. Essas omissões oficiais e as ações pouco eficazes acabaram repercutindo diretamente na vida desses migrantes de “passagem”, que foram sendo represados por questões formais e legais do Estado e impedidos de seguirem viagem para onde almejavam e almejam seguir. Em um primeiro momento a ajuda que receberam foi de instituições religiosas cristãs (católica e protestante), da prefeitura de Brasiléia e do governo do Acre. Posteriormente o Governo Federal começou a fazer repasses financeiros ao governo estadual. Já o governo do Acre passou a agir através da Secretária de Direitos Humanos – SDH e a prefeitura de Brasiléia através da Secretária de Assistência Social. Governo e prefeitura passaram a ser criticados por duas vertentes principais. A primeira tinha e tem um tom bairrista, de um difuso nacionalismo tosco que em certas situações explicitava e explicita xenofobia. Vozes que dizem; “tem que gastar dinheiro primeiro com os brasileiros”; “eles tem comida de graça às nossas custas”; “haitianos doentes e sujos”, que “estão vindo tirar nossos empregos”, etc. o pronome possessivo que opõe “nós” versus “eles” aparece amiúde nessa construção narrativa. O “nós” e o “eles” é polissêmico, Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 2 | N.1| junho-dezembro de 2014| p. 97-111

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Revista Tempo Amazônico relacional e provisório. Esse estranhamento (preconceituoso ou não) é definidor de identidades (tanto do observador quanto do observado). Outras, em sentido oposto, trazem a crítica às autoridades de maneira geral por fazerem pouco caso ou ajudarem abaixo do que legal e moralmente deveriam ajudar. Essa posição tem um tom mais humanitário e carrega certa dose de alteridade, no sentido de se colocar diante da dor do “outro”. O fato é que essa migração ampliada e volumosa trouxe para a cena política um debate em torno de questões jurídicas, diplomáticas e humanitárias. Eles são ao mesmo tempo sujeitos que apelam ao estatuto de refugiados e almejam a condição de residentes laborais. Como algumas análises críticas colocam, o que os empregadores brasileiros tem nesse particular é mão de obra barata encoberta sob o discurso do humanitarismo. Aí reside um paradoxo: a ajuda dita humanitária e a alocação em postos de serviços estimularia cada vez mais essa migração em direção à fronteira acreana. É inegável que para os empregadores brasileiros esses migrantes são discursivamente reduzidos a categoria de força de trabalho. Com vulnerabilidade social e laboral gritantes diante das particularidades dessas relações desiguais que se estabelecem: sem documentos legais ou incompletos, sem escolaridade muitas vezes, endividados em seu país de origem e sem dinheiro onde chegam, sem saber o idioma. Ou seja, chegam ao Brasil com a necessidade imperiosa de logo trabalharem para pagarem as dívidas, se manterem e ajudarem os familiares que ficaram. Temos por exemplo o caso ocorrido em janeiro de 2012, quando um telejornal do Acre noticiou que “empresas de Rondônia seleciona trabalhadores para a construção civil”. O inusitado é que o contratante adotou uma técnica baseada na grossura da canela para selecionar os trabalhadores que desejavam levar do abrigo em Brasiléia. Os de canelas mais finas eram prioritariamente escolhidos pela alegação de que eram bons trabalhadores. Algo que não destoa das práticas usadas na escolha de escravos em portos americanos até meados do século XIX, quando se olhavam os dentes, marcas corporais, compleição física, idade, sexo, etc. Em obra recente o pesquisador Henry Louis Gates Jr conta a história da “tese do sal”, pois segundo alguns estudos, devido o calor e a umidade os porões dos navios negreiros eram calorentos como saunas e aqueles escravos com propensão de reter mais água no organismo tinham mais chance de sobrevivência após muitos dias de encarceramento e viagem. Segundo dados existentes, cerca de 15% dos escravos morriam de desidratação durante as viagens nos tumbeiros enquanto durou a infame prática do tráfico negreiro. No México, nos portos de Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 2 | N.1| junho-dezembro de 2014| p. 97-111

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Revista Tempo Amazônico desembarque de escravos, existiam avaliadores pagos para receberem negros e os examinarem de forma inusitada. O exame consistia em lamber embaixo do queixo dos escravos e sentir a dosagem de sal a partir do suor. Os mais salgados indicavam que aquele cativo tinha boa pressão arterial e valia mais economicamente por ter melhor saúde. 8 Os haitianos migrantes, sob a máscara da docilidade e do bom comportamento são usados por alguns empregadores como exemplos e contraste com os trabalhadores brasileiros desregrados. Não podemos negar que esse “culto da domesticidade envolve processos de metamorfose social e sujeição”9. Vejamos o que diz a representante de um grande frigorífico brasileiro que foi à cidade de Brasiléia selecionar “mão de obra” para sua unidade em Mato Grosso: No mês passado, nós viemos aqui e selecionamos 45 haitianos e os levamos para nossa unidade no interior do Mato Grosso. Estamos satisfeitos, pois trata-se de mão de obra que tem se mostrado muito produtiva pela força física, força de vontade e interesse em aprender. Os haitianos são muito prestativos, carismáticos, e mudaram a cultura na unidade do Mato Grosso. O pessoal brasileiro na região é preguiçoso, descomprometido com o trabalho. A presença dos haitianos tem servido para que os brasileiros percebam que existem pessoas enfrentando maiores dificuldades na vida. Desde então, os brasileiros deixaram de faltar ao trabalho e até agora não houve nenhuma desistência de haitianos.10

Essa arregimentação de negros diaspóricos como mão de obra, não passa despercebido pelas autoridades brasileiras. Há uma preocupação com a exploração que possam sofrer diante da necessidade que eles tem de logo trabalharem. Vejamos o que traz o jornalista Altino Machado em entrevista com o procurador do Ministério Público do Trabalho, Marcos Cutrim, em matéria publicada em um site no final de 2014.

O procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho em Rondônia e Acre, Marcos Cutrim, disse que ainda há muitos desafios relativos à políticas públicas humanitárias de acolhimento aos estrangeiros em busca de melhores condições de vida. Falta maior participação dos órgãos da União no custeio e no auxílio aos Estados e Municípios de fronteira na política de acolhimento, maior controle estatal e fiscalização das formas de contratação dos imigrantes, combate às redes de exploração do tráfico humano, coiotagem e contrabando de trabalhadores, no Brasil, e, no exterior, por meio de cooperação jurídica internacional com as polícias e os Ministérios Público dos países que são rotas, como Equador, Peru e Bolívia, além de facilitação da emissão de vistos nas embaixadas nos países de origem. 11 8

GATES JR., Henry Louis. Os negros na América latina. Tradução de Donaldson Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p.96; 9 McClintock, Op.Cit. p. 63. 10 (Entrevista de Lígia Santos, coordenadora de relação e desenvolvimento do Marfrig ao jornalista Altino Machado: www.altinomachado.com.br, em 19 de novembro de 2014). 11 Fonte: blog do Altino Machado, acessado em 19 de novembro de 2014.

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A população haitiana desde muito passa por períodos de migração forçada por problemas políticos, econômicos, sociais e de catástrofes naturais. Em 1915 o Haiti foi invadido pelos EUA e ocupado durante duas décadas. Milhares de haitianos migraram para a vizinha República Dominicana em busca de trabalho e “muitos aceitaram salários de fome para trabalhar na lavoura”.12 Diante de uma situação de necessidade, podem se estabelecer condições propícias de exploração dessas pessoas como já ocorreu há quase um século no exemplo acima citado. Em fins de setembro de 214 havia 420 migrantes no abrigo em Rio Branco, destes cerca de 350 eram haitianos. Estavam esperando ônibus para seguirem a São Paulo e Rio Grande do Sul. Havia alguns meses o governo do Acre tinha contratado uma empresa de transporte rodoviário para fazer o deslocamento desses migrantes para estados como Rio Grande do Sul e São Paulo. O dinheiro foi repassado pelo Ministério da Justiça para tal finalidade. Isso acabou fazendo com que os estados recebedores reclamassem do governo do Acre pelo envio desses imigrantes, pois dizem que o governo acreano passou transferir um problema (manutenção dos migrantes nos abrigos) para outros estados. O governo do Acre rebateu essas críticas denunciando preconceitos das “elites” desses estados em não quererem receber esses migrantes por serem pobres e negros e que uma vez no Acre, com a documentação regularizada, eles podem ir para onde bem desejarem. O governo acreano garante que só estaria então viabilizando a transferência desejosa e voluntária dessas pessoas, muitas delas sem recursos para a compra da preciosa passagem. Além desses gastos com passagens, outras despesas são realizadas com aluguel de espaços para abrigo e alimentação, basicamente. O valor total do contrato de sete meses de aluguel da Chácara Aliança em Rio Branco foi de R$ 154 mil, sendo R$ 22 mil mensais. O contrato iniciou em junho de 2014 e teve vigência até o dia 15 de dezembro do mesmo ano. Para receber, abrigar e alimentar os imigrantes no Acre, os governos estadual e federal afirmam que já gastaram mais de R$ 6,2 milhões, considerando a soma dos valores de 2012 até hoje. Apenas com o item “alimentação”, o gasto foi da ordem de R$ 4,5 milhões. Com fretamento de ônibus, que conduz os imigrantes de Rio Branco até São Paulo e Rio Grande 12

GATES JR, Op.Cit., p. 247

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Revista Tempo Amazônico Sul, em viagens que duram de três a quatro dias, o gasto chegou a R$ 1,6 milhão até maio de 2014.13

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TABELA

01:

Estrangeiros

com

vínculo

formal

de

trabalho,

por

Estados

Fonte: Ministério do Trabalho, apud www.altinomachado.com.br/, acessado dia 19 de novembro de 2014.

O Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), a partir dos dados da tabela acima, afirma que o número de imigrantes no mercado de trabalho formal brasileiro cresceu 50,9%, entre os anos 2011 e 2013. A população de haitianos no Brasil cresceu aproximadamente 18 vezes, passando de pouco mais de 814 imigrantes, em 2011, para 14.579 empregados no mercado de trabalho formal em 2013, superando os portugueses.

14

Isso sem

contar aqueles que continuam na informalidade e não aparecem nos dados oficiais. O governo do Acre, por exemplo, afirma que desde 2010 até fins de 2014 já passaram pelo Acre 30 mil 13

Fonte: http://amazonia.org.br/2014/09/no-acre-falta-%C3%A1gua-para-beber-em-abrigo-superlotado-deimigrantes/, acessado em 26 de novembro de 2014. 14 Fonte: http://portal.mte.gov.br/obmigra/dados-do-obmigra-revelam-aumento-do-numero-de-trabalhadoresimigrantes-no-mercado-de-trabalho-formal.htm, acessado em 02 de dezembro de 2014.

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Revista Tempo Amazônico haitianos. Então podemos aludir que essa diferença contempla os dados de 2014 e aqueles em situação irregular. A Polícia Federal brasileira quantifica um total pouco acima, de 39 mil haitianos que entraram no Brasil neste mesmo período.

Considerações finais

A segunda constituição haitiana, adotada em 1816 durante a presidência de Alexandre Pétion (1806-1818), o artigo 44 declarava “todo africano, índio ou aqueles que levam seu sangue, nascidos nas colônias ou países estrangeiros e que vierem viver na república, serão reconhecidos como haitianos” (apud GATES JR, 2014, p. 210). Aí está posto as bases jurídicas e políticas para a emergência, no Haiti do início do século XIX, de uma espécie de pan-africanismo ou no mínimo a receptividade a todo afrodescendente que desejasse viver como cidadão na “pátria negra” americana. Não temos como dimensionar se essa receptividade ao outro gerou ou gera uma espera correspondente desse outro por parte dos haitianos migrantes. Independente da permanência ou não de qualquer resquício derivado da carta de duzentos anos atrás, o fato é que os haitianos trazem desde então as marcas das diásporas em suas identidades. O Acre é apenas mais um espaço por onde eles palmilham atualmente, de passagem na quase totalidade deles. O Acre é uma espécie de não-lugar para a grande maioria deles. Mas não é recente esta característica associada a este território de fronteira. O Acre é um não-lugar antes mesmo de pertencer ao Brasil, pois quando era possessão boliviana aparecia a região em mapas daquele país como “tierras non descubiertas. Era algo escondido, misterioso, ainda não civilizado, não “possuído”. Os haitianos e outros migrantes que atualmente chegam querendo refúgio no Brasil entrando pelo Acre, são passageiros no múltiplo sentido que enseja essa palavra. É um lugar de transitoriedade, destituído até de personalidade por parte dos que chegam e vão. 15 Mas esses encontros acabam deixando suas marcas, pois não tem como haver indiferença nesses contatos fortuitos e em grande medida indesejados e inesperados.

15

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Papirus: São Paulo, 2010.

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Revista Tempo Amazônico Fontes e referências

Blog do Altino Machado: www.altinomachado.com.br Site Amazônia: www.amazonia.org.br

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Papirus: São Paulo, 2010. FERNANDES, Durval Magalhães; DINIZ, Alexandre Magno & FARIAS, Andressa Virgínia de. “Migracion en la frontera Norte del Brasil: flujos e nuevas redes”. V encuentro nacional de demógrafos y estudiosos de la poblacion. Caracas, noviembre de 2011 (http://somosavepo.org.ve/download/cdt_570.pdf). GATES JR., Henry Louis. Os negros na América latina. Tradução de Donaldson Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: UFJF, 2000. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG 2003. McCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero, e sexualidade no embate colonial. Campinas: Edunicamp, 2010. SANTOS, Armstrong da Silva. Haitianos na Amazônia Sul - Ocidental: identidades e narrativas em trânsitos. PPGLI Ufac, 2014. Dissertação de mestrado.

Recebido em:04/09/2015 Aprovado em:15/09/2015

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