\"Nem cabelo liso você tem\": Uma análise sobre os estereótipos em relação ao povo Tupinambá da Aldeia Serra do Padeiro

May 26, 2017 | Autor: Jéssica Tupinambá | Categoria: Discriminação, Povos indigenas
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“NEM CABELO LISO VOCÊ TEM” UMA ANÁLISE SOBRE OS ESTEREÓTIPOS EM RELAÇÃO AO POVO TUPINAMBÁ DA ALDEIA SERRA DO PADEIRO Jéssica Silva de Quadros1, Daniela Fernandes Alarcon2 RESUMO Este artigo busca descrever e analisar a produção e circulação de discursos estereotipados a respeito dos Tupinambás da Serra do Padeiro, povo indígena que vive na Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. Recorrendo a depoimentos de moradores da aldeia, o texto argumenta que a discriminação contra os indígenas relaciona-se diretamente à luta pela terra, já que a negação da identidade étnica dos Tupinambás visa barrar a demarcação da TI Tupinambá de Olivença e impedir a efetivação dos direitos constitucionais dos indígenas. Questionando as construções do senso comum acerca dos indígenas e a difusão de estereótipos pela grande imprensa, o artigo reúne informações sobre a história dos Tupinambás da Serra do Padeiro, o modo como os indígenas se organizam e a forma como vêm lutando para pôr fim à discriminação, considerando em especial o papel da organização produtiva desenvolvida na aldeia e da educação. Palavras-chave: Povos indígenas. Discriminação. Tupinambás.

ABSTRACT This article aims to describe and analyze the production and dissemination of stereotypical discourses about the Tupinambá people from Serra do Padeiro (Indigenous Land Tupinambá de Olivença, Southern Bahia, Brazil). Presenting statements from members of the Indigenous community, the text argues that the discrimination against the Tupinambá people is directly related to their struggle to recover their traditionally occupied lands, since the denial of the ethnical identity of the Tupinambá people aims to prevent the demarcation of the Indigenous Land Tupinambá de Olivença and the fulfillment of their Constitutional rights. Criticizing the hegemonic perspectives about the Indigenous peoples and the dissemination of stereotypes by the press, the article presents information about the history of the Tupinambá people from Serra do Padeiro, their organization and their struggle to end discrimination, considering the role of productive organization and education. Keywords: Indigenous Peoples. Discrimination. Tupinambás.

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Discente do curso de Pós-Graduação em Gestão de Pessoas – FTC/BA – E-mail: [email protected] 2 Professora orientadora, doutoranda em Antropologia Social – MN/UFRJ – E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO Dias antes de iniciar este artigo, acompanhei minha tia ao hospital, na cidade de Itabuna (Bahia), para que ela ganhasse seu filho. Após o nascimento, levei meu primo para fazer os primeiros exames. Quando informei ao enfermeiro meu endereço – na aldeia Serra do Padeiro, Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, vizinha a Itabuna –, ele perguntou se eu era índia “de verdade”. Respondi que sim e ele retrucou: “Não parece. Nem cabelo liso você tem!”. Para muitos, índios são apenas aqueles que têm cabelos lisos e olhos puxados, e que moram na Amazônia. “Lá tem índio de verdade”, dizem. Partindo desse incômodo, concebi este artigo com o objetivo de discutir o que o meu povo, os Tupinambás3 da Serra do Padeiro, vem passando, por assumirmos uma cultura e uma origem, ao nos autoidentificarmos como indígenas. Buscarei apresentar neste texto o modo como nos organizamos em nossa aldeia, alguns dos estereótipos em relação ao nosso povo e a forma como lutamos para pôr fim à discriminação. O caso ocorrido no hospital não foi a única situação constrangedora que passei devido a minha identidade. Na faculdade, já escutei de educadores: “Essa índia está muito evoluída, está querendo aprender demais”. Amigos, conhecidos e mesmo desconhecidos às vezes me perguntam, ironicamente, se eu moro em oca e por que não ando nua. “Você anda de carro e tem celular”, dizem alguns, “não é índia de verdade”. Para muitos, eu “virei índia”, para ter benefícios indevidos. Em algumas situações, escutei falas ainda mais ofensivas, de pessoas que consideram os Tupinambás “ladrões de terras”, “falsos índios”, “bandidos”. Se usamos nossos adereços indígenas, as pessoas riem de nós. Antes, eu me pintava com jenipapo frequentemente, pois a pintura nos traz força e proteção. Porém, após sofrermos ameaças e ataques por parte de moradores das proximidades, passei a ter medo de me pintar. Hoje, por questão de segurança, não me pinto quando tenho que sair da aldeia, apenas quando estou na comunidade ou quando viajo para fora da região. Meus parentes que precisam ir constantemente à cidade também já não se pintam como antes. Para fundamentar este artigo, entrevistei seis indígenas moradores da Serra do Padeiro (sendo três mulheres e três homens), que exercem papéis importantes para a comunidade4. Escolhi realizar entrevistas para incorporar ao texto elementos da realidade vivida pelos Tupinambás da Serra do Padeiro, apresentando uma contribuição original e colocando em destaque a visão dos próprios indígenas. Além disso, reuni também referências bibliográficas

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Ainda que a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) adote como convenção a grafia de etnônimos sem flexão de número, optei pela forma Tupinambás, no plural, mais utilizada em minha comunidade. 4 Todos os depoimentos foram gravados e integralmente transcritos.

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sobre o tema abordado aqui. A seguir, apresentarei algumas informações sobre os entrevistados e, logo depois, alguns dados sobre os Tupinambás da Serra do Padeiro. Rosivaldo Ferreira da Silva (Cacique Babau), 41 anos, à exceção do pajé, é a principal liderança da comunidade. Ele é amplamente reconhecido por lutar pela demarcação do território tupinambá, que é o maior desejo do nosso povo. Maria da Glória de Jesus, 60 anos, é uma das anciãs da comunidade. Faz parte do conselho de mulheres, já foi merendeira do Colégio Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro (CEITSP) e trabalha na roça. Dona Maria é uma mulher muito sábia e importante para o nosso povo; ela é a pessoa que mais conta histórias vividas por nossos antepassados. Glicéria Jesus da Silva, 33 anos, é presidente da Associação dos Índios Tupinambá da Serra do Padeiro (AITSP) e professora do CEITSP. Além disso, participa do movimento de mulheres e da luta pela terra. Maria da Conceição Santos Neri, 32 anos, é professora e vice-diretora do CEITSP. José Aelson Jesus da Silva, 38 anos, é motorista da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (SESAI/MS), membro do grupo jovem e puxador do toré5. Alzenar Oliveira da Silva (cujo nome indígena é Atiati), 30 anos, é professor de informática do CEITSP e liderança do grupo jovem. A aldeia Serra do Padeiro se localiza entre os municípios de Una, Buerarema e Ilhéus, a 18 km da sede de Buerarema, e nela vivem cerca de 450 indígenas. Trata-se de uma das comunidades que se situam na TI Tupinambá de Olivença, que tem aproximadamente 47 mil hectares e se estende do litoral até as serras. Nossa aldeia é rodeada por serras e cortada por rios e nascentes. O que define os Tupinambás como um povo é o nosso modo de vida, a cultura, a religiosidade e a luta pela demarcação da terra6. Nós vivemos em comunidade e pensamos muito no coletivo. Nossa cultura é voltada para a terra: trabalhamos em roças, divididas por troncos familiares, com plantio de mandioca, abacaxi, banana-da-terra e cacau, sendo este último responsável pela maior parte da renda das famílias. Além disso, os mais velhos têm o hábito de caçar, com armadilhas no mato, para o próprio consumo. Geralmente, pegam tatu, paca, capivara e saruê. Na época em que o rio está cheio, pescamos. Criamos muita galinha e muito pato; algumas pessoas criam porcos, bodes e gado. A religiosidade da Serra do Padeiro é muito sólida: nós somos guiados pelos encantados7. Não lutamos por uma

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Puxador de toré é a pessoa responsável por começar os cantos durante o ritual que chamamos de toré, no qual nos reunimos em volta do fogo para entoar nossos cantos e bater o maracá, instrumento de percussão feito com cabaça ou coco e sementes. 6 Para saber mais sobre os Tupinambás da Serra do Padeiro, ver: Macedo (2007), Couto (2008), Magalhães (2010), Ferreira (2011), Ubinger (2012) e Alarcon (2013). Ver também o documentário Tupinambá – O Retorno da Terra (2015), dirigido por Daniela Alarcon. 7 Encantados são entidades que Deus deixou para cuidar dos rios, das matas, da natureza. São guardiões que protegem toda a nossa nação – eles são como uma luz para nós.

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terra só para nós, lutamos pela terra que os encantados querem de volta; consideramos a Serra do Padeiro um templo sagrado, a morada dos encantados. Em 2000, fomos reconhecidos oficialmente como povo e, em 2004, começou o processo de demarcação da TI Tupinambá de Olivença. Porém, o processo demarcatório está muito lento e ainda aguardamos a assinatura da portaria declaratória pelo ministro da Justiça. Sempre vivemos aqui, neste pé de serra; toda esta área era ocupada por indígenas. Depois, os fazendeiros vieram, para implantar o cacau, e tomaram nossas terras. Na época, os indígenas não tinham os conhecimentos necessários para se defender. Por esse motivo, muitos foram obrigados a trabalhar para fazendeiros, outros foram mortos e outros ainda tiveram que ir embora. Porém, alguns resistiram. Em vida, meu bisavô, João Ferreira da Silva (João de Nô), tronco da minha família, nunca perdeu a terra. Quando morreu, deixou parte dela para meu avô, Rosemiro Ferreira da Silva (seu Lírio), pajé da aldeia. É o local onde moramos até hoje. Outras famílias também resistiram, em pequenos pedaços de terra. Nos anos 2000, iniciamos o processo de retomada do território. Guiados pelos encantados, começamos a recuperar o que sempre foi nosso, as terras onde hoje vivemos e plantamos. Com a saída dos fazendeiros, conseguimos recuperar nossas matas. Nesse processo, muitos parentes puderam voltar; em cada local da aldeia, hoje vive um tronco familiar. Se nós não fizéssemos isso, nosso povo iria se enfraquecer e acabar. Ao longo de todos esses anos, nossa história nunca morreu; mesmo cansados da luta, não deixamos a história se acabar. 2. A LUTA PELA TERRA E A DISCRIMINAÇÃO “Quando começamos a dizer que éramos índios, foi um choque na região”, lembra d. Maria. “Toda a vida, nós fomos índios, mas não podíamos dizer”, ressalta. “Ninguém podia dizer que era índio, porque, se falasse que era índio, morria.” D. Maria conta que, antes, éramos chamados de caboclos. Como indicam Carvalho e Carvalho, “aparentemente, Índio e Caboclo constituem categorias com grande poder polissêmico, variável de acordo com o contexto onde emergem” (2012: 16). Em nosso território, as pessoas nos chamavam de caboclos para negar nossa própria identidade e nossos direitos. Para Serra, O objetivo político deste emprego estigmatizante da palavra ‘caboclo’ é a interessada denegação de uma identidade étnica. Sucede que os grupos reconhecidos como indígenas têm a garantia constitucional do direito às terras por eles tradicionalmente ocupadas; logo, se os invasores das ditas terras admitirem que aqueles a quem as disputam são índios, estão reconhecendo a legitimidade do título de posse dos adversários e desqualificando a sua própria pretensão... (2012: 70-71).

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Conforme observa Serra, “o caboclo vem a ser, nessa perspectiva racista, um remoto e ‘impuro’ descendente de índio – ‘misturado’, ‘descaracterizado’, ‘falso’, ‘degenerado’” (Ibid.: 71). Na mesma direção, Bonfil Batalla enfatiza: O estereótipo colonial do “índio” implica necessariamente carências, deficiências e condições gerais de inferioridade; se alguém, individualmente, não comporta esses atributos, segundo a visão dominante, “deixa de ser índio” e alcança um estatuto superior (o de não-índio); e se nessa situação mantém sua própria identidade e pretende ser porta-voz de seu povo, a sociedade dominante recorre ao expediente de desqualificá-lo, negando sua indianidade e afirmando que esses não são “os verdadeiros índios” (1981: 12, traduzido).

Por outro lado, quando nós nos chamávamos de caboclos era para afirmar nossa identidade; hoje, usamos essa palavra para falar dos caboclos da mata (encantados). Nesta região, tudo era dos índios, de Olivença à Serra do Padeiro; meu bisavô contava que o marco dos índios era na praça de Canavieiras. Os índios mais velhos andavam a pé por toda a região, chegando até Caramuru, onde vivem os Pataxós Hãhãhãe, e a Porto Seguro, onde habitam os Pataxós. O povo Tupinambá da Serra do Padeiro vivia nas matas e nas locas de pedra, sobrevivendo da caça, da pesca e do que plantava. Tínhamos o cipó-verdadeiro e a timborana, para fazer munzuá, jereré e balaio 8 . Pescávamos, fazíamos tapagem, pegávamos gajé e pitu – pegávamos muita comida, porque havia muita água. Para fazer beiju e farinha, a mandioca era ralada na pedra. “Cuidávamos da mata, vivíamos da terra, vivíamos muito bem”, lembra d. Maria. Porém, depois, entraram os fazendeiros e madeireiros, e começaram a nos expulsar de nosso território. Alguns compravam terras e outros as tomavam de nós. Eles recebiam os títulos de terra, a vida ia mudando e nós não podíamos dizer nada – eles achavam que índio não tinha direito a nada. Foi o período em que perdemos tudo que tínhamos e começamos a morar de favor e a trabalhar para os outros. Passados alguns anos, os poucos de nós que sobraram se reorganizaram; começamos a luta pelos nossos direitos e nos assumimos como índios. O governo reconheceu a terra indígena, apesar de, até agora, a demarcação ainda não haver terminado. A partir de então, a disputa fundiária se intensificou. Nossa trajetória histórica é semelhante às trajetórias de outros povos indígenas do Nordeste. Como sintetiza Oliveira, “Ao final do século XIX já não se falava mais em povos e culturas indígenas no Nordeste. Destituídos de seus antigos territórios, não são mais reconhecidos como coletividades, mas referidos individualmente como ‘remanescentes’ ou ‘descendentes’. São os ‘índios misturados’ de que falam as autoridades, a população regional e eles próprios” (2004: 26). A esse respeito, Brasileiro observa: 8

Jereré e munzuá são instrumentos que utilizamos para pescar.

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[...] se é fato que muitas das etnias que ocupavam a região Nordeste do Brasil tiveram, no decurso dos diversos momentos históricos e sob pressões de toda ordem, em um lapso de quatro séculos de contato com a sociedade regional, a sua condição etnicamente diferenciada negada, ou diluída, outras lograriam, a partir da segunda metade do século passado, reemergir, no bojo de processos de reestruturação sócio-organizativos engendrados geralmente em situações de renovadas pressões fundiárias, mas em um contexto de legitimação formal mais favorável. Nos processos contemporâneos de construção sociopolítica e afirmação étnica têm se destacado povos como os Pankararu e os Truká, em Pernambuco, os Potiguara, na Paraíba, os Kariri-Xokó, em Alagoas, e os Kiriri, Tuxá e Tupinambá, na Bahia, que se mobilizaram em prol da “busca pelos direitos” (2012: 235-236).

Antigamente, na época em que trabalhávamos para os fazendeiros, o preconceito e a perseguição contra o nosso povo já existiam. Porém, com a luta pela demarcação e com o processo de retomada, eles aumentaram ainda mais. Sofremos ameaças de pistoleiros contratados por fazendeiros e da própria polícia. Muitos comentam que nossa identidade é “ilusão”, que somos todos “ladrões de terra”, ressalta d. Maria. Eles dizem que surgimos do nada, porém, sempre vivemos aqui. “Ficam gozando de nossa cara, dizendo que ‘viramos’ índios. Eles nunca perguntaram a nossa história, nunca souberam de onde viemos e sempre nos tacharam. Nesta nossa longa caminhada, sofremos várias formas de opressão e de preconceito, mas superamos, com a luta e com a nossa existência”, diz Glicéria. Hoje, recuperar a terra é nosso maior objetivo. “A terra, para mim, é vida; a terra, para mim, é tudo”, afirma d. Maria. “É onde nos criamos, é onde sobrevivemos, onde nós temos água, onde temos todos os alimentos para nós e para quem chega. Portanto, a terra é tudo para nós; sem ela, nós não vivemos. Índio é feito minhoca: se tirar da terra, morre.” Atualmente, o povo Tupinambá é amplamente reconhecido por sua trajetória de luta, tanto no Brasil como no exterior. Por isso, frequentemente, somos convidados para dar palestra e participar de encontros, seminários e reuniões. Porém, em função da luta, somos muito hostilizados na região onde se localiza nossa aldeia. “Muitas pessoas da cidade mangam da gente e desacreditam de nossa cultura. Poucos nos apoiam”, diz Alzenar. “Muita gente olha para mim e diz: ‘Oxente, você é índio?’. Quando respondo que sou, falam: ‘Não parece, não, não tem nada a ver com índio’”, conta José Aelson. Como observam Carvalho e Reesink (2011: 19), “os interesses locais anti-indígenas usam a mistura [devido a uniões interétnicas] como categoria de acusação da fraude étnica”. Ainda segundo os autores, “‘ser índio’ não se resume a parecer índio, no aspecto racial, em que pese a sociedade e o Estado usualmente exigirem dos grupos que exibam traços socioculturais ‘realmente indígenas’” (Ibid.: 17). Muitas pessoas caracterizam os indígenas de forma muito preconceituosa, como se fôssemos bichos. Já ouvi muitos dizerem que índio é preguiçoso, que não gosta de tomar banho,

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é cachaceiro e vive com um cachimbo na boca. Eles pensam que não podemos ter coisas boas, comer em restaurante, andar de carro. “Onde já se viu índio com relógio no braço?”, dizem. “Eles alegam que, porque falamos português e usamos roupas, não somos mais índios, somos brasileiros comuns. É a ideia mais preconceituosa, mais racista que existe. Como se nenhum brasileiro pudesse ir aos Estados Unidos, como se, ao falar inglês, deixasse de ser brasileiro”, argumenta o cacique Babau. Para muitas pessoas, só são belos os trajes e adereços que usamos. Só somos lembrados em 19 de abril, no Dia do Índio, em uma comemoração que não leva em conta os problemas que enfrentamos. “Algumas pessoas querem transformar o Dia do Índio em folclore e outras querem a extinção total dos indígenas, para ficar contando como era o índio no passado”, observa o cacique Babau. Nessa ocasião, não são mencionados os massacres que os povos indígenas vêm sofrendo para ter suas terras demarcadas. As pessoas geralmente se lembram apenas das contribuições indígenas à alimentação, ao artesanato, à música e à língua portuguesa, e as crianças são vestidas “de índio”. É importante notar que usamos nossos trajes, nossa tanga, cocar e colares em momentos de ritual ou quando saímos da aldeia para participar de atividades do movimento indígena e reivindicar nossos direitos. A pintura, para nós, tem grande significado. “Ela nos identifica”, diz José Aelson. Além disso, quando estamos trajados e pintados, nos sentimos mais protegidos. “A pintura, para nós, é uma oração”, completa. Por meio dela, transmitimos o que estamos sentindo (alegria ou tristeza) e qual é a situação (paz ou guerra). “Quando você está pintando ou recebendo a pintura, ali há uma troca de energias, você está recendo uma força”, afirma José Aelson. Porém, com a pintura, nos destacamos mais, pois ela chama muita atenção. Muitas vezes, quando estamos pintados, passamos por situações desagradáveis. Nos momentos de acirramento do conflito pela terra, não podíamos andar pintados, pois isso colocaria em risco nossas vidas. Alguns dos meus entrevistados relataram casos de agressão verbal que sofreram por estar usando adereços de pena. Glicéria, por exemplo, foi certa vez a uma repartição da Secretaria Estadual da Educação, em Ilhéus, usando uma tiara de penas, e uma funcionária lhe disse que ela parecia uma galinha. Alzenar apresentou-me um relato parecido: viajava de ônibus, trajado com vestes e adereços indígenas, quando uma menina lhe perguntou: “Você está virando galinha? Cheio de penas na cabeça...”. Vale notar que boa parte das concepções e opiniões sobre os povos indígenas é formulada a partir do que circula na grande imprensa. Não só em relação a nossa comunidade, mas a todos que lutam por direitos, a imprensa vem se revelando classista e preconceituosa, circulando informações muito negativas. Quando indígenas em luta pela terra são acusados ou presos, a imprensa costuma tratá-los como criminosos e só apresenta a versão dos indivíduos e

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grupos contrários à demarcação da nossa terra. Quando realizamos retomadas de terras, elas são noticiadas como invasões. A tendência da imprensa, como se vê, é deturpar a realidade, para favorecer determinados interesses. “A mídia não é democrática e popular. Ela é voltada para o Estado e voltada para as grandes corporações. Então, são poucos os espaços que as comunidades têm na mídia”, critica o cacique Babau. “Em nossa comunidade, temos uma organização perfeita, e eles não divulgam. Mas, se houver briga, confusão, miséria, eles aparecem logo”, completa. Em 2014, o Jornal da Band publicou uma série de reportagens denunciando a “fraude que criou uma tribo de falsos índios” no sul da Bahia. Ao analisá-las, Alarcon e Navarro detectaram “numerosos dados equivocados” (2014). Além disso, as antropólogas observaram que, de sete entrevistados, três eram fazendeiros, detentores de áreas no interior da TI Tupinambá de Olivença; nenhum indígena foi ouvido pela reportagem. No artigo, as autoras recuperam ainda matérias de jornais de circulação local e nacional que frequentemente publicam textos discriminatórios, negando os nossos direitos, inclusive nosso direito à existência. Por exemplo, em 31 de agosto de 2014, A Região, de Itabuna, publicou um editorial extremamente ofensivo, ameaçando o meu povo. “Nem é preciso olhar muito para ver que a maioria dos que se dizem tupinambá não tem qualquer característica física de índio”, dizia o texto. Intitulado “Só restam as armas”, ele se referia aos Tupinambás como “malandros que nunca foram índios” e incentivava a população a nos atacar. Na mesma época, foram espalhados na região outdoors com imagens de homens armados e dizeres contra a demarcação. “Uma análise da cobertura midiática da disputa contemporânea em torno do território tupinambá indica que a ampla maioria das peças jornalísticas alinha-se com a perspectiva de sujeitos e grupos contrários à demarcação, reverberando seus discursos”, concluem Alarcon e Navarro. Segundo as autoras, os jornais costumam publicar reportagens “claramente editorializadas”, com afirmações preconceituosas em relação ao meu povo. As emissoras de rádio locais, por sua vez, têm agido da mesma forma. O locutor do programa Novo Amanhecer, da Rádio Jornal, de Itabuna, chegou a propor, ao vivo, a realização de emboscadas contra o meu povo. É importante notar que, apesar de essas reportagens conterem dados claramente inverídicos e acusações sem provas, nenhum jornalista, até hoje, foi responsabilizado pelo conteúdo publicado. Além disso, esses textos têm motivado ações da polícia e têm influenciado a decisão de juízes contra o meu povo, atrasando o processo demarcatório. Como enfatizam Alarcon e Navarro, “oferecendo uma cobertura parcializada e discriminatória, os veículos de comunicação hegemônicos vêm contribuindo para a cristalização dos estereótipos sobre os povos indígenas no senso comum [...], perpetuando, assim, as violações historicamente cometidas contra o povo Tupinambá”.

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3. “PRECONCEITO, A GENTE NÃO ALIMENTA”: TRABALHO E ORGANIZAÇÃO Muitas pessoas pensam que índio não trabalha, que índio é preguiçoso. “No senso comum e no discurso cotidiano as terras indígenas são colocadas como a antítese do desenvolvimento”, observa Oliveira (1998: 43). “Na formulação dos que se opõem à criação ou reconhecimento das áreas indígenas, seriam enormes extensões de terra, sem qualquer ocupação econômica produtiva, que se ergueriam como muralhas à expansão da economia de mercado e que inviabilizariam os programas de distribuição e titulação de terras públicas aos trabalhadores rurais” (Idem). Trata-se, porém, de uma visão preconceituosa, pois os índios são organizados e trabalham muito para terem o que têm. Antes, nossa renda era toda voltada para a cidade de Buerarema. Era ali que vendíamos nossa produção, fazíamos a feira e comprávamos outros bens de que necessitávamos. Assim, éramos responsáveis por um percentual significativo da renda do município. Porém, de 2013 a 2014, houve um grande conflito na cidade. Boa parte da população, insuflada por políticos, comerciantes e fazendeiros contrários à demarcação, passou a hostilizar nossa comunidade e não índios que mantinham relação conosco. Eles nos ameaçaram, bateram em algumas pessoas, roubaram mantimentos comprados na cidade e chegaram a incendiar as casas de alguns indígenas. Assim, impediram nossa entrada na cidade e cortaram o contato conosco. Por motivo de segurança, passamos a não frequentar mais Buerarema e dirigimos a maior parte de nossa renda para outras cidades vizinhas, como São José da Vitória. Com isso, a renda de Buerarema caiu significativamente, ao passo que a de São José da Vitória aumentou. É importante notar que as mesmas pessoas que proibiram nossa circulação em Buerarema hoje nos culpam pelo declínio econômico da cidade. Esse caso deixa claro que não somos preguiçosos, mas participamos da economia da região. “Muitos têm a visão de que índio não trabalha, de que índio não é organizado, mas mostramos o contrário”, analisa Glicéria. As áreas de retomada são fontes de renda para a comunidade. Plantamos, em primeiro lugar, para o nosso consumo e vendemos o que sobra. Além disso, a comunidade também fornece produtos para o preparo da merenda escolar, tais como farinha de goma, banana, aipim e polpas de frutas. Como se indicou, nós distribuímos as famílias por áreas, organizando o território por troncos familiares. As roças que já se encontravam nas fazendas retomadas, como o cacau e a seringa, geram renda, ao mesmo tempo, para as famílias que ali vivem e para o coletivo, já que 30% do que é obtido com as mesmas é destinado a um fundo que pertence a toda a aldeia. Além de trabalhar nesses cultivos, as pessoas podem fazer roças e hortas individuais ou familiares, de mandioca, abacaxi e banana, entre outras. Quase sempre as famílias se unem para

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trocar dias de trabalho, fazendo mutirões. Todas as segundas-feiras, é realizado um grande mutirão envolvendo pessoas de todas as áreas; a cada semana, o trabalho ocorre em uma retomada diferente. Além disso, são realizados mutirões mais localizados, tanto em retomadas como em sítios. Para cada retomada, é escolhido um coordenador, responsável por administrar aquele local. É ele quem leva as demandas daquelas famílias para a nossa associação, sobre a qual falarei adiante. “O coletivo veio para somar”, comenta Glicéria. “As famílias não estão restritas a viver apenas no coletivo; elas têm suas vidas individuais e seus trabalhos individuais também. A ideia é nos autossustentarmos. Todos agora têm uma renda boa.” Nos organizamos e administramos nossa comunidade por meio da AITSP, criada em março de 2004 (Associação dos Índios Tupinambá da Serra do Padeiro, 2004). Ela é composta por um presidente, um secretário e um tesoureiro, eleitos a cada quatro anos. Toda a comunidade participa, inclusive os coordenadores de área, as demais lideranças, os jovens e as mulheres. A reunião ordinária é realizada uma vez por mês, aos domingos; quando há necessidade, pode ser convocada uma reunião extraordinária, para tratar de assuntos de emergência. Tais reuniões são conduzidas pelo cacique, pelo presidente da associação, pelo secretário e pelo tesoureiro. Na reunião, apresentamos os informes gerais; discutimos questões relacionadas à agricultura, educação e saúde; fazemos prestações de contas; e debatemos outros assuntos internos e o contexto político mais amplo. Todas as reuniões são registradas em ata. “Conjuntamente, procuramos solucionar os problemas. A cada dia, temos uma demanda maior, sentamos juntos, discutimos e fazemos os encaminhamentos cabíveis”, comenta Glicéria. Com o trabalho agrícola que estamos desenvolvendo no âmbito da associação, conseguimos desenvolver a economia na comunidade. Como indicado anteriormente, 70% da renda das roças de cacau e seringa são destinados às famílias da retomada onde tais roças se situam e 30%, a um fundo gerido pela associação. Os recursos desse fundo são investidos nas próprias roças (compra de adubo, maquinário, ferramentas e roçagem) e cobrem as despesas relacionadas à luta pela terra (por exemplo, a contratação de advogados, para resolver problemas jurídicos relacionados à comunidade, especialmente devido à criminalização das lideranças, e para o custeio de viagens para reuniões com representantes governamentais, entre outras). Vale ressaltar que, com isso, a comunidade se tornou mais autônoma e livre para tomar suas decisões. Por meio da associação, atuamos politicamente na luta pela demarcação da terra, pela cultura e contra a criminalização das lideranças. Escrevemos muitas cartas, moções e relatórios, com o intuito de exigir que o governo brasileiro cumpra suas obrigações para com

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os povos indígenas. Como ressalta Alzenar, “nós lutamos por direitos, não lutamos pelo que é dos outros, lutamos pelo que é nosso”. Antes da criação da associação, já éramos organizados, mas não tanto como hoje. “Nossa associação sempre dá resultado, porque nós buscamos nossos direitos e procuramos as políticas públicas para serem implementadas na aldeia”, enfatiza Glicéria. “Nós temos um projeto de vida muito bom. Fazemos um trabalho social que atende também a muitas famílias não indígenas – os pequenos agricultores aqui da região têm um atendimento amplo, principalmente à educação e à saúde.” Dessa forma, conseguimos manter uma comunidade organizada, seguindo nossa forma de vida e não dando importância para o que a oposição estava falando ou publicando na imprensa. “Nós não demos ligança para eles, continuamos fazendo o que é da nossa cultura, evitando qualquer tipo de violência doméstica e vivendo bem”, destaca o cacique Babau. Ao mesmo tempo em que tiramos nosso sustento da terra, cuidamos da mesma. Recuperamos e preservamos as nascentes dos rios, de modo que temos água abundante. “Isso fez com que a seca recente não nos atingisse. Foram quase seis meses de seca, ela atingiu todo mundo, perderam cacau, mas nós não, porque fizemos questão de preservar tudo”, afirma o cacique. Continuamos pescando e caçando, mas não deixamos ninguém derrubar a mata, principalmente nas nascentes. “Temos acesso a tudo que há na sociedade – carro, moto, telefone, computador – e não deixamos de fazer o que é nosso, seguindo nossa cultura e nossa religião. Acendemos o nosso fogo do toré, fazemos o nosso porancim9, os nossos rituais. Preconceito, a gente não alimenta; preconceito, a gente derrota.”

4. DESCONSTRUINDO ESTEREÓTIPOS COM A EDUCAÇÃO A educação, de acordo com meus entrevistados, tem um papel importante na desconstrução dos estereótipos em torno dos povos indígenas. Porém, ainda segundo eles, a maioria das escolas atua reforçando o preconceito. “A educação que nós temos no país é uma educação racista, preconceituosa e formadora de classe”, afirma o cacique Babau. Segundo ele, a educação, de modo geral, não tem servido para fortalecer o senso crítico nem as transformações sociais, mas sim para que ricos continuem ricos e pobres continuem pobres. Já para dona Maria, se a escola ensinasse que o índio nunca morreu, que os povos indígenas nunca se acabaram, a visão da sociedade envolvente seria diferente. Como se sabe, a Lei nº 11.645/2008 torna obrigatório o ensino, na rede pública e privada, de história e cultura afrobrasileira e indígena. Porém, ela não vem sendo aplicada adequadamente, pois boa parte 9

Porancim é o mesmo que toré.

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dos materiais didáticos relativos a essa temática é de péssima qualidade, os professores não são capacitados para tanto e não há fiscalização por parte do governo quanto à aplicação da lei. Os povos indígenas continuam sendo apresentados na escola de maneira folclorizada, situados no passado e caracterizados como se formassem um grupo homogêneo. Na maioria das vezes, são lembrados apenas no Dia do Índio. Em nossa escola, procuramos desenvolver um trabalho coletivo com professores, pais, alunos e demais membros da comunidade, para construir uma educação diferenciada10. Nossa cultura e religião têm um espaço importante na escola; todos os dias, antes de iniciar as aulas, há um momento de oração e cantos com os alunos, professores e outros funcionários. Buscamos desenvolver as disciplinas do programa nacional sempre em relação com a nossa cultura – por exemplo, nas aulas de educação física, recuperamos jogos indígenas; nas de matemática e geografia, trabalhamos com as roças; nas de história, partimos da memória dos anciões. Trabalhamos também com disciplinas específicas: língua indígena, identidade e cultura. Vale observar ainda que possuímos um calendário escolar diferenciado. Iniciamos as aulas antes das festas carnavalescas e trabalhamos 200 dias letivos respeitando apenas alguns feriados e os dias santos, de acordo com a nossa tradição. Fundada em 2005, a escola atende indígenas e não indígenas, alguns dos quais pequenos agricultores que vivem nas redondezas, assentados da reforma agrária e trabalhadores rurais de fazendas próximas, totalizando cerca de 400 alunos. Hoje, recebemos inclusive alunos de uma localidade vizinha, Vila Brasil (distrito de Una), pois a escola de lá foi fechada. Como se vê, nossa escola cumpre um papel importante na região. Em decorrência dela, houve redução significativa do analfabetismo e ampliação do acesso a programas sociais, como o Bolsa Família, e a direitos, como a aposentadoria como segurado especial. Todos os alunos têm acesso a consultas com médico, enfermeiro e dentista. Oferecemos creche, educação infantil, ensino fundamental, ensino médio profissionalizante (agricultura e agroecologia) e educação de jovens e adultos (EJA). O quadro de professores inclui índios e não índios; vale notar que priorizamos a atuação de professores indígenas, contratando não indígenas apenas quando necessário.

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Atualmente, estão sendo realizadas duas pesquisas de pós-graduação acerca de nossa escola. Nathalie Le Bouler Pavelic Santos desenvolve investigação de doutorado junto à Universidade Federal da Bahia (UFBA), em cotutela com a Universidade Paris Ouest Nanterre La Défense, acerca das relações entre educação, memória coletiva e a organização social e política dos Tupinambás da Serra do Padeiro, no marco da luta pela aplicação de seus direitos e por autonomia. Epaminondas Reis, por sua vez, realiza pesquisa de mestrado junto à Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) sobre o papel da escola na constituição da identidade das crianças tupinambás.

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Para Maria da Conceição, ainda que alguns não índios tenham dificuldades de adaptação, ter alunos não indígenas na escola é um ponto positivo, pois isso contribui para mudar a visão deles sobre os povos indígenas e para que aprendam a respeitar nosso modo de vida. Assim, nossa comunidade vem se esforçando para construir uma educação transformadora e de qualidade. Nos últimos anos, muitos professores graduaram-se no ensino superior e nos mobilizamos para melhorar nossa escola. “Antes, a merenda escolar era um suco ‘mancha pulmão’ e um biscoito cream cracker; hoje, nossa merenda é uma refeição, é uma merenda de qualidade”, ressalta Glicéria. Como se indicou, boa parte dos alimentos utilizados no preparo da merenda (hortaliças, legumes e frutas) é produzida na comunidade. As estradas por onde circulam os carros escolares foram todas reformadas com nossos próprios recursos. A educação na Serra do Padeiro só não avançou mais por descaso do governo, que não cumpre suas obrigações. Há dez anos, estamos lutando pela construção de um prédio escolar, pois nossa escola funciona em salas improvisadas, algumas delas de tábuas. Apesar de os recursos para a construção terem sido destinados ao governo do Estado da Bahia, este não os executou. A obra foi iniciada – o terreno foi aterrado e escavado –, mas não concluída, deixando buracos sem tapar e estruturas de ferro à mostra, que colocam em risco a segurança da comunidade, em particular das crianças. Enquanto esperamos a construção do nosso colégio, erguemos com nossos próprios recursos salas de aula, salas reservadas à administração, biblioteca e creche. Vale notar ainda que os professores vêm lutando por uma forma de contratação mais adequada; por um salário justo, pois o que recebem é abaixo do piso salarial; e por um plano de careira, já que, no caso dos professores indígenas, ainda que possuam mestrado e doutorado, o piso salarial não muda. Mesmo diante dessas dificuldades, com nossa escola estamos buscando melhorar nossa relação com os não índios e transformar a visão negativa que parte da sociedade tem sobre a Serra do Padeiro e, de forma mais ampla, sobre o povo Tupinambá. Temos também o projeto de criar um campus universitário em nossa comunidade, mas ainda não pudemos levá-lo a diante, pois, nos últimos anos, em função da omissão do Estado brasileiro, tivemos que nos concentrar na luta pela terra.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, busquei descrever e analisar a circulação de discursos estereotipados sobre o meu povo, os Tupinambás da Serra do Padeiro, baseando-me principalmente em depoimentos de moradores da aldeia. Argumentei que a discriminação que sofremos

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relaciona-se diretamente à luta pela terra, já que a negação da nossa identidade étnica visa barrar a demarcação da TI Tupinambá de Olivença e impedir a efetivação de nossos direitos constitucionais. Observei, ainda, que, para o senso comum, só são indígenas aqueles que se encaixam em uma visão estereotipada do que é o índio, que tende a ser reforçada pela grande imprensa. Muitos pensam que os indígenas são preguiçosos e não têm organização. Porém, como demonstrei, minha comunidade é altamente organizada, produtiva e autônoma. Oferecendo educação diferenciada e de qualidade a índios e não índios, estamos tentando transformar a visão preconceituosa que muitos têm dos povos indígenas. Eles afirmam que nós não somos índios. Mas, como diz d. Maria, nunca deixamos de ser. “Nasce um pé de calumbi11. Você corta, ele morre, se acaba, mas a semente que nasce é o quê? Não é calumbi? Se cresceu ali, enramou ali, é calumbi. Por que os índios, os troncos velhos, morreram, os filhos não vão ser índios?” Quero transmitir ao leitor, por meio deste artigo, novos olhares sobre o meu povo. Nascemos e nos criamos aqui e iremos lutar sempre. Ser índio está muito além de apenas características físicas: sabemos de onde viemos e conhecemos nossa história. Como diz o cacique Babau, “nós somos uma nação e uma nação é muito poderosa, é muito forte; eles não podem nos manobrar e nem acabar com nosso povo”.

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Calumbi é uma planta espinhenta que pode ser encontrada na Serra do Padeiro.

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