Nem indígena nem branco - o dilema jurídico dos indígenas na cidade.pdf

June 2, 2017 | Autor: P. Rodrigues | Categoria: Indigenous Peoples Rights, Brazilian Law
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RODRIGUES, Priscilla Cardoso. Nem indígena nem ‘branco’: o dilema jurídico dos indígenas na cidade. In LIMA, Carmen Lúcia Silva; CIRINO, Carlos Alberto Marinho (org). Moradores da Maloca Grande: Reflexões sobre os Indígenas no Contexto Urbano. Boa Vista: EDUFRR, 2015.

Nem indígena nem ‘branco’: o dilema jurídico dos indígenas na cidade Priscilla Cardoso Rodrigues1

Introdução Apesar de ter sido construído sobre as bases do Estado-Nação, o Estado brasileiro inaugurado pela Constituição Federal de 1988 foi definido como um Estado Democrático de Direito, de caráter pluriétnico e multicultural, que mantém sua unidade política fundada no respeito à diversidade cultural dos povos que nele residem. Mais especificamente em relação aos povos indígenas, consolidou mandamentos constitucionais e infraconstitucionais de proteção à sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e territórios, independentemente do local em que residem. Entretanto, o novo tratamento constitucional não foi acompanhado com o mesmo entusiasmo pelos órgãos públicos responsáveis por traduzi-lo para a realidade dos povos indígenas, pois o que se observa, na prática, é que a Administração Pública e o Poder Judiciário continuam se debatendo em conceitos ultrapassados como ‘aculturação’, ‘índios integrados’, etc. como formas de negar direitos aos seus reais destinatários. Desconsideram os direitos dos indígenas que vivem na cidade apegando-se à equivocada concepção de que a existência indígena se encontra condicionada à ‘selva’ e que a cidade é o local em que o ‘índio deixa de ser índio’. O presente artigo é uma breve reflexão sobre o papel do Poder Judiciário brasileiro na consolidação dos direitos dos indígenas que vivem na cidade.

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Coordenadora e Professora Assistente do Curso de Direito e Professora Colaboradora do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Roraima. Endereço: Av. Cap. Ene Garcez, nº 2413. Bairro Aeroporto. CEP: 69310-000 Boa Vista / RR. Email: [email protected].

Os indígenas e a construção do Estado-Nação brasileiro Desde a independência, para conseguir garantir a unidade de seu território, o Estado brasileiro foi buscar na ideia de nação o sentimento de pertença necessário à sua consolidação como unidade política. Construiu-se ideologicamente como um país territorialmente íntegro, com um povo miscigenado e unificado linguisticamente, sob a tutela de um mesmo Direito: o Estado brasileiro só conseguiria manter sua extensão territorial com unidade política, jurídica e cultural. Para conseguir criar a nação brasileira, a despeito de coexistirem índios, negros, asiáticos e brancos, a assimilação ou integração foi utilizada como mecanismo de uniformização cultural, reprimindo, de forma violenta ou sutil, as mais profundas diferenças étnicas e culturais. Era considerada um mal necessário para a criação de uma sociedade igualitária, em que todos fossem considerados cidadãos brasileiros e pudessem compartilhar do sentimento de solidariedade que garante a unidade de um Estado-Nação. Foi assim que a política indigenista brasileira adotou, desde a colonização até a promulgação da Constituição Federal de 1988, a assimilação como uma forma de retirar o indígena de sua condição de ‘selvagem’, de ‘bárbaro’, e trazê-lo à civilização. Nesse sentido, o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973), ainda atualmente em vigor, já em seu art. 1º deixava claro o motivo de sua existência dentro de uma política assimilacionista: “Art. 1º Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.” Toda a legislação indigenista brasileira, desde o período colonial, assumia, assim, a função de redentora dos povos indígenas, salvando-os de sua existência ‘selvagem’ através da progressiva e harmoniosa integração à comunhão nacional que lhes garantia a “extrema felicidade de poder ingressar na sociedade que os envolve, oprime, rouba suas terras e mata.” (Souza Filho 1994: 158) A ideia era de que, pouco a pouco, não existissem mais indígenas em nosso país e, consequentemente, o Direito brasileiro não teria mais que se envergonhar de ainda sermos um “país infestado de gentios”, como alegado por Nelson Hungria em seu Comentários ao Código Penal (apud Souza Filho 2009: 111). Fundando-se nas teorias evolucionistas da Antropologia, a legislação indigenista brasileira considerava a condição de indígena como transitória já que o contato com a cultura

civilizada o transformaria gradativamente em um cidadão civilizado, com os mesmos direitos e deveres que os demais cidadãos brasileiros. Nesse sentido, o Estatuto do Índio classificava os indígenas de acordo com seu grau de integração à sociedade, a fim de prever as consequências jurídicas diretas do ‘processo evolutivo civilizatório’ dos índios brasileiros:

Art 4º Os índios são considerados: I - Isolados - Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional; II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento; III - Integrados - Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.

Essa classificação era responsável por determinar a abrangência dos direitos de proteção aos indígenas, garantindo aos índios isolados e em vias de integração o regime tutelar (“Art. 7º Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeito ao regime tutelar estabelecido nesta Lei”) e a atenuação da pena, nos casos de condenação por infração penal (“Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola”). A legislação indigenista ignorava, assim, a possibilidade do indígena continuar sendo indígena, como se o ‘contato’ gerasse a inevitável perda de identidade e o esfacelamento de sua cultura: [...] os índios se acabarão num futuro próximo, quando encontrarem a alegria de viver na ‘pacífica, justa, doce e humana’ sociedade dos brancos, e então o Direito Penal ser-lhes-á aplicado em plenitude, e os juristas não se envergonharão mais nos congressos internacionais. É transparente neste episódio jurídico a ideia etnocêntrica e monista de que o sonho de todo índio é deixar de sê-lo. É presente a incompreensão do direito dos povos indígenas de continuarem a ser índios ainda que em contato longo e até mesmo amistoso com a sociedade branca. (Souza Filho 1994: 163)

Entretanto, ser ‘branco’ nunca foi o sonho dos indígenas, assim como a assimilação nunca os transformou em cidadãos brasileiros. O índio integrado deixava de ser considerado índio para fins de proteção legal, mas também não adquiria o status de ‘branco’ necessário para o acesso à cidadania plena.

Ser índio integrado significava, e ainda hoje significa, ser o ‘caboclo’ pobre, sem acesso a terra, saúde, educação e trabalho digno. “A integração passou a ser o discurso culto dos textos e das leis, enquanto na prática, a cordialidade de integração se transformava na crueldade da discriminação.” (Souza Filho 2009: 63) O único sonho dos indígenas é, e sempre foi, ter o direito de permanecer índio, independentemente do local em que resida, da roupa que vista ou da língua que fale. A Constituição de 1988 e o fim da política assimilacionista A promulgação da atual Constituição Federal em 1988 representou a definitiva ruptura com a política indigenista assimilacionista e com a unidade cultural do Estado-Nação anteriormente propostos, ao impor o reconhecimento da coexistência de diferentes povos sobre o território brasileiro. Auxiliada pela mudança de paradigma antropológico proposta por Fredrik Barth, que superou a noção de cultura como totalidade através da demonstração de que o ‘contato’ entre diferentes culturas “não leva a seu desaparecimento por mudança e aculturação; as diferenças culturais podem permanecer apesar do contato interétnico e da interdependência dos grupos” (1998: 188), o antigo Estado-Nação foi substituído pelo Estado Pluriétnico (Pereira 2002) que estabelece um novo paradigma político e jurídico ao retirar das sombras povos, etnias e culturas anteriormente ignoradas para garantir-lhes o direito à diferença. Isso fez com que os aproximadamente 305 povos indígenas, falantes de 274 línguas diferentes (IBGE Censo 2010), passassem a ter constitucionalmente reconhecidos “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (art. 231, CF/88), assumindo o Estado o dever de “proteger as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (art. 215, § 1º, CF/88). A Constituição de 1988, acompanhada de dispositivos normativos como a Convenção 169 da OIT, passa a reconhecer o direito à autodeterminação dos povos indígenas, abandonando “definitivamente o conceito, inclusive jurídico, de que índios são seres humanos com uma cultura inferior, primitiva, de que a aproximação com a sociedade ocidental brasileira condena-os à civilização ocidental e à consequente perda de sua identidade indígena.” (Villares 2009: 17) O problema é que as mudanças legais promovidas pela Constituição não se traduziram em mudanças imediatas na prática cotidiana da Administração Pública e, principalmente, do Poder Judiciário na atuação em casos concretos envolvendo indígenas.

Ao contrário, o que se observa é que durante os 24 anos posteriores à publicação da Carta Magna, os nossos Tribunais resistiram em fugir da tradição factual do tratamento dirigido ao indígena desde a chegada dos colonizadores no Brasil, conforme se demonstrará adiante.

Os indígenas no banco dos réus Apesar da opção política da atual Constituição pela proteção multicultural dos direitos dos povos indígenas, o Poder Judiciário brasileiro, principalmente na primeira instância, continuou (e ainda continua) apegado a interpretações amparadas nas ultrapassadas teorias evolucionistas e assimilacionistas como forma de justificar suas decisões, marcadas pela defesa de interesses políticos regionais de latifundiários, madeireiros, garimpeiros e mineradoras em detrimento dos direitos constitucionais dos indígenas. Até mesmo os Tribunais Superiores, em teses menos sujeitas às pressões políticas regionais, até à repercussão nacional do emblemático caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ainda mantinham-se indiferentes ao ‘novo’ sistema jurídico constitucional, insistindo em negar a proteção garantida pela legislação indigenista em vigor a indígenas ‘integrados’ ou ‘aculturados’. Nesse sentido, em 2007, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu: PENAL – HABEAS CORPUS – LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE – PACIENTE QUE É ÍNDIO JÁ INTEGRADO À SOCIEDADE – POSSUI TÍTULO DE ELEITOR – INAPLICABILIDADE DO ESTATUTO DO ÍNDIO – IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO DA PENA NO REGIME DE SEMILIBERDADE – ANÁLISE DAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS EM QUE FOI ACENTUADA A CENSURABILIDADE DA CONDUTA – REGIME INICIALMENTE FECHADO DEVIDAMENTE JUSTIFICADO – ORDEM DENEGADA. 1. O Estatuto do Índio só é aplicável ao indígena que ainda não se encontra integrado à comunhão e cultura nacional. 2. O indígena que está em pleno gozo de seus direitos civis, inclusive possuindo título de eleitor, está devidamente integrado à sociedade brasileira, logo, está sujeito às mesmas leis que são impostas aos demais cidadãos nascidos no Brasil. 3. O regime de semiliberdade não é aplicável ao indígena integrado à cultura brasileira. 4. O estabelecimento do regime inicial de cumprimento da pena deve observar não só o quantitativo da pena, porém a análise de todas as circunstâncias judiciais, considerada, ainda, eventual reincidência. 5. Se foi feito contra a conduta do réu rigorosa censurabilidade, justificado está o regime inicialmente fechado, necessário para reprovação do crime e ressocialização do apenado.

6. Ordem denegada (STJ, HC 88.853 - MS (2007/0190452-1), 6ª Turma, Relatora Ministra Jane Silva (desembargadora convocada do TJ/MG), j. 18.12.2007, DJ 11.02.2008) (grifo meu)

O caso julgado por este acórdão refere-se a indígena condenado a seis anos de reclusão, em regime inicialmente fechado, pelo crime de lesão corporal seguida de morte, para o qual, em sede de habeas corpus, foi requerida aplicação do tratamento penal diferenciado previsto no parágrafo único do artigo 56 do Estatuto do Índio, que prevê a aplicação do regime de semiliberdade a indígenas condenados por infração penal (“Art. 56, parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado.”). Apesar do Estatuto do Índio não ter sido expressamente revogado, alguns de seus dispositivos estão eivados de inconstitucionalidade e incompatibilidade com a atual legislação indigenista infraconstitucional, devendo ser interpretados de acordo com a nova realidade jurídica dos povos indígenas. Ainda assim, a decisão do STJ utiliza a condição de indígena ‘integrado’ para negarlhe o tratamento penal diferenciado previsto na lei (este sim recepcionado pela Constituição de 1988), dispensando, inclusive, a realização do laudo antropológico para verificação de sua identidade, conforme justificou a relatora em seu voto: A Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, conhecida como o Estatuto do Índio, [...] determinou, em princípio, medidas de proteção aos indígenas, tanto no âmbito do Direito Civil como no do Direito Penal, e até mesmo em relação à execução das penas que lhe são impostas por crimes eventualmente cometidos, mas, tais medidas só alcançam os índios não integrados à cultura e à comunhão nacional. [...] Daí concluir-se que o ora paciente se enquadra na categoria prevista no artigo 4º, III, da Lei 6001/73, pois já se encontra integrado à cultura e comunhão nacional. Tanto é verdade que está no pleno exercício de seus direitos civis, possuindo inclusive, título de eleitor, ainda que, em tese, possa conservar usos costumes e tradições de sua cultura originária, logo, o regime jurídico especial estabelecido pelo Estatuto do Índio não se lhe aplica, estando sujeito, em conseqüência, às leis brasileiras aplicadas aos demais cidadãos aqui nascidos. [...] Conclui-se, portanto, que ele não faz jus ao regime de semiliberdade, porquanto totalmente integrado à sociedade, por conseguinte, é dispensável também o laudo antropológico e o privilégio de cumprir pena em local especial. (grifo meu)

Utilizando os mesmos argumentos apresentadas pela relatora, outros julgados desta Corte direcionaram sua jurisprudência majoritariamente para esse sentido e acabaram influenciando as decisões dos demais tribunais do país.

O Judiciário deve acompanhar as transformações do pensamento científico nas mais diversas áreas e, quando não tiver conhecimento técnico específico para julgar determinado caso concreto, buscar auxílio nos laudos periciais para a formação de seu convencimento. A identidade indígena é questão que exige amplo conhecimento da teoria antropológica, o que torna mandatória a realização de laudo antropológico em toda e qualquer causa em que tal identidade seja questionada. Apesar disso, a maior parte dos julgadores acredita estar em condições de dispensar o laudo antropológico e, através de simples análise visual do indígena e fundada em circunstâncias tais como residir na cidade, falar a língua portuguesa, votar, ter certo grau de escolaridade e saber dirigir, negar-lhe o tratamento diferenciado previsto em lei: CRIMINAL. HC. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PORTE ILEGAL DE ARMA. ÍNDIO. NULIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA. FALTA DE PERÍCIA ANTROPOLÓGICA. DISPENSABILIDADE. RÉU INDÍGENA INTEGRADO À SOCIEDADE. PLEITO DE CONCESSÃO DO REGIME DE SEMILIBERDADE. ART. 56, PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI N.º 6.001/73. IMPOSSIBILIDADE. CONDENAÇÃO POR CRIME HEDIONDO. ORDEM DENEGADA. I. Hipótese em que o paciente, índio Guajajara, foi condenado, juntamente com outros três co-réus, pela prática de tráfico ilícito de entorpecentes, em associação, e porte ilegal de arma de fogo, pois mantinha plantio de maconha na reserva indígena Piçarra Preta, do qual era morador. II. Não é indispensável a realização de perícia antropológica, se evidenciado que o paciente, não obstante ser índio, está integrado à sociedade e aos costumes da civilização. III. Se os elementos dos autos são suficientes para afastar quaisquer dúvidas a respeito da inimputabilidade do paciente, tais como a fluência na língua portuguesa, certo grau de escolaridade, habilidade para conduzir motocicleta e desenvoltura para a prática criminosa, como a participação em reuniões de traficantes, não há que se falar em cerceamento de defesa decorrente da falta de laudo antropológico. IV. Precedentes do STJ e do STF. V. Para a aplicação do art. 56, parágrafo único, da Lei n.º 6.001/76, o qual se destina à proteção dos silvícolas, é necessária a verificação do grau de integração do índio à comunhão nacional. VI. Evidenciado, no caso dos autos, que paciente encontra-se integrado à sociedade, não há que se falar na concessão do regime especial de semiliberdade previsto no Estatuto do Índio, o qual é inaplicável, inclusive, aos condenados pela prática de crime hediondo ou equiparado, como ocorrido in casu. Precedentes. VII. Ordem denegada. (STJ, HC 30113/MA, 5ª Turma, Relator Ministro Gilson Dipp, j. 05.10.2004, DJ de 16.11.2004).

Esse mesmo caso chegou ao Supremo Tribunal Federal, órgão responsável por zelar pela aplicação dos princípios constitucionais que, numa interpretação completamente inconstitucional, reproduziu o mesmo fundamento assimilacionista utilizado pelo STJ: HABEAS CORPUS. CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES, ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO E PORTE ILEGAL DE ARMA PRATICADOS POR ÍNDIO. LAUDO ANTROPOLÓGICO.

DESNECESSIDADE. ATENUAÇÃO DA PENA E REGIME DE SEMILIBERDADE. 1. Índio condenado pelos crimes de tráfico de entorpecentes, associação para o tráfico e porte ilegal de arma de fogo. É dispensável o exame antropológico destinado a aferir o grau de integração do paciente na sociedade se o Juiz afirma sua imputabilidade plena com fundamento na avaliação do grau de escolaridade, da fluência na língua portuguesa e do nível de liderança exercida na quadrilha, entre outros elementos de convicção. Precedente. 2. Atenuação da pena (artigo 56 do Estatuto do Índio). Pretensão atendida na sentença. Prejudicialidade. 3. Regime de semiliberdade previsto no parágrafo único do artigo 56 da Lei n. 6.001/73. Direito conferido pela simples condição de se tratar de indígena. Ordem concedida em parte. (STF, HC 85.198-3/MA, 1ª Turma, Relator Ministro Eros Grau, j. 17.11.2005, DJ 09.12.2005) (grifo meu)

Nos autos do processo que deu ensejo a este julgado, a atual vice-Procuradora-Geral da República, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, à época Procuradora Regional no Estado do Maranhão, tentou demonstrar a imprescindibilidade do laudo antropológico sempre que houver indígena envolvido em ação penal, já que sem ele tornar-se-ia impossível ao julgador compreender, de forma inequívoca, a ocorrência dos fatos: “[...] a persecução criminal do Estado contra membros das comunidades indígenas haveria de se fazer em respeito à pluralidade étnica e cultural da nação brasileira, o que demandaria a necessária intervenção antropológica em todos os atos do processo.” Tal premissa, entretanto, foi rejeitada por unanimidade pela Turma julgadora, conforme voto do relator: Não são necessárias, aqui, avaliações psicológicas ou antropológicas. O grau de escolaridade, a fluência na língua portuguesa, o nível de liderança exercida na quadrilha, entre outros, formaram a convicção judicial de que o paciente era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito dos fatos ou determinar-se de acordo com esse entendimento. São, sem dúvida, circunstâncias que o colocam na condição de plenamente imputável. Daí ser dispensável o laudo pericial para comprovação de seu nível de integração na sociedade.

Entretanto, a polêmica do caso Raposa Serra do Sol levantou o interesse dos juristas sobre os direitos dos povos indígenas. Apesar do emblemático acórdão do STF ter utilizado diversos conceitos ultrapassados, como ‘silvícolas’, ‘aculturação’, etc., em contrapartida serviu para modificar o entendimento jurisprudencial sobre o alcance dos direitos dos indígenas, garantindo sua aplicação tanto aos indígenas residentes no campo quanto aos residentes na cidade, em especial o item 4 de sua ementa: [...] 4. O SIGNIFICADO DO SUBSTANTIVO ‘ÍNDIOS’ NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. O substantivo ‘índios’ é usado pela Constituição Federal de 1988 por um modo invariavelmente plural, para exprimir a diferenciação dos aborígenes por

numerosas etnias. Propósito constitucional de retratar uma diversidade indígena tanto interétnica quanto intra-étnica. Índios em processo de aculturação permanecem índios para o fim de proteção constitucional. Proteção constitucional que não se limita aos silvícolas, estes, sim, índios ainda em primitivo estádio de habitantes da selva. [...] (STF, Pet. 3.388, Pleno, Relator Ministro Carlos Ayres Brito, j. 19.03.2009, DJe 25.09.2009) (grifo meu)

Ao decidir que a proteção constitucional se aplica a indígenas independentemente do ‘grau de aculturação’ com a sociedade envolvente, apesar de utilizar um conceito superado pela Antropologia, o STF adota uma concepção de identidade indígena realmente de acordo com a legislação indigenista em vigor. Apesar de existirem diversos critérios acadêmicos de identificação indígena – como “a reunião de certas características físicas, a auto-identificação, a identidade comunitária, língua própria, seja ela pertencente a troncos linguísticos conhecidos como indígenas ou não, certos costumes e tradições, a investigação do parentesco e laudo antropológico” (Villares 2009: 28) – há dois dispositivos normativos responsáveis por estabelecer os critérios jurídicos: a Convenção 169 da OIT e o Estatuto do Índio. A Convenção 169, ao delimitar seu âmbito de aplicação nos itens 1, b e 2 de seu artigo 1º, estabelece critérios de identidade indígena: Artigo 1o 1. A presente convenção aplica-se: a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. 2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção. 3. A utilização do termo "povos" na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional.

Três são, portanto, os critérios de identidade indígena definidos pela Convenção 169: 1º Descender de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização; 2º Seja qual for a situação jurídica, conservar todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas; 3º Ter consciência de sua identidade indígena ou tribal.

Antes da Convenção, o Estatuto do Índio já definia, no inciso I de seu artigo 3º, critérios de identificação indígena: Art. 3º Para os efeitos de lei, ficam estabelecidas as definições a seguir discriminadas: I - Índio ou Silvícola - É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional; II - Comunidade Indígena ou Grupo Tribal - É um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem neles integrados.

São, portanto, três também os critérios definidos pelo Estatuto: 1º Ter origem e ascendência pré-colombiana; 2º Identificar-se e ser identificado por seu grupo étnico; 3º Pertencer a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional. Apesar de existir divergência entre a Convenção 169 e o Estatuto do Índio sobre a necessidade de identificação pela comunidade, além da autoidentificação, Luiz Fernando Villares acredita não existir incompatibilidade entre os dois dispositivos tendo o Estatuto sido recepcionado pela Constituição nesse item: Não parece que a Convenção 169 estabeleça a auto-identificação como o único critério prescrito. Para a Convenção, ‘a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos’. Ora, se é um critério fundamental, é o critério imprescindível, sem o qual uma pessoa não pode ser considerada como índio, então existem outros nãofundamentais, mas que são válidos. Por prever e permitir a existência de outros critérios, a Lei 6.001/73 não foi revogada. (2009: 31)

Em nenhum dos critérios previstos no ordenamento jurídico brasileiro, portanto, são determinantes para a identificação do indígena fatores tais como: residir na cidade, ter certo grau de escolaridade, fluência na língua portuguesa, habilidade para conduzir motocicleta, ser portador de documentos civis (como título de eleitor, RG, CPF), etc., fatores estes que, durante mais de 20 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, foram utilizados por nossos Tribunais para negar a identidade indígena e seus respectivos direitos e garantias. Entretanto, há cerca de um a dois anos, alguns Tribunais, como o STJ, que possuíam entendimento pacificado sobre a não aplicação de tratamento legal diferenciado aos indígenas ‘integrados’, passaram a adotar uma postura mais coerente com o atual sistema legal indigenista brasileiro, como se observa na ementa a seguir:

MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO. AÇÃO PENAL. INDÍGENA. ASSISTÊNCIA DA FUNAI. I. Índio denunciado por crime de tóxico que pede assistência da FUNAI, todavia recusada pelo Juiz ao entendimento de que por possuir documentos e viver na cidade o indígena está integrado. II. Habeas-corpus, Mandado de Segurança e Apelação, concomitantes, para reformar o indeferimento de assistência e liberdade provisória, e contra a condenação respectivamente. III. Mandado de Segurança que se conhece pois o indeferimento da assistência pleiteada pela FUNAI constitui ato administrativo para quem não é parte, dispensando a exigência de inexistência de recurso com efeito suspensivo. IV. Apuração da condição de indígena que deve observar a inteligência constitucional (art. 231 CF) e que não cabe à jurisdição criminal. V. Aferição do direito à assistência legal (art. 11-B, § 6º L. 9.028/95) pela autarquia fundacional que compete à Justiça Federal. VI. Recurso em mandado de segurança provido para anular o processo da ação penal desde a denúncia, bem como da sentença e do acórdão, pondo-se o réu em liberdade e remetendo-se os autos à Justiça Federal. (STJ, Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 30.675 - AM (2009/0200796-2), 5ª Turma, Relator Ministro Gilson Dipp, j. 22.11.2011, DJe 01.12.2011)

O caso acima trata de indígena pertencente ao povo Kokama preso em flagrante por posse de substância entorpecente a quem, mesmo após a realização de exame antropológico confirmando sua condição de indígena, foi negada a intervenção da FUNAI como sua assistente, sob a alegação de falta de legitimidade para representá-lo ou assisti-lo judicialmente por estar o réu ‘integrado’ à sociedade, possuindo título de eleitor, CPF, certificado de dispensa militar e outros documentos. Intervindo no processo como custos legis, o Ministério Público Federal emitiu o seguinte parecer sobre a identidade indígena do réu: Necessidade de aplicação das disposições do Estatuto do Índio em consonância com a nova ordem constitucional, que repele e até repulsa a política assimilacionista que o inspirou. Adoção, pelo juízo coator, de conceito cientificamente ultrapassado à luz da Antropologia, conduzindo a interpretações indevidas acerca dos povos indígenas e estimulando a homogeneização arbitrária de sua cultura. Irrelevância da posse de documentos de identificação civil (titulo de eleitor, carteira de reservista e CPF), os quais são próprios de cidadãos brasileiros, e, no caso de índios, sem se lhes exigir ou presumir o abandono das origens étnicas. Inconsistência do argumento de que a intervenção da FUNAI objetive livrar o índio de sua responsabilidade penal.

Em julgamento, a Quinta Turma do STJ, por unanimidade, deu provimento ao recurso, seguindo o voto do relator que entendeu que “tecnicamente, não se fala mais em índio dessa ou daquela condição de integração, mas simplesmente em índio ou não índio. E para a definição da condição de índio, a antropologia e a lei dão critérios para os quais é irrelevante o grau de integração.”

Ou seja, o mesmo Ministro Gilson Dipp que, em 2004, alegou ser possível dispensar o laudo antropológico para a verificação da condição de indígena quando circunstâncias, tais como “fluência na língua portuguesa, certo grau de escolaridade, habilidade para conduzir motocicleta e desenvoltura para a prática criminosa” forem suficientes para demonstrar que “não obstante ser índio, está integrado à sociedade e aos costumes da civilização” (STJ, HC 30113/MA, 5ª Turma, Relator Ministro Gilson Dipp, j. 05.10.2004, DJ de 16.11.2004), em 2011, alegou, em seu voto, que o art. 231 da CF, “relaciona a condição e direitos dos indígenas com a existência de organização, língua, crenças, usos e costumes próprios, pouco importando se são os índios mais ou menos familiarizados com os usos e costumes não índios, ou se possuem documentação e exercem direitos de cidadania não índia.” (STJ, Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 30.675 - AM (2009/0200796-2), 5ª Turma, Relator Ministro Gilson Dipp, j. 22.11.2011, DJe 01.12.2011) O que causa surpresa é o fato de terem sido necessários longos 23 anos para que o Excelentíssimo Ministro, o STJ e os demais tribunais brasileiros compreendessem que a legislação indigenista vigente deve ser interpretada em cotejo com a Constituição, em vigor desde 1988. A cidade como espaço de integração Mesmo não sendo recente a presença indígena nas cidades brasileiras, permanece no imaginário nacional a associação entre o indígena e o campo e o não indígena e a cidade, passando esta a ser vista como o espaço de ‘aculturamento’, onde o ‘índio deixa de ser índio’. Por isso, a ideia de ser indígena e viver na cidade soa como uma verdadeira contradição, apesar de atualmente 36,2% dos indígenas registrados no Brasil se localizarem em áreas urbanas (IBGE Censo 2010). Ainda assim, na maior parte dos casos, o poder público se recusa a reconhecer os direitos dos indígenas que vivem na cidade. Em alguns Estados, como Roraima, além dos critérios de identidade indígena elencados na legislação, outros critérios são utilizados para garantir o acesso às políticas públicas voltadas aos povos indígenas. O Registro Administrativo de Nascimento de Índio - RANI, expedido pela FUNAI, é documento de cunho administrativo, previsto pelo Estatuto do Índio, em seu artigo 13 (“Art. 13. Haverá livros próprios, no órgão competente de assistência, para o registro administrativo de nascimentos e óbitos dos índios, da cessação de sua incapacidade e dos casamentos contraídos segundo os costumes tribais.”) como um mecanismo de controle estatístico da

população indígena, para que o Estado possa melhor direcionar as políticas e serviços públicos destinados aos índios. Entretanto, tem sido utilizado como documento de identidade indígena exigido para o acesso a políticas públicas, como o acesso à educação e saúde indígenas. Por exemplo, a Universidade Federal de Roraima possui ação afirmativa voltada para o ingresso de indígenas no ensino superior, que consiste tanto na existência de cursos de graduação criados exclusivamente para indígenas (Licenciatura Intercultural, Gestão Territorial Indígena e Gestão em Saúde Coletiva Indígena) como na reserva de vagas para indígenas nos demais cursos de graduação. Em todos os casos, o requisito para participar dos respectivos processos seletivos é ter o RANI, e não o fato de ser indígena. O grande problema é que muitos indígenas que vivem na cidade encontram dificuldades para adquirir o RANI, por não serem reconhecidos como indígenas, situação que há muitos anos vem sendo enfrentada pela Organização dos Indígenas da Cidade - ODIC. Da mesma maneira, a inexistência de escolas indígenas nas cidades fere o direito à educação indígena diferenciada previsto constitucionalmente e afasta o indígena de sua realidade cultural. Mas o fator de maior vulnerabilidade para o indígena na cidade é o acesso à saúde, pois por ser indígena o SUS o encaminha para o atendimento especializado no âmbito do Subsistema de Saúde Indígena e este, por sua vez, recusa atendimento por se tratar de ‘índio não-aldeado’. Esta situação se tornou tão corriqueira para os indígenas que se encontram no contexto urbano, que exigiu a consolidação de jurisprudência do STJ como uma forma desesperada de resguardar o direito dos indígenas citadinos à saúde indígena: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PROTEÇÃO DOS ÍNDIOS. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM . INTERPRETAÇÃO DE NORMAS DE PROTEÇÃO DE SUJEITOS HIPERVULNERÁVEIS E DE BENS INDISPONÍVEIS. LEI 8.080/90 E DECRETO FEDERAL 3.156/99. SÚMULA 126/STJ. ART. 461 DO CPC. MULTA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDADE. 1. O Ministério Público Federal propôs Ação Civil Pública contra a União e a Funasa, objetivando garantir o acesso dos indígenas que não residem na Aldeia Xapecó à assistência médico-odontológica prestada na localidade, tendo obtido êxito na instância ordinária. [...] 4. A Lei 8.080/1990 e o Decreto 3.156/1999 estabelecem, no âmbito do SUS, um Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, financiado diretamente pela União e executado pela Funasa, que dá assistência aos índios em todo o território nacional, coletiva ou individualmente, e sem discriminações. [...] 7. O status de índio não depende do local em que se vive, já que, a ser diferente, estariam os indígenas ao desamparo, tão logo pusessem os pés fora de sua aldeia ou Reserva. Mostra-se ilegal e ilegítimo, pois, o discrímen utilizado pelos entes

públicos na operacionalização do serviço de saúde, ou seja, a distinção entre índios aldeados e outros que vivam foram da Reserva. Na proteção dos vulneráveis e, com maior ênfase, dos hipervulneráveis, na qual o legislador não os distingue, descabe ao juiz fazê-lo, exceto se for para ampliar a extensão, o grau e os remédios em favor dos sujeitos especialmente amparados. 8. O atendimento de saúde – integral, gratuito, incondicional, oportuno e de qualidade – aos índios caracteriza-se como dever de Estado da mais alta prioridade, seja porque imposto, de forma expressa e inequívoca, pela lei (dever legal), seja porque procura impedir a repetição de trágico e esquecido capítulo da nossa história (dever moral), em que as doenças (ao lado da escravidão e do extermínio físico, em luta de conquista por território) contribuíram decisivamente para o quase extermínio da população indígena brasileira. [...] (STJ, Recurso Especial nº 1.064.009 - SC (2008/0122737-7), 2ª Turma, Relator Ministro Herman Benjamin, j. 04.08.2009, DJe 27.04.2011) (grifo meu)

Observa-se que, ainda que tardiamente, os tribunais brasileiros começam a compreender os dilemas jurídicos dos indígenas na cidade e reconhecer que possuem o direito de residir onde bem entenderem e de ter acesso ao conhecimento, práticas e costumes dos não indígenas, sem que isso signifique abrir mão de sua identidade e de suas formas próprias de cultura. Conclusão A presença indígena nas cidades brasileiras não é um fenômeno recente. Desde a colonização, os índios foram brutalmente retirados de suas terras e empurrados para a cidade para trabalhar como mão-de-obra escrava ou barata. A existência de indígenas na cidade acirrou a relação destes com o Estado e outros grupos sociais, gerando situações contraditórias de preconceito e discriminação, por um lado, e de organização e fortalecimento dos movimentos indígenas de outro, que foram os principais responsáveis pelo reconhecimento da diferença e multiculturalidade por parte do direito brasileiro e internacional. Entretanto, apesar de hoje termos um verdadeiro sistema jurídico criado especificamente para a proteção dos direitos dos povos indígenas, composto pela Constituição Federal, pela Convenção 169 da OIT, pela Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Índigenas e por uma vasta legislação infraconstitucional, a realidade demonstra que os inegáveis avanços no reconhecimento de direitos não foram acompanhados de iguais avanços no exercício da cidadania, especialmente para os indígenas que vivem na cidade. No tocante ao Poder Judiciário, apesar de um atraso de 24 anos em relação à Constituição Federal vigente para a compreensão dos princípios constitucionais de proteção aos indígenas, a jurisprudência mais atual dos nossos Tribunais superiores demonstra que finalmente os operadores do Direito começam a entender que o estereótipo do índio

consagrado pelos livros didáticos e infantis de décadas passadas, e que ainda permanece no imaginário da sociedade brasileira, não mais existe. Por isso, o atual desafio dos indígenas na cidade hoje não se refere mais ao reconhecimento de direitos, mas sim à sua aplicação prática pelos órgãos estatais, pois muitas das normas de proteção ao indígena exigem, além da simples interpretação, uma atuação política incisiva que as torne efetivas, sob pena de se transformarem em letra morta.

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