NEOLIBERALISMO E SISTEMA PENAL BRASILEIRO: sobre os ventos que sopram do norte

May 23, 2017 | Autor: Clécio Lemos | Categoria: Criminologia, Direito Penal, Neoliberalismo, Politica Criminal
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LEMOS, Clécio; RIBEIRO JUNIOR, Humberto. Neoliberalismo e sistema penal brasileiro: sobre os ventos que sopram do norte. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, ano 20, n. 23/24, p. 185-222, 2016.

NEOLIBERALISMO E SISTEMA PENAL BRASILEIRO: sobre os ventos que sopram do norte.

Clécio José Morandi de Assis Lemos1 Humberto Ribeiro Júnior2

RESUMO Avalia a premissa de que a justiça criminal deve ser lida a partir da estrutura social concreta. Verifica a aplicabilidade de tal conhecimento na passagem para o Neoliberalismo nos EUA e Brasil, compreendendo as alterações políticas que o novo formato capitalista empreende nos campos econômico, social e penal. Conclui por demonstrar que o fenômeno do grande encarceramento ocorrido em ambos os países no final do século XX representa uma adequação do sistema penal ao novo contexto político-econômico. Palavras-chave: Neoliberalismo; Política; Prisão; Criminologia.

1. INTRODUÇÃO

É consenso nas ciências sociais e econômicas que surgiram a partir da década de 1980 as primeiras experiências do que se denominou chamar “Neoliberalismo”. 3 Dizer isto significa reconhecer que, em certos países, houve uma alteração relevante na forma de

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Doutorando em Direito pela PUC-Rio, Mestre em Direito pela UERJ. Correspondente do Instituto Carioca de Criminologia (ICC). Coordenador do IBCCRIM no Espírito Santo. 2 Doutor em Sociologia e Direito pela UFF (PPGDSD), Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela UFSC (PPGD), professor do programa de Mestrado em Segurança Pública da Universidade Vila Velha (PPGSPo/UVV). 3 Ressalte-se, contudo, que autores como Michel Foucault localizam o início das experiências neoliberais na reconstrução da Alemanha no Pós-Guerra, notadamente a partir das reformas implementadas por Ludwig Erhard na Alemanha Ocidental. Cf. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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conduzir o campo social, econômico e político. Um novo arranjo dentro da estrutura capitalista. Líderes mundiais desde o fim da guerra fria, foram justamente os EUA que tomaram a dianteira como principal experiência do modelo neoliberal, a partir do governo Ronald Reagan (1981-1989). Enquanto ao Brasil, há larga aceitação de que tal formato foi implementado a partir do presidente Fernando Collor de Melo (1990-1992), seguindo sobretudo a influência do formato estadunidense. Fato é que as reformas neoliberais implicaram em profundas mudanças políticas e econômicas em todos os Estados em que elas foram aplicadas, tais como: a redução dos investimentos sociais do Estado, a privatização de largos setores da economia, a redução do emprego e de garantias trabalhistas, aumento da concentração de renda, crescimento de monopólios e oligopólios, dentre outros. Todavia, considerando os estudos críticos sobre justiça criminal, é preciso questionar se tais transformações também geraram efeitos também no setor punitivo. Assim, como metodologia, tentaremos verificar a hipótese de que as alterações da ordem socioeconômica se refletem no setor penal. Se a premissa teórica crítica estiver correta, o novo arranjo neoliberal também deve representar um novo formato na economia do castigo. Dado seu destaque no cenário internacional, analisaremos quais são os traços do Neoliberalismo nos EUA e seus possíveis efeitos no sistema penal. Após, considerando a adesão do Brasil às linhas gerais do modelo político neoliberal, iremos verificar se existem semelhanças no setor penal a comprovar suficientemente a suposta relação levantada.

2. PUNIÇÃO E ESTRUTURA SOCIAL

Nas histórias dos pensamentos criminológicos, é possível perceber dois principais tipos de pesquisadores: aqueles que acreditam que as penas refletem apenas a racionalidade das teorias jurídicas e aqueles que acreditam que as penas refletem a estrutura social. Os criminólogos críticos sempre estiveram ao lado da segunda leitura. Ultrapassando o paradigma etiológico da ontologização do crime, e aderindo à constatação de que a etiqueta “crime” é um instrumento político, há uma tradição científica que entende só ser possível compreender as políticas criminais concretas a partir do jogo de poder instituído no seio social. Em outras palavras, não é a implantação das “descobertas” jurídico-filosóficas que guia os sistemas penais, mas em verdade os sistemas penais se amoldam às estruturas sociais

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manejadas. A teoria jurídica vem atender à “demanda por ordem”, 4 pois ela serve para viabilizar e legitimar as teias de poder necessárias à satisfação dos grupos que estão na dianteira política. Se isso for verdade, as alterações relevantes dos sistemas penais só podem ser entendidas a partir de guinadas nas estruturas socioeconômicas. E sempre que houver uma alteração relevante na conjuntura política de determinado local, haverá uma tendência de mudança importante no setor punitivo. Os primeiros a produzirem um trabalho científico com foco específico em tal correlação foram George Rusche (1900-1950) e Otto Kirchheimer (1905-1965), com a publicação paradigmática da obra “Punição e estrutura social” em 1939. Segundo estes representantes da Escola de Frankfurt, a abordagem das penas não pode entendida a partir de “evoluções teóricas”, mas a partir das relações de produção. As práticas penais devem ser encaradas como braços do sistema político: A transformação em sistemas penais não pode ser explicada somente pela mudança das demandas da luta contra o crime, embora esta luta faça parte do jogo. Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção. É, pois, necessário pesquisar a origem e a força dos sistemas penais, o uso e a rejeição de certas punições e a intensidade das práticas penais, uma vez que elas são determinadas por forças sociais, sobretudo pelas forças econômicas e, consequentemente, fiscais.5

Sendo assim, o poder punitivo só se torna compreensível diante da visão da trama de poder que o Estado permite/viabiliza. É bem advertir que a denominação “estrutura social” não afasta o caráter dinâmico constante das disputas de poder que ocorrem em qualquer local. Restam aqui fundamentais todas as forças de trabalho e riqueza, todo esse complexo mecanismo de controle e distribuição de bens. Explica Vera Andrade: Trata-se então de romper com este enfoque jurídico abstrato, no qual a pena é concebida como epifenômeno do crime (seja como retribuição proporcionada a ele ou como sua prevenção) para recolocá-la no marco da relação histórica entre os diversos sistemas punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam, desde a escravidão, passando pelo feudalismo e, em especial, a relação entre o modo de produção capitalista e a afirmação da prisão, a partir do final do século XVIII, como

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BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 22. RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 20. 5

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método punitivo central. A pena, superestrutura punitiva, é vinculada à estrutura econômica da sociedade e a partir dela é explicada.6

Situar a atuação da gramática punitiva no campo de batalha material é um toque crucial nas análises críticas de justiça criminal. Controlar o crime, em outras palavras, também é uma metáfora para conformar a população a uma condição de poder socioeconômico.7 Uma das mais importantes obras da história dos pensamentos criminológicos ganhou destaque justamente por demonstrar a relação entre o surgimento da prisão como modelo fundamental de punição e o advento da revolução industrial. “Vigiar e Punir” (1975) foi a maior contribuição do filósofo Michel Foucault para a compreensão do sistema penal moderno, justamente investigando o nascimento das prisões e sua correlação com os novos rumos da sociedade capitalista.8 Percebe o autor que a prisão se torna a pena por excelência no século XVIII porque refletia a essência de uma rede de instituições fundamentais para a instauração do novo regime capitalista. Portanto, a ascensão da prisão não pode ser explicada por uma “evolução” racional e humanitária das teorias jurídicas da pena, mas como um novo instrumento institucional coerente com o regime de subjetivações importantes para a nova arquitetura política. Trata-se de recolocar as técnicas punitivas – quer elas se apossem do corpo no ritual dos suplícios, que se dirijam à alma – na história desse corpo político. Considerar as práticas penais mais como um capítulo da anatomia política, do que uma consequência das teorias jurídicas.9

Analisando a fase do “grande internamento”, Foucault percebe que o modelo de instituições completas e austeras (controle do tempo, espaço e modo de agir) só se apresenta no sistema penal porque é um elo de continuidade na grande rede feita a fim de docilizar os corpos para o novo sistema produtivo. 6

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 193. 7 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 3. Ed. Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2008, p. 125. 8 Deve-se destacar, no entanto, que mesmo que Foucault tenha se aproveitado direta e explicitamente dos estudos de Rusche e Kirchheimer no sentido de perceber os sistemas punitivos concretos como fenômenos sociais relacionados diretamente com o sistema produtivo em que se inserem, para ele, ainda que esta interpretação estivesse correta, ela não era suficiente para compreender toda a economia política da punição. Neste sentido, ele vai mais além para tentar compreender como o corpo passa a ser investido por relações de poder. Tanto que Foucault estabelece como um dos objetivos de sua obra Vigiar e Punir justamente “analisar os métodos punitivos não como simples consequências de regras de direito ou como indicadores de estruturas sociais; mas como técnicas que têm sua especificidade no campo mais geral de outros processos de poder. Adotar em relação aos castigos a perspectiva da tática política”. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 38 ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 24. 9 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 38 ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 28.

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Tomando como base expressamente o trabalho de Rusche e Kirchheimer, o autor francês marca a historiografia das penas com a tese robusta de que o sistema penal moderno de encarceramento só pode ser entendido a partir da importância do poder disciplinar para o novo formato econômico. Era preciso sujeitar as ínfimas partes, as minúcias, e assim a prisão vem cumprir um papel na gestão social. Foucault identifica nesta modificação europeia dos séculos XVIII e XIX uma nova forma de dominação pela pena, moldando corpos dóceis para a fábrica, capturando subjetividades submissas ao modo de produção industrial (do corpo à alma). A função real era docilizar as mãos proletárias para o trabalho assalariado fabril. O papel de normalização da prisão é uma chave fundamental para entender como se operou sua fixação definitiva como punição estatal. Segundo as linhas foucaultianas, o cárcere como modalidade punitiva só ganha sentido quando posta diante dos rupturas necessárias à nova roupagem do modo de produção. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. 10

Desta forma, a premissa teórica aqui estabelecida considera que há uma correlação inafastável entre as práticas penais e as alterações político-econômicas. Eis que o sistema penal é sempre uma ferramenta na trama de poder, e vem funcionar como uma válvula na economia das ilicitudes para garantir uma continuidade nas relações sociais desejadas. Sendo isto verdade, é de se esperar que uma alteração importante no sistema capitalista surta efeitos também no campo punitivo. Neste sentido, cabe verificar quais alterações se produziram no setor socioeconômico do Neoliberalismo nos EUA e Brasil. Posteriormente, considerando que o crime e a pena entes políticos, resta investigar quais alterações se produziram no setor penal destes países.

3. NEOLIBERALISMO NORTE-AMERICANO

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 38 ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 25.

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O historiador Perry Anderson11 explica que o Neoliberalismo tem sua origem na obra “O caminho da servidão” (1944), de Friedrich Hayek (1899-1992). Este economista austríaco, fundador da “Sociedade de Mont Pèlerin”12 na Suíça, levantava-se contra as teorias de John Maynard Keynes (1883-1946), que predominavam no seio do dito Estado de bem-estar social. Sua obra se insere em um contexto de

foram possíveis no contexto de uma

reelaboração profunda da doutrina liberal. Na verdade, existem uma série de processos e de discursos que vinham sendo formados desde o período da República de Weimar e que viram a ser as bases sobre as quais estavam situadas as reflexões destes novos economistas e juristas.13 Hayek representa um liberalismo renovado em torno do fim da Segunda Guerra Mundial, indicando uma reação contra o Estado intervencionista que era a essência das políticas econômicas do capitalismo central da primeira metade do século XX. Sem dúvida ele foi o elo que conectou as compreensões alemã e estadunidense do neoliberalismo e talvez um dos maiores influenciadores desta última.14 No entanto, ainda que esta nova concepção de liberalismo tivesse sua gênese neste período, a reconstrução da Europa ocidental no pós-guerra foi marcada fortemente pela ascensão do keynesianismo que culminaram na solidificação do chamado Estado de BemEstar Social. Neste sentido, as propostas de um não intervencionismo mais radical ficariam sem maior aceitação no mundo acadêmico e prático por aproximadamente três décadas, quando então certos acontecimentos promoveram impactos relevantes na macroeconomia. O ano de 1973 é geralmente lembrado como um estopim da fase de recessão econômica enfrentada em escala mundial. Neste ano, ocorreu o “choque do petróleo”, momento em que a OPEP elevou vertiginosamente o preço do petróleo,15 deflagrando um

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ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo. (coord.) Pósneoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 9. 12 Dentre os principais participantes, estavam: Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Michael Polanyi e Walter Lipman. 13 Estes intelectuais que estavam por detrás da construção de um novo sentido para a governamentalidade baseada no mercado ficaram conhecidos como Ordoliberais por conta de sua participação na Revista Ordo, cuja primeira edição se deu em 1948. Destacam-se neste processo Walter Eucken, Franz Böhm, Müller-Armack, além do próprio Friedrich Hayek. Cf. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 14 Como informa Foucault: “Há um personagem evidentemente importantíssimo [...] cuja trajetória foi afinal importantíssima na definição do neoliberalismo contemporâneo. É alguém que veio da Áustria, um austríaco, von Hayek. Veio da Áustria, veio do neoliberalismo, emigra no momento do Anschluss ou pouco antes do Anschluss. Vai para a Inglaterra. Vai também para os Estados Unidos. Ele foi, manifestamente, um dos inspiradores do liberalismo americano contemporâneo, ou do anarcocapitalismo, se preferirem, e volta para a Alemanha em 1962, sendo nomeado professor em Friburgo. Assim o círculo está fechado”. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 143. 15 O valor do barril de petróleo saltou de US$ 2,90 para US$ 11,65.

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aumento em cadeia dos preços das mercadorias, dos impostos, das dívidas e das taxas de juros. Há quem defenda, todavia, que a derrocada do modelo keynesiano seguia uma linha natural dos ciclos capitalistas, eis que o “Welfare” somente havia se sustentado no período do pós-guerra em função do aquecimento econômico propiciado pela reconstrução da Europa e pelo investimento maciço no complexo industrial-militar na Guerra Fria.16 A inflação e a desaceleração econômica teriam propiciado o campo fértil para a aceitação das teorias neoliberais, que exploravam a incapacidade do Estado de bem-estar em administrar adequadamente o capitalismo, diante de seus enormes custos e sua grande interferência na livre circulação de valores e serviços. As baixas taxas de crescimento combinadas com as altas taxas de inflação soavam como evidência de que era preciso eleger novas diretrizes econômicas. A primeira experiência real de implantação do neoliberalismo acabou sendo o Chile de Augusto Pinochet, ainda em 1973. Logo após o golpe militar que destituiu e matou Salvador Allende, o general instituiu o laboratório vivo dos Chicago-boys de Milton Friedman.17 A contrarrevolução política e econômica alcançaria o primeiro mundo no berço do capitalismo industrial: a Inglaterra. Precisamente no ano de 1979, Margareth Thatcher 18 assume o poder e implanta um regime fiel aos postulados teóricos da filosofia econômica ultraliberal. A corrente se expande e ganha terreno na maior potência capitalista do planeta. Logo em 1980, Ronald Reagan19 é eleito presidente dos Estados Unidos da América, na linha do discurso politicamente conservador e economicamente liberal. É a partir deste país que então se inicia a maior experiência de Estado neoliberal já existente. Ainda seria de se lembrar a vitória do Neoliberalismo na Alemanha em 1982, com a liderança de Helmut Kohl20, e na Dinamarca em 1983, com Poul Schluter21. A esta altura, o discurso se expande em escala internacional e dá partida a profundas modificações no contexto geopolítico. De uma forma geral, as modificações econômicas promovidas a partir deste período encontram uma constante que pode ser assim sintetizada: emissão monetária, elevação das taxas de juros, baixa drástica dos impostos sobre os rendimentos altos, abolição MÉSZÁROS, István. O século XXI – socialismo ou barbárie? São Paulo: Boitempo, 2009, p. 96. KLEIN, Naomi. A doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 98. 18 Primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990. 19 Presidente dos Estados Unidos de 1981 a 1989. 20 Chanceler da Alemanha de 1982 a 1998. 21 Chanceler da Dinamarca de 1982 a 1993. 16 17

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dos controles sobre os fluxos financeiros, corte de gastos públicos sociais e processos de privatização. 22 Segundo o economista brasileiro José Luís Fiori, a ordem capitalista neoliberal apresenta 7 dimensões fundamentais, a saber: 1) monopólio geopolítico do império anglosaxão; 2) controle ideológico conservador do pensamento único neoliberal; 3) impacto econômico-financeiro representado pela globalização, desregulação de mercados, finança mundial privada e desregulada; 4) aumento da produtividade e lucratividade decorrente da revolução tecnológica; 5) desemprego estrutural e precarização do trabalho; 6) fortalecimento dos organismos internacionais (FMI, Banco Mundial) em função da renegociação das dívidas dos países periféricos; e 7) fragilização do papel dos Estados Nacionais.23 Uma característica fundamental da era neoliberal foi inegavelmente a chamada globalização. Tal termo está na maioria das vezes vinculado à expansão das fronteiras (ou sua quebra) propiciado pelo livre fluxo de capitais e serviços em escala internacional, ao ensejo da revolução tecnológica na comunicação e nos transportes. Empresas multinacionais, com ramificações que exploram o mercado interno e externo, são a cara da nova era, promovendo efeitos nos padrões de controle nacional da economia, como explica Celso Furtado: O processo atual de globalização a que assistimos desarticula a ação sincrônica dessas forças que garantiram no passado o dinamismo dos sistemas econômicos nacionais. Quanto mais as empresas se globalizam, quanto mais escapam da ação reguladora do Estado, mais tendem a se apoiar nos mercados externos para crescer. Ao mesmo tempo, as iniciativas dos empresários tendem a fugir do controle das instâncias políticas. Voltamos assim ao modelo do capitalismo original, cuja dinâmica se baseava nas exportações e nos investimentos no estrangeiro. 24

A revolução tecnológica do último quarto do século XX permitiu expandir a produção, sobretudo com o uso da robótica. Ao mesmo tempo, a substituição de trabalhadores por máquinas reduziu custos ao cortar despesas trabalhistas e previdenciárias. Um fenômeno comum também no âmbito das grandes empresas norte-americanas, para diminuir custos e maximizar receitas, foi deslocar as esteiras de produção para países periféricos, onde a mão de obra é farta e não encontra as “inconvenientes” despesas laborais do primeiro mundo. Tratava-se da internacionalização da produção, conhecida como outsourcing. 22

ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo. (coord.) Pósneoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 12. 23 FIORI, José Luís. 60 lições dos 90. 2. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 96-103. 24 FURTADO, Celso. O capitalismo global. 6. Ed. São Paulo: Paz e terra, 2006, p. 29.

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Não é árduo verificar que empresas assim passaram a ganhar fatias cada vez maiores do mercado, agora que as fronteiras econômicas internacionais já praticamente não existiam. Conjugando alta tecnologia de produção e baixo custo, desconhecendo barreiras, as multinacionais se tornaram uma realidade cada vez mais proeminente no cenário mundial a partir da década de 1980. O fluxo transnacional de capitais encontrava campo mais atrativo a partir de modificações relevantes na economia mundial, minando progressivamente o controle nacional. Um facilitador deste processo teria sido a ruptura do padrão-ouro no regime cambial promovido pelos EUA em 1971, rompendo com os ditames de Bretton Woods. Certo é que a desregulação dos mercados financeiros era a proposta forte do enredo neoliberal, mensagem esta propagada e reiterada pelos EUA. O poder econômico internacional ascende, direcionando ao declínio do poder político dos países, sobretudo do “terceiro mundo”. 25 Franqueando o livre ingresso de capitais internacionais, os países nitidamente perderam boa parte de seu controle no setor econômico. As cúpulas diretivas das grandes empresas praticamente passaram a se confundir com gestores públicos. A procura insubmissa por maiores lucros propiciada pela exploração dos mercados externos e por mão de obra barata foi o caminho certeiro para as grandes empresas do período neoliberal, mas isto não tardaria para gerar efeitos em escala nunca antes vista. Aliás, Marildo Menegat 26 reforça o entendimento de que a globalização gera intensificação e flexibilização da acumulação de capital, acelerando a transferência de riqueza dos países periféricos para os centrais. A liberdade promovida pela quebra das fronteiras econômicas teria propiciado o que David Garland apelidou de “fundamentalismo de mercado”, seguindo uma espécie de fé inabalável na competição e livre iniciativa. Reverteu-se a preocupação com as soluções solidárias do Estado previdenciário.27 Ademais, a volatilidade dos investimentos em bolsas e atividades financeiras constituiu parte importante da grande rede mundial de mudanças do capital neste período, extrapolando fronteiras livremente, agenciando investimentos e facilitando o lucro. 28 A nova

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MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 95. 26 MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 92. 27 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 216. 28 Nas palavras de Chomsky, “em 1971, 90 por cento das transações financeiras internacionais tinham alguma relação com a economia real – comércio e investimentos de longo prazo – e 10 por cento eram especulativas. Em 1990, essa proporção se inverteu e, por volta de 1995, cerca de 95 por cento de um valor total imensamente

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obsessão era por um Estado “enxuto”, ou Governo “mínimo”. Em outras palavras, a ideia passa a ser transformar o Estado numa grande empresa de sucesso, reduzindo custos e maximizando receitas, a dissolver o modelo fordista-keynesiano. A nova política econômica toma a dianteira nas eleições nos países centrais do capitalismo a partir da década de 1980, galgando a lacuna explicativa acerca do suposto insucesso do Estado de bem-estar social desde a década passada. Com eles, uma forte ideologia forjou a inevitabilidade da modificação para um Estado desregulado na economia e reduzido nas políticas sociais. Não por outro motivo a “dama de ferro”, Thatcher, cunhou a frase replicada pelos quatro cantos do planeta: “There is no alternative”. Mas foi sobretudo na década de 1990 e nos países da periferia capitalista, que passaram a ser chamados – nos meios financeiros – de ‘mercados emergentes’, que a frase da sra. Thatcher se transformou num verdadeiro álibi, repetido pelos seus governantes, pela sua imprensa e por uma parcela significativa dos seus intelectuais. A justificativa utilizada, em última instância, por todos que aderiram ou se submeteram ao programa de reformas e políticas neoliberais impostas, segundo eles, pela inexorabilidade tecnológica e econômica da globalização. 29

Entretanto, foi nos EUA que a máquina de propaganda do Estado neoliberal chegou a proclamar que a boa nova levava o planeta ao “fim da história”, 30 em que já estariam suplantadas todas as outras vias do passado recente, como o comunismo ou o Welfare State. Além de implantar a nova pauta político-econômica, era preciso que o mundo realmente acreditasse na “salvação eterna”. Desta feita, os militantes produziram o consenso do grande sucesso da virada ultraliberal, permitindo a aceitação mansa da nova política.31 Os Estados Unidos da América tornaram-se os verdadeiros líderes nessa propaganda do novo estilo de governar a economia, mesmo porque contavam com o forte auxílio coator do Fundo Monetário Internacional – FMI – e do Banco Mundial para impor a desregulação de mercados internacionais que tanto interessava às suas empresas. A geopolítica mundial no período propiciou a expansão da economia norte-americana, facilitada também pelo fim das barreiras do bloco socialista, que foi sendo minado durante a década de 1980 até ruir junto com o muro de Berlim em 1989. É de se destacar igualmente o avanço do capital dos EUA sobre a América Latina, tomando largas fatias dos mercados com

maior era de natureza especulativa”. CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas: neoliberalismo e ordem global. 6. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 26. 29 FIORI, José Luís. 60 lições dos 90. 2. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 106. 30 A expressão se tornou mundialmente conhecida com o livro “The end of the history and the last man” (O fim da história e o último homem), do norte-americano Francis Fukuyama, publicado em 1992. 31 SODRÉ, Nelson Werneck. A farsa do neoliberalismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Graphia, 1996, p. 4.

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seus produtos high-tech e de baixo custo, na medida em que o livre-mercado vinha sendo assimilado como único caminho para seguir o exemplo que vem do norte. Por tudo, a economia dos EUA ganha status de grande voz do Neoliberalismo, perfazendo um verdadeiro mundo unipolar. Seu monopólio dispara a economia na década de 1990, permitindo índices exemplares de crescimento. Logicamente, os números do “sucesso” do capitalismo pós-industrial norte-americano são vendidos ao mundo todo. O dinheiro yankee avança material e simbolicamente sobre o mapa-mundi. Mas ainda é preciso perceber que o projeto econômico traz seu correlato social. O outro lado desta escalada econômica globalizada foram os efeitos evidentes na política social, resultando no que Wacquant chamou de quadro de “insegurança social”. 32 O primeiro ponto a ser destacado são as mudanças no mercado de trabalho, dois fenômenos passaram a ser típicos nesta guinada: o desemprego estrutural e a precarização dos vínculos. Não é preciso muito para compreender que a revolução tecnocientífica, alavancada pela computação e pela mecanização, suprimiu uma série de vagas da antiga esteira fordista. Além disto, o deslocamento dos complexos industriais em busca do trabalho desprotegido nos países periféricos, sobretudo no leste asiático, deixaria um vácuo dificilmente superável. O novo liberalismo estatal fortaleceu o capital a ponto de forçar a dita “flexibilização”, aplaudida como boa nova da produção ágil e revigorada. A nova horda de desempregados e a concorrência globalizada pelos postos de trabalho fragilizou o trabalhador nesta disputa. Loïc Wacquant, analisando estes fenômenos em países como Estados Unidos, Reino Unido e Nova Zelândia, destaca o fato de que o processo de ampla demissão foi ladeado por uma corrente de enfraquecimento das leis trabalhistas e dos sindicatos, a ensejar a precarização do vínculo empregatício tão interessante ao lucro. Mesmo os que obtinham assistência social do Estado passaram a ser incluídos em programas de trabalho forçado (workfare). 33 É imprescindível a contribuição de Nelson Werneck Sodré neste ponto: O desemprego, que acompanha, indivisivelmente, as medidas defendidas e praticadas pelos adeptos do neoliberalismo, que resulta de cada uma das mudanças operadas, particularmente das privatizações, faz crescer desmedidamente, de forma absolutamente anti-social, o exército de reserva que é acólito do avanço capitalista e que, para ele, funciona como espécie de seguro de força de trabalho, sempre disponível para as rápidas fases de euforia e disponível, de forma terrível, para as

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WACQUANT, Loïc. Apêndice teórico: um esboço do Estado neoliberal. In: Discursos sediciosos. Rio de Janeiro, 1º e 2º sem. 2010, ano 15, n. 17/18, p. 148. 33 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p.77.

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fases de crise e penúria, que pontilham o desenvolvimento capitalista e que, com o neoliberalismo, são levadas às últimas consequências. 34

A tão defendida precarização do trabalho calhou por sufragar uma série de conquistas dos empregados alcançadas ao longo de muitos anos de Estado de bem-estar. Garantias trabalhistas e estabilidade de vínculo paulatinamente foram atacadas pela nova lógica da “multidão produtiva”, que se quer “flexível, nômade, móvel”, como frisa Alessandro de Giorgi.35 Segundo o autor italiano, o capital global pós-fordista rompe a dinâmica salarial do período keynesiano, agora com um Estado cada vez mais ausente na busca do equilíbrio nas relações produtivas. Todos estes fenômenos compõem o pacote de efeitos da desregulamentação no bojo neoliberal, mobilizado pela retração do Welfare State norte-americano. Este teria sido o cerne da nova política econômica, ficando distante o período do “pleno emprego”, da segurança previdenciária, do fortalecimento dos sindicatos, do aumento nos níveis salariais, da tributação proporcional, características típicas das décadas anteriores. Arrematando de forma lúcida, Fiori reforça os traços essenciais do rastro já acumulado pelo neoliberalismo: Os resultados de suas políticas hoje já são mais do que claros: aumento dos encargos públicos financeiros, queda das taxas de investimento e crescimento, deterioração das contas externas, concentração da riqueza e do controle dos mercados, redução da participação do salário na renda, aumento do desemprego e do subemprego. 36

A crença na boa nova do livre mercado tem se demonstrado avassaladora, promotora da “destruição” do emprego, de um individualismo nocivo e de rígidas desigualdades sociais. A já narrada afetação no mundo do trabalho encaminhou desemprego e precarização crônicas, mas tal programa social ganhou feições drásticas quando foram conjugadas com a abstenção do Estado na política social.37 Num mundo predominantemente capitalista, a perda do trabalho representa estar desguarnecido, amplamente vulnerável ao mundo, sem acesso ao mínimo existencial. Colaboram as palavras de Ricardo Antunes: O neoliberalismo e a reestruturação produtiva da era do toyotismo e da era da acumulação flexível, dotados de forte caráter destrutivo, têm acarretado, entre tantos aspectos nefastos, um monumental desemprego que atinge a humanidade que trabalha em escala globalizada. Do Japão aos Estados Unidos, da Inglaterra à Espanha, do Brasil à Argentina, quanto mais se avança na competitividade e na 34

SODRÉ, Nelson Werneck. A farsa do neoliberalismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Graphia, 1996, p. 23. GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 70. 36 FIORI, José Luís. 60 lições dos 90. 2. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 60. 37 SODRÉ, Nelson Werneck. A farsa do neoliberalismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Graphia, 1996, p. 120. 35

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“integração mundial”, mais explosivas tornam-se as taxas de exclusão e desemprego. 38

Uma ampla bibliografia demonstra que a nova estética social passa a ser composta por um individualismo exacerbado. No mundo das regras de concorrência selvagem, onde vigora o “que vença o melhor”, o afunilamento das chances reforça uma competitividade sem limites, em que apenas os vencedores conseguem chegar ao status de consumidor. O clima de insegurança diante da nova lógica do mercado parece ser ofuscado pelas elites por meio dos discursos de meritocracia, supostamente vantajosa para a elevação da qualidade produtiva diante da concorrência pelo emprego. Mas nesta disputa é inevitável que haja perdedores. 39 Gershon é certeira em verificar no empreendedorismo individualista o traço fundamental da “agência neoliberal”. A novidade na nova subjetividade está calcada na percepção das pessoas como empresas, passíveis de se aprimorar a qualquer momento e de serem responsabilizadas no jogo contínuo do risco. De acordo com a perspectiva neoliberal, para prosperar, deve-se lidar com o risco. Todas as estratégias sociais neoliberais se centram nisto. Gerenciar riscos enquadra como os agentes neoliberais são orientados para o futuro. E está implícito nesta orientação que agentes neoliberais são responsáveis por seus futuros – eles supostamente moldam seus próprios futuros por meio de suas decisões. Pela mesma simbologia, a despeito das desvantagens e do desigual campo de batalha, os atores são sujeitados à máxima responsabilização por seus fracassos. 40

Há então uma espécie de “individualismo sem indivíduo” 41 , uma tentativa de naturalização do sucesso individual que na verdade só pode ser alcançado por poucos. É a barbárie cotidiana que não pode ser vista como insuportável. A dominação pelo livre mercado e o afastamento das medidas assistenciais fizeram do novo Estado um propagador (por imposição) da responsabilidade individual aguda, ao passo em que decai a responsabilidade coletiva. O governo não se vê mais na função política de proteção social, propiciando com seu silêncio uma espécie de neodarwinismo em que só o indivíduo pode se salvar. Fazendo essa correlação entre o novo individualismo e o mercado de trabalho, vale ler a contribuição de Pierre Bourdieu: A instituição prática de um mundo darwinista de luta de todos contra todos, em todos os níveis da hierarquia, que encontra as dinâmicas da adesão à tarefa e à

38

ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC e Lula). 2. Ed. Campinas: Autores Associados, 2005, p. 48. 39 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 192. 40 GERSHON, Ilana. Neoliberal agency. Current Anthropology, vol. 52, n. 4, Aug. 2011, p. 540. 41 MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 96.

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empresa na insegurança, no sofrimento e no stress, não poderia triunfar tão completamente se não contasse com a cumplicidade das disposições precarizadas que produzem a insegurança e a existência, em todos os níveis da hierarquia, e mesmo nos níveis mais elevados, especialmente entre os técnicos superiores, de um exército de reserva de mão de obra docilizada pela precarização e pela ameaça permanente do desemprego. O fundamento último de toda esta ordem econômica colocada sob o signo da liberdade é, com efeito, a violência estrutural do desemprego, da precariedade e da ameaça de despedimento que ela implica: a condição

do

funcionamento

“harmonioso”

do

modelo

microeconômico

individualista é um fenômeno de massas, a existência do exército de reserva dos desempregados.42

O mal-estar neoliberal é explicado por Vera Malaguti Batista com precisão, detectando a inerente deficiência na percepção da alteridade: Neste nosso mundo, com a “auto-exaltação desmesurada da individualidade” ou o individualismo possessivo, a impossibilidade de se descentrar de si implica na impossibilidade de enxergar o outro. É neste contexto, onde o lobo do homem hobbesiano hegemoniza o mundo globalizado (na verdade, uma ilha cercada de africanos, chineses, hindus, americanos do sul e muçulmanos), que se intensificam as relações sado-masoquistas, relações de servidão.43

Entretanto, além das novas subjetividades encetadas pelos discursos ideológicos, as desigualdades sociais tornaram-se agudas no mundo neoliberal, como em poucas épocas da humanidade. As narrativas das ciências sociais indicam que a partir da década de 1980 o mundo capitalista vem enfrentando um incremento na distância que separa as classes sociais. A concentração de renda e a miséria alastrada propicia um ambiente “defensivo, ambivalente e inseguro”.44 Uma sociedade cada vez mais dual é lapidada, o que Atilio Boron chamaria de “apartheid social”45. De um lado se encontra um discreto grupo de integrados, de outro lado há um amplo setor de excluídos. A pobreza estrutural passa a ser um fenômeno incontestável em todos os locais abraçados pela corrente neoliberal, uma massa de miseráveis imprestáveis ao mercado não encontra mais meios de se incluir, cujo exemplo máximo ocorre em território norte-americano.

42

BOURDIEU, Pierre. A essência do neoliberalismo. In: Revés do Avesso, abril. 1998, n. 4, p. 20. MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 86. 44 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 218. 45 SADER, Emir; GENTILI, Pablo. (coord.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 146. 43

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A pobreza ganha peso diferenciado quando o Estado passa a unir sua negligência na proteção dos trabalhadores e liberalização econômica com uma retração nas políticas assistenciais, calhando num déficit social que se avoluma no período. A nova organização pode ser conhecida como Estado Centauro, nas palavras de Wacquant: Estado centauro, liberal no topo e paternalista na base, que apresenta faces radicalmente diferentes nas duas extremidades da hierarquia social: uma fachada simpática e gentil em relação às classes média e superior, e uma cara temível e carrancuda para com a classe baixa.46

A contenção dos gastos públicos acabou recaindo sobre as costas dos miseráveis, sendo que as vantagens do novo modelo só agraciaram uma parcela mínima da sociedade, aquela referente às classes altas. A partir da década de 1980 há uma contínua regressão nas políticas assistenciais, retirando-se uma série de benefícios destinados à redução da pobreza.47 Três foram as formas principais de redução das políticas assistenciais: corte nos valores, criação de obstáculos para obtenção e eliminação de programas. Como exemplo prático, entre 1979 e 1989, o governo norte-americano operou uma redução de 41% no orçamento destinado à assistência social, enquanto na outra mão elevou os créditos penitenciários em 95%.48 A polarização social, produto do cenário de crescimento das desigualdades vertiginosas, produz uma conflitividade social renovada, cabe reforçar: Os níveis de segurança urbana têm baixado consideravelmente nas sociedades que adotam o modelo do fundamentalismo de mercado, porque polariza riqueza, produz um crescente número de desempregados e marginalizados, deteriora os serviços sociais e públicos, difunde valores culturais egoístas, divulga a tecnologia lesiva, gera vivências de exclusão que impedem qualquer projeto existencial razoável, aprofunda os antagonismos sociais e, em suma, potencializa toda a conflituosidade social.49

Até por isso, diante das enormes disparidades de acesso aos bens e serviços, restam mais nítidas as barreiras criadas a fim de separar os que têm e os que querem ter. Tal fronteira compõe o cenário primordial das cidades, dos ofendículos e muros que sobem a todo instante. Crescem as distâncias físicas e as distâncias subculturais.

46

WACQUANT, Loïc. Apêndice teórico: um esboço do Estado neoliberal. In: Discursos sediciosos. Rio de Janeiro, 1º e 2º sem. 2010, ano 15, n. 17/18, p. 155. 47 GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 9497. 48 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 88. 49 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 633.

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Este retrato da sociedade do capitalismo tardio dos EUA é traduzido por Jock Young como uma transição da sociedade inclusiva para a sociedade excludente. Troca-se a cultura de incorporação por uma de separação.50 Portanto, se a tônica do estado de bem-estar era incluir de forma positiva faixas cada vez mais extensas da sociedade, como a classe operária, as mulheres e os jovens, no Neoliberalismo a ordem é controlar para excluir. Em outras palavras, a cultura vigente inclui simbolicamente através da mídia, educação e mercado, vendendo um estilo de vida, mas rejeita na prática cotidiana quando afirma que o caminho não é acessível a todos. Para explicar tal ocorrência, Young então resgata uma interessante metáfora idealizada pelo sociólogo Robert Merton, em que o processo de exclusão social funciona como a bulimia: o sujeito é incluído nos valores culturais (engolido) para logo em seguida ser excluído do acesso ao que lhe é fundamental na estrutura social (regurgitado).51 Melhor explicando, há inclusão cultural e exclusão estrutural. A sociedade “devora” o sujeito com valores (individualismo, meritocracia, valorização pelo dinheiro) e “vomita” a maioria que socialmente está inviabilizada de adquirir o status desejado. Neste estágio neoliberal, os dados sociais indicam uma severa restrição da vida qualificada, era em que o biopoder parece atingir seu apogeu. 52 Contudo, tal trama social não pode ser vista como mero fruto do acaso ou de um caminho inevitável, pois sua sustentação é produzida por um novo modo de administração governamental. O êxito na empreitada ideológica do neoliberalismo ficou nítido, a pauta política encabeçada por Ronald Reagan logrou se tornar referência para os demais países centrais e para os países periféricos do capitalismo. Assim arremata Perry Anderson: Economicamente,

o

neoliberalismo

fracassou,

não

conseguindo

nenhuma

revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo

conseguiu

muitos dos seus objetivos, criando sociedades

marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples ideia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas.53 50

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 22. 51 YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 125. 52 BIRMAN, Joel. Saberes do psíquico e criminalidade. In: MENEGAT, Marildo; NERI, Regina (org). Criminologia e subjetividade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 89. 53 ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo. (coord.) Pósneoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 23.

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Em síntese, a política social na dinâmica do Estado Neoliberal aprofundou desigualdades, gerindo a pobreza mediante o uso da força. Se a lógica do capital desregulado já remeteria naturalmente a estas disparidades, nos EUA esse deslocamento foi acelerado pela queda nas políticas sociais de assistência aos pobres tão utilizadas nas décadas pretéritas. 54 O resultado foi que, já no ano de 1991, uma em cada três famílias norte-americanas não tinha condições de arcar com necessidades básicas e custos de moradia. Estatísticas oficiais mostravam que em 1994 o número de pessoas pobres nos EUA era superior a 40 milhões, constituindo praticamente 15% da população. No mesmo ano, cerca de 3,4 milhões de pessoas foram demitidas.55 Em 2002, uma pesquisa indicou que os EUA eram o país ocidental com a maior taxa de pobreza infantil. Cerca de um quarto (1/4) de suas crianças cresciam abaixo da “linha da pobreza”, e uma em cada duas (1/2) das crianças negras estava abaixo dessa linha.56 Os índices oficiais de desemprego não demonstram elevação relevante nos EUA da década de 1980 e 1990, todavia, isto se deve ao fato de que as estatísticas não consideraram as massas agora em trabalho precário, bem como excluíam de seus cálculos aquela grande massa que agora se avolumava progressivamente no cárcere.57 A acentuação da exclusão social e miséria são frutos da política social neoliberal norte-americana. Precarização do trabalho, individualismo, aumento da miséria e desigualdade social são, com se viu, chaves para compreender a insegurança social peculiar ao maior ícone mundial do Estado neoliberal.

4. NEOLIBERALISMO NO BRASIL A década de 1980 foi apelidada como “a década perdida” pela grande mídia brasileira. Acumulavam-se a recessão econômica e a inflação galopante, na linha da crise que se abatia sobre a face capitalista do planeta desde a década anterior. José Sarney 58 assumiu a presidência do Brasil em 1985, ainda sem voto direto, representando um princípio de transição democrática. O país tinha seu primeiro presidente

54

Destaque para o fim do General Assistance logo no início dos anos 1990. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 101-110. 56 Ibid., p. 168. 57 GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 53. 58 Eleito vice-presidente, assumiu em definitivo após a morte do presidente Tancredo Neves. Seu mandato foi de 15 de março de 1985 a 15 de março de 1990. 55

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civil após 21 anos de ditadura militar, mas a economia não ia bem. O clima de insatisfação era generalizado. A desaceleração da economia capitalista mundial da década de 1970 recaiu com força sobre as nações da periferia na década seguinte, numa espécie de crise em cadeia típica da dita globalização. O desenvolvimentismo das décadas anteriores não se deu sem uma retumbante dívida com os países centrais. Na esteira de outros países da América Latina, o Brasil vivenciou enfim na década de 1980 o que se costumou chamar de “crise da dívida externa”. A industrialização brasileira operada nas décadas de 1930 a 1970, grande veículo de fortalecimento da economia local e do esforço pela superação da histórica condição retardatária no cenário mundial, foi feita acima de tudo à custa do endividamento no mercado financeiro internacional. Agora a conta tinha que ser paga. Assim, na década de 1980, a ordem ditada para a América Latina foi de renegociação das dívidas internacionais, apresentando-se um formulário de condicionalidades e imposições político-econômicas, como narra José Luís Fiori: Mas foi sem dúvida na segunda metade dos anos 80 que o fenômeno se generalizou, ao compasso da renegociação das dívidas externas das principais economias latinoamericanas. Foi quando a comunidade financeira internacional apresentou aos devedores suas novas ‘condicionalidades’; um conjunto de políticas de reformas que repetia sem maior originalidade o feijão-com-arroz que começara a ser cozinhado em Mont Pèlerin.59

Gerada a retração econômica, foi o momento propício para aportar no Brasil o remédio milagroso de Hayek, ofertado como a única solução possível para as reformas políticas urgentes “necessárias” e “inevitáveis”. Foi na capital norte-americana que aconteceu um dos marcos deste ingresso maciço do Neoliberalismo nos trópicos. Precisamente em novembro de 1989, reuniram-se o FMI, o Banco Mundial, o BID e um conjunto de funcionários do governo dos EUA, a convite do Instituto de Economia Internacional (IIE). O título da conferência era “Latin American Adjustment: How Much Has Happened?”. Em bom português: “Ajuste da América Latina: quanto foi feito?”. Um dos maiores aportes teóricos da reunião foi o senhor John Williamson, que em 1990 editaria seu famoso “O que Washington entende por reforma política”60, informando os 10 pontos principais da receita neoliberal para a “salvação” da América Latina. 59 60

FIORI, José Luís. 60 lições dos 90. 2. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 81. No original: “What Washington Means by Policy Reform”.

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No citado artigo, são muito claros os dez mandamentos: 1) disciplina fiscal; 2) redução de gastos públicos; 3) elevação de tributos; 4) aumento da taxa de juros; 5) taxa competitiva de câmbio comercial; 6) liberalização das importações; 7) abertura para os investimentos diretos estrangeiros (FDI); 8) amplo programa de privatizações; 9) desregulação econômica; 10) proteção dos direitos de propriedade.61 O mesmo Williamson teria sido o responsável por apelidar a mencionada conferência de “Consenso de Washington”. As medidas propostas eram uma mensagem nítida de como as coisas deveriam andar na América que não fala inglês, seguindo o ditado das reformas neoliberais implementadas na década de 1980 nos EUA. O tal “pacote terapêutico” para a crise capitalista na periferia dirigia “conselhos” que podem ser sintetizados na dupla fórmula: ampla abertura ao mercado internacional (desregulação) e contenção dos gastos públicos (responsabilidade fiscal). Em terras brasileiras, todo esse rearranjo institucional se iniciou com a primeira eleição direta para presidente desde o golpe de 1964. Eleito foi o candidato Fernando Collor de Melo62 no tão disputado pleito de 1989, assumindo seu mandato no ano seguinte. Collor foi votado por uma multidão aflita, mergulhada na depressão econômica e na inflação, tudo numa condição oportuna ao ingresso neoliberal. Francisco de Oliveira foi marcante em frisar: A eleição de Collor deu-se nesse clima, no terreno fértil onde a dilapidação do Estado preparou o terreno para um desespero popular, que via no Estado desperdiçador, que Collor simbolizou com os marajás, o bode expiatório da má distribuição de renda, da situação depredada da saúde, da educação e de todas as políticas sociais. Foi esse voto de desespero que elegeu o Bismark das Alagoas. 63

A vitória nas urnas representou a liderança do discurso de direita na linha de Thatcher e Reagan, bem ao prazer do capitalismo “vídeo-financeiro”, conforme registra Gilberto Felisberto Vasconcellos: A ascensão privatizante do caçador de marajás ao poder em 1989 inscreve-se dentro da lógica do capitalismo “tecnotrônico” formulado por “Zbigi” (assim o polonês é chamado), isto é, a 3ª revolução industrial assente na eletrônica do vídeo e do computador, mas cobiçando os recursos estratégicos dos trópicos. 64

O novo presidente logo mostraria a que veio. Seguindo o receituário neoliberal, foi posto em prática o Programa Nacional de Desestatização – PND – calhando num amplo 61

Disponível em: . Acesso em: 3 set. 2014. 62 Presidente do Brasil de 15 de março de 1990 a 02 de outubro de 1992. 63 OLIVEIRA, Francisco. Neoliberalismo à brasileira. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo. (coord.) Pósneoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 25. 64 VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. As ruínas do pós-real. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1999, p. 33.

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projeto de privatização. Elas seriam marcantes nos governos brasileiros na década de 1990, focando principalmente a infraestrutura (matriz energética, transportes, energia, telefonia). A venda do patrimônio público federal começaria em 1991 pela gigante da siderurgia: a USIMINAS.65 Sob o argumento da ineficiência (parasitismo) do serviço público prestado, grandes empresas estatais foram vendidas ao capital estrangeiro, compondo mais uma das formas de se escancararem as fronteiras econômicas brasileiras. Segundo informações oficiais do Ministério do Planejamento, a onda de privatizações que se iniciou em 1990 retirou do Estado o número de 39 empresas federais até o fim de 2002. Apenas outras duas foram privatizadas após 2002.66 O mesmo “choque de gestão” que era esperado nas empresas públicas vendidas também surgia no contexto do ingresso das grandes empresas no país. Sem as antigas barreiras protecionistas, era a vez de a tecnologia mundial desembarcar no país. O que se ignorou, contudo, foi que a abrupta abertura geraria sem dúvidas uma concorrência desleal no mercado nacional, o que de fato ocorreu. Desta forma os oligopólios internacionais ganharam o espaço necessário para se estabelecer no Brasil. Maria da Conceição Tavares analisa a abertura financeira nacional iniciada neste período, um dos mais importantes reflexos neoliberais. O livre mercado, tão apregoado pela cartilha do norte, foi um dos maiores responsáveis pela “destruição não criadora”: Somente a partir de 1990, com o governo Collor, se inicia uma política de abertura comercial e financeira que forçou a desestruturação de alguns segmentos do sistema produtivo e inseriu o país na bolha especulativa e cambial dos chamados mercados de derivativos, retirando os controles habituais do Banco Central sobre a entrada e saída de capitais.67

Os planos econômicos brasileiros no estilo de Washington não foram assim tão “consensuais”, pois nitidamente impunham a falência de inúmeras empresas locais, seja pela ausência de incentivos, seja pela ausência de proteção da invasão internacional. Para Werneck Sodré, a crise nacional também foi fruto de um jogo que impulsionou o processo de franqueamento de nossas fronteiras, eis a farsa do neoliberalismo: O chamado Plano Collor, para isso, conjugava, em aparente paradoxo, uma política monetária intervencionista, mais a privatização imposta pelo FMI, com a

Outras importantes companhias siderúrgicas privatizadas: Companhia Siderúrgica Tubarão – CST - (1992) e Companhia Siderúrgica Nacional – CSN (1993). 66 Disponível em: . Acesso em: 3 set. 2013. 67 TAVARES, Maria da Conceição. Destruição não criadora. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 78. 65

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liberalização do comércio e taxas de câmbio flutuante. Para alcançar mais rapidamente os seus objetivos, o FMI fechava o crédito ao Brasil e obrigava os bancos, nos Estados Unidos e fora dele, a nos negarem qualquer empréstimo. 68

Assim os planos Collor abriram as portas para o capital externo adentrar no Brasil, trazendo consigo o sucateamento das empresas estatais, quebra da tecnologia nacional, substituição do nosso parque industrial e, claro, aumento do desemprego. O plano Real entra em vigor em 1º de julho de 1994, durante o governo de Itamar Franco 69 , tendo sido um dos principais responsáveis pela vitória de Fernando Henrique Cardoso (FHC) 70 no pleito presidencial do mesmo ano. A nova moeda teria viabilizado finalmente a tão desejada estabilidade monetária, contendo o “grande inimigo do povo brasileiro”: a inflação. Após ser registrada no ano de 1993 a maior alta dos preços da história do Brasil (2567%), o plano Real surge com sucesso no ano seguinte, conseguindo amplo apoio social. Por outro lado, a valorização cambial do Real provocou de pronto um desequilíbrio na balança comercial; além disso, a defendida paridade com o dólar era arduamente sustentada por uma política de juros altos, que viria engrossar o endividamento do país. Apesar do êxito em conter a inflação, o governo FHC experimentou acanhado crescimento do PIB, gerando uma “reprimarização” da economia, decorrente do recrudescimento da exportação de commodities básicas.71 Sob o respaldo da aplaudida contenção da inflação, o caminho neoliberal estava aberto e seria aprofundado. Era como se o laissez-faire de mercado fizesse parte inseparável da estabilidade da moeda. Pintando o quadro das consequências do ingresso das ideias neoliberais na pauta do governo brasileiro na década de 1990, Fiori informa: Do ponto de vista da economia real e que interessa à maioria da população, o país teve um crescimento médio anual de apenas 1,7%, menor que o da década ‘perdida’ de 1980; sua taxa de desemprego ficou em torno de 7% (e, nas grande metrópoles, em torno de 17%); a taxa de investimento não ultrapassou a casa dos 18%; tudo isto enquanto caía a participação dos salários na renda nacional e aumentava a concentração da renda e da riqueza.72

A abertura econômica criou uma situação de ampla dependência do Brasil perante os agentes financeiros globais (Banco Mundial, FMI e Tesouro americano). O Estado perdeu boa 68

SODRÉ, Nelson Werneck. A farsa do neoliberalismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Graphia, 1996, p. 95. Presidente do Brasil de 02 de outubro de 1992 a 1º de janeiro de 1995. 70 Presidente do Brasil de 1º de janeiro de 1995 a 1º de janeiro de 2003. 71 BRITO, Felipe. Acumulação (democrática) de escombros. 2010. 223 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Pós-graduação de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010, p. 116. 72 FIORI, José Luís. 60 lições dos 90. 2. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 12. 69

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parte de sua autonomia, tendo suas políticas públicas controladas, direta ou indiretamente, pelo grande capital internacional, principalmente norte-americano.73 A crise que se abateu sobre os recém-incorporados ao “Consenso de Washington”, como a Argentina em 1990 e o México em 1994, também alcançou o Brasil mais profundamente em 1998, encontrando um pico de recessão. A se lembrar, Milton Santos percebe a inserção neoliberal como uma conjugação da tirania do dinheiro com a tirania da informação, levando inevitavelmente à crise por meio do sistema financeiro e do controle ideológico que impõem a permissividade com os “atores hegemônicos”. Leia-se: Afirma-se, também, que a “morte do Estado” melhoraria a vida dos homens e a saúde das empresas, na medida em que permitiria a ampliação da liberdade de produzir, de consumir e de viver. Tal neoliberalismo seria o fundamento da democracia. Observando o funcionamento concreto da sociedade econômica e da sociedade civil, não é difícil constatar que são cada vez em menor número as empresas que se beneficiam desse desmaio do Estado, enquanto a desigualdade entre os indivíduos aumenta.74

Portanto, antes de ser um desvio do curso, a depressão provada pelo Neoliberalismo no Brasil é consequência inafastável do regime socioeconômico implantado. Não há outra consequência mais previsível do que o avanço da desigualdade social num país que entrega sua economia ao capital estrangeiro. Em verdade, cria-se a “ditadura do dinheiro”. Os passos do Neoliberalismo manteriam marcha firme durante todo o mandato de Fernando Henrique Cardoso. A posse de Luis Inácio Lula da Silva75 traz uma alteração na conjuntura econômica brasileira, de maneira que desde então se levou adiante um ritmo diferenciado do visto nos 12 anos anteriores. Se não rompeu radicalmente com o capital internacional, nem retomou a regulação financeira no país, certo é que o governo Lula comandou mudanças no contexto. As descrições parecem indicar que a partir de 2002 as políticas brasileiras divergiram um pouco dos rumos que vinham sendo implementados desde 1990.

73

Ibid., p. 40. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro, Record, 2000, p.21. 75 Presidente da República de 1º de janeiro de 2003 a 1º de janeiro de 2011. 74

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Do pacote neoliberal, pode-se ver alguma divergência quanto à ideia de “Estado enxuto”, sendo inegável que houve incremento do funcionalismo público e de atividades de assistência à pobreza. 76 Todavia, o arrocho fiscal inegavelmente se manteve firme mesmo com o novo governo. A carga tributária e os índices de arrecadação parecem crescer de forma constante, aumentando as cifras em busca do equilíbrio orçamentário do país. Entretanto, para quem entende que a essência da plataforma de Hayek e Milton Friedman está na abertura econômica, não se pode diagnosticar uma grande ruptura no Brasil. É patente que as lógicas neoliberais de livre mercado e fim das barreiras protecionistas foram mantidas.77 A dependência com o investimento externo, globalizado, infiltrou-se no Estado brasileiro de maneira permanente e a financeirização também não vê grandes obstáculos desde 1990. Portanto, mantendo a linha da tese defendida por Wacquant, segundo o qual o maior traço peculiar do Neoliberalismo econômico é sua desregulamentação, não restam dúvidas de que o projeto brasileiro se manteve firme nos seus primeiros 20 anos. Como se pôde perceber, a política econômica do Neoliberalismo nacional foi uma planilha de execução das ordens norte-americanas. A força dos agentes internacionais, a pressão do grande capital e a nova abertura do país moldaram o regime de manutenção da tradicional incorporação histórica, velha conhecida dos brasileiros. Foi exposta a correlação entre as medidas econômicas empreendidas nos EUA a partir da década de 1980 e seus efeitos sociais relevantes. Do Estado inchado para o Estado enxuto, um grande grupo foi sacrificado. Contudo, se por lá se estava tratando de uma rígida modificação do Estado de bem-estar social, a experiência brasileira foi um pouco diversa. Em verdade, nunca se viu no Brasil a amplitude demonstrada pelo Estado caritativo norte-americano das três décadas do pós-guerra, apesar de o enredo histórico brasileiro demonstrar inquestionavelmente uma política social diferenciada a partir de Getúlio Vargas 78. A se iniciar na década de 1930, o Estado brasileiro trouxe para a prática uma série de avanços na preservação de sua classe trabalhadora. Leis trabalhistas, proteção previdenciária, sindicalização, alguns tópicos que remetem a uma política social renovada. Apesar de todo avanço, o Brasil nunca logrou alcançar índices de inclusão e de queda na desigualdade social

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Com destaque para a Bolsa Família, instituída pela lei 10.836/04. Para visualizar condições e efeitos sociais do programa, sugere-se a visita ao site oficial: . Acesso em: 02 jun. 2015. 77 ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC e Lula). 2. Ed. Campinas: Autores Associados, 2005, p. 166. 78 Presidente da República nos períodos de 1930-1945 e 1951-1954.

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comparáveis àquele nostálgico EUA do Welfare de Keynes e demais idealizadores do sonho americano. Não há como ignorar essa diferença.79 Se o Neoliberalismo nos EUA funcionou como uma ruptura abrupta de uma realidade inclusiva, principalmente lembrando a progressiva eliminação das políticas assistenciais, no Brasil a política do “consenso de Washington” já encontrava um quadro comparativamente mais avançado de pobreza e desigualdade. Dois elementos merecem especial atenção no momento de se concentrar nas modificações sociais do Brasil neoliberal: desemprego e precarização do trabalho. A partir da subida de Collor ao poder, houve um nítido processo de elevação do desemprego estrutural no país, a começar pelas políticas de privatização, que geraram uma série de demissões nas empresas até então estatais. O arrocho salarial foi posto como caminho inevitável para a redução do déficit público e implantação do Estado mínimo brasileiro. Era preciso pôr fim aos marajás e aos benefícios do Estado “elefante” 80, mediante um choque de gestão que compreendia redução de gastos com o funcionalismo. Além disso, o desemprego também foi reforçado pelo processo de desindustrialização, consequência inevitável da concorrência desleal com o capital estrangeiro agora livre para circular. Em vez de fortalecer o capital interno, o caminho era atrair a implantação de campos industriais de multinacionais do primeiro mundo. Analisando cuidadosamente o campo do trabalho brasileiro a partir da década de 1990, Giovanni Alves percebe que as modificações econômicas típicas do neoliberalismo se inseriram no território nacional de maneira incisiva, em decorrência da liberalidade e ausência de correspondentes medidas de proteção do trabalhador. Segundo o autor, três são as inovações marcantes de uma observação sociológica do trabalho a partir do governo Collor: 1) toyotismo sistêmico; 2) descentralização produtiva; 3) subproletarização.81 A nova lógica industrial no país passa a ser de fragmentação produtiva (toyotismo), com terceirização de serviços e construção de uma nova realidade do trabalho, enfraquecendo a capacidade de resistência dos trabalhadores. Em sua dimensão real – que está articulada, intrinsecamente, com a dimensão organizacional –, o novo complexo de reestruturação produtiva desenvolve, com base na lógica da descentralização produtiva (e da introdução de novas tecnologias microeletrônicas na produção), a precariedade de emprego e salário, ou impulsiona o 79

SADER, Emir. A trama do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo. (coord.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 174. 80 Referência à propaganda do governo de 1990. Veja-se no documentário “Privatizações: a distopia do capital”. Disponível em: . Acesso em 10 jun. 2015. 81 ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010, p. 251.

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desemprego estrutural na indústria, debilitando, de modo radical, a própria sociabilidade do trabalho.82

A microeletrônica viria se juntar como fator nevrálgico nesta desvalorização do empregado, incentivando uma polarização interessante ao capital: um pequeno número de trabalhadores especializados (relativamente bem remunerados) e uma grande parcela de trabalhadores precarizados. A subproletarização pode ser entendida como o fenômeno segundo o qual grupos cada vez maiores de trabalhadores tiveram que se submeter a condições de emprego sem estabilidade e garantias. Submissão a contratos temporários, apelo ao trabalho autônomo ou mesmo atividades informais, clandestinas e ilícitas. A destruição de empregos e direitos sociais foi patente no setor público, tudo em nome da “credibilidade global” do Brasil. Houve redução de cargos e salários, cortes nos gastos/investimentos públicos sem qualquer consequência positiva no crescimento econômico, o qual se manteve inferior ao da década de 1980. O desmonte nacional, subordinado à ordem globalizada, foi estudado por Ricardo Antunes, no que ele chamou de “desertificação neoliberal”: No Brasil, se o neoliberalismo começou com a eleição de Collor, em 1989, foi entretanto no Governo FHC, entre 1994 e 2002, que ele de fato deslanchou. Como em quase toda a América Latina, o desemprego, a precarização do trabalho e a exclusão social proliferaram.83

Sobre os índices de oferta de trabalho no Brasil, o IBGE informa as variáveis oficiais por meio da Pesquisa Mensal de Emprego (PME). Observando, por exemplo, o mês de julho de cada ano, chega-se às seguintes porcentagens de desemprego: 4,07 (1991); 5,79 (1994); 8,748 (1998) e 8,213 (2002). 84 Fácil perceber que a dependência acentuada pela nova política econômica geraria enormes afetações sociais. Neste sentido, Atilio Borón ensina as consequências do que ele chama de “dilúvio neoliberal no Brasil”: Em outras palavras, com o catecismo do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional em suas mãos, nossos governos estão destruindo a educação e a saúde públicas, acentuando as desigualdades sociais, acrescentando a proporção de pobres estruturais e marginais de todo tipo que não podem ser ‘reconvertidos’ e incorporados criativamente à economia moderna. 85 82

Ibid., p. 252. ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC e Lula). 2. Ed. Campinas: Autores Associados, 2005, p. 131. 84 Disponível em: . Acesso em: 24 set. 2014. 85 BORÓN, Atilio. A sociedade civil depois do dilúvio neoliberal. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo. (coord.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 100. 83

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As economias “saneadas” pelas ordens do FMI e do Banco Mundial foram reprodutoras de pobreza e exclusão social, preservando as desigualdades no seio brasileiro durante toda a década de 1990. Mais uma vez, impossível negligenciar as palavras de Fiori: Com relação às promessas relativas aos trabalhadores, os governos neoliberais dos anos 90 promoveram uma ativa desregulação do mercado de trabalho, junto com a redução dos direitos trabalhistas, o congelamento dos salários do setor público e uma diminuição da participação salarial, de 45%, para 36% da renda nacional. Como consequência, depois de uma década de “reformas neoliberais”, a concentração da riqueza aumentou ainda mais que no período desenvolvimentista, mantendo-se a mesma desigualdade na distribuição de renda: 1% da população mais rica concentra uma renda igual à dos 50% mais pobres, sem considerar as rendas financeiras.86

Numa pesquisa mundial feita pela Central Intelligence Agency – CIA – a desigualdade social brasileira, informada pelo índice de GINI, coloca o país em 10º lugar com a pior situação no planeta.87 A se acrescentar nos estudos estatísticos, pode-se analisar o dado “rendimento per capita” presente nas pesquisas do CENSO realizadas pelo IBGE nos anos de 1991 e 2000. Os quadros ali presentes demonstram que o percentual de pessoas sem rendimento saltou de 2,87% para 6,35%, enquanto que o índice de famílias com rendimento per capita acima de cinco salários mínimos passou de 5,92% para 10,16%. 88 Desta feita, confirma-se em definitivo a assertiva de que o advento do Neoliberalismo no Brasil foi, como nos EUA, mecanismo intensificador de desigualdades e insegurança social, ponto este crucial na compreensão da construção do “Estado Centauro”. Mais uma afirmativa de Milton Santos vem confirmar este fato, concentrando-se nos medos que multiplicam e transpassam a subjetividade da massa: Jamais houve na história um período em que o medo fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo do desemprego, medo da fome, medo da violência, medo do outro. Tal medo se espalha e se aprofunda a partir de uma violência difusa, mas estrutural, típica do nosso tempo, cujo entendimento é indispensável para compreender, de maneira mais adequada, questões como a dívida social e a violência funcional, hoje tão presentes no cotidiano de todos.89

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FIORI, José Luís. 60 lições dos 90. 2. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 212. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2011. 88 Disponível em: . Acesso em: 25 set. 2011. 89 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro, Record, 2000, p.29. 87

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Em suma, todas as narrativas direcionam no sentido de que a partir da década de 1990 o Brasil lançou mão de um plano social que comunga com a lógica neoliberal, adequando-se bem à leitura de Wacquant sobre o projeto norte-americano a partir da década de 1980.90 Portanto, tudo informa que o modelo de Estado neoliberal brasileiro tem apresentado semelhanças profundas com o molde norte-americano, respeitadas as peculiaridades históricas. Se é verdade que o “Estado de bem-estar” nunca esteve presente aqui como esteve nos EUA, por outro lado não se pode negar que a pauta neoliberal se implanta no Brasil seguindo as diretrizes norte-americanas, e os efeitos no campo social e econômico inegavelmente são bem semelhantes.

5. NEOLIBERALISMO E SUAS CONSEQUÊNCIAS PENAIS: O NEOPUNITIVISMO

Compreendidas, portanto, as mudanças de conjuntura socioeconômica produzidas a partir da instauração do Neoliberalismo nos EUA e Brasil, verifiquemos agora se elas geraram reflexos relevantes no setor penal. Um dos principais equívocos interpretativos das políticas neoliberais é pensá-las apenas em seus efeitos econômicos e, assim, reduzir a compreensão do Estado Neoliberal como sendo um Estado Mínimo. Ocorre que se isso pode ser afirmado com relação à sua dimensão de desregulamentação econômica, esta não é a sua única face. Como demonstra Wacquant,91 o neoliberalismo, na verdade, se sustenta sobre quatro lógicas institucionais: 1) a desregulamentação econômica destinada a promover o funcionamento ótimo do mercado favorecendo a atividade das empresas privadas e reduzindo a provisão pública de serviços essenciais; 2) a retração do estado de bem-estar social e a expansão de medidas para submeter os indivíduos à disciplina do trabalho assalariado dessocializado (workfare); 3) a promoção da alegoria da responsabilidade individual oposta à noção de responsabilidade coletiva/social ou estatal; e, por fim, 4) a expansão do aparato penal com vistas a conter as desordens geradas pela difusão da insegurança social e pelo aprofundamento da desigualdade. Deste modo temos configurado o novo Estado sobre o qual comentou-se anteriormente. O neoliberalismo não significa o simples encolhimento do governo, mas a

90

WACQUANT, Loïc. Apêndice teórico: um esboço do Estado neoliberal. In: Discursos sediciosos. Rio de Janeiro, 1º e 2º sem. 2010, ano 15, n. 17/18, p. 143. 91 WACQUANT, Loïc. Forjando o Estado Neoliberal. In: BATISTA, Vera Malaguti. Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 32.

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garantia da mínima intervenção na esfera econômica acompanhada da máxima intervenção na esfera penal. Compulsando os dados estatísticos oficiais referentes à principal forma de punição do sistema capitalista, é possível notar nos dois países em destaque neste artigo um movimento bem semelhante, representado pela escalada no volume de punição mediante cárcere. Veja-se a tabela a seguir. Tabela 1 comparação de sistemas prisionais EUA Fases

Presos por 100 mil

Taxa de

Presos por 100 mil

Taxa de

habitantes

variação

habitantes

variação

Período

221

inicial

(1980)

1ª década

2ª década

Brasil

406 (1990) 685 (2000)

-

183,7%

168,7%

60,1

-

(1990) 137,1 (2000) 260,2 (2010)

228,1%

189,7%

Fonte: Bureau of Justice Statistics e Infopen/IBGE.

A rede prisional norte-americana, segundo dados oficiais apresentados pelo governo, teve um aumento aproximado de 210% em números relativos (presos por 100 mil habitantes) nas primeiras duas décadas neoliberais. Quanto ao Brasil, as duas primeiras décadas de reforma neoliberal representaram um aumento de cerca de 332% em números relativos de pessoas presas. Em números concretos, os EUA partiram de 501.886 presos (1980) para 1.146.401 presos (1990) e depois 1.929.867 presos (2000). Os dados mais recentes (2009) indicam que o país conta com um número de 2.284.913 presos, representando uma taxa de 744 presos para cada 100 mil habitantes.92 Constituem, assim, o maior complexo prisional do planeta.

92

Todos os dados acerca do sistema prisional americano foram acessados pelo Bureau of Justice Statistics, e os dados acerca da população norte-americana foram fornecidos pelo Census. Disponíveis em: . Acesso em: 2 ago. 2014. Bem como: . Acesso em: 2 ago. 2015.

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Quanto ao Brasil, a escalada parte de aproximadamente 90 mil presos (1990) para 232,8 mil presos (2000) e finalmente 496,3 mil (2010). Perceba-se, portanto, que em números absolutos o Brasil apresenta um aumento carcerário de 551,4% em duas décadas.93 Como se demonstra, o giro político operado pelo Neoliberalismo repercutiu de forma bem drástica no setor penal, construindo o que foi denominado “grande encarceramento”, numa expansão radical do uso da prisão. Percebendo esse avanço das práticas punitivas a partir da década de 1980, Wacquant identificou seis pontos marcantes do contexto repressor neoliberal norte-americano: 1) discurso de ponto final na era da complacência; 2) proliferação de leis, inovações burocráticas e dispositivos tecnológicos de controle; 3) discurso catastrofista sobre a insegurança; 4) revalorização da repressão e estigmatização dos vários tipos: jovens pobres, desempregados, sem-teto, etc; 5) abordagem gerencial do cárcere, orientada para preocupação com custos e privatização; 6) extensão da rede policial, endurecimento e aceleração dos processos judiciários e aumento absurdo da população carcerária.94 Segundo ele, ao longo de toda a década de 1960 até o início da década de 1970 a população prisional diminuía regularmente a ponto dos especialistas da época dizerem que, após ter ocupado um papel central no capitalismo industrial, nas sociedades avançadas a prisão estaria destinada a desempenhar uma função menor. 95 Em 1973 o número de encarcerados chegou ao seu nível mais baixo desde o final da Segunda Guerra. Contudo, contra todas as avaliações possíveis, como vimos, após 1973 houve uma reviravolta brutal na demografia carcerária nos Estados Unidos: sua população dobrou em dez anos e quadruplicou em vinte. Eram 380 mil presos em 1975, contra 1,14 milhão em 1990 e cerca de 2 milhões em 2000. Mesmo com o grau de independência que cada unidade da federação possui no âmbito 93

Todos os dados estatísticos da população prisional do Brasil estão disponíveis no site do INFOPEN, vinculado ao Ministério da Justiça (Disponível em: ) bem como no último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias divulgado por este mesmo Ministério (Disponível em: ). 94 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 25-28. 95 Como afirma Wacquant: “Vale lembrar que [...] por volta de meados dos anos 1970 a população carcerária dos EUA estava declinando de forma acelerada há pelo aproximadamente duas décadas, atingindo um total de aproximadamente 360.000 detentos em 1973. Os principais analistas da questão penal, de David Rothman a Michel Foucault e a Alfred Blumstein, foram então unânimes em prever a iminente marginalização da prisão como instituição de controle social ou, no pior dos cenários, a estabilidade a longo prazo do confinamento penal num nível historicamente moderado. Ninguém previa a iminente quadruplicação da população prisional estadunidense nos 20 anos seguintes, que faria com que a marca de dois milhões de presos fosse atingida em 2000, mesmo tendo a taxa de crimes estagnado e depois regredido durante esse período”. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 344, nota vi.

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penal nos Estados Unidos, Wacquant demonstra que essa foi uma “tendência nacional de fundo” que independia das características individuais de cada Estado, do seu nível de criminalidade e da orientação política do executivo local.96 Porém, outro dado ainda mais surpreendente é que este aumento vertiginoso da população carcerária se deu durante um período de estagnação e depois de recuo da criminalidade. Entre 1975 e 1995 os níveis de homicídio, roubos qualificados, lesões corporais e delitos de propriedade permaneceram praticamente os mesmos, quando não diminuíram.97 Portanto, como demonstra Wacquant, este hiperencarceramento visto nos EUA não se explica por uma escalada da criminalidade violenta, mas especialmente pela extensão do recurso ao aprisionamento para uma série de delitos de rua que até então não acarretavam a privação de liberdade, tais como algumas infrações relativas aos entorpecentes e comportamentos tidos como atentatórios à ordem pública. Sem contar, é claro, a “guerra à drogas” iniciada na década de 1970 e intensificada a partir de 1983. Em resumo, um conjunto cada vez maior de infratores, fossem eles criminosos profissionais e violentos ou de ocasião e não-violentos eram agora submetidos a penas cada vez mais intensas. Além disso, outros dois fatores foram determinantes para o aumento da população carcerária: o alongamento das detenções e o volume de aprisionados. Em primeiro lugar, o maior recurso ao aprisionamento, com penas cada vez maiores, traduz o endurecimento da política criminal e judiciária nos Estados Unidos. Afinal, no conjunto, houve a multiplicação das infrações que acarretam o aprisionamento; o aumento das penas impostas tanto aos delitos violentos como aos sem gravidade; instauração de penas irredutíveis para certas causas como tráfico de entorpecentes e atentados aos costumes; perpetuidade automática do terceiro crime (“three strikes and you’re out”); endurecimento generalizado das sanções em caso de reincidência; aplicação do Código Penal adulto aos menores de 16 anos; redução ou supressão da liberdade condicional; dentre outros.98 Por outro lado, ademais do aumento do tempo de encarceramento, a estrutura policial e judiciária ampliou sua persecução aos supostos criminosos. No início da década de 1980, a polícia nos Estados Unidos efetuava em torno de 10,4 milhões de detenções, das quais cerca de 69% foram seguidas de condenação e aprisionamento. Por volta de 1995 o número de

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WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 213. 97 Ibid. p. 222. 98 Ibid. p. 226.

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detenções já chegava a 15,2 milhões, das quais cerca de 94% resultaram em aprisionamento.99 Para Wacquant tudo isso indica, na verdade, que a penalização, antes de tudo, visa conter as desordens urbanas alimentadas pela desregulamentação econômica e disciplinar de frações precarizadas da classe trabalhadora pós-industrial pobre e negra. Em suas palavras, O que mudou durante este período não foi a natureza e a frequência da atividade criminosa, mas sim a atitude dos poderes públicos ‒ e da classe média branca que constitui o grosso dos contingentes eleitorais ‒ para com o proletariado e o subproletariado negro, escolhidos para se constituírem no principal alvo e junto aos quais o Estado penal se encarrega de reafirmar os imperativos cívicos do trabalho e da moralidade com tão mais vigor, que a precarização do emprego e a contração da caridade do Estado os colocam cada vez mais vulneráveis. 100

Isso se confirma com a forma seletiva como este rigor penal é distribuído sobre os diferentes grupos sociais. Assim, são ampliadas as táticas legais de coação destinadas exclusivamente aos distritos decadentes das classes pobres, como o “policiamento para a manutenção da ordem” (conhecido como “tolerância zero”); batidas policiais intensivas em conjuntos habitacionais ou escolas públicas; normas destinadas a coibir ações de gangues; e, até mesmo, toques de recolher para jovens em guetos e bairros pobres. 101 Por outro lado, não foram detectadas mudanças expressivas nos mecanismos para coibir, por exemplo, os “crimes de colarinho branco”. Toda essa racionalidade punitiva de lei e ordem tiveram seu ápice na “experiência” da cidade de Nova York durante a gestão de Rudolph Giuliani (1994-2002) por meio da política de tolerância zero, cujo fundamento se encontrava na teoria das janelas quebradas. Este modelo foi posteriormente exportado para diversos cantos do globo como um dos “melhores instrumentos de combate ao crime”.102 A política de tolerância zero se destina a penalizar os pequenos delitos tomando como premissa que sua mera existência é aquilo que estimula a ocorrência de delitos maiores. Desta maneira, como foi o caso em Nova York, a política de penalização é destinada aos sem teto que acossam os motoristas em sinais de trânsito em troca de dinheiro (o que, para Rudolph Giuliani, era o “símbolo amaldiçoado da decadência social e moral da cidade”), aos pequenos passadores de drogas, aos mendigos, prostitutas, pichadores, etc. Em resumo, é uma criminalização destinada aos estratos sociais mais baixos que “sujam” e “ameaçam” a

99

Ibid. p. 227. Ibid. p. 225. 101 Ibid. p. 123. 102 Sobre a exportação da política de tolerância zero cf. WACQUANT, Loïc. Tempestade global da lei e ordem. Revista de sociologia e política, Curitiba, v. 20, n. 41, p. 7-20, fev. 2012. 100

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“qualidade de vida” das classes média e alta das cidades.103 A base teórica desta política é a chamada teoria das janelas quebradas, formulada por James Q. Wilson e George Kelling em 1982, segundo a qual seria lutando contra os pequenos distúrbios cotidianos que se evitariam as grandes patologias criminais. O título se inspira na máxima de que, imaginando um edifício com janelas quebradas, se elas não forem consertadas rapidamente, a tendência é a de que vândalos partam mais janelas, eventualmente eles podem entrar no edifício e, se ele estiver desabitado, podem ocupá-lo definitivamente. Neste sentido, como demonstra Wacquant, Essa teoria, jamais comprovada empiricamente, serve de álibi criminológico para a reorganização do trabalho policial empreendida por William Bratton, responsável pela segurança do metrô de Nova York promovido a chefe da polícia municipal. O objetivo dessa reorganização: refrear o medo das classes médias superiores ‒ as que votam ‒ por meio da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos (ruas, parques, estações ferroviárias, ônibus e metrô etc.) Usam para isso três meios: aumento em 10 vezes dos efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com obrigação quantitativa de resultados, e um sistema de radar informatizado (com arquivo central sinalético e cartográfico consultável em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) que permite a redistribuição contínua e a intervenção quase instantânea das forças de ordem, desembocando em uma aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais como a embriaguez, a jogatina, a mendicância, os atentados aos costumes, simples ameaças e “outros comportamentos anti-sociais associados aos sem-teto” [...].104

Por isso, Wacquant chamou a lógica neoliberal de controle do crime de verdadeira criminalização da pobreza cuja consequência é, inevitavelmente, o encarceramento em massa.105 Tratam-se de medidas que se destinam a transformar em crime as formas de vida e as estratégias de sobrevivência das camadas inferiores do proletariado, notadamente seus integrantes negros e hispânicos. Deste modo, segundo o autor, O recurso sistemático às instituições policial e judiciária para conter as desordens da vida cotidiana nas famílias e nos bairros pobres explica por que as prisões estadunidenses estão hoje cheias, não de “predadores violentos”, como alardeiam os partidários do “tudo pelo carcerário”, mas sim por criminosos não violentos e 103

WACQUANT, Loïc. Prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 26-27. Ibid. p. 26. 105 Por conta do sentido dúbio da expressão mass incarceration em inglês, que pode significar encarceramento em massa ou encarceramento de massa, para evitar esta segunda significação (que levaria a uma interpretação equivocada já que não há um encarceramento de toda a massa, mas apenas de suas parcelas negras e pobres) Wacquant prefere a expressão hiperencarceramento. Todavia, como em português há a possibilidade de distinguir o encarceramento de massa do encarceramento em massa, utilizaremos tanto esta última expressão como hiperencarceramento sem distinções. Cf. WACQUANT, Loïc. A política punitiva da marginalidade: revisitando a fusão entre workfare e prisionfare. Revista EPOS, Rio de Janeiro, vol. 03, p. 01-28, jan-jun 2012. 104

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delinquentes vulgares do direito comum, os quais, como já se destacou anteriormente, são essencialmente egressos das frações precarizadas da classe operária.106

Por esta razão, pode-se dizer que, se o modelo do Estado de bem-estar social empreendia uma guerra contra a pobreza por meio de políticas caritativas, o modelo neoliberal empreende uma verdadeira guerra contra os pobres por meio de suas políticas criminais e de segurança pública.107 Mais do que isso, pode-se dizer que esta é a característica chave do processo de retração do Estado social e ascensão do neoliberalismo: um governo mínimo no campo econômico e um governo máximo no campo criminal, Estado-centauro.108 Além disso, ao promover este encarceramento massivo do subproletariado pobre e negro, outro elemento desta política emerge: o fato de que o aprisionamento não atende mais à lógica disciplinar, mas serve apenas como instrumento de armazenamento e neutralização dos grupos sociais mais atingidos pelo processo neoliberal de precarização da vida e do trabalho. O principal argumento para isso se relaciona à necessidade de redução custos do aprisionamento. Somente nos Estados Unidos, este big government carcerário fez com que as despesas em estabelecimentos penais saltassem de US$ 6,9 bilhões, em 1980, para US$ 46,2 bilhões, em 1995 ‒ um gasto que os eleitores estadunidenses não estavam dispostos a assumir.109 Assim, assumindo a lógica mercantil, a primeira etapa do processo de redução de gastos foi a restauração da possibilidade “exploração deste mercado” pela iniciativa privada com o objetivo de lucro. A partir disso isso, surgiram figuras como a exploração do trabalho dos presos e, até mesmo, a cobrança de aluguéis dos presos e de suas famílias.110 106

WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 228. 107 Neste sentido, Wacquant afirma que esta política neoliberal de redução dos benefícios sociais associado à criminalização da pobreza fez com que a construção de prisões tenha se tornado “[...] o principal programa de habitação social do país”. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 275. 108 “Esse Estado-centauro, guiado por uma cabeça liberal, montada num corpo autoritário, aplica a doutrina do laissez-faire et leissez-passer a montante, com relação às desigualdades sociais, aos mecanismos que as geram (o livre jogo do capital, desrespeito do direito do trabalho e desregulamentação do emprego, retração ou remoção das proteções coletivas), mas mostra-se brutalmente paternalista e punitivo a jusante, quando se trata de administrar suas consequências no nível cotidiano”. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 89. 109 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 274. 110 “[...] os detentos da penitenciária de alta segurança de Fort Madison, em Iowa, que apodrecem 23 horas por dia num cubículo de concreto de dois metros por três, têm que pagar um ‘aluguel’ de US$ 5 por mês. Além disso, desde 1996, e sempre em Iowa, uma visita ao dentista da prisão custa US$ 3. Essas quantias não têm nada de modestas se comparados com os rendimentos irrisórios dos interessados. Os detentos que têm a oportunidade de trabalhar dentro da penitenciária ‒ nas cozinhas, na lavanderia ou na manutenção ‒ recebem ‘salários’ que

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Todavia, uma das principais estratégias de redução dos custos é a de abaixar o nível de vida e dos serviços oferecidos aos presos no interior das casas de detenção até os mínimos tolerados. Desta forma, estruturas “caras” destinadas à reabilitação (disciplinarização) como o acesso à educação, às bibliotecas, à saúde e a diversos outros direitos dos detentos, foram sistematicamente suprimidas. Porém, muito além disso, para Wacquant esse corte de gastos foi fácil de justificar pelo fato de que a própria racionalidade penal em voga nos Estados Unidos novamente pensa o encarceramento como algo que objetiva a neutralização dos internos e a expiação de suas faltas por meio do sofrimento. Uma racionalidade que orienta dos discursos políticos, às demandas da mídia majoritária, chegando às práticas dos diretores de presídios. Desta forma, fica evidente como essa estrutura de encarceramento em massa não desempenha nenhuma função de recrutamento ou disciplinamento de uma mão de obra ativa. Para Wacquant ela: Serve sobretudo para armazenar as frações precarizadas e desproletarizadas da classe operária negra, seja porque elas não encontram trabalho devido a uma combinação de déficit de qualificação, discriminação do empregador e concorrência de imigrantes, seja porque se recusam a submeter-se à indignidade dos empregos de baixo padrão dos setores periféricos da economia de serviços ‒ que os moradores do gueto qualificam comumente de “trabalho escravo” (slave jobs).111

Diante disso, a partir das pesquisas de Wacquant, brevemente resumidas aqui, podemos chegar a algumas conclusões: 1) há um nexo direto entre a consolidação do neoliberalismo e o fortalecimento de políticas de encarceramento em massa; 2) estas políticas têm consumido cada vez mais energia e recursos financeiros dos governos, a ponto de se tornarem prioritárias; 3) elas são direcionadas seletivamente para os estratos da população que foram marginalizados com a atrofia das políticas de bem-estar social; 4) visam a criminalização de formas de vida e estratégias de sobrevivência destes grupos; 5) seu objetivo não é a produção de corpos úteis e dóceis, mas a neutralização e exclusão dos encarcerados. No Brasil, um processo bastante similar e com resultados bastante semelhantes pôde ser verificado. Como já demonstrado, de 1990 até 2014 o Brasil passou por uma elevação sem precedentes de sua população prisional para ocupar hoje o terceiro lugar mundial em número variam de US$ 10 a US$ 60 por mês. E seus ganhos já são amputados por diversas retenções, a título de ‘restituição’ às vítimas por suas más ações e de apoio alimentar a seus filhos, se eles os tiverem”. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 274. Wacquant relata em seguida que já existem empresas especializadas na cobrança desses débitos dos presos. 111 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 342.

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absoluto e relativo (por 100 mil habitantes) de encarcerados;112 além de figurar como a quinta maior taxa de ocupação dos presídios (161%) atrás das Filipinas (316%), Peru (223%), Paquistão (177,4%) e Irã (161,2%); e como a sexta maior taxa de presos sem condenação (41% dos presos nesta situação).113 Entre 1995 e 2010 o Brasil teve a segunda maior variação da taxa de aprisionamento dentre os cinquenta países com a maior população prisional do mundo, com um crescimento de 136%. Apenas a Indonésia apresentou uma taxa maior (145%), ainda que se deva observar que este país tem hoje uma taxa de 66 presos para cada 100 mil habitantes e uma população prisional de 167.163 pessoas.114 Levando-se em consideração apenas os quatro países com as maiores populações prisionais, o Brasil seguiu uma tendência diametralmente oposta a de seus semelhantes. Enquanto no período de 2008 a 2014 o Brasil aumentou em 33% sua taxa de aprisionamento, os Estados Unidos reduziram em 8%, a China em 9% e a Rússia em 24%, o que leva à constatação de que, seguindo esta tendência, até 2018 o Brasil terá uma população privada de liberdade superior à da Rússia.115 Este crescimento abrupto do número de presos foi acompanhado, como consequência, de uma grave crise: o déficit de vagas em 2014 já representa quase o número total de presos no ano de 2000. Enquanto nesta data o Brasil contava com 232.755 presos e com um déficit de 97.045 vagas, em 2014 a população carcerária chegou a 607.731 presos alcançando um déficit de 231.062 vagas.116 Considerando a relação entre ingressos e saídas do sistema prisional, tudo leva a crer que estes números têm uma forte tendência a piorar. Apenas no primeiro semestre de 2014, quando entraram 155.821 pessoas no sistema, apenas 118.282 foram liberadas, o que significa que para cada 100 ingressantes, apenas 75 pessoas saem do sistema. Quando analisado este dado por tipo de unidade, os resultados ficam ainda piores: nas unidades destinadas a presos

112

Leia-se no Novo diagnóstico de pessoas presas publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2014 que inclui os dados das prisões domiciliares. Conforme este estudo, o Brasil já contaria com uma população carcerária de 711.463 presos. Disponível em: . Acesso em: agosto de 2015. 113 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento nacional de informações penitenciárias. Brasília. 2015. Disponível em: < http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-tercafeira/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: agosto de 2015. 114 Ibid. 115 Ibid. 116 Ibid.

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provisórios, para cada ingresso de 100 pessoas, 68 são liberadas; ao passo que no regime semiaberto, para cada 2 pessoas que saem apenas uma entra.117 Outro dado que demonstra o crescimento vertiginoso do recurso ao aprisionamento nas duas últimas décadas é a idade dos estabelecimentos prisionais brasileiros. 21% deles possui até 5 anos de idade, 18% entre 5 e 9 e 20% entre 10 e 19 anos.118 Ou seja, 59% dos estabelecimentos prisionais existentes no Brasil atualmente foram construídos após 1995 – ano em que se iniciava o governo de Fernando Henrique Cardoso. Todavia, a análise do perfil destes presos é o que demonstra como a lógica neoliberal promove o encarceramento massivo da população jovem, negra, com baixa escolaridade e pobre – justamente aqueles que são o refugo da sociedade de consumo, nas palavras de Bauman, os principais atingidos pela retração das redes de seguridade social. Assim, temos que 55% da população carcerária é composta por jovens entre 18 e 29 anos e 67% por negros.119 Com relação à escolaridade, 6% são analfabetos, 9% alfabetizados sem cursos regulares, 53% com ensino fundamental incompleto e 12% com ensino fundamental completo. Apenas 1% possui ensino superior incompleto e o número de presos com ensino superior completo é tão irrisório que ele chega a marca estatística de 0%.120 Com relação a estes dados, convém recordar que se nossa população geral é composta por 48% de brancos e 51% de negros; de 49% sem instrução ou ensino fundamental incompleto e 11,3% de pessoas com o ensino superior completo; e por 26% de jovens entre 15 e 29 anos,121 restando evidente que as políticas prisionais são dirigidas seletivamente para um determinado grupo da sociedade, como pode ser visto na tabela abaixo.

Tabela 2 Comparativo entre as estatísticas da população geral e da população encarcerada População geral

117

População encarcerada

Ibid. Isso demonstra a preferencia clara de nosso sistema pelas medidas de privação de liberdade mais drásticas. Enquanto a população carcerária em geral aumenta, há uma redução do aprisionamento em regime semiaberto. 118 Ibid. 119 Se considerarmos que esta é justamente a população que aparece como vítima preferencial dos crimes de homicídio (52,53% das vítimas de homicídio em 2012 eram jovens entre 15 e 29 anos, sendo que destes 77% eram negros e 93,3% homens), não é absurdo inferir que o destino de boa parte da população jovem e negra do Brasil são ou a prisão ou o óbito. 120 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento nacional de informações penitenciárias. Brasília. 2015. Disponível em: . Acesso em: agosto de 2015. 121 Dados do Censo de 2010 do IBGE. Disponível em: . Acesso em: agosto de 2015.

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População negra

51%

67%

População jovem

26% (15-29 anos)

55% (18-29 anos)

49%

68%

24,6%

8%

11,3%

0%

Sem instrução ou ensino fundamental incompleto Ensino médio completo e ensino superior incompleto Ensino superior completo Fonte: INFOPEN e IBGE.

Todavia, no caso brasileiro os instrumentos utilizados para a expansão do encarceramento, ainda que em larga escala inspirados pela lógica da tolerância zero implementada nos EUA, dependeram menos de mudanças legislativas explícitas do que da própria atuação do sistema de justiça criminal.122 Neste sentido, destaca-se a utilização da nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) como instrumento de aprisionamento massivo da população jovem e negra, objeto preferencial das políticas penitenciárias. Atualmente os crimes relacionados à Lei de Drogas são responsáveis pela manutenção do encarceramento de 27% da população prisional incluindo presos condenados e provisórios. Trata-se do maior índice percentual seguido dos tradicionais crimes patrimoniais como roubo (21%), furto (11%) e receptação (3%). Somente estes crimes já são responsáveis pela prisão de 62% dos detentos. Dividindo por gênero, o crime de tráfico de drogas sozinho mantém no cárcere 63% das mulheres presas. Trata-se do principal instrumento sistemático do encarceramento feminino. Todavia, é sintomático que a Lei de Drogas seja hoje o principal instrumento utilizado para o hiperencarceramento da população jovem e negra. Ocorre que, a Lei 11.343/06 introduziu uma nova dinâmica no trato aos crimes de uso e de tráfico de drogas que se orienta com mais clareza para uma punição desigual das classes sociais mais altas e baixas. Uma das novidades da nova Lei de Drogas (11.343/06) teria sido a sua aparente descriminalização do uso de drogas. Ao menos não há para este a pena privativa de liberdade, pois como afirma o art. 28, caput, e § 1º: 122

Apesar de em 2015 estarem em discussão no Congresso Nacional propostas com alto poder encarcerador, tais como a reforma do Código Penal e a emenda constitucional com vistas à redução da idade penal, no período em análise algumas das principais mudanças legislativas, tais como a Lei de Drogas (11.343/2006), que despenalizou o uso de drogas, e a Lei 12.403/2011, que mudou o regime das prisões preventivas, visavam abstratamente a redução do encarceramento. Todavia, o sistema de justiça criminal se encarregou de impedir que estes efeitos fossem alcançados.

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Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

Por outro lado, o tratamento dado ao crime de tráfico de drogas 123 se agravou, por exemplo, com o aumento da pena e com a impossibilidade de imposição de penas restritivas de direitos que vigorou até 2012.124 Porém, o grande problema da nova lei foi a introdução, por meio do artigo 28, § 2º, da regra que o juiz deverá seguir para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal ou não. De acordo com o dispositivo, Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. (grifos nossos)

Desta forma, a lei reforça a tese de que, mais do que simplesmente a quantidade de substância proibida, importa a classe social do agente. Afinal, uma mesma quantidade de droga apreendida na casa de uma pessoa de classe média e de uma pessoa de classe pobre poderá provocar um tratamento bem distinto. Não é à toa que, como afirma Nara Machado, Pode parecer, a princípio, que a nova legislação trouxe benefícios para aqueles que são apenas usuários, pois o consumo de drogas não pode mais conduzir ninguém ao cárcere. Entretanto, quando verificamos os mecanismos de criação de estereótipos de “traficantes”, de controle punitivo das classes sociais mais baixas, consideradas perigosas, e de repressão bélica ao tráfico de drogas, percebemos que aqueles considerados “perigosos”, mesmo que estejam apenas fazendo uso de droga ilícita, serão submetidos à pena de prisão.125

123

Previsto no artigo 33, caput, é caracterizado pelas seguintes condutas: importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. 124 Por meio da Resolução 05/2012, publicada em 16 de fevereiro de 2012, o Senado Federal suspendeu a execução da expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, contida no parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343/06. Isso ocorreu em virtude da decisão pela inconstitucionalidade do dispositivo concedida pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 97.256/RS. 125 MACHADO, Nara Borgo Cypriano. Usuário ou traficante? a seletividade penal na nova Lei de Drogas. In: Anais do XIX Encontro Nacional do Conpedi, Fortaleza, 2010. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2011. Disponível em: < http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3836.pdf> p. 1104.

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A prática policial confirma essa tese. Orlando Zaccone, delegado de polícia, transcreve em sua dissertação de mestrado sua experiência e mostra que [...] um delegado do meu concurso, lotado na 14 DP (Leblon), autuou, em flagrante, dois jovens residentes na zona sul pela conduta descrita para usuário, porte de droga para uso próprio, por estarem transportando, em um veículo importado, 280 gramas de maconha [...], o que equivaleria a 280 “baseados” [...] o fato de os rapazes serem estudantes universitários e terem emprego fixo, além da folha de antecedentes criminais limpa, era indiciário de que o depoimento deles, segundo o qual traziam a droga para uso próprio, era pertinente.126

Este relato reafirma como, na prática, o que importa não é a quantidade de substância entorpecente apreendida, mas as outras circunstâncias (sociais) que envolvem o delito. Como demonstra a pesquisa Tráfico de drogas e Constituição: um estudo jurídico-social do tipo do art. 33 da Lei de Drogas diante dos princípios constitucionais-penais, nas varas criminais do Distrito Federal, quase 70% dos processos referem-se a presos com quantias inferiores a 100 gramas de substância proibida. No Rio de Janeiro, esse índice é de 50%.127 Ademais, nesta pesquisa, a partir de uma análise dos processos do Superior Tribunal de Justiça, verificou-se que “[...] 67% dos réus estavam nas seguintes condições: a maioria é réu primário, com bons antecedentes, estava desarmada na ocasião da prisão em flagrante e não integrava organizações criminosas”.128 Em suma, esta nova lógica atribuída a aplicação dos crimes previstos na Lei 11.343/2006 vem se demonstrando extremamente eficaz para o crescimento vertiginoso do aprisionamento de jovens, negros, com baixa escolaridade e pobres no Brasil, podendo-se dizer que esta lei se tornou um dos principais instrumentos do encarceramento em massa brasileiro. Diante destas circunstâncias que envolvem a penalidade neoliberal nos EUA e no Brasil, percebe-se que o semblante sereno apresentado pela nova política econômica às classes privilegiadas muda de expressão diante da crescentes desigualdades. Só restam as filas punitivas. É voz uníssona a constatação de que o gigantesco sistema penal neoliberal possui uma função latente de gestão da miséria, fruto do desemprego estrutural que multiplica

126

ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 19-20. 127 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Tráfico de drogas e Constituição: um estudo jurídico-social do tipo do art. 33 da Lei de Drogas diante dos princípios constitucionais-penais. Projeto Pensando o Direito 1/2009. Rio de Janeiro, Brasília: 2009. Disponível em: Acesso em agosto de 2015. 128 Ibid.

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consumidores falhos. Segundo Vera Malaguti, o objetivo é conter os que não são capazes de comprar, sendo esta aptidão o “novo critério de pureza”.129 Loïc Wacquant introduz a compreensão de que o sistema punitivo do regime pósindustrial norte-americano visa, acima de tudo, manejar a “insegurança social” produzida pelo novo contexto econômico, contribuindo de forma decisiva para instaurar uma nova forma de Estado. A governamentalidade inaugurada por Reagan e Collor, cada um em seu país, traz consigo o poder punitivo como grande ferramenta de submissão dos miseráveis mediante ferramentas punitivas e novas subjetivações. Sintetizando, nas palavras do autor: “Em resumo, a penalização da pobreza provou ser um vetor prolífico para a construção da realidade social e para a reengenharia do Estado direcionada ao ordenamento da insegurança social na era do capitalismo desregulado”.130 Desta maneira, as novas técnicas de coerção penal sobressaem na lógica de não ingerência do Estado na economia e precarização do trabalho, produtoras/mantenedoras de desigualdade social no Estado Neoliberal. A comprovar isto, inicialmente, demonstrou-se o conjunto de fatores econômicos e sociais que correspondem à demanda punitiva construída pelo projeto neoliberal nos Estados Unidos da América e no Brasil. Como se pode compreender, a implantação do formato neoliberal e a escalada da desigualdade e pobreza ambientaram a política de soerguimento repressivo, direcionando ao paroxismo o inchaço o sistema prisional. Tudo indica que as peculiaridades do controle penal neoliberal só podem ser compreendidas quando inseridas na ótica de imposição da disciplina do trabalho precário (assalariado ou ilícito) e na demanda por ofuscar a conflitividade social inerente à pobreza e à falta de assistência. O dito “trabalho dessocializado” se mantém diante do rigoroso aparato controlador, sendo certo o caminho dos que não se conformam com a segregação que marca o campo social da fase pós-industrial. O sistema produz, reproduz, aprisiona e condiciona os “refugos humanos”. Muito longe das funções declaradas das penas (prevenção, ideologias “re”), o largo campo punitivo do Brasil neoliberal, composto pelo panoptismo que agrega o cárcere e as

129

MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 79. 130 WACQUANT, Loïc. Apêndice teórico: um esboço do Estado neoliberal. In: Discursos sediciosos. Rio de Janeiro, 1º e 2º sem. 2010, ano 15, n. 17/18, p. 143.

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penas alternativas em números sempre crescentes, reitera diariamente sua condição de conformador de um regime social de miséria em meio às classes desfavorecidas.131 Os insubmissos rapidamente são vigiados e punidos, manobra esta que escora as medidas econômicas e sociais que não pretendem tocar na concentração de riquezas e de vida digna. A estes desajustados, que supostamente não tiveram sucesso na vida por sua própria ausência de mérito, a única alternativa que o Estado oferece é a pena. Como comprovado, ambos os países experimentaram alterações semelhantes no enredo socioeconômico, e isto repercutiu em alterações igualmente semelhantes na justiça criminal. A radicalização dos pressupostos capitalistas operado pelo Neoliberalismo, tanto nos EUA quanto no Brasil, correspondeu no setor punitivo a uma radicalização no uso das prisões. Resta aqui confirmada, portanto, a premissa de que o sistema penal é essencialmente político, repercutindo alterações da ordem socioeconômica perante a necessidade de coerência da subjetivação do sistema. Mais especificamente, percebemos que pontualmente com relação ao sistema penal neoliberal de matriz norte-americana, cuja adesão do Brasil é evidente, trouxe como marco fundamental o aumento em larga escala do uso da prisão.

6. CONCLUSÃO

Diante do exposto, ficou demonstrada que a assimilação do Brasil ao modelo econômico norte-americano pós-industrial replicou também em uma assimilação de seu formato punitivo, comprovando a premissa de que os sistemas penais estão sempre relacionados com as conjunturas políticas que os envolvem. Compreendeu-se, desde cedo, que para chegar a uma justa análise dos sistemas punitivos era preciso reconhecer verdadeiramente que os mesmos se inserem num projeto de Estado, conjugando-se com os aspectos econômicos e sociais. Neste passo, passamos pelas principais alterações ocorridas nos EUA e Brasil, a fim de verificar a real semelhança nas políticas implementadas. Verificado que o Brasil seguia as diretrizes dos EUA no setor socioeconômico, testamos e comprovamos que tal adesão também se deu no campo penal com um “Neopunitivismo”, representado pela elevação aguda do complexo carcerário em ambos os países. A semelhança nas taxas é patente. 131

GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade no sistema capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 288-289.

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Desta forma, foi possível comprovar que o paradigma de “Punição e estrutura social” continua vigente, e que o fluxo penal encarado pelos países analisados deve ser entendido a partir de tais pressupostos. Em síntese, devemos compreender a fase do “grande encarceramento” norteamericano e brasileiro como um reflexo da nova conjuntura capitalista neoliberal, cuja elevação punitiva em números reflete um manejo peculiar da nova insegurança social, relevante para manter uma continuidade no rearranjo da demanda por ordem instituída e preservando as novas subjetivações necessárias para preservação da estrutura social desejada pelas elites.

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