NERVOS DA TERRA: HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO E POLÍTCA ENTRE OS SEM TERRA DE ITAPETININGA-SP

Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

Nervos da Terra Histórias de Assombração e Política entre os Sem-Terra de Itapetininga-SP

Danilo Paiva Ramos

São Paulo 2006 1

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

Nervos da Terra Histórias de Assombração e Política entre os Sem-Terra de Itapetininga-SP

Danilo Paiva Ramos

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de mestre em Antropologia.

Orientador: Prof. Dr. John Cowart Dawsey

São Paulo 2006

2

No túmulo das estradas estão escondidos Milhares de mortos de bocas abertas. Qual a culpa que me castiga Na eternidade desta boca aberta?... Esta boca aberta que ninguém responde, Boca aberta que o sol dos verões seca logo A que a poeira apaga a voz (...) Mas uma voz te mandará do espaço A lei maior que fataliza o braço Muitas vezes a gente se revolta Não que falte a paciência de se lutar Muitas vezes a gente se revolta Por incapaz de não se revoltar Mário de Andrade

3

A Antônio Félix e Arlinda Silva, Lutadores do povo, cuja força e ternura Animam muitas esperanças compartilhadas. A Maria do Carmo Aparício, Mãe, avó e bisavó de muitos filhos, Que, contando sobre as vacas, lobos, cantorias e Santos da pequena vila de Lamosa em Portugal, Nos ensinava a viver.

4

Todos os nomes que constam no texto da dissertação foram alterados para preservar a identidade dos assentados.

5

Agradecimentos À dona Arlinda, seu Antônio, José Erculano, Lúcia, Leopoldo e Sandra pelo acolhimento, conversas, interesse e ajuda. Aos alunos dos cursos de alfabetização de adultos e música realizados no assentamento. À Rosa, Carlana e Edna, pela ajuda no curso de alfabetização de adultos. Aos meus companheiros de Folia de Reis, pelas caminhadas, cantorias e fé compartilhadas. À Ana Claudia, por dividir comigo o trabalho com alfabetização de adultos e inúmeros questionamentos. À Lua Gramond, pelo auxílio no trabalho de musicalização. Ao Douglas Estevan, pela oportunidade de trabalhar teatro no assentamento. Ao Marcelo Justo, por muitas discussões e pelo apoio à pesquisa. À Magda Gebrim, pelas conversas e trabalhos conjuntos. Aos meus pais, Lúcia e Valdecir, pelo apoio aos estudos e financiamento das viagens de campo. Ao meu irmão, André, pela leitura, apoio e interesse. À minha mãe, em especial, pela leitura e correção dos textos, e pelas visitas ao assentamento que tanto nos uniram. À Mariana, por partilhar experiências, angústias e felicidades, e valiosas sugestões ao trabalho. À Olivia Janequini , pela leitura e crítica dos textos, diálogo fundamental à pesquisa. Ao Herbert Rodrigues, pelo diálogo, leitura e troca quanto aos estudos teóricos. À Maíra Buhler, pelo estudo sobre populações camponesas e a questão da morte. Ao André Kées, pela leitura e partilha dos estudos teóricos. À Vanilza Jacundino Rodrigues e ao Rubens Silva, pela leitura, apoio e comentários. Ao Giovani Cirino, pela atenção e crítica ao trabalho. Ao prof. John Cowart Dawsey, mestre dos silêncios e das falas que nos iluminam profanamente. Obrigado pelos ensinamentos repletos de sensibilidade e estranhamento. À profa. Sylvia Caiuby Novaes, pelo interesse, leitura cuidadosa, crítica, sugestões e valorização do trabalho. Além disso, agradeço pelos ensinamentos da prática docente. À profa. Maria Lúcia Montes, pelas palavras e crítica profunda que permitiram a reorganização do trabalho e mudança de meu olhar em campo. À profa. Beatriz Perrone-Moisés, pelos ensinamentos da prática docente, e pelas estimulantes aulas sobre as Mitológicas. À profa. Esther Jean Langdon, pela leitura e comentários críticos ao trabalho. Aos amigos e colegas do Núcleo de Antropologia da Performance e do Drama (NAPEDRA) pelo imenso apoio e interesse.

6

Resumo Um fantasma ronda a sede da antiga fazenda ocupada pelos sem-terra, o falecido latifundiário. Manifestações de escravos que trabalharam e morreram na fazenda há muitos anos atrás também assustam os novos moradores. Bolas de luz surgem muitas noites em diversas partes do Assentamento Carlos Lamarca MST, surpreendendo e atemorizando os trabalhadores rurais. Propõe-se como tema de pesquisa o estudo das “histórias de assombração” contadas pelos assentados. Tomando essas narrativas como performances orais, busca-se entender como essas imagens carregadas de tensão, manifestadas no ato de narrar, ajudam esses trabalhadores a interpretar sua experiência de perda da terra, migração, trabalho e moradia em centros urbanos, engajamento no MST, luta política e assentamento. Pretende-se compreender como e em que medida esses trabalhadores se pensam através destas performances orais. Há dois procedimentos analíticos que se mesclam nesse trabalho para entender melhor as “histórias de assombração”. Por um lado, a interpretação das narrativas é buscada na comparação das narrativas entre si. Por outro lado, essas narrativas são inseridas no contexto da história desse assentamento, das práticas de trabalho e dos laços de parentesco estabelecidos nessa comunidade. Acredita-se que abordar essas narrativas possa ser um passo importante em direção a um melhor entendimento de como dimensões políticas e econômicas da luta pela terra são interpretadas e vivenciadas pelos trabalhadores rurais sem-terra.

7

Abstract A ghost haunts the main house of a farm taken over by a group of landless people. It is the ghost of the late landowner. The manifestations of some slaves who worked and died on that farm many years before also frightens the new dwellers. Moreover, during the night images of light balls arise in different parts of the settlement Carlos Lamarca MST, delighting some the rural workers who live there, whereas others are absolutely scared by this sight. This research focuses on the study and analysis of the ghost and spook stories told by the rural workers settled there. By regarding these stories as oral performances, the researcher tries to understand and analyse how these images, impregnated with tension and anxiety while they are depicted in the accounts, help these rural workers to interpret several difficult experiences they have come up against throughout their life course: such as the loss of the land, migration, life and work in urban centers, engagement in the MST, political fight and settlement. The researcher intends to highlight how and to what extent these workers think over themselves and their experiences through these oral performances. There are two analytical procedures of study which are simultaneously presented in this work to comprehend these ghost and spook stories. On the one hand, the interpretation of the stories are based on the comparison of these accounts, one related to another or to the whole. On the other hand, these stories are made up in the historical context of the settlement itself, placed within their work practices and family relationships set up in this community. This attempt to study these stories is supposed to be one of the first steps to elucidate how the political and economic dimensions involved in their fight for the land are interpreted and experienced by these rural workers themselves.

8

Sumário INTRODUÇÃO

10

Primeira parte: OS SEM TERRA E OS ESCRAVOS Capítulo 1 – Assentamento

27

Capítulo 2 - Sobre a Terra

33

Capítulo 3 - Sob a Terra

50

Capítulo 4 - Vertigens do Cativeiro

65

Segunda parte: FAZENDEIRO FANTASMA Capítulo 5 - Sede e divisão dos lotes

86

Capítulo 6 - O Fantasma da Sede

94

Capítulo 7 - A riqueza do Fazendeiro

124

Terceira parte: BOLAS DE LUZ E OURO ENCANTADO Capítulo 8 - O INCRA e a “Comunidade”

144

Capítulo 9 - Bolas de Luz

158

Capítulo 10 - Ouro Encantado

191

CONSIDERAÇÕES FINAIS

216

BIBLIOGRAFIA

223

ANEXOS Folia de Reis e Novena

228

Educação de Adultos Parentesco

236 250 9

Introdução I Nervos da terra foi a imagem que cristalizou minha intenção em refletir sobre as tensões que marcam a experiência dos sem-terra, moradores do Assentamento1 Carlos Lamarca2 do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Itapetininga, estado de São Paulo. A pesquisa envolveu trabalhar e ser trabalhado por aquilo que M.Taussig (1992) designou como sendo o Sistema Nervoso. Na luta pela terra, trabalhadores tornam-se sem-terras, confrontam-se com o Estado e com elites agrárias locais, tomando parte do MST. A conquista da terra, a divisão dos lotes e o estabelecimento das famílias no assentamento constituem momentos difíceis na trajetória dos assentados. Nas lembranças desses trabalhadores e em suas relações sociais tais momentos ganham contornos dramáticos. Diversamente, as “histórias de assombração” contadas por muitos assentados constituem, a meu ver, uma poética alternativa que, por meio do riso e da tensão corporal, iluminam profanamente a realidade. Contrapondo imagens de escravos, fantasma fazendeiro, bolas de luz e ouro encantado, os assentados tecem estranhas montagens3 cujos choques permitem a eles especular sobre a história da Fazenda Monjolo, ocupada pelo acampamento, e refletir sobre suas próprias 1

B.M. Fernandes aponta que a maior parte das ocupações, por meio do Acampamento, têm resultado em Assentamentos que são “o território conquistado”, a “conquista da terra”, e a “instalação’’das famílias. Esse momento coloca inúmeros desafios quanto à produção e a continuidade da luta (1996, :241). 2 Em conversa com uma assentada, pude saber que o nome Carlos Lamarca foi escolhido pelos assentados, pois o “guerrilheiro” teria acampado próximo da região onde hoje se situa o assentamento. Este assentamento situa-se no bairro rural da Várzea de Cima, próximo a uma grande fazenda produtora de eucalipto e a muitos sítios. Pertence à chamada Regional de Sorocaba do MST. Na região há ainda o Assentamento Caíque, Ipanema e Bela Vista. Mais ou menos cinqüenta famílias constituem o assentamento Carlos Lamarca. Essas dividiram suas terras em lotes, sem constituírem, no entanto, as chamadas Agrovilas, segundo decisões dos próprios assentados. 3 Baseio-me no conceito de montagem tal como aparece na obra de M.Taussig. Para o autor, as montagens justapõem fragmentos distantes gerando efeitos de interrupção “imagens evocadas pela memória, (...) onde o tempo parece imóvel, como uma imagem em direção à qual o passado e o futuro convergem explosivamente.”(1987, :413).

10

histórias. No dia a dia do difícil trabalho com a terra pouco fértil, da presença dos órgãos do governo, e dos problemas do convívio entre os assentados, as “histórias de assombração” justapõem-se às histórias da luta política. Os choques e contradições levam ao riso e seriedade, tensão nervosa e relaxamento. Entre o medo e o divertimento tais narrativas auxiliam a lida com a terra num Sistema Nervoso. Comecei minha pesquisa etnográfica no Assentamento Carlos Lamarca, tendo como meta o estudo da atuação dos jovens desse assentamento nas escolas municipais e estaduais da região. Procurava entender quais articulações e conflitos havia entre a educação transmitida pelos pais em casa e na roça, a educação obtida através da participação no MST, e a educação obtida nas escolas da cidade. Pressupunha que as performances sociais desses jovens na escola poderiam ser interessantes para observar a expressão de conflitos ou identificações dos jovens assentados com outros grupos sociais locais, com o MST e com uma educação escolar marcadamente urbana e distinta da educação dos pais. Quando realizava a etapa inicial da pesquisa de campo, um casal de assentados convidou-me para ficar em sua casa. Resolvi perguntar-lhes se eu poderia dormir na sede da antiga fazenda, uma vez que grupos de pessoas que vinham de fora dormiam lá. Disseram que de forma alguma eu dormiria lá sozinho, porque havia um fantasma na sede, o fantasma do antigo dono da fazenda. A partir desse fato, comecei a perguntar a outras pessoas se já tinham ouvido falar nessas “coisas de fantasma”. Muitos não entendiam a pergunta, paravam um instante e corrigiam-me: - “Você tá querendo saber das histórias de assombração, né?”. Entendi, então, que essas histórias constituíam um gênero específico que se destacava das falas e conversas diárias. Talvez essas narrativas designassem um campo privilegiado para entender questões antes buscadas por minha pesquisa sobre a educação dos jovens e suas performances. Houve a mudança do tema a ser pesquisado, o que gerou novos desafios teóricos e metodológicos. Tais desafios foram sempre enfrentados por acreditar-se que essas narrativas poderiam corresponder a um espaço criado pelos assentados para refletir sobre dimensões marcantes à sua experiência, um lugar onde contam histórias de si para iluminar aspectos obscuros de sua história coletiva. Pensando com W.Benjamim que os narradores retiram de suas próprias experiências e das experiências relatadas por outros o material daquilo que contam e, desse modo, o que é narrado se incorpora à experiência dos ouvintes (1936, :201), decidi tentar interpretar essas histórias de fantasmas de fazendeiros, escravos, bolas de luz e ouro encantado, procurando perceber as conexões entre essas narrativas e outros contextos relevantes à vida desses assentados. São marcantes as relações entre essas “histórias de assombração” e a atuação política, as relações de trabalho, os 11

processos de migração e as questões familiares, etc. Momentos difíceis como a adesão ao movimento, a divisão dos lotes e a constituição das famílias assentadas são enfocados ressaltando as crises, rupturas e tentativas de solução dos conflitos ou cisões sociais, de modo próximo ao modelo teórico-metodológico elaborado por V.Turner (1974) dos dramas sociais. As “histórias de assombração” são tomadas como montagens que articulam a história e o conhecimento social, refletindo e problematizando as questões não resolvidas da experiência dos assentados. Percebendo a relevância da descrição e análise do ato de narrar as histórias, adotei o ponto de vista de R. Bauman (1986), e considerei essas “histórias de assombração” como sendo performances orais. Para compreendê-las, realizei uma etnografia da performance, focando gestos, atos e técnicas corporais empregadas pelos narradores no evento narrativo. Por outro lado, observando a semelhança entre aspectos de uma narrativa para com as outras, somei à etnografia da performance uma análise comparativa das “histórias de assombração”. Essa última inspira-se na análise estrutural dos mitos de C. Levi-Strauss (2003a), adequando o método às peculiaridades do objeto enfocado. Dado o processo de constantes transformações (migração, engajamento político, organização da produção) e os grandes problemas decorrentes dessas mudanças, as narrativas tornam-se férteis em contradições, ambigüidades, tensões, etc. Baseando-se no conceito benjaminiano, essa análise procurou revelar as “histórias de assombração” enquanto “imagens carregadas de tensão”4. Essas imagens são elaboradas pelas narrativas sem, no entanto, tentar harmonizar os conflitos presentes. Desse modo, procurei entender melhor sobre o que falam os assentados quando contam suas “histórias de assombração”. Em que medida refletem sobre sua experiência coletiva de engajamento e luta por terra e reforma agrária, e sobre suas trajetórias de migração, assalariamento e desemprego? Interpretando o pensamento5 desses trabalhadores rurais, expresso por meio dessas narrativas e performances, seria possível perceber as questões suscitadas pelos conflitos sociais no campo sob uma nova perspectiva? Nesse sentido, esse trabalho nutre-se e distancia-se de pesquisas cujo objetivo principal é descrever a história do MST, enfatizando conflitos dos sem-terra para com latifundiários e Estado, e pesquisas que enfocam conflitos entre assentados mais e menos engajados no MST, espécie de oposição entre base e liderança. A análise da história do MST enquanto organização que antagoniza 4

O conceito refere-se aos trabalhos de W. Benjamin (1929): “O Surrealismo”, “Sobre alguns temas em Baudelaire” e “Sobre o conceito de história”. Tal conceito é apropriado à reflexão antropológica com as abordagens de M. Taussig (1980) e John C. Dawsey (1999b). 5

Baseio-me, por um lado, na reflexão de K Woortmann (1990) quando esse tenta interpretar um certo pensamento do campesinato brasileiro, e na análise de M.Taussig (1980) quando esse enfoca uma cosmologia dos trabalhadores.

12

trabalhadores rurais a latifundiários e ao Estado é feita pelos trabalhos de B.M.Fernandes (1996) (2000a), que interpreta a formação do movimento no estado de São Paulo e posteriormente no Brasil, e Rapchan (1993), que através da etnografia do Assentamento Sumaré I faz interessantes considerações sobre a formação do movimento e identidade dos sem-terra. Já os conflitos entre assentados mais ligados ao MST e aqueles que, no processo de assentamento, se distanciam da prática do movimento são analisados por M.E.Miranda (1998)(2003d), M.C.Turatti (1999c), dentre outros. O ponto interessante dessas pesquisas, numericamente maiores em áreas como a Geografia, Antropologia e Sociologia, incide em mostrar conflitos e contradições marcantes na luta pela terra e reforma agrária que toma corpo através das práticas do MST. As dificuldades em analisar as questões suscitadas pela prática do movimento levam tais autores à adesão a um dos lados do conflito, deslegitimando o lado antagônico. Assim, a opção por justificar os procedimentos da liderança, ou de famílias guiadas por um ethos camponês, harmoniza, de modo dualista6, as tensões da luta política. Críticas a essa postura começaram a ser feitas com trabalhos como o de M.Justo (2005c), onde o autor enfoca conflitos entre assentados que reivindicam para si um ethos camponês e se opõem àqueles assentados ex-moradores de rua. Portanto, tal perspectiva mostra as manipulações de atributos identitários numa situação de conflito. Nas “histórias de assombração” e na trajetória dos assentados, proceder de forma semelhante, opondo ethos camponês à racionalidade do movimento, ou os sem-terra a latifundiários e Estado, significaria ocultar algo que tais montagens buscam problematizar: a percepção do autoritarismo, do mando e da violência no Estado e latifundiários, e entre os “companheiros” de luta. Com a intenção de refletir sobre tais contradições, a presente pesquisa tem como objetivo interpretar um gênero específico de narrativas7, as “histórias de assombração”, contadas pelos moradores de um assentamento do MST. Muitos moradores relatam situações em que eles próprios ou conhecidos viram e/ou ouviram “coisas estranhas” como, por exemplo, fantasmas de mortos, 6

Baseio-me nos argumentos de J.S.Martins quando o autor reflete sobre a dificuldade dos cientistas sociais em realizarem suas análises sem legitimarem um dos lados em contenda, aderindo a princípios maniqueístas próprios aos agentes de mediação. Nas palavras do autor, “Um dos efeitos da disputa é a busca de legitimidade, pelos lados em contenda, em diferentes sistemas de conhecimento, como a religião e a própria ciência. Quando a ciência responde cientificamente, isto é objetivamente e investigando, revelando as contradições da situação social e do processo histórico e neles o lugar da questão agrária e das possibilidades históricas que ela pede e abre, a reação é, então, para alguns, questionar a legitimidade do conhecimento científico. Ou, pior, questionar a ‘lealdade’ ou integridade do cientista. Algo do tipo: ‘sociólogo bom é o sociólogo que diz o que queremos’, isto é, sociólogo que legitima ‘o que somos ou o que julgamos ser’ ” (2000, :51). 7 A relevância do estudo das narrativas camponesas pode ser percebida, por exemplo, em algumas páginas e anexos dos trabalhos de Antonio Candido (2001) e de Duglas T. Monteiro (1974). No trabalho de E.Rapchan, a prática de contar histórias de assombração entre assentados são mencionadas pela autora como costumes que, mesmo em face à migração para as cidades, não desaparecem, mas e misturam a costumes urbanos e rurais (1993, :186). Entretanto, são raros os estudos como o de Luciana Hartmann (2005), que partem principalmente das tradições orais para entender questões relevantes a determinado contexto social. Apesar de não fazer uma análise centrada em histórias de assombração, a autora menciona a recorrência dessas histórias na fronteira entre Argentina, Brasil e Uruguai, onde há grande número de casarões abandonados de antigas fazendas.

13

bolas de luz, etc. Dentre os fantasmas de mortos, destacam-se o do antigo dono da fazenda e aqueles de escravos que teriam trabalhado na propriedade. Além disso, alguns assentados dizem ter receio de passar por certas partes do assentamento, salientando que sentem um “arrepio de medo” e caminham mais rápido, se tiverem que passar por esses lugares. Mas de que ordem seria esse medo manifestado por homens, mulheres e crianças cuja trajetória de vida é marcada por: recorrentes migrações, vidas difíceis no campo ou em grandes centros urbanos, engajamento num movimento social vivendo, conseqüentemente, em acampamentos8 à beira de estradas, participando de ocupações em fazendas, sempre sob a ameaça da polícia, dos jagunços e das más condições de saúde, moradia e alimentação? Seriam essas “histórias de assombração” uma linguagem específica deste grupo para dar sentido a aspectos de sua própria história e, paralelamente, especular sobre a história da fazenda onde se estabeleceram? II O período de 1979 a 1985 compreende o momento de formação do MST no Brasil. Este é o período em que se torna mais intensa a luta pela democracia, e em que as lutas trabalhistas conquistam importantes espaços no campo e na cidade (B.M.Fernandes,1996, :66). Este novo processo de conquista da terra pelos trabalhadores rurais inicia-se com lutas camponesas localizadas. Essas se articulam em diversos estados brasileiros na gênese de um movimento social nacional. As famílias do movimento fazem das ocupações de terra suas principais ações de luta. Com o aumento das ocupações, os conflitos fundiários se intensificam, e a questão da reforma agrária é recolocada no cenário político nacional (:17). A partir desse novo contexto em que se inserem os movimentos sociais de luta pela terra e pela reforma agrária, grande quantidade de trabalhadores marcados pela expropriação da terra, pelo desemprego e pelas dificuldades da vida nos grandes centros urbanos engajam-se no MST, o que implica em sérias mudanças em suas vidas. Optou-se por realizar uma pesquisa etnográfica no Assentamento Carlos Lamarca do MST devido ao fato dele ter concentrado grandes interesses do movimento. Situado na região sudoeste do estado, o assentamento está próximo a grandes centros urbanos, a importantes pólos da produção agrícola e a fortes assentamentos do MST. O assentamento Carlos Lamarca havia sido o local

8

O Acampamento do MST aparece para B.M.Fernandes como sendo a “ocupação do latifúndio” (1996, : 239), o espaço e o momento em que os trabalhadores “partem para o enfrentamento direto com o estado e com os latifundiários”(: 238). Muitas vezes as famílias são despejadas, mudando o acampamento para a beira de uma rodovia, de onde novas ações de ocupação tomam corpo até que as famílias consigam a desapropriação de alguma fazenda improdutiva, para “voltarem à terra”.

14

escolhido para sediar a futura escola nacional de formação de quadros (militantes)9. Isso fortaleceria o MST nessa região, que tem poucos assentamentos e acampamentos, já que a luta política por reforma agrária no lugar é considerada mais difícil pelos militantes. Tal fato se deve à menor capacidade de mobilização do movimento nesta região de forte desenvolvimento do agronegócio e da industrialização nos pólos urbanos. Devido aos conflitos acerca da forma de produção e de moradia, a base militante do movimento nesse assentamento se enfraqueceu, o que levou a dificuldades na consolidação daqueles interesses. Os desentendimentos dentro do grupo de assentados e os conflitos de assentados com lideranças do MST culminaram no distanciamento do movimento e no enfraquecimento da regional do MST em Sorocaba, devido à saída de militantes. Por fim, esse havia sido um dos primeiros assentamentos mistos, ou seja, com famílias vindas do campo e da cidade. A novidade consolidava novas estratégias de luta do MST, que haviam se iniciado com a criação do Centro de Formação do MST na cidade de São Paulo. Os trabalhos de base do centro se realizavam com moradores da periferia da metrópole e, também, com a chamada população de rua10. Agregar os excluídos de todos os tipos era a diretriz votada nos encontros do movimento, transformando-se, posteriormente, num desafio concreto com a formação do acampamento Carlos Lamarca. Desse modo, o Assentamento Carlos Lamarca tornava-se um lugar privilegiado para entender uma série de questões trazidas pelo MST e pela questão agrária no estado de São Paulo. As famílias assentadas são originárias das mais diversas regiões do país. Há famílias baianas, mineiras, paranaenses, pernambucanas, mato grossenses e paulistas. Marcadas pela necessidade da migração para outras regiões devido à perda de suas terras e às más condições de vida e trabalho, esses migrantes foram estabelecendo-se nas periferias de grandes centros urbanos (Campinas, Sorocaba, São Paulo) ou em cidades com grande produção agrícola (Araraquara, Americana, Sumaré, Hortolândia). Trabalhando como assalariados, mão de obra pouco qualificada e barata para as grandes empresas, os assentados foram quase sempre vítimas do desemprego e de grande exploração. Vivendo nas periferias, as famílias estavam sempre expostas à violência e à socialização dos filhos na criminalidade (periferias urbanas principalmente). Nesse contexto, tomaram conhecimento do MST através dos trabalhos de base, e resolveram aderir ao movimento. 9

Cursos nacionais e mesmo um encontro latino americano foram sediados no assentamento, mas após os conflitos entre os assentados houve a decisão do movimento de buscar outro lugar para sediar essa escola nacional de formação de quadros de militantes. Próximo à Cidade de São Paulo, no município de Guararema encontra-se hoje a Escola Nacional Florestan Fernandes onde se realizam cursos e encontros envolvendo militantes de todo o Brasil. 10 Para uma melhor compreensão desse processo de engajamento de ex-moradores de rua no acampamento e assentamento formado por famílias de trabalhadores rurais ou famílias oriundas de periferias de grandes cidades ver o trabalho de M.Justo (2005c) “Exculhidos: ex-moradores de rua como camponeses num assentamento do MST”.

15

Mudaram-se para acampamentos na região de Itapetininga no ano de 1996 e iniciaram uma longa jornada de ocupações, expulsões, ameaças, brigas e disputas que terminaria em 1998 com o assentamento nessa propriedade em Itapetininga. Mas os conflitos acerca da divisão dos lotes, do modo de produção (cooperada ou individual), da forma de moradia (agrovila ou individual) acabaram dividindo, “rachando” o grupo. Os impactos desses conflitos repercutem até hoje e podem ser percebidos tanto nas relações das famílias de assentados entre si, como nas relações destes para com o MST. O grupo que defendia a produção cooperada e a agrovila, propostas pelo movimento, continua a militar e a participar de encontros e atos do MST. Por outro lado, o grupo que defendia medidas distintas do movimento se mantém mais afastado e raramente participa das atividades do mesmo. Hoje, no assentamento de cerca de 920,5 hectares11, situado às margens do rio Itapetininga, região de fronteira entre as cidades de Itapetininga e Sarapuí, em quarenta e sete lotes (em média 12 h.a cada), moram as famílias de assentados que produzem para a subsistência e para o mercado. Apesar do assentamento pertencer à cidade de Itapetininga, os moradores utilizam a maior parte dos serviços públicos e comércio na cidade de Sarapuí, devido à proximidade (doze quilômetros). Há três tipos de associações de produtores no assentamento. Elas são responsáveis pela produção de pimentões (três associações), mandiocas (uma associação) e leite (uma associação). Baseiam-se, em grande parte, em laços de parentesco e recebem incentivo de pastorais da Igreja Católica, de organizações não governamentais (ONGs) e do MST. Além disso, técnicos do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), do MST e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) visitam o assentamento com certa freqüência. Com este suporte, o Assentamento Carlos Lamarca foi se estabelecendo na região onde estava antes situada uma fazenda muito antiga, a Fazenda Monjolo, propriedade da tradicional família Almeida Prado12. Entretanto, o assentamento representa apenas uma pequena parte do que teria sido o território daquela família. As marcas dos antigos proprietários são percebidas principalmente nas construções que foram preservadas pelos assentados13. A fazenda possuía um casarão, sede da fazenda, localizado às

11

Um hectare (símbolo = ha) é uma unidade de medida de área equivalente a 100 ares (unidade métrica de medida de área). Um hectare é equivalente a: a) 10 000 metros quadrados, b) Uma praça quadrada com 100 metros de cada lado, ou um campo de futebol, d) 0,01 quilômetros quadrados, e) 2,4710538 acres internacionais. 12

Interessa a essa pesquisa não uma historiografia da Família Almeira Prado, mas o modo como ela é imaginada pelos assentados. 13 Os trabalhos de José de Souza Martins (1983) “A aparição do diabo na fábrica, no meio da produção” e de Otávio Guilherme Velho (1995) “Besta fera”, podem ser considerados referências centrais à pesquisa. Entretanto, apesar da 16

margens de uma lagoa, três casas onde moravam os funcionários, duas delas construídas às margens do rio Itapetininga, e outra mais próxima à lagoa e à sede. Além das construções, as matas (reserva ambiental), aproximadamente 40,50% (372,7855h.a) do assentamento, são indicadas pelos moradores como sendo lugares em que aparecem assombrações. Por fim, os próprios lotes surgem como lugares onde já foram vistas bolas de luz. Todas essas construções e lugares em que acontecem “coisas estranhas” configuram ricos cenários para a aparição das assombrações. Cada um deles marca um passado que se desenvolveu independente da atuação dos assentados. Outros moraram e trabalharam naquela propriedade e, assim, constituíram uma história para aquele lugar que é, até certo ponto, desconhecida pelos atuais moradores do assentamento. Portanto, com a análise destas narrativas vislumbra-se, por um lado, a possibilidade de perceber como os assentados, através dessas narrativas, refletem sobre uma certa história da fazenda dos Almeida Prado. Por outro lado, para dar conta dessa história, esses trabalhadores rurais valemse de elementos importantes de suas trajetórias de vida e de sua história de luta política pela terra e reforma agrária, enquanto participantes do MST. Suponho que focar a atenção nessas estranhas narrativas permite entender o processo recente de luta política pela reforma agrária sob uma nova perspectiva. III Acredita-se que as “histórias de assombração” contadas pelos moradores do Assentamento Carlos Lamarca constituam um interessante desafio para uma abordagem antropológica. Supõe-se que a dificuldade inicial seja entender sobre o que falam esses trabalhadores rurais quando contam essas narrativas. A partir desse desafio propiciado pelo trabalho de campo, fez-se necessário perceber quais perspectivas teóricas e quais instrumentos metodológicos contribuiriam para uma melhor compreensão dos dados etnográficos. Adotando a perspectiva de J.C.Dawsey (1999b) quando ressalta que “fazer etnografia pode ser a tarefa de quem conta a história daquilo que está prestes a ser esquecido”(: 67), a análise das “histórias de assombração” aborda a reflexão de um grupo social dotado de uma postura intelectual de certo modo semelhante à do etnógrafo. Através de suas narrativas, os assentados debruçam-se sobre as cinzas deixadas pelos escravos, pelos fazendeiros, etc. Esses restos, descobertos no casarão, nas plantações, na mata, juntam-se às marcas que patrões, líderes, companheiros deixaram semelhança temática, o enfoque teórico metodológico proposto distingue, consideravelmente, o presente trabalho daqueles desenvolvidos por esses autores. 17

em suas lembranças. Se, como salienta W.Benjamin, “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”(1936, :201), seria possível dizer que as “histórias de assombração”, ao passarem de boca em boca, ao articularem aspectos de uma experiência coletiva, constituem-se como uma linguagem específica deste grupo para tratar de questões cruciais à sua sociabilidade? Para entender as relações que as narrativas tecem para com a história coletiva e as trajetórias individuais, tomam-se duas reflexões distintas sobre o conceito de experiência. Por um lado, preocupado em entender as transformações que ocorrem no modo de narrar e experienciar o mundo com a evolução das forças produtivas, W.Benjamim aponta que as narrativas buscavam transmitir uma experiência coletiva, mostrando que essa arte de narrar e de intercambiar experiências se encontra cada vez mais em crise (:198). Segundo o autor, “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”(:198). Com o processo de empobrecimento da experiência e da narrativa, surge o indivíduo caracterizado por suas vivências sem, no entanto, receber ou dar conselhos, sem ser capaz de falar exemplarmente (:201). Sabendo-se que a trajetória de vida dos assentados é marcada pela migração, por diferentes modos de inserção na estrutura produtiva (trabalho rural, operário, construção civil, etc.) e pelo engajamento num movimento social, é possível notar que há peculiaridades no modo como esses trabalhadores se inserem no processo de “empobrecimento da experiência” e da “arte narrativa”. Logo, foi importante observar quais experiências surgem como fontes das “histórias de assombração”, para entender o porquê dos assentados agarrarem-se a essa arte verbal para dar sentidos à sua realidade, e como isso se relaciona com suas distintas inserções na estrutura produtiva. W.Benjamin salienta que os narradores se movimentam com destreza nos “degraus da experiência”, compondo sempre “a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais profundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo nem um impedimento”(:215). Imagens de uma experiência coletiva são evocadas pela memória involuntária14 e compõem essas “histórias de assombração”. Nelas, a morte e as concepções de morte tornam-se um assunto coletivo. Através das imagens dos “fantasmas de mortos”, os narradores causam assombros. Desse modo, essas “imagens” de experiências coletivas vão sendo carregadas de tensões. Interpretar essas “imagens carregadas de tensões” pode ser uma porta de entrada para entender questões e conflitos marcantes à experiência desse grupo social e à trajetória de vida desses assentados. 14

O conceito de “memória involuntária” é pensado por W. Benjamin (1994) em “Sobre alguns temas em Baudelaire”.

18

Por outro lado, a reflexão que V.Turner (1982-1986) faz sobre a possibilidade de uma Antropologia da Experiência, baseada no pensamento de Dilthey, ajuda a entender como se dá o processo de percepção e expressão de uma experiência. Para esse autor, choques de dor ou prazer geram a interrupção no comportamento rotinizado. Do passado, evocam-se e revivem-se fatos semelhantes que se mesclam às imagens do choque presente. Com a necessidade de encontrar significado a essa dor ou prazer, o choque é convertido de mera experiência em uma Experiência. Nesse momento final ocorrem as performances, enquanto maneiras de transmitir as experiências, dotando-as de significado (1982, :35). Essa estrutura descrita por V.Turner permite visualizar melhor como se dá o processo de elaboração e expressão de experiências. Lançar luz sobre a experiência desses assentados constitui um objetivo essencial desse trabalho. Sua peculiaridade encontra-se no fato de buscar compreender tal experiência através da interpretação de formas expressivas elaboradas pelos próprios assentados. Partindo do modo como esses assentados retratam os conflitos para com latifundiários, Estado, MST e outros assentados, a análise contrapõe tais momentos às performances orais das “histórias de assombração”, abordadas comparativamente. Para melhor delinear esses momentos que marcam a experiência dos assentados, baseio-me no modelo teórico-analítico do drama social tal como foi elaborado por V.Turner (1974)(1982). Com o objetivo de “descrever e analisar episódios que manifestam conflito social” (: 78), o autor delineia esse modelo que é composto por quatro estágios. Tomando a tradução e síntese de J.C.Dawsey (1999b), percebe-se que, para V.Turner, num primeiro momento há a quebra (breach) num relacionamento fundamental para o grupo social. Posteriormente, há uma intensificação da crise, levando a uma divisão. Possíveis soluções para o conflito são tentadas, caracterizando ações remediadoras (redressive action). Por fim, o conflito pode gerar ou a reitegração do grupo ou o reconhecimento da cisão irreparável (irreparable schism) (1974, : 3841). Conflitos entre assentados e de assentados com latifundiários, com o Estado e com o MST podem ser momentos privilegiados para perceber como aspectos relevantes à experiência dos assentados vêm à tona enquanto dramas sociais. Em conversas com assentados na hora da refeição, no trabalho na roça ou na casa, comecei a ter contato com essas estranhas histórias. Surgiam sempre que comentávamos sobre a história da fazenda ou sobre a vida deles antes da migração. Comecei a anotá-las em meu caderno de campo com o intuito de relê-las e interpretá-las posteriormente. Dado meu interesse, alguns narradores começaram a pedir para que eu contasse as histórias que sabia. Ouvir e contar “histórias de assombração” passou a ser uma importante troca e condição para que eu pudesse ouvi-las, já que aqueles que acreditam em tais eventos são continuamente ridicularizados, seja por pessoas do 19

assentamento ou por pessoas de fora. Desse modo, as histórias constituem uma espécie de “linguagem oculta”, acessível aos assentados, mas pouco reveladas àqueles de fora do assentamento. A introdução do gravador nas conversas e entrevistas, por vezes inibia alguns narradores, mas com o tempo a maior parte deles já não se importava mais com a gravação. Creio que isso se deva, em parte pela segurança de que seus nomes não constariam na pesquisa, e também pela valorização que há entre os assentados do ato de “dar entrevista”. Depois de contarem sobre suas trajetórias de vida e a história do assentamento, perguntava se eles já tinham ouvido alguma dessas histórias. Alguns riam e diziam que isso eram besteiras que o povo conta, mas na maioria dos casos, iniciava-se uma longa conversa sobre histórias ouvidas, experiências vividas, ou mesmo especulações sobre fantasmas e bolas de luz. As semelhanças entre as narrativas e os modos de contá-las fizeram-me adotar, na interpretação, uma postura comparativa inspirada na análise estrutural dos mitos. Disso decorre a forma do texto da dissertação que se desdobra através da comparação entre narrativas ( ex.N1, N2, N3, etc.) dispostas em seqüência. Já a comparação entre performances advém da observação da semelhança gestual que havia entre os diversos narradores. A leitura dos trabalhos de R. Bauman (1977) e de L. Hartmann (2004) foram decisivos tanto para a observação em campo, quanto para tal comparação. O resultado é uma série de narrativas, mais próximas a montagens que a mitos, sempre referenciadas a eventos marcantes à experiência dos assentados que eram recorrentemente contados. As diferentes partes desse trabalho iniciam-se com a descrição de conflitos, cuja relevância foi percebida dada a recorrência com que surgiam nas falas e episódios que presenciei no trabalho de campo. A primeira parte aborda os conflitos presentes no processo de “virar sem-terra”. Tomando narrativas de assentados sobre o momento de adesão ao MST, procuro comentar sobre a importância de tal decisão para os desdobramentos da vida em assentamento. Os conflitos sobre a “divisão dos lotes” constituem o ponto de partida para entender o “racha” que ocorreu entre os acampados, quando conquistaram a posse das terras. Por fim, o processo de “constituição da família assentada” situa conflitos e tentativas de solução para as dificuldades em viver e trabalhar nos lotes. Num segundo momento, em cada parte, busco mostrar como as “histórias de assombração”, nutrindo-se de imagens como as de escravos, fazendeiro e bolas de luz, refletem e condensam a apropriação experiencial da história dos conflitos entre elites e trabalhadores, “formando analogias e correspondências estruturais com as esperanças e atribulações do presente”(M.Taussig –1987, : 346). Pode-se delinear um paralelo entre as “histórias de assombração” contadas pelos assentados e uma espécie de história da feitiçaria, como M.Taussig denomina a apropriação da história da conquista por meio da experiência com yagé no Putumayo na Colombia. Significados obtusos 20

contrapõem-se aos significados óbvios, mais latentes na descrição dos conflitos, e uma apropriação “imaginária”, “rebelde” e talvez “redentora” vai se dando entre assombros e fantasmagorias, montagens que justapõem fragmentos do passado em momentos de perigo. Para analisar essas narrativas, considerou-se não apenas o texto escrito, como se faria com narrativas literárias, mas também os gestos, expressões, lugares, momentos, público, em suma, o evento narrativo como um todo. Para isso, tomaram-se essas “histórias de assombração” como sendo aquilo que R. Bauman (1986) denomina performance oral. Isso implica em analisar essas narrativas não somente depois de transcritas, mas no contexto em que são geradas, tendo em vista onde e como se dá a atuação do narrador. Portanto, foi preciso fazer uma etnografia da performance que descrevesse o evento performativo e buscasse perceber como a performance oral se apropria de elementos próprios das várias esferas sociais (política, econômica, religiosa, etc.) para compor seus significados. Fez-se importante, também, compreender como os assentados criam o evento da performance oral. Do ponto de vista de R. Bauman, evento designa um segmento bem definido do fluxo de comportamento e experiência, destacando-se desse fluxo por constituir um contexto de significados específico para a ação social (1986, :27). Foi essencial ater-se ao modo como a comunidade entende uma determinada seqüência de gestos e falas e compõe enquadramentos performáticos (performance frame) como modos de comunicação distintos do fluxo de comportamento e experiência15. Para tanto, interpretam-se, a um só tempo, as “histórias de assombração” não só como eventos narrativos, ou seja, como se dá a atuação do narrador, mas também como eventos narrados, ou seja, a quais eventos a narrativa está se reportando (:5). Nesse sentido, foi preciso estar atento aos gêneros, atos, eventos e papéis mesclados em cada performance (1977, :31). Por fim, ressalta-se a importância da atenção ao corpo (gestos, atuação, técnicas corporais, etc.) para a etnografia da performance. Assim, adotando como referência a reflexão de M. Mauss (2003c), percebeu-se a relevância de entender quais as técnicas corporais e gestos utilizados pelos narradores e como se relacionam ao trabalho e participação no movimento. Enfocando os conflitos 15

Partindo dessa perspectiva teórica, não é possível classificar a priori a arte verbal em contos folclóricos, mitos, lendas, provérbios, etc., pois se deve entender por performance aquilo que a comunidade específica entende como tal (:14). A princípio, não interessa à pesquisa classificar as “histórias de assombração” em gêneros literários, muito mais ligados a uma literatura escrita que à arte verbal. Interessa saber que, quando os assentados falam em “assombração”, estão destacando um tipo de narrativa que aborda experiências específicas como o contato com mortos, com bolas de luz, etc., e que difere de outras narrativas como as histórias de família, de trabalho, piadas, etc. Nesse sentido, compreendem-se as performances das “histórias de assombração” como modos de comunicação que podem envolver recorrentes seqüências de ações em um dado cenário, regras de interação social, interpretação e avaliação, modos de expressão específicos, além de designarem aos participantes certos papéis e identidades (1986, : 4). Foi fundamental observar como se abrem as performances, se havia um modo particular dos narradores iniciarem os eventos (keys).

21

presentes não só nos processos de “virar sem-terra”, dividir os lotes e constituir a família assentada, mas também nas imagens de mortos, as reflexões de M.Mauss sobre as noções de pessoa e eu fizeram-se igualmente centrais para o melhor entendimento da experiência dos assentados. As semelhanças entre temas e elementos de uma narrativa em relação às outras mostraram a importância de uma abordagem comparativa. Para tanto, a metodologia consagrada por C. LeviStrauss (2004) para constituir suas análises estruturais de mitos de povos ameríndios forneceu inspiração à comparação entre as diferentes “histórias de assombração”. Agrupadas por eixos temáticos, as seqüências de narrativas assemelham-se a grupos de transformação, não de mitos, mas de montagens. Na primeira parte, às questões que envolvem o ato de “virar sem-terra”, seguem as narrativas sobre os escravos que viveram na fazenda antes dos sem-terra. Já na segunda parte, as narrativas sobre o fantasma do fazendeiro desdobram-se posteriormente à descrição dos conflitos sobre a divisão dos lotes. Por fim, a questão da constituição da família assentada é sucedida pelas narrativas sobre as bolas de luz e o ouro encantado. A comparação entre as narrativas e eventos narrativos das diversas partes permitiu um melhor entendimento tanto das “histórias de assombração”, quanto dos dramas sociais e, assim, da experiência dos assentados. Essas narrativas não possuem as profundas semelhanças estruturais tecidas pelo pensamento dos povos ameríndios ao debruçarem-se sobre temas comuns a suas cosmologias por sucessivas gerações. Tais narrativas também não são contadas por um grupo social com um forte vínculo tradicional. Entretanto, a interpretação das “histórias de assombração” exigiu a comparação de umas com as outras, assim como o exige a análise de um sistema mítico. Para melhor entender tais narrativas, foi preciso buscar outros contextos etnográficos e não apenas o contexto das narrativas. Isso, que poderia ser tomado como uma distância entre uma abordagem estrutural dos mitos e uma análise das “histórias de assombração”, acabou aproximando as duas perspectivas, quando se reflete sobre as seguintes palavras de C. Levi-Strauss, “Nunca se pode postular a interpretação; ela deve resultar dos próprios mitos, do contexto etnográfico; e, sempre que possível, de ambos ao mesmo tempo “(2003a, : 207). Na análise estrutural, ritos somam-se a costumes, contos somam-se a mitos, ecologia e práticas alimentares constituem alguns tipos de referências que complementam a interpretação dos mitos. O uso do contexto na análise estrutural articula-se aos movimentos propostos pelos próprios mitos. Mudam os elementos buscados por essa contextualização da análise, conforme mudam as questões, contradições e ambigüidades suscitadas pela comparação entre os mitos. Numa análise comparativa das “histórias de assombração”, foi necessário partir sempre das narrativas e tentar inseri-las em outros contextos de sentido. Conflitos, festas, práticas de trabalho, costumes religiosos, episódios comuns à história do grupo e passagens marcantes das 22

trajetórias individuais permitiram uma melhor compreensão sobre as questões suscitadas pelas narrativas. Há, neste sentido, contextos de referência onde feixes de relações são desenvolvidos. Para interpretar uma “história de assombração” buscou-se, por um lado, articulá-la a um contexto dado por outras narrativas que desenvolvem um mesmo tema formando, assim, uma espécie de mesmo “grupo de transformações”. Como na análise estrutural dos mitos, as inversões, novas relações, elementos buscados para aprofundar ou atenuar oposições, ambigüidades e contradições abrem-se como feixes de relações que auxiliam a interpretar questões sugeridas pelas narrativas. Este movimento constituiria uma primeira forma de construção do contexto para a análise. Por outro lado, somou-se essa perspectiva comparativa das narrativas à etnografia da performance. Assim, foram consideradas tanto as relações entre eventos narrados, como as relações obtidas entre os eventos narrativos. Isso permitiu ampliar as possibilidades de significação, pois trabalhou-se com uma gama de práticas sociais, costumes, crenças, dados da história do grupo de assentados, elementos de suas trajetórias individuais e com diferentes modos de comunicar as “histórias de assombração”. No entanto, ao aproximar-me do método estruturalista, percebi que as “histórias de assombração” não se desdobravam geometricamente, como os mitos, mas, de modo rabiscado e fragmentário. Os narradores articulavam imagens fantásticas e dimensões conflituosas da história que experienciavam. Um estruturalismo animado (animated struturalism), como M.Taussig (1980) denomina tal processo, delineava-se através das “histórias de assombração” do Assentamento Carlos Lamarca

16

. Como na compreensão dos significados do diabo das minas e plantações na

Bolívia e Colômbia, a interpretação das “histórias de assombração” impôs a necessidade de remeter a etnografia da performance e a análise estrutural sempre ao contexto histórico. Tal contexto pôde ser dado pela experiência coletiva dos assentados, por suas trajetórias de vida e pela articulação histórica do passado, feita pelos assentados ao refletirem sobre a história da fazenda. Na análise estrutural dos mitos, parte-se de questões suscitadas pelos mesmos quando se está delineando o feixe de relações entre seus elementos. A análise estrutural vai perseguindo tais 16

Em “O diabo e o fetiche da mercadoria na América do Sul”, o autor ressalta haver uma peculiaridade no modo como os trabalhadores bolivianos se apropriam de sua própria história, a partir da imagem do diabo das minas. Gerada pelos mineradores em diversos rituais, não é idêntica ao diabo do cristianismo da idade média, pois é fruto da fusão antagônica de oposições estruturais advindas do choque entre a cultura indígena e a cultura do conquistador. Por isso, tanto na sociedade colonial quanto na sociedade neocolonial, o diabo pode ser mais um aliado que um inimigo. Por detrás da máscara do Catolicismo e das influências da cultura intrusa, os bolivianos preservaram muitos dos seus antigos ritos indígenas. Dessa forma, o autor percebe uma espécie de estruturalismo operando na cultura andina atual. Esse estruturalismo pode ser percebido pelas oposições entre homem/mulher, jovem/velho, montanha/ lago. Entretanto, como nas “histórias de assombração”, não há um estruturalismo geométrico. Nesse caso, há uma espécie de “estruturalismo animado” (animated structuralism), onde a lógica da dialética e da reciprocidade integram cada elemento num todo relacional, em ciclos de unidade, reciprocidade, crescimento e morte (1980, :164 - : 168 ).

23

movimentos, tentando reproduzir, na exposição, tensões e estranhamentos com os quais operam os mitos, tendo como meta final atenuar tais contradições, estranhamentos e tensões. Nesse sentido, a análise estrutural pretende esclarecer elementos fundamentais que norteiam o modo como o pensamento mítico opera, muitas vezes através de esquemas que harmonizam as dissonâncias. Em contraste, a interpretação das “histórias de assombração” abordou narrativas geradas por um grupo social em constante transformação, cujos membros estão diariamente expostos a uma série de dificuldades e riscos que comprometem sua existência, sua qualidade de vida e suas certezas enquanto grupo. De certo modo, as “histórias de assombração” são um recurso de distanciamento que causa um efeito de estranhamento17 quanto ao próprio dia a dia, permitindo a reflexão. “Assombrar” é também estranhar, ver algo que não é desse mundo para melhor entender o mundo em que se vive. Mas, se a existência é incerta e está sempre em estado de transformação, gerando grandes contradições e tensões, essas encontram expressão nas “histórias de assombração”. Seguir os movimentos das narrativas, nesse caso, exige que a análise persiga suas tensões e contradições, sem ter a intenção de harmonizar as dissonâncias. Busca-se explicitar quais seriam as “imagens carregadas de tensão” que expressam, nessas performances orais, uma experiência coletiva. Pretende-se entender, como ressalta W. Benjamin, de que forma os assentados articulam historicamente o passado, não para conhecê-lo como ele foi de fato, mas para se apropriarem de reminiscências, tal como relampejam em momentos de perigo (: 224). Desse modo, realizando-se uma etnografia da performance integrada a uma análise comparativa das narrativas, percebeu-se a possibilidade de interpretar os conflitos e as “histórias de assombração” enquanto aspectos centrais para melhor compreender a experiência dos assentados. Essa experiência se dá num Sistema Nervoso onde tanto a “luta por terra”, quanto a “luta no lote”, como dizem alguns assentados, tornam-se importantes para contraporem-se ao mando, à opressão e ao autoritarismo cristalizados no Estado, no latifundiário, no próprio MST e em companheiros assentados. Trabalhando sobre e sendo trabalhado por esse Sistema Nervoso, percebi em mim e em meus interlocutores o poder destrutivo e ao mesmo tempo criativo e transformador da luta pela terra e reforma agrária que se reforça com a atuação do MST desde 1984. Penso que as montagens elaboradas por essas narrativas constituam imagens carregadas de tensão, interessantes para iluminar as conexões entre as diversas esferas que envolvem a experiência dos trabalhadores rurais 17

Penso que as “histórias de assombração” gerem efeitos semelhantes ao efeito de estranhamento procurado pelo teatro de B.Brecht. Para W.Benjamin a interrupção da ação proporcionada pelo efeito de estranhamento gera o combate à ilusão que a peça possa ter no público. Esses seriam marcos fundamentais ao teatro de B.Brecht e que poderiam ser apropriados para uma compreensão crítica do mundo, em termos de um ordenamento experimental (1939, :133).

24

do Assentamento Carlos Lamarca MST. Dessa forma, quem sabe, a interpretação dessas narrativas e da experiência dos assentados colabore para uma melhor compreensão do cenário político nacional onde a luta por terra e reforma agrária faz-se central no combate à expropriação e violência (J.S. Martins, 1991) que incidem sobre os trabalhadores do campo e da cidade.

25

Primeira Parte

OS SEM TERRA E OS ESCRAVOS

26

1

ASSENTAMENTO

A Caminho do Assentamento Para quem sai da cidade de Sarapuí e caminha em direção ao Assentamento Carlos Lamarca, o caminho é longo. Doze quilômetros, duas horas andando por uma estrada de chão de terra que liga as cidades de Sarapuí à cidade de Itapetininga. A pequena cidade vai se afastando à medida em que o caminhante sobe o morro, rumo ao bairro da Várzea de Cima. À sua volta, o gado dos sítios e fazendas observa seus passos. Até a metade do caminho não há quase árvores para aliviar o sol ou a chuva. Depois de subir um novo morro, onde se situam casas de moradores pobres da cidade, quem caminha, depara-se com uma imensa plantação de eucaliptos. A empresa Suzano de papéis e celulose arrenda as terras de fazendas, além de possuir imensas propriedades na região. O “deserto verde”, expressão pela qual muitos assentados denominam a plantação, estende-se por nove dos doze quilômetros. As árvores não fazem sombra sobre a estrada. Suas fileiras parecem ir até onde a vista não alcança mais. A parede vegetal termina quando novamente surgem fazendas, sítios e lagoas. O rio Itapetiniga aproxima-se. Pela estrada aparecem casas, uma escola infantil e dois bares, onde os assentados, sitiantes ou trabalhadores das fazendas bebem cerveja e se divertem nos finais de semana. Com os passos daquele que se aproxima, todos aqueles que estiverem pela estrada 27

começarão a observar o estranho que chega. Esse, já cansado da caminhada, se depara finalmente com o rio que corre embaixo da ponte. Suas águas grossas e escuras escorrem sob a sombra da mata ciliar. Antes de cruzar a ponte, o andarilho avista uma faixa onde está desenhado o emblema do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra (MST). Ao lado, um nome “Assentamento Carlos Lamarca – MST” e uma data 13/08/1998. Atravessando a ponte e cruzando a mata, o estranho avistará as casas espalhadas por dois morros. Caminhando, cheguei ao Assentamento inúmeras vezes tanto para trabalhar com a alfabetização de adultos e aulas de música18, quanto para realizar meu trabalho de campo. Acolhido pelos moradores da “vilinha”, fui aos poucos deixando de ser um completo estranho. Em minhas estadas em campo, as casas de dona Celestina e Solano, e de Esmeralda e Deodato fizeram-se lares aconchegantes onde, depois de um dia inteiro de caminhadas fazendo entrevistas e dando aulas, eu podia comer a comida do fogão a lenha, conversar e repousar tranqüilamente. A cada chegada e a cada despedida sentia sempre mais fortes os laços de amizade que nos uniam e geravam a alegria do encontro e a tristeza da partida. Entre dois morros, estende-se o Assentamento Carlos Lamarca. A região serviu de refúgio para o guerrilheiro assassinado na época da ditadura. Carlos Lamarca foi homenageado pelos acampados e assentados que construíram suas casas e plantações nessa região. Dois pequenos rios cortam o assentamento e deságuam no grande rio Itapetininga. As cercas dividem os lotes, também chamados de sítios19 por alguns assentados. Nesses, as plantações de cana, milho, melancia, mandioca, pimentão disputam espaço com o pasto do gado. Há poucas árvores nos lotes e às margens das ruas que cortam o assentamento. O sol forte e o vento castigam qualquer um que caminha por lá. Os bonés e chapéus são indispensáveis. É comum ainda ver assentados usando bonés vermelhos do MST para irem trabalhar em suas roças e pastos. Algumas casas conservam também bandeiras do movimento na parede da sala de visitas20. A área comum do assentamento estabelece-se nos quatro hectares que compõem a sede da antiga fazenda e o posto de saúde. Os lotes possuem em média doze hectares. A medida dos lotes foi estipulada pelo INCRA e pelo ITESP, após terem feito testes na terra, verificando sua baixa fertilidade. A topografia, realizada pelos órgãos do governo, homologou apenas quarenta e sete das sessenta e três famílias acampadas. 18

Em dois textos que se encontram nos Anexos, procuro detalhar como foram esses dois processos de trabalho. M.E.Miranda (2003d) aponta que ao designarem seus lotes como sítios, os assentados concebem-no como espaço de reconstrução da subjetividade camponesa. 20 E.Rapchan estabelece uma interessante interpretação sobre como a identidade de sem-terra se expressa através de símbolos como o logotipo do movimento, bonés, faixas, camisetas. Segundo a autora, a identidade de sem-terra passa, necessariamente, pela dimensão institucional, onde esses símbolos são gerados. Entretanto, a construção da pessoa que vive nos assentamentos é muito mais lenta, longa e imprevisível (1993, :204). 19

28

A criação de gado foi indicada pelo ITESP como sendo uma possível solução produtiva para os assentados. Hoje, há uma associação de doze famílias produtoras de leite. As outras se dividem em famílias associadas que produzem pimentão, aquelas que produzem isoladamente, não vendendo muito da produção, e aqueles assentados, geralmente solteiros, que não plantam em seus lotes. Como o dinheiro do financiamento para habitação do governo não foi suficiente para o término das casas, muitos assentados conservam suas casas de madeira ao lado das casas de alvenaria ainda não terminadas. Há também um assentado que mantém sua casa feita com a lona preta como nos tempos de acampamento. Cerca de 40,5 % da área do assentamento foi destinada à preservação ambiental, da qual fazem parte as matas ciliares dos rios.

Famílias e Trabalho O trabalho de campo que realizei foi mais intenso entre os meses de Novembro e Janeiro (2004/2005/2006), nos quais, como pude perceber, ocorre o fortalecimento dos laços de parentesco no assentamento21. Parentes vêm de diversas regiões do país para visitar as famílias assentadas, e essas também viajam para fazer visitas. Numa dessas visitas a irmã de Celestina, Lindalva e sua filha Irene acompanhada de seu marido e filhos conheceram o assentamento. Tamanho foi o encantamento com o lugar que, meses depois, a família se mudou para lá. Construíram uma casa na “vilinha” ao lado da casa de Celestina e Solano A família que vivera junta na favela do Jardim Elba, periferia de São Paulo, agora estaria reunida novamente. Os jovens começaram a estudar na cidade. Em 2005, Lisbela casou-se com o filho de Dania e Adão, Everson. Agora, o casal tem uma filha, Tainá , e mora numa casa ao lado dos pais do rapaz. Adão e Dania moram no lote vizinho ao da “vilinha” onde estão as famílias nucleares de Solano, Celestina e filhos numa casa, e de sua irmã Lindalva com a filha Irene e netos em outra. Com o casamento, os três núcleos familiares aproximaram-se, tecendo uma série de relações de auxílio (leite, carne, pimentões, ovos, etc.), principalmente partindo da família de Dania e Adão, assentados, em benefício de Lindalva, Irene, filhos e netos, que não detêm lote para a produção. Everson trabalha com os pais nas estufas de pimentão. Dania tem um irmão, uma irmã e uma prima no assentamento. Simão, irmão de Dania, possui um lote no assentamento e é membro da Associação Agrosul Paulista. É casado com Nanci e tem duas filhas. Imara, sua outra irmã, é casada com Gervásio. Contam com o auxílio de dois filhos para 21

Para uma melhor compreensão acerca das relações de parentesco no assentamento ver diagrama de parentesco em anexo.

29

trabalharem o lote, sendo também membros da Agrosul. Juntas, as três famílias formaram uma associação para a produção e comercialização de pimentões, paralelamente à Agrosul. Por fim, Coralina, casada com Alípio, é prima de Dania. O casal trabalha sozinho no lote, e tem alguma ajuda das duas filhas mais velhas. Seus dois filhos são crianças. São membros da associação Agrosul. Assim, o casamento de Lisbela e Everson sela, indiretamente, relações de parentesco com toda essa família extensa, que pressupõe uma rede de auxílio mútuo. Por outro lado, uma das filhas de Celestina e Solano, Esmeralda, é casada com Deodato, filho de Salvador e Doralice. O casal mora na “vilinha” numa casa construída perto daquela dos pais de Deodato. Como estava inscrito na lista do INCRA para obter lote, caso houvesse desistência, irregularidades ou falecimento de algum assentado, Deodato obteve a posse de um lote distante da “vilinha”, perto do final do assentamento, nos “tocos”. Lá planta cana, milho, napie e mandioca, como seu irmão Hermes. Esse último mora com a família na “vilinha” e cultiva seu lote, que fica ao lado do lote de Deodato. Com o casamento de Esmeralda, os laços de parentesco já estabelecidos pelo compadrio entre Solano e Salvador aprofundaram-se. Mais tarde a irmã de Deodato, Januária, casou-se com Juarez, sobrinho de Celestina. Como o lote onde estão situadas a “vilinha” e as estufas de pimentão pertence a Januária, o vínculo entre as famílias de Solano e Celestina, e de Salvador e Doralice ficou ainda mais forte. Mas ainda há duas outras filhas de Salvador e Doralice que se casaram com rapazes filhos de assentados. Nara casou-se com o filho de Simplício e Martina. Lila casou-se com Cosme, filho de Acácio. Simplício é associado à Agrosul. Acácio, seu filho Cosme e seu genro Valdivino construíram três casas em seu lote, onde moram as três famílias nucleares. Trabalham com a produção de pimentões em estufa. Quando vão vender os pimentões, acabam associando-se aos produtores da “vilinha” e levando o produto com eles a São Paulo (CEASA). Como M.E.Miranda afirma sobre o assentamento de Promissão (SP), “Eles (assentados) parecem trazer essas tradições mais vivas em suas lembranças. Por isso, reconstroem as redes de solidariedade vicinal pelo compadrio, e a regra de casamentos dos filhos dos assentados entre si (...) parece ser uma regra preferencial no assentamento”(2003d,:169). Pelo casamento e compadrio a rede do parentesco também vai sendo tecida no assentamento Carlos Lamarca. Essa teia constitui ainda mais três grupos de famílias extensas de assentados. Uma delas é composta em torno da assentada Angelina, casada com Almir, cujos filhos são assentados. Sua filha Ivani é casada com Ramon. Moram com os filhos num lote próximo à sede. Não participam de nenhum coletivo de produção. Em seu lote plantam melancia, cana, milho e abóbora. Parte do lote é arrendado periodicamente. Ramon conta sempre com o auxílio do irmão de Ivani, Natanael, e com o padrasto da esposa, Almir, para garantir a produção do lote e os alimentos necessários à família. 30

Natanael mora com a esposa e filhos num lote próximo à mata, onde há a nascente de um rio. Suas terras são muito férteis e desse modo, tanto o pasto, a plantação de cana e napie, quanto as roças de milho, melancia, o pomar e a horta produzem bem. Natanael é associado à Agrosul e vem tentando convencer seu padrasto e seu cunhado a participarem do coletivo também. O núcleo formado pela família de Aldo e Sirlei reúne quatro famílias nucleares de assentados. Seu irmão Odair também é assentado e possui um lote ao lado do lote de Natanael. Ele trabalha em um bar além de criar cavalos e gado. No entanto, sua renda é insuficiente para manter e produzir em seu lote. Não há entre Aldo e seu irmão relações de auxílio mútuo. Dos cinco filhos de Aldo e Sirlei, dois homens e três mulheres, dois ainda moram com eles. Suas duas filhas mais velhas casaram-se com assentados. Lucila casou-se com Elton e hoje vive num lote próximo à “vilinha”. Lídia casou-se com Juarez e vive num lote no fim do assentamento, onde a terra é fraca para a produção. No lote de Lucila as três famílias construíram estufas de pimentão. O trabalho familiar garante a produção e o sustento da família extensa. Se o sítio, para K.Woortmann designa “uma área de terras trabalhadas por uma famílias” e o “espaço de troca de mulheres, através da qual se realiza a aliança entre os homens; o espaço da troca de tempo entre pais e o espaço do circuito de dotes... (1990, :31), penso que o grande número de alianças por parentesco entre assentados remeta à constituição da família assentada. As trocas possibilitadas por esses laços garantem aos assentados a renda e sustento da família através do trabalho comum. Por fim, há o grupo de famílias formado em torno da assentada Sinira. Sua irmã, Alvina, mudou-se para o assentamento com o filho, como a irmã de Celestina. Numa das visitas, conheceu Candelário, então proprietário do lote vizinho ao de Sinira. Amigou-se com o assentado e foi morar com ele. Entretanto, seu companheiro resolveu deixar o assentamento e voltar para sua cidade natal no estado de Alagoas. Hoje, Alvina vive com o filho em seu lote e é constantemente ajudada por sua irmã. Além disso, o filho de Sinira, Edson, casou-se com a filha de Ramiro e Lurdes. O rapaz está inscrito na lista de espera do INCRA. Ele e sua esposa já vivem num lote cujo dono faleceu, mas a situação do casal ainda não foi regularizada. Sem financiamentos do governo, o rapaz trabalha fora do assentamento, sua esposa e filha ficam no lote que ainda não possui plantações. Sinira e Alvina trabalham em seus lotes e, por vezes, recebem a ajuda de outros assentados. Grande parte dessa ajuda vem de assentados solteiros, principalmente daqueles que se integraram ao MST através dos trabalhos de base do movimento na cidade de São Paulo feitos com os chamados “moradores de rua”. Dentre esses últimos estão Aristides, Ramiro, Ezequiel, Diógenes, Roque, Otacílio e Edinei. Alguns assentados desse grupo tentaram formar associações de produtores, mas 31

depois de algum tempo de funcionamento as associações foram dissolvidas, seja pela dificuldade de conciliar os interesses dos integrantes, seja pelas dificuldades em vender a produção. Atualmente, por intermédio de Sinira, uma rede de auxílio mútuo envolve esses assentados, suprindo necessidades de alimentação e renda. Natalino e Cícero, originários de bairros rurais de cidades do interior paulista, têm problemas sérios com o alcolismo, estando distantes mesmo da rede de auxílio mútuo que se forma em torno de Sinira. Desse modo, acredito que tenha sido possível demonstrar como o parentesco e as redes de auxílio mútuo assumem papel central para a vida e trabalho das famílias assentadas. As afinidades entre elas iniciam-se já no período de acampamento e, em 8 anos de convivência, inúmeros laços de parentesco aproximam essas famílias vindas das mais diversas regiões do país. Com essa descrição procurei reconstituir uma certa fisionomia da “família assentada”, pontuando a influência do parentesco e do auxilio mútuo para o trabalho e convívio no assentamento. Mas, para compreender melhor as diferenças nesse processo de consolidação das famílias e assentados em seus lotes, suponho ser necessário enfocar o momento em que se deu a adesão desses trabalhadores ao MST. Os diferentes tipos de exclusão sofridos por esses trabalhadores marcam suas experiências enquanto sem-terras e assentados, sendo igualmente importantes para os futuros laços de parentesco e relações de trabalho.

32

2

Sobre a Terra

Terra e Sem-terra As terras sobre as quais se constituiu o Assentamento Carlos Lamarca compunham a antiga Fazenda Monjolo. A propriedade ocupada pertencia aos descendentes de uma família que teve papel político e econômico importante no interior e capital paulistas. Os Almeida Prado possuíam as terras dessa fazenda e dos arredores desde o “tempo dos escravos”, como dizem os assentados. Ainda hoje os moradores percebem as marcas deixadas pela produção de café, amendoim e algodão por grandes valas que separavam as culturas e que cruzam o assentamento. Após dois anos realizando ocupações e acampamentos que resultaram apenas na expulsão dos sem-terra das terras ocupadas, a entrada na Fazenda Monjolo culminou num processo de emissão de posse de certo modo rápido e não violento22, porque, segundo alguns assentados, os filhos do falecido fazendeiro queriam desfazer-se da propriedade. Entretanto, a relativa facilidade na ocupação e conquista das terras dessa fazenda contrasta com a difícil trajetória das famílias. Originárias das zonas rurais de Minas Gerais, Paraná, interior paulista, Pernambuco, Alagoas, e outros estados, essas famílias foram marcadas por aquilo que 22

Como mostra M.Justo, “Acamparam na fazenda cerca de 80 famílias, pois o grupo inicial havia se dispersado, sendo que alguns desistiram da luta e outros foram para ocupações distintas. O governo federal desapropriou a fazenda um mês depois, em Março de 1998. Restaram na fazenda 63 famílias. Segundo relatos, a fazenda estava nas mãos de herdeiros do falecido proprietário, que tinham interesse na ‘venda’. Nela havia poucas cabeças de gado e uma área estava arrendada para plantação de melancia”(2005c:10).

33

J.S.Martins (1991) denomina “expropriação da terra”. Assim, houve a perda da terra para grandes fazendeiros de suas regiões, para usineiros ou para buscar melhores condições de vida e trabalho tanto no interior paulista, quanto nas grandes cidades do estado. São Paulo, Campinas e Sorocaba absorveram sua mão de obra migrante levando essas famílias a habitar as periferias, favelas e até mesmo as ruas urbanas23. A violência, o desemprego, as más condições de vida e trabalho foram muitas vezes as causas de uma questão comum aos assentados, tornar-se sem-terra, ou como dizem: “virar sem-terra”. Supõe-se que a crise num determinado modo de trabalho e vida tenha levado esses assentados a um distanciamento quanto à estrutura social que situava seus papéis nas margens, nas periferias, em meio à exploração, à violência e à pobreza cada vez mais agudas. Acredito que, para entender as camadas de história que se sobrepõem antagonicamente nas terras da Fazenda Monjolo transformada em Assentamento Carlos Lamarca, seja necessário olhar inicialmente para esse momento central na vida dessas pessoas. A decisão de aderir ao MST implicou muitas vezes no abandono da casa, da família, da vida em cidade, para sujeitar-se aos desafios e perigos da vida em acampamento, embaixo da lona preta. Sem ter nenhuma garantia da conquista da terra, esses assentados viveram dois anos à beira de estradas, em difíceis condições de moradia, sempre ameaçados pela polícia e pelos jagunços dos fazendeiros. Acompanhar mais atentamente esse momento em algumas trajetórias de vida permite visualizar melhor o difícil ato de “virar sem-terra”, assumindo todos os atributos que revestem a pessoa do “ser sem-terra”. Para refletir sobre essa questão, torna-se inspiradora a abordagem de S.C. Novaes em seu trabalho “Jogo de espelhos”, onde a autora discute o conceito de identidade, preocupando-se em entender como a representação de si se liga às representações dos outros, que ocorrem sempre em dado contexto. Nas palavras de S.C.Novaes: “O que se verifica é que a identidade só pode ser evocada no plano do discurso e surge como recurso para a criação de um nós coletivo.(...) Este nós se refere a uma identidade (igualdade) que, efetivamente, nunca se verifica, mas que é um recurso indispensável do nosso sistema de representações. Indispensável porque é a partir da descoberta e reafirmação – ou mesmo criação cultural – de suas semelhanças que um grupo qualquer, numa situação de confronto e

23

Um estudo mais aprofundado sobre a participação dos ex-moradores de rua no assentamento foi realizado por M.Justo (2005c). Acompanhando mais atentamente a trajetória desse grupo, o autor busca compreender os conflitos entre esse grupo de assentados e aqueles assentados que evocam atributos de um ethos camponês para definirem suas identidades. Os conflitos acabam gerando um grande distanciamento desse grupo de ex-moradores de rua e outras redes de trabalho e sociabilidade do assentamento.

34

de minoria, terá condições de reivindicar para si um espaço social e político de atuação” (1993, : 24). No caso do “virar sem-terra”, acredito que essa criação de um nós coletivo se faz em meio a um discurso que vê, na luta pela reforma agrária, o espaço de atuação política que nutre a constituição dessa identidade. No processo de “virar sem-terra”, são percebidas semelhanças para com outros movimentos sociais (sem tetos, sindicais, indígenas, etc.) e diferenças e distanciamentos para com o Estado e os Latifundiários. Talvez a análise dos relatos de assentados sobre a decisão de aderir ao movimento ajude a visualizar melhor os contornos dessa persona que cobre o rosto dos sem-terra.

Virar Sem-Terra O acampamento Carlos Lamarca teve início com o trabalho de base de militantes que compunham a regional de Sorocaba. Esses militantes atuaram na periferia das cidades de Sorocaba, Campinas e São Paulo. As reuniões para formar os coletivos que realizariam as primeiras ocupações foram realizadas nos salões de igrejas. Dessas reuniões participavam principalmente trabalhadores desempregados ou que se encontravam em situação difícil nos centros urbanos. Além das pessoas que foram direto para o acampamento Carlos Lamarca, alguns vieram de outros acampamentos, formados pelo trabalho de base em cidades do interior paulista. Esse foi o caso de Dona Xica, que trabalhava na cidade de Américo com a filha e enteadas na colheita de laranja. Devido à situação difícil pela exploração no trabalho, tinha dificuldade até para alimentar suas filhas. Dona Xica conta da seguinte forma esse momento de sua vida: “Então, aí foi o tempo que eu conheci o movimento sem-terra... Em Américo, eu trabalhava pra usina...Sozinha. Com os filhos, sozinha. Aí, nós fomos pegar laranja... É, colhia laranja lá, subia na escada, caía, se furava todo com o espinho. Quase perdi minhas impressões digitais, colhendo laranja. O sumo da laranja ele come, cê entendeu? Até hoje eu tenho um problema de rachadura nas mãos por causa da colheita de laranja. Nós colhíamos laranja a semana inteira, eu e minhas duas meninas. E quando chegava no final de semana, a gente pegava aquele cheque e passava de frente o açougue (risos). Hoje eu dou risada, né, naquele tempo eu chorava. Passava em frente ao açougue, olhava frango, olhava aquelas carnes assim dependuradas. Só olhava e ia embora pra casa. E a revolta dentro só crescendo...Ganhava pouco, você se matava, mas ganhava pouco...Por dia, por quanto colhesse. Você se matava e não conseguia nada. Quando era laranja boa, ainda dava, mas quando era laranja ruim, aí pronto! Daí, quando eu cheguei em casa, cheguei revoltada. Paguei o aluguel, água, luz. Não consegui comprar nada. Comprei acho que uns 35

três quilos de arroz assim. Ovo. E um cortado de abóbora que a gente colhia lá. Assim, nas leiras, sempre achava. Abóbora, cachi... Daí, fiz um cortadinho pra levar. Mas, revoltada falei: - Eu não aceito essa vida mais não, meu pai. De jeito nenhum. Sou tua filha, o senhor é meu pai, sou tua herdeira...fiz uma oração à noite. No outro dia tava uma chuva. E elas levantaram bravas. A Cíntia e a Elizete levantaram bravas: - É, por que a gente trabalha, trabalha e não agüenta essa vida, não sei o que e tal... Falei: - Vamos lá, filha, vamos. Dentro do ônibus, entrou uma moça e distribuiu uns panfletos. Aí, a moça pegou e ainda falou assim: - Ah, isso daqui eu vou pegar pra limpar... A moça que tava distribuindo os panfletos não chegou até o fundo, onde nós estávamos, porque eu sentava sempre na última cadeira. A moça que pegou o papel mostrou pro outro do lado: - Olha, eu vou levar pro banheiro, e começou a falar besteira, que ia limpar não sei o que e tal. Aí, eu ergui a cabeça e dei uma olhadinha assim por cima daquele papel, por cima da mão dela. Eu falei assim:- Que papel é esse? – Ah, um papel aqui, eu acho que é dos sem-terra. -Acha! Eu falei: - Dá pra mim. Aí, ela me deu. E o papel eu peguei, passei pra mão da Nina, a Nina ficou assim olhando... Eu peguei o papel, dobrei e guardei. Trabalhei o dia todo com aquele papelzinho. Quando foi de tarde que eu cheguei em casa, tomei banho bem rapidinho. E desci lá pra onde tava o endereço, lá no salãozinho da igreja. Cheguei lá, participei da reunião. Conheci o Rafael, o Israel, a Elaine, Fabi...Aí, voltei. Voltei e voltei toda contente... Cheguei em casa e comecei a arrumar as coisas. E aí, veio parente de tudo quanto era lugar. Eu falei: - A hora que eu tava precisando, ninguém ia lá. Depois que eu decidi vim pros sem-terra todo mundo enxergou a minha casa. Iam lá e falavam: - Não vai que você vai morrer lá, você sofre de pressão, ficar debaixo daquela lona, vai passar fome. Eu falei: - Ué, fome eu já estou passando aqui na cidade. Eu passo uma fome de cachorro, vocês acham que eu não vou na casa de vocês pedir por que eu to passando fome. Passando fome, passando humilhação. Vou ser despejada. Daí, eu liguei pros meus irmãos... A Nina falou assim: - Oh, mãe, se a senhora não for eu vou. E arrumamos nossas coisas. Três horas da manhã era pra estar lá no ponto. Tava até chovendo. Pegamos nossas coisas...um fogão, umas caixas, umas coisinhas... Daí eu fui mais a Nina.”(Xica, 16/12/2004). O trabalho na colheita de laranja levava dona Xica a sentir uma revolta dentro de si cada vez mais profunda. A revolta era percebida, por um lado, pelo esgotamento e aniquilação corporal. As tensões sociais cresciam no desempenho do seu papel de bóia fria. Ganhando pouco, ela não conseguia comprar mais carne para garantir a alimentação da família, ficava só olhando o açougue. Por outro lado, a revolta crescia à medida em que ela perdia suas impressões digitais, se matava de trabalhar e não ganhava nada. Pensando com G.Lukács, a crescente exploração da força de trabalho de Xica fez com que apenas uma de suas habilidades, o catar laranja, fosse requerida em detrimento de outras, em detrimento de sua totalidade como pessoa (2003b, :202). Segundo o autor, a fragmentação do sujeito do trabalho aniquila sua subjetividade, estilhaça sua personalidade e, separando suas propriedades psicológicas, leva à atomização, com a ruptura dos laços que unem os trabalhadores (:idem). As impressões digitais são a marca de um individualismo que não percebe mais no nome a singularidade da pessoa. Pode-se entender o grau da revolta de dona Xica. Nascida e criada num quilombo no sertão da Bahia, próximo à cidade de Bom Jesus da Lapa, Xica sempre 36

foi conhecida em sua cidade por ser muito amável, respeitada por todos, engajada na luta contra os fazendeiros e empenhada em assegurar a continuidade da comunidade quilombola. A vinda para tentar melhores oportunidades de trabalho em São Paulo acarretou na perda dessas relações pessoais e de reconhecimento. Quando até as digitais se aniquilam com o trabalho, quando a fome começa a vigorar junto ao protesto das filhas, Xica sente sua revolta crescer dentro de si. A dramática oração feita a Deus salienta o reconhecimento da paternidade e herança, mas a não aceitação do destino trágico. Semelhante ao que afirma G. Lukács, a crescente exploração da mão de obra de Xica não é percebida por ela como algo meramente quantitativo. Dessa percepção surge uma consciência mínima dessa trabalhadora, a consciência de seu ser social ou, nas palavras do autor, a consciência de si mesma como mercadoria (:340). A revolta que nasce dentro de Xica culmina numa postura ativa quanto ao seu trabalho e a seu lugar no mundo, na estrutura social. Conforme a reflexão de G. Lukács, esse conhecimento realiza uma modificação objetiva e estrutural no objeto do conhecimento (:342). É interessante salientar que tais alterações, no caso de Xica, são percebidas através de percepções corporais, seja na perda das digitais, ou na fome constante. O panfleto do MST distribuído no ônibus aparece em sua narrativa como um milagre, uma saída que não poderia ser motivo de riso. Xica trabalhou o dia inteiro com o papel guardado, tomou banho, foi para a reunião no salão da igreja e voltou para casa toda contente. A revolta que crescia dentro de Xica veio em meio à percepção da crescente aniquilação corporal e pessoal que a atingia. A crise pela qual passava, levou-a a pegar o panfleto e a ir às reuniões com o MST na igreja. Esse fato geraria profundas mudanças em sua vida e na de sua família. Ao aceitar o panfleto e participar das reuniões, Xica busca superar seu isolamento, estabelecendo laços para com outros trabalhadores que, ao perceberem o caráter mutável da realidade, buscam unir-se para transformarem suas vidas e a estrutura social mais ampla. Pensando com V.Turner (1974)(1982), há uma profunda ruptura que leva Xica a deixar sua casa, trabalho e laços de parentesco. Um vídeo mostra a primeira ocupação feita pelo acampamento Carlos Lamarca. Depois de entrar nas terras da fazenda na cidade de Alambrari, os acampados e militantes começaram a procurar madeira para construir seus barracos de lona preta. Enquanto a maior parte dos acampados cuidava da construção de suas moradias, um grupo preocupava-se em encontrar troncos de madeira grandes e grossos para construir uma grande cruz a ser colocada na entrada do acampamento. As imagens mostram também os militantes instruindo os “novos sem-terra”, e uma freira, Irmã Clara, ajudando a carregar madeira e a montar os barracos. As imagens religiosas são muito fortes nesses momentos iniciais do acampamento. As reuniões realizadas no salão das igrejas culminariam numa 37

grande mudança na vida dessas pessoas. A freqüência com que o vídeo foca as imagens da irmã Clara e da cruz evidencia um certo teor sagrado, semelhante àquele que levou Xica a orar e a encontrar, no panfleto do movimento, a resposta dada por Deus à sua oração. Construindo conjuntamente o acampamento, os sem-terra estavam tecendo também laços entre si num momento de perigo, um nós coletivo que permitiria a constituição da identidade (S.C.Novaes, 1993). As frágeis barracas de lona, o medo da repressão policial, dos fazendeiros, da fome compõe agora a realidade daqueles que optaram por um tipo de engajamento que requisita uma transformação total em suas vidas. Os acampados deixaram suas moradas e trabalhos, quando tinham, em busca de melhores condições de vida e trabalho. Há nesse gesto algo semelhante à imagem da felicidade indissoluvelmente ligada à imagem da salvação, relação pensada por W.Benjamin (1940). Construir uma cruz para ficar exposta na entrada do acampamento, ao mesmo tempo em que se constroem as novas moradias, os barracos de lona, diz algo sobre a centralidade que o sagrado assume nesses períodos iniciais. As imagens religiosas focadas pelos olhos de um cinegrafista sem-terra salientam a “força messiânica” que se mescla à adesão política. A redenção buscada por esses trabalhadores talvez seja como a buscada por Xica, a redenção do sofrimento, em meio a um engajamento repleto de carga religiosa, já que o trabalho de base se dá em igrejas, sempre apoiado por padres e freiras24. A atuação do movimento junto às igrejas contou com o apoio do padre Crispim25 e da irmã Clara em São Paulo. O trabalho de base realizou-se em favelas e em albergues que abrigavam moradores de rua. A família de dona Celestina morava na favela do Jardim Elba, em São Paulo, quando começaram os anúncios de reuniões com o MST para a formação de um novo acampamento. Celestina, que morava com seus cinco filhos, o marido, a irmã e os sobrinhos numa casa na favela, narra da seguinte forma esse momento: “Aí, a polícia chegou e falou: (...) - Olha, nós viemos trazer ele aqui pra senhora dar uns conselhos. Por que ele tava lá embaixo fumando droga com um rapazinho que morreu, Everaldo. Eles tavam lá embaixo fumando maconha. Nossa senhora, eu peguei o Rosalvo. Aquele dia eu fiquei cega, eu não vi nada. Eu quase matei de bater nele, eu tirei sangue do nariz dele, quando eu vi, quando eu dei conta assim, nós tavamos no sofá e a casa tava cheia de gente. Eu peguei, não sei onde é que eu achei força, ele tava com uma camisa dessas de malha boa do Santos. Eu enfiei a mão por baixo, e cadê quem tira, e cadê quem 24

Para A.P.Vasquez a utilização de diversos símbolos cristãos pelas práticas do MST visaria uma identificação comum entre acampados e assentados. Nas palavras do autor, “Os termos comuns originados dos diversos cristianismos implicavam sempre em significados e práticas diferentes, encobertas em termos de identificação comum. As atividades de cunho emocional, que freqüentemente usavam símbolos religiosos, também teriam significados diferentes. Essas atividades espirituais são, como já disse, o que hoje seriam chamadas de ‘Mística’ nos termos atuais do MST” (2002,:74). 25 M.Justo aponta que “ o trabalho do MST de promover ocupações de terra com pessoas que vivem nas ruas de São Paulo começou em 1994, através da aproximação do trabalho da Fraternidade Povo da Rua (cujos membros são, em parte, da Congregação do Verbo Divino) com o MST, criando um centro de formação deste movimento no bairro do Brás”(2005c, : 6).

38

solta. E dando murro na cara dele, na cabeça. O sangue lavava do nariz dele, e eu dando só murro, murro, murro. Aí, quando eu vi, uma mulher, uma mulher que era vizinha nossa, a mulher do Eloi lá. Chegou, ela tirou, conseguiu tirar o braço dele, mandou ele pro banheiro tomar banho e aí ela, com um copo de água, foi passando a mão na minha cabeça: - Dona Celestina, não fica assim não, por que a senhora não vai dar jeito em nada, só Deus dá. Só Deus que dá jeito nisso aí, a senhora bater nele, tirar sangue dele não vai adiantar nada. E eu chorando, aí fui chorar. Chorei, chorei, chorei. Solano tava no hospital com a Iara, tava só eu aqui em casa. Tava só eu e eles em casa. Quando foi um dia chegou, o Ruan, que tava trabalhando aqui dos sem-terra, fazendo trabalho de base. Chegou em casa. Falou pra gente que tava saindo ocupação, que se a gente quisesse vir. Começou a explicar, como é que eram os sem-terra. Que era melhor do que lá. E eu com aquele sacrifício com aqueles meninos...Fui falar pra Solano, cadê Solano querer vir. Falava: - Eu ir lá pra esses semterra, cê é louca, cê não vê o que é que passa na televisão. Que os fazendeiros mandam os jagunços matar gente lá. Deus me livre de...eu não vou pra lá nem...Aí, passou, quietou. Eu falei pra minha irmã, quietou...Ficou bravo, ficou nervoso em casa. Ficou, ele ficou nervoso. Ficou bravo comigo. Meu Deus, eu falei: - Aí, meu Deus, o quê que eu faço? ... Depois, passados uns dias, o Ruan foi lá de novo. Eu falei pra ele o que Solano tinha feito. Foi naquele tempo em que aconteceu aquele negócio lá em Eldorado dos Carajás, aquela morte lá. Ele ficou mais apavorado ainda. O Ruan começou a conversar com ele, a falar: Seu Solano, aqui o senhor pode contar que aqui acontece mais conflito do que lá nos semterra. É bem organizado.(E começou a contar) Não acontece nada disso. Aconteceu em Eldorado dos Carajás por que o fazendeiro que mandou, mas lá não tem nada disso, o senhor pode ver. Na nossa região lá não tem. E começou a conversar com ele, conversou...Larguei tudo, a mudança inteirinha dentro da casa, a cama, luz ligada, televisão na estante, que era uma estante maior do que essa televisão a cores bonita. Larguei tudo lá. Luz acesa, cama arrumada, o quarto deles. Tudo arrumadinho. E o ônibus chegou, ele chegou já de noitinha. Nós tavamos na janta. Tinha uma janta pra sair de lá. Confraternização. Na igreja até. Numa igrejinha pequena. Todo mundo ajudou, comemos a janta. Foi muito bom. Encheu de gente. Oito horas chegou o ônibus, que nós vinhamos pro Brás, pra de lá juntar com a turma do padre Crispim, pra vim pra cá... Aí, viemos, graças a Deus, na Fazenda Cercadinho, aquela fazenda lá que foi a primeira ocupação.”(Celestina, 28/2/2005). A vida na favela começava a ser cada vez mais difícil para Celestina. Seus dois filhos mais velhos e seu sobrinho começaram a envolver-se com o consumo e tráfico de drogas. Sempre quando lembra desses momentos diz que viviam num inferno. O dia em que a polícia trouxe Rosalvo, por ter sido pego “fumando droga”, Celestina esmurrou seu filho até tirar sangue. O envolvimento dos filhos nas drogas e no crime trazia o medo também de suas mortes. Sempre quando lembram dos amigos da favela, seus filhos contam que eles já estão mortos. Dessa forma, o medo de Solano de morrer no acampamento passa a ser infundado, quando o militante diz que no acampamento havia menos conflito que na favela. Celestina junta sua família, abandona sua casa toda arrumada e parte para tornar-se uma sem-terra. O ato de esmurrar o filho revela a profunda ruptura que distancia os laços entre essa mãe e seus filhos. Se, como aponta G. Lukács (2003b), no modo de produção 39

capitalista ocorre a fragmentação do sujeito, no caso de Celestina, após dezessete anos de vida nas cidades de São Paulo e Santo André , esse processo de fragmentação gerou nela uma forte crise. Os motivos são o salário insuficiente do marido, a violência na favela, o envolvimento dos filhos nas drogas e na criminalidade e a ruptura dos laços familiares que constituíam parte central de sua personalidade. Enquanto seu marido trabalhava e não convivia com os filhos, esses se inseriam no meio lucrativo e arriscado do tráfico de drogas. Na cotidiana relação com os filhos, Celestina percebe a ruptura de tais laços e a impossibilidade de continuar a educá-los naquele lugar. Como Xica, a família de Celestina passava por uma difícil situação financeira. Apenas Solano estava trabalhando. O medo da morte e envolvimento dos filhos com a criminalidade podem ser vistos como os fatores que levaram Celestina a encorajar a família a ir para a ocupação e a viver no acampamento. Pensando com V.Turner (1982), percebe-se que o acúmulo de tantas tensões leva à ruptura com o lugar ocupado pela família na estrutura social. Transparece em suas palavras a difícil situação de deixar a casa, o lugar onde se mora em direção à incerta vida nos acampamentos. A fé também aparece em seu relato quando, depois de ter batido no filho, a vizinha diz que só Deus daria jeito naquilo. Logo, surge a figura do militante que ajudaria a mudar a difícil vida de dona Celestina e sua família. Hoje, na estante da sala de sua casa no assentamento, Celestina conserva fotos de momentos importantes da participação de sua família no movimento. Na mesma estante há fotos dos casamentos, das crismas e dos batizados, junto às imagens de santos. Na parede da sala ainda há a bandeira do movimento. Iara, uma de suas filhas, hoje é militante e participa do setor de comunicação. Seus filhos ajudam o pai com a plantação de pimentão e com o gado. Quando podem, ainda participam dos encontros do MST. Em seu relato, a busca pela superação da fragmentação dos laços familiares e a esperança crescente numa forma diferente de vida mesclam a fé religiosa à confiança nas palavras do militante. A fome e a aniquilação corporal no caso de Xica e o medo da perda dos filhos e as dificuldades financeiras de Celestina demarcam os momentos limites de uma vida marcada pelo trabalho duro, pelo medo e pelo sofrimento. A imagem das digitais que vão sumindo, e da fome, num caso, e do espancamento do filho e do medo da morte no outro, mostram como essas mães vão perdendo seus papéis, sua moral, à medida que suas próprias famílias vão ruindo. Nesses momentos, a revolta é sentida no corpo, seja pelo esgotamento que extingue as forças, ou pela força tirada “do nada” para impedir que os filhos morram. O corpo torna-se o limite das dadas situações e o locus onde brota a revolta dessas mulheres que faz com que decidam participar das reuniões e engajar-se no movimento. Para W. Benjamin, somente quando o “materialismo político e a criatura 40

física partilham entre si o homem interior”(1929:35), é que a realidade poderá superar-se. A revolta sentida por essas trabalhadoras no momento em que afloram as tensões corporais as leva não só à adesão ao movimento, mas ao abandono de bens materiais e posição no mundo para uma “vida essencial”, onde possuem apenas o barraco de lona, suas relações de parentesco e amizade, e poucos bens materiais26. Em diferentes acampamentos, as famílias de Xica e Celestina começaram a engajar-se nos coletivos do movimento. Xica foi coordenadora de arrecadação de alimentos, passando a ser posteriormente uma liderança importante na região de Barretos. Por fim, casou-se com Silas que militava no acampamento Carlos Lamarca e assentou-se num lote de 11 hectares onde cria gado, planta cana, napie, melancia, milho, etc. Atualmente, participa sempre dos encontros do movimento e é ligada ao coletivo das mulheres sem-terra. Celestina também participa dos encontros desse coletivo. Durante o acampamento orgulhava-se de muitas vezes ser eleita cozinheira para preparar a refeição em dias oficiais. Seu barraco de lona preta, por ser o mais arrumado e limpo, sempre recebeu as pessoas de fora. Padres, freiras, militantes, estrangeiros, além de muitos acampados visitavam sua casa e comiam de sua comida. Até hoje sua casa no assentamento é uma casa que recebe pessoas de fora e que congrega diferentes moradores do assentamento. De todo modo, nesse espaço liminar (V.Turner,1969) em que se constitui a luta política, ambas começaram a tecer laços sociais para com outros acampados e militantes. A partir da crise gerada pelas condições de vida e trabalho, Xica e Celestina iniciaram um processo de conhecimento que parte de si, para depois se estender a uma compreensão do coletivo do qual fazem parte. Essa compreensão da própria condição social que se assemelha à de outros trabalhadores, no acampamento, leva à constituição de importantes laços de amizade e mesmo de parentesco entre os trabalhadores que agora se autodenominam “companheiros”. Como aponta S.C.Novaes, “Acreditamos que este nós coletivo, esta identidade ‘ampla’ é invocada sempre que um grupo reivindica uma maior visibilidade social face ao apagamento a que foi, historicamente submetido”(1993,:25). No acampamento, essas trabalhadoras vão ajudando a tecer essa identidade ampla. Suas revoltas somam-se às de outros trabalhadores e, enquanto coletivo, vão ganhando visibilidade social e histórica. Atualmente, Celestina e sua família moram na chamada “vilinha” do assentamento junto à família de Salvador, um dos ex-coordenadores do acampamento. Desde o início, Celestina e sua família participaram do coletivo coordenado por Salvador, estabelecendo uma grande amizade com sua família. Hoje, as famílias trabalham juntas numa associação de produtores de pimentão 26

M.C.M.Turatti (1999c) ressalta que a fragilidade material e as dificuldades de convivência nos acampamentos são geradoras de conflitos entre as famílias acampadas e dos acampados para com as lideranças.

41

incentivada pela Pastoral Santa Fé. Além disso, depois da proposta da agrovila ter sido derrotada em assembléia, as duas famílias decidiram construir casas conjuntas no lote da filha de Salvador, Januária. Lá estão também as estufas coletivas que garantem o sustento dessas famílias. Esmeralda, filha de Celestina, casou-se com Deodato, filho de Salvador, e vive hoje com o marido e o filho numa casa na “vilinha”. Januária é casada com o sobrinho de Celestina e também vive lá. Aos poucos os laços de parentesco foram unindo essas duas famílias que, desde os tempos de acampamento, sempre foram muito ligadas ao movimento. A família de Salvador viveu muitos anos em Minas Gerais, onde possuíam algumas terras. Tendo dificuldades com a plantação por causa da seca, decidiram migrar para o Paraná e depois para a zona rural de outras cidades do interior paulista. Salvador sempre foi ligado à igreja, tendo se tornado capelão. Da mesma forma, sempre foi engajado na política. Membro do sindicato dos trabalhadores rurais, participou do período de formação do Partido dos Trabalhadores (PT). Seus filhos cresceram em meio ao trabalho na roça, à migração constante, à participação na igreja e na política. Devido às dificuldades de trabalho no campo, a família mudou-se para a periferia de Sorocaba, onde Salvador havia encontrado emprego numa montadora de automóveis. Seu filho mais velho, Hermes, já tinha esposa e filhos quando deixou o trabalho numa fazenda para ir morar perto do pai em Sorocaba. Hermes conseguiu emprego na fábrica da Coca Cola. Nesse meio tempo, seu pai ficou desempregado e ele se acidentou no trabalho. Hermes narra assim esse momento difícil na cidade: “Ah, na Coca eu era uma pessoa que tinha facilidade em qualquer serviço que eu entrasse. Sempre chegava...se começa do mais bruto. Mas logo já ia passando pra frente. Aprendia rápido o serviço. Então, eu entrei de ajudante, de auxiliar de engarrafamento. Eu trabalhava carregando caixa, caixa de bebida. Com o tempo eu já entrei de operador também. Acabei acidentando lá. Não cheguei nem a ser classificado. Fiquei noventa dias encostado... A máquina deu defeito, eu chamei o eletrecista. E eu fui... acertar um censorzinho da máquina. O cara mexeu na chave que tinha lá, então, ela cola o plástico pra poder embalar. E é uma faca, e ela é aquecida a cento e setenta graus de calor. Na hora que ele apertou aquela chave prendeu o braço. Essa cicatriz... Me levaram pro pronto socorro e eu fiquei noventa dias lá. Só que eu sabia que era ele que tinha apertado, por que eu conhecia bem a máquina. Eu não falei na hora...o pessoal da CICA veio. Por que até o momento o cara era gente fina. Eu nunca tive o que reclamar dele. Eu não vou ferrar com o cara, né. O cara também precisa. Só que daí quando eu voltei, quem quis ferrar comigo foi ele... Por que eu era ajudante. Então, como eu passei a trabalhar, eu ia ser classificado operador de máquina. Eu ia ganhar mais um pouco, o salário seria melhor. Fiquei uns dois meses lá. Aquela época o pai já tava desempregado. Quando foi um dia, o pessoal passou anunciando no rádio lá que ia ter uma reunião com o pessoal do MST. A reunião seria bem no barracão comunitário lá da igreja. A gente conhecia bem. Aí, falamos: - Ah, nós vamos participar dessa reunião. Nós pegamos e fomos...Eu e o pai. Só que daí, um ano atrás eles 42

já tinham passado lá, fazendo essas reuniões. Só que não deu certo da gente ir. Depois de um ano que eles passaram lá, eu falei pro pai: - Ah, dessa vez eu vou! O pai falou: - Ah, não pensa duas vezes não, se o pessoal lá em casa não quiser ir, por que as meninas não tavam querendo ir, se pega e vai. Quando foi acontecer a ocupação, eu tava trabalhando ainda na Coca. Como era um final de semana eu peguei e fui pra ocupação. Fiquei um dia lá. Vim embora, perdi o dia de serviço na segunda-feira. Eu fiquei lá no domingo e vim embora na segunda. Aí, trabalhei uma semana, a semana toda e pedi a conta...Eu pedi a conta e fui pro acampamento. E a Alicia ficou em casa. Naquela época eu tinha já uma casinha lá”.(Hermes, 2/3/2005).

O acidente de trabalho fez Hermes perceber as dificuldades do trabalho na fábrica da CocaCola. O fato de “ir pegando rápido o serviço” ameaçava a posição dos superiores. O acidente causado pelo encarregado servia para mantê-lo em seu posto originário. A cicatriz em seu braço causada pela máquina era também a marca da concorrência entre os próprios funcionários da fábrica e da desunião. Hermes não quis contar a todos que a culpa havia sido do encarregado por solidarizar-se com ele. O outro, no entanto, mesmo depois de ter causado o acidente, ainda queria prejudicar mais o concorrente. Em meio a toda essa crise, as reuniões com o MST surgem como uma solução tanto para seu pai, quanto para ele. Hermes abandona o trabalho na fábrica e vai viver longe da esposa e dos filhos no acampamento. A princípio suas irmãs não queriam fazer parte da ocupação. Com o tempo toda a família foi morar no acampamento, passando a ser uma das famílias mais vinculadas ao movimento e à sua ideologia. As reuniões realizadas pelo movimento nos salões das igrejas apresentam as soluções de fazer parte da ocupação e de “virar sem-terra”, como alternativas à crise (V.Turner; 1974-1982). Para B.Fernandes (1994), o movimento gera espaços de socialização política onde os trabalhadores vão, por meio da educação política, concientizando-se de seus direitos e da necessidade da luta. Para isso, é preciso lançar-se num tempo de incertezas, deixando para trás a casa, o trabalho, a família e todo um papel e lugar social já construído. Postos à margem (V.Turner; 1974-1984) nos acampamentos, esses trabalhadores vão aos poucos assumindo novos papéis sociais e vendo o mundo com olhos diferentes. A “cicatriz” que até hoje Hermes carrega no braço foi o limite da situação de crise no trabalho que era cada vez mais difícil de contornar. A “fome e a perda das digitais” (Xica) e o ato de “espancar o filho” (Celestina) constituem igualmente limites corporais para a trágica situação pela qual passavam. A concorrência entre operários, a criminalidade e o tráfico de drogas na favela, e a super-exploração do trabalho na colheita inseriam esses trabalhadores em ambientes marcados pela violência e pelo medo da morte. O espaço do corpo, 43

locus da revolta, e o espaço do acampamento, locus dos revoltados, mesclam-se na ação desse coletivo que busca atuar contra uma estrutura social que gerava o sofrimento individual e o sofrimento dos agora “companheiros”. Se o conceito de classe, do ponto de vista de G.Lukács, supõe a abolição do isolamento e a luta contra a atomização reinante na sociedade capitalista (2003b, :212), acredito que a vida e convívio em acampamento levam à centralidade da ação, da prática para alimentar o processo de compreensão crescente da realidade. As ocupações, acampamentos, marchas e atos públicos assumem o caráter de intenção não só para a transformação da própria vida, mas da estrutura social como um todo. A possibilidade de mudança e de uma nova vida que se abriram nas reuniões com os militantes fez com que esses trabalhadores perdessem o medo da morte no campo e com que superassem o preconceito e a incompreensão dos parentes. Entretanto, como aponta M.Turatti (1999c), apesar de criarem laços coletivos nos acampamentos, não há a homogeneidade e harmonia. São comuns os conflitos entre acampados e de acampados com as lideranças. Penso que tais diferenças sejam oriundas tanto de suas diferentes experiências de vida e trabalho, quanto das diversas inserções nos quadros do movimento. Além de congregar os moradores da periferia de grandes cidades e de zonas rurais, o acampamento Carlos Lamarca integrou um grupo de ex-moradores de rua. Esses dormiam em albergues na região do Brás, em São Paulo. Com o desemprego e a falta de dinheiro para pagarem os aluguéis, esses trabalhadores acabaram indo viver na rua. Algumas noites encontravam abrigo em albergues. Com a ajuda do padre Crispim e de um grupo de pessoas ligadas à igreja, esses moradores de rua tiveram alimentação e moradia garantidas. A ligação do grupo coordenado pelo padre e pelo MST fez com que militantes realizassem trabalho de base com esses ex-moradores de rua. Em sua maioria, migrantes das regiões norte e nordeste do país vieram para o estado de São Paulo em busca de melhores condições de vida e trabalho. No entanto, depararam-se com a dura realidade do desemprego e da vida na rua. Sertanio, que trabalhava como pedreiro em São Paulo, com o tempo não foi mais conseguindo emprego. Sem poder pagar aluguel, dormia uma noite num hotelzinho barato e outra na rua, até que perdeu seus documentos. Sem contato com a família, acabou indo viver na rua, encontrando repouso e alimentação numa casa de convivência. Ele narra assim esse momento:

“Quando eu entrei no movimento sem-terra...Por que quando eu comecei com os padres, eu fui cadastrado pelo padre Lauro. Lá em São Paulo, lá na casa de convivência. Eu trabalhava em São Paulo. Trabalhava de pedreiro. Trabalhei pra Samara, que é uma firma temporária. Depois, fui trabalhar em outras firmas lá, que eu até me esqueci, por que 44

temporária, em São Paulo, você sabe que é ali o que tem. É muita...Eu sei que eu só lembro que eu tava trabalhando na Samara, quando eu fui mandado embora e encarei outras temporárias lá, mas eu nem lembro mais. Mas, aí, a gente já estudava lá a organização de partir pra cá, pra poder lutar pela terra. Porque nós ficamos uns, o padre Lauro cadastrou a gente, naquele tempo, quando ele cadastrou na casa de convivência. Então, era uma casa que a gente pegava uma alimentação pra sobreviver... por que a gente não tinha casa, fogão, cozinha. Muitas coisas a gente tinha que pegar nas pensões. Tudo o que você não tinha: a casa, o fogão e tal, então a gente ia pra lá. Porque a gente tava lá desde a época do governo. A migração é ainda do governo. Mandada pelo governo, pelo Estado. Então, eu habitei algumas vezes lá na migração. Fiquei morando lá. Eu dormia e comia por lá. Mas já depois dessa vez que eu consegui lá que foi quando eu dormia lá na migração e dali eu vim aqui pro Brás, o início da Celso Garcia, que é onde tá a Igreja Católica, lá. A gente entrava ali no meio do povo, tinha missa, tinha palavra, tinha discussão, estudo, palavra, estudar as formas, o que o cara passava no passado, quando que a pessoa passava como ele... onde ele nasceu, como sobrevivia... Eu fiquei mais de seis meses nisso aí. Trabalhando biscatamente, fazendo aquilo que se chama de bico, né. Nas temporárias ali, porque era noventa dias, um mês, dois meses de cada temporada. Tá tudo aí nas carteiras minhas os esquemas, tudo aí. Mas aí eu continuava dormindo no gasômetro, e todo domingo, nós participávamos da reunião na igreja, ali da Celso Garcia, no Brás. E fomos participando até chegar o dia de partir pra luta da terra aqui. Que nós lutamos, acho que já tá fazendo dez anos que nós rodamos a baiana aqui, na região, mas foi rodar a baiana. Quem tá aqui até hoje é porque rodou a baiana. Porque a gente era pobrezinho. Eu, quando eu vim pra luta, eu não tinha nada. Eu recebi umas doaçõezinhas de enxada, de foice, um facão. A lona eu comprei com o meu dinheiro. A lona de arma. E então,... nós partimos pra cá. Agora, no meio, tinha as pessoas que tinham as coisas. Mas eu mesmo sei que eu não tinha nada. Eu vim pra cá com uma lona nas costas. Eu digo, ói, fazer o quê? Fazer o que Deus quiser. Porque eu já tinha jogado umas formas aí e não tava dando certo. Comprei um terreno aí, não deu certo, perdi o terreno. Comecei a construir em São Paulo também eu perdi a construção. Aí, eu, digo : Ói, não tem jeito. Porque apelar pra justiça, a justiça fica mandando esperar, esperar, esperar, não resolvia. Eu digo: - Ói, o meu fim é justamente o movimento sem-terra. E foi até que no cadastro que fez o padre Lauro eu disse: - Ói padre, o negócio é o seguinte, eu acho que eu vou é embalar mais você nessa luta.” (Sertanio 20/02/2005).

Trabalhando como pedreiro em São Paulo, Sertanio não conseguiu construir sua própria casa. Por ter sido mandado embora da empresa onde trabalhava, não conseguiu mais pagar o aluguel e passou a alternar as noites em que dormia na rua àquelas em que dormia na casa de convivência. Aos domingos, participava com outros moradores de rua de reuniões que “preparavam para a luta”. A dureza da vida na cidade transparece na diferença que sentia com relação aos outros acampados. O grupo de seu Sertanio era formado de “pobrezinhos”, pessoas que não tinham nada além de uma lona nas costas. As doações de enxada, facão e foice são evocadas por esse pedreiro, que não possuía os mínimos instrumentos de trabalho necessários a um trabalhador rural. Com esses 45

instrumentos e a lona preta, ele ajudou a “rodar a baiana” na luta pela terra. Acredito que o fato de Sertanio entrar para o movimento, ou “partir pra luta”, tenha permitido a ele contornar, de certo modo, uma situação de completa exclusão social. Os encontros de domingo, quando Sertanio misturava-se ao povo e discutia, estudava, vão dando um sentido alternativo à dificuldade de viver fazendo bicos em São Paulo e de tornar-se morador de rua. Os atos de “partir pra luta” e “rodar a baiana” foram possibilitando a Sertanio apropriar-se de um novo papel social, encontrando um novo valor para sua atuação no mundo. Dotando sua ação e a de seus companheiros de características como a coragem e a bravura, o narrador constrói a imagem de alguém que não possuía nada e que com a luta reverteu sua situação de não ter nem casa. Sair da completa miséria, lutar e vencer são aspectos marcantes de sua narrativa, que ressalta sempre a ajuda dos padres e do movimento na construção de um novo sentido para sua vida. O grupo reunido pelo padre Crispim resultou em doze assentados27, dentre os quais quatro são solteiros e os outros possuem famílias. Apesar de terem montado uma associação de pequenos produtores, houve grande dificuldade nas relações dos associados entre si e deles para com a produção. Em 2005, toda a produção de mandiocas da associação foi perdida por não haver compradores para o produto. Esse grupo é chamado até hoje de “povo da rua”. Há certo preconceito na visão de outros assentados que permaneceram sempre mais ligados ao trabalho rural. Para esses, o “povo da rua” é composto por solteiros, “pinguços”, “individualistas” e “criadores de caso”. O fato desses ex-moradores de rua terem vivido por um tempo maior em São Paulo e terem trabalhado como pedreiros, vendedores e fazendo “bicos” resultaram numa maior dificuldade com o trabalho na roça. Seus lotes são responsáveis por uma pequena parcela da produção total do assentamento. O fato de não possuírem parentes assentados e de não conseguirem se associar ou se vincular a outras associações já existentes torna cada vez mais difícil a participação produtiva e social desses exmoradores de rua, que vivem hoje de subsistência, auxílios do governo e do arrendamento de pasto. As trajetórias de Xica, Celestina, Hermes e Sertanio são semelhantes às de outros assentados e auxiliam a entender como o momento de “virar sem-terra” é fundamental na compreensão dos desdobramentos da história do próprio assentamento. A situação de exclusão vivida por Xica, sua filha e enteadas revela a exploração do trabalho na colheita da laranja. É na perda das impressões digitais e na fome sentida que elas começam a perceber uma revolta crescente dentro de si. Essa revolta nutre a vontade de mudar de vida e de “virar sem-terra”, mesmo que para isso seja preciso abandonar tudo, brigar com os parentes e passar dificuldades nos acampamentos. Já Celestina 27

Como mostra M.Justo (2005c), as reuniões realizadas pela Fraternidade Povo de Rua e o MST com os moradores de rua fizeram com que 27 pessoas fossem se juntar ao acampamento Carlos Lamarca para realizar a primeira ocupação (: 9).

46

percebe no ato de “esmurrar o filho” todo o medo de perder os filhos, da insegurança financeira e da incerteza da vida na cidade. Celestina convence a família e abandona sua casa para “virar semterra” e viver os riscos da vida em acampamento. Para Hermes, a concorrência e desonestidade nas relações entre os próprios trabalhadores vieram à tona quando machucou o braço na máquina, por culpa do encarregado. Ele deixa o emprego e vai com o pai tentar a vida de sem-terra, ainda que parte da família não concordasse. Por fim, Sertanio não tinha mais família, casa ou trabalho. A comida e o lugar de repouso eram garantidos pela igreja. Esses assentados passaram por situações em que o corpo faminto, desabrigado, machucado, tenso pelo medo da violência e da morte fez-se o locus onde crescia a revolta. O MST e a Igreja Católica permitiram a superação do isolamento social e político que atingia essas pessoas. No acampamento, os novos “sem-terra” foram adquirindo novos papéis sociais, um modo diferente de ver a sociedade e de atuar para transformá-la. À medida que iam construindo uma história coletiva de luta contra os latifundiários e contra o Estado, iam também constituindo uma identidade. Nesse processo fazem-se vivas as palavras de W. Benjamin, quando o pensador aponta que o coletivo é corpóreo. Na intenção de transformar as inervações desse corpo coletivo em tensões revolucionárias e em transformar as tensões revolucionárias em inervações do corpo coletivo, abre-se a possibilidade da realidade de superar-se a si mesma (1929, :35). Acredito que essa oposição e combate coletivos aos “inimigos que não têm cessado de vencer”, personificados pelo Estado e fazendeiros, contribuam para inervar esse corpo coletivo. Entretanto, há diferenças que marcaram a opção por “virar sem-terra”, que mostram a não homogeneidade desse “coletivo corpóreo”. Sertanio percebe haver no acampamento aqueles que possuíam mais que outros. Suponho que tal desigualdade faça com que o “coletivo corpóreo” do acampamento se enerve tanto na luta contra os inimigos externos, quanto nas disputas marcantes ao convívio desses “companheiros”. M.Turatti (1999), que analisou relações sociais em acampamentos do MST no estado de São Paulo, mostra que no convívio diário uma série de conflitos emergem, marcando a heterogeneidade que há entre os acampados e desses para com as lideranças. Sua pesquisa aponta uma diferença grande entre a formação e participação política da base e aquela da liderança. Assim, expostos a diferentes graus de exploração e violência, esses trabalhadores unem-se em prol de transformações na estrutura social e de mudanças em suas vidas. Mas suas diferentes experiências e inserções no movimento geram conflitos. No caso do Acampamento Carlos Lamarca, acredito que, ao conquistarem a terra, as diferenças entre esses acampados, minimizadas no processo de luta, recobram sua força e suscitam interesses diversos e conflitos entre os assentados.

47

Para compreender a complexidade desse processo em que a constituição da identidade de sem-terra se dá em meio à percepção crescente de semelhanças e diferenças entre os acampados e desses para com outros grupos da sociedade, para com o Estado e latifundiários, penso ser interessante a distinção que S.C.Novaes estabelece entre identidade e auto imagem. Nas palavras da autora: “A identidade apresenta sempre uma mesma face, é, de certa forma, um conceito que fixa atributos, exatamente por operar a partir de sinais culturais diacríticos. A auto imagem, por sua vez, implica características não fixas, extremamente dinâmicas e multifacetadas, que se transformam, dependendo de quem é o outro que se toma como referência para a constituição da imagem de si e mais, de como as relações com este outro se transformam ao longo do tempo” (1993, :28). Apesar das dificuldades no convívio, a vida em acampamento garantiu um espaço onde esses trabalhadores podiam unir-se e expressar suas diferentes revoltas. A fixação de atributos de um nós coletivo dá-se ao mesmo tempo em que se constitui uma auto imagem, relativa a quem é o outro. No acampamento, Xica encontrou um espaço para lutar contra a fome e contra a aniquilação moral que a desqualificava como trabalhadora e mãe. Ela passa a ser responsável pela arrecadação de alimentos e depois coordenadora de acampamento. Celestina consegue superar a crise pela qual passava sua família, unindo-a em torno da luta política. Hermes e seu pai vão para o acampamento para poder voltar ao trabalho no campo, para não ter que concorrer e disputar com outros trabalhadores. Sertanio buscava superar a situação de miséria e derrota que o aniquilavam como pessoa. A revolta que cresceu dentro de cada um desses narradores levou-os a unir-se em um dado momento, mas a optar por diferentes caminhos depois da conquista da terra. Dona Xica e seu marido fazem parte da associação de produtores de leite “Agrosul Paulista”, composta por doze famílias. A associação tem como foco a produção de leite e a parceria com uma Ong italiana. Possui também grande assistência por parte do ITESP. De modo diferente, as famílias de Celestina e Hermes continuam muito vinculadas ao movimento e à Pastoral Santa Fé. Com o apoio da entidade, organizaram uma associação de produtores de pimentão. Participam de encontros e passeatas do MST, tendo alguns jovens virado militantes que atuam em setores do movimento. Por fim, o grupo do qual Sertanio faz parte mantém-se à parte da ajuda do ITESP, dos vínculos com a igreja e com o 48

movimento. Uma rede de auxílio mútuo, articulada principalmente em torno de Sinira, garante a subsistência e algum trabalho para esses assentados. Entretanto, apresentam grande dificuldade em produzir e em unir-se entre si. O “virar sem-terra” tem início na aguda crise (V.Turner, 1974-1982) pela qual passavam esses trabalhadores. No cotidiano, a rotinização da violência, da super-exploração da mão de obra, a desarticulação da família, o desemprego, a desunião entre os trabalhadores foram fatores que permitiram a constituição de uma consciência crítica inicial acerca da situação social na qual se inseriam. A revolta que cresce dentro do corpo machucado, cansado, faminto, tenso, alimenta a vontade de lutar pela terra, de lutar por uma vida diferente, de lutar contra tudo aquilo que gera essa revolta. A ruptura com o lugar ocupado na estrutura social emerge através da luta contra os inimigos comuns, “outros” contra os quais se constitui a identidade e a auto imagem dos sem-terra. Vem carregada de tensões e mescla-se a imagens religiosas de esperança e fé. Ao unirem-se num momento e espaço liminares, esses “novos sem-terras” traçam laços de igualdade e comunhão para compôr uma história coletiva de transformação da vida e da estrutura social. Os sem-terra apropriam-se de reminiscências como imagens da perda das digitais, da fome, da ferida e de como elas relampejam no momento de perigo. A força messiânica que combina as imagens da luta política às imagens religiosas talvez, como salienta W.Benjamin (1940), esteja na intenção para a felicidade, para a salvação e para o passado. Nesse processo, essas reminiscências fazem desses corpos fatigados o locus da revolta, da união e do conflito.

49

3

Sob a Terra

Sinais na antiga fazenda Entretanto, essas famílias assentam-se sobre uma terra que também conserva sua história de exploração e violência. A “nova vida” que os sem-terra buscam constituir semeia-se sobre uma terra que já foi cultivada por outros trabalhadores durante muitas gerações. Os escravos se fazem presentes seja por meio dos resultados de seu trabalho árduo, seja pelo clima tenso da fazenda, percebida por alguns como sendo um lugar onde morreu muita gente. Algumas narrativas contadas pelos assentados trazem como tema o sofrimento, o trabalho e a revolta dos escravos que morreram nessas terras. Por meio das várias crenças quanto aos escravos, diversos valores vão sendo atribuídos aos diferentes espaços do assentamento. Com isso, os assentados compõem uma interessante cosmografia28 do assentamento e, nessa especulação sobre seus antecessores, refletem acerca das condições físicas do lugar onde vivem, e de seu próprio sofrimento, revolta, trabalho e dificuldade de vida.

28

Baseio-me no termo que M.Taussig (1980) utiliza para interpretar a experiência de mineradores bolivianos que, diante das dificuldades de seu trabalho diário nas montanhas, acabam articulando a paisagem a imagens de antigas divindades e à imagem tensa do diabo. Assim, por meio dos sentidos que aderem à geografia do lugar, uma cosmografia se expressa e, por meio dela, toda uma cosmologia do encontro tenso e contraditório entre concepções tradicionais e concepções capitalistas de mundo e trabalho.

50

N1- Fazenda Fechada “Se você for ver bem, tem muita coisa o que dizer. Essa fazenda ela é fechada...o que quê é verdade, ela não é aquela fazenda livre. Então, sempre alguma coisa acontece. Morreu muita gente aqui. Todo mundo fala que vê o fantasma do fazendeiro, isso graças a Deus nunca vi, se eu vi não sei se era ele, porque uma vez eu vi um cara todo...me cumprimentou, então se eu vi, não sei se era ele. Era à noite. Não era perto da sede, não. Eu tava saindo, ele passou com o cavalo, rápido. Se era ele eu num sei. Me cumprimentou de cavalo.” (Dalva, 18/12/2004). Suponho que o modo como fui recebido na casa desta primeira narradora e o evento narrativo em que me contou essa história sejam relevantes para entender melhor suas palavras. Eu caminhava pelo assentamento num sábado para agendar as entrevistas. Diante da cerca, bati palmas e dona Dalva, que estava na casa de madeira, ao lado da casa de alvenaria surgiu. Ela abriu um grande sorriso quando me viu, levantou a mão e respondeu ao meu cumprimento dizendo: “- Tarde!”. Falou logo: “Venha, vamos entrar!”. E foi abrindo a porta da casa de alvenaria. Sentou-se num dos sofás da sala, eu me sentei no outro, serviu-me bolo de trigo e café. Ela nada comeu. Sentou-se com as costas para trás, pernas dobradas e um pouco abertas, um grande sorriso que foi diminuindo e se tornando tenso à medida que ela começou a contar sua história, que era gravada por mim. Apesar do sorriso, havia um ar de seriedade muito grande. Ela falava baixo e gesticulava pouco, como quem conta um segredo que não pode ser ouvido por mais ninguém. Dizia ter grande certeza do que falava e temia as conseqüências do clima ruim desta fazenda. Dalva veio para o assentamento depois da terra já ter sido conseguida pelos sem-terra. Nascida na cidade de São Paulo, Dalva cresceu na região da Barra-funda, onde começou a trabalhar no Partido dos Trabalhadores (PT). Sempre engajada na multiplicação das bases do partido, Dalva realizou, durante muitos anos, trabalhos de base para o partido tanto na capital, quanto em cidades do interior paulista. Numa das vezes em que realizava trabalho de base numa favela de São Paulo, Dalva conheceu seu marido Ezequiel, ex-morador de rua e ex-militante de um movimento de semtetos, que acabava de ser chamado para trabalhar junto ao MST, com o grupo do padre Crispim. Ezequiel já participava do acampamento Carlos Lamarca, apesar de ter de passar muito tempo longe, realizando trabalhos de base. Com a homologação do marido, Dalva acabou distanciando-se da militância no PT para ir morar com ele no assentamento. No evento narrado, uma fazenda fechada apresenta-se como uma fazenda não livre. Refere-se a um certo lugar de morada, o aqui. Mas, ao mesmo tempo, refere-se ao lá, “não é aquela fazenda livre”. De acordo com a narrativa, a morte de muita gente é tida como a causa do fechamento da fazenda. Sabe-se que o Assentamento Carlos Lamarca MST se estabeleceu no lugar da antiga Fazenda Monjolo, propriedade que pertencia à tradicional família Almeida Prado. Os ancestrais do 51

dono da fazenda eram muito ricos e possuíam grande quantidade de escravos que teriam sido empregados na lavoura de café. Como contam os assentados, os “senhores” eram “homens ruins” que foram responsáveis pelo sofrimento e morte dos escravos. A maior parte das terras que são vistas ao redor do assentamento pertenciam à fazenda dos Almeida Prado. Era uma propriedade tão grande que atualmente só é avistada de cima do morro mais alto do assentamento, onde está também boa parte da reserva florestal. Antes todas as terras formavam um conjunto e pertenciam a um mesmo dono. Segundo a narradora, as terras eram também abertas e livres. Delineia-se a imagem de uma antiga fazenda livre e aberta, onde “a gente” era escrava e morria. A imagem constituída pela narradora faz lembrar linhas importantes da reflexão de J.S.Martins (2004). Em seu livro “O Cativeiro da Terra”, o autor enfoca a crise do escravismo no final do século XIX, para entender o processo de constituição da força de trabalho e das relações de produção (: 18). Nesse processo, os escravos eram o principal investimento de capital do fazendeiro, já que eram renda capitalizada que futuramente geraria riqueza (:26). A terra, por outro lado, não possuía valor de mercado, era livre, adquirindo importância estritamente para garantir a exploração da força de trabalho e a produção da plantação. De modo interessante, a narradora caracteriza a terra como sendo livre e a mão de obra, escrava, quando compõe a imagem da antiga fazenda. Como dito na narrativa, “todo mundo fala que vê o fantasma do fazendeiro”, o antigo dono da propriedade, cujo nome às vezes é Rodolfo e noutras Flávio, faleceu pouco antes da ocupação de sua fazenda pelos sem-terra. A “assombração”, como sugerem os moradores do assentamento, costuma aparecer na antiga sede da fazenda, no casarão, próximo à lagoa. Na narrativa ele aparece longe da sede, sobre seu cavalo, cumprimentando a assentada. Muitos contam que têm receio de passar pela sede à noite, pois sentem um arrepio. Se precisarem passar, andam mais rápido. J.S.Martins aponta que no século XVII o termo “fazendeiro” designava o administrador da riqueza gerada por uma fazenda. Seus ganhos advinham do comércio de escravos e do comércio dos produtos agrícolas. Somente com a crise do sistema escravista de produção é que esse termo passa a designar o proprietário de terras, o latifundiário, cuja propriedade possui valor imobiliário (2004, :24). A imagem do fazendeiro sobre seu cavalo aparece contraposta à imagem dos escravos na narrativa. Entretanto, a aparição refere-se a um fazendeiro que não viveu no tempo dos escravos. Assim, o fazendeiro visto pela assentada congrega os atributos do fazendeiro proprietário de escravos àqueles do latifundiário. O sofrimento dos escravos, da “muita gente que morreu aqui”, é evocado por Dalva para explicar o clima ruim da fazenda, o fato dela ser fechada e não livre. Em seguida, surge a imagem 52

incerta de alguém sobre o cavalo à noite. Esse misterioso cavaleiro aparece aos olhos da assentada como o “fantasma do fazendeiro”, que a cumprimentou longe da sede. A fazenda fechada revela a morte de muita gente por meio dessas “coisas que acontecem”. A aparição do fazendeiro faz a narradora lembrar a morte dos escravos. Tanto o fazendeiro como os escravos fazem parte dos mortos da fazenda que geram o fechamento da mesma e retiram sua liberdade. Falar desses aspectos da fazenda impõe à assentada uma postura séria, o tom de segredo e desconfiança durante o relato, expressões do medo daquilo de que fala. Como me revelou nessa mesma entrevista, um medo semelhante é sentido por muitos assentados no caminho para sair e entrar no assentamento. Algumas pessoas dizem acreditar que, às margens do rio Itapetininga, na mata, situa-se um grande cemitério de escravos. Esse rio estabelece os limites do assentamento, pois separa a cidade de Itapetininga, onde se localiza o assentamento, e a cidade de Sarapuí. Os assentados entram e saem do assentamento, caminhando pela estrada que corta a mata, passando por uma ponte que cruza o rio. Muitos que cruzam a mata para sair do assentamento sentem um certo arrepio e uma sensação ruim. Poucos são os que cruzam a ponte e a mata à noite, pois têm medo. Crêem ser necessário atravessar esse cemitério na mata para sair e entrar na fazenda. A fronteira do assentamento constitui-se como sendo um espaço da morte (M.Taussig, 1987). A mata e o rio compõem o cenário desse cemitério completamente escuro durante a noite. Como sustenta J.S.Martins, nas áreas de expansão, onde grandes empresas e latifundiários despejam famílias de trabalhadores rurais, onde há a escravidão por dívida e a super exploração do trabalho, ocorre a combinação contraditória de temporalidades (2002,:681). Nessas fronteiras, são importantíssimos os cuidados com os mortos. O velório na casa, as novenas, a posição de saída do corpo da casa são cuidados importantes para afastar o morto da casa e dos vivos. É preciso assegurar a efetiva partida de quem morreu para preservar e proteger o espaço dos vivos, pois a morte pode contaminar os ambientes (:703). Nas fronteiras, os cuidados rituais para separar o espaço dos mortos daquele dos vivos torna-se central. Nesse assentamento, suponho que o desconhecimento com relação aos cuidados anteriores com os mortos gera o medo da contaminação do espaço dos vivos. Se a fazenda é fechada devido à morte de muita gente, os escravos mortos e enterrados às margens do rio demarcam um limite físico na fronteira do assentamento. Assim, o clima ruim da fazenda acentua-se em lugares como a sede e a mata. A presença dos escravos e do fantasma fazendeiro é percebida nesses lugares que geram o medo e certa evitação por parte dos assentados. A ex-militante, que tinha como principal atividade o trabalho de base realizado junto a pessoas 53

como Celestina, Xica, Hermes e Sertanio, que procurava reunir os trabalhadores que sofriam com a exploração do trabalho nas cidades, com o desemprego, em torno de ideais e práticas políticas comuns, percebe na morte dos escravos e na aparição do fazendeiro fantasma motivos para o fechamento da fazenda. O medo da presença desses mortos a faz narrar de modo segredado, sério e tenso, mas revelando sua dúvida e incerteza quanto aos estranhos acontecimentos e ao estranho clima desse assentamento. Semelhante às narrativas sobre o cultura do terror e o espaço da morte na região do Putumayo, analisadas por M.Taussig (1987), creio que a narradora perceba o fechamento da fazenda e seu clima ruim como conseqüências do terror cotidiano em que viviam os escravos. O assentamento, enquanto fazenda fechada, é o espaço dos vivos que está impregnado da morte e sofrimento dos escravos. O processo de “virar sem-terra” inicia-se com a revolta diante da concorrência entre trabalhadores, da super exploração no trabalho e da violência. A fome, os machucados, a falta de moradia e o ato de bater no filho constituem os limites corporais para a situação social na qual aqueles trabalhadores estavam inseridos. Em todas essas situações, o medo da crescente aniquilação moral e corporal gera a revolta e a mudança. De certo modo, o “medo da morte” gera a revolta e o “virar sem-terra”. Dalva conta sobre os escravos mortos no passado, sobre o cemitério na mata do assentamento e sobre o fantasma fazendeiro que a cumprimentou. Talvez, a imagem dos escravos que sofreram uma aniquilação corporal total devido à exploração e violência no trabalho relacionese, de alguma forma, ao medo da morte que impulsionou os atuais assentados a tornarem-se semterras. Suponho que uma interpretação possível das narrativas sobre os escravos e daquelas sobre a adesão ao movimento esteja em mostrar como tais narrativas alimentam-se reciprocamente, constituindo a fabulação como forma de consciência de sí e do outro. Assim, penso que tal relação se dá semelhante ao que M.Taussig (:idem) designa como sendo o “espelho colonial”. N2- Escravos e Morros “Eu também sei dessas histórias antigas da fazenda. Esses vales aí, como é lá no Aristides, como é ali no Odair, isso tudo aí diz que eram os escravos que cavavam antigamente. Eles cavavam tudo isso com o enxadão. Teve muito sofrimento aqui nessa fazenda. Esses negros morreram muitos. Morriam e enterravam por aí. Naquela época, não tinha essas coisas de investigação, matava mesmo. Você tá vendo que não tem pedra nessa fazenda? Eu já procurei pedra nessa fazenda e não tem não. Aí, uma vez, eu tava com o Odair lá no bar dele, a gente tava fazendo um forno. Pra fazer o forno tem que cavar uns dois metros pra dentro da terra. Tem que fazer um buraco. E nós estávamos lá cavando para depois fincar os paus e daí foi que eu bati com o enxadão numas pedras. Tava tudo ali, um monte. Falei:- Oh, Odair, vem cá ver esse negócio. Ele chegou e nós continuamos a cavocar aquelas pedras. De repente, tinha assim um pretume só. Tinha uns ossos, não sei se era de animal ou de gente, só sei que tinha os ossos e aquele pretume. As vezes, era gado que eles enterravam antigamente. Mas, boi, vaca a gente come quando morre, assim, então, não sei se era. 54

A gente sabe dessas coisas que aqui teve muito sofrimento, que aqui tiveram escravos, porque aqui tem muitos sinais. Eu, às vezes, estou aqui em casa à noite e ouço gritos terríveis, de mulher, de criança, tudo do sofrimento que tiveram os escravos. Esse monte de buracos que tem aqui nesse assentamento, que daí chove e desbarranca tudo, que nem tá acontecendo lá no Botelho, que nem acontece ali no Odair... Tudo isso devem ser esses buracos que eles faziam pra enterrar os escravos, essas catumbas. Ninguém explica esses buracos que desbarrancam a terra, e tem de monte aqui nesse lugar.”(Sertanio 8/12/2005). Encontrei Sertanio voltando de um trabalho feito para uma sitiante, fora do assentamento. Comentei com ele que estava conversando com as pessoas para entender melhor a história antiga da fazenda, e que muitas pessoas já haviam me contado sobre os escravos que viviam lá. Sertanio, que andava na direção contrária à minha, disse que eu o acompanhasse à sua casa e ele me contaria as histórias que sabia sobre os escravos. Percorremos a estrada em direção ao seu lote. Durante todo o caminho ele apontava os lugares onde havia percebido os indícios da presença dos escravos. Toda a região onde se estabelece o assentamento estaria marcada pelo trabalho dos escravos. Devido à imensa exploração do trabalho, os negros teriam cavado com o enxadão os vales que compõem o relevo da propriedade. Mas tanto trabalho gerava um sofrimento imenso, levando à morte muitos escravos. Morte matada, como salienta o narrador, diferenciando a morte desses escravos da morte morrida. Segundo J.S.Martins, a cultura sertaneja estabelece uma importante ritualidade para lidar com a morte e o morto. Por meio de ritos de tempo e de espaço cuidam da separação entre corpo e alma, para que haja também a separação entre espaço dos vivos e espaço dos mortos. Toda morte que não se dá pela velhice constitui perigo, pois representa a ruptura no ciclo natural (1983, :259). Pressuponho que a morte matada dos escravos, que não era investigada, represente um perigo, do ponto de vista de Sertanio. Os sinais do enterro dos escravos sob as pedras somam-se aos gritos de mulheres e crianças. Quando chega a noite, de seu lote, o narrador ouve os gritos daqueles que sofreram na fazenda. Se, como salienta J.S.Martins, no momento do desenlace entre corpo e alma ocorre a oposição entre a luz, associada à vida, e a sombra, associada à morte, ao silêncio e à paralização (:265), o fato de ouvirem-se os gritos dos escravos representa a confusão entre essas duas esferas. O barulho torna-se indício da vida daqueles que morreram, assim como a visão do fazendeiro em N1. A manifestação que provoca os sentidos dos assentados (visão e audição) denota o perigo da contaminação dos vivos, e de seu espaço por aqueles que já morreram. Como não havia “investigação”, os trabalhadores eram assassinados por seus donos. O espaço da fazenda no “tempo dos escravos” é percebido como um espaço de terror e medo, onde a exploração e violência das relações de trabalho levavam à morte e à realização de feitos incríveis como cavar os vales no enxadão. A falta de pedras no assentamento é também percebida como sendo um indício da morte dos escravos. Haveria “catumbas” de escravos por todo o assentamento, 55

onde os negros teriam sido enterrados com pedras cobrindo seus corpos. O “pretume”, encontrado por Sertanio depois que removeu as pedras, seria um dos indícios de que não era o gado que estaria enterrado ali, mas os negros escravos. Não restaria a carne do gado, pois era comida. Já a cor do escravo permaneceria nas pedras como marca de sua morte. Por fim, a terra desbarrancaria devido aos inúmeros buracos onde os negros foram enterrados. Com a chuva a camada de terra que cobre as “catumbas” cederia, e apareceriam esses buracos onde os escravos haviam sido sepultados. M.Taussig (1987) mostra como a tortura e esquartejamento dos corpos dos índios no Putumayo representavam mais do que a coerção para fazer com que os índios trabalhassem. Havia uma ritualização do terror que fazia com que, no assassinato dos índios, os europeus expressassem seus próprios medos, oriundos de uma complexa manipulação narrativa. Creio que Sertanio e Dalva expressem, por meio das imagens dos escravos e do fazendeiro, seus medos. As manifestações dos escravos mortos fazem-nos perceber o grande sofrimento e terror no qual estavam inseridos cotidianamente. A narrativa faz uso de hipérboles para demonstrar o grau de exploração. Se, como aponta J.S.Martins, o “fazendeiro comprava a capacidade do escravo criar riqueza”(2004, :26), a enorme força de trabalho desses escravos, com a capacidade de cavar vales no enxadão, denota a riqueza e poder desse fazendeiro. Esse é percebido também na possibilidade de aniquilar a própria mão de obra e enterrá-la nas terras da fazenda. Como em N1, essa narrativa aponta para a morte e o sofrimento de muita gente, de muitos escravos na antiga fazenda. Em N2, os escravos teriam cavado os vales e, de certo modo, aberto a fazenda com seu trabalho. Contraditoriamente, os mesmos trabalhadores que abriam as terras eram mortos e enterrados, fechados sob pedras. Tantos foram os mortos que hoje já não se vêem mais pedras no assentamento. Esse aspecto da narrativa revela o imenso sofrimento que constituía a vida dos escravos. Dalva aponta que a fazenda era fechada e não livre devido à morte dos escravos, e que seu cemitério se situava na fronteira do assentamento. Mortos os negros, eles iam sendo fechados na terra e a terra ia se fechando aos vivos (N1). Logo, em ambas as narrativas, a imagem dos escravos vivos relaciona-se à fazenda aberta e livre. Suas mortes sinalizam seu fechamento sob a terra (N2), e a não liberdade da própria fazenda (N1). Uma interpretação possível é a de que, com o sepultamento dos escravos na terra por eles aberta, a própria terra tenha incorporado atributos da pessoa do escravo e de seu sofrimento, tornando-se cativa e fechada. Assim, a contaminação entre o espaço dos vivos e o espaço dos mortos, conseqüência do sofrimento e morte matada dos antigos trabalhadores, faz com que o assentamento esteja repleto das características dos escravos. As sepulturas, clima tenso e gritos atestam a confusão dos espaços dos mortos e dos vivos, e o perigo tanto da morte, quanto da vida 56

no assentamento, já que se trata de uma fazenda fechada onde morreu muita gente. Mas a força dos escravos está materializada nos vales onde foram enterrados, imagem que, de um lado, salienta o perigo do sofrimento e morte, e de outro, a possibilidade de vida pelo trabalho. Pensando com W.Benjamin (1940), sob os pés dos sem-terra, os escravos deixam seus sinais, monumentos da tradição dos oprimidos que ajudam esses narradores a escovarem a história da fazenda, monumento do poder dos fazendeiros, a contrapelo. Esse monumento às avessas se oculta na paisagem e no relevo onde foram desmaterializados os corpos dos escravos e onde foi materializado seu trabalho. Quando Celestina contava sobre o processo de “virar sem-terra” disse que o marido não queria ir para a ocupação, pois tinha medo de ser morto pelos fazendeiros como acontecera recentemente no “massacre de Eldorado dos Carajás”. O massacre ocorreu no dia 17 de Abril de 1996, ano em que se formava o acampamento Carlos Lamarca. No Pará, dezenove sem-terras haviam sido assassinados por duzentos e sessenta e oito policiais armados com metralhadoras e revólveres, sob as ordens dos comandantes da polícia militar. O processo penal revelou os interesses dos fazendeiros da região, que estariam por detrás da ação da polícia29. O medo de ser morto pelos fazendeiros sentido por Solano também era sentido pelos escravos que trabalhavam naquela propriedade. Em N2, Sertanio mostra, através das hipérboles de cavar os vales e de não haver mais pedras, o grau do sofrimento, terror e o imenso número de assassinatos e injustiças que teriam ocorrido antigamente. Já em N1, a visão do “fazendeiro fantasma” apresenta-se como indício da morte de muitos escravos. O medo de ser assassinado pelo fazendeiro constitui-se como uma aproximação entre o modo como Solano percebia a situação política em 1996, e o modo como Sertanio percebia o sofrimento dos escravos. Como conta Celestina, foi a comparação entre o medo da morte na favela e o medo da morte no acampamento que levou seu marido a decidir tornar-se sem-terra. Em Carajás, os soldados atiravam dos dois lados da rodovia. Na favela, a ameaça da morte fazia-se presente em ambas as escolhas. Para os escravos não havia saída, restava o trabalho duro e a morte violenta. Caminhar pelo assentamento com Sertanio aproximou-me do modo como cotidianamente esse senhor olha e percebe os sinais dos escravos no relevo e na topografia do assentamento. Do seu ponto de vista, as terras foram totalmente transformadas pela ação e pelo sofrimento dos escravos. Os vales por onde andam e semeiam os sem-terra foram cavados pelos escravos no enxadão. Nesses vales não há pedras, pois todas elas cobrem os corpos dos negros assassinados. Transparece no relato de Sertanio o fato de que as terras sobre as quais se situam os assentados também têm sua 29

B.M.Fernandes (1999b) realiza uma importante descrição e análise das causas e impactos desse massacre.

57

história. Todas as suas características são frutos e conseqüências do trabalho, exploração e sofrimento dos escravos. Se, em 1996, o militante pôde dizer que não havia mais naquela região tanto perigo de ser assassinado pelos fazendeiros, no passado, no tempo dos escravos, esse medo existiu, e deixou profundas marcas na propriedade. Na percepção desses dois assentados, o sofrimento e morte dos escravos lega ao assentamento o clima tenso, a não liberdade e o fechamento. Na boca de um ex-morador de rua, excluído do trabalho, sem moradia, sem ter como alimentar-se, a imagem dos escravos, vítimas da exploração e violência dos fazendeiros, expressase por meio de hipérboles. Essas traduzem os patrimônios culturais cristalizados pelos escravos, verdadeiros monumentos edificados num cotidiano de terror e medo. O processo de “virar semterra” situa a percepção do estado de aniquilação moral e corporal no qual se encontravam os trabalhadores. A imagem dos escravos, trabalhadores que não possuíam personalidade reconhecida e, por isso, estavam sujeitos à super-exploração, à violência e à morte, adere ao olhar e às sensações dos assentados nas novas terras. N3- As Valas dos Trabalhadores Fortes “ A única coisa que eu sei dos escravos que tinham aqui são essas valas grandes que tem aí. Sabe onde tem essas matinhas que cruzam de um lote para o outro? Tem ali no do Candelário, e do Silas, no da Lucila pro do Silvino. Descendo ali no do Natanael também tem. Então, perto dessas matas sempre tem umas valas muito grandes e fundas. Essas valas foram cavadas pelos escravos. Tem uns dois metros de fundura e são largas. Tem até hoje, isso eu já vi. Essas valas é que dividiam a propriedade antigamente. Era tudo de um dono só, mas dividiam pra poder plantar. Eram os escravos que faziam isso. Tanto é que pra você ver que durou até hoje. Nós se fossemos fazer não conseguíamos. Eles eram muito fortes mesmo.” (Aldo, 22/02/2005). Os vales cavados no enxadão pelos escravos em N2 e as grandes valas cavadas pelos escravos em N3 possuem interessantes pontos em comum. Como os vales, essas valas são imensas tanto em largura, quanto em profundidade. No passado, eram responsáveis por dividir as plantações quando as terras eram de um dono só. A imagem das valas cavadas pelos escravos demonstra a força desses trabalhadores, muito superior à força de trabalho dos assentados. Se em N2 a imagem dos vales cavados no enxadão reforça o sofrimento e morte dos escravos, em N3 a imagem das valas cavadas pelos escravos sinaliza, por um lado, um coletivo de trabalhadores fortes, capazes de grandes proezas e, por outro lado, o lugar onde se dava o trabalho, a fazenda unida, livre, que pertencia a um só dono. As divisões feitas por meio das valas separavam as diferentes plantações e colocavam uma barreira ao acesso dos animais. J.S.Martins ressalta que no sistema de produção escravista as terras eram livres, ou seja, a renda não estava capitalizada na terra, mas principalmente no escravo, portanto, muitos fazendeiros não tinham título de propriedade, sendo esses forjados posteriormente 58

com a crise do trabalho escravo (2004, :32). De forma semelhante à N3, a fazenda estava unida nas mãos de um proprietário que não necessitava de documentação legal, nem cercas para legitimar seu poder sobre um território. Além disso, grande parte das terras eram devolutas. A qualificação da terra como livre expressa essa situação. Na narrativa, apenas as valas e as plantações demarcavam a propriedade. Foi ocupando a Fazenda Monjolo, ultrapassando suas cercas que os sem-terra conseguiram assentar-se nessa propriedade. Combatendo a renda capitalizada na terra e a improdutividade da fazenda, cujos donos aguardavam a maior valorização imobiliária, os sem-terra estabeleceram-se nesse território. Hoje o assentamento é todo dividido por meio de cercas. Cada família de assentados detém a posse de um lote. As terras da antiga Fazenda Monjolo foram cortadas pelas cercas financiadas pelo INCRA, quando houve a emissão de posse. A verba dada pelo governo, o fomento30, constituía um primeiro apoio, para que os recém-assentados pudessem dividir as terras, mudar-se para os lotes e iniciar a construção de suas casas. Depois de feita a divisão das terras pelas cercas, uma atividade periodicamente realizada pelos assentados é a vistoria e conserto das cercas, sempre danificadas pelo gado. Em Março de 2005, Solano, impossibilitado de trabalhar na colheita do arroz por não haver foices suficientes, chamoume para ir com ele consertar cercas. Terminado o almoço, partimos para nossa tarefa. Começamos subindo o morro onde está o lote de Januária. É nesse lote que se situa a “vilinha”. Atravessamos as estufas de pimentão, passamos ao lado da plantação de arroz e fomos em direção à mata, que ocupa mais da metade do morro. Quando chegamos ao topo, surpreendi-me com a maravilhosa vista de toda a região. Ficamos contemplando os vales da região em silêncio. Depois, Solano mostrou-me a serra da antiga Fazenda Ipanema, onde hoje se situa o assentamento Ipanema, o mais antigo da região. Ele disse que a antiga Fazenda Monjolo se estendia por quase todo o lado direito dos vales, onde atualmente se encontra uma Fazenda do Estado e a fazenda da “Perla”, grande fazendeira da região. Solano chamou a atenção para o “mar de eucaliptos”, o “deserto verde” que cercava o assentamento, estendendo-se pelos vales da Baixa Sorocabana. As cercas daquela parte (topo do morro) estavam danificadas. Solano pegou seu alicate e começou a torcê-las até que ficassem esticadas. Enquanto torcia, explicava-me que as terras daquele morro eram as mais férteis do assentamento. Terra vermelha, terra boa. Tudo o que fosse plantado dava. Nessa parte do morro e da mata estavam os lotes da Januária, o seu, do Salvador, do Odair e do Natanael. Ao pé desse 30

Em 1998, a quantia liberada pelo INCRA como créditos de fomento e de alimentação foi de R$ 1.425,00 por família. Como lembra M.Justo, esses créditos são feitos a fundo perdido para assegurar a instalação, compra de ferramentas, início de horta, alimentação, etc.(2005c:167).

59

morro há a nascente de um rio que deságua no Itapetininga. De fato, passando pelos lotes vimos a bela plantação de arroz no lote de Januária. Igualmente crescidos e bonitos estavam os pés de milho no lote de Salvador e os pés de cana no de Solano. A roça de Natanael estava repleta de milho, cana e napie. “Olha como cresceram bonitos esses milhos”, “nossa senhora, o arroz esse ano deu bem mesmo”, “que linda está a roça do Natanael, cheia de cana e milho”, “a cana cresceu bem no meu lote” eram as falas de Solano, que chamavam minha atenção para as plantações. Em seu rosto formava-se um largo sorriso, enquanto seus olhos ficavam a contemplar as roças, como que encantados. Quando chegamos ao outro morro, onde estavam os lotes de Hermes e Deodato, moradores da “vilinha”, a expressão no rosto de Solano era de uma certa tristeza. Disse que aquela parte toda do assentamento era de terras ruins. Era fraca demais para fazer crescer as roças. “Terra branca”, “areiosa”, não era boa para plantar. Ele apontava as roças de mandioca e cana para dizer que estavam “mirradas” e “secas”. Para ele, o único assentado que consegue produzir bem nessa terra horrível é seu Almir, produtor de um belo pomar, e de uma ótima roça de milho, mandioca, arroz, feijão e batata. Solano admirava muito a força desse assentado, dizia que era um homem muito forte, “bom trabalhador”. Consertamos algumas cercas nesse lado do assentamento e, ao fim da tarde, retornamos à casa de Solano. Ele estava muito cansado. No dia anterior, na colheita de arroz, Solano sentiu terríveis dores de cabeça. Recém chegado de uma viagem a São Paulo, onde esteve para receber a indenização de uma empresa de ônibus pela morte do pai, Solano culpou o ar condicionado do ônibus e do escritório da advogada pelas dores. Enquanto os outros cortavam o arroz, ele se sentou à sombra de uma árvore, perto da roça. Colocou as mãos na cabeça e lá as deixou por um bom tempo. Seu rosto estava todo tenso numa expressão de dor e sofrimento. Num dado momento, Solano ajoelhou-se, curvou seu corpo e encostou a cabeça no chão, na terra. Os braços envolviam a cabeça, o rosto ficava protegido, tocando a terra. Em silêncio e imóvel, ele ficou assim até que Salvador saiu da roça e veio ver o que o compadre tinha. Aconselhou-o a procurar um médico e a ir para casa. Acompanhei Solano até sua casa. Nós, que conversávamos muito, quase não falamos nada. Chegando em casa, Solano disse a Celestina que tinha estado com muita dor de cabeça, mas que tinha feito como eles faziam no Paraná. Colocou a cabeça na terra, e a dor já estava passando. Celestina disse: - “Bom, se você já colocou a cabeça na terra, então já já melhora!”, e contou sobre sua filha Iara e sua sobrinha Irene, que antes de virem para o Assentamento tinham bronquite. Iara vivia no hospital. Uma época pegou também meningite. “Era magrinha, toda doentinha, coitada”. Mas quando as duas vieram morar aqui no assentamento, nunca mais tiveram nada. Segundo ela, 60

aqui o ar é mais puro que na cidade, não tem poluição. A comida é toda da roça de lá mesmo, não tem química, veneno. “Em São Paulo, era um horror, todo mundo doente, todo mundo nervoso”. Ela mesma sofria dos nervos e quando veio pra cá, não teve mais problemas. Lá em São Paulo era um inferno, e aqui ela diz estar no céu (cad.camp. 03/03/2005). Entretanto, as famílias que moram do outro lado do assentamento, no morro que possui as terras menos férteis, têm maior dificuldade para manter as roças, a “boa alimentação” e a saúde. Logo após a emissão de posse, muitas famílias deixaram seus lugares na agrovila do acampamento, desmontaram suas casas de madeira e as remontaram nos lotes. Para muitos as dificuldades iniciais estavam na falta de água de alguns lotes (alto do morro), tocos de eucaliptos, falta de energia elétrica, grande quantidade de insetos e bichos como cobras, escorpiões, ratos, lobos, aranhas, etc. que ameaçavam as criações iniciais e a vida da própria família. Lídia, uma das filhas de Aldo, e seu marido Juarez contam da seguinte forma esse momento: “Quando foram saindo os números dos lotes as pessoas foram procurando onde era. O nosso aqui é que nós levamos um susto. Por que eu conhecia tudo, mas não conhecia aqui. Eu conhecia a fazenda inteira menos aqui. Era um lugar que eu nunca tinha vindo. E quando foi o sorteio, eu não esperava. Aí, quando falaram o número do lote e onde era a gente levou um susto... O INCRA tinha dividido a fazenda já pra quarenta e uma. Cada um pegava um pedacinho dos tocos pra não ficar uma família só na tocaiada. Agora, você vê, somos em oito famílias na tocaiada. Juarez: - No começo, tava até sem água. Morreu criação, morreram na minha mão mesmo dois animais, faltando água. Precisava da água pra fazer a casa e manter a criação na água também. Mas eles não agüentavam, iam morrendo. Até que o INCRA ponhou um poço. Aí tem o poço e a caixa, e daqui distribui pra dezenove famílias. No começo aqui foi duro. Lídia: - Nós tiramos toco também no enxadão pra fazer a casa. No enxadão. Vários dias destocando essa primeira parte, esse quadro aqui da casa, aqui em volta. Daqui perto de casa a gente tirou cada tocão enorme. Juarez:- Aqui, no começo, na luta assim, no sofrimento, então vieram todos iguais, mas só que vieram umas pessoas que têm a mais, que têm um capitalzinho lá fora, a mais, tem loja... A gente veio sem nada, né. A gente veio só com a roupa do corpo e ainda dependendo de parente... Então, nós, além de não ter, no começo nós caímos no meio da tocaiada. Além de ser toco, de não poder plantar, e de não ter água. Então, foi bicho feio rapaz. Lídia:- A gente sofreu aqui dois anos... A gente na verdade não plantou nada, porque tudo o que a gente plantava aqui morria. Secavam as raízes.”( Juarez e Lídia, 17/12/2004) O susto que Juarez e Lídia levaram ao descobrir qual seria seu lote deveu-se ao fato de não conhecerem o lugar, já que era um dos piores lugares do assentamento para se plantar e para morar. Da entrada do assentamento até o lote desses assentados leva-se uma hora numa estrada de chão, sem sombra. O lote também é distante daquele onde foi assentado seu pai. Aldo e sua esposa Sirlei foram assentados num lote plano, que dá acesso a um dos afluentes do rio Itapetininga, que corta o 61

assentamento. Durante esses difíceis dois anos, Lídia e Juarez foram auxiliados pelos parentes. O gado de Juarez ia pastar nas terras de Aldo. No lote do sogro, Juarez pegava água e levava com a carroça até seu lote. Com um imenso esforço Lídia e Juarez foram destocando no enxadão parte do lote, para poderem construir sua casa. O lote havia sido antes uma plantação de eucaliptos da fazenda. A terra do topo do morro, distante dos rios, e com os restos dessa plantação, estava seca. Não havia como fazer pasto ou plantar. As mandiocas plantadas e as criações foram morrendo. O medo de não conseguirem produzir no lote é caracterizado por Juarez como um tempo de “dureza”, de “sofrimento”. Como Sertanio, Juarez relata a desigualdade existente entre aqueles trabalhadores que aderiram ao movimento apenas com a roupa do corpo, e aqueles que possuíam reservas fora. Para ele, essa diferença favoreceu a esse último grupo de assentados, que logo conseguiram construir suas casas e produzir no lote, e dificultou a atuação do primeiro grupo, que até hoje se esforçam para estabelecer a produção. A saída para Juarez e Lídia veio através da ajuda financeira da Pastoral Santa Fé, que permitiu à família extensa de Aldo e Sirlei (Juarez e Lídia, Lucila e Elton) formar uma associação e começar a produzir pimentões em estufa no lote de Lucila. Aldo consegue produzir graças ao trabalho conjunto em família. Aos cinqüenta anos, o narrador já não consegue trabalhar sozinho. As dores nas costas e no joelho fazem-no passar semanas sem poder sair de casa, sob cuidados médicos. O corpo marcado pela iniciação na roça, quando ainda era criança, a concomitância entre o trabalho no açougue em Indaiatuba e a escola, o vício superado da cachaça, e a dor de ver-se desempregado, sem poder sustentar a família na cidade de Sorocaba, são motivos que impõem a necessidade do trabalho coletivo a Aldo. Consciente da impossibilidade de manter-se na cidade, ele, sua esposa e filhos decidiram aderir ao MST e a participar das ocupações. No acampamento, suas duas filhas arrumaram namorados e casaram-se. A família participava ativamente da vida em acampamento, sem nunca se tornar liderança. Aldo contou-me sobre os escravos quando estávamos em sua casa, num almoço para o qual eu havia sido convidado. Ao contrário das outras casas, Aldo é o principal cozinheiro da família. Tendo trabalhado como açougueiro, padeiro e confeiteiro, o narrador prepara pratos que são celebrados por toda a família. Esperávamos o feijão e o arroz ficarem no ponto, quando começamos a conversar sobre os escravos. Aldo contava o que sabia sobre os escravos, sempre alternando o tom sério, com uma forte gargalhada. Seu corpo, castigado pelo trabalho pesado desde a infância, não permite que ele faça grandes esforços na plantação e colheita dos pimentões. Entretanto, ao andar pela fazenda, o narrador reconhece os sinais do trabalho dos escravos. As imensas valas, que duram até os dias de hoje, são “monumentos” deixados pelos negros que atestam a incrível força de seus corpos. A imagem dos 62

negros escravos é então comparada à dos sem-terra. O narrador diz: - “Nós se fossemos fazer não conseguíamos”, e expressa a desigualdade entre a força dos escravos e a força dos sem-terra. Portanto, é possível perceber que em N2, Sertanio estabelece também uma comparação entre o sofrimento dos escravo e o sofrimento dos sem-terra. Os primeiros teriam sofrido muito mais, já que foram assassinados pelos fazendeiros, restando as marcas de suas mortes pelos inúmeros buracos que há no assentamento. Mas a terra estéril e arenosa encontrada por alguns assentados são legados da exploração ininterrupta das terras por distintas gerações. Para J.S.Martins, a terra que atualmente é esgotada por empresas e fazendeiros nas regiões de fronteira gera cidades, o pasto estéril, ralo e arenoso, o despovoamento, o refluxo para a economia mercantil simples, baseada na economia de subsistência (2002, :683). Também no assentamento, após o esgotamento de grande parte das possibilidades produtivas é que a terra foi destinada à valorização imobiliária e à reforma agrária. O sofrimento aparece quando Juarez conta sobre as dificuldades em começar a morar e a produzir no lote. Com o enxadão o casal consegue apenas tornar uma pequena área habitável e produtível. Como conta Sertanio, com o enxadão os escravos cavaram os vales do assentamento. Os sinais dos escravos são os aspectos que atestam seu trabalho e sua morte. Todas as terras do assentamento possuem esses sinais, que lembram que a propriedade já foi unida e de um só dono. O contraste coloca-se quanto à divisão dos lotes por cercas, a divisão entre muitos donos sem-terras, trabalhadores livres. A fazenda que antes era aberta e livre, no tempo dos escravos, torna-se fechada e não livre. Talvez a não liberdade do atual assentamento/ fazenda designe sua condição de escravidão. Dividida entre muitos donos, as terras onde estão enterrados os escravos geram dificuldade e sofrimento para os sem-terra que passam a ter problemas para morar e produzir na terra. Por outro lado, a “terra boa”, vermelha e fértil onde se assentam outras famílias garantem a melhor qualidade de vida. O gesto de Solano expressa a profundidade dessa relação entre a terra que livra a cabeça das dores, que cura pelo contato, e que faz crescer “belas roças”. Nessa terra, as doenças causadas pela cidade foram superadas pelo trabalho e moradia coletiva, num lugar que possui ar puro, e onde tudo o que se planta gera bons alimentos. A bronquite, hipertensão e enxaqueca são curadas no assentamento. Nos conflitos que levaram à adesão ao movimento, trabalhadores fatigados percebiam na fome, dores corporais, crise da família e ausência de moradia a revolta que crescia e alimentava a vontade de lutar e mudar de vida. Entretanto, a terra conquistada gera novos desafios ao corpo. As dificuldades de produzir autonomamente são as dificuldades de produzir com um corpo fatigado, que não conhece a terra onde se constitui sua morada e seu trabalho. Mas, a terra também cura os 63

males adquiridos na cidade, e seu cultivo pelo trabalho coletivo permite produzir “roças belas” e bons alimentos para a mesa. O assentamento constitui-se como um lugar semelhante às fronteiras (J.S.Martins, 2002) onde ocorre a substituição de proprietários que obtinham a renda da terra por pequenos agricultores que tentam fazer a terra produzir. Tal fronteira coloca-se entre a vida e a morte, a fertilidade e a esterilidade, a liberdade e a escravidão. Distanciando-se do esgotamento de seus corpos nos trabalhos das cidades, alguns assentados deparam-se com os difíceis afazeres rurais. Se a terra é fértil, passa a designar a possibilidade da continuidade da produção e vida. Caso contrário, a produção e vida estão ameaçados. Em sua pesquisa sobre a favela do Jardim da Glória, antigo bairro Risca Faca da cidade de Piracicaba (SP), J.C.Dawsey ressalta que, em narrativas contadas pelos moradores, o lugar era mostrado através de uma geografia da morte. Para o autor, “tal como as narrativas dos alegoristas barrocos, a História de Crmn é contada através de imagens da história natural. A própria natureza expressa por encanto uma tristeza e melancolia profunda: ‘O lugar onde ela (uma moradora) foi morta...sabe que o capim não voltou a crescer e as bananeiras murcharam?’ ”(1999a,:192). De modo parecido, a morte e enterro dos escravos nas terras da fazenda dizem algo sobre a própria terra infértil, sobre a dificuldade de fazer germinar as plantações, de criar o gado e de obter a água. O clima tenso, a seca, a infertilidade do solo, os gritos na noite, os vales e valas compõem a imagem do assentamento como um espaço de morte que disputa o espaço da vida nessa nova fronteira aberta pela reforma agrária. A mesma terra, que cura as doenças legadas ao corpo explorado dos ex-bóias frias e operários, pode também gerar o perigo da fome e da sede. No assentamento Carlos Lamarca, semterras com seus corpos fatigados encontram-se com a terra fatigada, outros encontram na terra a possibilidade da cura.

64

4

VERTIGENS DO CATIVEIRO

Aproximações entre os Sem-Terra e os Escravos N4- Senzala e Delegacia “Quando cheguei na cidade, aqui em Sarapuí, que eu olhei pra aquela delegacia eu achei estranhas as grades. Grades grossas, grandes, não é que nem as das cadeias de hoje em dia. Olhei pro lado da delegacia e vi que tinha um porão ali do lado do postinho de serviço social. Aí, eu percebi que aquilo ali era um porão onde eles trancavam os negros antigamente e que aquelas grades eram as grades da senzala. Aquela delegacia era uma senzala antigamente. Ihh! Meu filho, tinha muita aqui em Sarapuí. Aqui era uma terra de senhores. Ainda é, né. Tem muitas casas aí na cidade que têm as grades e esses porões. Diz que tem uma casa aí na cidade que tem até os instrumentos de tortura, aqueles (faz gesto com a mão em volta do pescoço) de colocar em volta do pescoço, as correntes, aquele de por na boca, tudo. Diz que tem lá, e não deve ser difícil de encontrar, não.” (Xica 7/12/2005). As grades da delegacia de Sarapuí eram também as grades que prendiam os escravos na senzala. Os usos diferentes das grades aproximam a imagem da sem-terra militante, que acabava de 65

chegar à cidade onde se realizava a ocupação, daquela dos escravos que haviam vivido e morrido naquele lugar, sendo presos e torturados nos porões das senzalas. A história do terror pelo qual passaram os escravos é percebida pela narradora nas grades, na arquitetura da delegacia e das casas da cidade, e nos instrumentos de tortura ainda conservados em uma casa. Grades, correntes, mordaças compõem o testemunho da presença dos escravos naquela região, mas também evocam a existência de senhores. Esses eram os responsáveis pela exploração do trabalho, sofrimento e tortura dos escravos. As terras e os escravos pertenciam a esses senhores. As construções de senzalas e casas grandes deram origem a casas da cidade e aos prédios públicos. A delegacia de polícia de Sarapuí tomou o lugar da senzala. As grades conservaram sua função de aprisionamento, fechamento, isolamento de pessoas. Xica chegou ao acampamento Carlos Lamarca dois anos após o assustador Massacre de Eldorado dos Carajas. O medo da coerção policial fazia-se presente nesse acampamento no interior de São Paulo. Em uma das ocupações anteriores, após a liminar de despejo ser emitida, os sem-terra foram expulsos por um batalhão de polícia fortemente armado, munido de cães, cavalos e helicóptero. Hermes, que já havia trazido sua esposa e filhos para o acampamento, lembra de alguns momentos difíceis nos enfrentamentos com a polícia da seguinte forma: “... E aí, no dia a dia você vai se engajando, devido à vida em acampamento, e eu acho muito boa. É uma época assim, que eu sinto muita saudade da época de acampamento, porque a união é muito grande. Ali você enfrenta tudo junto. E aí, com o tempo isso vai mudando. Não dá pra culpar ninguém por isso. A gente mesmo é ser humano, é criado no sistema capitalista e já tem uma certa ideologia na cabeça de cada um. E aí, pra mudar isso, pra quebrar eu acho que é difícil. Eu, no meu caso mesmo, não me arrependo de nada da luta. Aliás, faz falta pra gente. A gente agora fica parado de mais e pensa: - Puxa vida, a gente antes não era assim. Tanta luta que a gente participou. Passamos sufoco. Teve lugar de nós ficarmos três dias aí cercado de polícia e passando fome e com garra. Já teve manifestação que nós fizemos que já foram presos quatorze companheiros. Era gás de pimenta e choque em cima. Ficamos mais de quinze dias em São Paulo só por causa da libertação dos meninos...”(Hermes, 02/03/2005). No acampamento, a coerção e violência da polícia eram enfrentadas pelos sem-terra unidos. Os “sufocos” de estar cercado pela polícia e passar fome, de enfrentar tropa de choque, de ficar quinze dias em São Paulo para conseguir a libertação de lideranças eram combatidos com “garra”. Hermes deixou seu emprego na fábrica da Coca-Cola após ter sido machucado por um colega de trabalho. A concorrência entre os próprios funcionários da fábrica, sua desunião, foi o principal motivo de sua adesão ao movimento. A união percebida na vida em acampamento, nas ocupações, nas manifestações e no combate à polícia nutrem Hermes de um sentimento de saudade. Hoje, como 66

aponta, os assentados vivem mais isolados, cada um em seu lote, devido às conseqüências de terem sido “criados no sistema e ideologia capitalistas”. Opor-se à polícia, ao governo e aos fazendeiros fortalece a identidade dos sem-terra, que descobrem sua força na união contra a estrutura social que aniquilava seus corpos e suas pessoas morais. Em N4, Xica, militante sem-terra, depara-se com uma delegacia que se estabeleceu no lugar da senzala. Percebe que a cidade e a região mantinham as construções e a memória dos senhores e das violências praticadas contra os escravos. Se a oposição dos sem-terra à polícia pode culminar com a prisão, aquelas grades que prenderam os escravos poderiam também prender os sem-terra, separando-os do coletivo que alimenta sua força. Nas grades espessas, a narradora depara-se com o sofrimento dos escravos, vítimas do poder dos muitos senhores que havia na região, e com a possibilidade dos sem-terra serem vítimas do poder da polícia e dos fazendeiros do lugar. O sofrimento dos escravos nas grades da senzala poderia virar o sofrimento dos sem-terra nas grades da prisão. Penso que, como as histórias contadas pelos moradores da favela de Piracicaba no trabalho de J.C.Dawsey, essas narrativas transformem o espaço numa geografia cujo aprendizado se faz através de uma epistemologia da morte (1999, :187). Na aproximação dos escravos, trabalhadores explorados pelos fazendeiros, há tanto a identificação daqueles que lutam politicamente contra as formas de exploração e violência contra os trabalhadores, quanto o medo de sofrerem como os escravos nesse lugar onde a história dos vencedores, para tomar a imagem de W.Benjamin (1940), se sintetiza nos instrumentos de opressão aos vencidos. Descendente de escravos que fugiram para o quilombo do Rio das Rãs, no sertão da Bahia, e que até hoje combatem os coronéis locais, Xica estranha as grades que mantêm sua função de isolamento e coerção. Nas quatro narrativas, a imagem dos escravos sempre remete a um coletivo de trabalhadores que sofreram muito. Em N1, seu sofrimento e morte levam ao fechamento e à não liberdade da fazenda. Em N2, tendo cavado os vales, os escravos encontram-se mortos e fechados em “catumbas” sob a terra. Já em N3, os escravos cavam valas para dividir as plantações na fazenda unida e aberta. Por fim, em N4, as grades e porões denunciam o aprisionamento e tortura dos escravos, seu fechamento, no “tempo dos senhores”. A imagem dos escravos vincula-se sempre ao fechamento. As grades, os cemitérios, os buracos, indícios de seu sofrimento e morte, são também sinais de seu fechamento sob a terra, sob as pedras, pelas grades e instrumentos de tortura. De modo diferente, seu trabalho árduo abre os vales, as valas, garantindo a fertilidade do solo, o crescimento de diferentes plantações e a produtividade da fazenda aberta e livre. M.Mauss mostra como as relações entre homem livre e escravo são definidas no direito romano. Neste, o escravo não tem corpo, personalidade, antepassados, nome ou bens próprios. Não 67

consegue exercer relações sociais, sendo sua pessoa transferida a um senhor livre que tem direito a tudo aquilo que é negado ao escravo (2003c, :389). Juridicamente, o escravo é definido por meio de tudo aquilo que lhe é negado, sua pessoa é transferida, sua própria vida não lhe pertence. No Brasil, como aponta J.S.Martins, o trabalhador escravo era despojado de toda e qualquer propriedade, inclusive de sua própria força de trabalho (2004, :16). Nas narrativas contadas, a imagem dos escravos traduz essa condição jurídica do trabalhador para aquilo que seria um cotidiano de terror e violência. No passado, os trabalhadores sofriam com a exclusão dos direitos aos quais estavam submetidos. Suas mortes e torturas não eram “investigadas”(N2), já que toda sua existência social era legada aos fazendeiros, homens livres e sujeitos de direito. Por esses, a força de trabalho era explorada até a aniquilação total dos trabalhadores. A interpretação do processo de “virar sem-terra” revelou a revolta dos trabalhadores contra as más condições de vida e trabalho nas quais estavam inseridos. Os sem-terra auto definem-se também por uma condição negativa. São aqueles que, numa sociedade onde todos têm acesso à condição de sujeitos de direito, de cidadãos, são excluídos dos direitos ao trabalho e moradia dignos, que serão obtidas caso consigam, por meio da disputa política e legal, obter a terra. Sem-terra e escravos constituem tipos de trabalhadores cuja condição de vida social e legal é antagônica àquela dos fazendeiros, homens livres e plenos de direitos. Contrapondose a latifundiários, no caso dos sem-terras, e a senhores, no caso dos escravos, esses trabalhadores ocupam seu lugar social de oposição a esses homens livres. Xica, nascida num quilombo que legou ao presente as lutas dos escravos contra os senhores, transformando-se em luta contra os latifundiários do sertão baiano, sintetiza em sua pessoa a negação e oposição política tanto dos escravos, quanto dos sem-terra ao acesso aos direitos de vida e trabalho. Seus olhos estranham as grades da senzala e a história de sofrimento dos escravos dessa região, que se assemelha àquela de seus antepassados. Livres eram muitos donos de fazenda, os senhores, já que “naquela época, não tinha essas coisas de investigação, matava mesmo”(N2). Com a ameaça da morte e do aprisionamento, os senhores mantinham seu poder sobre os escravos, garantindo a forte exploração de seus trabalhos. A aniquilação corporal e a ausência de personalidade jurídica dos escravos geravam a vida da terra, sua produtividade, fertilidade. Suscitavam também a vida e poder do senhor, que mantinha sua riqueza. Um caminho interpretativo que se abre é o de pensar que a terra e o senhor se alimentavam do sofrimento e morte dos escravos. Entretanto, a morte de muitos negros (N1) é percebida por Dalva como indício do fechamento e não liberdade da fazenda.

68

Partes consideráveis do assentamento onde os sem-terra iniciam suas produções são consideradas pelo INCRA, ITESP e por assentados como constituídas por solos com baixa fertilidade. Em alguns lotes a erosão, a seca e os “tocos” impõem dificuldades para a plantação. As raízes e animais que morrem na terra atestam os problemas enfrentados pelos sem-terras. No assentamento Carlos Lamarca, trabalhadores livres conquistaram a posse da terra depois de terem se tornado sem-terras. Unidos, construíram uma história coletiva de luta contra a polícia, os fazendeiros e o Estado. Tendo saído de uma situação de grande exploração do trabalho e de exclusão, os sem-terra começam uma vida diferente no assentamento, mas carregando as marcas do corpo fatigado e da “ideologia capitalista”. Livres, vivos e autônomos, os assentados dividem as terras e iniciam suas plantações e criações. No entanto, a terra que antes era fértil, livre, aberta e unida, no tempo dos senhores e escravos, transforma-se numa terra pouco fértil, não livre, fechada e dividida. Como afirma Hermes, desunidos, os sem-terra tentam iniciar suas plantações, mas, como mostram as narrativas, a terra foi tão trabalhada pelos sofridos escravos que agora se conserva fechada e pouco fértil. As construções da cidade mostram o poder dos senhores cuja história se materializa nos prédios públicos, nos instrumentos de tortura, nas grades. Nessa história os escravos aparecem como objetos, alvo das torturas e violências dos senhores. As famílias desses antigos senhores ainda detêm grandes propriedades de terra, ainda assumem os cargos políticos, e preservam a lembrança de seus antepassados, tidos como heróicos fundadores da cidade31. Por outro lado, as narrativas dos assentados reforçam a importância do trabalho, da vida e da atuação dos escravos para a transformação do espaço. Nessas narrativas os senhores surgem como aqueles que praticavam grandes violências contra os escravos. M.Taussig, ao abordar as narrativas dos colonizadores na extração da borracha, salienta que, por meio do discurso, havia a manipulação de imagens da selvageria. A morte dos índios era elaborada ritualmente pelos colonizadores, e espelhava o horror e selvageria que os seringalistas temiam e inventavam (1987, :139). Acredito que a narrativa de Xica situe a tensão entre as versões narrativas emitidas pelos descendentes dos senhores e a necessidade de elaboração de um contradiscurso. Esse contradiscurso reforça o trabalho e sofrimento dos escravos em contraposição

31

Certa vez, folheando o Jornal “O Caminho” da Paróquia de Sarapuí, distribuído durante as celebrações católicas, li uma matéria sobre o comparecimento do então governador Geraldo Alkimin na exposição de produtos da Associação Arte Raiz e lançamento do livro “Sarapuí, sua história e seus antepassados” de Hélio Holtz, membro de uma família de importantes políticos e proprietários de terras da região. Algumas das famílias “tradicionais” da região que possuem grandes propriedades de terra e se revezam no poder político local, realizam pesquisas onde a história da cidade é contada a partir do estabelecimento e façanhas de seus próprios antepassados.

69

à história dos senhores, tidos como fundadores, cuja importância se encontra nos prédios públicos e casas da cidade, assim como nas propriedades rurais de seus descendentes. N5- A Mata e os Companheiros Escravos “ Não, mas, isso é que a mata, ela é dos companheiros, Dalva, se sabe que a mata ela é dos companheiros. Ali perto, contam que tem mesmo, aparece muito. Mas o sujeito só vê aquele que é mau também. Se tiver fé, acreditar em Deus, rezar, não acontece nada não, não vê nada não. Mas lá pra perto da mata o pessoal diz que vê. Lá tem uma tal duma árvore. Dalva: - Grande, os galhos dela formam uma curva, assim, (mostra com as mãos). Ezequiel: - É, o pessoal fala que lá é que amarravam os escravos pra bater neles, pra matar. Matava e jogava o corpo no rio. O seu Raimundo dizia que via muito, era só ele chegar lá perto que via um monte assim desses, lá perto daquela árvore. Ele falava que não gostava nem de passar ali perto.” (Ezequiel e Dalva, 6/12/2005). Na narrativa contada por Ezequiel, as imagens dos escravos e a dos sem-terra aproximam-se. Os escravos surgem como “os companheiros donos da mata”, vistos apenas por quem é mau, não tem fé e não reza. Uma árvore no meio da mata é considerada o local onde amarravam os escravos para bater e matar, constituindo o local de passagem da vida à morte. Os escravos que foram assassinados dessa forma brutal aparecem na mata, perto da árvore. A mata, local de sua morte, passa a pertencer aos escravos que se tornam seus donos. Companheiro é um termo usado entre os sem-terra e exerce função de pronome de tratamento. Ao aderirem ao movimento e mudarem-se para o acampamento, os trabalhadores passam a ser chamados companheiros. “Virar sem-terra” é tornar-se companheiro de um coletivo de sem-terras. O termo expressa a relação de igualdade, ao mesmo tempo em que designa todos aqueles que se encontram na mesma situação, que aderem ao movimento e à sua ideologia e que se opõem à estrutura social onde latifundiários, políticos e empresários constituem as camadas superiores. Nesse sentido, trabalhadores vinculados a outros movimentos sociais como os sindicalistas, os sem teto, os estudantes e políticos ligados à esquerda podem ser também denominados companheiros. Desse modo, o termo é evocativo de processos descritos por G.Lukács (2003b), para entender a luta dos trabalhadores na Europa da década de 1920. “Companheiros” seriam aqueles que superam o isolamento e a atomização reinantes na sociedade capitalista (:212). Pensando com V.Turner (1969), esses trabalhadores lançam-se num tempo e espaço de liminaridade, onde celebram relações de igualdade, de Eu-Tu, já que se encontram distantes dos papéis sociais aos quais antes estavam vinculados. Para o autor, nesses momentos há a celebração de símbolos coletivamente, um estado de comunhão, uma communitas que envolve a todos numa anti-estrutura. Viver no acampamento, participar da luta pela reforma agrária, do combate ao sistema capitalista e à elite, em prol do 70

socialismo são todos atributos que fazem com que alguém seja reconhecido como companheiro. É importante também entender que esse termo mostra a união, a aliança dos chamados “lutadores do povo”, “excluídos”, trabalhadores contra seus inimigos, os latifundiários, os empresários, os policiais, os políticos, etc. Como conseqüência, uma relação de identidade e alteridade sintetiza-se através da palavra “companheiro”. Um segundo uso para esse termo substitui os substantivos esposa e marido, expressando uma relação amorosa ou de cônjuges. A primeira vez em que fui denominado companheiro pelos assentados ocorreu por ocasião do encontro regional do MST, realizado no Assentamento Caíque, na cidade de Porto Feliz, no ano de 2004. Convidado a participar do evento pelos assentados, viajei para o local e assisti às falas das lideranças dos assentamentos e acampamentos que estavam presentes. A militante Eva, irmã de Hermes, fez um discurso contando um pouco da história da regional de Sorocaba. Falou das diferentes lutas que levaram à consolidação de quatro assentamentos e dois acampamentos. Ressaltou a importância de realizar trabalhos com os jovens e crianças, atividades que, através da arte, vinculem o jovem ao movimento, para que se orgulhe da identidade de sem-terra, e continue no futuro participando da militância. Depois dos aplausos à sua fala, Eva chamou a mim e à minha namorada, Mariana, para irmos à frente, falou: - “E agora, o companheiro Danilo e sua companheira Mariana vão dar uma palavra sobre os trabalhos com teatro e música que estão sendo realizados no Assentamento Carlos Lamarca”. O professor de teatro Carlos e eu estávamos trabalhando há um ano com o grupo de teatro do assentamento, que começava a montar uma peça. Paralelamente, eu havia começado a dar aulas de música no assentamento. Mariana conhecia o assentamento, mas não desenvolvia trabalho lá. Meio tímidos, fomos para a frente. Contei um pouco da história desses trabalhos e de como estavam envolvendo os jovens. No final fomos aplaudidos também ( cad.camp. 21/11/2003). Acredito que quando Ezequiel usa o termo “companheiros” para referir-se aos escravos, esteja estendendo aos trabalhadores mortos essa relação de identidade que os sem-terra tecem entre si, e para com outros excluídos, militantes ou simpatizantes da luta contra as “elites”. O sofrimento desse coletivo de escravos é percebido na coerção física que recebiam quando eram amarrados na árvore, e nos defuntos que eram jogados no rio. Como nas outras narrativas, a imagem dos escravos surge como síntese de trabalhadores que sofreram o grau mais profundo da aniquilação corporal, gerada pela super-exploração do trabalho e pelos castigos corporais que os levavam à morte. Sua imagem também mostra trabalhadores que não possuíam direitos, podendo ser assassinados por seus donos. São o oposto mais antagônico do senhor, que possuía terras, direitos, riqueza e o poder de tirar a vida dos escravos. 71

Para os sem-terra, um dos sentidos do termo “companheiros” designa o coletivo dos trabalhadores unidos num acampamento que, tendo sido excluídos dos direitos ao trabalho, à moradia, à terra, unem-se para lutar por seus direitos e combater os latifundiários, facção da elite do país responsável pela expropriação da terra e pela migração para as grandes cidades. A identificação entre os “companheiros sem-terra” e os “companheiros escravos” aproxima as imagens dos dois grupos de trabalhadores excluídos. W.Benjamin, ao refletir sobre a luta travada pela classe trabalhadora, ressalta que a forma de compreensão do passado dessa classe estaria em ouvir, nas vozes que se escutam, os ecos das vozes que emudeceram, ver imagens evocadas em momentos de perigo (1940, :223-:224). Talvez, ao evocarem as imagens dos escravos, esses assentados estejam ligando-se, enquanto excluídos, a uma história que se inicia com os escravos e, ao mesmo tempo, vinculando os escravos à luta política contra a exclusão dos direitos ao trabalho e à moradia. Entretanto, se há a empatia com os “vencidos da história”, que dá força ao contra-discurso tecido pelas narrativas, por outro lado, há o distanciamento. “Só vê quem é mau também”, diz o narrador. A mata, como espaço dos mortos, como espaço dos “companheiros mortos” não se constitui como um lugar bom. O arregalar os olhos e levantar a voz no momento em que dizia essas palavras no evento narrativo mostra o perigo que há na mata, no lugar de passagem da vida à morte dos escravos. Ezequiel lembra que seu Raimundo via os escravos perto da árvore, via tanto que parou de ir lá. Segundo a regra expressa acima, Raimundo, sem-terra como Ezequiel, companheiro de companheiros devia ser uma pessoa má. Os “companheiros escravos”, tão próximos aos semterra em seu sofrimento e em sua oposição aos senhores, são maus. O maniqueísmo que, pelo antagonismo ante à imagem dos senhores e latifundiários, deveria ligar-se aos senhores, aos fazendeiros, é atribuído aos escravos mortos, e a alguns sem-terra dotados da capacidade de ver esses mortos na mata. Portanto, escravos podem ser maus e sem-terras que vêem escravos também. Talvez o “assombro” expresso por Ezequiel esteja na interrupção da identidade entre sem-terras e escravos. Aqueles que vêem que há escravos no assentamento são maus como os mortos vistos. Para o narrador, é apenas depois de mortos que os escravos passam a possuir algo, a mata. Esses que trabalharam arduamente nas terras do senhor conquistam, depois de mortos, a mata da fazenda, lugar de sua morte. A extensa reserva florestal, repleta de animais silvestres, vegetação nativa e penumbra durante a noite, constitui-se como o lugar onde aparecem os escravos para quem é “mau também”, por não ter fé e por não rezar. Para J.S.Martins, entre camponeses de diversas regiões do Brasil é comum a crença de que na hora da morte, figuras do Maligno, do Satanás, de Santos, de Anjos e da Morte se fazem presentes. Os cuidados rituais para com os mortos são tomados para que haja a separação entre a alma e o corpo, e para que esses se destinem ao espaço 72

dos mortos. Logo, os vivos não atraem a morte, e a alma não permanece na casa trazendo a morte, “a alma deve acompanhar o corpo, embora separada dele”(1983,:266). Ver os escravos na fazenda é também perceber a presença de todas as figuras envolvidas na morte. Permanecendo as almas dos escravos e do fazendeiro no assentamento, a morte também se faz presente, contamina os vivos e seu espaço. Na terra fértil da mata aparecem os escravos mortos (N5). De modo diferente, N2 sugere que os negros estão enterrados por todo o assentamento, e que se manifestam por meio de gritos terríveis. As aparições que são vistas por quem não tem fé, na mata (N5), surgem como sons, gritos para Sertanio. Os indícios dos corpos e das almas são percebidos por toda a propriedade, sendo também sinais da morte. Para afastá-la é preciso ter fé, caso contrário ela irá aproximar-se ou através da imagem dos escravos, ou através da imagem do fazendeiro. Em N5, os corpos dos escravos mortos são jogados no rio. Tal imagem evocada pelo narrador mostra que não havia cuidados com seus corpos, cuidados para a separação das almas dos corpos. A mata, lugar dos mortos, passa a ser também o lugar da morte. Mas se os escravos foram enterrados por todo o assentamento (N2), todas as terras estão impregnadas de morte. Dessa forma, o perigo estaria na confusão entre o espaço dos vivos e o espaço dos mortos, e na presença de figuras benignas e malignas no assentamento. Já no acampamento as imagens religiosas registradas pelo vídeo mostravam freiras, padres e trabalhadores construindo os barracos e uma grande cruz para proteger a entrada do acampamento. Tomando a reflexão de W.Benjamin (1940), talvez toda a história desses trabalhadores, iniciada com o processo de “virar sem-terra”, esteja imersa numa busca pela salvação de certo modo messiânica, impregnada de imagens sagradas que protegem contra o Mau, o Maligno, o Satanás, atribuídos aos inimigos. O processo de “virar sem-terra” iniciou-se para muitos dos assentados devido à crescente exploração do trabalho, da fome, do risco que a família corria. Nas falas de Sertanio, Xica, Hermes e Celestina, transparece o medo da morte e da total aniquilação corporal e moral. Já no orgulho de tornar-se sem-terra, reforça-se a união num coletivo de companheiros que lutam contra os latifundiários, as elites e o sistema capitalista. Nesse orgulho, abre-se a possibilidade daquilo que G.Lukács (2003b) designou como sendo uma consciência de classe, conquistada por meio de um longo processo de mediações que levam o trabalhador a perceber a estrutura da sociedade enquanto totalidade. No entanto, ser sem-terra impõe novos medos e sofrimentos. A ameaça da morte toma a face da polícia, dos jagunços, da fome no acampamento. O sofrimento dos sem-terra aproxima-se daquele dos escravos. 73

G.Velho, ao analisar representações sobre o cativeiro e a Besta fera nas frentes de expansão da sociedade brasileira na Amazônia, aponta que a representação do cativeiro se dava em oposição à da libertação, enquanto algo que tolhia a ação dos trabalhadores (1995, :24). Citando seu próprio trabalho, ele salienta: “Existe entre os participantes da frente o medo constante de que o presente, relativamente bom, ou pelo menos livre, será substituído no futuro por uma volta ao passado de cativeiro que viria através da ação dos ricos, do Governo e talvez de estrangeiros. A diferença entre o antigo e o novo cativeiro é que este atingiria não só os pretos, mas os pobres em geral, já que os pretos estão misturados no meio do povo”(G. Velho, 1981, 130 –131 s/p). Penso que as imagens dos escravos que surgem nessas narrativas sejam também evocativas de um medo do retorno do cativeiro. As grades da delegacia que são as grades da senzala (N4), o assentamento que é a fazenda de escravos (N1), a terra onde se planta que enriquecia o senhor e aniquilava a vida dos escravos, são todas imagens que situam a presença do cativeiro na terra conquistada. Essas narrativas são contadas por trabalhadores cujo trabalho e vida nas cidades e no campo consumiam aos poucos os corpos daqueles que estavam sob as ordens de superiores, e tinham sua liberdade de ação tolhida. Depois de mortos, os escravos conseguem a posse coletiva da mata (N5). Antes de morrerem nas cidades e campo, os sem-terra conquistam as terras de uma antiga fazenda. No entanto, o trabalho inicial em partes do assentamento e as análises de técnicos do INCRA/ ITESP sinalizam a pouca fertilidade do solo. A vida dos sem-terra que dividiram seus lotes corre risco novamente. A terra, que consumia a vida dos escravos e que assegurava a riqueza e poder do fazendeiro, pode não garantir o alimento, a reprodução da vida, a produção e o orgulho de ser trabalhador autônomo e colher os frutos do trabalho para grande parte dos assentados. A imagem dos “escravos companheiros” passa a ser também evocativa da morte e da ameaça do retorno do cativeiro. Os sinais de sua presença são também os sinais da contaminação do espaço dos vivos pelo espaço dos mortos. Se a fazenda tem um clima ruim e é fechada devido à morte de muita gente (N1), os semterra que buscam conseguir trabalho, moradia e alimentação com seus lotes, sofrem a ameaça da morte. A imagem dos escravos vem carregada de esperança e pavor, em companheiros que inspiram a luta política, mas que também lembram a morte e o cativeiro, dos quais os sem-terra tentam se afastar.

74

O Escravo e o Sem-terra N6- Escravo e Pai Fazendeiro “O pessoal fala muito é nesse fantasma que tem na sede. Que é o fantasma do antigo dono, seu Flávio. O pessoal que a gente conhece, que moraram aqui antes de nós dizem que o capataz dele, antigamente era assim que falava, o capataz dele não tratava como se fosse empregado, não, tratava como se fosse da família. Tratava todos que trabalhavam aqui como se fossem da família. Agora, os filhos dele, os filhos eram ruins, Deus me livre, tratavam mal. Antes diz que isso aqui era tudo plantado, no tempo do seu Flávio. Diz que tinha algodão, milho, arroz, era tudo plantado. Tinha um pouquinho assim de gado (faz com a mão), mas a maior parte era plantação. Foram os filhos dele que quando começaram a administrar aqui é que acabaram com tudo. Daí é que acabaram com as plantações e colocaram gado. Depois não deu mais nada. Olha, aí, perderam tudo. Mas diz que o velho era bom e os filhos eram ruins. Eu conheço o cara que foi o pedreiro que construiu essas casas todas que eram da fazenda. Se falou em escravo, então, teve e mesmo. Diz que ele ficou trabalhando trinta anos pra fazenda e quando foi cobrar dos filhos do dono, não deram nada. Ele meteu processo, mas é difícil” (Ezequiel e Dalva, 6/12/2005). Falando alto, agitando os braços e o corpo no banco da sala, Ezequiel contava sobre o fazendeiro, os herdeiros, as plantações e o escravo. Ex-morador de rua em São Paulo, Ezequiel participou de um movimento de trabalhadores sem teto. Como já havia sido líder sindical na região do ABC paulista, rapidamente se tornou uma das lideranças do movimento. A atividade de militância impunha o contato com outros movimentos. Foi dessa forma que o narrador conheceu o padre Crispim, religioso que desenvolvia trabalho social com moradores de rua e com o MST. O padre, percebendo suas qualidades de liderança, sugeriu que ele aderisse ao MST, para ajudar no trabalho de base e na formação de acampamentos. Ezequiel tornou-se um sem-terra e passou a realizar trabalhos de base em favelas da capital, junto à população de rua e em cidades do interior. Atuou na formação de vários acampamentos, até que resolveu ajudar na organização do acampamento Carlos Lamarca. Hoje, com aproximadamente sessenta anos, sofrendo de problemas sérios de saúde, esse assentado cultiva um grande pomar em seu lote, além da produção de mandioca e da criação de animais. O intenso trabalho na roça foi ocupando o espaço da militância política. Quando perguntei sobre os escravos, Ezequiel referiu-se a eles como companheiros, donos das matas. Por fim, contou a história desse ex-trabalhador da fazenda, responsável pela construção das casas e barracões da antiga Fazenda Monjolo. Os olhos arregalados, o rosto tenso nas rugas da testa, as mãos semi-cerradas mesclavam-se à sua voz alta, grave e firme. Em N5 e N6, toda uma história da fazenda anterior aos sem-terra expressava-se por meio das imagens dos escravos e do fazendeiro. Por vezes, Dalva interrompia a 75

fala de Ezequiel para dar uma opinião, ou para servir o almoço e o café. Ao contrário de sua companheira que em N1 falava baixo e de modo segredado, Ezequiel era expansivo. Entretanto, a seu modo, ambos demonstravam tensão quanto ao que falavam. O estilo de Ezequiel era muito mais parecido com o de Sertanio (N2) que, caminhando com passos firmes, apontava os lugares onde havia encontrado indícios da presença de escravos. Esse narrador (N2) falava alto e franzia a testa de forma semelhante. A tensão, ao falar dos escravos, também pôde ser percebida quando Aldo (N3) alternava a seriedade do narrar à gargalhada intensa. De forma parecida, Xica contava sobre as grades dos tempos dos escravos com os olhos arregalados, a respiração curta e o tom de voz grave, mantendo-se o tempo todo séria. A seqüência desses eventos narrativos vai demonstrando que falar dos escravos é algo sério e tenso, já que se está contando sobre gente que trabalhou e sofreu muito. Suponho que a seriedade, ao falar dos “companheiros escravos”, demonstre o respeito àqueles que, antes dos sem-terra, representavam os excluídos, explorados e violentados trabalhadores opostos antagonicamente aos senhores e às elites de suas épocas, além de expressar seu medo da morte. Em N6, Ezequiel evoca a imagem do “fantasma fazendeiro” como uma assombração vista pelas pessoas, mas logo em seguida diz que o fazendeiro vivo tratava os funcionários como uma família. Em seu tempo, havia pouco gado e muita plantação de algodão, milho e arroz. Seus filhos, no entanto, foram os responsáveis pela decadência da fazenda. Eram ruins, acabaram com tudo e, ainda por cima, escravizaram um homem. O pedreiro responsável pelas construções da fazenda nunca recebeu pagamento em troca de seu trabalho. Se os escravos viviam no tempo em que não existiam investigações (N2), esse pedreiro vive num tempo em que apesar de poder “meter processo”, dificilmente obterá resultados. Ezequiel apresenta o caso do “pedreiro escravo” como a prova de que havia escravos na fazenda, e de que ele mesmo tinha conhecido um deles. O “pedreiro escravo” comprova também que os proprietários, de cujas mãos os sem-terra tomaram a fazenda, eram homens ruins. Como os antigos senhores, os herdeiros escravizavam, mas diferente deles, destruíam as plantações. O contato e aproximações entre sem-terras e escravos constituem-se como ponto comum entre as narrativas. Morar na fazenda fechada pela morte dos escravos e atravessar seu cemitério para entrar e sair do assentamento (N1), morar e plantar em vales onde foram enterrados os escravos (N2), ver as valas cavadas por eles que duram até hoje (N3), deparar-se com as grades da delegacia que ocupou o lugar da senzala (N4), e atravessar a mata que é dos escravos, podendo vê-los (N5), são imagens que expressam as aproximações e distanciamentos com relação aos escravos mortos, sinalizando o receio do retorno do cativeiro, mas também a possibilidade de libertação. 76

Em N6, a aproximação se dá entre o sem-terra vivo e o escravo vivo. Se em N5 os escravos mortos eram companheiros, agora o escravo se senta para conversar na casa de um sem-terra e conta sobre seus horríveis patrões, que não lhe pagaram nada por anos de trabalho. O sofrimento desse escravo parece muito semelhante ao dos trabalhadores antes de tornarem-se sem-terras. Ezequiel e Sertanio não tinham trabalho, acabaram indo viver na rua. Xica recebia um salário tão baixo que não permitia nem alimentar direito a família. O salário de Solano também era percebido como insuficiente para toda a família por Celestina. As construções do assentamento concretizam o trabalho desse último escravo da fazenda, espécie de “elo perdido” que liga os sem-terra aos antigos trabalhadores da fazenda. Embora os patrões desse último escravo sejam vistos como ruins, seu pai, Flávio, falecido anos antes da ocupação dos sem-terra, aparece como um homem bom. Seus funcionários eram tratados como se fossem da família, suas terras eram todas plantadas com milho, arroz e algodão, havendo somente uma pequena criação de gado. Todos esses aspectos da fazenda vão compondo a imagem de um fazendeiro bom, que teria se transformado num fantasma que assombra a sede. Como visto em N3, a plantação de culturas como o milho e o arroz são valorizadas por muitos assentados e constituem boa parte das roças do assentamento. Outra cultura importante é a da mandioca. No ano de 2005, a associação composta por ex-moradores de rua escolheu produzir mandioca para receber um financiamento do governo que fomentava esse cultivo. Em 2006, esses assentados não conseguiram vender sua produção, pois houve uma super produção de mandiocas, o preço era baixo demais e havia muita concorrência. Os pés de mandioca, cultivados durante um ano inteiro, amontoavam-se em seus lotes. As raízes eram dadas ao gado. Poucos sabiam fazer farinha de mandioca (cad.camp.06/12/2005). Ezequiel foi um dos associados que perdeu a produção. A roça de mandiocas hoje deu lugar a algo que ele sempre quis produzir: frutas. Pés de amora, framboesa, maracujá, laranja e limão crescem em seu lote. Sua esposa, Dalva tem feito frutas em calda e geléias para serem vendidas na cidade. As framboesas, colhidas ainda vermelhas, constituem a principal renda. São vendidas a um comerciante que exporta para a Europa. Ezequiel escolheu produzir frutas, pois não gosta de trabalhar com gado, como grande parte dos assentados. Depois de terem feito a análise de solo, técnicos do INCRA e do ITESP concluíram que a baixa fertilidade das terras não permitiriam a produção de gêneros alimentícios. Por isso, conseguiram financiamento do governo para que os assentados comprassem gado e começassem a plantar cana e napie. Através da produção de leite, os assentados conseguiriam produzir em seus lotes. No entanto, muitos assentados nunca haviam trabalhado com gado. Compraram animais velhos, por vezes doentes, que logo morreram. Apenas 77

doze famílias formaram uma associação para a produção de leite, que conta com o pleno auxílio do ITESP. Os outros mantêm o gado para o consumo de leite. Muitos assentados não gostam de “lidar com o gado”, e já venderam suas cabeças para aplicar o dinheiro na plantação. Creio que a preferência de muitos assentados por plantar ao invés de criar gado tenha a ver com os conceitos de terra de trabalho e terra de negócio pensados por J.S.Martins. Para o autor, “quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em terra de negócio, em terra de exploração do trabalho alheio; quando o trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho”(1991,:55). Em um momento de conflito com os técnicos do ITESP, alguns assentados disseram: “- a gente fez a luta pra plantar, pra trabalhar, não pra ficar cuidando de gado”. Entendendo que, como indica J.S.Martins (1991)(2002), em grande parte das expropriações as roças dos lavradores são substituídas pelo pasto para a criação de gado dos latifundiários, pode-se perceber melhor essa oposição e resistência de alguns assentados ao trabalho numa terra de gado, tomada como terra de negócio. Quando Ezequiel diz em N6 que havia pouco gado e muita plantação de milho, arroz e algodão, aproxima o antigo fazendeiro do ideal de produção de muitos assentados. O cultivo de milho, arroz e mandioca na maior parte dos lotes, mesmo naqueles que retiram sua principal renda da produção de leite ou de pimentões, ressalta a importância de produzir esses gêneros alimentícios. Para muitas famílias, essa importância começou em sua iniciação no trabalho da roça. Quando ainda crianças, ajudavam o pai na roça de milho, arroz ou mandioca. Como salienta J.S.Martins (1972), a concomitância da escolarização com o trabalho produtivo é muito comum no meio rural, e trata-se tanto das condições de existência que impõem tal necessidade, quanto das representações sobre o valor do trabalho em si para a socialização. Hermes costumava ajudar o pai na roça de milho desde pequeno. A colheita transformavase em deliciosos pães, curais e broas nas mãos de sua mãe Doralice. Sinira contou que, quando criança, ajudava o pai e a mãe na roça de mandioca, em Alagoas. Quando já era maior, aprendeu a montar cavalo, a lidar com as vacas e a plantar a cana para fazer um bom pasto para o gado. Mais tarde, veio para São Paulo trabalhar como bóia-fria na produção de cana. Do trabalho difícil no corte de cana originaram-se as terríveis dores nas costas que não a deixam dormir. Hoje em dia, Sinira lida com o gado, planta mandioca, milho e cana em seu lote, além do moranguinho que passou a colher para fazer doces para sua neta. De forma semelhante, tendo trabalhado com mandioca em Pernambuco, onde ajudava seu pai, Solano foi para o Paraná trabalhar com café. No trabalho com os pés de café foi intoxicado pelo veneno. Segundo ele, essa intoxicação seria responsável pelas dores de cabeça que sente, pela falta de memória e pelas dificuldades em aprender 78

a ler e escrever. Apesar de seu ganho vir da produção das estufas de pimentões, Solano conserva alguns pés de café e mandioca plantados perto de sua casa. Logo, o aprendizado do trabalho das roças não se restringe ao período da infância e adolescência. Como diz C.R.Brandão com relação ao aprendizado dos trabalhadores rurais de Goiás: “(...) o aprendizado do ofício realizou-se com os pais na imensa maioria dos casos e, em menor escala, com adultos em geral (parentes quase sempre), ou ‘por conta própria’, o que significa: observando adultos trabalharem e repetindo, no ofício imposto desde cedo, os seus gestos. Para os lavradores, do mesmo modo como entre operários e artesãos, o aprendizado do saber existe imerso no exercício do trabalho”(1983, :222). Presumo que grande parte dos assentados cultivem em seus lotes roças de plantas com que já tenham trabalhado alguma vez em sua vida. As mais comuns dizem respeito ao milho, mandioca e arroz, gêneros que marcaram suas iniciações ao trabalho na roça, na ajuda aos pais. Apesar de desaconselhada pelos técnicos, já que a pequena produção não consegue competir com os grandes produtores de arroz, milho, mandioca e café, os assentados continuam a plantar tais culturas. Penso que a insistência nessas plantações tenha a ver com suas trajetórias de vida e com a necessidade de dar sentidos a elas. As roças mesclam a necessidade de plantar gêneros que dêem dinheiro, e a plantação de gêneros com os quais os assentados já trabalharam. Em boa parte das entrevistas, quando os assentados se lembravam dos tempos de criança ou do trabalho duro no interior de São Paulo ou Paraná, eles mostravam partes do corpo, cicatrizes, e apontavam para suas roças dizendo: “A gente plantava milho, como esse que tem aí”(Hermes), “a cana que fez eu ficar com essa dor nas costas é como essa que tem plantada aí, que eu dou pras vacas”(Sinira), “o veneno no café foi o que me deu essa dor na cabeça, tenho uns pezinhos aí de café”(Solano). Por vezes, alguns entrevistados se levantavam e iam comigo visitar suas roças, pomares, hortas para mostrarem o que plantavam e quando aprenderam a plantar aquele determinado cultivo. Compreendo que a importância de plantar nas terras conquistadas em oposição ao trabalho com gado esteja no valor que o trabalho com a terra assume após a migração e inserção em trabalhos que quase sempre geravam grande exploração e aniquilação corporal. J.S.Martins, refletindo sobre a luta política dos camponeses no Norte do país, ressalta a importância do trabalho para a condição de pessoa dos trabalhadores dizendo:

79

“Para o camponês, o trabalho só pode aparecer como trabalho concreto no fruto palpável de sua colheita, da atividade de sua família. Uma parte desse fruto é condição direta de sua sobrevivência. Por isso, sua expulsão da terra, embora muitas vezes mascarada por decisão legal, aparece-lhe como ato iníquo, porque é sempre violento e compromete sua sobrevivência. Porque priva-o do que é seu – seu trabalho, meio e instrumento de sua dignidade e de sua condição de pessoa”(1989, :91). De certo modo, as roças atuais plantadas nos lotes servem de metáfora às roças do passado, são suas histórias plantadas, germinando na nova terra. A dignidade e condição de pessoa que foram sendo negadas a esses trabalhadores nas atividades de assalariados rurais, de operários e pedreiros começam a ser recuperadas quando os assentados realizam as colheitas, verificando a eficácia das diferentes técnicas de trabalho aprendidas ao longo da vida. Pensando com G.Lukács, a crescente exploração da força de trabalho fez com que poucas habilidades desses trabalhadores fossem requeridas em detrimento de sua totalidade como pessoas (2003b, :202) e como conhecedores de um conjunto complexo de técnicas corporais dos trabalhos da roça. Em seus lotes, os assentados tentam reverter a fragmentação de si enquanto sujeitos do trabalho que aniquilava sua subjetividade, e levava-os à atomização e à ruptura dos laços que os uniam a outros trabalhadores (:idem). As roças desses assentados, assim como seus corpos, estão repletos de história. As dores no corpo de Sinira, Solano e Aldo, causadas pelo trabalho nas roças, estão representadas nos lotes por meio de plantas que já foram trabalhadas antigamente, e que agora constituem o alimento tanto do corpo, como da memória. Assim, ao contar sobre sua decisão de não mais morar em Agrovila, um assentado comentou: “Eu queria acordar, abrir a janela e ver as minhas roças, minhas plantações”(Silas). “Ver as roças e as plantações da casa” é algo comum a muitos assentados. Em inúmeras casas presenciei os trabalhadores parados em suas janela, contemplando suas plantações em silêncio, distantes das conversas que eu mantinha com suas esposas e filhos. A imagem de “ver a plantação da janela”32 sintetiza a busca pela autonomia desses trabalhadores, a busca por ver

32

M.E.Miranda também analisa falas semelhantes de assentados que, para referirem-se à busca por autonomia no trabalho e morada, diziam querer ver seus lotes e suas plantações. Nas palavras da autora: “Para a maioria dos assentados, o aglomerado de casas nos núcleos as agrovilas parece remeter às imagens das periferias das cidades, percebida por eles como espaço de negação da vida e da cidadania. Ao fazer a mesma pergunta a um outro assentado da mesma agrovila, obtive a seguinte resposta ‘Quero acordar de manhã, abrir a porta de casa e dar de cara com minha plantação e com a criação’ (Chicão, Agrovila de Penápolis). O espaço do sítio para estes camponeses o seu ideal de ter o domínio sobre suas terras e sobre seu trabalho, de estar próximo e poder olhar para aquilo que é seu, mas é, também, ter a liberdade de interromper o serviço para receber um amigo ou um parente (D’Aquino, 1996)” (1998, : 65). 80

florescer os frutos de seus trabalhos, a busca por ver renascer o milho, a mandioca, o café, a cana, responsáveis por aprendizados e por marcas que foram aos poucos gerando as dores, feridas, seqüelas nos corpos. As marcas que carregam seus corpos permitirem aos assentados contar sobre o sofrimento e dificuldade na sua vida dura de trabalhadores, também as plantações os fazem lembrar de seus lugares de origem, dos ensinamentos dos pais, dos costumes da família. Por outro lado, essas plantas que germinam na nova terra os ajudam a lembrar dos trabalhos na roça que foram aniquilando seus corpos. Mas, se seus corpos doem, as plantas crescem e atestam o poder daqueles que venceram o sofrimento que o trabalho naquelas culturas gerava. A cana lembra os tempos de bóia-fria de Sinira, o milho, a mandioca e o gado, seus tempos de menina, o morango lembra a netinha. Sua terrível dor na coluna é um atestado do trabalho no canavial, de onde se originou também sua postura arqueada. Seu jeito duro e destemido ao lidar com bois e vacas vem das lições com o pai, do sofrimento no trabalho da cana e no fato de ter criado os filhos sozinha. Em seu lote ela compõe um mosaico de sua história. Há no assentamento Carlos Lamarca inúmeros mosaicos como o dela, através dos quais os assentados se lembram das diversas atividades e técnicas necessárias para produzir cada tipo de gênero. Acredito que o processo que toma curso entre muitos assentados se aproxime daquilo que Ellen Woortmann designa “memória para”, ou seja, “que projeta o passado no presente’’ (1987, : 114). A autonomia de ver a plantação da janela é também a autonomia de controlar a produção de gêneros que dão dinheiro, e daqueles nos quais se aprendeu a atividade, se sofreu com a exploração. O sabor de ver a plantação da janela é o de controlar autonomamente todas essas roças, seus segredos e técnicas, vencer o sofrimento que ainda dói no corpo cansado. Além disso, permite aos assentados plantarem gêneros que gerem o gosto em seus filhos e netos pelo trabalho na terra. Pensando com M.Mauss (2003c), nas novas roças, os corpos dos assentados reconstituem gestos, símbolos e sentidos por meio da reutilização de técnicas corporais aprendidas ao longo da vida. Por meio dessa utilização, o corpo do assentado volta a ser o corpo do lavrador, e sua pessoa a do camponês. A transmissão aos filhos das técnicas de trabalho depende da eficácia da troca com a terra. Se as trocas necessárias ao plantio e à colheita não se realizam, todo o sentido da reconstituição moral e do aprendizado do trabalho correm risco. Atualmente, é cada vez mais comum o caso de filhos de assentados que deixam a casa dos pais para tentar a vida nas cidades da região. A busca pelo próprio dinheiro atesta a baixa rentabilidade da produção dos lotes. O trabalho com a terra e mesmo a luta política dos pais não constituem valores para alguns jovens.

81

Esse último aspecto revela a tentativa dos assentados de distanciarem-se da “ruindade” que podem ter os filhos, como os do fazendeiro em N6. Diferente do pai que valorizava a produção de gêneros alimentícios, os filhos aniquilaram a produção e transformaram a terra de trabalho em terra de negócio. Sua “ruindade” foi tamanha a ponto de mal tratarem funcionários e não pagarem um deles. Penso que o orgulho de ver a roça é o orgulho de ver e poder mostrar tudo o que se produziu e plantou, sozinho. É poder mostrar aos filhos a importância e necessidade do trabalho e da plantação. É vencer as dores no corpo, geradas pela exploração do trabalho no campo e na cidade. É ver nascer os frutos de um trabalho autônomo, numa terra própria. Narrar de modo sério e tenso vem a ser o modo expressivo comum aos eventos narrativos. Falar sobre os escravos que viveram na antiga fazenda exige uma postura séria. Na maior parte das narrativas a imagem dos escravos justapõe-se à dos sem-terras. As possibilidades metafóricas desse encontro permitem aos assentados refletir sobre o sofrimento dos trabalhadores explorados pelos fazendeiros e patrões. No passado, a morte violenta e a super-exploração do trabalho eram a principal razão do sofrimento dos escravos. Já no processo de “virar sem-terra”, o esgotamento corporal, a fome, desemprego, crise familiar e o medo da morte compunham a revolta que crescia por dentro, e a vontade de combater a aniquilação moral na qual estavam imersos aqueles trabalhadores. Enquanto companheiros, os sem-terra identificam-se com os escravos por seu profundo sofrimento e pela sua imensa capacidade de trabalho. Toda uma geografia do assentamento vai sendo entendida pela reflexão sobre os sinais deixados pelos escravos. A terra conquistada pelos sem-terra guarda as conseqüências de longos anos de exploração do trabalho escravo. A infertilidade atestada pelos técnicos ameaça a possibilidade de muitas famílias de semterras constituírem suas plantações e dos assentados recuperarem, através do trabalho nas roças, sua dignidade e condição de pessoa, tão ameaçados pelas experiências de vida e trabalho nas cidades e campo. Entendendo o papel central que a roça passa a ter para esses assentados enquanto possibilidade tanto de obter subsistência e renda, quanto de plantar gêneros que compuseram seu aprendizado, conhecimento e sofrimento com o trabalho na terra, é possível perceber a importância do cultivo do arroz, milho e mandioca, ainda que não lucrativos. Com corpos cansados, doloridos, machucados, muitos assentados são capazes de plantar e colher gêneros importantes para a sua história de trabalhadores. Se os escravos cavaram os vales (N2) e as valas (N3), frutos dum trabalho que testemunham sua presença e seu papel histórico, também as roças dos assentados buscam dar sentidos a suas experiências. Sentidos esses que sejam valorizados por seus filhos, que aprenderão a dominar as diversas técnicas do trabalho com a terra. No entanto, essa relação da herança do lote e 82

do conhecimento é ameaçada pela terra infértil. O gado, que constitui a alternativa de renda, não permite aos trabalhadores positivar a totalidade de conhecimentos adquiridos no longo aprendizado da agricultura. Da mesma forma, não garante a transmissão de importantes conhecimentos práticos e morais aos filhos. Assim, o processo de “virar sem-terra” não se conclui para alguns, pois a aniquilação corporal e o sofrimento não foram vencidos plenamente pelos corpos cansados na terra conquistada. Tal imagem sintetiza-se na figura do fazendeiro que plantava milho, arroz e algodão, cujos filhos se desfazem de tudo para vender as terras. Retomando as reflexões de J.S.Martins, quando salienta que com a crise do sistema escravista de produção a renda que era capitalizada no escravo transforma-se em renda territorial capitalizada, ou seja “num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo; num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa”(2004, :32), é possível dizer que as imagens dos escravos evocadas no Assentamento Carlos Lamarca revelam o medo de alguns trabalhadores de que a terra cativa, mercadoria e bem de produção necessário à produção de mercadorias, não possa ser terra de trabalho. Negando-se a ser apenas detentores de suas forças de trabalho, como foram os escravos libertos, esses trabalhadores viveram as dificuldades de “virar sem-terra” para possuírem novamente os instrumentos e meios necessários à realização de seus trabalhos concretos. Mas, como nas terras das fronteiras do Capitalismo, onde a expansão dos latifúndios e empresas se dá de forma predatória, alternando a legalidade à ilegalidade para devastar as matas, abrir pastos, esgotar a fertilidade do solo e escravizar trabalhadores, o Assentamento Carlos Lamarca surge nas narrativas como um lugar de contraditória combinação de temporalidades (2002, :681). Talvez o medo da presença dos escravos seja a um só tempo o medo de sofrer como eles e o medo de não conseguir viver da terra conquistada, tendo de voltar para a cidade, ou para o assalariamento rural que terminará por aniquilá-los moral e corporalmente. Medo da restrição da liberdade e do retorno do cativeiro, como para os trabalhadores das frentes de expansão (G.Velho, 1995). A fazenda ocupada pelos sem-terras é fechada, não livre e desunida (N1) em muitos sentidos. Seja pelos escravos fechados sob a terra, pela ameaça da polícia e fazendeiros, ou pela contaminação do espaço dos vivos pela morte, os assentados percebem o sofrimento dos escravos como motivo do fechamento da fazenda, dos gritos e aparições, do Mal que coloca em risco a vida no assentamento. A divisão dos lotes que traduz a vontade de produzir autonomamente para alguns, para outros reflete a desunião e a dificuldade deixada pela “ideologia capitalista”. Nas mãos de trabalhadores livres, as terras da fazenda apresentam sinais de esgotamento que ameaçam a liberdade desses trabalhadores. Essa liberdade ameaça a garantia de renda e a garantia de dar sentido a suas trajetórias de vida. O medo do sofrimento nas terras conquistadas evoca as imagens 83

dos escravos e das razões que levaram esses sem-terra a tornarem-se sem-terras. A terra herda os atributos dos escravos e passa a ser cativa, dividida e pouco fértil. Já com idade avançada e vendo seus filhos partir para a cidade, alguns trabalhadores temem viver dessas estranhas terras. A imagem dos escravos traz por um lado a solidariedade com esses trabalhadores oprimidos. Por outro lado, o medo de não conseguir produzir nessa terra impregnada de Morte. Como o Angelus Novus de P.Klee interpretado por W.Benjamin (1940), esses narradores dirigem seus olhos arregalados, sorrisos tensos, ouvidos atentos e braços cansados para o passado. Deparam-se com as ruínas da Fazenda Monjolo e tentam juntar os fragmentos. Diante da terra de negócio, eles procuram a terra de trabalho, enquanto a tempestade do progresso sopra e ameaça excluí-los mais uma vez dos direitos adquiridos com a luta pela terra.

84

Segunda Parte

FANTASMA FAZENDEIRO

85

5

SEDE E DIVISÃO DOS LOTES

A sede A sede da antiga fazenda é formada por um casarão, duas edículas, uma piscina e uma quadra esportiva. Situada no alto de um morro, da sede avista-se uma lagoa, resultado do represamento das águas do rio que corta o assentamento. Ao redor da casa, espalham-se eucaliptos formando um bosque. O casarão é composto por seis quartos, uma grande sala com dois ambientes e lareira ao centro, cozinha, banheiro e área de serviço. Numa das paredes da sala há uma grande imagem do guerrilheiro Ernesto Che Guevara. Duas edículas, uma delas com um salão e área de serviço e a outra com uma sala completam a estrutura. A sede faz parte dos 4 h.a destinados ao uso comum dos assentados, o equivalente a 0,43% do total. Na totalidade da área comum também consta a reserva florestal que se estende por 372,7855 h.a, cerca de 40,5 % do assentamento. Interesses diversos, sonhos não realizados, distintas ambições e projetos antagônicos incidiram sobre a área da sede, tida por muitos como um lugar que possuía grande beleza, mas que foi ficando cada vez mais feio, decadente e abandonado. Nas palavras de Ezequiel: “ Ia ser um centro de formação nacional, ia ser uma coisa linda cara. Se tu tivesse vindo aqui naquelas épocas, tu ia ver o que era essa sede. Tu ia ver, e se hoje se tu chegasse e visse ia falar:- Creio em deus Padre. Esse povo é pior do que cigano. Isso aí era uma coisa linda. 86

Aquela sede era uma coisa linda, piscina, tudo limpinha, tudo alcalizada. A quadra em cima bem certinha, tudo organizada. Um campo de futebol lindo que tinha ali na frente, e o eucaliptal assim, era tudo fechado, tudo amparado, aquela coisa linda assim, entendeu? Era tudo fechado. Só tinha o campo de futebol no meio, e a quadra. Era tudo floresteado, até na casa do João Rebelo. Destruíram, cara. Então, esse pessoal foi que destruiu. Teve muitos cursos do movimento, encontros. Nós fizemos dois cursos da militância, cada um de um mês. Tudo aí, encheu de militantes. Teve um encontro latino americano, o pessoal veio tudo, encheu isso aí. Depois disso, meu filho, os caras destruíram e ai ninguém mais quis nem saber. Aí a sede tá lá, como você vê, se acabando. Cada um inventa uma conversa, cada um quer uma coisa, mas a coisa que cada um quer é prô bolso deles. Nada de evoluir pra sociedade, um projeto de futuro.”(Ezequiel,19/12/2005). Anos mais tarde, o MST inauguraria a Escola Nacional Florestan Fernandes, centro de formação de militantes, localizado no município de Santa Isabel, interior do estado de São Paulo. A sede da antiga fazenda, que antes constituíra o local de administração e lazer dos antigos donos da propriedade, foi transformada, por um momento, em centro de formação nacional de militantes, projeto que situava o Assentamento Carlos Lamarca, sua história de luta e seus assentados num espaço de grande importância política. Entretanto, o entrevistado contrapõe um primeiro momento da sede como um lugar lindo, a um segundo momento em que resta a sede destruída, decadente. As causas de tal mudança seriam os outros assentados, aqueles que só pensam no “bolso”.

Divisão dos lotes A decisão de destinar os 4h.a onde está situada a sede para o uso comum dos assentados foi tomada nas assembléias que se seguiram após a emissão de posse ter sido concedida aos acampados. Mas antes de decidirem sobre qual seria a forma de lotear o novo assentamento, os acampados tiveram de decidir o que fariam para ajudar as 22 famílias que não haviam sido homologadas. João Rebelo, uma das lideranças do acampamento na época, narra esse momento estabelecendo interessante contraste entre a “festa” e a “brigaiada”.

“Então, no Domingo, chegamos de madrugada aqui e só se ouvia o pessoal gritando: Aeh!!! Deram a notícia pra esse pessoal aí, e então foi festa. Aí, saiu a emissão de posse aqui e começou a brigaiada da divisão dos lotes. Por que tinha excedente de famílias e a área aqui não dava pra assentar todo mundo. Aí foi uma briga de projeto do INCRA, por que o INCRA fez uma topografia de quarenta e um lotes...”(João Rebelo e Lia, 19/12/2004) .

87

Contraditoriamente, o motivo da festa era também o motivo da briga. Nas primeiras assembléias, os acampados tiveram que decidir sobre o que fazer com aqueles companheiros que não seriam assentados. O conflito dos acampados leva a uma ruptura (V.Turner, 1982) entre os companheiros antes unidos. Na terra conquistada, tensões sociais afloram e lançam os sem-terra num período de liminalidade (:idem) que geraria crises mais intensas, cujos ruídos ecoam até os dias atuais. De acordo com o pesquisador M. Justo (2005), em 18/12/98 foi assinado pelo governo federal o projeto de créditos de fomento e de alimentação. Segundo o laudo do INCRA, das 63 famílias acampadas, apenas 41 poderiam ser assentadas, devido à baixa fertilidade do solo e à localização afastada da fazenda33. Os assentados tiveram de decidir entre defender o assentamento de todos, ou ceder ao laudo do INCRA e abandonar as outras famílias. Essas comporiam uma lista de espera e seriam assentadas mais tarde, em outras regiões. Para Ezequiel era necessário o assentamento de todos. “Então, vamos assentar quarenta e uma famílias, e ficar vinte e duas pra onde ir tendo terra ir assentando os caras. Vocês concordam companheiros? Tinham companheiros aí que eram dos primeiros de todos. Aí, eu parti pra cima, eu falei, não concordo. Não concordo de jeito nenhum pelo seguinte: - Esses companheiros aí, tem companheiros aí que são dos primeiros de todos. Tem companheiros aí que foram dos primeiros de todos e não tiveram nada, e eles tão querendo é ser assentados agora, e daí os companheiros vão ficar pra trás? Eu sou a favor sim, de cada um tirar dois hectares do dele e passar para essas pessoas, cada um. Para distribuir e assentar esse pessoal. Eu dou dois hectares do meu, dou três até!” (Ezequiel,19/12/2005) . Mas, a decisão tomada pelos acampados em assembléia foi a de que a verba de fomento que seria recebida pelas 41 famílias homologadas seria dividida igualmente entre as 63 famílias acampadas. Logo que essas 22 famílias fossem assentadas e recebessem seus créditos de fomento, devolveriam o empréstimo aos então coordenadores do acampamento34. Em 1999, técnicos do INCRA e do ITESP realizaram novas medições na fazenda, o que permitiu que mais 6 famílias fossem assentadas. Entretanto, como lembra M. Justo (2005), o crédito de fomento não era mais dado às famílias, mas pago diretamente aos fornecedores, mediante a apresentação de nota fiscal. Desse modo, as 22 famílias não saldaram suas dívidas e, em 2002, começam a surgir processos judiciais de assentados contra os ex-coordenadores de acampamento, acusados de terem recebido o dinheiro e não repassado. Os conflitos diante dessa questão são continuamente reeditados e legam tensão ao convívio cotidiano. 33

Cada uma das famílias recebeu uma quantia de R$ 1.425,00 para realizar o primeiro plantio e a instalação no lote. O montante total do fomento para as 41 famílias foi de R$ 58.425,00. Como esse dinheiro foi dividido entre as 63 famílias, coube a cada uma R$ 930,00. 34

88

Após a saída das 22 famílias do acampamento Carlos Lamarca, as 41 famílias confrontaram-se novamente. Agora, teriam de decidir sobre a divisão dos lotes. Nos debates, que ocorriam num dos barracões da antiga fazenda, duas propostas concorriam. A primeira propunha que uma Agrovila35 fosse formada na área ao redor da sede, que seria destinada ao lazer, uso coletivo e a uma escola do assentamento. O restante dos lotes de cada assentado seria destinado ao uso e trabalho coletivos, o que implicaria na formação de uma Cooperativa36. A outra proposta defendia a divisão dos lotes entre os assentados e o trabalho autônomo. João Rebelo, que era um dos líderes do acampamento e sua esposa Lia, narram esse momento da seguinte forma: “E aí foi quando começou a despertar, na verdade, os vícios das pessoas. O vício que o Capitalismo deixa nas pessoas. O individualismo, o egoísmo, o cara começa a pensar nele só, não pensa mais no outro. Então, começa toda a problemática a partir daí... Nós já passamos uns meio aqui meio brabo, né Lia? Nossa Senhora, complicado... Briga, o assentamento dividido, as famílias divididas. Uma maioria pra lá e uma minoria pra cá. Opiniões divididas e foi complicado agüentar e tocar pra frente e chegar onde nós chegamos hoje, foi difícil. Lia: Na assembléia, aí você tinha medo de ir. João Rebelo:- Ah, tinha ameaças, ih! A coisa foi complicada, pegava fogo mesmo. (...) Esse lote aqui ficou um lote de vinte e dois h.a. Que no projeto do INCRA ficou pendente. Ficou a área social lá, e ficou pendente isso aqui. Por que, foi devido à agrovilazinha que já existia aqui. O pessoal tinha mudado para a agrovilazinha, quer dizer, já tinha a agrovila e era provável que ficasse ali mesmo, perto da sede.(...) Lia:Que era o que uma parte do pessoal defendia, que fizesse a agrovila e que essa parte aqui ficaria como uma área social. João Rebelo: - Uma área social pra todo mundo usar os barracões, usar tudo. Só que o pessoal aí, esse Grupão, que foi induzindo o Natalino, e tal, não concordou. Concordavam que virasse lote e sorteasse. Aí, uma parte defendia que desmanchasse as casas e dividisse todo o material. Desmanchasse o barracão e tudo, e deixasse tudo limpo. Outra parte defendia que: - Já que tinha as casas, mas prá que destruir, né, deixava as casas montadas e pra quem cair, caiu! Aí, a gente encarou essa briga. Eu era um dos que defendia que ficassem as casas e que ficasse a área social, que nem dividisse os lotes. Mas como o Grupão queria, que era a maioria que queria que virasse lote, né, pra aumentar os lotes, então acabou acontecendo isso. A área social passou pra lá, pra sede. Eles tiraram doze h.a de área que depois reduziu pra quatro. Depois de tudo isso, quando mudou do INCRA prô ITESP, que reduziu pra quatro lá, que mudou toda a topografia. E aí, acabou nesse sorteio todo e nós caímos aqui. Teve o sorteio, teve toda a brigaiada. Diante de toda a briga e 35

As Agrovilas constituem uma proposta de moradia do MST. As casas dos assentados são construídas numa área comum geralmente próximas umas das outras. A Agrovila pode, ou não ter um formato circular ao redor de uma espécie de uma praça. Como aponta M.E.Miranda com relação ao Assentamento da “Fazenda Reunidas”, em Promissão-SP, “O assentamento se divide em agrovilas, cuja finalidade primeira seria a de propiciar uma melhor distribuição, do ponto de vista administrativo, dos benefícios das políticas públicas e sociais, possibilitando melhor integração entre os grupos de moradores mais próximos e a criação de redes de sociabilidades”(1998, : 82). 36 Como mostra B.M.Fernandes (2000a) “ A cooperação também é uma forma de organização para a resistência da luta camponesa. (...) Nessa perspectiva, o MST vem constituindo diversas experiências, que se iniciaram com os estudos e visitas a diferentes países (...) e por meio de suas práticas (...). Na década de 1990, com a criação das primeiras cooperativas, das centrais estaduais e com a fundação da Concrab (1992) as experiências cooperativistas foram multiplicadas nos assentamentos.(...) Desse modo, reúnem-se em núcleos de produção, grupos semicoletivos, grupos coletivos, associações, Cooperativas de Produção Agropecuária (CPAs), Cooperativas de Prestação de Serviços (CPS), Cooperativas de Produção e Prestação de Serviços CPPS, e Cooperativas de Crédito (Concrab)”(2000ª, : 232).

89

toda a divergência, mesmo assim, acabou acontecendo o sorteio.”( João Rebelo e Lia, 19/12/2004) O “bolso” e o “vício que o capitalismo deixa” são imagens utilizadas pelos entrevistados para explicar os motivos desses acontecimentos. Havia duas propostas concorrentes que dividiam os acampados e faziam as assembléias “pegarem fogo”. Lia ressalta que sentia medo de ir às assembléias. Percebe-se que houve uma intensificação da crise (V.Turner, 1982), quando há a radicalização dos conflitos e das propostas entre ambos os grupos. Isso faz com que alguns acampados como Lia passem a ter medo de participar das assembléias. Ao analisar rituais de contratos secretos com o demônio feitos por trabalhadores rurais colombianos, M.Taussig (1980) situa o olhar na crise pela qual passavam os camponeses em meio a um processo de proletarização crescente, em meio ao choque dialético entre um cosmologia tradicional e uma cosmologia capitalista. Acredito que, apesar de ser difícil descriminar, num grupo de sem-terras que lutaram juntos, as diferenças entre essas duas cosmologias, seja possível dizer que há, efetivamente, um choque entre dois modos de produção em devir. A intensificação da crise torna-se reveladora de dois tipos de troca, de morada, de valores e de vida. O chamado “Grupão”, que contava com a maioria dos acampados, defendia a divisão dos lotes e o trabalho “individual”, havendo uma parte extremada que propunha desmanchar as casas e barracões e dividir os materiais. Por outro lado, um grupo minoritário, formado principalmente por acampados mais diretamente vinculados ao MST, era favorável à manutenção e melhoramento da agrovila já existente, sendo a sede e os barracões de uso coletivo. O embate em assembléias levou à vitória do “Grupão”, à divisão e sorteio dos lotes e à criação de uma área social de 4h.a. Para esses dois entrevistados, apesar da maioria ter vencido, imperaram valores como o egoísmo e o individualismo. Já outro assentado, Ramiro, um dos principais articuladores do chamado “Grupão”, qualifica igualmente seus adversários como sendo egoístas e individualistas, quando comenta sobre o caso da divisão dos lotes. “Chamamos várias assembléias. Porque, vamos supor, o pessoal aqui não queria a tal de agrovila. O INCRA falou que não ia fazer, certo? Por que o que que matou o pessoal aqui, que eles não entendiam, foi quando o INCRA disse que a terra tava liberada, entendeu? Aí, o cara falou: - Não, seu Salvador não quer, João Rebelo não quer. Daí, uma coisa que eu bati defronte o seu Salvador e o João Rebelo foi o seguinte, eles disseram pra nós que tinham um projeto de um assentamento modelo. Eu falei: - Mostre. E eles não mostraram. Por que o pessoal tem medo do tal de Coletivão e o seu Salvador manda, e o João Rebelo manda.(...) Então, eu falei pra eles muitas vezes: - Olha, enquanto nós não tivermos o conhecimento, esse tecnicismo do INCRA vai engolir nós politicamente. E foi isso que aconteceu.(...) Eles chegam no meio da massa, igual ao Silvio Santos, quem quer dinheiro, aí ninguém mais se entende.(...) Se só conquista se você se prepara. E pra manter, se não tiver preparado se lascou. Resultado, 90

hoje já saíram três famílias do assentamento. E esse assentamento aqui é de 2002. Foi em 98, mas o recurso chegou em 2002. Entendeu, então isso é o problema, o problema da condução.(...) No dia em que veio a definição aqui, tinham 56 pessoas na reunião, na assembléia. Trinta votaram no nosso projeto, vinte e seis votaram no projeto do seu Salvador.(...) Agora, veja bem, o INCRA falou: - Sem chance de fazer agrovila, sem chance. E aí, é o seguinte, não adianta, por que se você é uma pessoa que entende, o cara é agrônomo, o cara já fez mil assentamentos. Ele tá vendo.(...) E ai, é o que eu digo pra você, tem hora que a ideologia não adianta. Você é um médico e daí eu chego lá, você é de ultradireita e eu sou comunista, você não vai me operar? Pô, pera aí!(...) Aí, essas questões, e alguns traumas ficaram. Aqui não tem conserto, não tem mais conserto. Alguns traumas ficaram. Eu espero que eu esteja totalmente errado. Aqui está no caminho, assim, avassalador pra ser uma favela rural. Por isso que algumas pessoas falam: - Ah, mas você é profeta do apocalipse! Eu quero estar errado, eu não gosto de fazer isso, pela felicidade da minha neta. Mas, o que eu ouço, o que eu vejo em Sarapuí. Aquela coisa do egoísmo, do individualismo, porque egoísmo é uma coisa e individualismo é outra.”(Ramiro, 21/12/2004). Em sua fala outros elementos de disputa aparecem. A vontade da maioria, o julgamento técnico e o medo de que, após o assentamento, os líderes continuassem a mandar teriam feito com que a maioria dos acampados optassem pela divisão dos lotes e pelo fim da agrovila. O “Grupão” formado traduziria o medo de estar subjugado a um superior, a alguém que manda em um “Coletivão”. Acredito que para esse entrevistado, a superação da situação de subordinação e a busca da autonomia tenham sido os fatores que fizeram com que a maioria optasse pela não adesão aos projetos de agrovila e de produção cooperada. Entretanto, o confronto entre as duas perspectivas teria levado ao surgimento de “traumas insuperáveis”. Esses culminariam num individualismo e egoísmo reinantes que fadariam o assentamento à decadência, levando-o, mais cedo ou mais tarde, a transformar-se numa “favela rural’’. Do ponto de vista desse “profeta do apocalipse”, o individualismo estaria associado aos assentados que se opunham ao egoísmo encarnado nas lideranças. Devido ao fato da trajetória da maior parte dos assentados ser marcada pela passagem por favelas e periferia de grandes cidades, a expressão “favela rural” denota uma espécie de visão de retorno a um estado inicial, à vida em favela, à pobreza, agora não mais na cidade, mas no campo.

A “vilinha” Apesar de terem perdido a disputa pela construção da agrovila, a família de seu Salvador e a família de um compadre decidiram construir uma pequena agrovila no lote de uma das filhas de seu Salvador. Formada inicialmente por quatro casas, a chamada “vilinha” conta hoje com oito casas. 91

Todos os moradores têm parentesco entre si. Foi com os moradores da “vilinha” que estabeleci os primeiros e mais profundos laços de convívio e amizade. De certo modo, é da “vilinha” que calculo o “lugar olhado”37 para tecer uma interpretação sobre a experiência dos assentados. Inúmeras vezes ouvi assentados referindo-se à “vilinha” com um ar pejorativo. Nesses momentos, chamavam-na de “favelinha do seu Salvador”, “condomínio São Salvador” ou simplesmente “povo do seu Salvador”. Essas três formas de denominação constituem-se como sendo imagens carregadas de tensão. Tomando o “discurso da decadência” como ponto comum às três entrevistas, é possível perceber que o espaço da “vilinha”, por meio das imagens a ela vinculadas, prenuncia formas de decadência percebidas como vícios por esses três entrevistados. A primeira imagem, a “favelinha do seu Salvador”, prenunciaria o retorno à situação inicial, a vida na favela, marcada pela pobreza e pela violência38. Tal imagem evoca o retorno à crise que gerou o “virar sem-terra”, e a eminência do medo de sofrer como os escravos, da volta do cativeiro. Já a segunda imagem, uma inversão dessa primeira, “o condomínio São Salvador”, traduz a decadência daqueles que só “pensam em seu próprio bolso”, que carregam ainda os “vícios do capitalismo”. Por fim, “o povo do seu Salvador”, imagem que evoca certo messianismo e também faz referência ao medo de estar subordinado, de ter alguém que manda, de ter um patrão. As três imagens incorporam um certo “discurso apocalíptico” presente nas falas de alguns assentados que percebem a história do assentamento como uma lenta volta a um estado inicial, como uma contínua decadência. O momento da divisão dos lotes, tanto para os três entrevistados, quanto para outros, constituise como um momento fundamental para que haja a compreensão dos desdobramentos, dos “traumas” intratáveis e do “sentimento de decadência”. Penso que a sede da antiga fazenda seja uma das imagens concretas que melhor representam essa história marcada por sonhos, esperanças e frustrações. As telhas mal cuidadas, a piscina e a quadra estragando, os vidros estilhaçados, a figura solitária de Che Guevara na sala com sujeira de vaca são retratos do abandono e da frustração de um lugar que deveria ser palco da vida coletiva. O problema da sede vazia sinaliza também o conflito pelo qual passaram os acampados no momento em que houve o assentamento. A tensão da divisão dos lotes torna-se o problema da divisão dos “companheiros”. As tensões e conflitos originários da questão da divisão dos lotes são correntemente reeditados no convívio cotidiano dos assentados. A 37

Refiro-me à discussão de R.Barthes sobre a prática do “prática de calcular o lugar olhado das coisas” (R. Barthes, 1990- :85). Como ressalta M.E.Miranda com relação ao Assentamento Reunidas, “para a maioria dos assentados, o aglomerado de casas nos núcleos as agrovilas parece remeter às imagens das periferias as cidades, percebidas por eles como espaços de negação da vida e da cidadania” (1998,: 65). Assim, é possível supor que em alguns assentamentos, surja uma crítica de assentados a essas formas de habitação que, para muitos, remetem aos tempos da vida nas periferias. 38

92

cisão social (V.Turner, 1982) suscitada pelo episódio da divisão dos lotes enquanto “traumas insuperáveis”, leva alguns assentados a abrir boletins de ocorrência contra outros, o que aumenta cada vez mais a mediação da polícia, do poder judiciário e do INCRA no assentamento. Para G.Lukács, a abolição do isolamento e a luta contra a atomização reinante na sociedade capitalista garantem aos proletários formarem-se enquanto classe (2003a, :347). Acredito que a história desse grupo de sem-terras coloque um interessante problema para esse tipo de formulação, já que, após um período de luta coletiva, há a divisão do grupo e a decisão de seguir a vida e o trabalho isoladamente.

93

6

O FANTASMA DA SEDE

Fantasma no vazio A sede começa a ter a face de um lugar ermo, vazio. Some-se a isso o fato de que muitos assentados contam que têm medo de passar lá à noite, pois sentem um arrepio. Se precisarem passar, andam mais rápido. Alguns dizem que nem de dia entram na casa sozinhos. Barulhos de portas abrindo e fechando, passos e vozes são ouvidos na casa e em suas proximidades. Entre os assentados circulam relatos de pessoas que já haviam visto assombrações lá. A assombração que é recorrentemente vista na sede é identificada como sendo o fantasma do dono da propriedade, que faleceu pouco antes da ocupação de sua fazenda pelos sem-terra. Na 94

época da ocupação, quem administrava a fazenda eram seus filhos, que tinham o intuito de vendêla. A “assombração”, como sugerem os moradores do assentamento, costuma aparecer na antiga sede da fazenda, no casarão, próximo à lagoa.

N7 – Fantasma e roubo “O Povo é que fala, é o fantasma do falecido dono da fazenda que aparece. Muitas pessoas disseram que já viram. Eu desconfio um pouco. Porque o fantasma já roubo um fogão da sede e o cabo do vídeo. Além disso, dizem que é ele que corta a cerca às vezes pro gado sair na estrada durante a noite. Pra mim isso é desculpa que os peões que roubam as coisas da comunidade arrumam. Mais num é bom você dormir lá sozinho. Vai que tem mesmo!” (Deodato 28/06 /2004). A primeira vez em que tive contado com as “histórias de assombração” foi na noite de 28/6/2004. Era minha primeira estada em campo. Estava desenvolvendo trabalho de educação de adultos, aulas de música e entrevistas. Incomodado por estar hospedado na casa de Deodato e Esmeralda, perguntei a eles se eu não poderia dormir no casarão da sede, já que ninguém morava ali, havia muitos quartos e eu não incomodaria ninguém. Deodato, que estava deitado no sofá vendo tv, sentou-se. Olhou pra mim com uma cara séria e contou-me sobre o fantasma. Rindo de modo tenso, Esmeralda explicou-me que tinha medo desse tal de fantasma. Deodato dizia que eram “histórias que o povo inventa”, mas achava melhor que eu não dormisse lá, pois “vai que tem mesmo”. Na dúvida, também achei que seria melhor ficar na casa de Deodato e Esmeralda. Mas comecei, a partir de então, a procurar por maiores informações sobre essa estranha assombração que habitava a sede. Nas inúmeras conversas e entrevistas que tive com os moradores do assentamento sempre lançava o assunto. Quase sempre alguém tinha uma história do fantasma para contar, tendo ela ocorrido com ele mesmo ou com outro. Desse modo, fui percebendo que as narrativas sobre o fantasma da sede constituíam um interessante gênero de discurso desse assentamento. Em N1, a imagem do fantasma já se fazia presente. À noite, na fazenda fechada pela morte de muitos escravos, um homem que passava rápido com seu cavalo cumprimenta Dalva. Contando com um riso tenso, a narradora pensa que poderia ser o fantasma fazendeiro que teria aparecido longe da sede, próximo à sua casa. Nessa narrativa, Deodato conta sobre o fantasma em tom de dúvida e conselho. Não sabe se há realmente o fantasma, acredita que esse fantasma seja uma “desculpa que os peões que roubam as coisas da comunidade arrumam”, mas como não tem certeza, aconselha-me a não dormir lá sozinho.

95

Deodato é um dos filhos de Salvador, casado com Esmeralda, filha de dona Celestina e Solano. Deodato mora com ela e seu filho Nino (4 anos) na “vilinha”, numa casa ao lado da casa do pai. Certa vez, enquanto estávamos almoçando na casa de seus avós, perguntei a Nino onde era sua casa. Ele então respondeu: “minha casa é aqui, é ali, é ali, é lá” e foi apontando uma a uma todas as casas da “vilinha”. Nino e as crianças da “vilinha” passam o dia indo de uma casa para a outra. Almoçam numa casa, jantam na outra, assistem à t.v numa terceira. Quando fazem “arte” são repreendidas por qualquer um dos adultos da “vilinha”, dependendo de onde estiverem. Há uma responsabilidade comum para com as crianças. Deodato era favorável à construção da agrovila e ao trabalho coletivo. Trabalhou durante algum tempo como militante do movimento, realizando trabalhos de base na periferia de Sorocaba. Hoje é membro de uma das associações de produtores de pimentão do assentamento. Acredito que a enorme valorização da vida e trabalho coletivos presente em seu ponto de vista o fariam concordar que as causas desses roubos são os “vícios que o capitalismo deixa nas pessoas” e o “pensar só no bolso” . Em sua narrativa o fantasma é uma desculpa para o roubo, para a destruição do coletivo, para a destruição da sede. Mas o fantasma também é o “falecido dono da fazenda”, do qual Deodato tem medo e, por isso, aconselha-me a evitar dormir na sede. Ao mesmo tempo em que o fantasma fazendeiro é associado ao roubo, também os sem-terra são associados ao roubo. Num primeiro momento, há a oposição entre o “povo”, coletivo de assentados, e o fantasma do falecido dono da fazenda. Opõe-se também um coletivo de vivos a um morto. Num segundo plano, a oposição dá-se entre “peões” (assentados) que roubam as coisas da comunidade, e aqueles que as preservam. Funda-se uma oposição entre os sem-terra que valorizam e zelam pelo coletivo e aqueles “individualistas” que usurpam o coletivo. Além disso, a expressão “os peões” é utilizada no assentamento com sentido pejorativo. Peão é aquele que cumpre ordens, não possui autonomia sobre seu trabalho, é apenas uma peça manipulada por outro. Entretanto, outro caminho possível para a interpretação abre-se quando se enfoca a imagem de um fantasma fazendeiro que corta a cerca para que o gado saia. Em ocupações de fazendas, o gesto de cortar a cerca manifesta uma certa libertação da terra que antes estava nas mãos do latifundiário39. Um fantasma fazendeiro que corta as cercas talvez possa mostrar aproximações entre a imagem do fazendeiro e aquela do sem-terra. Tal aproximação é percebida em N1, quando o 39

Para J.S.Martins (2000b), o corte de cercas denotaria um gesto fundamental na atuação dos movimentos sociais do campo. No caso do MST, seriam uma demonstração de características centrais a esses movimentos somando-se a atos como a ocupação de terras e ocupação de repartições públicas.

96

fantasma fazendeiro cumprimenta a assentada. O gado, como mostra K.Woortman (1990), indica a terra de negócio, dividida entre sitiantes que se distanciam de uma ordem moral camponesa. Cortar as cercas talvez seja um ato evocativo daquele fazendeiro de N6 que produz em suas terras o algodão, o milho e o arroz, e um pouquinho de gado. Além disso, cortar as cercas pode designar a intenção para abrir a fazenda e uni-la novamente (N1). Se a narrativa 7 apresenta a metáfora de que “o fantasma fazendeiro é os peões que roubam”, ela também situa conflitos que apareceram nas entrevistas. Por um lado, Ramiro aponta que “o pessoal tem medo do tal de coletivão e o seu Salvador manda, e o João Rebelo manda”. Por outro lado, João Rebelo diz que o “Grupão” foi “induzindo” as pessoas para apoiarem a idéia da divisão dos lotes. A idéia defendida pelo “Grupão” do conjunto de trabalhadores autônomos contrapõe-se à idéia defendida pelo “Coletivão” do conjunto dos trabalhadores cooperados. Na fala de Ramiro ecoa o medo das pessoas de serem mandadas pela liderança. Já nas falas dos defensores da agrovila, diziase que o Ramiro, líder do “Grupão”, induzia a cabeça das pessoas, exercendo assim certo domínio e mando. Por fim, nas entrevistas o INCRA e o ITESP são percebidos como agentes da divisão do grupo de sem-terras, quando Ramiro diz: “Eles chegam no meio da massa, igual ao Silvio Santos, quem quer dinheiro, aí ninguém mais se entende”, e quando João Rebelo diz: “Aí, foi uma briga de projeto do INCRA, porque o INCRA fez uma topografia de quarenta e um lotes”. O órgão do governo, acusado de não querer fazer a agrovila, é acusado por ambos os lados de dividir o “povo”, tanto pelo dinheiro prometido, quanto pela homologação de apenas quarenta e uma famílias, quando o acampamento era formado por sessenta e três. As imagens de Silvio Santos e do INCRA fundemse enquanto detentores de riqueza que a usam para dividir a unidade e força do coletivo dos “pobres” e dos sem-terra. O dinheiro como valor em si gera o egoísmo e o individualismo. O “pensar só no bolso” e os “vícios que o capitalismo deixa” dividem os sem-terra e levam à “decadência”. No entanto, a preocupação em preservar a autonomia na vida e no trabalho face às ameaças de mando torna-se comum. A imagem do fantasma fazendeiro também revela aí seu contraponto. Se aquele que corta as cercas para o gado sair visa a terra de trabalho, o pai fazendeiro justapõe-se aos pais sem-terra, na busca de autonomia para o trabalho e conquista de um território de descendência. Pensando com V. Turner, as performances são maneiras de expressar experiências dotando-as de significados, quando se evocam e se revivem fatos que se mesclam às imagens do choque presente (1982, :35), o fazendeiro consolida-se como a imagem do inimigo comum aos sem-terra, num passado em que o grupo estava unido em prol de um objetivo comum, a luta pela reforma agrária e a conquista de terras. De maneira semelhante, o fantasma fazendeiro impõe a difícil 97

metáfora dos sem-terra que roubam a comunidade, expressando a divisão e as tensões entre um grupo que se pretendia unido contra “o fazendeiro”. Nesse sentido, o INCRA emerge tanto na fala do assentado vinculado ao “Coletivão”, quanto nas palavras daquele vinculado ao “Grupão”, como mentor da divisão do coletivo de assentados. Mas, contraditoriamente, o fantasma fazendeiro também pode designar o pai que busca produzir autonomamente na terra, como os pais sem-terra. Para W.Benjamin os narradores tecem sempre “a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais profundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo nem um impedimento”(1936, :215). A sede faz Deodato lembrar-se do fantasma, do fazendeiro, da divisão dos sem-terra e dos roubos de coisas pertencentes à comunidade. Na performance, o riso tenso e a dúvida iam fundindo lembranças em imagens carregadas de tensão que, ao transmitirem uma experiência, faziam pensar sobre a mesma. N8- O Lazer do Fazendeiro “Uma vez eu estava jogando cartas com o cara que morava lá na sede, na época da frabriquinha de bandeiras. Começamos a ouvir uns passos. Os passos começaram a ficar mais fortes e se ouvia alguém como que correr. Estávamos só nós dois num quarto da casa jogando cartas, de porta fechada. De repente, aquele barulhão: BAU! Como que um soco forte na porta do quarto onde estávamos jogando. Era por volta das duas da manhã. Eu me arrepio só de contar. Nós largamos o baralho e começamos a correr atrás. Por que se era gente dava pra ver quem era, né? Mas, nada! Corremos prum lado, pro outro e nada. Eu é que não volto mais lá assim não. Credo! Meu Deus do céu! Prefiro ficar aqui. Tenho minha casa junto da minha família. Sei lá. Dizem que o homem tinha amor àquela casa e aos eucaliptos. O pessoal foi lá e arrancaram tudo os eucaliptos do homem. Sei lá! Só sei que eu não consigo entender. Me arrepia só de falar. Lá no Carandiru também. Eu me arrepiava todo quando tava preso.” (Conversa com Magno 16/0 2/2005). A narrativa acima foi contada por Magno, filho de seu Dias, que mora na “vilinha” com sua mulher e filha. Eu estava saindo da “vilinha” para fazer entrevistas. Parei para conversar um pouco com Magno. Ele me perguntou qual era o tema de minha pesquisa. Disse que estudava a história do assentamento e as histórias de assombração. Magno arregalou os olhos, abençoou-se, cruzou os braços e começou a me contar sobre esses estranhos passos que ouviu na sede. O narrador morava na periferia de São Paulo, no jardim Elba. Sambista, Magno tocava num grupo conhecido na região, gravou CD, saía em escola de samba. Depois, começou a envolver-se com os traficantes da favela, com roubos e com as drogas. Ficou preso no Carandiru por furto. Quando saiu, foi morar com o pai que estava acampado, para não voltar às “más companhias”, como me relatou mais tarde. Magno envolveu-se com a luta pela terra, tornou-se militante do movimento e realizou trabalhos de base. Num desses trabalhos conheceu sua esposa Aneli, com quem teve uma filha. 98

A sensação de medo vincula o evento narrativo e o evento narrado. O narrador “arrepia-se só de falar” e abençoa-se, tamanho o medo que passou naquela madrugada. O medo que essa lembrança traz é comparável ao arrepio que Magno sentia quando estava preso no Carandiru. Naquela madrugada, Magno jogava cartas com outro militante do movimento que estava morando na sede. Na época, depois de desistir de transformar a sede em um centro de formação nacional, o MST havia implantado uma fábrica de bandeiras. Ambos os militantes divertiam-se com o jogo num dos quartos da casa, com a porta fechada. Começaram a ouvir passos cada vez mais rápidos, até que ouviram como que um soco na porta. Correram atrás para ver se era gente e não acharam nada. Disso decorre a certeza de Magno de que não era gente o que estavam perseguindo, era o fantasma do falecido fazendeiro, que tanto amava a casa e os eucaliptos, e os viu, pouco a pouco, serem “destruídos”. Se a proposta extrema de membros do “Grupão” de derrubar todas as casas e barracões da fazenda para dividir os materiais não foi aceita, a proposta de derrubar árvores da sede para dividir a madeira foi aceita. Com os eucaliptos, os assentados completaram e aumentaram suas casas de madeira. Hoje, muitos assentados, quando olham para a sede, lembram-se como eram belos os eucaliptos, o bosque. Atualmente, o grupo de jovens do assentamento vem tentando fazer um viveiro de árvores na área da sede para reconstituir o bosque e a beleza da sede. Para Magno, “o pessoal foi lá e arrancaram tudo os eucaliptos do homem”, ou seja, roubaram algo que o falecido amava e que ainda era dele. Ao mesmo tempo, os eucaliptos que constituíam a beleza da área coletiva do assentamento, pertencendo a todos, são as “coisas da comunidade” (N7). Como na narrativa anterior, a imagem do fantasma aparece vinculada à “destruição” de bens coletivos, marcando a investida daqueles “individualistas” e “egoístas” contra aqueles que buscam a vida e produção coletivas. Um aspecto interessante de N8 é o fato de aquilo que pertence ao coletivo pertence também ao fantasma fazendeiro, enquanto em N7 o que pertence ao coletivo dos sem-terra é lesado pelo fantasma fazendeiro (peões que roubam). Em outra direção, ao deparar-se com a imagem do fantasma fazendeiro, Magno vê-se como pai que ama sua família e prefere ficar em sua casa a passar as madrugadas jogando cartas na sede. A imagem do fantasma fazendeiro novamente aproxima-se daquela dos sem-terra, pais de família que zelam por suas famílias. A justaposição dessas imagens dá-se semelhante ao cumprimento em N1 e ao fazendeiro produtor de N6. Antes da ocupação da fazenda pelos sem-terra, a sede era utilizada para o lazer do fazendeiro e de sua família. Diversas tentativas de implementar formas de lazer na sede foram postas em prática pelos assentados, para garantirem o uso coletivo. Uma biblioteca foi montada, aulas de 99

teatro, capoeira e música também. Entretanto, há grande dificuldade em manter essas atividades e de cativar as pessoas para participarem delas40. Naquela noite, Magno e seu amigo divertiam-se na sede, local de diversão do antigo fazendeiro. Como conta dona Jaci, assentada que trabalhava na fazenda antes da ocupação, o fazendeiro e a família usavam a sede “só pra vir passar final de semana”, apesar de terem grande quantidade de gado nas terras. A sede era o local de lazer e reunião da família do fazendeiro. Lá ficavam até tarde ouvindo música, conversando, acordavam tarde, usavam a piscina, a quadra, etc. No Natal, vinham mais de quinze pessoas. Jaci arrumava os quartos, limpava a casa e trabalhava na copa. Diz que o serviço era “sofrido”, “E olha, as pessoas às vezes eram tão mesquinhas, gente do céu, pelo amor de Deus – Não, sabe, o seu Flávio não, ele era um amor, e a filha dele, uma das filhas dele era um amor – mas a turma dele, que às vezes eles ficavam quinze dias, dez dias, alguns davam às vezes uma caixinha, né, às vezes davam vinte reais, quinze.(...) Pra mim ficar até tarde da noite”. (Jaci, 14/12/2004). Seu Flávio e uma das filhas eram um “amor” para com os funcionários da fazenda. A expressão de Jaci reveste o fazendeiro da aura de um “bom patrão”, em oposição ao resto de sua família que era “mesquinha”. O fazendeiro amava seus funcionários, assim como amava os eucaliptos (N8) e a sede. Havia o amor do fazendeiro pelo lugar de lazer e de encontro da família. A reação do fantasma fazendeiro coloca-se em oposição ao lazer de sem-terras em sua casa, e contra a destruição dos eucaliptos e da sede. Dada essa reação, Magno prefere ficar perto de sua casa, junto de sua família a ir divertir-se na sede, local de lazer e reunião da família do falecido dono da fazenda. O narrador, que já roubou e foi preso, vê o ato do “pessoal” como o roubo de um bem estimado pelo fazendeiro. Tanto o medo do narrador de N7 quanto de N8 levam os narradores a uma evitação da sede. Em N7, dormir na sede deve ser evitado. Já em N8, ir para a sede deve ser evitado. O gesto de abençoar-se de Magno e o de aconselhar de Deodato trazem proteção contra a assombração. Desse modo, também o uso da área coletiva vai sendo evitado, e a sede vai tornando-se cada vez mais um lugar legado ao coletivo, mas que não pertence ao coletivo. Distante da sede, o cumprimento do fazendeiro a uma sem-terra parece uma inversão do evento de N8. Próximo da casa da sem-terra e de sua família (N1), o

40

Como relata M.Justo (2005c), “Em julho de 1999, uma das edículas virou biblioteca comunitária, devido ao trabalho de apoiadores do Clarice Linspector. A partir do final de 1998, uma psicóloga e alguns amigos doaram livros para a comissão de educação do assentamento. Um grupo de jovens moradores organizou-se para formar uma biblioteca e para alfabetizar as crianças. Aquela psicóloga passou a trabalhar com o grupo de jovens no sentido de viabilizar que realizassem seus projetos”(2005c, :107).

100

fazendeiro acena sobre seu cavalo, longe da sede. Na sede, durante a aparição a um pai distante de sua família, o fantasma esmurra a porta e some, ato que designaria seu ódio. Talvez, o lazer dos pais sem-terra deva se dar próximo a suas famílias, e não na casa onde se dava o lazer da família do pai fazendeiro. Quando a imagem do fantasma fazendeiro se aproxima daquela do pai trabalhador (N6) que ama e zela por sua família (N8), uma certa ordem moral camponesa (K.Woortmann, 1990) é afirmada, e o gesto de cumprimentar (N1) pode ser visto como reconhecimento entre pessoas próximas. De modo diferente, associado às imagens de individualistas e ladrões, o fantasma nega princípios coletivistas e um ordenamento moral. Seus atos são vistos como de alguém distante e estranho, alguém que vem de fora, seja de fora do assentamento, seja de fora do mundo dos vivos (C.R.Brandão, 1994). As contradições presentes na imagem do fazendeiro justapõem-se àquelas dos sem-terra e da sede.

O Fazendeiro, sua Casa e sua Cadeira N9- Morte na Cadeira de Balanço “ Eu tenho medo daquela sede ali, eu não vou lá à noite não. Sai fora! Tem um tal de abrir e fechar janela, bate porta sozinha. Isso por que o fazendeiro, seu Rodolfo, morreu lá, naquela cadeira de balanço velha. Diz que ele apareceu lá. Eu não vou lá não, tenho medo.”( Edson 09/12/2005). No mês de Dezembro de 2005, fui convidado por seu Aldo e Edson, seu filho, para ir com eles fazer uma pescaria no rio Itapetininga, na parte da tarde. Aldo, impedido de trabalhar por um problema sério no joelho e nas costas, queria distrair-se um pouco com a pescaria, “pegar uns lambarizinhos”. Dada minha pouca intimidade com a pescaria, disse-lhes que ia como aprendiz. A tarde foi passando, conversamos muito sobre a vida no assentamento, sobre os conflitos, sobre os filhos de Aldo. Num dado momento tocamos no assunto da sede. Seu Aldo disse que a sede ia melhorar com a ajuda que o padre estava dando e com a nova comissão da sede. Quanto à questão do fantasma, disse com uma cara de deboche “Isso são histórias que o povo inventa, não tem nada não”. Entretanto, seu filho, contrariando-o, disse que não ia à sede, pois janelas e portas batiam sozinhas. Franzindo a testa e apertando os olhos seriamente, disse que o fazendeiro havia morrido lá, na cadeira de balanço, e que aparecia. Nesse momento, Aldo gargalhava com todo seu corpo, insistindo que isso eram “bobagens”. Um sorriso sem jeito desenhava-se na boca do rapaz que silenciava. 101

O contraste profundo entre a gargalhada descrente do pai e a seriedade tensa do filho transferem para a esfera do evento narrativo a divisão de atitudes diante do evento narrado. A assombração que ronda a sede pode ser motivo de medo, seriedade e crença, ou então de deboche, de um riso largo, menosprezando a crença e o medo. No caso, temos um pai e um filho que apresentam olhares completamente diferentes sobre um mesmo motivo: a aparição do fantasma da sede. Quando W. Benjamin escreve sobre o teatro épico, salienta que a ruptura com um público homogêneo, conseguida pela interrupção das seqüências, obriga o espectador a tomar uma posição quanto à ação e, ao ator, a tomar uma posição quanto a seu papel (1931,:133). Suponho que a divisão dos narradores com relação ao motivo do “fantasma da sede” revela uma interessante proximidade quanto ao efeito de distanciamento brechtiano. Seja pela gargalhada ou pelo medo, os narradores percebem o “fantasma fazendeiro” com assombro e distanciamento. M. Bakhtin em seu estudo sobre “Rabelais e a História do riso” aponta que o “riso”, enquanto atitude dos séculos XVII e XVIII, podia expressar uma espécie de castigo útil usado para com seres inferiores e corrompidos (1987, :58). Muitas das histórias de assombração do assentamento são contadas por pais, avós ou pessoas mais velhas para crianças e jovens. Incluem-se tanto histórias das assombrações presenciadas no assentamento, quanto aquelas ocorridas no lugar de origem da família (ex. Minas Gerais, Pernambuco, etc.). Na casa de Deodato e Esmeralda, certa noite o pequeno Nino começou a fazer “manha”, pois queria ir para o terreiro da casa. Quando o menino abriu a porta, Deodato disse : - “Cuidado, Nino, os olhos da noite estão lá fora e vão te pegar”, o menino deu um grito e saiu da porta correndo para o colo do pai. Deodato pegou-o no colo e começou a rir. Mas o mesmo Deodato tem medo de uma história contada por seu pai, Salvador. Uma vez, em Minas, o pai saíra para caçar acompanhado por seu filho mais velho e de alguns cachorros. De repente, os cachorros começaram a latir para o meio da mata, mas só havia escuridão. Ouvia-se um barulho de corvo que depois se transformava em uivo de lobo, grunhido de porco e balido de bode. Os cachorros começaram a voltar da mata todos machucados. Não se encontravam, na mata, os tatus que queriam caçar. O pai, conhecido por sua coragem, pegou a carabina e foi atrás do bicho. Os cachorros estavam cada vez mais machucados. Depois de muito andar na mata, o pai, cansado, desistiu e os dois voltaram pra casa. Quando lá chegaram, as feridas dos cachorros haviam sumido. Salvador deixou de caçar por mais de um ano naquelas matas. Deodato, que era criança na época, acredita que tenha sido o Caipora que interferiu contra os caçadores para proteger os tatus (Cad. Camp. Dezembro de 2005). Apesar de ter rido muito, Aldo disse que inventava umas histórias de assombração e sobre o fantasma da sede, para colocar medo nos filhos e amigos, mas que eram de “brincadeira”, já que 102

não existia nada daquilo. No caso de N9, o contraste entre a gargalhada do pai e a seriedade do filho pode ser visto como um recurso que Aldo usa contra seu filho, rindo de seu medo. Para Aldo, não se deve temer as assombrações nem o fantasma da sede, pois, apesar de serem “bons para brincar com os filhos e com os outros”, não devem ser temidos. Segundo ele deve-se rir das assombrações. O fantasma da sede, temido por Magno e Edson, é visto como a aparição do antigo fazendeiro em sua casa. Tendo morrido na cadeira de balanço, o fazendeiro morto permaneceria na sede na forma de fantasma, alma sem corpo. A assombração reveste-se com os atributos de um proprietário de terras e de todo o poder dessa imagem, e age sobre sua casa, local de seu lazer familiar e de sua morte. Jaci, assentada que trabalhou na fazenda, narra da seguinte forma a morte de seu Flávio: ´´A gente sofreu bastante, ai. No caso dos netos dele. Não no caso dele. A última vez que ele saiu daqui, que ele nunca mais voltou, porque depois ele morreu, saiu daqui no braço das pessoas. Gente dele. Ele tava aqui passando férias. Levaram ele pelos braços. Ele queria tão bem a gente, assim como a gente queria bem ele. Por que eu, às vezes, não tinha dinheiro pra comprar remédio, às vezes quando eu precisava, quando ele tava aí, ele tirava do bolso e me entregava. E não cobrava nada. Ele falava assim. Eu ainda brincava com ele assim: - Quando chegar o dia do pagamento o senhor tira lá, né, daí já vem descontado. Ele falava: - Pode deixar que eu tiro.”(Jaci, 14/12/2004). Em seu relato, o sofrimento dos trabalhadores não é causado pelo patrão, mas por seus netos. Apesar de sofrer e ganhar pouco, a ponto de não conseguir pagar os remédios com seu salário, Jaci admira o patrão por tirar do próprio bolso, dar para ela e não cobrar depois. A relação de proximidade é marcada pela brincadeira com o patrão. Como afirma M.Bakhtin, o riso da Idade Média supõe que o medo foi dominado, a ausência de medo gera uma liberdade que se limitava aos dias da festa (1987, :78). No caso da assentada, a “brincadeira” celebra a proximidade e a ausência de medo, ao mesmo tempo em que solidifica o poder do patrão sobre a subordinada, que continuará sempre precisando pedir ao patrão o dinheiro de seu remédio. De modo muito diferente, Xica percebe nas grades da delegacia o risco do “retorno do cativeiro” e do sofrimento dos escravos (N4). Para ela a imagens dos senhores e fazendeiros remetia diretamente à morte, exploração e violência contra os trabalhadores. Num caso, a imagem do fazendeiro sinaliza poder e cordialidade (Jaci). Noutro, o poder dos fazendeiros gera o sofrimento dos trabalhadores (N4). Com as grades e torturas os senhores mantinham os escravos trabalhando. Por outro lado, o fazendeiro, tirando do próprio bolso, mantinha sua funcionária trabalhando satisfeita. Segundo Jaci, o fazendeiro teria morrido quando estava em férias com a família. Morreu em sua fazenda. Foi carregado nos braços de “sua gente”, e saiu para não mais voltar, ou para voltar apenas 103

na forma de fantasma. Na imagem do “fantasma fazendeiro”, riso e medo fundem-se de modo dialético. O poder do fazendeiro afirma-se ao mesmo tempo em que é desmascarado. Em N4, a narradora mostra a senzala na cadeia, os senhores nos fazendeiros, e o risco de sem-terras virarem escravos. Já em N7, o “fantasma é os peões que roubam a comunidade” e, como em N8, o fantasma evoca o pai de família. Por fim, em N9 o fantasma que assombra a sede é temido pelo filho e ridicularizado pelo pai. M.Bakhtin diz que o “sério” na cultura clássica é o oficial, o autoritário e está ligado à violência, à interdição e às restrições, “há sempre nessa seriedade um elemento de medo e intimidação” (1987, :78). Por outro lado, o riso vem quando o medo foi dominado, “jamais o poder, a violência, a autoridade empregam a linguagem do riso”(: idem). De certo, há grandes diferenças entre Rabelais e a Idade Média, e as relações sociais nesse assentamento, mas acredito que as conclusões de M.Bakhtin sejam interessantes para pensar a questão das assombrações no assentamento. O riso dos pais, Aldo e Deodato, sobre aquilo que os filhos temem retira a seriedade desse medo, enfraquecendo a força e a violência presentes na imagem do fantasma fazendeiro, patrão, e dos “olhos da noite”. Entretanto, o mesmo M.Bakhtin ressalta que o riso e a festa eram sucedidos pelo retorno do sistema oficial, com suas interdições e barreiras hierárquicas (:77). De modo parecido, a brincadeira do patrão fazendeiro, ao mesmo tempo em que aproxima Jaci do patrão, negando-lhe o medo, reafirma pelo riso as bases do medo, da autoridade, do mando e da desigualdade da relação entre o patrão e a empregada. Não pela tortura (N4), mas, ao “tirar do próprio bolso”, o fazendeiro repõe seu poder sobre a trabalhadora no momento em que esta se fragiliza. Riso e medo marcaram também dois momentos cruciais na história do assentamento. Em primeiro lugar, o riso na noite em que os sem-terra conseguiram a emissão de posse que autorizava a desapropriação das terras da fazenda Monjolo para fins de Reforma Agrária. Esse fato marcava a vitória dos sem-terra contra o inimigo comum, o fazendeiro. Em segundo lugar, o conflito, a “brigaiada” entre os próprios sem-terras depois da homologação de apenas quarenta e uma das sessenta e três famílias, gerando conseqüentemente o medo. Aldo narra da seguinte forma o momento da emissão de posse da fazenda: “Veio capitão, veio coronel e tudo aí, conversar com nós, até o último prazo, que não tinha mais. Já tava estourada a liminar com mais de vinte dias. Por causa da enchente não puderam nos tirar.(...) No sábado a gente tava na ponte, ali andando, pra ir no mato. Passeando lá no meio do rio, eu e seu Otacílio. Daí, eu não sei o que deu na cabeça, nós fomos na ponte. Chegou lá, a viatura da polícia tava lá. E a polícia não tinha nada que vim ali. Foi negociado com eles que segunda-feira nós mudaríamos. Terça-feira, se a gente tivesse mudando, eles não fariam nada pra nós. Agora, se nós não tivéssemos mudando, daí vinha pra fazer. Tava arrumado já. 104

Daí a gente foi lá, chegou e viu a viatura, fomos ver o que era. Daí o policial brincando com nós lá, dando risada. Falou: - Ou, sem violência, nós viemos trazer o papel pra vocês aí. Daí mostrou pra mim (...) Eu falei: - O quê que é o problema aí?. Ele falou: - Não, nós viemos trazer o papel pra vocês aqui, ó. E deu a mão pra mim. Me cumprimentou, falou: - Oh, rapaz, felicidades, vocês ganharam a terra aí, vim trazer o papel pra vocês. Vocês não precisam sair mais. Daí foi uma festa, foi uma festa. Ele mostrou o papel lá pra mim, mas aí foi chamar os coordenadores, saiu de lá e foi chamar. Aí foram umas vinte, trinta pessoas na fazenda. Esperamos lá pra entregar o papel pro coordenador mesmo. Daí foi seu Salvador, o João Rebelo, tudo. Chegou lá, eles entregaram a reintegração de posse pra nós, Posse da terra, a T.D.A. Foi só alegria. Foi a noite inteirinha em festa. Não sei onde é que nós fomos arrumar tanto dinheiro. Ninguém tinha! Foi rojão, bebida, forró, teve uma assembléia...Uma assembléia pra esparramar o negócio, né. Só alegria, mesmo.”(Aldo, 22/02/2005). Naquele momento de tensão, os sem-terra já esperavam a violência da polícia, que iria ocorrer caso eles não conseguissem sair a tempo. Ao invés de vir expulsar de modo violento, a polícia vinha trazer a emissão de posse, que dava o direito aos acampados de viver e trabalhar num assentamento a ser criado na região. Estranhamente, o policial, autoridade responsável por aplicar a violência para garantir a propriedade privada dos fazendeiros, diz brincando: - “Sem violência”. Estranhamente, o fazendeiro patrão também brincava com Jaci. A imagem do cumprimento entre o policial e o semterra assemelha-se àquela do fantasma e da assentada (N1). Se a senzala é a delegacia (N4), o cumprimento entre policial e sem-terra afasta o medo do sofrimento, da volta do cativeiro. Talvez o cumprimento do fantasma fazendeiro à assentada também revele tal afastamento. Quando o policial cumprimenta o sem-terra, o medo se afasta, o policial, mensageiro da violência, transformou-se em mensageiro da boa notícia, e a festa pôde começar. A alegria presente no “brincar” do policial tornou-se cada vez maior depois que a notícia foi “esparramada” na assembléia, até que se transformou numa grande festa com rojões, forró e bebida. No dizer de Aldo: “foi só alegria”. Os sem-terra tinham vencido o medo da polícia e do fazendeiro. A festa feita pelos sem-terra ao receberem a emissão de posse é marcada pela suspensão de papéis e pela celebração dos laços coletivos que unem os acampados. Acredito que a alegria daquele momento seja alusiva aos momentos de communitas pensados por V.Turner. Para o autor, os momentos de communitas que emergem em estados de liminaridade “oferecem uma mistura de submissão e santidade, de homogeneidade e camaradagem” (1984, :118). Nesses momentos, as tensões inerentes à estrutura social são aliviadas. Esses são momentos estruturalmente instituídos, quando os membros da comunidade celebram relações de comunhão, face a face, eu-tu. Há a celebração da unidade social nessa anti-estrutura, socialmente instituída. A brincadeira do policial e a emissão de posse do governo federal suspendem por um momento as normas que regem o comportamento das pessoas na estrutura social. O policial brinca, as lideranças misturam-se à base e 105

celebram-se relações de comunhão que, à margem da estrutura do Estado e do MST, aliviam as tensões sociais e fortalecem a própria unidade dos sem-terra. Os acampados comemoram sua vitória e sua história comum de luta afastando suas desavenças internas e externas. Mas, se é de um estado semelhante ao de communitas que se fala, terminada a festa socialmente autorizada, a estrutura, as normas, papéis e diferenças recobram seu peso e seu lugar, expurgadas das tensões que as tornavam frágeis. Depois desse momento de extrema união e felicidade, inicia-se o momento de conflitos entre os acampados para garantir seu direito à terra. Após o período de festa durante o qual os laços de união e igualdade dos sem-terra foram celebrados ante o medo da polícia e do fazendeiro que se afastava, o medo, a violência e a autoridade aproximam-se novamente, não mais nos papéis dos policiais ou do fazendeiro, mas na pele dos próprios sem-terra que se dividem. Nas narrativas, a luta contra o fazendeiro e contra a polícia transforma-se na luta contra a autoridade e violência dos próprios sem-terras, e a experiência dos sem-terra ganha contornos trágicos. Esmeralda relata da seguinte forma a questão da divisão dos lotes e da diminuição dos mesmos: “A idéia era diminuir mais ainda pra poder assentar os outros que faltavam. Aí foi muita briga, muita desavença, o pessoal brigava, andava armado...andava com facão, uns falavam que iam matar, que iam fazer isso, e não deixavam a gente participar das reuniões. Assembléia a gente ia, mas a gente não podia falar, ficava quieto. Aí, teve uma época que a gente cansou. Nem ia mais participar de nada. E eles precisavam do seu Salvador, porque o seu Salvador que conhecia, ele que tinha enviado o povo pra ir conversar com o INCRA, e o pessoal não queria que ele saísse. Teve uma vez que a gente largou a assembléia e foi embora. E, foi aí que os jovens começaram a entrar na briga dos pais também. Começaram a fazer desavença também, aí começaram uns a ir embora, os outros a casar e paravam de participar, aí a briga deles já era outra coisa. Não era o grupo de jovens mais.”(Esmeralda, 07/07/2004). O medo de ir às assembléias que aparece na entrevista com Lia e João Rebelo é mostrado de modo mais cru por Esmeralda. A assembléia, que antes havia servido para “esparramar a notícia da posse da terra”, agora se transformava num lugar marcado pelo medo, pelas ameaças de morte e pelas armas. Esmeralda diz que num determinado momento aqueles que pertenciam ao grupo do seu Salvador não podiam falar. M.Taussig, ao refletir sobre narrativas que descrevem o espaço de terror e medo que estruturou a exploração da borracha na Amazônia colombiana, comenta: “(...) culturas do terror se baseiam e se nutrem no silêncio e no mito que floresce, por meio do boato e da fantasia traçados numa densa teia de realismo mágico, a ênfase fanática do lado misterioso do mistério.” (1983, :50). Por meio das desavenças geradas pelas diferentes propostas de produção e moradia, o conflito foi tomando a face da briga, da ameaça, do terror e da morte. Assembléias,

106

lugares de discussão coletiva democrática, tornam-se espaços do terror. O silêncio e as armas levadas para as assembléias são índices do medo que ecoa nas palavras de Esmeralda. Se a imagem do “fazendeiro fantasma” junta o medo do fazendeiro (autoridade, violência, poder) ao medo da morte, também as assembléias tornam-se um espaço do medo seja pela autoridade de um grupo de não deixar mais o outro grupo falar, seja pela violência de irem para as assembléias armados e fazerem ameaças de morte às pessoas ligadas à proposta do “Coletivão”. O espaço de deliberação comum, de reunião de um coletivo, da alegria de esparramar a notícia da emissão de posse e da vitória contra o fazendeiro e a polícia, transforma-se num espaço do medo, marcado pela imposição violenta e autoritária da vontade de um grupo de sem-terras sobre outro. O riso, a brincadeira e a festa que caracterizaram a vitória dos sem-terra unidos sobre o fazendeiro, transformaram-se em medo e silêncio dos próprios “companheiros” de luta. Como em N5, quando os escravos companheiros são percebidos por sem-terras que são maus também, os companheiros dividem-se na questão da divisão dos lotes, aos olhos de Esmeralda, não apenas em dois grupos, mas em sem-terras violentos, autoritários e ruins, e aqueles que buscavam se defender e defender suas opiniões, ainda que calados. Retomando N9, é possível supor que as distintas posturas do pai, que ri do fantasma do fazendeiro e do filho que tem medo, projetam, sobre a imagem da assombração, uma postura apresentada pelos sem-terra quando confrontados com o poder, o mando, a autoridade e a violência. Aldo ri do “fantasma fazendeiro” assim como na assembléia os sem-terra riram e festejaram a vitória sobre o fazendeiro. Por outro lado, Edson teme o fantasma do fazendeiro temendo a morte e o poder dessa imagem, da mesma forma que o grupo vinculado às propostas do “Coletivão” e da agrovila temia as assembléias e as ameaças de morte. Pensando sobre o teatro épico, W. Benjamin diz que “As vibrações físicas produzidas pelo riso oferecem melhores ocasiões para o pensamento que as vibrações da alma (1931, :134). Como o riso no tetro épico, o riso de Aldo estranha o medo que seu filho tem do “fantasma do fazendeiro” e, assim, distancia-se das características marcantes que nutrem o poder, a autoridade e a violência presentes na imagem do fazendeiro.

107

N10- Assentada na Cadeira do Fazendeiro “Então, nem eu sei...Ele, porque disse que tinha uma cadeira na sede e que aconteceu ali. Essa cadeira era muito esquisita, cheia de ferros e tinha um buracão. Teve uma pessoa, uma mulher que sentou na cadeira, e a cadeira afundou pra baixo. Aí, eles começaram a bulir... e ela não conseguia sair da cadeira, porque tinha um plástico, uma coisa assim. Ela sentou e afundou pra baixo, e o pessoal começou a falar que era o fantasma. Uns falavam que ouviam vozes, e foi indo...Disse que o homem tinha morrido nessa cadeira e não queria que ninguém mais sentasse nela. Mas ninguém sabia de verdade. Era boato só. Aí, falou que tinha esse fantasma. O pessoal começou a ter receio de entrar sozinho na sede. Eu tenho medo! Como a casa é muito grande, se fala lá dentro dá eco. O jeito dela é muito estranho. Eu tenho medo de andar lá sozinha. Mas é boato, né! Ninguém sabe de verdade se morreu, se não morreu. Aí, ficou essa história que o homem morria em cadeira, não sei o que, não sei o que...”(Esmeralda, 07/07/2004). O motivo da morte do fazendeiro em sua cadeira surge novamente nessa narrativa. No evento narrado, um grupo de assentados estava na sede, e uma das mulheres do grupo senta-se na cadeira que era do fantasma fazendeiro. A mulher afunda no buraco da cadeira e não consegue sair. Os outros começam a “bulir”, dizendo que era a cadeira onde tinha morrido o fazendeiro, e que seu fantasma não queria que ninguém sentasse nela. O fato da mulher ter ficado presa é percebido como uma espécie de “punição engraçada”. A imagem do fantasma emerge para que o grupo possa fazer piada da mulher presa na cadeira que pertencera ao fazendeiro. Como para seu Aldo, o “fantasma fazendeiro” deve ser motivo de riso, e não de medo. Entretanto, no evento narrativo, Esmeralda contava sua história rindo ao mesmo tempo em que afirmava ter medo. Uma mão segurava a outra. A mão esquerda esfregava-se sobre o braço direito, os dedos estralavam. O rosto de Esmeralda era marcado por um sorriso contínuo, meio sem jeito. Nos momentos em que falava da mulher não conseguir sair, do fantasma não querer que ninguém sentasse em sua cadeira e do medo de entrar na casa, Esmeralda ria e balançava todo seu corpo. Eu ria com ela. Estávamos só nós dois na sala de sua casa, fazendo a entrevista depois do almoço. Esmeralda é esposa de Deodato e mãe de Nino. Mora na “vilinha” junto à família de seus pais e dos pais de Deodato. Passou sua infância e parte da adolescência na favela do Jardim Elba, periferia de São Paulo. Veio ainda adolescente para o acampamento, acompanhando os pais. Participava ativamente do grupo de jovens, do qual era uma das coordenadoras. Conheceu Deodato no acampamento e com ele desenvolveu trabalho de base para o movimento em cidades da região. Casou-se com Deodato e continuou participando da regional de Sorocaba, em atividades ligadas ao setor de educação. Entretanto, em 2004, ela e um grupo de jovens do assentamento que participavam do movimento resolveram sair da regional. O motivo era a imposição da regional de que os jovens deveriam deixar os assentamentos e irem trabalhar nos acampamentos. Nesse momento, a regional era coordenada por uma importante liderança do MST, Martina, que 108

sustentava tal posição, contra a posição de que os militantes deveriam fazer trabalhos mais vinculados a suas comunidades, defendida pelos jovens. O “racha” impôs a saída dos jovens e o fim da secretaria regional do MST, que apenas em 2006 voltou a funcionar, mas ainda de modo fraco. O riso de Esmeralda, ao contar sua história, não é nem a gargalhada de seu Aldo (N9), nem o medo de Edson (N9) e Magno (N8). Seu riso tenso mescla o medo da casa e do “fantasma fazendeiro” com a graça presente nessa imagem, da qual não se precisa ter medo. Sua incerteza quanto à existência ou não do fantasma a aproxima do modo de contar de seu marido Deodato (N7). Ele expressa sua dúvida, dizendo que era melhor eu não dormir na sede, pois “vai que tem mesmo” o fantasma. No caso de Esmeralda, o fantasma é ao mesmo tempo motivo de riso e de medo, e é pela forma de um riso tenso e de falas como: “Então, nem eu sei”, “Mas é boato só”, “Ninguém sabe de verdade se morreu, se não morreu”, que ela expressa sua dúvida. A incerteza que faz do fantasma uma imagem de riso e medo, também retira a autoridade dos narradores sobre o que estão falando. Não têm certeza se é verdade ou não, e ainda assim continuam narrando. Seria tal postura um reflexo daquilo que W. Benjamin designa como sendo uma crise na arte de narrar, estando a experiência e a faculdade de intercâmbio de experiências em vias de extinção (1936, :197)? No evento narrado, à explicação óbvia de que a mulher havia afundado na cadeira porque esta tinha um buraco, soma-se outra. A narradora afirma que o antigo fazendeiro teria morrido na cadeira e, por isso, não queria que ninguém se sentasse nela. A cadeira cheia de ferros, plásticos e com buraco, a sala com lareira e a morte do fazendeiro transformam-se num rico material de riso para esse grupo. Quando a mulher sem-terra realiza o ato de sentar-se na cadeira de descanso de um grande fazendeiro, em sua grande sala com lareira, em sua grande fazenda e, ainda por cima, no exato lugar onde se deu sua morte, a graça emerge e contagia o grupo. Essa história, ou piada, é contada para outros e transforma-se num acontecimento inicial que dá margem a muitas outras histórias e sensações quanto à casa: ouvir voz, ter receio de andar na sede, ter medo. Pensando com M.Bakhtin (1987), a imagem do fazendeiro “dono da cadeira” pode encarnar tanto o medo (violência, autoridade, seriedade) atribuídos ao “fazendeiro”, quanto o medo daquele que já morreu, fantasma, que volta para assombrar aquilo que era seu. Por outro lado, o riso vem para enfraquecer esse medo tanto da morte e do retorno dos mortos, quanto dos fazendeiros. Ao refletir sobre as artes na Idade Média, M.Bakhtin afirma que o medo e o riso existiam simultaneamente nas artes decorativas das igrejas, mas que entre elas havia uma fronteira clara impedindo sua mistura (:83). Creio que na imagem do fazendeiro também estejam presentes essas duas tendências, a do medo e a da superação do medo, numa dissonância contínua. No mesmo sentido, o riso tenso dos narradores das histórias sobre os escravos os revelam não só como 109

“lutadores do povo”, ancestrais dos sem-terra, mas também como trabalhadores cujo sofrimento os levou à má morte sendo, portanto, almas penadas e más que expressam o medo do “retorno do cativeiro”. No evento narrado, a sem-terra, ao sentar-se na cadeira do antigo dono, o imita. Ela, uma semterra, senta-se na cadeira de um grande fazendeiro para descansar na sala que pertencia a outro. A imagem forma um todo contraditório, pois aproxima termos antagônicos. Tem-se uma “grande fazendeira sem-terra” que demonstra a intenção de descansar na cadeira, porém não consegue sair. A dissonância dessa imagem gera o riso, que é acentuado quando a mulher afunda na cadeira, incapaz de levantar-se. Há uma semelhança interessante entre a imitação realizada pela assentada e os processos de mimesis dos Kuna interpretados por M.Taussig (1993). Para o autor, ao fazerem figuras de madeira representando tipos europeus, os Kuna evocavam a faculdade mimética. Nas palavras de M.Taussig: “Note the replicas. Note the magical, the soulful power that derives from replication. For this is where we must begin; with the magical power of replication, the image affecting what it is image of, wherein the representation shares in or takes power from the represented – testimony to the power of the mimetic faculty through whose awakening we might not so much understand that shadow of science known as magic (a forlon task if ever there was one), but see anew the spell of the natural where the reproduction of life merges with the recapture of the soul”(1993,:2). A faculdade mimética presente no ato de um sem-terra sentar-se na cadeira do fazendeiro gera uma imagem que afeta o representado. Há o choque entre as imagens da “grande fazendeira semterra” e o “fazendeiro fantasma” que, supostamente, a prenderia na cadeira interditada. O riso atenua o poder da imagem do representado. Durante o período de conflitos entre os jovens do assentamento e os outros integrantes da secretaria regional sobre a necessidade de saída dos jovens para trabalharem nos acampamentos, inúmeras vezes ouvi os jovens referindo-se à Martina como sendo “durona”, “coronela” e “autoritária”. Todo o conflito estava pautado entre jovens militantes e uma velha liderança que impunha aquilo que pensava ser o certo. Tem-se no insulto verbal “coronela” atribuído a uma semterra, Martina, grande proximidade com a imagem da “grande fazendeira sem-terra”, da sem-terra

110

que se sentou na cadeira do fantasma fazendeiro. O efeito de estranhamento41 dessa imagem ilumina também o medo do qual falava Ramiro na entrevista. O “Grupão” temia que, depois de formado o “Coletivão”, as lideranças do acampamento começassem a mandar e se tornassem “patrões” de uma cooperativa de assentados. A contradição expressa pela imagem da “grande fazendeira sem- terra” traz à tona conflitos internos relativos à própria participação dos assentados no movimento, situando no plano do riso e do medo as dificuldades de lutar contra a autoridade, a violência, o mando e a seriedade dos fazendeiros. No entanto, essas dificuldades estão presentes no próprio movimento e assentamento. N11- Morte à Cavalo “ Diz que o velho gostava mesmo é de andar com o cavalo. Tinha um cavalo branco, bonito! Os mais velhos é que contam. Ele andava tudo isso aqui com o cavalo. Saía com os outros e andava por essas matas. Diz que foi assim que ele morreu. Tava andando com o cavalo na mata e morreu em cima do cavalo.”(Everson, 25/12/2004). Essa narrativa e N13 foram contadas por Everson, filho de dona Dania e seu Adão. O rapaz ajuda os pais na produção das estufas de pimentão. Participava ativamente do grupo de jovens, antes deste ter terminado. Casado com uma prima de Esmeralda, Lisbela, Everson tornou-se pai de Tainá recentemente, e teve que, além de ajudar os pais com as estufas, arrumar emprego numa fábrica da região. Conversávamos na cozinha, na casa de seus pais, quando tocamos no assunto do fantasma da sede. Ficou o tempo todo em pé, sem repousar o corpo na cadeira. Seu corpo e seu sorriso permaneceram tensos ao narrar suas histórias. À medida em que ia contando, sempre falava : -“ Pára! Deus me livre e guarde!”. Eram pequenas pausas na narrativa que sinalizavam o grau de perigo daquilo que estava contando, e a necessidade de proteção divina. Por vezes até fazia o sinal da cruz no peito, abençoando-se. Disse já ter visto o fantasma e presenciado coisas muito estranhas nesse assentamento. Sentia um grande arrepio ao passar pela sede e pela mata. Sempre que sentia isso, rezava a oração “Creio em Deus Pai”, que é a oração mais forte que conhece, e que protege mesmo, pois fecha o caminho da assombração. Ensinou-me a oração com a ajuda de sua esposa e sua tia, que estavam na cozinha também. Quando eu estivesse andando pelas estradas à noite e 41

Inspiro-me na noção de estranhamento de B. Brecht. Como mostra F. Ewen “O que é Estanhamento [Verfremdung]? Escreve Brecht: ‘Estranhamento de um incidente ou personagem simplesmente significa tirar desse incidente ou personagem o que é manifesto, conhecido ou óbvio, despertando em torno deles espanto ou curiosidade.’Hegel dissera: ‘O conhecido, por ser conhecido, é o desconhecido’. No mesmo espírito, os poetas românticos tinham tentando tornar não familiar o familiar. Brecht também nos pede que olhemos os fenômenos comuns com uma postura de nãofamiliaridade”(1967,:202). 111

sentisse medo, deveria rezar com toda a força. Ficou sempre em pé com o braço apoiado na cadeira. Não riu nenhuma hora. Repetia que coisas estranhas aconteciam no assentamento e que o que me contava era “verdade mesmo”. Sua tia e sua esposa, que estavam cozinhando, confirmavam com a cabeça as histórias. Ofereceu-me almoço, mas eu já havia almoçado. Disse que eu tomasse cuidado, pois ele já havia visto. O tempo todo falava em tom de explicação. Nesse evento narrado, surge um velho fazendeiro que gostava de andar a cavalo pelas matas da fazenda, gostava tanto que morreu sobre seu animal, um cavalo branco. A morte do fazendeiro é percebida como tendo ocorrido não na sede e na cadeira, mas sobre o cavalo, pela fazenda. A narrativa 11 constitui-se como uma narrativa que, como N9 e N10, especula sobre os temas da morte do fazendeiro e seu local de morte. Tal especulação desenvolve-se sempre atribuindo inúmeras características ao “fantasma fazendeiro”. De maneira diferente, as narrativas sobre os escravos especulavam sobre o local de suas mortes, sobre seus trabalhos e sofrimentos, preocupando-se também com a presença de escravos no assentamento e o risco da “volta do cativeiro”. Aos poucos vai sendo possível perceber que as narrativas se referem a gostos, aspectos corporais, gestuais e objetos que são atribuídos à imagem do fazendeiro fantasma. Assim, em N7 o fantasma rouba as coisas da comunidade (cabo de vídeo, fogão e corta cerca); já em N8 o fantasma persegue aqueles que destruíram o bosque de eucaliptos e a beleza da sede, local de seu lazer familiar; em N9 e N10 o fazendeiro morreu na cadeira de balaço e assombra a sede de sua fazenda; por fim, em N11, o fazendeiro é um velho que gostava de andar a cavalo com os outros por sua fazenda. Nessas diferentes imagens, o fantasma vai ganhando atributos corporais (tempo: velhice, gestuais: correr, sentar, andar), atributos pessoais (ladrão, pai de família, injustiçado, proprietário) e atributos de relação com objetos (sede, cabo de tv, fogão, gado, bosque, cadeira, cavalo). Entendendo N7, N8, N9, N10 e N11 como sendo narrativas que refletem sobre possíveis aproximações com a figura de um fazendeiro, pode-se dizer que N11 tenta definir quem é o fazendeiro que os assentados encontram sob a condição de fantasma. Os gestos de proteção como benzer-se, rezar e falar “Deus me livre e guarde” denotam a seriedade e o perigo de um encontro com a assombração, encontro com um fazendeiro e com a volta de um morto. A postura de Magno (N8) é também muito parecida com a desse narrador. Ele também se abençoava, arrepiava-se só de contar e, como Deodato (N7) e Edson (N9), evitava a sede. Acredito que para entender melhor o medo sentido pelos assentados, tanto do fantasma da sede quanto de fazendeiros, polícia, lideranças e de sem-terras “que carreguem os vícios do capitalismo”, haja a necessidade de perceber melhor quais são as fontes de poder que revestem a imagem do 112

fazendeiro. São esses atributos que carregam de tensão o “encontro” perigoso presente nas imagens da “grande fazendeira sem-terra” e da “coronela sem-terra”. Colocando ao lado dessas imagens a do “fazendeiro sobre seu cavalo” (N1 e N11), talvez se revelem interessantes dimensões sobre o caráter político das relações entre “sem-terras” e “fazendeiros”, e entre “sem-terras” e o “medo do mando”. Na entrevista, Ezequiel conta sobre a ocupação da Fazenda Monjolo, mostrando, quase que como quem conta uma piada, como foi a “estratégia” dele e de Tião, outro grande militante do movimento, para que o acampamento pudesse encontrar uma fazenda cuja ocupação levasse à rápida desapropriação. O assentado narra o fato salientando como conseguiram enganar o gerente da fazenda, passando-se por fazendeiro comprador (Tião) e corretor (Ezequiel). Ezequiel diz: “Eu saí mais o Tião olhando umas fazendas. Aí, achamos que essa aqui era mais fácil. Voltamos lá. Tião falou: - Quem quiser vim vem, quem não quiser vim não vem.... Tião telefonou pro gerente daqui dessa fazenda e falou:- Ô moço, cê tá vendendo essa fazenda? Nós somos corretores e aqui diz que tá vendendo. Ele falou: - Tá sim. O cara quer vender isso aqui. –Tem jeito de você dar uma mostrada pra nós? (risos) O cara falou: - Ah, mostro sim. (risos) (...) Saímos eu, ele e o gerente, visitamos a fazenda todinha. Aquilo eu não agüentava, eu queria dar risada e não podia. E o cara falando: - Se der um arrochinho, um pouquinho o cara fecha por menos, o que ele quer é vender.- Então, eu vou comprar, amanhã mesmo eu compro, amanhã mesmo eu compro (risos). Ele era o comprador e eu era o corretor. Quando nós chegamos lá o cara ainda falou: - Não, vamos tomar um café, moço, entre aí, a casa é de pobre mas...Eu falei : - Não tem problema, não, traga o cafezinho aqui fora que a gente toma aqui fora mesmo. Tomamos um cafezinho lá, o cara trouxe um pedaço de queijo, comemos, aí entramos no carro e lá fora o Tião falou: - Mas o cara é otário pra caramba, né. O cara mostrou até as entradas, onde é que é mais fácil pra nós entrarmos. Eu falei: - Fica quieto, Tião. Mas eu quase fiz uma cagada. Quase que eu ia dando risada. Ele falou: -Você não é doido. Subimos lá pra cima pra olhar qual era o melhor jeito de nós entrarmos nessa bixiga aqui. Aí, estamos voltando pra trás, chegamos lá e reunimos um pessoal. Oh, papapapapa, e é agora, é agora!., quem quiser ir é agora, quem não quiser ir, fica. Nós fizemos a assembléia. Reúne o pessoal aí que eu vou sair mais o Ezequiel e mais dois caras, que nós vamos na frente, nós temos outro serviço na frente pra fazer. O João Rebelo reuniu o pessoal, e os homens encostando e jogando as coisas dentro. Nós viemos aqui, chegamos e fechamos a ponte. Tomamos conta da ponte.(...) Foi entrando gente. Aí, foi de manhã cedinho, madrugada fomos lá eu e o Tião lá. (bate palmas). Na porta do cara, do gerente. – Quem é? Falou: - É eu. É um senhor aí e tal. – Ah, já vou indo aí. Aí ele falou assim, Tião falou assim: - Ói moço, o senhor não leva a mal não, mas compramos a fazenda hoje já. (risos). Compramos a fazenda aqui hoje já. Eu e ele aqui fechamos negócio. Já ocupamos a fazenda. - Ah, o senhor me enganou, quer dizer que...(risos).Os senhores dois me enganaram, disse que eram corretor e comprador. – Não, eu não tô comprando? Eu tô comprando e tô pagando. Já tá aqui o meu pessoal aqui. E o meu pessoal vai tudo acampar aqui, agora. O fazendeiro não quer vender? – Quer, né. Então, nós vamos comprar.(...). Aqui é problema entre nós e o fazendeiro. Tudo bem. Em poucas horas chega o fazendeiro. Nós já cercamos ele. Ele: - Vamos lá na minha sede. Ah, mas você poderia ter entrado em contato comigo, não podia fazer isso. – Se nós entrássemos em 113

contato com você, cê ia avisar a polícia. Não senhor, ocupamos, e daqui ninguém sai. O senhor vai resolver. Ou vai negociar dum jeito, ou vai negociar de outro.(...) – Não vai ter confusão, não vai ter nada. Eu quero negociar mesmo, isso aqui e tal... – Então fica na tua. Então fica esperto. Aqui ninguém vai ter medo de você nem nada, e nem vai ter medo de polícia não, e nem vai abaixar a cabeça pra ninguém. Aí, apertamos ele ali, e o filho da puta deu até coisa pra nós. Aqui foi um processo fácil, não foi um processo difícil.”(Ezequiel, 19/12/2005). Na narrativa contada por Ezequiel, surge uma nova imagem de um “grande fazendeiro semterra” quando Tião se passa por comprador e Ezequiel por corretor. Como o fazendeiro falecido, o “fazendeiro sem-terra” gosta de andar pelas terras da fazenda que vai comprar, de conhecer toda a imensidão, todas as entradas. Em N11, o evento narrado relaciona três elementos fundamentais: fazendeiro, cavalo e fazenda. Por meio do cavalo, o fazendeiro anda por toda sua fazenda, “ele andava tudo isso aqui com o cavalo. Saía com os outros e andava por essas matas”. O riso que Ezequiel tenta segurar enquanto Tião se passa por fazendeiro comprador é muito parecido com o riso dos assentados em N10 ao rirem da mulher que senta na cadeira do “fantasma fazendeiro”. Como comenta J. Dawsey sobre o conceito de experiência em V.Turner, em tempos e espaços liminares, experiências que articulam elementos residuais da história podem ser fundantes (2006, :165). Montagens que estabeleçam relações inesperadas entre fragmentos distantes podem colaborar para decompor estruturas, gerando efeitos lúdicos, “o riso faz estremecer as duras superfícies da vida social” (:idem). Distantes do acampamento, os militantes passam-se por corretor e fazendeiro comprador, articulando todo um modo de falar e agir de um fazendeiro. Todas as características do fazendeiro que vão sendo mobilizadas para garantir a veracidade à imitação do fazendeiro vão construindo no corpo e nos gestos dos militantes a pessoa de um fazendeiro. A fala “amanhã mesmo eu compro” pode ter tido o efeito de demonstrar a decisão, a certeza de que era um grande fazendeiro quem falava, alguém com dinheiro suficiente para comprar uma fazenda sem pechinchar, amanhã mesmo. Também a fala “traga o cafezinho aqui fora que a gente toma aqui fora mesmo” pode sugerir proximidade entre o fazendeiro e o gerente, já que o suposto comprador toma café em qualquer lugar, não precisa entrar na casa. Quando Jaci conta que pedia o dinheiro dos remédios ao antigo fazendeiro, diz que ele tirava do bolso e dava, sem descontar do seu salário. O patrão bom é o patrão próximo, que “tira do próprio bolso”, ao mesmo tempo em que o grande fazendeiro é aquele que compra amanhã mesmo a fazenda. Para M.Mauss, em sua análise sobre os Pueblos, a noção de pessoa constitui-se “pela máscara, por seu título, sua posição, seu papel, sua propriedade, sua sobrevivência e seu reaparecimento na terra num de seus descendentes dotados das mesmas posições, prenomes, títulos, direitos e funções” 114

(2003b, :375). Em N11, o cavalo pode ser visto como o meio, o instrumento que permite ao fazendeiro entrar em conjunção com o atributo máximo de sua pessoa, a fazenda, e apropriar-se dela em sua totalidade. Ser dono de uma fazenda é a característica que define o ser do fazendeiro. Mas a pessoa do fazendeiro, com todo o poder de que está revestida, deve ser compreendida por ele e reconhecida pelos outros. Daí a importância de “andar com os outros”, “tirar do bolso para ajudar”, “comprar a fazenda amanhã mesmo” para legitimar a posse e o poder do papel de fazendeiro. A narrativa 11, ao combinar os elementos: fazendeiro, cavalo, fazenda e acompanhantes, enfatiza a eficácia simbólica42 conseguida pelo fazendeiro quando andava por sua fazenda. Em N10, quando a assentada se senta numa cadeira diferente, que já pertencia à casa, e fica presa, o grupo atribui significados intimamente relacionados com sua trajetória política. É como se a assentada na “cadeira do fazendeiro” revestisse sua personalidade com atributos marcantes à pessoa desse estranho outro, o fazendeiro. Por fim, os militantes Tião e Ezequiel, que agem como se fossem fazendeiro comprador e corretor, vão aos poucos manipulando os atributos da pessoa e do comportamento esperados de um grande fazendeiro. A cadeira, o cavalo, o gerente e o dinheiro são meios do fazendeiro entrar em conjunção com a fazenda e com as características que definem sua pessoa. Aproximar-se disso permite compreender as fontes que alimentam o poder dessa figura, o fazendeiro. O desfecho da imitação de fazendeiro feita por Tião e Ezequiel provocou profundas mudanças na história do grupo que já estava acampado há dois anos sem conseguir encontrar um latifúndio improdutivo, passível de ocupação e que pudesse ser desapropriado logo. Para conseguirem tal feito, precisaram fazer algo muito parecido com o que M. Bakhtin (1987) percebe nos carnavais da Idade Média e que V.Turner (1984) percebe em rituais dos Ndembu, ou seja, realizar uma troca entre superior e inferior hierárquicos. De modo cômico, no final da narrativa de Ezequiel, o fazendeiro vira sem-terra, pois perde sua fazenda para os sem-terra que passam a possuir as terras. Por meio do riso e da imitação, Ezequiel e Tião compreendem o que é ser fazendeiro quando se revestem dos atributos da pessoa desse. A paródia de negociação, uma enganação do gerente, transforma-se em negociação no dia seguinte, quando o próprio fazendeiro se faz presente. Ezequiel diz em tom sério para o fazendeiro: “Aqui ninguém vai ter medo de você nem nada, e nem vai ter medo de polícia não, e nem vai abaixar a cabeça pra ninguém. Aí ele, apertamos ele ali, e o filho da puta deu até coisa pra nós”. Pela brincadeira e pela imitação, naquele momento o riso que 42

Baseio-me no conceito de eficácia simbólica pensado por C.Levi-Strauss para interpretar a cura xamânica, para o autor “(...) é a eficácia simbólica que garante a harmonia do paralelismo entre mito e operações. E mito e operações formam um par, onde se encontra sempre a dualidade do doente e do médico.”(2003a, :232).

115

Ezequiel prendera transformou-se em ausência de medo do fazendeiro e da polícia. Ao brincarem com o que é temível (: 79), os militantes foram vencendo o medo da violência da polícia, o medo moral do fazendeiro (abaixar a cabeça) e conquistando uma vitória, ainda que momentânea, contra a opressão e a violência. Por meio da paródia, os militantes conseguiram agir “como” e depois agir “contra” o fazendeiro. Em contraste, o fazendeiro das histórias de assombração também é capaz de desmontar as imagens dos latifundiários, tais como aparecem em discursos do movimento. O cumprimento do fazendeiro a uma sem-terra (N1), a insistência do pai fazendeiro em plantar na fazenda (N6), o fantasma que corta a cercas (N7), que zela pelo lugar da família (N8), mostram uma imagem de fazendeiro próxima àquela dos pais sem- terra. Penso que, por meio da narrativa de Everson e de outros narradores, busque-se uma aproximação, com a imagem do fazendeiro para agirem não só contra o fazendeiro, mas também contra os atributos de sua pessoa que podem estar presentes entre os próprios sem- terras, seja através dos “vícios que o capitalismo deixa” de João Rebelo, do “pensar só no bolso” de Ezequiel, do “fantasma que rouba a comunidade” de N7, do “medo de seu Salvador manda” de Ramiro ou da “grande fazendeira sem-terra” de N10 e da “coronela sem-terra”. Referir-se a tal fantasma como apegado à família e ao trabalho mostra a tentativa de combater tais atributos (mando, autoridade, etc.) através da aproximação entre as imagens do fazendeiro e dos sem-terra. Desse modo, a imagem do “fantasma fazendeiro” torna-se rica em ambigüidades e contradições e ilumina também a complexidade de ser sem- terra. As narrativas dos assentados, ao tecerem relações inesperadas entre fragmentos distantes, compõem imagens tensas. É possível inferir que o princípio que guia tais composições seja o da montagem, como exposto por M.Taussig: “Montagem: cenas ´interiores` de pontos e traços coloridos e de fantasmas, indo e vindo, cenas de morte, acima de tudo fragmentos de coisas...tudo isso se metamorfoseia em imagens evocadas pela memória, o ´tempo-agora` do Jetztzeiten, onde o tempo permanece imóvel, como uma imagem em direção à qual o passado e o futuro convergem explosivamente.”( 1987, :413). Por fim, gostaria de pensar sobre as figuras de dois importantes militantes que se aproximam dos atributos da pessoa do fazendeiro nessas montagens, Martina e Tião. No primeiro caso, quando a regional passava por um momento de crise e mudança, Martina defende seu ponto de vista de que os militantes deveriam ir para os acampamentos com autoridade e dureza. Começa a ser chamada de “coronela”. Sua postura acaba por afastar os jovens militantes da regional, o que culmina no 116

próprio fim da regional. Por outro lado, quando o acampamento passava por um momento de crise, pessoas desistindo da luta, Tião é chamado para tentar encontrar uma solução para o impasse de não haver fazendas que pudessem ser ocupadas e rapidamente desapropriadas. Com o companheiro Ezequiel, Tião encontra uma fazenda que está à venda. Com autoridade, segurança e certeza fala com o gerente, imitando um fazendeiro comprador. Isso permite que ambos consigam coordenar a ocupação. No momento final, Tião e Ezequiel reafirmam suas identidades de sem-terra em oposição ao fazendeiro e conseguem combatê-lo. O contraste entre essas duas formas de atuação das lideranças também pode ser visto como o contraste entre dois modos de aproximar-se das características centrais atribuídas à pessoa do fazendeiro. Tião e Ezequiel aproximam-se de tais atributos guardando sempre o riso em segredo e, assim, a consciência de serem sem-terras imitando um fazendeiro. Mas, ao mesmo tempo, distanciam-se da imagem de sem-terra. De certo modo, na atuação e ocupação, o fazendeiro faz-se sem-terra. Tal ambigüidade está também presente na imagem do “fantasma fazendeiro” que perdeu suas terras para os sem-terra. O choque mostra como é difícil dizer o que é um sem-terra e, também, o que é um fazendeiro. No retorno a seus papéis de militantes, Tião e Ezequiel guardam o riso, adquirido por terem imitado um fazendeiro comprador, e por isso sem a terra, e terem enganado o fazendeiro, proprietário de terras. Ambos descontroem caricaturas do que é um sem-terra e do que é um fazendeiro. Por outro lado, Martina, por carregar os atributos da autoridade e da rigidez, é vista como “coronela”. Negando o diálogo com os jovens, a militante leva-os ao afastamento da regional e, conseqüentemente, à sua desarticulação. Do ponto de visa dos assentados, a militante é associada à caricatura de um fazendeiro, coronel. Entretanto, sua imagem de “coronela sem-terra” diz também da dificuldade de ser sem-terra. Militantes que têm de coordenar, decidir, julgar acabam cumprindo difíceis papéis, onde a autoridade e mando se fazem presentes na imagem dos sem-terra. Se um fazendeiro pode assemelhar-se à caricatura de um sem-terra (pai de família, trabalhador, etc.), nessa imagem, uma sem-terra pode assemelhar-se à caricatura de fazendeiro (autoridade, mando, masculinidade, etc.). Os sem-terra podem agir como fazendeiros e esses como os sem-terra. Por meio dessas montagens, através da imagem do “fantasma fazendeiro”, os narradores iam mostrando a difícil e contraditória experiência de ser sem-terra.

117

N12 - Morar na Sede “O Nilton, filho da Jaci, pediu pra mora lá na sede, mas a filha do Aldo já tinha dito que iria. Passou até abaixo-assinado. O pessoal aqui pra cima não gosta muito do marido dela. É um mal encarado. Cruz credo ir morar lá. Diz que tem o tal do fantasma lá. De certo essa fazenda é muito antiga, e tem coisas muito estranhas mesmo. O pai do Eliseo, lá do bar, é que conta que conhece tudo aqui. Ele tem noventa e poucos anos. Diz que tinha uma árvore aí onde amarravam uma corda e matavam os negros. Diz que antes tudo aqui era uma só fazenda. Aqui e na da Nara. Lá tem mil e duzentos hectares e aqui quatrocentos hectares. Tem uma parte que é só eucalipto, que tá arrendada pro Antônio Ermírio de Moraes, pra empresa Suzano. Diz que tudo o que tem de eucalipto é dele.” (Celestina, 28/02/2005). Essa narrativa surgiu de uma conversa que tive com dona Celestina, que me hospedava, enquanto ela preparava o café. Esposa de Solano e mãe de Esmeralda, Celestina saiu do Paraná com seu marido para tentar a vida na cidade de São Paulo. Morou na periferia de Santo André e depois no Jardim Elba, favela da zona leste de São Paulo. Engajou-se com a família no movimento para tentar mudar de vida, devido à violência e ao envolvimento dos filhos com o tráfico e com a criminalidade. Sempre participou das reuniões e encontros do movimento, ao qual atribui o mérito por terem conquistado um de “pedaço de chão” e a tranqüilidade. Seu irmão também estava presente, esperando seu café da manhã. Vestindo uma camiseta rosa da Minnie, calça de moletom e chinelos, essa senhora ia lidando com o leite, o café e o cuscuz no fogo, enquanto falava, de modo um pouco indignado, da disputa dos filhos de assentados para morar na sede, um lugar que tem fantasma, e que não deveria ser morada de ninguém. Justificou sua preocupação em tom de desabafo, lembrando-se das palavras de um velho de noventa anos que conheceu a fazenda no tempo dos escravos. Seu irmão, sentado, confirmava o que ela falava “é isso mesmo”, “tá certo”. Ela falava com convicção, apesar de trazer um sorriso na boca. Concentrada em seu fogão a lenha, ia contando-me com ar sério. Em sua narrativa, ao falar da disputa entre os filhos de assentados, a narradora evoca as imagens do fantasma fazendeiro, da árvore da morte dos negros, da fazenda aberta e unida, e da posse dos eucaliptos por um grande empresário. A mudança brusca de imagens evidencia um princípio de composição comum às narrativas, que tomam corpo como montagens pelos princípios da “interrupção, da súbita mudança de cena, que rompe com qualquer tentativa de ordenamento narrativo e que impede o sensacionalismo” (M.Taussig, 1987 - :411). Para iluminar os temas tratados por essa narrativa é necessário remetê-la a outras. Voltando a N9, N10 e N11, é possível perceber que cadeira de balanço e cavalo, além de serem meios de conjunção do fazendeiro com os atributos de sua pessoa, são também seus lugares de morte, ou de 118

passagem do grande fazendeiro para o fantasma fazendeiro: “Disse que o homem tinha morrido nessa cadeira” (N10) e “Tava andando com o cavalo na mata e morreu em cima do cavalo” (N11). Esses lugares de passagem da vida para morte caracterizam-se como extensões da própria pessoa do fazendeiro. Ele não sentava para descansar em qualquer cadeira, tinha a sua cadeira, assim como não cavalgava em qualquer cavalo, tinha o seu cavalo branco e bonito. A posse é dada pela predileção por um objeto. Soma-se a essa posse a continuidade que estes objetos têm com relação a seu dono e a condição de meios de acesso à sua personalidade. Em N8, Magno retrata a posse da sede pelo fantasma fazendeiro, comentando que ele tinha amor aos eucaliptos que foram destruídos pelos sem-terra, “Dizem que o homem tinha amor àquela casa e aos eucaliptos. O pessoal foi lá e arrancaram tudo os eucaliptos do homem. Sei lá! Só sei que eu não consigo entender”. Nesse evento narrado (N12), a disputa da casa por parte dos filhos de assentados envolve certo risco para eles: “Cruz credo ir morar lá. Diz que tem o tal do fantasma lá”. A assentada, ao mencionar a possibilidade de alguém morar lá, evoca a proteção religiosa (cruz credo) para protegêla do fantasma. Pode-se perceber que o casarão da sede da fazenda, assim como a cadeira, os eucaliptos e a casa, constituem meios que definem a pessoa do fazendeiro e também foram seus cenários de morte. Os filhos de assentados brigam entre si por utilizarem individualmente algo que, por um lado, pertence ao fantasma fazendeiro e, por outro, pertence ao coletivo dos assentados. A narrativa de dona Celestina é evocativa também do medo da divisão e da disputa entre sem- terra assentados, já que nela dois filho de assentados brigam. Esmeralda comenta que no período em que se deu o conflito pela divisão dos lotes do assentamento, muitos dos participantes do grupo de jovens começaram a não participar mais do grupo, pois tomaram para si a briga dos pais. Esmeralda fala: “Teve uma vez que a gente largou a assembléia e foi embora. E foi aí que os jovens começaram a entrar na briga dos pais também. Começaram a fazer desavença também, aí acabou, e começaram uns a ir embora, os outros a casar e paravam de participar. Aí, a briga deles já era outra coisa, né, não era o grupo de jovens mais. Sempre fazia, fazia, fazia as coisas e o pessoal reclamava”( Esmeralda, 07/07/2004). A disputa dos pais é incorporada também pelos filhos que começam a brigar entre si, e a não participar mais (ou do mesmo jeito) do grupo de jovens. A divisão das famílias dos sem-terra teve,

119

para assentados que pertenciam a grupos diferentes, um mesmo pivô, “os vícios que o capitalismo deixa” e o “INCRA que chega igual Silvio Santos dividindo a massa”. Nas palavras de João Rebelo: “E aí foi quando começou a despertar, na verdade, os vícios das pessoas. O vício que o Capitalismo deixa nas pessoas. O individualismo, o egoísmo, o cara já começa a pensar nele só, não pensa mais no outro. Então, começa toda a problemática a partir daí... Nós já passamos uns meio aqui meio brabo, né Lia. Nossa Senhora, complicado... Briga, o assentamento dividido, as famílias divididas. Uma maioria pra lá e uma minoria pra cá.” ( João Rebelo e Lia, 19/12/2004). Durante o período de acampamentos e ocupações estavam adormecidos os vícios do capitalismo: egoísmo e individualismo. Opostos às virtudes do altruísmo e do coletivismo almejadas pelo discurso do “Coletivão” do qual João Rebelo fazia parte, os vícios do egoísmo e do individualismo despertaram no momento da divisão dos lotes. O INCRA, por não querer construir a agrovila, teria dividido o grupo dos sem-terra com o dinheiro, como um Silvio Santos, nas palavras de Ramiro, membro e liderança do “Grupão”: “Então, eu falei pra eles muitas vezes: - Olha, enquanto nós não detivermos o conhecimento, esse tecnicismo do INCRA vai engolir nós politicamente. E foi isso que aconteceu.(...) Eles chegam no meio da massa, igual ao Silvio Santos, quem quer dinheiro, aí ninguém mais se entende.(...) Cê só conquista se você se prepara. E pra manter, se não tiver preparado se lascou.” (Ramiro, 21/12/2004) O INCRA é o órgão do governo federal incumbido da tarefa de realizar a topografia da fazenda, homologar as famílias, realizar a divisão dos lotes e repassar as verbas dos programas de fomento. É tido, na fala de Ramiro, como o principal agente da divisão dos sem-terra, valendo-se do dinheiro (programas de fomento) para suscitar tal divisão. O INCRA “engole” os sem-terra politicamente por deter o “conhecimento”, o tecnicismo. Com isso, dividem a massa dos sem-terra, antes unida e fortemente consolidada após a conquista das terras contra o fazendeiro. O INCRA torna-se o “promotor da discórdia” entre os sem-terra e, conseqüentemente, faz despertarem os vícios deixados pelo capitalismo, o egoísmo e o individualismo, incapacitando os sem-terra de pensar nos valores do altruísmo e do coletivismo no momento da divisão dos lotes. A antiga sede da fazenda que faria parte do projeto da Agrovila e da Cooperativa foi destinada ao uso coletivo dos assentados para o lazer, reuniões, festas, atividades culturais, etc. Mas houve sempre grande dificuldade dos assentados em tornarem o local da sede um local realmente apropriado pelo coletivo. As reuniões com o INCRA e com o ITESP, no entanto, continuam a ser realizadas na sede, numa das casas que recebeu o nome de plenária. Nos dias de reunião marcada 120

com o INCRA, os assentados vão à sede e ficam esperando a chegada do carro com o técnico responsável pela supervisão do assentamento. No final do ano de 2005, uma nova supervisora do INCRA chegava ao assentamento. O órgão, que há muito não marcava reuniões, começou a realizar encontros mensais. Um novo projeto de fomento, para realizar o término das casas, ia ser repassado para os assentados. Entretanto, a notícia, recebida por muitos com alegria, foi interpretada por outros como exclusão. Os moradores da “vilinha” talvez não fossem contemplados com o dinheiro do fomento, pois não havia sido autorizada a construção de uma agrovila no assentamento. O contrato de assentamento assinado pelos sem-terra previa que cada um deixaria a agrovila anterior e construiria a sua casa separadamente, em cada lote. Embora a “vilinha” tenha sido construída com a autorização de técnicos do INCRA da gestão anterior, a agrovila tratava-se de uma irregularidade que seria sancionada com a não autorização do recebimento do fomento pelos moradores da “vilinha”. A imagem de Selma começou a gerar inúmeras reações por parte tanto de moradores da “vilinha”, quanto de outros assentados indignados com o caso. Quando falavam da supervisora, chamavam-na de “coronela”, para quem teriam que “pedir a benção”, “vaca” e “praga”. A ironia de alguns antes da reunião tornou-se o comportamento de outros na reunião. Muitos assentados dirigiam-se a ela com delicadeza, convidavam-na para ir às suas casas, ofereciam cafezinho, queijo. Alguns dos que ofereciam coisas a ela antes também haviam xingado a supervisora. Dias antes, quando Ezequiel comentava o caso da “vilinha”, disse: “A gente vive aqui meio como escravo do INCRA, sem poder decidir sobre o que é nosso mesmo” (cad.camp.19/12/2005). Em N12, ao falar do conflito entre os filhos de assentados por morarem na sede, a assentada evoca a imagem dos negros, escravos do fazendeiro, que morriam no tronco. Para falar dos conflitos entre os assentados pelo fomento do INCRA, muitos chamam a supervisora de “coronela”, e Ezequiel vale-se também da imagem “escravos do INCRA” para comentar o caso do não recebimento de verbas da “vilinha”. Múltiplas imagens vinculam-se ao órgão estatal, percebido como “coronel”, “senhor de escravos” e “Silvio Santos”. Por outro lado, evoca-se a imagem dos escravos para uma autodefinição perante o INCRA. As terras e os sem-terras pertencem ao INCRA, que tem o poder de decidir sobre como gerir o assentamento. Na narrativa 12, a imagem aparece quando dona Celestina, tentando entender a questão do fantasma, diz que a fazenda era antiga e estranha. Lembra-se, então, do que contava um senhor que testemunhou a história da fazenda. Esse contava sobre o tronco onde se amarravam os negros para matá-los, e que antes a fazenda era unida. A imagem dos negros mortos na árvore coloca-se como contraponto à imagem do fantasma da sede. De forma semelhante, a imagem do INCRA choca-se com a dos sem-terra. Penso que tais questões 121

se expressam também em N4, onde os objetos de tortura e a senzala dos escravos sinalizam seus lugares de sofrimento e morte, ao mesmo tempo em que remetem ao poder dos senhores de torturar e matar seus trabalhadores. Estabelecendo o contraste no direito romano entre o escravo e o cidadão, M.Mauss aponta que o escravo “não tem personalidade, não possui seu corpo, não tem antepassados, nome, cognomen, bens próprios”(2003b, :389), ao passo que o homem livre tem a posse de seu corpo, de sua consciência, de seus bens e de seus nomes. Se N9 e N10 permitem dizer que o espaço de morte do fazendeiro foi a casa, N12 sinaliza a árvore como sendo o lugar de morte dos negros. Uma árvore específica, única, destinada a prender os escravos na sua hora de morte já havia sido mencionada por N5, quando Dalva conta sobre escravos que aparecem próximos a uma árvore da mata, onde amarravam os escravos para bater neles e matá-los. As marcas de suas mortes vão adjetivando a árvore como “o lugar de matar negros”. Se a sede, os eucaliptos (N8) e a cadeira de balanço (N9 e N10) pertencem ao fazendeiro, mesmo após sua morte, por serem objetos de sua predileção e meios de manifestação de sua pessoa, em relação aos escravos ocorre uma inversão. O senhor que fala da fazenda não conta sobre os negros através de seus pertences, mas por meio da árvore onde um coletivo de escravos fora assassinado. Da mesma forma, as narrativas sobre os escravos contam sobre a morte de um coletivo de escravos, referindo-se a sinais, e marcas que se caracterizam por serem objetos ou lugares aos quais os escravos são remetidos. A mata cemitério (N1), os morros e “catumbas” (N2), as valas (N3), a senzala e objetos de tortura (N4), e a árvore (N5) remetem à morte dos escravos e à sua presença depois de mortos. Os negros/ escravos adjetivam seu lugar de morte com seu trabalho, com seu sofrimento e com suas mortes violentas. Por outro lado, o cavalo, a cadeira e a casa adjetivam o grande fazendeiro. Desse modo, é possível inferir que os lugares de morte do fazendeiro pertencem a ele individualmente, e que ao lugar de morte pertencem os escravos, coletivamente. Quando a narradora, em tom de desabafo, apresenta a figura dos escravos mortos na árvore, aproxima esta imagem da dos filhos de assentados, mostrando o risco do retorno ao cativeiro, como nas narrativas da primeira parte. Retomando a questão dos conflitos entre assentados, penso que a fala de Ezequiel, ao referir-se aos assentados como “escravos do INCRA”, também proceda de modo parecido ao da narrativa de Celestina. Face à nova divisão dos assentados pelo fomento do INCRA, Ezequiel junta imagens distantes: sem-terra e escravo, INCRA e coronel. Em N12, o poder e o medo da imagem do fantasma fazendeiro são grandes, a ponto de cessar a briga dos filhos. Uma interpretação possível seria pensar que, na fazenda do poderoso fazendeiro, os negros pertenciam a ele e morriam na árvore (N5 e N12). Suas mortes aos poucos iam adjetivando a árvore e, mesmo ao morrer, os 122

escravos pertenciam a um objeto do fazendeiro, a “árvore de matar negros”. A casa pertence individualmente ao fazendeiro, mesmo após sua morte. Divididos, e brigando pelo uso da sede individualmente, os filhos devem ter medo da punição do “fantasma fazendeiro”. Se, juntos, os sem-terra conseguiram ocupar e conquistar as terras da Fazenda Monjolo, divididos e brigando pelo fomento individualmente, os sem-terra são frágeis escravos da vontade do INCRA, “sem poder decidir sobre o que é deles mesmos”, e vulneráveis em face do “fantasma fazendeiro”. Incorporando palavras de W.Benjamin: “O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela.”(1940, :224). Essa talvez fosse a intenção de Xica quando denunciou que a senzala era a delegacia, e que na cidade havia casas de antigos senhores (N4). Uma história que enfoca o sofrimento dos escravos e não as glórias dos senhores talvez fosse sua meta. Mas a divisão do grupo torna difícil aos assentados se apropriarem de sua própria história de luta política para contraporem-se ao Estado e a uma história gloriosa dos antigos senhores que vivem nos casarões da cidade, na delegacia senzala, nos livros da história da cidade, nos descendentes latifundiários e pessoas que ocupam cargos públicos.

123

7

A RIQUEZA DO FAZENDEIRO

Tesouro Enterrado N13 – Assassinato no Morro Vermelho “Dizem que naquele morro vermelho ali, tá vendo?, foi enterrado o ouro de um fazendeiro. Fazendeiro não, Senhor que é como chamavam antigamente. O senhor mandou que os escravos cavassem um buraco bem fundo. Eram uns vinte escravos. Quando terminaram de esconder o ouro, o senhor matou todos os vinte escravos, para garantir que ninguém saberia onde estava o ouro. Os escravos foram enterrados no morro. Já tiveram até uns pesquisadores aí fazendo escavação. Diz que essa história é verdadeira mesmo.”(Everson, 25/12/2004). A narrativa acima foi contada por Everson no mesmo evento em que foi contada N11. Nessas duas narrativas ele explora aspectos do fazendeiro enquanto vivo, situando o momento de passagem da vida para a morte em N11 e a maldade do fazendeiro em N13, ressaltando a passagem da vida à morte dos escravos pelas mãos do fazendeiro. Nessa narrativa os vinte escravos que enterravam o ouro do fazendeiro são assassinados pelo senhor (fazendeiro), e enterrados junto ao 124

ouro. A narrativa explicita as oposições entre fazendeiro e escravos, morte matada e morte morrida. A diferença que aparece nas narrativas entre negros assassinados e fazendeiro que morre velho é comparável à diferença teórica apresentada por J.S. Martins (1983) em seu trabalho sobre “A morte e o morto”. Refletindo sobre práticas comuns a camponeses e às “classes subalternas”, J.S. Martins propõe a diferenciação entre “morte antes do tempo” (assassinato, acidente ou doença em jovens) e “morte no tempo” (pela velhice). Aqui o fazendeiro é senhor da vida e da morte dos escravos. Para proteger seu ouro, mata os vinte escravos e os enterra no morro. O buraco do ouro faz-se cenário para a passagem da vida à morte pelos escravos. Desse modo, se N11 tematiza a morte do fazendeiro, N13 enfatiza a morte dos escravos. No evento narrativo, o narrador faz uso de pausas como “Pára! Deus me livre e guarde!”, com as quais pede que Deus o proteja, que feche os caminhos das assombrações e da maldade que há nelas. Tal postura de pedir proteção também pode ser percebida em N8, quando Magno pede proteção “Credo, Deus do Céu”, no “Cruz credo ir morar lá”, de dona Celestina (N12). Em todos os narradores há uma certa evitação da sede pelo medo que sentem, o que implica que o acesso à sede é, de certo modo, fechado pela assombração. A oposição aberto/fechado torna-se chave para a compreensão dos atos do fazendeiro em N13 e da postura de evitação e pedidos de proteção por parte dos narradores. Em N1, a morte dos escravos leva ao fechamento da fazenda e à presença do fazendeiro fantasma que cumprimenta a assentada. Já a morte dos escravos em N13 leva ao fechamento de outro bem do fazendeiro, seu ouro. Nesse caso, o fechamento do ouro permite ao fazendeiro continuar vivo e rico. Quanto à sede, a recorrente evitação da casa do fazendeiro garante que, mesmo depois de morto, seu fantasma continue habitando o lugar. Vivos, os sem-terra ausentam-se da sede, ocorre também um fechamento da casa aos vivos, o que permite a presença de um morto. Logo, é possível fazer a seguinte associação: se a união dos sem-terra levou à perda da terra por um fazendeiro, sua divisão e ausência de convívio na área coletiva deixam aberto o espaço para o morto. Dessa reflexão pode-se inferir que os espaços fechados aos vivos se abrem aos mortos. Retomando o momento em que se deu a briga pela divisão dos lotes, João Rebelo e Lia contam na entrevista que havia uma proposta defendida por membros do “Grupão” de destruírem todas as casas da sede e os barracões para que tudo, até as telhas e tijolos, fosse dividido entre os sem-terras. No extremo oposto, encontrava-se a proposta de que nada fosse dividido, as terras e todas as casas e instalações da antiga fazenda seriam de uso coletivo dos assentados. As opiniões distintas da união total e da divisão total disputaram a adesão da maioria nas assembléias, onde se consolidou um clima de ameaças e violência, como contou Esmeralda. Por um lado, havia o medo da consolidação 125

do “Coletivão” e dos assentados terem de obedecer ao mando das lideranças do assentamento. Por outro lado, havia o medo de, com a divisão dos lotes, o “Grupão” impor ao assentamento a vontade de seus articuladores e do INCRA, também contrário à coletivização. O medo do mando faz-se presente tanto na imagem da “grande fazendeira sem-terra”, quanto nas imagens da “coronela do INCRA” e dos “sem-terra escravos do INCRA”. Do ponto de vista de um grupo de assentados, os militantes mais diretamente ligados ao MST e o próprio movimento encarnam os atributos de autoridade do fazendeiro. Da perspectiva de outra parte, os assentados mais vinculados à proposta de divisão dos lotes estão também mais próximos do INCRA, do Estado e dos atributos de autoridade do fazendeiro. Nesse sentido, o não poder “decidir sobre o que é nosso mesmo” (Ezequiel), ou seja, não poder decidir sobre o que fazer e como gerir a terra, os lotes, o espaço destinado ao uso comum, a sede, evoca a imagem dos escravos que pertencem a um senhor. O “medo do mando”, presente tanto em propostas de coletivização quanto de individualização, lega aos assentados um sentimento de impossibilidade de posse da terra, direito adquirido por sua luta política conjunta. Discutindo a potencialidade crítica da proposta Surrealista, W. Benjamin dirá que a postura desse movimento se traduz em um pessimismo integral que traria a: “(...) desconfiança acerca do destino da literatura, desconfiança acerca do destino da liberdade, desconfiança acerca do destino da humanidade européia, e principalmente desconfiança, desconfiança e desconfiança com relação a qualquer forma de entendimento mútuo: entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos.”(1929, :34). Suponho que o “medo do mando”, percebido no INCRA e nas lideranças, tenha ganhado ares de uma “organização do pessimismo”. Entretanto, tal despertar crítico não culminou num fortalecimento do coletivo, numa “autocrítica” que fortaleceria o desenvolvimento dialético da consciência de classe, como buscaria o ponto de vista de G.Lukács (2003b). Esse medo sentido no momento da divisão dos lotes levou os assentados a defender propostas antagônicas que levaram à cisão do coletivo. Nas narrativas surge a imagem do fazendeiro que detém grande poder e dispõe da vida de seus escravos para fechar e proteger seu ouro, ou manter sua fazenda. Tal imagem é evocativa do medo de lideranças e agentes do governo que envolvem suas personalidades com os atributos de autoridade do fazendeiro, podendo levar à destruição das conquistas adquiridas com a luta pela terra. Talvez fosse isso o que Ramiro expressou com a fala sobre o assentamento estar virando uma “favela rural”, impregnando seu discurso de um sentimento forte de decadência.

126

N14- Ouro na sede? “Às vezes isso é alguma coisa ali na sede, não sei. E se for o velho que enterrou algum dinheiro lá e tá querendo doar pra gente, que venha logo e dá logo, né...A casa é dele, não é? Precisa ficar rodeando assim?.” (Dania, 16/12/2004). É muito interessante a semelhança que há entre N13 e N14. Novamente o fazendeiro, o velho é associado ao ouro. Agora, ele mesmo enterra o ouro perto de sua casa. Como sugere dona Dania, ele não consegue desfazer-se desse ouro, não doa para os vivos, para os sem-terra e, por isso, fica rodeando a casa. Quem lança a pergunta é a própria narradora: “A casa é dele não é? Precisa ficar rodeando assim?”. Supõe-se a possibilidade de que o fantasma tenha enterrado dinheiro e estar querendo doá-lo aos vivos, mas, por não conseguir, fica rodeando a casa, guardando esse dinheiro. Para a realização da entrevista, dona Dania convidou-me para almoçar em sua casa. A entrevista realizou-se enquanto ela preparava o almoço com sua nora, Janaína. Aos poucos, a família toda foi chegando e participando também da entrevista. Almoçamos arroz, feijão, couve refogada e carne de porco frita, comida “tipicamente mineira” como disse a narradora. Como outros narradores, Dania mantinha uma postura séria ao contar as narrativas N14 e N15. Em alguns momentos de maior tensão, gargalhava. O tom de dúvida mostrava-se também nessa narrativa, que apresenta o enterro do dinheiro e a impossibilidade de doação aos sem-terra como uma hipótese para o velho ficar rodeando a sede. De todo modo, o riso tenso e a incerteza sobre o que se está narrando vão aos poucos desenhando as marcas expressivas no rosto dos narradores. Há narradores que não acreditam na assombração e, por isso mesmo, contam histórias para lançar medo e dúvida em seus ouvintes, que riem de modo tenso. Há também aqueles narradores que afirmam ter testemunhado a aparição do fantasma. Esses últimos contam com a certeza do testemunho expresso em seus rostos e cativando em seus ouvintes um riso tenso. Por fim, há narradores, como dona Dania, que não contam testemunhos, mas, valendo-se de elementos da história da fazenda, elaboram comentários e hipóteses sobre a assombração. Faz-se comum a todos esses tipos de narrador comporem um evento narrativo que vai sendo tecido em meio a uma tensão crescente que não se alivia, a um problema apresentado para que os ouvintes riam e/ou temam. Dania nasceu no interior de Minas, no sertão. Sua família era muito pobre e vivia em meio à seca e à falta de trabalho. Mudaram-se muitas vezes, até que, quando ela já era adolescente, foram morar em Andradina, região oeste do estado de São Paulo, pois tinham família e trabalho lá. Em Andradina, casou-se com o senhor Adão, com o qual teve três filhos. Os pais de seu Adão participaram da luta pela terra durante o período da ditadura, e hoje moram num assentamento em 127

Sumaré. Seu Adão arrumou trabalho numa fábrica em Campinas. Dona Dania, os filhos e mais alguns parentes foram viver em Campinas. Depois de anos a fábrica faliu. Sem trabalho e sem dinheiro, dona Dania e seu Adão decidiram participar da ocupação do movimento na região próxima a Itapetininga. Mudaram-se com os filhos, e foram reviver a luta do pai e da mãe de seu Adão. Dona Dania tornou-se coordenadora de grupo no acampamento e uma das principais lideranças. No episódio da divisão dos lotes, dona Dania foi uma das responsáveis pela idéia da divisão do dinheiro do fomento entre os acampados. Hoje, ela é uma das acusadas de ter recebido o dinheiro das famílias que foram assentadas em outras regiões e de não ter repassado o dinheiro. Em N7, Deodato vincula a imagem do “fazendeiro fantasma” à daqueles que roubam as coisas da comunidade. Desse modo, o “fazendeiro fantasma” e “os sem-terra que roubam a comunidade” são vistos como ladrões e individualistas, em oposição aos coletivistas e não ladrões. A narrativa 8 mostra a imagem de um fantasma fazendeiro que perseguia os sem- terra pela destruição do bosque de eucaliptos que embelezava sua sede e que tanto ele amava. Da mesma forma que o uso da cadeira (N10) e da casa deveriam estar interditados, por pertencerem à assombração mesmo depois de sua morte, também os eucaliptos não deveriam ter sido destruídos, pois não pertenciam aos semterra. Por fim, em N14, o tema do fazendeiro que enterrou dinheiro e não quer dá-lo aos sem-terra retoma o tema da troca, presente em muitas narrativas. Em seu “Ensaio sobre a dádiva”, ao refletir sobre o sistema de prestações totais que envolve as trocas rituais entre os Maori, M.Mauss afirma: “Compreende-se logicamente, que nesse sistema de idéias seja preciso retribuir a outrem o que na verdade é parcela de sua natureza e substância; pois aceitar alguma coisa de alguém é aceitar algo de sua essência espiritual, de sua alma; a conservação dessa coisa seria perigosa e mortal, e não simplesmente porque seria ilícita, mas também porque essa coisa que vem da pessoa, não apenas moralmente, mas física e espiritualmente, essa essência, esse alimento, esses bens, móveis ou imóveis, essas mulheres ou esses descendentes, esses ritos ou essas comunhões, têm poder mágico sobre nós. Enfim, a coisa dada não é inerte. Animada, geralmente individualizada, ela tende a retornar ao que Hertz chamava seu ‘lar de origem’, ou a produzir, para o clã e o solo do qual surgiu, um equivalente que a substitua.”(2003c, :200). Em N14, dona Dania fala “E se for o velho que enterrou algum dinheiro lá e tá querendo doar pra gente”. Há em sua fala a suposição de que o fantasma fazendeiro quer doar o dinheiro enterrado aos sem-terra. A posse da casa pelo “fantasma fazendeiro” é reafirmada na fala que sugere a não 128

necessidade da assombração ficar rodeando algo que pertence a ele. Se, como pode ser percebido, casa, cadeira, fazenda, bosque e dinheiro enterrado se constituem como sendo pertences do fazendeiro envoltos de atributos fundamentais à sua personalidade. E se, além disso, esses objetos foram legados aos sem- terra, quando deveriam ter sido herdados pela própria família do falecido fazendeiro, surge um problema quanto à transmissão dos bens, quanto à troca. Assim, em N7 e N8 os narradores refletem sobre a imagem do “fantasma fazendeiro”, vinculando-a ao roubo, mas também ao pai de família. No primeiro caso, o fazendeiro é “os peões que roubam as coisas da comunidade”, ou seja, é sinônimo da apropriação individual e indevida, imoral, que lesa o patrimônio da própria “comunidade”. No segundo caso, o “fantasma fazendeiro”, dono do bosque, vê as árvores serem destruídas e apropriadas pelos sem-terras. Ao mesmo tempo, a imagem do fantasma que corta as cercas (N7), que zela pelo lugar da família (N8) e que trabalhava e plantava em sua fazenda (N6), revelam um fazendeiro que não conseguiu manter sua fazenda enquanto território produtivo e de descendência. Pensando com M.Sahlins, é possível perceber tais relações estabelecidas entre o fazendeiro e os sem-terra sob o signo de uma reciprocidade negativa, enquanto obtenção de algo por nada, impunemente e com a maximização do interesse daquele que obtém algo de outrem. Seria esse o tipo mais impessoal de reciprocidade, troca efetuada com alguém distante das relações de parentesco, um estranho, alguém de fora ou desconhecido (1978, :195 - :196). De um grupo de sem-terras conhecidos, que lutaram juntos pelo bem comum, a terra, alguns se distanciam, como estranhos, se ocultam na noite e estabelecem a reciprocidade negativa com o coletivo do qual fazem parte, roubando e destruindo espaços e objetos comuns. Tomam a face do fazendeiro, inimigo comum e distante das famílias de sem-terra. De modo diferente, o coletivo dos sem-terra que “rouba os eucaliptos do fazendeiro” é visto como distante dos atributos do pai que zela por sua família. Na imagem do fazendeiro pai, parece haver uma proximidade com relação aos pais sem-terra que permitiria certa reciprocidade entre ambos. Creio que essa aproximação é o que abre a possibilidade do fazendeiro doar seu dinheiro enterrado aos sem-terra, como alguém que acumulou riqueza e a redistribui àqueles que necessitam. Entretanto, o “guardião do bosque” preservava a beleza da sede para o uso coletivo dos assentados. Esses se utilizavam dos bens individuais de lazer de um fazendeiro, destinando-os ao uso coletivo. Nas palavras de Ezequiel: “Ia ser um centro de formação nacional, ia ser uma coisa linda, cara. Se tu tivesse vindo aqui naquelas épocas, tu ia ver o que era essa sede, cara. Tu ia ver, e hoje se tu chegasse e visse ia falar:- Creio em Deus padre”. A preservação da sede estava ligada à possibilidade de realizar sonhos e esperanças também quanto à troca com o movimento. Transformar o assentamento em um centro de formação nacional implicava em transformá-lo num 129

espaço de grande importância no cenário político do MST. Receber militantes do Brasil inteiro também significava a possibilidade de continuar militando, dos filhos poderem tornar-se militantes, lutarem contra os “vícios que o capitalismo deixa”, estar na mídia como nos tempos de acampamento, tomar parte na “construção de um projeto de futuro” (Ezequiel). Esses sonhos e esperanças, presentes de modo tão forte no período de acampamento e tão afirmados no riso e na festa da emissão de posse, eram também sentidos pela liderança do acampamento. O projeto da agrovila, como conta Salvador, ia transformar o assentamento em modelo de realização dos princípios do movimento. “Foi tudo meio complicado isso ai. Porque no tempo de acampamento, ninguém conhece ninguém. Se divide o povo que tem, todo mundo divide, mas quando conseguimos um pedaço de terra...a gente tinha plano aqui de muitas coisas. Desde o início a gente tinha plano aqui de montar uma agrovila. Quando a gente teve a emissão de posse, a gente saiu do lugar que tava acampado, dividiu aquela parte do João Rebelo, que sai do lote do Ramiro. Dividiu em lotes pequenos. E todo mundo foi morar nos lotinhos. E a idéia era fazer ali uma agrovila. Nós tínhamos tudo pra fazer uma agrovila ali com menos custo. Quando saiu o lote, quarenta e um lotes, aquela parte de lá de baixo virou lote. O INCRA também não queria a agrovila. Em compensação saíram ali na sede dois hectares de terra. A sede e dois hectares de toco. Quando lá virou lote, a gente fez uma disputa pra pegar um lote ali. Perto da sede, pra fazer a agrovila, oito hectares de terra. É a terra ali onde tá o Samuel hoje. E não aprovaram. Tinha umas arquitetas de São Paulo que tavam fazendo um trabalho aqui de conclusão dos estudos delas. E eu sei que elas iam levar esse negócio pra Coréia. Levaram esse trabalho que elas fizeram aqui e tinha mais de trezentos países lá que tavam concorrendo. E em contrapartida disso elas resolveram ajudar a gente a montar a agrovila.. Conseguiram prensa pra prensar tijolo... Conseguiram trazer aqui o presidente dos cimenteiros do Brasil inteiro e ele ia doar o cimento pra gente fazer as casas. Elas iam tentar conseguir toda a infraestrutura da agrovila. Fazer com rua mesmo, com espaço, com praça, tudo como manda o figurino. Com rede elétrica, água.... Elas iam conseguir tudo isso pra gente montar tudo e deixar tudo que precisasse aqui. Então, elas tavam trabalhando com essa possibilidade. A gente já tinha feito análise da terra aqui,...Aí, veio a parte da topografia pra dividir os lotes. Foi de sorteio a divisão dos lotes. Inclusive essa parte aqui ficou para a Coralina. O sorteio foi mal feito. Deu muita briga esse sorteio.”(Salvador, 02/03/05) O assentamento modelo tinha um projeto desenvolvido por arquitetas de São Paulo. O projeto foi premiado na Coréia. Tudo ia ser produzido coletivamente para a construção da Agrovila, onde morariam todos juntos. A sede seria o centro de cultura e lazer da vida coletiva, fonte também da renovação contínua dos laços com o MST. Naquele momento, a sede e sua beleza, heranças do vencido fazendeiro, articulavam-se às esperanças e aos sonhos de uma renovação contínua dos atributos pessoais que recobrem a identidade do “ser sem-terra”. Em algumas casas, quando contavam sobre a sede, os assentados iam buscar fotos tiradas da sede nos anos de 1998 e 1999, quando se deu o conflito pelas diferentes propostas. Essas fotos demonstravam a beleza da sede 130

naquela época. O casarão era retratado sempre em meio aos eucaliptos, por vezes sem pessoas. Outras vezes, os assentados buscavam fotografar a sede onde aconteciam encontros do movimento, missas, batizados, peças de teatro, místicas. A sede estava revestida daquilo que W. Benjamin denomina “aura”. Diz o autor: “Em suma, o que é aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho” (1936, :170). Às sombras dos eucaliptos do bosque da sede, o grupo de militantes mais vinculado aos ideais de coletivização defendidos pelo movimento percebia a sede como um espaço de trocas contínuas com o MST que revitalizasse continuamente a personalidade de “liderança sem-terra” e o poder que nela está investida. A preservação do bem precioso do fazendeiro, sua sede, e de toda sua beleza, era reciprocamente a preservação e fortalecimento da personalidade dos sem-terra militantes vinculados a ideais de coletivização. Com as brigas entre o “Grupão” e o “Coletivão” toda essa aura que revestia o conjunto da sede entrou em decadência. A destruição do bosque, descrita como um roubo, uma injustiça por Magno, foi a destruição de um sonho e de todas as esperanças de um grupo que convergiam para a sede. A troca que havia entre a sede – fonte da personalidade e memória do fazendeiro- e a sede – fonte da personalidade e glória dos militantes- caracterizava uma reciprocidade generalizada (M.Sahlins,1978), onde coisas diferentes e com diferentes valores eram dadas, recebidas e retribuídas. Com o corte e divisão dos eucaliptos, uma reciprocidade negativa entre os sem-terra e o fazendeiro tomou o lugar dessa reciprocidade generalizada que unia o fazendeiro, os assentados e o MST. A troca existia enquanto os sem-terra preservavam um patrimônio individual para uso coletivo, e o fazendeiro legava algo de seu uso individual ao uso coletivo. Portanto, a troca indivíduo !coletivo ! indivíduo - mantinha a beleza de um bem que carregava os atributos da pessoa do fazendeiro morto. O acúmulo e centralização que antes o fazendeiro detinha permitem essa redistribuição para o coletivo dos sem-terra. Quando tal troca se transforma em: indivíduo! indivíduos, o equilíbrio é interrompido, pois destruiu-se a essência da troca: uso coletivo "! preservação dos atributos pessoais. Destruída a beleza do espaço do fazendeiro, destrói-se também a história desse fazendeiro.

131

Também em N12, a divisão dos filhos de assentados e a busca pela apropriação individual de um bem coletivo, a casa, é percebida por dona Celestina como sendo algo perigoso. Por fim, N13 e N14 situam um novo problema, o de um fazendeiro que não transmite, mas esconde na terra sua riqueza. Em N13, o fazendeiro apropriando-se individualmente do ouro, impede o roubo, a apropriação de sua riqueza pelo grupo de escravos. Já em N14, o “fantasma fazendeiro” fica rondando e impede que os sem-terra apropriem-se de seu dinheiro. Ele não doa aos sem-terra. Entretanto, a riqueza que está na terra, perto da sede, configura-se como uma troca em potencial com o fazendeiro, já que ele não “doa logo”, mas pode doar um dia. A narradora de N14 e outras lideranças, que coordenaram os acampados no momento da decisão da divisão do dinheiro do fomento que seria recebido pelas 41 famílias homologadas entre todas as famílias acampadas, são percebidas como pessoas que se apropriaram individualmente do dinheiro e não o deixaram regressar aos seus donos. Assim, se as 41 famílias doaram parte do dinheiro dado pelo Estado às famílias não homologadas, a retribuição desse dinheiro teria sido impedida pela liderança, incumbida da redistribuição. O “medo do seu Salvador manda, do João Rebelo manda”, na fala de Ramiro, consolida-se numa postura de abertura recorrente de boletins de ocorrência contra as ex-lideranças, envolvendo o convívio cotidiano de um clima de tensão, medo e ódio. O declínio da “aura da sede”, enquanto centro da agrovila e da vida coletiva e ligada ao MST, é ao mesmo tempo, o declínio das bases que revestiam a autoridade das lideranças. A instauração de uma espécie de reciprocidade negativa entre os assentados por meio dos boletins de ocorrência assemelha-se à reciprocidade negativa entre sem-terras e o “fantasma fazendeiro”. Conflitos entre ex-membros do “Coletivão” e do “Grupão” são continuamente reeditados. A polícia, juizes, promotores e advogados, imagens marcadas pelo medo e violência antes da ocupação, tornam-se mediadores nesses conflitos entre os sem-terra que são traduzidos na letra da lei. A linguagem da “justiça” passou a ser acessada freqüentemente para mediar as crescentes trocas de desafetos entre os assentados. Se, antes, a polícia inimiga era sinônimo de violência, o que leva à suspeita de Aldo no dia da notícia da emissão de posse, agora ela se transforma em mediadora num espaço de conflitos correntes entre os sem-terra. Acredito que o ouro entesourado pelo fazendeiro e o fato dele não conseguir doá-lo tenha a ver com as mudanças nas relações caracterizadas pela reciprocidade generalizada que se transformam, aos poucos, em relações de reciprocidade negativa (M.Sahlins, 1978). O dinheiro que os sem-terra não homologados receberam e que não pode ser retribuído devido às novas regras de financiamento do INCRA, que paga direto aos fornecedores, é vivido como uma traição da militância que não teria redistribuído a retribuição, maximizando seus ganhos individuais em detrimento dos outros. O 132

“declínio da aura da sede” marca o declínio da autoridade moral das lideranças e do movimento, e a reciprocidade negativa com a pessoa espacializada do fazendeiro morto. Por fim, a divisão do coletivo de assentados levou também a uma espécie de mudança na forma das trocas. O INCRA, que teria fomentado a divisão, segundo os relatos, teria também interferido nas trocas de opiniões e na deliberação das assembléias. Com o conflito, ameaças de morte, insultos e desafetos passam a ser trocados entre os dois grupos, o que mingua as trocas amistosas de um coletivo de sem-terras que se viam como próximos e instaura a reciprocidade negativa entre segmentos dos sem-terra distantes entre si. No ano de 2005, caminhando em direção à sede, ouvi um grupo de ex-militantes cantar antigas músicas do acampamento, palavras de ordem e assobiarem o hino do MST. Eles limpavam a sede para a realização do encontro final do curso “Fé e Política”, organizado pelo centro pastoral Santa Fé, vinculado ao movimento. Algumas reformas foram financiadas pela pastoral, para que alguns dos encontros fossem realizados na sede. O vínculo com o MST, cada vez mais tênue, tomava uma nova força com a ajuda da pastoral. Ouvia-se: “- Carlos Lamarca! Presente. Na luta com a gente!, Pátria Livre, venceremos!”, misturados ao som das vassouras e enxadas que iam deixando a sede bela novamente para a realização do encontro e para a manutenção do vínculo político.

O Fazendeiro e os Sem-Terra

N15- Venda da Fazenda? “O velho, o velho odiava sem-terra! E ele acabou de morrer os filhos... nós tomamos conta daqui, os filhos venderam, contra a vontade, porque enquanto ele era vivo não vendeu. Será que as pessoas voltam do túmulo pra ficar...na nossa bíblia, na nossa religião não permite esse tipo de coisa, de pensamento. Aí, fica aquela dúvida. As pessoas às vezes morrem odiando uma coisa e quando acontece pode ser que elas tenham a licença de... mas pelo que eu...pelo que é até bíblico que as pessoas morrem e dormem no leito da terra... E aí? Se tá do lado de Deus ou se tá do lado do demônio. Eu acho se essas pessoas que não cumprem sua determinação ficam vagando aí... Eu vejo as pessoas, mas é pessoal isso aí. Biblicamente, religiosamente não, não existe, então eu não gosto nem de falar muito...”(Dania, 16/12/2004). Com N15, surge a figura de um velho fazendeiro que não queria se desfazer da fazenda, nunca a vendeu, e não queria que ela fosse vendida. Soma-se a isso o ódio que tinha dos sem-terra, “o velho odiava sem-terra”. Contra sua vontade, os sem-terra tomaram conta da fazenda. Contra sua vontade, 133

os filhos venderam a fazenda. Contraditoriamente, os sem-terra odiados “tomaram conta da fazenda” após a venda. Houve, portanto, uma dupla traição de seus próprios filhos. Essa traição realizou-se no momento em que ele passou da vida para a morte. A fazenda, transformada em mercadoria, foi desapropriada pelo Estado. Indenizando os proprietários, o governo federal pôde não só repassar as terras aos sem- terras que ocuparam a fazenda, mas também desenvolver o programa de reforma agrária43. O coletivo dos sem-terra que recebem a emissão de posse decide dividir as terras em lotes individuais para serem trabalhados pelas famílias. O Estado, entretanto, continua a deter o direito de propriedade sobre as terras por dez anos e, por meio do INCRA, supervisiona o modo como os assentados gerem suas terras. Caso cometam irregularidades como a venda ou o arrendamento a não assentados, o INCRA pode reaver o direito de posse do assentado que cometeu a ilegalidade44. A narrativa acima versa sobre a questão da transação total que permitiu que a posse da fazenda fosse passada das mãos do fazendeiro aos sem-terra. No entanto, trata-se de uma sem-terra, exliderança do acampamento, tentando entender a transação do ponto de vista de um morto, o fazendeiro. Como nas imagens do “fantasma fazendeiro que é os peões que roubam as coisas da comunidade” (N7), do “fazendeiro roubado pelos sem-terra” (N8), da “sem-terra grande fazendeira” (N10), do “fantasma que enterrou dinheiro e não consegue doar aos sem-terra” (N14), a narradora busca aproximar-se do “fazendeiro fantasma” e de seus atributos pessoais para entender a transação que permitiu aos sem-terra “tomar conta” da fazenda45.

43

Na Constituição Federal consta que: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;. XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição. XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento” (Constituição Federal, 1988). 44

De acordo com a legislação, os títulos com cláusulas resolutivas têm prazo de dez anos para tornarem-se títulos definitivos. Isso assegura que após tal período o assentado será emancipado e receberá a escritura do lote, passando a ser proprietário de acordo com a lei. Uma série de regras prescrevem como deve ser o uso que o assentado poderá ter do lote durante esse período. Caso haja irregularidades, o INCRA pode reaver o lote. Como consta na Constituição Federal, “Art. 189. Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos. Parágrafo único. O título de domínio e a concessão de uso serão confe-ridos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil, nos termos e condições previstos em lei.”(Constituição Federal, 1988). 45

Como mostra M.E.Miranda, “Os assentamentos rurais são uma criação do Estado, na medida em que são implantados por meio de um programa de políticas públicas do Estado e regulamentados pelo Estatuto da Terra e pelas demais legislações. Eles têm o objetivo de atender às políticas de cunho socioeconômico de redistribuição de terras, e a eles são destinados recursos especiais para fomento à atividade agropecuária a ser desempenhada. Essas medidas do Estado são regulamentadas por um corpo de normas jurídicas, constituídas por dispositivos constitucionais, pelo Estatuto da Terra, por decretos e pelas leis que os regulamentam. Tais medidas têm sido acionadas pelo Estado como meios de contenção de conflitos fundiários em seus momentos de recrudescimento. Geralmente

134

A troca total envolveu quatro agentes e três momentos diferentes que serão analisados a seguir. Num primeiro momento, o fazendeiro, ao morrer, legou sua fazenda a seus filhos. A fazenda, até então produtiva (gado em N15 e plantações em N6), foi aos poucos tendo sua produção reduzida e transformando-se numa propriedade destinada à venda, e à especulação imobiliária. Anos se passaram até que a fazenda improdutiva fosse ocupada pelos “sem-terra”. O governo federal, após vistoriar as terras, atesta a improdutividade da fazenda e decide indenizar os proprietários para destinar a propriedade aos sem-terra e realizar a reforma agrária. Esse seria o momento da segunda troca, a venda da fazenda ao Estado. Um terceiro momento, marcado pela troca entre o Estado e proprietários que destina as terras aos sem-terra, termina a transação46. Como pôde ser percebido com a análise de N14, grande parte das narrativas sobre o “fantasma da sede” tematizam relações de reciprocidade negativa. Nessa grande transação que culminou com a posse das terras pelos sem-terra há também esse tipo de troca. O pai fazendeiro não queria vender a fazenda. Essa atitude manifesta um valor do pai, manter a fazenda e transmiti-la aos filhos pela herança. Essa herança permitiu ao pai fazendeiro herdar as terras de seus ancestrais, antigos senhores de escravos (N12 e N13), e preservar sua história. A intenção em manter a terra como território de descendência marca uma relação de reciprocidade equilibrada (balanced reciprocity) entre gerações de parentesco. O pai fazendeiro vendia o gado que criava nas terras (Jaci), ou a produção de milho, arroz e algodão (N6), mas não vendeu as terras. Os filhos, por sua vez, contra a vontade do pai, venderam a fazenda. Nas palavras de dona Dania: “E ele acabou de morrer os filhos... nós tomamos conta daqui, os filhos venderam, contra a vontade, porque enquanto ele era vivo não vendeu.”. Há, nesse caso, uma troca tradicional que cede lugar à troca mercantil. Pensando com M.Sahlins, a impessoalidade da troca mercantil com o Estado, onde as partes buscam a maximização de seus interesses, dotam tal troca de características “mais econômicas”, designando uma reciprocidade negativa (1978, :195). Sendo a palavra fazendeiro um substantivo que tem impregnado em seu próprio significado a idéia de posse de propriedade, é possível afirmar que os filhos, ao venderem a fazenda, venderam a uma série de conflitos no campo e um debate político nos meios urbanos antecedem o anúncio do ‘pacote’ de medidas.”(2003d, :191). 46

Como consta do capítulo III da Constituição Federal : “Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.”(Constituição Federal, 1988).

135

principal característica do pai, ser fazendeiro. Toda uma ligação com os ancestrais, seus valores e a história da família foi transformada. Os atributos da pessoa do pai fazendeiro espacializado nas terras de sua fazenda e nas benfeitorias, legadas aos filhos, foram transferidos ao Estado pela venda e, posteriormente, aos sem-terra. Vende-se o atributo maior da pessoa do fazendeiro, sua fazenda. Vendida a fazenda é como se o pai e todos os atributos de sua pessoa de fazendeiro fossem vendidos junto, a estranhos odiados. Quando a fazenda é transformada em mercadoria e transmitida por meio do mercado aos compradores, rompe-se o tipo de troca tradicional legitimado pelo direito de herança e estabelece-se a reciprocidade entre extremos opostos e distantes. Na luta pela terra, os sem- terra encontram na imagem distante do fazendeiro a face do inimigo comum, enquanto o fazendeiro (N15) se nutre do ódio aos sem-terra. Para K.Marx a troca no mercado dos produtos do trabalho humano, no Capitalismo, é marcada pelo fetichismo da mercadoria. Nas palavras do autor, “Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos que recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isso de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias.”(1971, :81). Pensando com K.Marx, para metamorfosear a fazenda, bem tradicional e não passível de troca mercantil, em mercadoria, todas as características daquele que detinha a propriedade, o fazendeiro, foram postas de lado. Despida das qualidades do pai, da história familiar e da produção, a fazenda passou a equivaler a outras propriedades destinadas à especulação imobiliária, e que se tornam alvo de interesse tanto de outros fazendeiros, quanto do Estado e do MST para a realização da reforma agrária. Durante os dois anos de acampamento e ocupações, os sem-terra de Itapetininga teceram uma história coletiva de combate contra o latifúndio improdutivo, a lentidão da reforma agrária, tentando fazer valer seus direitos de aquisição de terras improdutivas. Do ponto de vista do MST, na troca a ser realizada com o Estado, os sem-terra receberiam a terra e a assistência do Estado para produzirem coletivamente, e continuarem a constituir sua história comum. Por outro lado, o Estado faria as terras improdutivas tornarem-se produtivas, diminuiria a desigualdade social na região, 136

acalmaria os conflitos agrários e ocupações na região e aumentaria o número de propriedades desapropriadas para fins de reforma agrária, podendo utilizar isso como propaganda posteriormente. Acredito que, do ponto de vista dos assentados, a troca não se traduza em termos de uma troca de mercado, mas de direitos adquiridos por um coletivo de sem-terras em troca de maior reconhecimento da legitimidade do Estado. Entretanto, a emissão de posse favorece alguns semterra em detrimento de outros, o dinheiro do fomento retira a legitimidade da liderança perante o grupo, e o Estado, por meio dos técnicos do INCRA, posiciona-se contra a Agrovila e o trabalho cooperado, que permitiriam ao grupo continuar sua história de modo coletivo e vinculado ao MST. O Estado, por meio da compra, adquire a propriedade da fazenda e repassa a posse somente após a divisão conflituosa do grupo. O contrato é assinado e prevê que os assentados viverão separados em seus lotes. Divididos, trabalharão suas terras herdando a tensão e violência dos momentos que levaram à separação. Se a força do grupo dos sem-terra estava na construção de uma luta coletiva contra o latifúndio improdutivo e pela realização da reforma agrária, divididos e isolados, tendo apenas a posse das terras conquistadas, os sem-terra tornam-se frágeis indivíduos na reivindicação de seus direitos, ainda necessários para que consigam produzir em seus lotes individuais. M. Taussig procura demonstrar como a constituição do mercado envolve a interação entre duas formas de fetiche, o fetiche advindo de relações de troca tradicionais, pensadas por M.Mauss, e o fetiche da mercadoria pensado por K.Marx (:124, 125). Para o autor: “the former (Mauss) type of fetishism derives from the antiquated notion of reciprocity, the metaphysical depths of which are suggested by Mauss and the keynote of which lies in the unity felt to exist between persons and things that they produce and exchange. The latter (Marx) type of fetishism, commodity fetishism, derives from the alienation between persons and the things that they produce and exchange. Codified in law as much as in everyday practice, this alienation results in the phenomenology of the commodity as a self-enclosed entity, dominant over its creators, and alive with its own power”(1980, :124). No presente caso, o fetiche da troca tradicional pela herança permitiria ao fazendeiro misturar-se à sua fazenda e ter os atributos de sua personalidade transmitidos aos filhos. Nas mãos dos filhos, a fazenda transforma-se em mercadoria, aliena-se dela a pessoa do fazendeiro falecido, e ela passa a valorizar-se pela equivalência a outras propriedades no mercado imobiliário. Por outro lado, os sem-terra receberiam a fazenda como resultado de sua luta coletiva para que pudessem continuar sua trajetória coletivamente. Na troca com o Estado, os sem-terra, plenos atores políticos 137

constituídos pela luta por terra e reforma agrária, misturariam os atributos de sua pessoa à terra conquistada. Como ressalta J.S.Martins quanto aos movimentos camponeses: “A intensidade do conflito social, a luta das classes subalternas contra seus opressores econômicos e políticos, é maior onde a memória é mais viva, onde o próprio capitalismo se faz presente nas escalas mais simples de mercantilização das relações sociais. O fato de que as grandes lutas sociais desse século, em diferentes regiões do mundo, tenham sido e continuem sendo lutas camponesas não é fruto do acaso...É fruto de obstinada e demorada contestação da forma assumida pela presença do capital na vida das populações rurais, combinada com uma intensificação sem limites da extração de excedentes econômicos, que nega e denuncia a igualdade formal aparente da troca mercantil.”(1983, :127). Se a construção de uma história coletiva foi o que constituiu a força e a legitimidade do acampamento Carlos Lamarca, a atuação do Estado, a divisão do grupo e a troca mercantil colaboraram para o enfraquecimento da força e da legitimidade. Como mostram os depoimentos dos entrevistados, o Estado atuou no sentido de dividir o grupo entre os que seriam e os que não seriam assentados e de incentivar a divisão das terras. Como conseqüência, realiza-se o fetiche da mercadoria quando a divisão das terras leva também à divisão dos sem-terra, que não conseguem mais se perceber como produtores coletivos de sua história. A relação entre coisas que oculta a relação entre pessoas separa a fazenda da pessoa do falecido fazendeiro, ao mesmo tempo em que separa os sem-terra de toda a trajetória de luta que constitui suas personalidades políticas. Na transação legal, o Estado e os sem-terra são vistos como compradores, os filhos e o fazendeiro como vendedores de uma mercadoria equivalente a outras, adquirindo, por isso, seu valor no mercado imobiliário. A transação total desenvolve-se através da transmissão por herança da fazenda, da venda da fazenda ao Estado e da concessão de posse a trabalhadores individuais. Nela, duas trocas não mercantis são frustradas. Por um lado, a transmissão da fazenda do pai aos filhos, na qual seriam transmitidos também os atributos da pessoa do fazendeiro. Por outro lado, a troca entre o Estado e um grupo dos sem-terra que, através das terras, continuariam a tecer sua história coletiva, fortalecendo-se como atores políticos. A transação mercantil esvazia e aliena os atores antagônicos de suas personalidades, situando-os com estranhos que procuram maximizar seus ganhos através dessa reciprocidade negativa. Aos olhos de dona Dania, a transação aparece como a venda da propriedade pelos filhos aos sem-terra que “tomaram conta”. A questão já havia sido colocada nesses termos em narrativas como 138

aquela em que Ezequiel e Tião se aproximam de atributos da pessoa de um fazendeiro comprador para conseguirem ocupar a fazenda e depois se mostrarem parte de um grupo forte e grande de “sem-terra compradores”. A gargalhada que Ezequiel dava ao contar a vitória da ocupação transforma-se em um riso tenso em N15, semelhante àquele de dona Celestina, Everson, Esmeralda e Edson. O ódio sentido pelo fazendeiro ao perceber que sua fazenda não foi legada aos seus herdeiros, mas sim aos sem-terra, pode ter feito o fazendeiro voltar do túmulo e ficar assombrando os sem-terra. O medo do “fazendeiro fantasma”, que gera tensão no riso dos narradores, é o medo de um fazendeiro pai que produzia em suas terras e que foi traído (N15) e roubado (N8) numa troca mercantil que aniquilou as fontes de sua personalidade. Por outro lado, a tensão surge no riso em eventos narrativos como N7, N9, N13 e N14, em que os sem-terra são aproximados a características do fazendeiro, tais como o “individualismo” que gera o roubo N7, a autoridade e poder que geram a “fazendeira sem-terra” de N9 e o “senhor de escravos” de N4 e N13. Mas tal gesto surge também nas imagens do fazendeiro que trabalha a terra (N6), que corta a cerca (N7) e que zela pelo lugar da família (N8), quando ocorre a aproximação dessa imagem àquela dos pais assentados. A recorrência do “riso tenso” e da incerteza sobre o fato narrado na maior parte das narrativas leva a crer que esse gesto constitui aquilo que R. Bauman designa “enquadramento performático” (performance frame). Seguindo sua definição, o riso tenso é um modo como a comunidade entende uma determinada seqüência de gestos e falas, enquanto um modo de comunicação distinto do fluxo de comportamento e experiência. A mudança no tom de voz, o falar mais baixo, o arregalar os olhos, o sorrir de modo tenso e a incerteza revelada sobre o fato narrado, são gestos importantes para que os ouvintes percebam a narrativa como um problema. Assim, os narradores compõem o “evento” como um segmento bem definido do fluxo de comportamento e experiência, destacandose desse fluxo por constituir um contexto de significados específico para a ação social (1977, :27). Creio que esses narradores não são nem o narrador tradicional descrito por W.Benjamin (1936), que, dotado de autoridade, transmite sua experiência, nem as pessoas que não conseguem narrar e trocar experiência. Os narradores com quem convivi situam-se entre ambos. Sua dúvida estranha tanto a autoridade do narrador, quanto a extinção dessa autoridade. Ao contar sobre assombrações, os narradores assombram-se e geram o assombro em seus ouvintes. Tal postura é semelhante àquela que W.Benjamin percebe no teatro épico de B.Brecht. Para W.Benjamin, “Quando o fluxo real da vida é represado, imobilizando-se, essa interrupção é vivida como se fosse um refluxo: o assombro é esse refluxo”(1931, :89). Temendo as tentativas de mando que os cercam, os narradores munemse de um olhar profundamente crítico. Através desse olhar, aproximam-se e distanciam-se do “fantasma fazendeiro”, do INCRA, do MST e de seus próprios companheiros de luta. 139

Se o riso de Aldo gera o distanciamento com relação aos atributos da pessoa do fazendeiro, o riso tenso desses narradores mostra essa aproximação entre atributos da pessoa dos sem-terra com os do fazendeiro. Por meio da tensão corporal, esse mesmo riso também descreve o assombro, o estranhamento dos narradores ao perceberem em si os atributos que compõem a pessoa e o poder do inimigo, e notarem no fantasma características do pai de família e do militante assentados. Essa consciência de si foi sendo tecida em meio aos conflitos que descobriram a violência, o ódio e o poder imposto pelo medo entre os próprios sem-terra. O riso tenso dos narradores nega e afirma a alegria de distanciar-se desse medo, ao mesmo tempo em que vê crescer o poder da “coronela do INCRA” e da polícia enquanto mediadores de conflitos entre os sem-terra. Ao terminar seu ensaio sobre os surrealistas, W.Benjamin chama a atenção para a necessidade de que as tensões revolucionárias se transformem em enervações corporais diz o autor: “Somente quando o corpo e o espaço de imagens se interpenetrarem, dentro dela, tão profundamente que todas as tensões revolucionárias se transformem em inervações do corpo coletivo, e todas as inervações do corpo coletivo se transformem em tensões revolucionárias; somente então terá a realidade conseguido superar-se, segundo a exigência do Manifesto Comunista. No momento, os surrealistas são os únicos que conseguiram compreender as palavras de ordem que o Manifesto nos transmite hoje. Cada um deles troca a mera gesticulação pelo quadrantes de um despertador, que soa durante sessenta segundos, cada minuto.”(1929, :35). Suponho ser possível estabelecer uma aproximação entre o riso tenso dos narradores do assentamento, ao contarem suas histórias de assombrações, e essa interpenetração do corpo e espaço de imagens em inervações do corpo coletivo. As histórias de assombração, enquanto iluminações profanas, encontram o mistério no cotidiano. Um coletivo de sem-terra, esfacelados pela aproximação e incorporação da autoridade, da violência e do medo tentam possuir a terra conquistada pela luta política e pelo trabalho na roça. Reconstituir suas personalidades na relação com a terra é reconstituir a vida que foi alienada. Ao mesmo tempo, emerge a imagem do inimigo sem corpo, o “fantasma do fazendeiro” que ronda a sede e as terras, tentando, quem sabe, reconstituir também sua personalidade. Como afirma J.S.Martins: “a cultura popular se liga melhor à escala de tempo dos próprios movimentos sociais, o tempo imediato, o tempo do visível. É, nesse sentido, mais adequada para explicar os 140

fenômenos, acontecimentos, desse tempo, que é o da escala do cotidiano, da sobrevivência, das conseqüências imediatas da opressão, da exploração, da injustiça. Nessa escala a injustiça não é separada do injusto, a exploração não está separada do explorador – a injustiça, a exploração não são, para os subalternos, teses ou princípios inevitáveis, mas problemas reais.”(1989:124). A aquisição das terras, vista como troca mercantil e a divisão dos assentados, submetem-nos a uma exploração e a uma injustiça invisível, um fazendeiro sem corpo, um riso tenso. O sentimento de ilegitimidade e de decadência vem à tona com a fragmentação da personalidade dos sem-terra, enquanto atores políticos. A alienação da pessoa do explorador, fazendeiro, desafia o olhar crítico dos assentados, que passam a enxergar a exploração e injustiça invisíveis na pessoa de um “fazendeiro fantasma”. O assombro da iluminação profana desvenda no corpo e na terra dos semterra os atributos que constituem a pessoa do fazendeiro, da autoridade, da violência e do medo, e revela na alma do fazendeiro características comuns aos pais assentados e a militantes. O arrepio e a gargalhada nutrem o corpo e os olhos de estilhaços de esperança.

141

Terceira Parte BOLAS DE LUZ E OURO ENCANTADO

142

Introdução A reciprocidade negativa na fazenda fechada situa a questão dos conflitos entre dois modos de fetiche (M. Taussig, 1980). Os filhos que vendem a fazenda do pai (N6 e N15) e a disputa da sede por filhos de assentados (N13) mostram a centralidade da família para compreender tanto as narrativas, quanto a história do assentamento. Adotando o ponto de vista de K.Woortman de que, para enfocar a ética camponesa, é necessário perceber as relações fundamentais entre as categorias de família, trabalho e liberdade (1990, :23),

acredito que, através das imagens de escravos,

fazendeiros e filhos, esses três temas centrais à “campesinidade” se fazem presentes. A questão da diferenciação e conflito entre famílias assentadas torna-se o ponto de partida dessa parte. No caso a seguir, a família de Célio e toda a família extensa em torno de sua mãe, Sinira, é antagonizada por um conjunto de famílias que se auto-denomina “comunidade”. Perceber como se dá esse processo de diferenciação e, ao mesmo tempo, como vai se revestindo das características de um confronto entre Bem e Mal, constitui um primeiro foco da análise. Num segundo momento, procura-se mostrar como, por meio das narrativas sobre bolas de luz e o ouro enterrado, questões centrais à constituição e diferenciação das famílias assentadas são elaboradas pelos narradores. Tomando como base a reflexão de C. R. Brandão (1994), procuro tecer comentários sobre o modo como os temas da morte e da vida emergem nas narrativas, estabelecendo uma espécie de “ética do outro”. Portanto, busco compreender, por um lado, os conflitos gerados a partir da constituição das famílias assentadas e, por outro lado, interpretar como reflexões sobre as visões de bolas de luz e do ouro encantado situam tais questões em outro plano, compondo, juntamente com os outros conjuntos de narrativas, especulações sobre a vida e a morte.

143

8

O INCRA e a “COMUNIDADE”

O INCRA e o Satanás Dias antes de acontecer uma importante reunião com o INCRA, em que seria decidida a legitimidade ou não da posse de um lote por Célio e sua família, eu realizava algumas entrevistas e visitas à casa de assentados. Na tarde do dia seis de dezembro uma tempestade impossibilitou-me de continuar a andança. Corri para o posto de saúde ao lado da sede para abrigar-me da chuva. Lá fiquei escrevendo em meu caderno de campo até que a chuva parasse. Pouco antes de começar o temporal, Lelo, filho de Alípio e Coralina, apareceu e começou a conversar comigo. Ele disse: “Eu quero abrir essa porta de ferro. Eu:- Não pode, só a médica tem a chave. Ele:- Eu vou destruir esse posto. Só gosto do posto de Sarapuí. Vou quebrar essa porta e quebrar tudo. Não gosto dessa médica. Quem fez esse postinho? Eu:- Foram os assentados. Ele:- Não, foi o INCRA. Eu odeio o INCRA, vou bater nesse INCRA. Eu:- Lelo, vai chover, olha as nuvens, melhor ir pra casa. Ele:- Eu vou matar essas nuvens. Quem fez essas nuvens? Eu: - Foi Deus. Ele:- Não, foi o INCRA, eu vou bater e matar essas nuvens. Elas são do Satanás. Eu vou ter os meus poderes e matar o Satanás. Jesus não, Jesus tem que amar. Essas terras são do Satanás, são todas terras do Satanás. Eu vou bater e bater, pisar e vou matar essas terras. Eu: - As

144

terras são do Satanás? Ele:- É, são tudo do INCRA essas terras é do Satanás. Eu odeio o Satanás. Se eu fosse forte, matava essas terras”. (Lelo47, 6/12/2005). Aos olhos de Lelo, o INCRA, órgão do governo federal encarregado das questões fundiárias48, materializa-se. Dotado de personalidade, corporalidade e vida, a instituição burocrática é vinculada a poderes malignos de criação. Foi o INCRA quem fez o postinho de saúde ruim, foi o INCRA quem fez as nuvens que traziam a tempestade. Além disso, as terras onde se constitui o assentamento pertencem ao INCRA e ao Satanás. Parceiros diabólicos, tudo o que criaram precisa ser destruído. Segundo o menino, se ele tivesse poderes e força destruiria o postinho, bateria e mataria as nuvens e pisaria e mataria as terras e o Satanás. Jesus, os assentados e o postinho de saúde de Sarapuí estão isentos de seu ódio, direcionado para tudo aquilo que o INCRA e o Satanás criaram e possuem. Acredito que o olhar de Lelo expresse muito do que os assentados, dias depois, não conseguiram dizer e expressar na reunião com a funcionária do INCRA. Selma começou a reunião dizendo: “Bom, hoje a pauta é sobre o lote em que está o Célio. Estou aqui com a papelada toda regular, mas parece que há probleminhas quanto a ele e eu vim ouvir a comunidade para que vocês decidam sobre o que será feito. Queria saber se tem alguém que tem alguma coisa contra o Célio?” (Selma, 21/12/2005). 47

Lelo tem 9 anos. Seus pais acabaram de passar para crentes e sua avó está com sérios problemas de saúde.

48

Como consta no site da instituição: “Contraditoriamente, logo no início o regime militar deu o primeiro passo para a realização da reforma agrária no país, editando o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 1964) e criando o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda), em substituição à Supra. Em 4 de novembro de 1966, o Decreto nº 59.456 instituiu o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária. Não saiu do papel. Em 9 de julho de 1970, o Decreto nº 1.110 criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), resultado da fusão do Ibra com o Inda (...)Em 29 de março de 1989 o Congresso Nacional recriou o Incra, rejeitando o decreto-lei que o extinguira, mas a falta de respaldo político e a pobreza orçamentária mantiveram a reforma agrária semiparalisada. A questão foi vinculada diretamente à Presidência da República com a criação, em 29 de abril de 1996, do Ministério Extraordinário de Política Fundiária, ao qual imediatamente se incorporou o Incra. Em 14 de janeiro de 2000, o Decreto nº 3.338, criou o Ministério do Desenvolvimento Agrário.”(http://www.incra.gov.br). O INCRA tem a incumbência de viabilizar os princípios que constam na Constituição Federal: “Art. 187 - a política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente: I - os instrumentos creditícios e fiscais; II - os preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização;III - o incentivo à pesquisa e à tecnologia; IV - a assistência técnica e extensão rural; V - o seguro agrícola; VI - o cooperativismo; VII - a eletrificação rural e irrigação; VIII - a habitação para o trabalhador rural.§ 1º Incluem-se no planejamento agrícola as atividades agroindustriais,agropecuárias, pesqueiras e florestais. § 2º Serão compatibilizadas as ações de política agrícola e de reforma agrária.” (Constituição Federal, 1988).

145

O silêncio foi geral. Célio e sua família não estavam presentes. Os assentados entreolhavam-se, estralavam os dedos, cruzavam os braços. Os “probleminhas” a que aludia Selma tinham se iniciado com a postura que esse filho de uma assentada teve no episódio da divisão dos lotes. Em assembléias, Célio e Ramiro, seu sogro, participavam do “Grupão” e faziam falas inflamadas contra as lideranças e as propostas do MST. Atuavam, nesse sentido, contra o possível “mando” das lideranças. Assim, muitos tinham conflitos com Célio, que é tido como um encrenqueiro, que deixa a mulher e a filha no lote e vai trabalhar em São Paulo. Pouco antes de começar a reunião, Ezequiel falava rindo: “A gente vai ter que pedir a benção da coronela”. Como a imagem que revela semelhanças entre o órgão e Satanás, a imagem da “coronela do INCRA”, evocada por Ezequiel, adjetivava negativamente o órgão49. Agora, através da figura de Selma, atributos de mando, paternidade, propriedade e intolerância são remetidos à instituição. Por outro lado, a aproximação entre o INCRA e o Satanás dota o primeiro das características de tudo aquilo que é mau, ruim e, por isso, deve ser combatido. Os assentados e Jesus são contrapostos antagonicamente ao INCRA e ao Satanás. O próprio pastor evangélico, ao referir-se metaforicamente à funcionária do órgão como sendo uma praga que ameaçava as famílias e a produção, já expressava o caráter negativo da atuação do órgão em termos bíblicos. Nos dias que se seguiram, ouvi comentários como “essa Selma é uma praga dos infernos” (Celestina), “êta mulherzinha ruim” (Everaldo), “ela é uma mal amada” (Everaldo). Solano, pouco antes de ir para a reunião, dizia que os assentados tinham que ir falar com: “aquela vaca do INCRA que não quer deixar vir o financiamento pra gente terminar nossas casas só por que moramos em agrovila e isso não está no contrato”. Solano refere-se à segunda parte do fomento de habitação que seria repassado aos assentados. Entretanto, a funcionária do INCRA disse que apenas famílias que estavam regulares o receberiam. Como as famílias de Solano e Salvador haviam construído suas casas longe de seus lotes e moravam em uma “vilinha”50, não receberiam a verba, pois tratava-se de uma irregularidade, já que no contrato de assentamento estava previsto que os assentados construiriam

49

Em seu estudo sobre os desafios jurídicos que envolvem a vida dos assentados, M.E.Miranda salienta que “(...) a relação jurídica dos assentados com a terra é desestimuladora de uma maior vinculação afetiva. Eles assinaram com o Incra um contrato de cessão de uso. Este contrato, segundo os procuradores do órgão, é uma posse mais do que precária. Eles têm a posse para o uso, ou seja, para o plantio. A União, por meio do Incra é a verdadeira proprietária, sendo ele o seu guardião. Melhor dizendo, os assentados são meros usufrutuários com uma série de regras a cumprir para continuar na posse do imóvel. Isto é altamente desestimulador para os assentados, que não se sentem verdadeiramente os donos da terra por não terem o domínio da mesma.”(2003d, :204). 50 M.E.Miranda afirma que “(...) a impessoalidade da lei, criada por legisladores ‘neutros’, encontra em seus executores uma certa ‘cumplicidade’ com os camponeses. Cumplicidade esta que é quebrada tão logo apareça a denúncia de irregularidade. Quando isto acontece, os assentados são duramente penalizados, até mesmo por irregularidades que não cometeram (...)” (2003d, :209).

146

suas casas em seus lotes. O risco de não conseguir o financiamento gerava certo repúdio quanto à funcionária e à instituição. Por meio desses comentários, a atuação do INCRA no assentamento como órgão mediador de questões da posse da terra e do auxílio à produção vai tomando a face da atuação do mal, do Satanás, da praga dos infernos e da animalidade. O embate entre os assentados e a instituição, e a insatisfação dos primeiros traduzem-se por meio de imagens evocativas da fé cristã, situando os confrontos como entre o Bem e o Mal. Acredito que o olhar que o menino Lelo e os assentados lançam para a instituição governamental seja semelhante ao ponto de vista de M. Taussig, quando se refere aos trabalhadores rurais do Vale Cauca : “To read things as though they were sacred texts, to fill them with the penetrating sadness of the loser and dejected outsider, projecting the distress that arises in the face of a political and historical nightmare...”(1980, :123). O Estado e sua representante são lançados no reino do sobrenatural e do Mal e, conseqüentemente, o ódio expressase criticamente. Nesse mesmo registro a questão da regularização do direito à posse de Célio e Tábata ao lote também tomava contornos de confronto entre uma “comunidade” de assentados bons e Célio, uma pessoa ruim, encrenqueira, criminosa, mau pai, marido, trabalhador e militante. Num dado momento, Alípio, que estava vermelho, ergueu a mão e falou de modo sério e tenso. Ele disse:

“Olha, eu sou contra ele ser assentado aqui com nós, porque ele nunca ficou em barraco de lona preta como nós, nunca lutou. E tem que ver se ele está na lista e se os documentos dele estão em ordem, se ele não tem antepassados criminais. O cara é uma onça, tem que puxar toda a capivara dele na polícia para ver se ele não tem nenhum problema.”(Alípio, 21/12/2005). Célio toma a face animalesca de uma onça com uma capivara na polícia, atestando todos os seus crimes. Só iria trazer problemas àqueles que lutaram em seus barracos de lona, trabalham a vida toda para manter suas famílias, e são pessoas boas, tementes a Deus. Com tais comentários, os assentados ali presentes desqualificavam Célio em tudo aquilo que era necessário para viver na “comunidade”. A fala de Alípio foi cortada por Selma que, referindo-se sempre às leis e códigos, afirmava a impropriedade do que “aquele senhor” dizia. Célio teria o direito ao trabalho digno e ao lote sem precisar ter passado pelo acampamento, pois era filho de uma assentada. Um comentário de Machado também personifica o órgão do governo:

147

“Eu quero ver se o INCRA vai ser INCRA mesmo depois pra vim tirar esses caras que só ficam arrumando problema pra comunidade. Que nem aquele outro lá que só sabe ficar fazendo B.O. contra a turma, contra quem quer trabalhar”.(Machado, 21/12/2005). Agora, a força, espécie de masculinidade do órgão, é questionada. A “comunidade” teria que arcar com as conseqüências da decisão, ela teria que ser forte para lidar com esses homens ruins, a quem o INCRA legitima a posse dos lotes. Na visão de muitos assentados, os B.O.s que “atrapalham a quem quer trabalhar” são feitos por assentados ligados à família de Sinira. Ramiro, Diógenes, Edinei e Célio seriam alguns que depuseram contra as ex-lideranças porque esses exlíderes não repassaram o dinheiro devolvido pelas famílias que não foram assentadas. Cortando novamente a fala do assentado, Selma lembrava o episódio em que jovens da lista de espera haviam acampado no lote de Alvina. Com a saída de Candelário, seu companheiro, do lote, esse passava por uma reavaliação do direito de posse. Para pressionar o órgão do governo, os jovens acamparam no lote. Assentados ligados a Sinira e aqueles mais próximos aos jovens resolveram intervir no caso. Os assentados “caíram na porrada”, como disseram, e com a briga um assentado ficou gravemente ferido, tendo de ser encaminhado para o hospital. A chegada da polícia levou à abertura de B.O.s51 contra os assentados que brigavam. Selma dizia, contrapondo-se à fala de Machado, que pais de família que faziam aquilo e que criavam filhos tão mal educados a ponto de cometerem tais atos também não eram “flor que se cheire”. Os B.O.s abertos contra esses pais e contra os filhos deporiam contra eles numa avaliação do INCRA. No evento da reunião, o silêncio dos assentados, a desqualificação de suas falas por argumentos jurídicos e os comentários que demonizavam o órgão mostram as dificuldades em lidar não só com a instituição burocrática, mas também de entender a deslegitimação que sofrem suas personalidades de pais e mães, trabalhadores (as), devotos (as), honestos (as)52. Ao adjetivarem Célio negativamente, os assentados afirmam suas personalidades positivamente. Selma atua então no sentido de vinculá-los aos B.O.s, à ignorância quanto à legislação, à má paternidade, buscando estabelecer um contraponto e legitimação da posse de Célio do lote. Penso que o silêncio, a saída antes do término e os comentários furiosos dos assentados após a reunião ocorram devido a essa 51

M.Justo analisou mais profundamente esses processos abertos entre os assentados. Como descreve, “Em 5/06/2002, um dos moradores do assentamento registrou na delegacia do município uma queixa contra ex-coordenadores do assentamento por estelionato. O conteúdo consiste no seguinte: as 22 famílias teriam recebido, no ano de 2001, o crédito de fomento e alimentação, mas os ex-coordenadores não repassaram o dinheiro para os queixosos. Segundo a advogada dos acusados, o delegado ouviu os intimados e mandou para a 1ª Vara Criminal. O caso foi arquivado sem ter denúncia.”(2005c, :168). Outros boletins de ocorrência foram abertos gerando um clima tenso entre os assentados. 52 M.Justo mostra também como esses conflitos judiciais expressam uma contraposição entre assentados que pretendem “ser camponeses”, trabalhadores com família e sítio produtivo, e aqueles que ‘sujam o movimento’, que são bêbados ou se envolvem em fazer queixas na polícia (2005c, :154).

148

deslegitimação de uma moral baseada na família, no trabalho, na religião e na liberdade. Essa moral se confronta a um outro sistema de regras e valores que considera Célio digno de ser assentado e de viver na “comunidade”. Como aponta K. Woortmann, “existem certas categorias comuns às sociedades camponesas em geral, como terra, família e trabalho. O importante, contudo, não é que sejam comuns...mas que sejam nucleares e, sobretudo, relacionadas, isto é, uma não existe sem a outra”(1990,:23). Ao defender o direito de Célio à posse da terra, Selma separa, aos olhos dos assentados, essas categorias. Segundo as falas, Célio não trabalha a terra, o que é fundamental para afirma-se como pai. Além disso, não lutou no acampamento como os outros pais, fato esse que o deslegitima como sem-terra. Na imagem do INCRA, parceiro do Satanás, Lelo situa todo o sentimento de revolta dos assentados tementes a Deus ante a instituição burocrática, que corta suas falas e depois lava as mãos como Poncius Pilatus. Para os assentados, o fato de Célio não possuir os atributos necessários a um pai e a um sem terra o impossibilitam de viver na “comunidade”. Assim, não há a possibilidade de sua família viver num lote no assentamento, pois não conseguiriam conviver com os assentados. Constitui-se uma identidade da família assentada e, através dela, uma “comunidade” em contraposição a famílias extensas como a de Sinira e ao órgão governamental. Para compreender melhor as palavras de Lelo, e o porquê da família de Célio não ser digna de pertencer à “comunidade”, será preciso descrever um pouco mais os contornos da família de Sinira, da atuação do INCRA e da Igreja Católica no assentamento.

“Os Filhos vão comer as telhas e a terra” Alguns assentados contam sobre o momento em que conseguiram a “emissão de posse da terra” como sendo o momento em que o “INCRA ou o Governo deu a terra para os sem-terra”. Tal formulação contrapõe-se à de outros assentados de que eles “conquistaram as terras da fazenda”. Em imagens como os “sem terra escravos do INCRA” e da “coronela do INCRA”, atributos de autoridade e mando revestem o órgão que detém a propriedade das terras e concede a posse aos assentados. Na visão de alguns assentados, seu poder está também em decidir quem vai receber a terra, como no caso da divisão dos lotes em que muitas famílias não puderam ser assentadas. Além disso, há o poder de repassar os financiamentos do governo para os assentados e selecionar quais receberão tais recursos e quais não os receberão por haver irregularidades no modo como gerem os lotes. Como na fala de Solano, ouvi outros assentados dizendo que o órgão queria ou não queria dar o dinheiro para acabarem suas casas. O comentário de Ramiro, de que o INCRA chega como Silvio 149

Santos dividindo a massa, faz eco nesse momento. Com a presença mais intensa do INCRA, ouviam-se também comentários positivos sobre Selma, como sendo séria, profunda entendedora da lei, alguém que vinha botar o assentamento em ordem. Tal ordem pressupunha que ela “tomasse os lotes dos pingaiada”, assentados solteiros e alcoólatras que não produziam no lote, e “desse tais lotes para os jovens”, filhos de assentados, que estavam na lista de espera. Logo, o órgão que dá e tira a terra, visto como bom por uns e ruim por outros, assume papel central, pois ele decide quais filhos de assentados e quando poderão receber terra, negando o poder do pai de decidir sobre a herança da terra. Um comentário de Ezequiel talvez ajude a entender essa questão: “Cada um que põe uma discussão lá, a discussão é sempre olhando o bolso dele. E ele alega que é o filho, que tem os filhos. Os filhos vão comer as telhas, os filhos vão comer os pedaços de terra” (Ezequiel, 19/12/2005). Ezequiel condena a atuação de alguns pais junto ao INCRA, como se, ao invés de pensarem no todo do assentamento, conseguissem apenas pensar em seus descendentes, em assegurar-lhes a herança. Sem pensar num projeto coletivo para o assentamento, os filhos acabariam destruindo a morada e a terra, não entendendo o valor da terra de trabalho (J. S. Martins, 1991), de onde se retira o sustento, e da terra como morada da vida (B. Heredia, 1979). Portanto, a questão da herança da terra coloca-se como um grande problema no assentamento. Parte dos filhos que já se casaram não querem viver no lote dos pais. Muitos migram para a cidade, deixando os pais sozinhos no trabalho com o lote. Outros manifestam o desejo de conseguir um lote próximo à terra dos pais e continuar a viver no assentamento53. Geralmente entram nas listas de espera do INCRA, mas a demora para que consigam terra no assentamento é grande, de modo que alguns acabam desistindo e migrando para a cidade, ou morando e trabalhando no lote dos pais com a nova família. Como conta M.E.Miranda (2003d), alguns filhos de assentados integram-se a novos acampamentos do MST para conseguirem terra. Entretanto, no assentamento Carlos Lamarca, apenas três filhos tentaram incorporar-se à luta pela terra num acampamento em

53

Baseando-se em sua etnografia do Assentamento Reunidas, M.E.Miranda salienta “A etnografia e a pesquisa documental mostram que muitos jovens têm deixado os sítios dos pais e, muitos desses estão vendendo os seus sítios por falta de condições de cultivar a terra. Dentre as famílias que foram com os filhos adultos para o assentamento, o que se tem observado é a permanência dos filhos mais jovens com os pais e estes, provavelmente, herdarão a terra, uma vez que os irmãos já se casaram e muitos já se estabeleceram fora dos sítios dos pais. As famílias mais aquinhoadas compram lote de assentados que desistem para instalarem as famílias de seus filhos casados.”(2003d, :238).

150

Porto Feliz. Após a desintegração da regional Sorocaba, os três resolveram voltar à casa dos pais, estudar e ajudá-los na Associação de produtores de leite (Agrosul). Por um lado, há a impossibilidade de dividir o lote do pai, norma prescrita pela legislação que regulamenta a reforma agrária. Por outro lado, em grande parte dos casamentos entre filhos de assentados, esses manifestam a vontade de morar no mesmo assentamento, perto da família. Como mostra M. M. Moura (1978), em seu trabalho sobre a comunidade mineira de São João da Cristina: “Recompor o patrimônio territorial é ali mais do que colocá-lo em mãos dos descendentes diretos de um indivíduo, é assegurar a reprodução da área como camponesa, por que a herança enfeixa um papel estratégico nesse sentido”(1978, :4). Suponho que também no assentamento para as famílias que se constituem afirmando a relação indissociável entre terra, trabalho e liberdade (K. Woortmann 1990), o acesso dos filhos a lotes próximos articule-se em termos de herança havendo, no entanto, grandes restrições para o acesso à terra, já que cabe ao INCRA decidir quem pode ou não adquirir terra no assentamento. Caso seja concedida a posse a filhos, como ocorreu na família de Salvador e Solano, há o fortalecimento da rede de parentesco, porque se assegura o trabalho conjunto e a maior quantidade de terras nas mãos de uma família. Dada a impossibilidade, após o matrimônio, dos jovens conseguirem parte do lote dos pais para trabalharem, alguns optam por deixar o assentamento, outros se inscrevem na lista do INCRA e poucos se juntam aos acampamentos. Na angústia de verem seus filhos indo embora para as cidades, ou perceber sua insatisfação em não terem um lote para produzirem autonomamente com suas novas famílias, torna-se cada vez maior o desmerecimento dos assentados solteiros que produzem pouco nos lotes, e mesmo de assentados que não possuem famílias, porque, além de não terem laços de parentesco com outros assentados, não produzem muito em seus lotes. É comum ouvir comentários como “com tanta família pra assentar foram assentar justo esses pingaiada que não trabalham” (Celestina), “esses aí são é uma vergonha pro movimento, as pessoas de fora vêm e vêem esses lotes tudo parados” (Machado), “tanto jovem aí parado, querendo trabalhar, e ficam essas terras na mão desses que não trabalham, a gente tem que ajudar eles, são viciados, mas o lugar deles não é na terra”(Xica). Se, como aponta K. Woortmann, a autonomia do processo de trabalho e do saber são transmitidas de pai para filho, e se “a transmissão da terra sem o saber não transformaria essa terra em terra de trabalho, nem em patrimônio familiar. É pelo saber que o pai ‘governa’, ‘dá a direção’ 151

do processo de trabalho” (1990,:43), a impossibilidade dos filhos adquirirem terra no assentamento coloca em risco a autonomia tanto desses filhos, que não receberão esse saber necessário ao trabalho com a terra, quanto dos pais, que não contarão com a ajuda dos filhos e não transmitirão seus saberes necessários à autonomia no trabalho com a terra. Dessa forma, a constituição da família assentada corre riscos quanto à “reprodução da área camponesa” (M. Moura, 1978) e quanto à autonomia da “ordem moral camponesa” (K. Woortmann, 1990). Nos problemas que envolvem a constituição das famílias assentadas, essas se opõem àqueles que produzem pouco em suas terras, que não têm famílias para garantir a continuidade e que vivem isolados em seus lotes. Ao mesmo tempo, famílias como a de Sinira, que se aliam a esses solteiros e acabam garantindo sua subsistência no assentamento, são igualmente antagonizadas. Pelo menos cinco assentados solteiros têm problemas sérios com o álcool. É comum vê-los com suas garrafas, cambaleando pelas ruas do assentamento, ou reunidos na casa de um deles bebendo. Cícero e Botelho têm conseguido plantar em seus lotes depois que começaram a esforçarse para parar de beber. O segundo participou de uma associação para a produção de mandiocas, mas, como não conseguiram vender a produção, a associação desfez-se. A presença da funcionária do INCRA fez com que eles estivessem arriscados a perder os lotes. Mesmo sofrendo da mesma ameaça, Natalino não conseguiu trabalhar a terra e parar de beber. Solteiro, ainda vive num barraco de lona em seu lote. A situação de Aristides também é difícil pois, como Natalino, tem dificuldades em parar de beber. Vive de um auxílio mensal do governo para comprar comida, não planta e arrenda seu lote para pasto. Edinei, espancado por defender Alvina na questão da ocupação de seu lote, caminha apenas à noite pelo assentamento, com medo de sofrer novas agressões. É tido por outros assentados como louco e violento. Sem produzir em seu lote, é ajudado por Sinira. Contam ainda com sua ajuda Sertanio, que, mesmo produzindo no lote e trabalhando para fora, ganha pouco, e Diógenes, que tem mulher e filhos, mas cuja renda também é insuficiente para sustentar a família. É possível perceber, dessa forma, como os homens solteiros colocam em risco toda a moralidade das famílias assentadas. Homens que pouco freqüentam as igrejas, trabalham pouco e vivem entregues à bebida, os solteiros compõem a antítese do pai de família valorizado no assentamento. Nas palavras de K. Woortmann, o pai de família é importante, pois: “ele é o dono do sítio no qual se mora e se trabalha e é também o detentor do saber e da experiência acumulados. É por ser dono do saber que ele é dono do sítio e pai de família. Ele não é um velho, mas um sábio” (1990, :48). Salvador, Solano, Almir, Gervásio são alguns desses pais que detêm saber e comando respeitados por outros assentados e por seus parentes. 152

A maior parte das famílias assentadas valoriza o casamento, a união pelo parentesco, o trabalho da terra e a religião. A depreciação dos solteiros ante os olhos dos outros assentados ocorre, do ponto de vista das famílias, em meio à contradição de verem seus filhos insatisfeitos ou partindo do assentamento, sem poderem herdar terra, ao mesmo tempo em que há tantos lotes ocupados por esses homens solteiros que não trabalham. Na boca de alguns assentados, os solteiros são “o mal do assentamento” (Dania), a “vergonha para o movimento” (João Rebelo), “aqueles que não têm fé” (Lídia e Juarez). Do conjunto de assentados adjetivados negativamente, incorporam-se também aqueles que são ex-moradores de rua e aqueles que abrem B.O.s contra as antigas lideranças, além da família de Sinira como um todo.

“Só algumas famílias são ajudadas” Ao órgão do governo responsável pela implementação de políticas públicas, inspeção dos lotes e de produções adicionam-se características negativas. A associação à imagem do Satanás é também a adjetivação da funcionária do INCRA como “coronela”, “praga dos infernos”, “vaca” etc. Tais aspectos negativos aderem também a Célio e a sua família, percebidos como indignos de pertencerem à “comunidade”. Em meio às dificuldades da constituição das famílias, os assentados buscam afirmar-se como trabalhadores, pais e mães de famílias, honestos e cristãos. Famílias ligadas a teias de parentesco, assim como a coletivos de produção opõem-se a alguns assentados e a algumas famílias que passam a assumir lugar à margem da vida social da “comunidade”. Célio que, como visto anteriormente, inscreveu seu nome na lista de espera do INCRA, até hoje não foi beneficiado. Seu nome é o segundo da lista, estando atrás de Cosme, que já foi beneficiado com um lote, mas recusou-se a pegá-lo, pois era em uma área ruim. Entendendo que, por direito, o lote seria seu, Célio e a esposa fixaram-se nele. Tal atitude gerou grande controvérsia entre os assentados. No entanto, a inimizade dos outros assentados não se deve somente a esse fato. Seu sogro Ramiro é tido por outros assentados como sendo o principal articulador do “Grupão”. No momento em que se deram os conflitos pela divisão dos lotes, Célio pronunciava falas inflamadas na assembléia contra os projetos de agrovila e de cooperativa. Emitia falas combativas com relação ao MST e à manipulação das lideranças. Criado pela mãe em São Paulo, Célio não seria um trabalhador rural, do ponto de vista dos outros assentados. Já adolescente no período de acampamento, ele vivia e trabalhava na cidade. Vinha apenas para o acampamento e assentamento em momentos necessários para auxiliar a mãe, 153

como me contou. Depois que foi morar com a família no lote, Célio passa a semana em São Paulo trabalhando como moto-boy e vem apenas no domingo para ficar com a família. Outros assentados acreditam que ele e Ramiro tenham sido os responsáveis pelos B.O.s feitos pela não divisão do dinheiro pago pelas famílias que não foram assentadas no Carlos Lamarca. Outro fator que colabora para sua não integração na “comunidade” vem a ser o fato de sua mãe, Sinira, estabelecer relações de trabalho e auxilio com assentados solteiros e ex-moradores de rua, pessoas desprezadas pelas outras famílias. Como conseqüência, Célio e sua família inserem-se numa rede de parentesco que é repelida pelas demais redes por causa de sua atuação no conflito da divisão dos lotes, e por suas alianças com assentados dos quais outras famílias não gostam. Como lembra M. E. Miranda (2003), a crescente autonomia das mulheres assentadas pode gerar rupturas e desagregação familiar, tendo em vista a centralidade que o homem assume na família camponesa. No caso da família de Sinira, há três mulheres que cuidam sozinhas dos lotes: ela, Alvina e Tábata. Há, portanto, um contraste entre a maioria das famílias extensas, cujo pai é a figura central, e essa família onde as mulheres são centrais. Suponho que a diferença existente entre essas duas configurações de família extensa seja um dos aspectos da tensão entre elas. O trabalho assalariado de Célio fora do assentamento, o menor vínculo com o MST, e as alianças estabelecidas com os solteiros e ex-moradores de rua aprofundam tal conflito, já que ressaltam a existência de assentados que não trabalham nem vivem como os pais de família que se aproximam de uma ética camponesa (K. Woortmann, 1990). Como mencionado no primeiro capítulo, os casamentos estabelecem importantes laços de parentesco no assentamento. Tais laços muitas vezes geram o auxílio mútuo, a associação, além da amizade e convívio entre as famílias. As quatro associações de produção que vigoram ainda hoje no assentamento são compostas principalmente por famílias que possuem laços de parentesco, seja ele adquirido pelo matrimônio ou pelo compadrio. Some-se a isso o fato de que todas as associações de produção contam com o financiamento da Igreja Católica, por meio da Pastoral Santa Fé e de uma Pastoral de Jandira. Os padres, vinculados à Teologia da Libertação, decidiram apenas financiar empreendimentos que agrupassem famílias ligadas entre si. Com isso, as redes de parentesco constituídas ao longo dos oito anos de assentamento facilitaram a aquisição do crédito da Igreja54. Entretanto, famílias que não se inserem nas redes de parentesco, e mesmo aqueles que continuam 54

M.Justo aponta que a associação de produtores de leite “conseguiu adquirir um trator e um carreto, em dezembro de 2004, através de uma organização não-governamental (ONG) italiana. Houve reuniões mensais e, ao longo do ano, a associação se filiou à Agência Regional de Comercialização (Arco) do município que auxilia pequenos agricultores, tendo ocorrido uma série de encontros entre as duas entidades. (...) Conseguiu também um ponto de comercialização do MST, ao lado do Ceasa (Central de abastecimento em São Paulo).”(2005c, :147).

154

solteiros estão à margem desse “sistema de crédito clerical”. Apesar das famílias católicas serem mais próximas dos padres, grande parte das famílias beneficiadas são adeptas a igrejas evangélicas. Assim, a adesão à fé católica não é um requisito, mas aqueles que são praticantes do catolicismo possuem relações mais próximas com os padres, participando de cursos como “Fé e Política” e de encontros nas pastorais. Dessa forma, a família extensa de Sinira e todos aqueles com quem essa família se vincula (solteiros e ex-moradores de rua) estão excluídos do auxílio dos padres. Esse fato traz maiores dificuldades para que consigam produzir em seus lotes. Como afirma Ezequiel: “Padre, eu não gosto de padre, porque eu acho que a igreja prega que não pode fazer distinção entre ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres. E tem esses padres aí que o negócio deles é ajudar as famílias, e você vê aí no assentamento só algumas famílias são ajudadas.” (Ezequiel, 19/12/2005). Nas palavras de Ezequiel, o auxílio da Igreja Católica gera a desigualdade, já que escolhem algumas famílias em detrimento de outras. A contradição entre o pregar e o agir da Igreja surge como motivo para que o assentado não goste de padres. A atuação desses acaba aumentando a crise entre as famílias do assentamento. Mesmo participando ativamente da vida religiosa da Paróquia de Sarapuí, tendo relações com o bispo da região, Ramiro e sua família extensa (Sinira) não receberam recursos financeiros da Igreja. O único projeto coletivo do qual sua família extensa fez parte foi a produção de mandioca, com crédito conseguido do governo federal (INCRA). Como não conseguiram vender a produção, a associação, formada em sua maioria por solteiros e ex-moradores de rua, desfez-se. Com quase sessenta anos, Ramiro tem dificuldades para trabalhar em seu lote. Por vezes, é ajudado pela mulher ou por Sinira, mas a pouca plantação de seu lote apenas torna-se maior quando ele arrenda parte das terras para a produção de melancias. A rede de parentesco dessa família tem como afins o grupo de ex-moradores de rua, em sua maioria solteiros. Entre esses, os auxílios mútuos são raros e, quando ocorrem, se dão entre pessoas que têm dificuldades para utilizar as técnicas e conhecimentos necessários à produção agrícola. O próprio Ramiro trabalhou por quase vinte anos num supermercado em São Paulo. Participou ativamente de sindicatos e da Pastoral Operária, mas distanciou-se por muito tempo do trabalho com a terra, aprendido por um curto período quando era criança. Célio tampouco apresenta grande familiaridade com a terra. Apesar da grande capacidade que sua mãe, Sinira, tem de produzir em seu lote, ele sempre trabalhou na cidade, tendo dificuldades com o trabalho na roça, como me disse a assentada.

155

A diferença e o isolamento da rede de parentesco da família extensa de Sinira para com as famílias extensas de Salvador e Doralice, Adão e Dania, Aldo e Sirlei, Almir e Angelina, trazem profundas conseqüências para a produção nos lotes e para o convívio na “comunidade”. Se, por um lado, o casamento e compadrio aproximam as famílias de modo que consigam formar coletivos de trabalho e, assim, obter financiamento da igreja católica, por outro lado, o fato das alianças da família extensa de Sinira serem feitas principalmente com solteiros ou com famílias que não possuem filhos dificulta o estabelecimento dessas relações. Percebe-se, portanto, que a desqualificação de Célio como mau trabalhador, pai, militante e cristão diz respeito não só a ele, mas a toda uma inserção na história do assentamento, no trabalho e na Igreja Católica de sua rede de parentesco e alianças. A atuação contrária às propostas do movimento e às lideranças, a relação com a Igreja Católica de Sarapuí e não com os padres vinculados à teologia da libertação, a desqualificação para o trabalho com a terra, todos esses são fatores que geram a um só tempo o antagonismo com relação à família de Célio, à sua família extensa e aos ex-moradores de rua. Pensando com K. Woortman (1990), é possível entender que emerge, no assentamento, uma certa “ordem moral” baseada na relação indissociável do trabalho, da família, da liberdade e da fé dos assentados. Tal “ordem moral” delineia-se em oposição ao tipo e família extensa e relações sociais expressas pela família extensa de Sinira. As uniões de Alvina e Candelário, de Célio e Tábata revelam a possibilidade dessas famílias, postas à margem, articularem-se e fortalecerem-se por meio do parentesco. Assim, a “comunidade” que estrutura sua moral em torno do pai, lavrador e cristão vê-se levada a desqualificar Célio e Alvina, fixados posteriormente no assentamento, aliados à rede de pessoas que estão à margem da “comunidade”, e que fazem uso da mesma linguagem de parentesco das famílias extensas majoritárias para fortalecerem-se. É possível inferir que os conflitos que envolvem o processo de constituição da família assentada surgem principalmente do antagonismo entre essas duas configurações, que assumem as redes de parentesco e alianças no assentamento. Aos olhos de famílias que buscam se afirmar como assentadas aproximando-se de uma “ordem moral camponesa”, o governo federal e o INCRA assumem a face do Satânico, maligno, autoritário e perigoso poder de quem fez e é “dono do postinho de saúde, das nuvens e da terra” (Lelo). Nas imagens evocadas pelo menino, o posto, necessário ao bem estar e saúde dos lavradores, as nuvens, necessárias à irrigação da terra, a própria terra, elemento essencial à germinação das plantações e, conseqüentemente, à alimentação e renda dos assentados, estão em poder do mal. Pelo poder do INCRA, assentados que não são pais de família, trabalhadores ou mesmo honestos estão conquistando a posse dos lotes. Para reverter tal processo, a “comunidade” 156

tem de embuir-se da “masculinidade”, da força dos pais de família. Por outro lado, a instituição governamental atua no sentido de integrar esses trabalhadores à “comunidade” e ao mercado, garantindo sua posse das terras e viabilizando a eles financiamentos para a produção. Vale lembrar que tais assentados aderiram à luta pela terra e “rodaram a baiana” (Sertanio) pelo próprio trabalho de base do MST e pastorais. Já no acampamento a diferença de recursos e inserção é ressaltada por Sertanio. Na incessante busca por recursos, para viabilizar a produção e terra, para possibilitar a descendência, ocorre essa diferenciação e antagonismo entre assentados e famílias assentadas. A atuação dos padres tem o mérito de permitir a cerca de vinte e duas famílias constituírem-se como trabalhadoras, devotas e honestas, agindo de acordo com uma “ordem moral camponesa”, onde o pai assume papel central. Entretanto, a formação da “comunidade” envolve o fechamento àqueles que não têm famílias e saberes semelhantes. Esses são os “pingaiada”, “vagabundos”, “criminosos”, “mal amados” e “loucos”, sem os quais a imagem do pai e o conjunto da família não conseguiriam formar-se enquanto identidade. Do mesmo modo, a contraposição à “coronela do INCRA” associa, numa imagem tensa, latifundiário e Estado, inimigos que no “tempo do acampamento” permitiram a constituição da identidade de um grupo de sem-terras tão diferentes entre si, mas unidos num “nós” coletivo de trabalhadores que lutavam pela terra e reforma agrária. Agora, pretendendo preservar a chama que alimentava os atributos políticos dessa identidade, famílias assentadas perseguem uma auto-imagem (S. C. Novaes, 1993) de trabalhadores camponeses, e distinguem-se desses outros, que antes foram acolhidos como iguais quando introduzidos pela Igreja Católica e MST, e que nesse momento são descritos como diferentes, outros indesejados.

157

9

BOLAS DE LUZ Folia, novena e as bolas de luz Minha atuação no assentamento dividiu-se entre a pesquisa etnográfica, aulas de alfabetização de adultos e aulas de música. Através do trabalho com música, originou-se a “Folia de Reis Terra Prometida”55. Foi em meio a essa última forma de atuação que tomei contato com as “histórias sobre as bolas de luz”. A folia de reis, enquanto rito que envolve a comunidade por meio da visita dos músicos e devotos a todas as casas, e, através da realização de uma festa para santos reis, representou importante papel, já que solteiros, ex-moradores de rua e toda a família extensa de Sinira foram visitados pelo grupo, tendo alguns participado das festas (2004/2005). Assim, as andanças da folia, inseridas no período das novenas, estabeleceram relações diferentes entre as famílias, ao mesmo tempo em que mistérios como a aparição das bolas de luz começaram a acontecer.

55

Um texto mais aprofundado, onde procuro fazer considerações sobre o processo de formação da folia e meu papel enquanto pesquisador participante dessa experiência dos assentados, encontra-se em anexo. 158

Em meio ao aprendizado do ritmo do Cururu e de músicas de folia de reis, os participantes começaram a lembrar-se de como eram boas as folias das quais participavam em Minas Gerais, Paraná, interior de São Paulo, etc. Surgiram ex-alferes da bandeira, ex-músicos e musicistas de reis, ex-acompanhantes, ex-devotos. Através de um processo conjunto de pesquisas, fomos lendo sobre folias, ouvindo discos, assistindo a vídeos e ouvindo histórias contadas por assentados sobre as folias. Discutimos quais seriam os possíveis impactos da criação de uma folia na “comunidade”. Alguns, mais pessimistas, diziam que as pessoas não iam entender, não iam abrir as portas ou participar da festa, pois nada que unisse todo o assentamento poderia dar certo. Por outro lado, outros acreditavam que a folia poderia aproximar mais as famílias no período do Natal e Ano Novo. Solano dizia que uma folia era algo muito difícil e mesmo perigoso, pois deveríamos conseguir purificar as casas do mal e reverter o mal que fosse feito contra a folia. Pesando tais argumentos, o grupo decidiu, então, formar uma folia para andar no assentamento. Seu nome seria “Folia de Reis Terra Prometida”, para expressar o fato de ser uma folia dos sem- terra. O processo envolveu o intercâmbio de experiências (W. Benjamin, 1936) e a restauração do comportamento (R. Schechner, 1995). Trocando experiências de fé e música, esses migrantes lembravam de seqüências organizadas de acontecimentos, movimentos codificados, crenças e textos conhecidos. A folia era composta principalmente por membros da família de Salvador, seus filhos, esposa, netos e seu compadre Solano. No período de 25 de dezembro a 6 de janeiro (2004/2005), a folia percorreu todas as casas do assentamento e algumas do bairro rural. A segunda festa de reis foi maior que a primeira, contando com a participação de praticamente todas as famílias do assentamento e de sitiantes próximos. Como em lembranças evocadas por foliões e assentados, alguns fatos misteriosos aconteceram com a folia. Quando foram visitar a casa de Moisés, a corda de um dos violões estourou. Era apenas o primeiro dia e o mestre não poderia ficar sem instrumento. Então, o filho de Moisés surgiu com a única corda que havia na casa, a exata corda ré que faltava. Noutro dia, o pau que sustentava a bandeira no mastro quebrou-se. Algum tempo depois, o alferes encontrou no mato um pedaço de pau exatamente com o mesmo tamanho e espessura do quebrado. Segundo os foliões, eram indícios da bênção que o grupo recebia de Deus e dos Santos Reis, atestando também a fé dos foliões e dos assentados. Os mistérios seguiram-se. Alguns foliões e devotos contam de noites, durante ensaios e andanças da folia, em que viram estranhas bolas de luz. No segundo ano, durante os ensaios da folia, vimos uma bola de luz no céu da noite, subindo e descendo no morro. Parte dos foliões entenderam que aquilo era uma benção, proteção divina à folia, outra parte falava da mãe do ouro. 159

Durante esses dois anos, os foliões dividiam-se entre as rezas da novena e os ensaios da folia. Duas semanas antes do Natal, famílias mais ligadas à Igreja Católica iniciam uma série de encontros e rezas. Os nove encontros preparam os participantes para a “comunhão” do Natal, a celebração do nascimento de Jesus Cristo. Nos encontros, além das rezas coletivas, discutem-se temas relevantes à fé cristã, como o respeito entre pais e filhos, a necessidade do diálogo, etc. As famílias de Salvador e Doralice, Hermes e Alícia, Deodato e Esmeralda, Solano e Celestina, Lindalva, Acácio e Vera, Ivone, Valentino e Januária, com seus filhos, participam dos encontros. Entretanto, mesmo sendo católicos, sabendo da novena, e comparecendo às celebrações semanais, membros da família extensa de Sinira, solteiros e ex-moradores de rua não tomam parte no rito. Com a não participação de alguns católicos e a saída de alguns membros que “passaram para crente”, a novena vem diminuindo a cada ano. Durante o período que acompanhei as rezas, apenas assentados que compunham a família extensa de Salvador participavam dos encontros. Importante para reforçar a “solidariedade do grupo de vizinhança” (M. Queiroz, 1976- :92), a novena também celebra laços comuns respectivos a uma dada “ordem moral” e a uma família extensa específica, ressaltando, contudo oposições e diferenças para com outras configurações familiares existentes, que ficam às margens do ritual. Ainda assim, a profunda relação que esse grupo de devotos mantém com o sagrado e com a comunhão talvez tenha permitido aos foliões adquirir a bênção divina e ver as bolas de luz. Se a novena possui um sentido importante para as famílias católicas que dela participam, a inserção da folia de reis no período da novena de certo modo estendeu o círculo de participantes dos encontros de natal para todo o assentamento. Quando a família de Hermes formou a folia, de certo, um tipo de família com dada crença religiosa e militância política reconhece os outros assentados como passíveis de serem visitados no Natal. A folia passou a ter um importante papel na celebração dos laços coletivos e familiares, pois permitia atenuar as tensões e conflitos entre os assentados no período do Natal. Acreditando que as visões de bolas de luz no assentamento estão relacionadas às questões e conflitos que marcam o processo de constituição e diferenciação das famílias, proponho uma interpretação das narrativas sobre as bolas de luz que leva em conta tais questões. Na medida em que os ritos natalinos da novena e folia são importantes para a constituição das relações entre as famílias e tecem contextos férteis para as visões de bolas de luz, tais ritos são igualmente relevantes para uma melhor compreensão dessas narrativas. Imagens do maligno, como as enunciadas por Lelo, e exemplos do mando, representado por Ezequiel, somam-se às imagens benignas trazidas pelas novenas e folia, na busca por uma melhor compreensão sobre essas “histórias de bolas de

160

luz”, contribuem para reelaborar questões sugeridas pelas “histórias sobre os escravos” e sobre o “fantasma fazendeiro”.

Bênção e Maldição N16- Bolas de fogo no lote de tocos “ O pessoal sempre contou aí umas histórias, falavam que viam bolas de fogo, que sempre tinha. De repente, você andava e via duas, corria e tal. Em várias direções aqui do assentamento. Tanto se você estivesse aqui embaixo, você via lá em cima, se você estivesse aqui em cima, você via lá mais pra baixo. E o pessoal sempre falava. Quando eu mudei aqui pra cima, não tinha luz.. Às vezes, o Juarez saía pra tomar uma cachaça aí pro bar e demorava a voltar. E eu sempre ficava da janela pra ver se via ele vindo, se conseguia enxergar alguma coisa. Eu sempre olhava pra direção do final do lote e eu via duas bolas, duas estrelas grandes. Mas, aí eu ficava olhando, eu via subir e descer. Eu falava: - Ah, impossível, acho que eu estou vendo coisa demais. Aí, como eu sou evangélica, eu falava: - Não, eu tô vendo coisa demais, mesmo, isso não existe. Mas é, pra tirar assim o meu sono, eu vi várias vezes. Antes eu saía daqui da porta e só via numa direção. O Juarez falou pra mim:- Oh, luz! Eu falei:- Não é luz, como você vai ver? Durante o dia você sabe a direção em que você está, é um lugar em que você já mora há bastante tempo. Eu via uma numa direção, via outra na outra direção, outra na outra. Comecei a ver três bolas. Aí, comecei a pedir pra Deus tirar aquilo, porque eu já tava ficando com medo. Mas eu sempre via elas passearem, assim. As pessoas falavam que era boitatá, que era um monte de coisas, que também já tinham visto. Mais pessoas viram isso. Eu falava:- Não, eu acho que isso deve ser avião. Mas como você vai ver três aviões vindo na mesma direção? Assim, vinha pra cá, pra cá, pra cá. Agora, eu sei que tem uma linha aérea que é aqui. Saindo mais pra lá da porta eu vejo sempre, num determinado horário, subirem os aviões. Mas, aí você vê a luzinha que pisca, não é aquela bola que pára, aquela estrelona que pára, assim, que desce e que sobe. Vi várias vezes. E escutei o pessoal falar que já viram também, que essa bola já desceu, que veio correndo em direção à pessoa. Mas o pessoal é que conta aí.” (Lídia, 17/12/2004). Na entrevista, Lídia contou-me sobre essas estranhas bolas de fogo, que via em seu lote. Estávamos conversando, enquanto seu marido Valentino comprovava com a cabeça sua história. A narrativa assume uma interessante seqüência, pois revela a recorrência com que Lídia se deparava com as bolas. A assentada colocava sempre em dúvida o que falava. Por ser evangélica, não deveria ver o que via. Assim, a narrativa mostra o conflito crescente entre alguém que não acredita e nem quer ver o que vê, e sua tentativa para compreender suas visões. Lídia e Juarez moram num lote considerado ruim devido a três fatores: a dificuldade em obter água, a infertilidade da terra e a presença de muitos “tocos”. Dada a dificuldade em produzir, ela trabalha como merendeira na escola estadual de Sarapuí e Juarez trabalha com o sogro nas estufas de pimentão. No evento narrado, Lídia comenta sobre a dificuldade que tiveram por causa da falta de luz, quando foram morar no lote. Os lotes, dentre os quais se situa o de Lídia, eram os

161

menos disputados. Estão situados no final do assentamento, numa espécie de morro entre a planície de dois rios. Neles, a terra é ruim para a plantação, pois não há água perto56. O sofrimento desse casal, na mudança e início da produção no lote, foi enfocado no primeiro capítulo. É nesse contexto de chegada ao lote conquistado e de construção da casa que Lídia relata começar a ver as bolas. De sua janela, a narradora esperava o marido chegar do bar. Nesses momentos, passou a ver as bolas no final de seu lote. Segundo ela, eram duas bolas, estrelas grandes que subiam e desciam. Apareciam inicialmente numa direção, mas depois surgiram em muitas direções e multiplicaram-se, tornandose três. Devido ao medo que sentia, a narradora começou a pedir a Deus para livrá-la daquilo, mas, mesmo assim, continuava a vê-las passear. As pessoas diziam que era o boitatá, ela achava que podiam ser aviões. No entanto, acaba duvidando dessa segunda hipótese. Chama a atenção o tamanho dessas bolas, também identificadas como sendo estrelas, e a capacidade que têm de movimentar-se sempre subindo e descendo. As imagens às quais a narradora vincula a sua visão: estrelas, aviões, boitatá, remetem sempre a figuras do céu. A intervenção de Deus é requisitada para controlar a aparição, o movimento, a multiplicação dessas duas bolas em três, e a paralela multiplicação das direções onde elas subiam e desciam. A aparição das estrelas é percebida como algo negativo, uma maldição que tira o sono e gera o medo. Mesmo depois dos pedidos a Deus, ela ainda continuava a ver as bolas passear. Outros narradores pediam a intervenção divina quando tinham de enfrentar o medo das aparições consideradas malignas. Em N11, o narrador falava “Deus me livre e guarde”, rezava o “Creio em Deus Pai”, para que Deus fechasse os caminhos das assombrações, e abençoava-se ao falar delas. Em N1, a narradora não vê assombrações “Graças a Deus”. Em N12, a narradora fala “cruz credo ir morara lá” (na sede). Em N5, Ezequiel ressalta que quem tem fé, acredita em Deus e reza não vê os escravos na mata, pois eles só aparecem para quem é mau também. Todos esses gestos remetem à crença em um Deus protetor, que fecha o caminho, o corpo, os olhos (ver) e a morada às assombrações. Dessa forma, ao falarem da aparição de mortos no assentamento, algumas narrativas anteriores situavam as assombrações como sendo algo mau, maligno, que ameaçava os vivos. Para livrarem-se dessas assombrações seria necessário pedir proteção a Deus, ao Bem que os ajudaria a combater o Mal das assombrações.

56

Por intermédio do INCRA, poços foram abertos para que os lotes nessa situação fossem melhor abastecidos de água. No entanto, esses assentados continuam tendo grande dificuldade em produzir nos lotes devido à baixa fertilidade do solo. Também na pesquisa de M.E.Miranda (1998) a baixa fertilidade do solo surge como um fator limitante da autonomia dos assentados.

162

Por meio dessas narrativas um discurso sobre a Morte e o Mal vai se delineando. Tal discurso toma a face de embate entre o Bem e o Mal. Como visto anteriormente, nas tensões inerentes à constituição das famílias assentadas, os conflitos entre assentados e de assentados com o INCRA também se expressam em termos do antagonismo entre o Bem e o Mal. O INCRA e o Satanás possuem uma parceria diabólica na criação e posse do postinho, das nuvens e da terra (Lelo), a funcionária Selma é a praga dos infernos (Celestina, pastor), é ruim e mal-amada (Everaldo). Nesse ponto os assentados seriam o Bem, pois são tementes a Deus e trabalhadores honestos. Mas há aqueles assentados considerados desvios dessa moral. Ramiro, Célio e a família extensa de Sinira, como um todo, são considerados ruins, encrenqueiros, ambiciosos, criminosos. Por outro lado, essa família extensa e muitos dos ex-moradores de rua dizem que Salvador é um ladrão, roubou o dinheiro pago pelas famílias que não foram assentadas, pegou para si o dinheiro que padres haviam dado para a compra de um trator para todo o assentamento. Apesar de ter efetivado a compra, o trator pertenceria apenas à sua família e associação. Ele e sua família são igualmente tidos como ruins, maus, trapaceiros, acusados em B.O.s abertos pela família de Sinira e outros assentados. De seu ponto de vista, a atuação do INCRA é vista como boa, séria e necessária, ainda que alguns estejam arriscados a perder seus lotes. Já a família extensa de Aldo, da qual Lídia faz parte, não se associa diretamente a nenhum dos lados desse impasse. Aldo acredita na apropriação indevida de recursos por Salvador e sua família, mas sabe que a família de Sinira “não é flor que se cheire”, como me disse numa conversa. No evento narrado, Lídia vincula a visão de bolas, estrelonas, a algo maligno. A multiplicação das bolas e seu movimento em muitas direções aterrorizam-na ainda mais, já que é evangélica e, por isso, não pode ver essas coisas. Como aponta C. R. Brandão (1994), o sistema religioso do Pentecostalismo toma o mundo como sendo o embate entre o Espírito Santo e o Demônio. Para o autor, no Pentecostalismo: “Apenas o demônio e suas pessoas, seus emissários pessoalizados são fontes ativas do mal. Portanto, não apenas de um lado e do outro somente sujeitos divinos ou divinizados do bem e do mal são reais e ativos na relação com os vivos, como também apenas o Demônio, em suas múltiplas formas horrendas e maléficas, podem se dirigir, direta ou disfarçadamente, aos humanos e podem possuí-los” (1994, : 196). Pensando com o autor, o medo gerado pelas bolas pode ter ocorrido por elas materializarem formas do maligno a serem combatidas por Deus. As visões e a multiplicação das bolas, tidas por 163

outros assentados como o boitatá, são sinais do Demônio aos olhos de Lídia. Como aponta C. R. Brandão, não há outros seres existentes na sociedade humana dos vivos. Toda e qualquer aparição ou possessão é tomada como uma forma horrenda e diabólica (: idem). Nesse sentido, na entrevista que fiz com a irmã de Lídia, Lucila, e sua vizinha, Jaci, o fantasma do fazendeiro não era, do ponto de vista de ambas, a aparição de um morto a vivos, mas um disfarce do demônio para atentar os vivos. Nas palavras das entrevistadas: “Eu acho que se a gente tiver bastante fé em Deus, se a gente tem Deus com a gente, você acha que Deus vai deixar alguma coisa vir assustar a gente. Não vem não. Se você tem Deus junto com você o Bicho não está ali. Não é que eu duvido. Existe sim. O que é ruim nesse mundo tem bastante, por que o Bicho está solto, está atentando qualquer um. Mas se a gente tiver Deus com a gente, ele não deixa que ele chegue. Agora, se você fala assim: - Eu tenho fé!, mas no mesmo caso você já está de mal com uma pessoa, já não consegue perdoar uma pessoa, então quer dizer que você está virando as costas para Deus. Você está mais do lado dele do que de Deus. Então, quer dizer que Deus também se afasta. Ele não quer ver o filho dele do lado do Bicho. Se essa pessoa quer, então vá, Deus fica do outro lado.(...) Se acha que o nosso paizinho lá do céu, vai deixar...Se nós fizermos a nossa parte, fomos enterrados no túmulo, né, você acha que ele vai deixar que alguma coisa venha atentar nós. Se tiver fé em Deus, ele não vai vir, Deus não vai deixar. É a mesma coisa que a pessoa fala assim: - Quando eu morrer, eu venho visitar você depois de morto. Não tem gente que fala assim? As pessoas falam isso, mas se a pessoa estiver com Deus, Deus levou ele pra descansar lá, você acha que Deus vai dar oportunidade pra ele vir atentar alguém aqui embaixo? Não vai, não volta não. O que faz aquilo dali é o Bicho mesmo. O Bicho é que se veste, se faz de, como se fosse aquela pessoa, porque ele tem o poder dele. Ele pode se fazer de qualquer tipo de aparecer. Na Bíblia fala que ele é uma pessoa normal. Isso é tudo coisa do Bicho, de Deus não é não. Por que Deus não assusta ninguém. Deus não faz nada de ruim pra gente, imagina que Deus vai fazer. Lucila: - E dizem que até o Diabo foi crente, né, ele foi ser humano e tentou ver se o poder dele era maior que o de Deus, aí ele viu que não era.” (Jaci e Lucila 14/12/2004). O Bicho surge como sendo o responsável pelas aparições. Dado seu poder, ele consegue assumir a forma de uma pessoa e atentar aqueles que se afastaram de Deus. Com essa explicação, Jaci e Lucila negam qualquer possibilidade da aparição do fantasma do fazendeiro ser a alma do morto. Para elas seria uma das formas que o Bicho pode assumir para atentar a quem não tem fé. Quem morre com fé vai descansar no Céu junto a Deus, e não volta para assombrar os vivos. J. S. Martins (1993) mostra como numa fábrica de cerâmicas as visões do demônio por operárias o associavam à imagem dos engenheiros. Para Jaci, a imagem do fantasma fazendeiro revela a presença do Bicho e do Mal no assentamento. Para outros assentados, tal presença manifesta-se pela atuação do INCRA ou de lideranças.

164

Na prece de Sirlei, Deus é requisitado para afastar as bolas que já estavam gerando medo na assentada. Juarez, católico, diz para sua esposa que a visão eram luzes. Mas ela nega tal suposição. Por mais que as bolas fossem semelhantes a estrelas, as visões não poderiam ser luz. J. S. Martins diz que, em rituais fúnebres feitos por populações rurais no Brasil, a luz é associada à vida, ao som e ao movimento. Por outro lado, a sombra é associada à morte, ao silêncio e à paralisação. Através da luz, os vivos orientam e controlam a morte em sua passagem do lugar dos vivos ao dos mortos, manipulando “a relação entre a ordem material do corpo e a ordem simbólica da alma” (1983,:265). Se uma função essencial da luz é a orientação, essas luzes, que se multiplicam e tomam distintas direções, colocam em risco a própria vida, porque não são controladas pelos vivos. Fenômenos celestes, as bolas de fogo surgem no escuro da noite, quando a assentada, mesmo conhecendo bem o lugar onde mora há muito tempo, desorienta-se. As bolas que se movem em muitas direções aparecem como luzes, mas não são luzes. Talvez, se fossem luzes como sugeriu Juarez, elas não causariam o temor, pois indicariam a orientação e a vida. Assim como o Bicho (Jaci) tem poderes e pode assumir diversas formas para atentar os vivos, as luzes aparentam ser algo bom, mas sua essência é má, pois confunde e engana, portanto as luzes são ambíguas e incertas. Como Deus, o Diabo foi crente, como ele, possui o poder de criar (Lelo), mas seus poderes são mais fracos (Lucila) e ele não pode vencer a Deus. Incerta quanto àquelas estranhas bolas, Lídia reza, aproximase de Deus para vencer aquilo que gerava dúvida, as luzes que não eram luzes. Pressuponho que as bolas vistas por Lídia sejam entendidas por ela como um fenômeno maligno, algo temível que deve ser combatido pela fé em Deus. Também as aparições dos escravos em N5 e do fantasma do fazendeiro em N11 e N12 foram tomadas pelos assentados como algo temível que devia ser combatido pelo poder divino. Na interpretação dessas imagens evocadas pelos narradores, pode-se inferir que o sentimento de medo se associava ao receio de sofrer como os escravos e ao temor do mando, autoridade e violência sintetizados na imagem do fantasma fazendeiro. A “coronela do INCRA” e o próprio órgão são também vinculados a aspectos malignos. Em seu lote, na terra infértil em que “tudo o que se plantava morria”, Lídia começa a ver as bolas, imagens celestes não vinculadas a Deus, mas ao Mal. No lote sorteado, terra conquistada pela luta política, esperanças tornam-se pesadelos. A imagem das bolas de fogo funde essas esperanças não realizadas em uma terra que asseguraria o trabalho e a constituição da família, mas que engendra a dificuldade de produção e de vida.

165

N17- Mãe do Ouro e Estrela Guia “Olha lá, olha lá naquele morro aquela luz que tá subindo e descendo. Ô Danilo, olha lá, essa aí que é dessas luzes que a gente vê por aqui. Ali, olha lá, sumiu, sobe pro alto que você vê. Olha lá, Nino, é a mãe do ouro que vem te pegar.” (Hermes e Bel, 14/12/2005). O momento em que vimos a luz subindo e descendo no morro foi um momento único. Voltávamos do ensaio da folia de reis. Hermes e Dagobé viram uma luz que se movimentava no morro, na mata. A euforia e o medo tomaram conta do grupo. Todos nós queríamos ver também. Dagobé disse para irmos mais para cima, para que pudéssemos ver melhor. Bel, filha de Hermes, assustava as crianças menores, dizendo que a mãe do ouro ia pegá-las. Interrompemos um pouco a caminhada e olhamos admirados. Foi então que vi, junto com todos, uma estranha bola de luz movimentar-se no alto do morro. Depois, quando continuamos a caminhar, muitos foram os que contaram histórias de luz que voava na noite e histórias de assombração. De fato, a luz que víamos no morro era uma luz clara, meio amarelada que subia e descia. Apareceu perto de um morro e próximo à mata. Assemelhava-se muito ao movimento que faziam as bolas de fogo de N16. No entanto, era apenas uma bola de luz que foi sumindo à medida que andávamos. Na provocação que Bel fazia às outras crianças, surge um novo elemento, a mãe do ouro. Tal figura forma par com outra, o Boitatá, mencionado em N16 como uma das explicações dadas por muitas pessoas ao que a narradora via. Segundo L. da Câmara Cascudo (1947), essas são figuras míticas que se referem a histórias sobre o ouro enterrado. Muito visto na região de Minas Gerais, o Boitatá seria uma espécie de serpente de fogo que sai de um morro e cruza o céu, indo parar em outro morro. Representa a existência de ouro enterrado em alguma parte da localidade. A mãe do ouro seria a guardiã do ouro enterrado, habitando os morros. Esse mito seria comum no sul do país, São Paulo e Minas. Em cada região essa figura tem suas particularidades. Clarões, chamas, estrelas que cortam o céu e caem em morros e cerros, seriam os sinais da presença e direção da mãe do ouro e poderiam vir junto com trovões que mostrariam sua cólera. Assim, as imagens da serpente de fogo e da mãe do ouro podem estar juntas ou separadas, a mãe do ouro pode ser uma serpente de fogo, ou haver uma mulher mãe do ouro e uma serpente de fogo. Ambas sinalizariam e guardariam o ouro (:369,: 370). Como me contou mais tarde Aldo, a mãe do ouro e o boitatá podem designar perigo de morte a quem vê e não sabe desfazer o encantamento, mas também podem levar ao enriquecimento fácil àquele que é escolhido para retirar o ouro. Nas conversas com muitos narradores, as imagens do boitatá, serpente de fogo que cruza o céu, e da mãe do ouro, guardiã de

166

um “filho ouro”, surgem tanto para explicar as estranhas bolas de luz vistas, quanto para atestar a presença de um tesouro enterrado na fazenda. Assim, possivelmente mãe do ouro surja na mata, procurando, de alguma forma, estabelecer relações benéficas ou malignas com esses foliões. Em N17, a mãe do ouro (bola de luz), que realizava o movimento de subir e descer no morro, poderia fazer também o movimento de vir pegar quem vê a luz. Se a luz de N16 percorre o movimento vertical céu / terra, ela também poderia percorrer o movimento horizontal aproximar / afastar, como lembra a narradora: - “a bola já desceu” e “veio correndo em direção à pessoa” (N16). Esse último movimento colocaria em risco quem vê a luz, pois a guardiã ou a bola de fogo vem pegar a pessoa, o que seria uma maldição. Mas um certo olhar admirado e um sorriso de contemplação delineavam-se no rosto dos foliões, opondose ao riso tenso que davam as crianças e alguns jovens. A folia é formada por membros da família extensa de Salvador. Católicos praticantes, revelam a crença em seres como o Curupira, o Neguinho d’Água e fantasmas de mortos. C. R. Brandão ressalta que a crença nesses seres é própria do Catolicismo Popular que, além de seres sagrados, celestes ou infernais, almas, espíritos e fantasmas:

“(...) sincretiza com supostos sistemas de crenças indígenas, africanas e européias (...) a idéia de que certas dimensões do cosmos e do planeta e, nele, especialmente os locais não ou parcialmente dominados pelo trabalho humano são habitados por seres individuais ou multiplicados em sua pessoa; não-humanos, não-celestes e não-infernais...iaras, caaporas, mães-d’água, cobras-grandes, curupiras

e outros muitos seres da natureza multiplicam

existências e se dividem entre efeitos neutros, maléficos e benéficos aos humanos” (1994, :211).

No morro em que está a mata do assentamento, apareceu a bola de luz. Além disso, as bolas de luz apareciam no fundo do lote de Lídia, num morro onde há casas e plantações, apesar das terras serem pouco férteis. Lídia vê uma luz que não é luz e, por isso, teme que as bolas sejam um sinal maligno, não acreditando que se trate da visão do boitatá. N17 introduz a imagem da mãe do ouro, uma mãe que tem como filho o ouro encantado. Desse modo, o sinal de luz não traz consigo o sentido de um lugar iluminado, seja pela luz natural ou por objetos humanos. Já a imagem do boitatá revela uma cobra que não rasteja na terra, mas corta o céu. A luz, nesse caso, é o indício de seu fogo. Entretanto, o medo da mãe do ouro, que “vem te pegar”, também se faz presente. Talvez, 167

as bolas de fogo, vistas por Lídia (N16), apontassem o perigo das luzes que “vêm te pegar”, e da terra que não produzia. Mas, ao mesmo tempo, a cobra de fogo evocasse a esperança de tirar riqueza da terra. O tema do ouro e dinheiro escondidos já havia sido apresentado na figura do fazendeiro, que enterrou dinheiro perto da sede, fica rodeando e não doa aos sem terra (N14) e do fazendeiro que enterra seu ouro e vinte escravos mortos no morro vermelho (N13). Dessa forma, como a mãe do ouro, o fantasma fazendeiro ronda a sede para guardar sua riqueza e impedir que os vivos tenham acesso a ela. Igualmente, o casarão e a cadeira do fazendeiro são tidos como assombrados, pois, fontes de sua personalidade quando vivo, permanecem repletos dos atributos de sua pessoa. A aproximação dos sem-terra de tais objetos é perigosa, porque se aproximam de um morto e da morte, da autoridade e do mando e, principalmente, da violência, todos sintetizados na imagem do fazendeiro. Mas o fantasma fazendeiro é também a imagem de um pai que não consegue transmitir seu legado aos filhos. As narrativas N6 e N15 salientam a imagem de um pai fazendeiro que produzia em suas terras e que foi traído por seus filhos. Esses, ao invés de continuarem produzindo o milho, o arroz, o algodão e a carne (N6), venderam as terras para o Estado, que as repassou aos sem terra odiados pelo pai. No caso do fazendeiro, a patrilinearidade é afirmada. Seus filhos herdam as terras, a ascestralidade e a riqueza do pai. Por outro lado, suponho que a imagem da mãe do ouro constitua uma certa inversão quanto à imagem do pai fazendeiro. Quem guarda a riqueza é uma mãe. Seu filho não herda, pois ele é a própria riqueza que será transmitida a um estranho escolhido. Assim, uma pessoa viva escolhida receberá seu filho e poderá tornar-se rico com isso. Nesse caso ocorre uma estranha matrilinearidade, já que a mãe transmite seu filho a um estranho. Talvez, o medo sentido pelas crianças, quando viram a mãe do ouro, seja causado tanto por ela vir pegar quem a vê, quanto por ela entregar seu filho. Enquanto a mãe do ouro é percebida como uma bola de luz que se movimenta no morro, o fantasma do morto é visto como a alma do fazendeiro, possuindo ainda suas características físicas e morais, ou como o Bicho (Jaci), estabelecendo, assim, uma diferença significativa entre as duas imagens. Creio que a mãe do ouro se integre ao conjunto de seres não humanos, não celestes e não infernais que habitam as matas, podendo também ser um disfarce do Bicho. Em contraposição, o fantasma fazendeiro continua habitando a sede, sua antiga casa, tratando-se de uma alma penada (C. R. Brandão, 1994), desde que saiu da sociedade dos vivos para habitar a natureza próxima.

168

Em N17, surpreende o fato da visão da mãe do ouro surgir para famílias profundamente ligadas por laços de parentesco e pelo poder paterno. Como já foi observado anteriormente, as famílias extensas do assentamento tendem a formar-se em torno de figuras de pais e mães que passam a ser a referência a quem não pertence àquela família. “O povo do seu Salvador” diz respeito ao modo como outros assentados se referem à família extensa formada ao redor de Salvador. Como contraste, a família de Sinira tem como referência a sua figura de mulher, que cuida sozinha de seu lote. Características de famílias matriarcais e patriarcais esboçam-se nessas redes de parentesco formadas. Silas tece o seguinte comentário sobre o trabalho coletivo na associação de estufas formada pela família de Salvador:

“Eu fiz toda essa luta pra ser livre no meu lote, na minha casa, e não pra ficar numa agrovila ou numa cooperativa cumprindo as ordens de alguém. Eu tentei trabalhar nos grupos do Salvador, da Dania, mas não consegui porque sempre tinha um que mandava. Lá em baixo quem manda é o papai. Ele fala e os outros cumprem. Se ele falar que é para queimar os pimentões, eles vão queimar. Nas cooperativas do movimento também é assim. Tem sempre um que comanda mais que os outros e os outros que obedecem” (Silas, 20/12/2004). Nas palavras de Silas o “medo do mando” aparece vinculado às figuras centrais de famílias extensas. Nas associações de produtores de pimentão quem coordenava o trabalho era o “papai”. Como mostra K. Woortmann (1990), pelo saber o pai governa e dá a direção do processo de trabalho. Acredito que sua perda de liberdade se deva ao fato de sentir-se sob o mando de “patrões”, já que não possuía participação no controle da produção e tinha que se submeter a não parentes. Falas como as de Ramiro referiam-se ao receio, por parte dos assentados do “Grupão”, de que lideranças como Salvador e Zé Rebelo viessem a mandar, depois que a cooperativa e a agrovila fossem montadas. A autonomia para Silas está em ser livre no lote e não receber ordens. Silas é membro da associação Agrosul. Segundo ele, nessa associação todos realmente decidem juntos, não havendo um que manda mais e os outros que obedecem. Do ponto de vista de Silas e Ramiro, o “Coletivão” (cooperativa e agrovila) transbordaria o mando exercido pelo pai e líder Salvador para todas as famílias do assentamento. Enquanto isso, o estabelecimento de alianças de parentesco e apoio mútuo de Sinira para com o grupo dos exmoradores de rua provoca um aumento da esfera de influência dessa família sobre aqueles que estão excluídos das redes de parentesco do assentamento. Se as imagens da mãe do ouro e do pai fazendeiro expressam relações de parentesco que constituem um patriarcalismo e um 169

matriarcalismo estranhos, também as famílias extensas formadas em torno de Salvador e Sinira articulam-se através de princípios que revestem o pai e a mãe de atributos de autoridade. Entretanto, a expansão desses laços de parentesco para relações de trabalho, que envolvem aqueles que não fazem parte da teia de parentesco, ameaça a autonomia no trabalho defendida por muitos assentados. Se a autonomia, para muitos assentados, está em não receber ordens de figuras paternas e maternas, em não precisar valer-se dos laços de parentesco para produzir no assentamento, a imagem da mãe do ouro apresenta a possibilidade de enriquecer sem a necessidade do vínculo parental. Vistas por membros de famílias fundadas no poder do pai (Aldo e Salvador), as bolas de luz ganham ares de inversão de uma ordem onde a produção e a renda se viabilizam pela aceitação desse poder paterno. N18 - Bola de luz rasgou o céu “Teve uma vez que eu tava andando pra Sarapui, era de madrugada, tava tudo escuro, aquele breu só. Eu tinha acabado de passar o trecho dos eucaliptos, já tava ali perto de Sarapui...foi que eu vi uma bolona de luz rasgando o céu, assim (demonstra). Era uma tochona grande assim (faz com as mãos). E passou, assim, por cima de mim. Depois que passou, ficou aquele clarão no céu ainda. Eu fiquei só olhando. Eu não tenho medo de luz, não. Pra mim luz é coisa boa, é bom sinal pra folia.” (Hermes, 14/12/2005). Hermes mora com a família na vila do assentamento, situada no lote de sua irmã Januária. Nesse lote, um dos mais férteis do assentamento, produz-se pimentões. Entretanto, o lote que lhe pertence está próximo ao de Lídia e, sendo assim, igualmente ruim. Nele Hermes produz um pouco de milho, cana e napie para as criações. O narrador contou essa história logo após termos visto, em grupo, a bola de luz (N17) movimentar-se no céu quando estávamos voltando do ensaio da folia de reis. No caminho, vimos uma bola de luz subir e descer no morro. O fato de termos visto essa estranha luz no morro fez com que, durante todo o caminho de volta, muitos dos presentes contassem sobre as ocasiões em que haviam visto essa luz movimentar-se na noite. A narrativa 18 foi a primeira história que Hermes contou, podendo-se estabelecer um paralelo entre N18 e N16. Hermes contava essa história com um riso na boca, muito diferente do riso tenso com que eram contadas as narrativas sobre assombração. A expressão de seu rosto era de encantamento com a bênção celeste. Apontava o céu e fazia uma bola com as mãos para mostrar o suposto tamanho dessa luz que viu. Todos nós ouvíamos atentamente sua história. O evento narrado possui algumas diferenças importantes, tanto em relação ao fenômeno presenciado, quanto em relação à postura do protagonista diante da visão da luz. Em primeiro lugar, neste relato, ao invés de várias bolas (N16), tem-se apenas uma bola de luz como em N17. O movimento que a bola de luz descreve no céu escuro é muito diferente daqueles de N16 e N17, pois 170

o narrador diz que a bola de luz vai de um lado a outro, sem dizer se ela sobe e desce. Ao que parece, a bola de luz inicia sua aparição no céu e nele desaparece. A mudança apontada pelo narrador não ocorre na bola de fogo, mas no céu. Num primeiro momento, tem-se um céu único e escuro. Num segundo momento, a bola de luz passa rasgando o céu escuro. Por fim, resta o clarão daquela bola de luz, e um céu que já não é totalmente escuro. Para chegar à cidade, os assentados são obrigados a passar por um trecho de aproximadamente oito quilômetros, numa estrada que corta a imensa plantação de eucaliptos da empresa Suzano de papéis, que cerca o assentamento. Depois desse trecho a estrada sobe e desce um morro, o que indica que o narrador poderia estar no alto desse morro, quando viu a bola de luz. Nesse lugar há uma encruzilhada onde se encontram três estradas de terra. Metade desse morro tem eucaliptos plantados, a outra metade é de terras destinadas à pastagem de poucas cabeças de gado. De todo modo, não são terras destinadas à plantação de gêneros alimentícios. Diferente da narradora de N16, Hermes não sentiu medo, ficou contemplando a passagem da luz, e acredita que tenha sido um bom sinal para a folia. É interessante perceber o quão relevante é um sinal celeste para uma folia de santos reis. Nas andanças das folias, a bandeira carrega a imagem da sagrada família. Adornada com flores e panos coloridos, representa a estrela guia que indicou o caminho aos três reis magos. Suponho que o bom sinal da bola de luz que rasga o céu diga muito sobre a bênção e orientação divina da estrela guia e da centralidade da família nesse rito natalino. A imagem de um céu rasgado por uma bola de luz é uma das imagens mais fortes da narrativa. Segundo C. R. Brandão, o Céu, no catolicismo popular, constitui-se como sendo o lugar onde os justos e salvos vivem felizes ao lado de Deus, dos anjos e dos santos. Nesse espaço há a reincorporação perene de laços familiares e vigora a vida eterna (1994, :202). Na viagem dos três reis magos, a estrela guia os orientava e protegia dos soldados de Herodes que os seguiam. Nas folias de reis, geralmente os palhaços representam os soldados, também identificados como figuras malignas. Indo à frente do grupo pelas estradas, a bandeira abre os caminhos aos foliões. Quando entregue ao dono da casa, tem o poder de abençoar, purificar e proteger os cômodos, a família, as criações e as plantações. Como aponta C. R. Brandão:

“Em nome de pedir e de receber bens materiais...os foliões são obrigados a retribuir por meio de dádivas sociais (a proclamação do valor do gesto do doador) e espirituais (bênção e pedidos de proteção divina). Promesseiros e devotos, contra-atores da Folia, dão porque estão incorporados ao ritual, e dar é um dos seus momentos. Mas eles dão, também, porque 171

a crença simbólica, que garante com palavras sagradas a legitimidade das trocas, proclama a reciprocidade desejada: o doador será abençoado nesta vida e/ou na outra; os seus bens serão proporcionalmente aumentados; os seus familiares e os seus animais serão protegidos. Todos acreditam que o ato de dar obriga Deus a retribuir, em nome dos Três Reis (mediadores sobrenaturais) e através do trabalho religioso dos foliões (mediadores humanos). O Dom, a coisa dada, dirige o contradom, a coisa retribuída, pelo seu poder: o dinheiro atrairá mais dinheiro; o frango, o porco e o gado atrairão proteção necessária sobre os seus iguais, restados na casa de quem os deu”(1981, :45). Nas andanças da Folia de Reis Terra Prometida, muitos assentados apenas seguravam a bandeira, mantendo sempre um sorriso na boca e uma postura ereta, mas em algumas casas a bandeira foi beijada e adornada com flores e fitas pelos donos. Isso, segundo os foliões, aumentaria tanto a beleza, quanto o poder de bênção da bandeira e da folia. Frangos, porcos, sacos de arroz, feijão e macarrão eram doados pelos donos da casa. Por vezes, a doação era feita em dinheiro. Outras vezes, não havia doações, mas, mesmo assim, o dono da casa era louvado e convidado para a festa do dia seis de janeiro. Em troca, a folia cantava, louvando a família e a produção e pedindo a benção divina. No mesmo sentido, como me contou Celestina, as novenas eram realizadas para que, na véspera do Natal, a reza coletiva, mais forte que a reza solitária, purificasse, abençoasse e protegesse as famílias que realizavam o ritual, suas plantações e criações. Na escuridão daquela noite, que era “um breu só”, a bola de luz passa e deixa seu rastro de luz pelo céu. Como ressalta C. R. Brandão, as sombras e a escuridão relacionam-se às trevas no catolicismo popular. São tidas como malignas, gerando o medo e o terror, por serem indícios da danação, do sofrimento, da presença do demônio e de seres malignos (1994, :202). Entendida como bênção, talvez a bola de luz designe um sinal de luz nas trevas, uma “estrela guia” que orienta, purifica e protege. Assim, se o céu é o lugar de Deus, anjos, santos e sujeitos salvos que estão separados da terra (sociedade dos vivos), provavelmente um céu rasgado pela bola de luz se transforme em um céu aberto, estabelecendo a relação de contato entre divindade e devoto através da bênção. Durante as andanças da folia, alguns assentados referiam-se à bênção que a folia poderia trazer à família, produção e renda. Em conversas com Raquel, ela se referia à bênção que a folia poderia trazer às criações e à contribuição para a celebração de um Natal e Ano Novo mais alegres no assentamento. No início de 2006, quando visitei sua casa, ela me contou sobre seu filho que 172

estava na Itália. O padre Tadeu, que ajuda na formação da Agrosul, obtém recursos de uma ONG italiana ligada à Igreja Católica. A ONG é resultado de uma cooperativa de produtores de queijo que querem expandir suas fronteira produtivas para o Brasil, auxiliando pequenos produtores rurais. A ajuda financeira, dada pela instituição estrangeira e mediada pelo padre, era tida como uma graça divina, uma bênção dada aos assentados por muitos associados. A ida de Cristian para a Itália era igualmente vista como um sinal da “maravilha e misericórdia de Deus” (Raquel). No ano de 2004, um grupo de cerca de seis famílias começou a reunir-se em torno do auxílio do padre Tadeu. Tinham o intuito de formar uma associação de produtores de leite. Com o tempo outras famílias foram juntando-se ao grupo, que hoje conta com doze famílias. Uma ONG que auxilia produtores rurais na região, a Arco (Agência Regional de Comercialização) iniciou uma série de cursos e palestras no assentamento. O ITESP, tendo como prioridade desenvolver o trabalho com gado naquele assentamento, auxiliou os associados a obter boas mudas de cana e napie. Por meio da ONG italiana, foi financiada a compra de um trator, das mudas e das vacas que chegam a produzir de quinze a vinte litros de leite por dia. A quantidade é muito superior àquela das vacas compradas com o financiamento do governo federal, que produzem até cinco litros diários. Do ponto de vista de Raquel, a bênção da folia de reis vinha aprofundar a bênção já dada por Deus e pela igreja católica. Pensando com K. Woortmann (1990), suponho que os financiamentos da igreja e da ONG italiana estejam transformando os associados em negociantes ou pecuaristas. Do ponto de vista dos associados, tal transformação é necessária para realizar a ordem moral da família. Por outro lado, a bênção divina e dos foliões passa a ser igualmente necessária, mas em sentido inverso. Trata-se de uma ordem moral, de trocas dos assentados entre si e desses para com santos e Deus, que realiza a ordem econômica, já que a bênção incide sobre vacas e pastos que produzem muito, mas que ainda assim necessitam da proteção divina. Entretanto, a bênção às novas vacas e pastos é a bênção ao empréstimo estrangeiro e, assim, a bênção ao negócio. A bola de luz, que rasgou o céu quando Hermes andava para a cidade, abençoa a um só tempo a folia, todos os assentados e, indiretamente, os atores envolvidos nos negócios. A multiplicação das criações, o trabalho coletivo na associação e os ganhos monetários que poderiam advir dos financiamentos conseguidos pela igreja católica para os produtores eram percebidos como bênçãos dadas às famílias assentadas. A terra pouco fértil receberia adubo, as vacas pouco produtivas seriam substituídas por outras que davam mais leite, o filho que viajou para a Itália, todos são eventos que se contrapõem àqueles relacionados às narrativas anteriores.

173

Única, com uma direção certa, a bola de luz, ao rasgar o céu, abençoa a folia, as plantações, as criações, as famílias de assentados e seus negócios. Portanto, tanto a luz quanto tudo aquilo que ela abençoa não devem ser interpretados como cópias imperfeitas e malignas de seres humanos e naturais (N16), mas sim como seres abençoados, próximos de Deus e do céu por sua fé. Em N16, as bolas são vistas em meio à ameaça da morte, da perda de autonomia, da presença do maligno por uma família que não consegue realizar a ordem moral camponesa e que também não consegue realizar a ordem econômica através da produção e venda para o mercado. De modo diferente, a visão da bola de luz pode também ser uma bênção (ordem moral) a famílias que realizam a ordem econômica com auxílio da Igreja Católica, de ONGs ou do Estado.

Medo e Admiração

N19- Ver e Sair Correndo “No ano passado, na noite em que a folia tocou lá na casa do Natalino, onde era o antigo barraco dele. Ali, perto daquela árvore. Tava eu, a Januária e o Cosme. A gente viu uma luz verde. Saiu da mata, veio até bem perto de nós, mas também sumiu rápido, no mesmo instante saiu pra mata. Eu e a Januária ficamos lá e fomos voltando. O Cosme ficou com medo e saiu correndo. Ele tem muito medo dessas coisas.” (Valentino, 14/12/2005). Na noite em que vimos a bola de luz subir e descer no morro, logo depois que Hermes contou sobre a vez em que viu a bola de luz rasgar o céu, Valentino contou que havia visto a luz também. Valentino é casado com Januária, assentada e irmã de Hermes, e sobrinho da assentada Celestina. Mora na vila, mas não participou do período de acampamento. Cresceu em Santo André onde se casou pela primeira vez e criou suas duas filhas. Trabalhou como eletricista e operário. Depois de separar-se, decidiu vir morar com seus parentes assentados e casou-se com Januária. Atualmente, trabalha com seus familiares nas estufas de pimentão e participa de cursos e trabalhos vinculados ao MST. Depois de ter parado para olhar a bola de luz subir e descer no morro e de ouvir atentamente à história contada por Hermes, Valentino começou a contar sua história. Sua fala era entrecortada por um riso tenso. Deu uma risada muito forte quando contou que Cosme, cunhado de Januária, tinha saído correndo por causa da luz verde. Como Hermes, Valentino apontava para o lugar onde teria visto a estranha luz e reproduzia seu tamanho com as mãos. As mãos formavam uma bola, 174

menor que a vista por Hermes. Contou que, perto da árvore, viu essa luz verde que saiu da mata e veio para perto deles. No mesmo instante a luz voltou para a mata. Cosme, com medo, correu. Ele e Januária continuaram lá e foram voltando. Valentino contava com um sorriso na cara. Quando falou que Cosme havia corrido, começou a gargalhar e o riso contagiou a todos nós. Entretanto, ao comentar que Cosme tinha muito medo dessas coisas (assombrações), a gargalhada foi interrompida, restava o riso e uma certa tensão a se formar no rosto do narrador. O riso tenso de Valentino, ao contar sua história, e a intensificação de sua risada, quando conta como Cosme correu de medo da assombração, ressaltam a tensão entre esses dois modos de compreensão dos protagonistas. A divisão de atitudes entre os protagonistas do evento narrado aproxima-se da gargalhada de Aldo e da seriedade de seu filho Edson (N9). Divididos, o casal ri da atitude de fugir da luz, e o rapaz teme a aproximação da luz verde. O medo da bola de luz carrega consigo o temor ao maligno, à fazenda improdutiva, à terra infértil, ao sofrimento e ao mando (N16 e N17). Já a admiração da bola de luz a vê como uma bênção, orientação (estrela guia), uma proteção que ajuda as terras a produzir, o gado a dar leite e as associações a progredir. A terra assume papel central, pois permite tanto alimentação e renda, quanto o reconhecimento da família assentada e do pai, vistos como trabalhadores, autônomos e tementes a Deus. Os conflitos gerados pelo processo de constituição das diferentes famílias têm a ver com as possibilidades de trabalho e reconhecimento desse trabalho. A terra é importante para que o assentado seja reconhecido como honesto e como cristão. Segundo C. R. Brandão (1994) a Terra, no catolicismo popular, é o espaço dos vivos e da natureza terrena. Entretanto, almas de mortos que cumprem castigo divino residem na terra por um período, por causa de uma má morte ou para que cumpram uma fração de seus destinos. O nome comum a esses mortos, que residem algum tempo na terra, na natureza próxima à sociedade dos vivos, é “alma penada” (:202). Além disso, há a presença de seres não sagrados, não celestes e não infernais (:211), como a mãe do ouro e o boitatá que habitam lugares da natureza, pouco trabalhados pelo homem. A presença dos escravos mortos na fazenda é percebida por alguns, talvez porque habitem as matas, em lugares próximos à entrada e saída do assentamento, devido a suas más mortes. Já a presença de assombrações, tais como a mãe do ouro e o boitatá, são percebidas na mata do morro. Acompanhando a folia de reis na casa de Natalino, próximo à mata do morro, Cosme, filho de Acácio, surpreende-se ao ver a luz verde aproximar-se e sai correndo com medo. O medo também faz com que muitos evitem passar pelas matas à noite, com medo de ver os escravos, temendo a aproximação dos senhores (N4). Talvez

175

tentem proteger-se dessas assombrações que “vêm te pegar”, ameaçando a vida, a autonomia e a fé dos assentados. A terra pouco fértil impede tanto a realização da “terra de trabalho”, quanto da “terra de negócio”. O “mando do INCRA”, coronel e Satanás, associa a imagem dos escravos à imagem dos sem-terra. De acordo com o caso estudado por O. Velho, em que existia a “crença na volta do cativeiro, por ação da Besta-Fera” (1982, :14), penso que a impossibilidade de obter renda do lote relacionada à terra infértil e aos escravos, evoca o medo da volta da escravidão com a perda da autonomia. Como visto anteriormente, a propriedade da terra detida pelo INCRA reveste o órgão dos atributos de mando. A funcionária representa um órgão que “dá terra”, mas que pode “tomar a terra” também. De forma semelhante, a mãe do ouro pode “dar a riqueza”, mas pode igualmente “vir te pegar”, e roubar a vida. Ao ameaçar “tomar os lotes” ou não dar o financiamento para o término das casas, a funcionária “vem te pegar”, pois ameaça a vida que se renova na relação produtiva com a terra e na relação de morada. No mesmo sentido, a terra infértil, que dificulta a produção dos assentados, pode fazer com que o INCRA “pegue a terra”. Cosme, que almeja um lote perto do pai, rejeitou a terra infértil concedida pelo INCRA, e ocupou, com outros jovens, o lote de Candelário e Alvina. Pressionando o órgão para “dar terra”, ele salienta a necessidade da terra fértil, e mantém uma relação conflituosa com o órgão. De modo diferente, Célio visa a constituir trabalho e morada na terra infértil, “dada” pelo órgão. Selma o defende ante os assentados. No conflito, assentados, como Cosme, afirmam a necessidade da terra fértil, para o INCRA não “tomar a terra”, contrapondo-se ao órgão. Célio, ao aceitar o lote, opõe-se aos assentados e afirma, como o órgão, a possibilidade de viver e trabalhar no lote. O medo da mãe do ouro, que “vem te pegar”, pode ser também o medo do INCRA, que não quer dar a terra fértil, importante para que depois a vida não seja ameaçada. Retirar riqueza da terra é o desafio que se lança a esses trabalhadores, tanto com a atuação do órgão, quanto com a aparição da mãe do ouro. Ambas também colocam em risco a vida e autonomia das famílias. Por outro lado, Valentino e Januária não sentem medo. Continuam seu caminho próximo à mata. Acredito que, do ponto de vista dos protagonistas, tal atitude evidencie a compreensão do evento narrado como sendo algo positivo, uma bênção. A visão assemelha-se muito ao modo como Hermes viu a aparição da bola de luz. Emerge uma oposição entre a luz como maldição, e a visão de luz como bênção. No primeiro caso, a luz pode ser uma não luz, expressão do maligno, ameaça a quem vê. No segundo caso, a luz seria o sinal divino na terra, “estrela guia” protegendo as famílias

176

e produções contra o mal. Como visto em N18, tomar a folia de reis e os financiamentos obtidos pela atuação dos padres como bênção pode ser uma alternativa à visão de que há um clima ruim (N1), uma tendência do assentamento a virar uma favela rural (Ramiro), ou um sofrimento inelutável pela terra ser infértil e pertencer ao INCRA (Ezequiel e Lelo). A bênção é constatada pelos adubos que vêm fertilizar a terra infértil, pelos tratores que tiram os tocos e aram a terra, pelas novas vacas leiteiras, substituindo aquelas que produziam pouco, as boas mudas de cana e napie, conseguidas pelo ITESP (Raquel), e, finalmente, pela superação do medo do mando, percebido em figuras paternas e maternas do assentamento (Silas). A terra, que vai se abrindo à plantação e ao leite, vai também trazendo a liberdade almejada por Silas. Talvez o céu rasgado de N18 seja também um céu aberto que permite a aproximação dos assentados do Bem e do Divino. A imagem da fazenda fechada remete à terra infértil, ao sofrimento dos escravos e ao maligno, assim como a imagem do céu rasgado traz consigo a possibilidade da bênção, importante para que a terra se torne fértil, para que os sem-terra sejam livres e se distanciem cada vez mais do mando. Entretanto, a superação do clima tenso que há na fazenda fechada só se dá pelo vínculo com a Igreja Católica, com a empresa estrangeira, e com diferentes famílias do assentamento. A fé em Deus e a prática da reza são formas de não ver os escravos maus (N6), não ver o fantasma do fazendeiro (N8) e não ver mais as bolas de fogo (N16). Se a fazenda é fechada pela contaminação do espaço dos vivos por aquele dos mortos, com a fé em Deus, tais assombrações deixariam de acontecer. Com a ajuda dos padres, a Agrosul e as associações de produtores de pimentão começam a desenvolver trabalhos coletivos. No caso da produção de pimentões, o comando concentra-se mais nas mãos das figuras de autoridade das famílias extensas. Já na Agrosul, o poder faz-se mais diluído entre os participantes. Para alguns assentados a autonomia e liberdade, sinônimos da bênção divina, vão sendo pensadas em termos de possibilidade de realizar a produção, ainda que, para isso, haja a necessidade de fazer do lote terra de negócio. As imagens da mãe do ouro, do fantasma fazendeiro e da “coronela do INCRA” aproximam-se como sendo aqueles que podem “vir te pegar”, ameaça à vida e autonomia, ou “dar terra e a riqueza” aos sem- terra, sem a necessidade do vínculo parental. No riso tenso de Valentino, tais questões expressam-se gerando um estranhamento semelhante àquele de Aldo para com a imagem do fantasma fazendeiro.

177

Boitatá N20- Lua que afasta “Outro dia, eu fui, no mesmo caminho, como se eu tivesse chegado lá na casa do Adélio, entre a minha casa e a do Adélio tinha a casa do Carlão, finado Carlão, olhei pra cá, lá no eucalipto que tem ali na sede, na hora que eu olhei de lá pra cá. Sabe aquele barracãozão do Zé Rebelo lá em baixo. Na hora que eu olhei de lá pra cá, eu vi um...parecia a lua, mas não era a lua, a lua ela vai descendo devagarzinho, aquele não. Era uma bola assim, grande! Acho que era mais ou menos assim, era grandona mesmo, um metro mais ou menos, mas redonda, igual à lua. Parecia a lua, era amarelado, amarelado, aquela bolona, assim. Só que ela, ao invés de abaixar, não, ela foi afastando. Se fosse a lua, abaixava. Eu parei e fiquei olhando. Tinha um pé de bambu lá, eu parei e fiquei olhando. E foi sumindo pra lá assim, sabe. Não foi abaixando, a coisa foi indo pra lá. Foi até que foi embora.” (Solano 18/12/2005). Solano narrou-me essa história, em meio a outras, na entrevista que fazíamos durante o jantar. Contava-as com empolgação, pausadamente e sem nervosismo. Não ria, havia muita seriedade no que falava. Lembro-me bem dele falando: - “isso são coisas que acontecem e que não têm muita explicação”. Procurava descrever sempre os cenários onde havia visto a bola de luz, movimentando as mãos, braços e o olhar. Por vezes, levantava-se para demonstrar como estava seu corpo diante da bola de luz. No evento narrado, o protagonista vinha andando pelo caminho que levava a sua casa, no “tempo do acampamento”. Quando chegava perto da casa de seu vizinho, viu algo que parecia a lua no céu, na direção dos eucaliptos da sede. Enquanto ia me contando, Solano olhava fixamente na direção do morro onde há a mata, e apontava sempre para lá. Creio que a bola tenha aparecido perto do morro, que fica atrás dos eucaliptos e da sede. Grande, redonda e amarelada, a visão assemelhava-se à lua, mas seu movimento de afastar-se e sumir a diferenciava do astro que sobe e desce devagar. As estrelas vistas por Lídia em N16 também são consideradas estrelas que não são estrelas, luzes que não são luzes. Diferenciam-se das estrelas pela sua multiplicação em números, direções e sentidos. Atestam a presença do maligno em seu lote. Como oposição, a bolona é motivo de encantamento, como a luz vista por Hermes (N18). Além disso, em N16, as bolas de fogo são tidas, por outros assentados, como sendo o boitatá, cobra de fogo que sinaliza o lugar do ouro encantado. No assentamento, há uma grande quantidade de cobras, principalmente cascavéis que colocam em risco os trabalhadores. Solano disse que havia um número muito maior de cobras quando ocuparam a fazenda, mas, como foram matando, elas diminuíram. Sertanio diz que as cobras diminuíram graças a uma simpatia ensinada por um velho sitiante da região, afastando-as para a fazenda vizinha. Ambos os assentados contaram

178

que antes a fazenda era infestada de cobras, já que havia poucas plantações e pouca gente morando. Seres que ameaçam a vida, as cobras também conhecem a terra de perto, suas entradas. A riqueza guardada pelo boitatá vem da terra, de suas entradas. A serpente cruza o céu, mas sinaliza a riqueza que vem de baixo. Talvez, sinalizando a riqueza da terra, o boitatá revele os lugares onde a terra produz, seus lugares mais férteis e ricos. Cobras que habitavam a antiga fazenda podem conhecer bem suas terras, entradas, riquezas e fertilidade. Rastejando pelas estufas para arrancar todos os “matos”, Severo e eu trabalhamos durante alguns dias. Num determinado momento ele disse: “Aqui a gente trabalha agachado como cobra”. Nessas terras férteis, para que os pimentões crescessem bonitos, tínhamos que arrancar os matos que cresciam junto à raiz, parte mais fértil da plantação, pois lá se concentra a maior quantidade de adubo. Andávamos agachados, com as costas curvadas, e as pernas recolhidas. Depois de algum tempo o corpo começava a doer. As estufas são abertas cedo, pois só é possível trabalhar nelas enquanto o sol não está forte. Mesmo nesses horários há um grande calor abafado. Um dia, Severo falou, rindo: - “Já pensou ter sol de noite? O mundo ia ficar tudo doido, toda a gente!”. O sol na noite é sinônimo de enlouquecimento das pessoas, pois não haveria mais a escuridão da noite, necessária ao descanso. Severo disse que não gostava de trabalhar com pimentões, e ainda mais em estufa, porque: - “Ficam umas plantas fraquinhas demais, qualquer doença que der elas morrem tudo, porque são iguaizinhas. Eu queria ver era se a gente colocasse elas lá fora, no tempo. Elas morriam tudo!”. Devido à dificuldade que há no cultivo dos pimentões, eles são muito lucrativos. Em épocas ruins as caixas são vendidas a doze reais, no entanto, como na estufa se produz o ano todo, nas épocas em que poucos produtores fornecem pimentões ao mercado, a caixa pode ser vendida a até sessenta reais. Numa conversa anterior, Solano dizia que o trabalho com o pimentão dava dinheiro, mas era muito duro, pois, segundo ele: - “não tem nem dia nem hora, é manhã, é tarde, é sábado, é domingo, não tem descanso”. No trabalho com o pimentão, sempre que há sol e esse não está forte demais, é necessário trabalhar. Mas Solano sempre se orgulhava de suas estufas, que produziam muito. De todos os associados, ele era o que mais ficava cuidando da plantação. Mesmo com a dureza do trabalho, dizia gostar de produzir pimentões. Apesar do ganho, Severo desprezava aquela cultura, onde “trabalhadores se arrastavam como cobras”. Por outro lado, conhecia cada tipo de “mato” que arrancávamos para jogar fora. Segundo ele, os antigos “faziam salada, remédios e alimentavam os porcos com muitos daqueles ‘matos’ que estamos arrancando como lixo”. Severo prefere os matos que tem de arrancar à estranha planta do pimentão. Planta fraca que cresce toda igual naquelas estufas isolada do “tempo”. 179

Frágeis, morriam tão logo alguma doença conseguisse vencer a barreira do plástico. Os pimentões não são plantas como os “matos” são, e o tempo de trabalho nas estufas não é controlado por Solano, como em outros tipos de plantação. Para manter os frágeis pimentões vivos e isolados do “tempo”, é preciso não ter descanso nem hora, nem sábado, nem domingo. Em N3, apenas trabalhadores escravos conseguiriam cavar as valas. Os sem-terra não são trabalhadores como os escravos eram, pois não possuem a mesma força capaz de abrir valas e vales (N2). As plantas cultivadas pelos assentados também não são fortes como aquelas colhidas pelos antigos. Mesmo arrastando-se como cobras, trabalhando sem descanso, como se o sol se erguesse na noite, num espaço fora do tempo, os assentados não são trabalhadores como os escravos e não sofrem tanto quanto esses. As imagens da bola de luz e do boitatá tornam-se evocativas de uma terra que esconde sua riqueza. Temendo as cobras e trabalhando como cobras, alguns assentados veriam no boitatá, serpente de fogo que cruza o céu, a possibilidade do enriquecimento na terra pouco fértil? A luz vista por Solano vinha de um bolona como a lua, mas que não era a lua, por afastar-se e não baixar no céu. Como já foi mencionado, as imagens evocadas em N16 mostram a luz que não é luz, uma estrela que não é uma estrela. Acredito que, aos olhos de Severo, também os pimentões são e não são plantas, assim como para Solano, o trabalho na estufa é e não é trabalho. Lembro-me, nesse momento, das palavras de W. Benjamin sobre a reprodutibilidade técnica que produz a cópia, e seus impactos sobre a arte. Para o autor, a autenticidade do objeto “original” advém de seu enraizamento na tradição que o faz sempre igual e idêntico a si mesmo, e escapa, assim, à reprodutibilidade técnica (1936, :167). Apartados os pimentões do tempo que faz as plantas serem diferentes e resistentes às doenças, os trabalhadores sem poder aproveitar o tempo de descanso, a estrela dissociada de sua imobilidade no céu, a luz desprovida de sua qualidade de orientar, a lua separada de seu movimento de “ir descendo devagar”; pimentões, trabalhadores e astros parecem como que cópias, imperfeitamente semelhantes àquilo com que se parecem. Os matos, enraizados conforme a tradição dos antigos, são lixo num tempo em que as plantas são produzidas para a venda como cópias, onde não se coloca mais a questão do cultivo “tradicional” daquela planta. Em algumas narrativas, o tema da cópia emerge como motivo de temor, já que o Bicho pode disfarçar-se e atentar (Jaci). Estrelas e nuvens podem ser cópias falsas dos objetos celestes. Por outro lado, a cópia da lua é vista por Solano como algo admirável, comparável à lua ou, quem sabe,

180

à “estrela guia”(N18). Bolas de luz assemelham-se à mãe do ouro e ao boitatá, imagens que podem “dar o ouro” ou “vir te pegar”. Nas estufas, imagens de “trabalhadores cobras” revelam tanto a possibilidade de renda com a plantação “fora do tempo”, quanto o esgotamento corporal e os riscos de um trabalho autônomo e sem descanso para atender ao mercado. Na noite, momento de descanso para quem trabalha até no sábado e domingo, aparece a bola de luz, semelhante à lua para esse narrador.

N21- Luz e Morro “Hermes, o Hermes sempre via uma aqui, uma luzinha azul, uma luzinha diferente, perto da mata. Até teve um dia que eu vim mais ele e ele falou: - Olha lá, seu Solano, olha lá a luz lá! Eu vi! Pego esses morros que tem aqui atrás e foi descendo, descendo, descendo até que, quando chegou perto dali, sumiu também.” (Solano 18/12/2005). Solano lembra-se de uma luz azul que Hermes, narrador de N18, sempre dizia ver num lugar muito próximo daquele onde o narrador de N19 disse ter visto a bola de luz, próximo da mata que se estende pelo morro. O protagonista revela ter visto a luz com Hermes, quando andavam juntos. Surgiu perto da mata, pegou todos os morros, desceu, chegou perto e sumiu. Há grande semelhança entre a forma como se deu o evento nessa narrativa e em N17 e N19. Bolas de luz aparecem num morro, aproximam-se (N19, N21) ou podem aproximar-se (N17) e depois somem. A imagem de um morro surge em muitas das narrativas contadas pelos assentados. Em N13, o narrador mostra um morro vermelho onde a história do fazendeiro e dos escravos teria se passado. Em N16, a narradora mora no alto de um morro e vê a bola de luz de seu lote. A narrativa N17 mostra um morro onde a bola de luz sobe e desce. O evento narrado em N18 acontece no topo de um morro de onde o narrador avista a tocha de luz rasgar o céu. Em N19, a mata de onde sai a bola de luz encontra-se na base do morro mais alto do assentamento. É para esse morro também que aponta o narrador de N20, quando localiza a direção onde teria visto a bola de luz. O assentamento Carlos Lamarca é cortado por dois afluentes do rio Itapetininga. Os rios correm entre dois morros altos. Num deles situa-se a mata da reserva do assentamento. No topo do outro morro situa-se a estrada principal do assentamento e algumas casas de assentados. Sempre que os assentados se referem ao morro, falam daquele onde está a mata, por ser também o mais alto do assentamento. Do topo desse morro, avista-se toda a região onde se localiza o assentamento. Além disso, os lotes com terras nesse morro possuem os solos considerados mais férteis do assentamento. Não há casas nele, há apenas os lotes com pouca plantação e a mata. Essa é repleta 181

de animais selvagens como macacos, lobos, cobras, tucanos, papagaios, tatus, etc. Muitos assentados, quando querem falar da beleza do assentamento e do contato com a natureza57, referemse ao morro58. Entretanto, no outro morro encontram-se os lotes e casas de muitos assentados. Lá estão as terras consideradas menos férteis do assentamento, sendo também as menos irrigadas pelos rios. Nesse morro restaram os tocos, raízes e restos de troncos de eucaliptos que impedem os assentados de fazer roças grandes e de preparar um bom pasto para seu gado. Segundo Sertanio (N2), os vales do assentamento foram cavados pelos escravos no enxadão. Como conseqüência do seu trabalho, teriam surgido os morros, como conseqüência de suas mortes formaram-se muitas “catumbas” que desbarrancam a terra, mostrando, através dos buracos, a pouca fertilidade do solo. Os morros onde aparecem as bolas de luz seriam frutos do trabalho dos escravos. Assim, as entradas da terra (buracos) revelariam os trabalhadores fortes de outros tempos e a terra infértil. Em N13, vinte escravos foram assassinados pelo fazendeiro (senhor) quando enterravam seu ouro no alto de um morro vermelho. O morro onde é cavado o buraco do ouro é o cenário tanto para a passagem dos escravos da vida para a morte, quanto do ouro/ dinheiro para o ouro/ tesouro. A associação entre ouro e morro faz lembrar as imagens do boitatá (N16), serpente guardiã do ouro que atravessa o céu de morro em morro, sinalizando onde está a riqueza da terra e a riqueza da mãe do ouro (N17), guardiã do ouro que habita o morro, que pode “dar o ouro” ou “vir pegar” quem tenta encontrá-lo. Talvez, as bolas de luz, ao sinalizarem o ouro, mostrem também os escravos enterrados. O boitatá, cobra que voa, é a imagem de um animal que rasteja, conhecendo as entradas da terra onde ouro e escravos estão enterrados. Para obter a riqueza da terra, os assentados têm que trabalhar como cobras e ser tão fortes como os escravos. A imagem da mãe do ouro que “dá a riqueza” faz pensar na riqueza que os trabalhadores podem tirar da terra, autonomamente e mesmo sem o vínculo parental. Mas a mãe “dá seu filho” e pode “vir te pegar”, atos que podem remeter a uma má mãe que aniquila a descendência, nega a autonomia, traz a morte. Ouro e escravos, figuras do tempo dos senhores, denotam a possibilidade de liberdade e fertilidade da terra, e também o perigo da volta do cativeiro e a infertilidade da terra. A mãe do ouro e o boitatá mostram-se igualmente como ambíguas assombrações entre céu e terra, figuras de mediação entre a vida e a morte. 57

M.E.Miranda mostra como ocorre uma ambigüidade no olhar dos assentados para as reserva ambientais. Diz a autora, “Nos assentamentos, os camponeses são forçados a cumprirem as leis e passam, em algumas situações, a se apropriarem dos discursos ambientalistas que dão sustentação a elas, levando-nos a crer que tenham assimilado o espírito das leis. Mas, diante das dificuldades do cotidiano, trabalhando numa ‘terra ingrata’ que esgota suas energias, sem dar o retorno esperado, o olhar dos assentados volta-se para as ‘terras férteis’ das reservas e aflora neles o sentimento de terem sido lesados.”(1998, :96). 58 Toda a descrição feita por M.Taussig (1980) sobre a montanha onde trabalham os mineradores bolivianos fez-se muito inspiradora.

182

Suponho que nessas narrativas a imagem do morro surja também como termo mediador entre céu e terra. Como a cobra que deixa de rastejar na terra e sobe aos céus voando e as estrelas que passeiam entre céu e terra (N16), os morros são a parte da terra que mais se eleva ao céu. Imagem que fisicamente situa a questão de algo que está entre o céu e a terra, os morros são pontos de contato com o céu rasgado por uma “estrela guia” (N18). M. Taussig, ao interpretar concepções dos mineradores sobre as montanhas e as minas, percebe rituais feitos pelos trabalhadores para que o Diabo alimentasse as minas com o metal almejado pelo Estado. Ao mesmo tempo, pediam a proteção de Pachamama, mãe terra, para que protegesse a vida dos trabalhadores, diariamente ameaçada pelo Diabo. Num dado momento, o autor afirma: “But for the miners, who neither control their work nor own the montain, ritual illuminates a different pattern of Exchange and carries a different aura. Here, the iconography of nature is wrought from the palette that is used by peasant ritual craftsmen, but the iconography has undergone a significant historical transformation in the emergence of the devil owner of the mines. The miner’s art makes the petrified world speak and live, but the shadow of death and sterility constantly theatens to consume this flicker of life” (1980, : 168). No caso dos trabalhadores bolivianos, o Diabo passa a ser o dono das minas, provedor dos metais e consumidor da vida dos trabalhadores. No assentamento, as terras pertencem ao INCRA e ao Satanás (Lelo), à “coronela do INCRA”, ao fantasma fazendeiro. Figuras que “dão a terra”, mas que podem “tomar a terra”, remetem, por um lado, à possibilidade de produzir no assentamento e, por outro lado, ao medo do mando, de perder a terra, da volta do cativeiro e da morte. A um só tempo, a lembrança dos escravos vivos evoca a terra fértil, a fazenda aberta e os trabalhadores fortes. Mortos que se fazem presentes, as imagens e sinais dos escravos vêm carregados de sofrimento, maldade e esterilidade. A imagem do morro da mata mostra a terra fértil, plena de vida e próxima ao céu. Já o morro dos tocos é coberto pela terra pouco fértil, que evidencia o perigo da morte, da perda da autonomia, a fazenda fechada, o Satanás e a praga do INCRA. Some-se a isso o fato de que o lugar de passagem da vida à morte dos negros e o local de enterramento do ouro estão entre o céu e a terra. As bolas de luz que aparecem nos morros abertos pelos escravos (N17, N19, N21) encontram-se no contato entre céu e terra. A imagem do morro surge como metáfora física que situa, no espaço, a questão das coisas que estão tanto no céu como na terra, figuras malignas (assombrações) ou bênçãos. A fazenda aberta vincula-se à vida dos escravos e a seu trabalho, assim como os morros. A morte dos escravos é também a morte da terra, 183

que se torna fechada. Nos morros, as bolas de luz sinalizam o ouro e revelam os escravos ocultos sob a terra e invisíveis nas matas. Trabalhando como cobras em estufas, ou sob o mando do pai, assentados vêem, nas imagens da mãe do ouro e do boitatá, as possibilidades de enriquecer como fazendeiros ou de sofrer como escravos, de produzir na terra fértil, ou de não obter sustento e renda através do lote, de conseguir viver da terra e transmiti-la com o apoio dos órgãos do governo, de padres e ONGs, ou de perdê-la para o INCRA, que também “vem te pegar”.

Árvores N22- A árvore dividida “Outro dia, eu tava no mesmo lugar, indo pra lá. Aí, tinha o eucalipto. Cê sabe onde tem aquela porteira do Odair, aquela porteira que tinha que entrava pra casa da dona Xica? Não tinha a porteira de madeira ali? Encostado dela não tem uma árvore? Eu ia chegando, não passava muito carro, passava o mesmo tanto que passa aqui. Mais ou menos naquele bambu mesmo, que eu vi aquela outra tocha, foi pra lá. Tinha um monte de eucalipto e tinha aquelas árvores lá pra cima. Olhei, parecia que vinha um carro lá do João Rebelo, lá. Lá do João Rebelo alumiava, porque conforme o carro bate no chão até que ele pega o nível da estrada..., parecia que ele tava na baixada e o clarão do farol pegava do meio da árvore pra cima, parecia isso. Parecia que era um carro que vinha de lá de baixo e alumiava do meio da árvore pra cima. Só que eu olhava lá pra baixo e não via carro nenhum, e clareando. Eu via a árvore inteira. Do meio pra cima eu vi tudo. Vi toda a árvore. Parou, parecia que tava lá pertinho o farol. Aí, parei e fiquei olhando, assim, olhei pra baixo e não via carro nenhum, olhei pra cima e também não via nada. Se fosse pra baixo, dava pra ver. Eu peguei e fiquei olhando pra árvore. E aquela resta do farol foi subindo, sabe. Subindo, subindo, subindo, subindo, saiu da árvore e acabou, sumiu.” (Solano 18/12/2005). N23- Clarão na árvore “Aí, outro dia, sempre a turma vinha embora e eu ficava sozinho, assistindo à televisão lá. Outro dia, eu saí de lá, porque a gente passava dentro do curral do João Rebelo. Tinha um caminho ali. Cê conhece bem aquelas áreas ali? Então, depois do pasto, tinha uma trilha, passava por dentro do curral e depois no mato, até sair lá em baixo. Aí eu vi, quando eu passei o pomar, que passei a estufa, a primeira árvore que tinha de lá pra cá, vindo do João Rebelo pra cá, a última encostada do barraco do Adélio. Eu vi um clarão, parecia que tinha um farol por cima da árvore, assim, sabe. A noite tava assim meio turvada, não tinha nada. Tinha estrela. Parecia que tinha um reflexo de carro por cima da árvore. E os vaga-lumes, mosquitos, borboletas alumiando assim. Eu passei e vi assim, nem me irritou o corpo, acabou, eu fui embora.”(Solano 18/12/2005). Surpreende em N22 a proximidade em que o protagonista fica observando a tocha de luz. Solano narrava essas histórias com um olhar meio perdido, como que encantado por uma estranha beleza. Tinha parado de comer para dedicar-se exclusivamente ao que contava. Seu corpo estava calmo. Apenas sua boca movia-se. O olhar estava distante. Pelo modo como foi contando, pode-se

184

perceber como essa estranha luz exerceu certo encantamento, como se fosse uma maravilha, algo muito belo. Em N22, o narrador revela ter visto uma tocha perto dos eucaliptos e das árvores. Ao longo da narrativa, mostra sempre a semelhança entre a tocha que via e a luz de um carro. A luz vinha de baixo, e iluminava do meio da árvore para cima. Por algum tempo, a tocha ficou parada, iluminando a árvore, clareando. O protagonista disse ter parado e ficado olhando a luz que iluminava a árvore, até que o “farol” foi subindo e sumiu. Novamente, em N23, ele se deparou com uma luz, um clarão que iluminou a árvore. O narrador se vale da mesma comparação estabelecida em N21, “parecia que tinha um reflexo de carro por cima da árvore”. A semelhança entre os dois eventos narrados (N22 e N23) faz-se tanto no modo como Solano conta, como no modo da luz se manifestar. A luz ilumina a parte de cima de uma árvore. O narrador não detalha o movimento da luz, apenas diz que a viu e que, quando acabou, ele foi embora. A tocha não é vista enquanto uma bola de luz no céu, mas como algo que ilumina um objeto na terra. O objeto sobre o qual incide a luz dessa tocha é a árvore. Apesar de haver inúmeras árvores no local (eucaliptos, bambus, etc.), a luz incide precisamente sobre uma árvore. Solano vale-se de objetos luminosos próprios aos homens, como a tocha e o farol do carro para entender a luz, que começa a iluminar de baixo para cima, fica parada iluminando a parte superior da árvore e depois desaparece, subindo. O ato de iluminar de baixo para cima manifesta uma inversão quanto às bolas de luz, que iluminam o céu ou os morros. Essa luz clareia de baixo, como se algo da terra iluminasse a parte superior da árvore. Dessa forma, enquanto em N16, N18 e N20, as bolas de luz vistas surgem como fenômenos muito mais celestes que terrenos, as narrativas N17, N19, N22 e N23 começam a mostrar uma maior proximidade das bolas de luz com elementos terrestres (morro e árvore), e com relação aos protagonistas das histórias. A árvore fica dividida entre uma parte superior iluminada e uma parte inferior sombria. Há certas particularidades nas árvores iluminadas pela luz em N22 e N23. Em primeiro lugar, essas árvores são postas à parte, são diferenciadas de outros tipos de árvores. O narrador diferencia a árvore que a luz ilumina dos bambus e dos eucaliptos. Essas não seriam árvores como a árvore é. No assentamento, há árvores tidas como muito antigas e nativas. Algumas, como as figueiras, possuem troncos muito grossos, raízes espessas e copas grandes. Muitos assentados falam da beleza dessas árvores. M. Douglas, ao abordar tabus de sujeira, tal como pensados por R.Smith, afirma: “A separação do santuário bem como das pessoas e coisas sagradas daquelas que são profanas, que constitui uma parte normal de cultos religiosos, é basicamente a mesma que as 185

separações que são inspiradas pelo medo de espíritos malévolos. Separação é a idéia essencial em ambos os contextos, somente o motivo é diferente – e não tão diferente, uma vez que deuses amistosos também devem ser temidos em certas ocasiões” (1976, : 23). Sobre essas árvores separadas, incide a luz, apenas em sua parte superior. Se, no contexto da visão, a luz pode ser pensada como uma bênção, acredito que a parte inferior dessas árvores, sombrias, possa ser pensada como maligna. Na imagem da árvore, figueira, Bem e Mal encontramse e separam-se. Com o olhar distante e um sorriso encantado, Solano narrava essa estranha visão da luz, que tornava o objeto separado, ambíguo. No dia em que fui pescar com Aldo, ele me disse que já havia tirado foto de uma dessas árvores. Era uma figueira, a maior do assentamento. Ela fica perto do rio, nos fundos do lote do Zé Rebelo. Segundo ele, a árvore parecia uma casa. A copa formava uma espécie de telhado e, no tronco, havia um buraco onde cabia gente dentro. Essa era a árvore em que torturavam e matavam os escravos antigamente. Em N5, ao contarem sobre os escravos, Ezequiel e Dalva descrevem a árvore onde batiam e matavam os escravos. Dalva diz: “Grande, os galhos dela formavam uma curva assim”, e mostra com as mãos a cobertura que fariam os galhos. Seu Raimundo, ex-morador do assentamento, via muitos escravos aparecerem perto da árvore e não gostava de passar perto dela. Em N12, Celestina conta sobre a árvore onde amarravam os negros e matavam. Além disso, refere-se a todos os eucaliptos da região, pertencentes à empresa Suzano de papéis. Os eucaliptos surgem também em N8, quando Magno menciona o amor que o fazendeiro tinha pelo bosque da sede. Esses, ao contrário dos tijolos da casa, foram arrancados e divididos entre os assentados, durante o conflito pela divisão dos lotes. O fazendeiro tinha amor aos eucaliptos e à casa, lugares de lazer onde ficava com sua família. O ódio do fantasma fazendeiro estaria em ter visto seus eucaliptos serem cortados (N8), sua fazenda vendida ao Estado e repassada aos sem-terra (N15). A árvore que Solano viu ser iluminada era diferente de eucaliptos e bambus. Era uma árvore parecida com aquelas descritas por Aldo, Dalva (N5) e Celestina (N12). Todas distintas dos eucaliptos. São elas as árvores onde os negros eram amarrados e mortos. Lugar de passagem entre a vida e a morte dos escravos, mas ser vivo que testemunha a história da fazenda e o sofrimento dos trabalhadores. As árvores, que parecem casas (Aldo), sinalizam também uma terra fértil que fez tais árvores viverem até os dias atuais. Num outro extremo, estão os eucaliptos que cercam toda a região do assentamento. O “deserto verde”, como disse-me certa vez Solano, não faz sombra, abriga pouca variedade de animais, seca o rio e infertiliza a terra. Aldo também me disse que o rio estava secando e a terra morrendo por causa das imensas plantações de eucaliptos. Ao interpretar os sentidos 186

atribuídos à vida e à morte no povoado de Campo Alegre (Vale do Jequitinhonha, MG), M. Bühler salienta o modo como os lavradores perceberam a chegada das grandes plantações de eucaliptos. A autora diz: “A partir da associação entre a companhia, o eucalipto, a tomada da chapada e a seca, o lavrador vê a morte da terra: um princípio feminino reprodutor esteriliza-se. Numa terra infértil, ele é incapaz de semear a vida em sua dimensão material e simbólica” (2005a, : 35). Para os assentados, muito da dificuldade em produzir se dá pelas plantações de eucaliptos que havia na fazenda. Aqueles que habitam e plantam nos lotes de tocos são os mais castigados pela fraqueza do solo. Terra branca, como dizia Solano, fraca, muito diferente da terra vermelha do morro onde está a mata. Do alto desse morro, o assentado mostrou-me como o assentamento estava completamente cercado pelo “deserto verde”, onde a aparência de vida esconde a aridez e a morte que vão se instaurando aos poucos. Como a companhia que se instalava no Vale do Jequitinhonha, a empresa Suzano de papéis e celulose instaurava o medo de que o próprio assentamento fosse engolido pelo “deserto verde”, seja pelo enfraquecimento do solo, seja pelo poder que tal empresa tinha na região, como grande latifundiária e parceira de muitos fazendeiros. Em 2006, o MST e a Via Campesina ocuparam um dos principais laboratórios de pesquisas com eucaliptos da multinacional Aracruz59. Os argumentos para a ocupação eram parecidos com os dados pelos assentados. Os eucaliptos acabariam com a fertilidade do solo, afetariam o ecossistema, além de necessitar de latifúndios para sua produção. Some-se a isso o fato de empregarem mão de obra apenas nos momentos de plantio e colheita, cujo intervalo é de mais ou menos sete anos. Na cidade de Itapetininga (SP), houve uma ocupação feita por um novo acampamento do MST em uma propriedade produtora de eucaliptos. Os assentados não participaram da ação, mas muitos com quem conversei manifestaram seu apoio e constataram a importância de acabar com essa forma de latifúndio. Nos chamados “lotes de tocos”, as terras têm baixa fertilidade, pois, anteriormente, foram destinadas à produção de eucaliptos. Como já foi mencionado, as dificuldades em plantar e criar gado colocam em risco a autonomia e a vida desses assentados. Entretanto, muitos assentados lembram com saudade da beleza da sede, antes que os eucaliptos tivessem sido divididos. Os eucaliptos que cercam o assentamento atestam a morte trazida por essa 59

A ocupação da sede de pesquisas da empresa foi amplamente noticiada pela mídia que alegou, em grande parte, a ilegitimidade da ação. Como salienta J.S.Martins (2000b), o olhar da mídia para o MST acaba quase sempre satanizando o movimento numa chave maniqueísta.

187

vasta produção em série, lembram a empresa Suzano e o empresário Antônio Ermírio de Moraes. Já os eucaliptos da sede lembram o lugar da família do fazendeiro. Ao redor das casas dos assentados, geralmente há flores coloridas, cuidadas pelas mães ou pelas filhas. O terreiro e a entrada das casas tornam-se lugares agradáveis para a conversa e para a brincadeira das crianças. À sombra dos eucaliptos da sede, missas eram celebradas, os militantes repousavam após os encontros e crianças brincavam. Acredito que, como os tijolos da sede, os eucaliptos estivessem repletos dessa vida tanto da família do antigo dono, quanto das famílias de assentados. Tais eucaliptos aproximam-se das flores das casas e da metáfora da figueira que parece uma casa. Nesse momento, penso ser possível tecer uma aproximação entre o problema apresentado pelos diferentes eucaliptos e a reflexão de W.Benjamin sobre a reprodutibilidade técnica e a decadência da aura. Para o autor: “Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial” (1936, :168). Os eucaliptos da sede atestam a tradição, seja ela dos fazendeiros, ou aquela dos sem-terra (MST, missas, encontros dos assentados). Dessa forma, se os eucaliptos que cercam o assentamento são seres vivos, produzidos em série em vastas áreas, culminando na morte da terra, dos rios, dos animais e vegetais, os eucaliptos da sede eram, para muitos, a vida percebida no convívio familiar, político e religioso, que foi profundamente abalado pelos conflitos da divisão dos lotes. Assim, para outros assentados, talvez, os eucaliptos da sede atestassem a morte, como aqueles que cercam o assentamento, a presença do fazendeiro e a força do movimento. As casas construídas com a madeira desses eucaliptos asseguraram a vida e moradia das famílias até que os financiamentos para as habitações chegassem. Nos dois casos, tanto a preservação do bosque, quanto sua destruição foram feitas em nome da família. Preservando os eucaliptos, mantinha-se o lugar de convívio das famílias, de encontros religiosos e políticos, e a lembrança do lazer da família do fazendeiro. Cortando essas árvores, construíram-se as casas das famílias nos lotes, garantindo a autonomia de sua vida e trabalho. Suponho que a luz vista por Solano incida sobre uma árvore diferenciada dos eucaliptos que cercam o assentamento, e mais próxima dos eucaliptos do bosque da sede, que permitiam o lazer

188

das famílias e serviram para construir as casas dos assentados. É, portanto, uma árvore bela que atesta a presença dos escravos, a fertilidade da terra, a casa e a vida da família. Como o morro de N13, a árvore em N12 coloca-se como sendo o lugar de passagem da vida dos escravos para a sua morte. Provavelmente, como os morros, as árvores também sejam elementos divididos entre aspectos celestes e aspectos terrestres. As raízes dessas árvores antigas estão profundamente arraigadas na terra, evidenciando, como a cobra (boitatá), o contato direto com o solo. Seu contato dá-se com a terra fértil, com o leito de morte (N15), com o local do ouro enterrado (N13 e N14) e com as “catumbas” (N2) dos escravos. Por outro lado, sua copa e galhos abrem-se no alto. As narrativas N22 e N23 permitem ver que a parte de baixo da árvore mantém-se sombria, e a parte superior é iluminada pela luz celeste (bênção). Há semelhança entre a imagem do morro e a imagem da árvore, enquanto figuras mediadoras da oposição céu / terra, que situam fisicamente as questões abertas pelas narrativas. Quando Solano, sofrendo de dor de cabeça, debruça-se sobre o chão e coloca a cabeça na terra, realiza uma inversão entre o alto e o baixo corporais. Quando trabalham, os lavradores curvam ombros e costas, lançam a enxada à frente e abrem a terra diante dos pés. A terra fértil do morro absorve a dor de cabeça, mal-estar causado pela viagem de negócios, e retribui o bem-estar. Na árvore, a parte iluminada (benigna) corresponde ao alto e a parte sombria ao baixo, vinculado à terra. Como mostra M. Bakhtin: “Rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor (...). Precipitase não apenas para o baixo, para o nada, a destruição absoluta, mas também para o baixo produtivo, no qual se realizam a concepção e o renascimento, e onde tudo cresce profusamente. O realismo grotesco não conhece outro baixo; o baixo é a terra que dá a vida, e o seio corporal; o baixo é sempre o começo.” (1993, :19). A comunhão com a terra, princípio de absorção, cura a dor de cabeça de Solano Situada entre luz e sombra, alto e baixo, a figueira evoca também a mediação entre vida e morte, maligno e benigno. Como o corpo do lavrador, a árvore vincula-se de modo vital à terra, que situa a vida e a morte. Assim, um último aspecto da imagem da árvore que deve ser considerado é o fato de ela não ser apenas o lugar de morte dos negros, mas de ela mesma ser um ser que morre. A árvore coloca-se como elemento mediador tanto entre céu e terra, quanto entre vida e morte, e traduz perfeitamente as ambigüidades que há nos seres que estão entre o céu e a terra, entre a vida e a morte e entre a luz 189

e a sombra. Uma árvore iluminada na noite remete ao Bem, à fé cristã num Deus celeste. Ser vivo que morre, a árvore lembra a vida, o sofrimento e a morte dos escravos, estabelece o elo entre esses trabalhadores explorados de outros tempos e os sem-terra. Nesse ponto, semelhanças podem ser notadas com o boitatá, cobra que rasteja na terra, mas que cruza o céu como bola de luz, para sinalizar o ouro. O ser da terra, do baixo, sobe aos céus para sinalizar a riqueza da terra. Trabalhando como cobras, lavradores associam-se ao mercado para encontrar a riqueza da terra e produzem plantas fracas e iguaizinhas. Cópias como os pimentões das estufas, os eucaliptos que cercam o assentamento são seres vivos que trazem a morte da terra, dos animais, do rio, ameaçando, conseqüentemente, a vida e a autonomia dos assentados. Como as laranjas que apagavam as digitais de Xica e a faziam sentir fome, os eucaliptos atestam o trabalho temporário, a falta de acesso aos direitos do trabalhador e a exploração da mão de obra. Há, na imagem dos eucaliptos, o medo do mando, da favela rural e da perda de liberdade, que transparecem também na produção de pimentões por “lavradores cobras”. Já a aparência de casa dota a árvore dos atributos da família, ao mesmo tempo em que justapõe escravos e sem-terra. A parte não iluminada da árvore mostra o vínculo vital à terra, que resta em sombras. Pensando com C. R. Brandão (1994) e J. S. Martins (1983) que a luz expressa o Bem, o Céu, Deus, santos e justos, estando também ligada à orientação, enquanto a escuridão remete ao maligno, ao Demônio e às trevas, levanta-se a seguinte questão: se a árvore remete à família de trabalhadores, estaria essa família igualmente dividida entre a luz e as trevas?

190

10

OURO ENCANTADO

Riqueza da terra N24- Ouro e Diamante “Diz que tem essas duas cores da luz. A que eu vejo é um brilho mais amarelado que é a do ouro. Mas diz que tem esse verde azulado que é do diamante. Aqui no assentamento foi o ouro e foi o diamante. O que eu vejo é o ouro. Diz que onde tem esse ouro tem assombração, tem umas gira do demônio que ficam tomando conta. Sabe que o demônio quer é roubar almas. Então, enquanto ele está encantado, ele é do demônio, é o demônio que tá tomando conta. Mas depois que desencanta, aí os anjos maléficos vão embora.” (Sertanio 15/12/2005). O narrador começou a contar essa história enquanto andávamos pela estrada principal do assentamento. Ele havia saído do trabalho, fora do assentamento, e voltava para casa. Ia trocar-se para pagar as contas na cidade. Enquanto andávamos, mostrava os locais onde teria visto o ouro e as bolas de luz. Gesticulava muito para mostrar como era e quanto media a bola de luz. Paramos em frente à plantação de cana de Tião Robério. Sertanio olhava atentamente para a plantação, pois lá havia visto o diamante. Sorria e mantinha o olhar parado. Depois, revelou que, no morro onde está a mata, teria visto o ouro encantado subir e descer numa bola de fogo perto de uma mina de água. Em 191

N24, Sertanio reflete sobre as cores das bolas de luz e ressalta que o amarelo indicaria o ouro e que o verde azulado o diamante, havendo as duas formas de tesouro no assentamento. Assombrações e giras do demônio guardam o ouro e o diamante, enquanto esse tesouro está encantado. Nesse momento, o demônio pode vir roubar almas, mas, depois que o tesouro é desencantado, os anjos maléficos vão embora. Em N24, as cores aparecem como índices, sinais dos objetos que estão encantados. Nesse estado de encantamento, tais objetos luminosos e coloridos pertencem ao demônio, aos anjos malignos e às assombrações, seres das sombras. Assim, as cores evidenciam relações entre os distintos atores implicados na cena das visões de bolas de luz. Uma distinção entre claro e escuro ocorre em todas as narrativas. O claro relaciona-se a cores como: amarelo, azul e verde, sempre opostas à escuridão da noite. Na claridade do dia, Lídia consegue orientar-se, mas, na escuridão da noite, vendo as bolas de fogo, ela fica confusa (N16). O branco, como sugere C. R. Brandão (1994), é associado ao Bem, ao divino, ao celeste e à luz que orienta. A escuridão e o preto ligam-se às trevas, ao maligno. Como foi visto em N23, as narrativas articulam, de modos diferentes, aspectos como claridade e escuridão, Bem e Mal, Vida e Morte. Em N24, ver a bola de luz é perigoso, pois o demônio pode vir roubar a alma da pessoa, indício de uma morte ruim. Entretanto, caso o encanto seja desfeito, os anjos malignos afastam-se e a pessoa pode pegar o tesouro, que se torna algo bom, sinônimo de vida e de vitória ante os anjos malignos. As cores estariam associadas à qualidade do tesouro, porque emitem o brilho do ouro (amarelo) ou do diamante (verde azulado). O fato de a claridade estar envolvida em sombras, sinal de seres malignos como assombrações, é o que a torna ruim. Mas, através da ação humana de desencantar, deixa de existir a bola de luz, índice, e passa a existir apenas o tesouro. O Mal dá lugar ao Bem, a vida triunfa sobre a morte, a pessoa enriquece com o ouro ou diamante e a orientação deixa de estar envolta em desorientação. Em N2, o “pretume” encontrado por Sertanio era o indício da morte dos negros escravos. Como conta Solano, as terras férteis do morro onde está a mata são formadas pelo solo de terra vermelha. Já as terras do morro onde estão os lotes de toco são mais “areiosas”, terra branca. Comparando ouro e escravos, é possível perceber que ocorre uma inversão. Os escravos enterrados são negros e estão envoltos em uma terra branca ou vermelha, o escuro está contido no claro. De modo diferente, as bolas de luz, amarelas ou verde-azuladas, claridades, estão contidas na escuridão. Escravos podem ser companheiros, mas também podem ser maus. O ouro pode enriquecer, mas pode também gerar a morte. A expressão “gira do demônio”, utilizada pelo narrador, causa um certo impacto.

192

“Gira” é termo utilizado no contexto das práticas religiosas de umbanda e de candomblé60. Num caso, os negros, trabalhadores bons e sofridos, estão envoltos por uma terra clara, no outro, demoníacos e maus, envolvem a riqueza. Podem roubar a alma da pessoa, mas podem também dar o ouro. Repete-se o princípio percebido na aparição da mãe do ouro, pois os escravos podem “dar o ouro” ou “vir te pegar”. Negros envoltos pela terra clara (branca e vermelha) conhecem as terras da fazenda, seja pelo seu trabalho quando vivos, seja pelo seu sepultamento depois de mortos. Como as cobras e o boitatá, conhecem as entradas e os lugares férteis da terra, mas envolvem, guardam, fecham o tesouro com sua escuridão. Estabelecendo uma mediação entre a liberdade e o cativeiro, pode-se inferir que os escravos envolvem a riqueza das terras, como se envolvessem também a própria fazenda. O tesouro fechado aos vivos está aberto aos mortos e anjos malignos, que o protegem. De forma parecida, a fazenda fecha-se e as terras são inférteis aos trabalhadores sem-terra. O Satanás e o INCRA passam a possuir a propriedade que antes era do fazendeiro. Na busca por terras férteis, para que a “coronela do INCRA” não venha tomar a terra posteriormente, há a necessidade de transformar a terra branca em terra vermelha, trabalhar como escravos e como cobras para conseguir a autonomia no lote. Abrir a terra pode fazer surgir escravos, ou ouro. A riqueza que os assentados podem tirar da terra emerge sob a forma do tesouro encantado e da mercadoria (pimentões e leite). Trabalhando enquanto há sol (Solano), de modo diferente daquele que caracterizava a produção antes de migrarem, e vendo bolas de luz durante a noite, os assentados começam a perceber determinados poderes, tais como a presença do maligno, da morte e da escravidão, que os impedem de deter a propriedade da terra e a renda necessária à autonomia da família. Por outro lado, nas terras “dadas pelo INCRA”, fertilizando o solo e produzindo para o mercado, os assentados vislumbram a possibilidade de obter renda e autonomia, necessárias à constituição de suas famílias, protegidas do “INCRA que vem tomar a terra”. Ao analisar o ritual do “batismo do dinheiro” entre camponeses colombianos, M. Taussig aponta que, nos primeiros estágios de penetração do capitalismo, o desequilíbrio da interdependência entre agentes externos e as populações locais lança o fetiche da mercadoria no reino do sobrenatural e do mal (1980, :19). Suponho que, entre os assentados, as dificuldades, enfrentadas com a propriedade do lote, com a terra infértil e com a produção para o mercado, denotam os conflitos da tentativa de constituição de uma ordem moral baseada na família, no trabalho e na liberdade. Além disso, essas mesmas dificuldades ressaltam a necessidade de adquirir 60

Sobre a noção de “gira” no candomblé e umbanda ver V.G. Silva (2004). 193

renda por meio do negócio, da aliança com agentes externos, de um trabalho cujo ritmo é diferente daquele pretendido pelos lavradores, e cujos ganhos traduzem a perda da autonomia. Os distintos movimentos feitos pelas bolas podem ser vistos como sinais de seu encantamento, enquanto suas respectivas cores expressam a qualidade do tesouro. A luz, envolta em escuridão, evoca o Mal, que ameaça a vida dos assentados. Sua proximidade com o protagonista mostra, de maneira antagônica, não só o provável perigo que ele corre, mas também a possibilidade de desfazer o encantamento e receber a riqueza. Por outro lado, as bolas de luz, tidas como bênção, protegem a família, ajudam a produção, são sinais divinos na escuridão e orientam os devotos (N17). Em ambos os casos, as misteriosas bolas de luz remetem à luta e à necessidade de proteção contra o Mal, percebidas na impossibilidade de enriquecer, produzir e viver no assentamento. Libertar-se da ameaça do cativeiro talvez designe a probabilidade de libertar-se enquanto escravos, além de permitir libertar os próprios escravos enterrados, ao abrir as terras da fazenda fechada.

N25- O ouro que levantou “Ah, o pessoal fala aí que tem esse tal de ouro encantado. O Moisés mesmo já falou que viu luz levantar, assim, na mata e descer. Diz que é o ouro encantado. Ele é capaz de contar pra você, eu não. Eu não dou ouvido pra essas coisas, não.” (Natanael, 14/12/2005). Natanael é assentado e filho de dona Angelina, também assentada. Mora num lote onde há a nascente de um dos rios que cortam o assentamento. Sua casa, na qual mora com os filhos e a esposa, está construída ao pé do morro, onde há a estrada principal. O narrador participa da associação Agrosul Paulista e, por isso, trabalha principalmente com a produção de leite. Seu lote divide-se entre o pasto, o plantio de cana e napie, e a horta e o pomar para o consumo. Apesar de dizer nunca ter visto a bola de luz e nem acreditar nessas coisas, Natanael conta sobre uma ocasião em que Moisés, vizinho de sua mãe nos lotes pouco férteis do final do assentamento, viu a luz aparecer. A luz levantou na mata e desceu, tendo sido um sinal do ouro enterrado. Dessa maneira, N24 e N25 ligam-se ao conjunto das narrativas N13, N14 e N15, pois todas elas versam sobre o enterro de algo na fazenda fechada (terra). Retomando essas narrativas, em N13, o ouro é enterrado com os vinte escravos mortos no morro. Em N14, o fazendeiro enterra dinheiro perto da sede e fica rodeando. Em N15, a narradora salienta que as pessoas mortas descansam no leito da terra, mas que se “não cumprem sua determinação, ficam vagando por aí”. Nesse sentido, em N14 e N15, o fazendeiro que deveria estar enterrado fica rodeando o dinheiro e a fazenda, que deveriam estar em posse dos sem-terra. 194

No evento narrado, a luz levanta e desce na mata. É tomada como sendo o próprio ouro. Também em N24, o narrador aponta que as pessoas dizem ser a luz o ouro / diamante enterrado. Esse tipo de relação já havia sido estabelecida em N16, quando a narradora comenta que as pessoas diziam que as bolas de fogo eram o boitatá, e em N17 quando a bola de luz é a mãe do ouro, que “vem te pegar”. Em N24 e N25, o ouro recebe o atributo de encantado ressaltando, assim, a relação que há entre as bolas de luz, as bolas de fogo, o boitatá, a mãe do ouro, assombrações, anjos do demônio e escravos. Todos os elementos são o tesouro, o sinalizam e o guardam a um só tempo. Os mortos deveriam descansar no leito da terra, como lembra N15, mas estão vagando. Disso é possível deduzir que há uma inversão entre os mortos, que vagam ao invés de descansarem no leito da terra, e o ouro, que está enterrado e não circula no mercado (N13), mas cruza o céu como boitatá ou mãe do ouro. O ouro enterrado é condição para que as assombrações não descansem no leito da terra e voltem. Em N14, o fazendeiro fantasma, que rodeia o dinheiro, impede que os sem-terra tenham acesso a ele. Em N13, os escravos mortos fecham o ouro ao mesmo tempo em que são fechados na terra. Parece haver uma tensão entre as assombrações que fecham o ouro, e o ouro que se mostra aos vivos através de luzes. Para isso, o ouro enterrado assume formas diversas que sinalizam sua presença aos homens. O ouro é considerado encantado devido aos seguintes fatores: está no lugar de um morto; assume diversas formas; mostra-se aos homens; movimenta-se de diferentes formas. O ouro encantado incorpora características de seres animados (cobras que voam, bolas de fogo) e de seres humanos (mãe do ouro). Se a vida está associada aos seres da terra (homens, animais e árvores), ela passa a estar associada também ao objeto enterrado (ouro/ dinheiro/ diamante) que se humaniza (mãe) ou se animaliza (serpente), ganhando vida. M. Taussig descreve o rito camponês do “batismo do dinheiro”, quando no batizado de uma criança a nota de dinheiro é batizada em seu lugar. Tal nota de dinheiro recebe um nome, humaniza-se e começa a trabalhar para seu dono, atraindo outras notas quando posta em circulação (1980, :26). Suponho que, assim como as notas do batismo do dinheiro, o encantamento do ouro dota-o de características humanas e de vida. Uma vida que busca atrair os assentados para desenterrá-lo e desencantá-lo. Em N13, o fazendeiro mata e enterra o ouro para continuar vivo e rico, e em N14, enterrar o dinheiro é o meio de um morto (fantasma fazendeiro) manter-se vivo, e assim impedir o acesso dos sem-terra à riqueza. Também os seres que guardam o tesouro (assombrações, anjos malignos, mãe do ouro, boitatá, etc.) existem em função desse tesouro. Seres como boitatá, mãe do ouro, escravos e demônios “vêm te pegar”, roubam a alma de quem tenta encontrar o tesouro. 195

Se a vida é vista como união entre corpo e alma, e a morte a separação de ambos, o roubo da alma por seres malignos indica a perdição, já que a alma não encontrará o Céu, lugar dos santos, dos justos e de Deus. O ouro encantado resume concomitantemente a negação da vida, do trabalho e do Bem, uma vez que a pessoa pode perder sua alma para o demônio, enriquecer sem trabalhar e sem relações de parentesco, sem estar sob o mando do pai. Em contraposição, o ouro encantado pode também ser a descoberta da riqueza da terra, de sua fertilidade necessária à produção e à constituição da família. Entretanto, para as assombrações, o ouro é a condição do seu penar, de sua existência enquanto morto-vivos. Pouco antes de começar a reunião com a técnica do INCRA, Simplício comentava com outros associados da Agrosul que, enquanto aravam a terra em seu lote, Machado havia dito que sabia a fórmula para “enricar”. Simplício disse: - “O Machado tava falando, disse que ele sabe a fórmula pra enricar. Ué, mas se ele sabe essa fórmula, por que ele não enricou até hoje? Se ele sabe, devia ensinar pra gente, é ou não é?”. Do ponto de vista de Simplício, o enriquecimento deveria ser compartilhado com os outros assentados, não devendo se restringir a apenas um conhecedor. Entretanto, o não enriquecimento de Machado atesta a falsidade de sua fórmula. Pensando que, no assentamento, há uma certa moral que valoriza o trabalho e a fé em Deus, como sendo os únicos meios de melhorar de vida, o enriquecimento pela fórmula de Machado ou o enriquecimento pelo ouro encantado gerariam a desigualdade entre um assentado que detém muita riqueza e muitos que continuam pobres. Dessa forma, seria um enriquecimento imoral, aproximando a situação dos assentados àquela do fazendeiro, possuidor do tesouro, e de seus escravos, destituídos de tudo. A diferença entre assentados que começaram a “melhorar de vida” e aqueles que continuam pobres em seus lotes pode ser percebida no assentamento. As famílias que participam de associações de pimentão e de leite conseguem terminar de construir suas casas, algumas compram carros, pagam cursos para os filhos em Itapetininga, arrendam pasto de lotes vizinhos, além de possuírem maior número de bens materiais em suas casas. Já os assentados solteiros ou as famílias excluídas dessas relações de trabalho têm dificuldade em garantir a alimentação, a escolaridade das crianças, as plantações e criações. Numa conversa, Mourão, membro da Agrosul, contou-me sobre como começou a ajudar Irineu, seu vizinho, que não participa das associações. Mourão disse: “Eu não gostava nem de falar com ele, porque uma vez o homem inventou de se desfazer do gado e não quis vender pra mim. Ele brigou comigo e vendeu tudo o gado barato, vendeu cinco cabeças por mil reais. Depois começou a precisar de dinheiro. A esposa dele veio aí e falou pra mim que ele tava com cana e napie, se eu não queria comprar. Falei que até precisava, porque meu pasto não estava bom, mas não queria por que não gosto de desentendimento com vizinho. Ela disse que não tinha problema. Ele é que tinha pedido pra ela ir. Fui lá e falei com 196

o homem e comprei. Dei cem reais à vista. Daí ele falou se eu não queria arrendar o pasto. Ele percebeu antes de todos que tinha que arrendar pra assentado. Falei que eu dava oito em cada cabeça. Ia dar oitenta reais. Ele achou pouco. Falei que por cem punha tudo no pasto. O homem sorriu. Agora, eu uso o pasto dele e faço umas melhorias. Sempre que ele precisa dum dinheiro adiantado, eles não pedem. Eles dizem que vão pra cidade. Daí eu já adianto o deles. E, assim, vou ajudando. O coitado do homem tá aí. Não tem ajuda dos filhos, tá muito velho pra plantar e qué plantar. Ele fica roçando a braquearea, quando termina em cima, em baixo já começou a crescer tudo de novo. Ele não é muito normal, não. Mas a gente vai ajudando eles a viver. Assim eles conseguem viver no lote.”(Mourão, 16/12/2005). A participação de Mourão tanto na Agrosul, quanto na associação de pimentão com seus parentes, permitiu a ele aumentar os ganhos com o lote. Como resultado, pôde ter dinheiro a mais para arrendar o pasto de seu vizinho Irineu. Esse último, sem filhos no assentamento e sem participar de nenhuma rede de parentesco ou de produção, não consegue produzir muito em seu lote. A relação de dependência entre esses dois assentados lembra aquela existente entre a copeira Jaci e o fazendeiro. Irineu não pede diretamente o dinheiro adiantado, assim como Jaci, tem receio. Como um patrão, Mourão entende e dá o dinheiro adiantado. Com isso, Mourão passa a ter o dobro de pasto para suas criações, enquanto Irineu não tem mais gado e quase nenhuma plantação. Perversamente, a ajuda gera a desigualdade, a dependência e o mando. Refletindo sobre as relações de troca de trabalho entre sitiantes do nordeste brasileiro, K, Woortmann afirma que “o assalariamento na fazenda ou no engenho é cativeiro, é sujeição.(...) Distinta, todavia, é a representação do assalariamento entre sitiantes. O fazendeiro é percebido como o outro; o sitiante, ao contrário, é visto como vizinho e trabalhar para ele é ajuda” (1990, :29). De modo diferente, a ajuda de Mourão ao vizinho, sob a face de ajuda, fazia Irineu estar sujeito a ele. Nesse caso, é o vizinho quem se revela o outro, aproximando-se da imagem do fazendeiro. Suponho que uma das questões colocadas pelas narrativas sobre o ouro encantado seja a de enriquecer individualmente, de uma vez, sem o esforço do trabalho. A descrença de Natanael na visão de Moisés, a desconfiança de Simplício na “fórmula de Machado” enfatizam a desigualdade e a imoralidade em tal enriquecimento individual. Essa desigualdade crescente aparece na relação entre Mourão e Irineu, onde a ajuda é sinônimo de exploração e perda de autonomia. Velho e sem filhos, Irineu não consegue trabalhar direito. Sua família incompleta, a proximidade da morte e seu trabalho pouco produtivo, porque, quando termina de carpir o mato, esse volta a crescer, impossibilitando, assim, o plantio, atestam seu destino marcado pela perda da liberdade. O ouro encantado pode gerar a riqueza individual e a desigualdade. Seus guardiões podem roubar a alma da pessoa, privando-a da vida e da boa morte. Filho da mãe do ouro, serpente de fogo, bola de luz, o tesouro, objeto inanimado, adquire vida. Os mortos e anjos malignos que o 197

guardam manifestam sua presença e ameaçam os vivos. Talvez a vida daquele que procura o enriquecimento individual corra risco duplamente. Por um lado, há o risco de perder a alma para o demônio e por outro o de enriquecer sem trabalho, ato condenado por aqueles que requisitam a bênção divina para seus trabalhos, famílias e produções.

Mãe do ouro e coronela do INCRA N26- Mulher que indica o ouro “Seu Raimundo é que contava muito essas histórias. Dizia que aparecia sempre uma mulher e mostrava pra ele onde é que estava o ouro encantado. Ela ensinava como é que ele tinha que tirar. Ele é que sabia dessas coisas. Falava também que, naquela árvore, a figueira, aquela que cabe gente dentro do tronco, as folhas dela formam como que um telhado, uma cobertura. Falava que naquela árvore tinha o tal do ouro.” (Dalva 09/12/2005). Nessa narrativa, Dalva conta sobre um homem que falava muito do ouro encantado. Uma mulher aparecia e mostrava o lugar onde o ouro estava e como ele teria de tirá-lo. Surge também o lugar do ouro, uma árvore. Como ressaltado nas análises de N22 e N23, as árvores colocam-se como figuras que situam fisicamente as oposições entre céu e terra, vida e morte, luz e sombra. Novamente, em N26, a imagem de uma árvore específica, uma figueira, é evocada e mostra-se como sendo o local do ouro encantado. Igualmente, numa árvore específica morreram os negros (N12) e uma luz estranha incidiu sobre ela (N22 e N23). A mulher não só indica onde está o ouro, mas também mostra como Severino deveria retirá-lo. Semelhante à mãe do ouro, essa mulher parece querer “dar o ouro” a Severino, sem que ele sofra as conseqüências de ter sua alma roubada pelas “giras do demônio” (N24). A árvore onde estaria enterrado o ouro é semelhante a uma casa. Solteiro, esse sem-terra seria agraciado com as indicações da misteriosa mulher que guardava o ouro61. Na imagem da mulher solteira e da mãe do ouro, emergem questões relativas a mulheres que detêm riqueza, trabalham e orientam suas famílias. O matriarcalismo de assentadas como Sinira opõe-se à estrutura da moralidade dos pais que gerem suas famílias. Como a mulher que quer “dar o

61

Um outro caminho interpretativo interessante seria remeter as imagens da “mãe do ouro” e da “árvore da figueira” a uma certa cultura bíblica, como definida por G.Velho (1995). Talvez pudessem ser observadas semelhanças com a imagem da árvore do paraíso e a própria Vigem Maria. Por requisitar um grande aprofundamento na teologia cristã deixei de explorar esse caminho igualmente fértil, pois não dispunha de tempo, já que tais imagens surgiram na última etapa de análise. Suponho que mesmo imagens como o fogo e a serpente, boitatá, são evocativas de imagens bíblicas. Sinto não ter podido apresentar linhas interpretativas que explorassem esse caminho.

198

ouro” a um solteiro, Sinira orienta e ajuda financeiramente homens solteiros. Paralelamente, as imagens do solteiro como aquele que pouco trabalha, bebe e não é passível de aparentar-se, e as imagens da mulher que, sozinha, gere o lote e a família, representam a antítese da ordem moral centrada no pai. Nas narrativas ou nos conflitos da constituição das famílias assentadas, homens solteiros e mulheres solteiras surgem aos olhos de alguns assentados como figuras malignas e perigosas. Por outro lado, assentados temem que pais poderosos, plenos em suas redes de parentesco, exerçam seu poder de mando sobre aqueles que não são de suas famílias. Agrovilas e cooperativas transbordariam esse “mando” exercido pelas lideranças para todo o assentamento, nas relações de vizinhança e de produção. Tal associação entre os sem-terra e atributos de mando e autoridade surgiu nas narrativas por meio da aproximação da imagem do fantasma fazendeiro, ora senhor, ora pai de família. Acredito que a contraposição entre o fantasma do fazendeiro e a mãe do ouro seja interessante para refletir sobre a diferenciação e conflitos que ocorrem entre as famílias. Na assembléia, a “coronela do INCRA” fazia a mediação entre uma “comunidade”, centrada no poder controlador dos pais, e a família de Sinira, aliada a assentados solteiros e ex-moradores de rua. No caso, seu filho e a filha de Ramiro receberiam a terra que fôra recusada pelo filho de Almir, Cosme, e pela filha de Salvador, Lila. A “coronela do INCRA” “daria a terra” a Célio e “tomaria a terra” de Cosme, ela “dá terra” ao coletivo, unido pela mãe solteira Sinira, e “toma a terra” da “comunidade”, que gira em torno de pais lavradores, como Salvador. Na imagem da “coronela do INCRA”, Estado e senhor justapõem-se numa figura feminina, que assegura a posse da terra a Célio e ameaça não repassar financiamentos à “vilinha”. Tal atitude contrapõe-se à ordem moral que compõe a “comunidade”. Num dado momento de sua análise, G. Velho ressalta que “a quebra na divisão sexual do trabalho, na medida em que significa as mulheres transformarem-se em homens, coloca em xeque, devido às representações envolvidas, toda a estrutura da moralidade.” (1995,: 22). Na boca de Dalva, esposa de um ex-morador de rua, um homem solteiro receberia o ouro da mulher e da árvore. Suponho que o tema do rápido enriquecimento, abordado nas narrativas sobre o ouro encantado, revela uma forma de ganho que não se dá pelo trabalho, pelo vínculo parental, ou pelo controle e saber do pai. Logo, a riqueza a ser dada pela mãe do ouro a um solteiro representa um perigo à “comunidade”, assim como a concessão de terras e financiamentos pela “coronela do INCRA” a quem não é da “comunidade” ameaça a ordem moral vigente. A relação entre a mulher que orienta, que conhece a riqueza da terra e quer “dar o ouro” a um solteiro é também interessante para refletir sobre os aspectos de feminilidade e fertilidade, que

199

envolvem a riqueza da terra. O ouro está numa árvore62 tão grande que cabe gente dentro. Assemelha-se a uma casa, pois a copa parece um telhado. Retomando a figura da mãe do ouro (N17), é possível dizer que toda a imagem tecida pela narradora em N26 remete a atributos de feminilidade e de maternidade. Ao abordar as regiões de fronteira, J. S. Martins (2002) nos fala de uma casa uterina, física e simbólica, cujos atributos de feminilidade se tornam bem demarcados em ritos de morte e nascimento. Nesses momentos, separações entre sagrado e profano, puro e impuro, maligno e benigno fazem-se importantes para que não haja a contaminação do espaço dos vivos por aquele dos mortos. A árvore, que se assemelha à casa, também vincula-se à mulher. Contrasta a esposa, mãe de família que cuida da comida, da limpeza da casa, da horta, plantações e criações próximas, à mãe solteira que monta cavalo, lida com o gado, lavra a roça, administra o lote e auxilia outros assentados, nutrindo-se de atributos comuns aos pais de família. A mulher que indica o ouro aparece sozinha, sem um marido. Portanto, a mãe do ouro apresenta-se como mãe solteira, habitando a mata e o morro. O ouro encantado é mostrado por uma mulher, está numa grande árvore cuja copa lembra um telhado, podendo abrigar gente dentro. A mulher, a árvore, a terra guardam o ouro, a riqueza, que se revela aos assentados como bola de luz. Essas imagens fazem a mediação entre a vida e a morte. A terra garante o alimento e a renda; em contrapartida, é onde os mortos são enterrados. A árvore vincula os sem-terra à fazenda de escravos, as terras férteis à fazenda fechada, e é um ser vivo vulnerável à morte. A mulher, ser vivo que morre, também dá à luz, abrigando, assim, a vida dentro de si. Possivelmente, a gravidez, a descendência e a fertilidade estejam sendo tematizadas nessas narrativas. O ouro, como alguém que está nascendo, será entregue pela mãe a um estranho. Dizer que o ouro encantado está na árvore e que o homem também pode estar na árvore implica numa relação uterina. Há uma humanização do ouro em situação de encantamento. A imagem da mãe do ouro mescla-se à da árvore, dotando o ouro encantado da aura de filho esperado. Com a mediação de uma mulher (mãe), um sem- terra pode receber a riqueza do fazendeiro, seu ouro enterrado, que cabia aos filhos. A não herança de seus filhos dota o ouro dos atributos dos herdeiros. Recebendo o ouro / filho, o sem-terra recebe os atributos da pessoa do fazendeiro, assim como o poder pertinente a ele? Novamente surge a imagem do “sem-terra grande fazendeiro”, quando as narrativas evocam a questão da possibilidade de enriquecer nas terras que pertenceram ao fazendeiro e foram legadas a seus filhos. No entanto, o ouro na árvore onde morriam os negros evoca o medo da volta da escravidão, reforçado pelas

62

No trabalho de E.Woortmann (1994) sobre colonos teuto-brasileiros das ‘colônias antigas’ do Rio Grande do Sul, toda uma teia de significados é tecida em torno da figura da árvore, expressão e de memória coletiva dos antepassados.

200

figuras do INCRA e do mercado, e pelas imagens de assentados que começam a deter maior renda que outros.

Segredo Enterrado N27- O sumiço do ouro “O Teteco é que contou que o pai dele, o Acácio já viu esse tal de ouro enterrado. Disse que tinha um buraco, era de noite, tinha aquele buraco com uma chapa de ferro. Disse que ela abria e mostrava o ouro. Ele foi lá chamar um pessoal pra tira mais ele. Quando voltou, disse que tinha sumido. Eu queria é que aparecesse pra mim, era bom.” (Ernesto 14/12/2005). Ernesto é um dos cinco filhos de dona Celestina e seu Solano. Jovem muito engajado nos assuntos do movimento, concluiu recentemente o terceiro ano do ensino médio. Apesar de gostar muito de trabalhar na estufa de pimentão do pai e de fazer os trabalhos da roça, seu grande sonho é ser caminhoneiro e correr o mundo. Como muitos jovens, trabalha todos os anos colhendo as melancias que os arrendatários plantam nos lotes dos assentados para “ganhar um dinheiro”. Além disso, sempre sai do assentamento para encontros e marchas do movimento. É um dos integrantes do grupo de teatro “Filhos da mãe...terra”63, que envolve jovens do assentamento nos trabalhos de teatro do movimento. Nessa narrativa, o jovem conta a história do pai de Teteco, Acácio, que viu um buraco na terra. Havia uma chapa de ferro que abria e mostrava o ouro. Entretanto, depois que foi chamar os filhos para ajudá-lo, o ouro havia sumido. Ernesto demonstra perceber o evento como algo positivo, já que queria que o ouro aparecesse para ele. A narrativa foi contada por Ernesto na área da sua casa, perto da cozinha. Ele havia me perguntado se as pessoas falam sobre o ouro enterrado. Respondi que sim e contei-lhe algumas das histórias. Ernesto arregalava os olhos e me ouvia atentamente. Depois, lembrou essa história que seu amigo, filho do protagonista, havia contado para ele. Ernesto ainda mantinha os olhos muito arregalados, distantes, um riso leve na boca. Havia uma completa semelhança no modo como contava sua história, percebendo o evento narrado como algo bom e misterioso, e o modo como seu pai contou suas histórias de quando viu a luz. Na narrativa, um pai encontra o ouro enterrado e vai chamar os filhos para ajudá-lo a retirar a riqueza. No evento narrativo, um filho, ao contar a 63

A formação do grupo de teatro foi resultado do trabalho de um professor de teatro, integrante do grupo “Companhia do Latão”. Meus primeiros contatos com o Assentamento Carlos Lamarca deram-se por ajudar na formação do grupo de teatro do Assentamento. Hoje, o “Filhos da Mãe Terra” constitui-se como sendo um dos principais grupos teatrais do MST, realizando grande número de apresentações fora do assentamento. Fazem parte desse grupo principalmente jovens moradores da “vilinha”.

201

história, segue o modo de contar do pai. Os gestos de pai e filho, ao narrar, ajudam a perceber que o ouro encantado encanta os protagonistas das histórias e os narradores, quando eles o consideram algo bom. Como foi sugerido na análise de N26, o ouro é encantado por poder assumir diferentes formas animadas (bolas de luz, mãe, serpente), por estar vivo e por manifestar-se ao homem. Na presente narrativa, o ouro aparece para um pai, assim como em N18, N19, N20, N21, N23, N25 e N27 tendo aparecido para um homem solteiro em N24 e N26. Em todas essas narrativas, a luz é tomada como algo positivo, com exceção em N19, onde um dos protagonistas (o pai) foge. A recorrência de protagonistas homens e pais é significativa, já que a imagem do ouro se reveste de atributos de feminilidade e de maternidade. Ganha relevância o tema da transmissão nas narrativas do ouro enterrado. Em N27, um pai vê o buraco aberto na terra e o ouro dentro. Vai chamar os filhos para ajudarem-no a tirar o tesouro de lá, mas, quando volta, o ouro havia sumido. Um caminho interpretativo possível permite supor que o ouro se mostre para uma pessoa apenas; porém, quando ela conta a outra, o ouro some. Assim, o ouro enterrado por uma pessoa no passado exige a transmissão a uma só pessoa no presente. Essa pessoa não deve transmitir o ouro a outros. Paralelamente, a questão da transmissão exige a não-divisão. Suponho que tal fato assemelhe-se há impossibilidade dos assentados legarem parte do lote aos filho que se casam, pois a propriedade do lote não pertence ao assentado, e, conseqüentemente, o lote não pode ser subdividido. Para os filhos que se casam, torna-se difícil a vida no assentamento, pois dificilmente conseguem terra para construir sua morada e desenvolver trabalho autônomo. Como salienta K. Woortmann, “(...) é no sítio, onde a terra não é livre, pois é aí pensada como um patrimônio que deve passar de geração a geração dentro de um território de parentesco, que se é liberto” (1990, :44). Imagino que a não-propriedade dos lotes pelos assentados seja um indício da grande restrição que sofre sua liberdade, pois há a impossibilidade de passar o patrimônio. Dada a vontade de que os filhos obtenham lotes no assentamento, muitos pais condenam a vagarosa atuação do INCRA para desapropriar lotes de assentados que não produzem ou que arrendam as terras para produtores de Sarapuí. A fala de Ezequiel: “os filhos vão comer as telhas, os filhos vão comer os pedaços de terra” é evocativa dessa atitude dos pais que, para obter terra para os filhos, pressionam o INCRA e opõem-se aos assentados solteiros e ex-moradores de rua. Para Ezequiel, esse “pensar só na família”, reforçado pela atuação dos padres e da ONG estrangeira, impede que haja a construção de um projeto coletivo para o assentamento. Tomando o assentamento como sítios que, isoladamente, 202

se tornam o território de descendência da família, sem percebê-lo como a terra de um grupo unido de famílias sem-terra, os filhos destruiriam a terra de trabalho e a terra como morada. Talvez, as palavras de Ezequiel denunciem a busca dos sem-terra por lotes para, mais tarde, deixá-los como herança familiar, conforme fazia a família do falecido fazendeiro. Suponho que essa questão seja colocada por N15, quando o fazendeiro quer transmitir sua fazenda como herança a seus filhos para que eles a mantenham unida e não a vendam. Entretanto, quando ela é transmitida aos filhos, eles a vendem para o Estado que a divide entre os sem-terra. Nessa reciprocidade negativa, sob a mediação do mercado, um proprietário fazendeiro transformase em um proprietário Estado. Esse último concede a posse aos sem-terra, que dividem a fazenda em lotes. Como resultado, ocorre a divisão e venda de algo que é transmitido de um pai a seus filhos, gerando, assim, o ódio paterno, que dá ao fazendeiro a licença de voltar do leito da terra e ficar vagando. Nas palavras de K. Woortmann (: idem),

“Nega-se o valor do patrimônio familiar e se repensa a terra como mercadoria e como propriedade do indivíduo, livre para dela dispor como quiser. Pode-se dizer numa metáfora que os ancestrais estão sendo mortos, ou ‘desenterrados’ do solo que simbolicamente lhes pertence” ( :55).

Para os filhos, a fazenda equivalia a dinheiro, riqueza. Obtiveram tal riqueza quando a venderam para o Estado. Por outro lado, em N26, o ouro encantado é um filho dentro de uma mãe. Um sem-terra pai é impedido de transmitir a riqueza encontrada a seus filhos (N27), e, por isso, não ocorre nem a divisão nem a transmissão do ouro. De certo modo, aceitar a riqueza, o ouro filho equivale a negar os filhos, o que seria o contrário de N15, quando os filhos aceitam transformar não só a fazenda, mas também os atributos definidores da pessoa do pai, em riqueza. Na fala de Ezequiel, o fato dos pais pensarem somente em seus filhos é o que os faria negá-los, pois, sem constituir um projeto coletivo para o assentamento, os filhos não produziriam, devorariam a terra e a casa, sem conseguirem o sustento. Atuando como fazendeiros quanto à herança da terra, os semterra estariam fadados ao fracasso. Portanto, uma questão importante que emerge dessas narrativas diz respeito à transmissão da herança paterna aos filhos. A imagem da fazenda fechada e a imagem do ouro enterrado demonstram grande semelhança entre si. Ambas, para serem transmitidas, não podem ser divididas, 203

devem ser mantidas unidas para que não se fechem novamente. Talvez a fazenda esteja fechada por estar dividida, sendo esse o motivo da volta dos mortos de seus leitos de morte. O ouro é guardado pelas giras do demônio, pela mãe do ouro ou pelo boitatá. Mesmo fechado na terra, mostra-se como luz aos sem-terra, no morro ou no céu. Em N27, um pai chama os filhos para retirar o ouro e ele some. De modo diferente, em N26, um assentado solteiro recebe indicações de onde está o ouro e de como pode fazer para retirá-lo. Ouro e fazenda são bens do fazendeiro morto que o acompanham na morte, mas que o fazendeiro também acompanha. Provavelmente, o ouro unido e aberto equivalha à possibilidade de volta da fazenda unida e aberta, do retorno do senhor e da escravidão. Em oposição à fazenda, o assentamento unido e aberto pelo trabalho dos sem-terra, certamente permitiria maior força na relação e contraposição ao INCRA, que “vem tomar a terra”, e ao mercado, que faz “trabalhar como cobra”. A renda que alguns começam a retirar dos lotes pelas associações de famílias seria, portanto, dividida. Reduzir-se-iam as desigualdades que começam a ocorrer e atenuar-se-ia o mando que começa a reger relações dos assentados com os órgãos do governo, e dos assentados entre si.

Bola de Luz e Sorriso Encantado N28- Encontrar o ouro “Olha, cê tá vendo naqueles pés de cana ali? Pois é, lá eu vi um diamante outro dia. Tem um diamante aqui nesse assentamento, só que ele é encantado, sabe. Se eu vi ele num lugar e falei pra alguém, no outro dia ele já muda de lugar. Que nem, eu mesmo, outro dia tava contando pruns companheiros meus que esse diamante apareceu pra mim ali, no meio desses pés de cana, ele já sumiu, foi pra outro lugar. É só falar nele e onde ele está que ele some. Esse mesmo, eu falei e ele mudou de lugar. Foi lá pro meio daquela mata, tá vendo, ali. Ali, tem uma mina, ele foi pra lá. Outra noite, eu tava andando por lá e subiu aquela bolona de fogo, assim, uns cinco metros, e eu fiquei olhando. Era lá que tava o diamante. O diamante é o ouro encantado. É a mesma coisa. O ouro fica assim, em forma de bola de fogo quando aparece. Aparece só pra poucas pessoas, não é para todo mundo que ele aparece. Tem gente que não acredita, tem gente que tem medo. Aqui do assentamento mesmo, acho que ele só apareceu pra mim, pra Lídia e pra Esmeralda. O povo fica achando que é coisa do diabo que coloca o ouro ali pra atentar, que ele fica lá esperando alguém pegar para amaldiçoar. Mas, não, o ouro escolhe qual é a pessoa que vai poder pegar ele. Se outra tentar pegar, pode morrer, ou acontecer alguma coisa muito séria e ruim com ele. E quando for pegar, tem que saber pegar. Quando ele aparece, tem que batizar, pra ele transformar em pedra de ouro, em diamante. Você pega o dedo e fura nessas farpas do arame, daí joga o sangue pra cima da bola de fogo. O fogo pára e vira ouro. Tem que batizar o ouro com o sangue pra desvirar em pedra de ouro. Isso daí eram os antigos que ensinavam. Esse ouro encantado aqui nessa fazenda, eu acho que foi algum escravo que enterrou, ou foi algum estrangeiro, algum espanhol ou italiano que veio para o Brasil, que naquele tempo tinham muitos. Ás 204

vezes, ele veio aqui para ter terra e não conseguiu, por conta de que aqui já tinham muitos senhores, daí ele enterrou o dinheiro aqui. O dinheiro da época, não sei se era réis, deve ter enterrado o dinheiro. Depois que enterra, o dinheiro se transforma em ouro, sofre um encantamento e daí ele muda de lugar. Geralmente, o homem que enterrou o ouro, ele morreu devendo, morreu com dívida. Pra você poder pegar o ouro, geralmente vem um espírito, ou no comecinho da noite, ou em sonho e fala pra você onde está o ouro, e avisa que você pode pegar. Fala onde está e tudo. Comigo nunca aconteceu de vir um espírito aqui e dizer. Mas se acontecesse, eu ia querer que viesse o ouro aqui no meu lote, que aparecesse bem aqui.” (Sertanio 8/12/2005). Em sua casa, Sertanio continuou contando sobre o ouro e o diamante encantados. Mantinhase em pé todo o tempo e fazia desenhos no chão da terra. Enquanto contava sobre a bola de fogo, fomos à frente de sua casa para vermos o local da mata onde a bola havia subido e descido. Quando me explicou como deveria ser feito o desencantamento do ouro, fomos até a cerca, ele passou o dedo na farpa do arame e quase se furou. Sertanio mesclava o tom sério a um sorriso muito próximo àquele de Solano, Ernesto, Hermes e Valentino. O fato de a bola de luz aparecer para ele era motivo de deslumbre, já que poderia significar seu enriquecimento. O “sorriso encantado” desses narradores, ao contarem sobre as visões de bolas de luz como bênçãos e / ou ouro encantado, revelam certa diferença com relação ao riso tenso dos narradores ao descreverem eventos como a presença dos escravos, as aparições do fantasma fazendeiro e de bolas de luz malignas. O “riso tenso” gera um “enquadramento performático” por meio do assombro dos sem-terra, que percebem em si ou em outros os atributos que compõem a pessoa do fazendeiro: mando, violência, medo. Em N16 e N19, pode-se perceber como esse “riso tenso”, em histórias sobre as bolas de luz, procura distanciar-se do maligno e do mando no assentamento. De modo diferente, o “enquadramento performático”, durante as histórias de visões de bolas de luz como bênçãos e / ou ouro encantado, leva a um “sorriso encantado” que toma as faces dos narradores. Em tais eventos narrativos, assumem uma postura contemplativa, com o corpo relaxado e olhos que se perdem na lembrança, ou levantam-se da cadeira e reconstituem, gestualmente, o cenário, o movimento da bola de luz e os gestos do protagonista. Reconstituindo esse espaço liminar (V. Turner, 1984) onde, no risco de perder a alma para as giras do demônio (N19), os narradores confrontam-se com a vida e a morte, a riqueza e a pobreza, o bem e o mal. Nesse momento, lembrome de M. Taussig, quando reflete sobre o ato de “tornar-se um curador”. O autor ressalta que: “Ao tornar-se um curador, apresenta-se a ele a seguinte opção: sucumbirá à intrusão da morte, subsequente à perda da alma, ou permitirá que o trauma, causador da doença, e a ajuda

205

do curador voltem a tecer as forças curativas em sua personalidade e em sua experiência de vida, transformando-as em uma força que transmite vida a ele mesmo e a outros” (1987,: 418). Suponho que as visões de bolas de luz ocorram igualmente nos limites da vida e da morte, traçados por imagens como a da árvore iluminada ou a dos morros do assentamento. Nesses espaços situam-se fronteiras que demarcam a passagem da vida à morte dos escravos, da terra fértil para a terra infértil. Próximos a tais espaços, os assentados constituem a morada de suas vidas, as terras de trabalho e negócio. É para esses espaços que os narradores são transportados (R. Schechner, 1985) enquanto contam sobre bolas de luz e sobre o ouro encantado. Em tais cenários, encontram-se consigo mesmos, ou descrevem casos ocorridos com outros assentados no momento da visão. A encenação ou a ausência dos narradores revelam esse efeito de distanciamento, diferente daquele em que o corpo tenso e o riso justapunham imagens dos sem-terra àquelas do fantasma do fazendeiro e dos escravos. Seria possível pensar na busca pela cura nessas visões de bolas de luz e ouro encantado? Por vezes, Solano levantava-se da cadeira e mostrava com as mãos e o braço como teria sido o movimento das bolas de luz. Ernesto, seu filho, ao narrar, arregalava os olhos, levantava-se para mostrar como Acácio teria visto o ouro. Hermes e Valentino traçavam no ar os movimentos e tamanhos das bolas. Sertanio desenhava no chão, apontava para os lugares da visão e encenava como deveria ser o batismo do ouro. Acredito que esse “sorriso encantado”, onde o corpo se relaxa das tensões cotidianas e encena o momento da visão, ou onde a respiração se faz longa, os olhos distantes e o corpo, solto na cadeira, salienta a empatia, a identificação com a bênção divina e / ou com a possibilidade de enriquecimento. Ao caminharem no espaço da morte, esses narradores aproximavam-se das fontes do poder do fazendeiro / senhor, e mesmo de seus antigos patrões e latifundiários. O ouro e a terra mesclam-se no tesouro encantado, traduzindo a riqueza que se esconde na terra, como que plantada no solo. Longe da sede, como em N1, os narradores aproximam-se das bases materiais encantadas do “fantasma fazendeiro”, ou daqueles que anteriormente acumulavam riqueza e a entesouravam. A bênção divina incide sobre a família e seu trabalho com a visão da bola de luz, que lembra a “estrela guia”. Plantações, criações e apoios financeiros são abençoados pela imagem celeste. Em oposição, as visões do ouro encantado mostram a possibilidade do enriquecimento individual, sem o trabalho e sem a família. Essas visões surgem tanto para solteiros, quanto para membros de famílias extensas, onde figuras paternas são centrais. Nesse último caso, as visões do ouro encantado podem sinalizar certa subversão no interior da ordem moral camponesa pretendida. Assim, o “sorriso 206

encantado” expressa a tensão entre dois modos de assegurar a renda na terra, por meio do trabalho familiar ou pelo enriquecimento. Com o olhar perdido e o sorriso contemplativo, ou incorporando os protagonistas, narradores postavam-se distantes de seu dia a dia de trabalho, quando se tem de rastejar “como cobra” para fazer pimentões e vacas produzirem a renda, ou então sair do assentamento e trabalhar em sítios próximos, como é o caso de Sertanio. Contraponto ao “riso tenso”, o “sorriso encantado” mostra também a identificação com aquele que possuía todas as terras da região, unidas e abertas, e que enriquecia plantando e criando gado. Tal identificação com a possível riqueza do fazendeiro se dá entre famílias que começam a obter maior renda que outras, ou entre aqueles que, como Sertanio, não conseguem obter renda de seus lotes. O “sorriso encantado” aproxima os assentados da imagem do fazendeiro e do patrão, não através de suas almas penadas, mas das fontes de sua riqueza. Os sem-terra, que apresentam dificuldades em constituir suas famílias enquanto assentadas, relacionam-se entre si ao tentar fazer a terra estéril produzir para garantir o sustento da família e também para obter a renda do lote, o que implica em ligar-se produtivamente ao mercado. Em compensação, encontram, na imagem do ouro enterrado nas terras do fazendeiro, a expressão da fusão de forças antagônicas de medos e inseguranças, contrabalançando-se com novas possibilidades e esperanças. Talvez, com o relato das visões de bolas de luz, os narradores procurem refletir sobre os segredos dessa terra, que gerou tanta riqueza no passado, mas agora se recusa a produzir. Estaria aí, a meu ver, um possível papel de cura. Logo no início da narrativa 28, o narrador relata ter visto um diamante encantado nos pés de cana. No morro onde está o lote de Tião, os pés de cana são plantados para servir de alimento para o gado da associação Agrosul, da qual o assentado faz parte. Ao mesmo tempo em que a cana sustentaria as novas vacas para darem o leite que possibilitaria a renda da associação, aos olhos de Sertanio, os pés de cana lembravam riqueza e diamante. Dessa terra adubada para produzir a ração para o gado, o diamante vai para a mata, terra igualmente fértil, mas reserva florestal interditada aos assentados. Em dado momento, o narrador afirma querer que o diamante apareça em seu lote, onde a terra é pouco fértil, onde há pouco gado e plantações. Mesmo desejando enriquecer, Sertanio contou para “uns companheiros” onde estaria o tesouro encantado e isso fez com que o diamante mudasse de lugar. Por meio da visão da luz, o assentado teve acesso à direção de onde estaria o diamante, mas, pela fala, por contar a seus companheiros, ele perdeu a direção do tesouro. Desvendar o segredo do ouro encantado implica em não narrar, mas mesmo assim os assentados partilham a visão e o segredo. Enquanto andava pela mata, à noite, Sertanio tornou a ver o diamante por meio de uma bola de fogo que subiu perto da mina d’água. O próprio fato de estar contando-me onde viu o diamante já 207

significaria a mudança de lugar. Dessa forma, repete-se o que havia acontecido em N27, quando o protagonista chama os filhos para ajudá-lo a retirar o ouro do buraco. Se a pessoa a quem o ouro encantado se mostrou mantiver silêncio, ele permanecerá no mesmo lugar e a pessoa poderá retirálo. Caso conte para outra pessoa, o ouro mudará de lugar e ela não saberá mais onde ele está. Como em N27, contar onde está a riqueza significa transmitir a outros a possibilidade de pegá-lo, dividir o ouro. Possivelmente, para preservar tal segredo, o fazendeiro tenha matado seus vinte escravos e depois os tenha enterrado com o ouro (N13). O diamante faz-se avesso à troca de informações entre os “companheiros” que poderiam enriquecer juntos (N28). O ouro faz-se avesso a que os filhos de Acácio tenham acesso à riqueza (N27). Supõe-se que a riqueza só pode ser transmitida se permanecer unida e se uma pessoa retirá-la. Para que a pessoa escolhida tenha acesso à riqueza, ela deve silenciar, não trocar, não partilhar. Contando a outros, os narradores vão constituindo a “realidade fantástica” desse espaço da morte, onde terra e ouro, fontes de vida e poder do fazendeiro / senhor, podem ser convertidas nas fontes da vida e riqueza de um sem-terra. Apesar do ato de contar gerar a mudança, os narradores transmitem as visões a seus “companheiros”, trocando a possibilidade do enriquecimento individual pela partilha do segredo.

Vem te pegar Na assembléia com a “coronela do INCRA”, Sertanio defende Célio, quando esse era acusado de abandonar a mulher no lote e ir trabalhar em São Paulo. Sertanio diz que muitos assentados como ele tinham de sair do assentamento para conseguir “batalhar um dinheirinho”, já que não conseguiam tirar a renda suficiente dos lotes. Para ele, apenas com a ajuda e financiamentos do INCRA e do ITESP, conseguiriam viver apenas do lote. De certo modo, tanto no dia a dia de trabalho, quanto nas visões das bolas de fogo, Sertanio persegue, procura dinheiro no assentamento e fora dele. Procura quem “dê dinheiro” para ele fazer seu lote produzir, pois corre o risco do INCRA vir “tomar a terra”. Fora de associações e redes de parentesco, conta com alguma ajuda de Sinira. Certo dia contou-me sobre um sonho em que seu vizinho Tião queria pegar parte de seu lote para aumentar o pasto. O pesadelo talvez revele que não só o INCRA, mas também os próprios assentados, ao pressionarem a instituição para tirar a terra, “vêm te pegar”. À noite, Sertanio não vai pegar o diamante na plantação de Tião, prefere esperar que o ouro encantado apareça em seu próprio lote. Enquanto procura dinheiro dentro e fora do assentamento, as vacas da Agrossul começam a dar leite, precisando sempre de mais pasto e mais cana. Crescem os filhos da

208

“comunidade”, casam-se e querem terra junto aos pais. Com o tempo, talvez vacas e filhos vejam o lote de Sertanio como tesouro escondido. Ramiro comenta da seguinte maneira os problemas gerados pelas produções de pimentão e leite no assentamento:

“Eu não nasci pra ser escravo do mercado. Esse povo aí que está aí com esse pimentão, eles estão é perdidos, porque o mercado não perdoa. Se você é grande produtor, ainda vai, mas se você é pequeno... nem médio a gente é, nós não conseguimos. Tinha um homem que eu conheci lá no hospital. Ele falou que tinha uma estufa e dava pra mim de graça. Ele tava com o pimentão parado. Não dá, oscila o preço muito. Esse homem tem uma fazenda grande, com todo o equipamento. Disse que no leite tava com dois mil reais de prejuízo, por mês. E o pessoal tá aí entrando no leite. Eles vão é pro fundo do poço.” (Ramiro, 14/12/2005).

No hospital, entre a vida e a morte depois de um derrame, Ramiro conhece um grande fazendeiro que produzia leite e pimentão, mas que só estava tendo prejuízo. O mercado aparece como equivalente ao senhor que escraviza, levando para o “fundo do poço” até mesmo um grande fazendeiro. Os assentados que produzem pimentões e leite pelas associações estariam sendo escravizados pelo mercado. “Trabalhando como cobras” nas estufas ou voltando seus lotes para a produção de leite, os assentados perdem sua liberdade de decidir sobre o preço, modo de produzir, e como gerir o lote. Em seu julgamento, as associações estariam levando cada vez mais os assentados a aproximarem-se da imagem dos escravos, sujeitos não mais a um senhor fazendeiro, mas ao mercado que submete até mesmo grandes fazendeiros a seu mando. Se os assentados surgem como “escravos do INCRA”, que “dá a terra”, mas pode “vir tomar a terra”, caso não produzam, os semterra estariam vivendo num momento de perigo, pois, de um lado, há o mercado a quem têm de submeter-se e, de outro lado, está o INCRA, que “vem tomar a terra”, caso não consigam a renda. Nas narrativas, surgem um pai fazendeiro que não consegue legar as terras aos filhos (N6 e N15) e a mãe do ouro que “dá o ouro”, mas que também “vem te pegar” (N17 e N26). É possível entender que a desgraça do pai fazendeiro foi ter se apropriado de sua riqueza individualmente, não tendo conseguido repassá-la aos filhos, já que esses tomam as terras como mercadoria e visam ao enriquecimento individual com sua venda, sem, no entanto, assegurar às gerações futuras dos Almeida Prado a riqueza pela produção da fazenda. O mercado submete também esse grande fazendeiro às suas imposições implacáveis, não lhe permitindo legar suas terras aos filhos. Estabelecendo-se um paralelo entre o pai fazendeiro e a mãe do ouro, pode-se inferir que, como a riqueza do fazendeiro, representada pelo ouro, não foi herdada por seus filhos, a mãe do ouro intercede para que um sem-terra assuma o lugar do filho do fazendeiro e herde sua riqueza. 209

Entre as famílias assentadas, relações difíceis com o mercado e com os órgãos do governo comprometem algo importante para a continuidade, a transmissão do legado dos pais a seus filhos. A terra faz-se central nessa mediação, pois, por meio do trabalho na roça, os pais transferem aos filhos os conhecimentos sobre o plantio de diferentes culturas. É a terra herdada pelos filhos que garantirá seu sustento e a continuidade da família extensa. Entretanto, a pouca fertilidade da terra e a dificuldade dos filhos herdarem terras no assentamento apresentam sérios riscos para a constituição de uma ordem moral baseada na família, no trabalho, na liberdade e na fé. Para manter a família e o lote, os assentados têm de optar pela produção de mercadorias. Pimentões e leite são “produzidos em série” para um mercado que restringe o controle da produção por parte dos assentados. Aos olhos pessimistas de Ramiro, associados produtores de pimentão e de leite estão se tornando “escravos do mercado”. Como o pai fazendeiro, os sem-terra enfrentam dificuldades em transmitir seu legado aos filhos por causa do vínculo que a terra passa a ter com o mercado. Associados que administram suas produções relacionam atributos de mando e poder a pais que acabam comandando a produção de associações. Padres e ONGs também restringem tal autonomia, mas abrem a possibilidade da renda pelo negócio, nessas terras de difícil produção. A tensão entre trabalho e negócio, entre sitiantes-comerciantes, é pensada da seguinte forma por K. Woortmann: “Sitiantes-comerciantes, por vezes, se tornam exclusivamente comerciantes. Mas, é apenas em situações de diferenciação social acentuada que o negociante deixa de ser, também, sitiante. Nestes casos, há um ‘descolamento’, uma ruptura com relação aos valores e à ética camponesa...Para a maioria, porém, o negócio é um dos meios para chegar à terra, isto é, ao patrimônio, condição de realização do pai como sujeito trabalhador e transmissor da terra. Neste plano, não há incompatibilidade entre o negócio e o trabalho, pois o primeiro é o meio para que se realize o segundo. No entanto, é preciso afastar o negócio (impuro) da casa (espaço da família) e do território camponês, localizando-o na cidade” (1990, :40). Nas estufas e pastos, o trabalho começa a misturar as exigências do mercado. Os pimentões são produzidos em série, “iguaizinhos”, por lavradores que rastejam como cobras e jogam fora os “matos” (ervas curativas, saladas e rações) vistos como lixo pelas regras da nova produção. As vacas antigas são substituídas por aquelas que dão mais leite, o pasto é fertilizado e vastas áreas reservam-se a plantações de cana e napie para garantir a ração do gado no outono e inverno. Os lotes começam a ser montados para o negócio, restando pouco espaço e tempo para as “roças mosaicos”. Para realizarem-se como pais capazes de proverem as famílias e assegurarem a 210

transmissão de patrimônio aos filhos, os pais lavradores vão transformando-se em negociantes e os lotes vão impregnando-se das exigências do mercado, para que a terra dê frutos, dinheiro e moradia. Como o falecido fazendeiro, querendo legar terra para o trabalho dos filhos, os pais acabam legando uma terra para o negócio de pimentões e leite. Há nisso o risco das novas gerações não perceberem a riqueza da terra, não apenas no dinheiro que ela possa gerar, mas também na partilha de saberes e técnicas, de um certo “afeto da terra” (C. R. Brandão,1999c). Em N28, no passado, alguém enterrou o dinheiro na fazenda. O narrador, diferente de N13 e N14, aponta que um escravo ou um estrangeiro teria enterrado o ouro. Tanto o escravo como o estrangeiro representam duas imagens que se opõem ao fazendeiro, senhor de terra, que lega sua riqueza a seus descendentes. Não há quem receba a herança enterrada do escavo ou do estrangeiro, que não puderam comprar terra por suas condições sociais. A pessoa que enterrou o dinheiro teria morrido com dívida, apesar de ter dinheiro enterrado. Talvez, essas imagens evoquem uma forma de troca lucrativa, onde a dívida designa uma espécie de roubo. No caso de N13 e N14, o fazendeiro teria morrido devendo, apesar de ter uma grande riqueza enterrada em suas próprias terras. Já em N28, a frustração da compra de terra teria levado o estrangeiro a enterrar o dinheiro e a morrer com dívida. A imagem do estrangeiro é interessante, pois é alguém que, “no tempo dos senhores”, quis fazer da terra mercadoria, algo em que ela se transformou no “tempo dos filhos e latifundiários”. Por fim, o escravo não possuía personalidade legal e, assim, suas possibilidades de uso e transmissão da riqueza a descendentes eram restringidas. Provavelmente, morrendo o escravo com a dívida, morre também seu senhor endividado. Como mostra K. Woortmann (:idem), o negócio é considerado, entre muitas populações camponesas, como roubo, já que um sai ganhando e o outro, perdendo. Para aquele que enterrou seu dinheiro e contraiu dívida, o negócio foi sua perdição e a causa de sua morte. Já para os assentados, o negócio começa a ser a possibilidade da realização do pai, o caminho da liberdade (:41). Estendendo a noção de dívida, é possível dizer que a não-transmissão da fazenda unida aos filhos (N15) designe uma divida do fazendeiro para com seus ancestrais, de quem recebeu a fazenda unida e aberta. De forma semelhante, os pais assentados, que não conseguem produzir autonomamente em seus lotes e que não conseguem garantir a herança aos filhos, se encontrariam em dívida para com seus próprios descendentes. Sob o signo da dívida, a “coronela do INCRA” vem tomar as terras daqueles assentados que não produzem no lote, como prometeram no contrato de assentamento. Ela não repassa financiamentos para o término das casas de quem formou a “vilinha” e, nesse sentido, “vem te pegar”. Como estrangeiros, os sem-terra não conseguem obter a propriedade da terra. Como escravos, submetem-se ao mercado para saldarem suas dívidas com o INCRA. Perdem sua 211

autonomia para não perderem a terra. Como aqueles que perseguem o ouro encantado, quanto mais se aproximam da riqueza e liberdade, mais encontram a ameaça da pobreza e do cativeiro. Contrariando a regra de que quanto mais trabalharem e separarem-se, mais rápido conquistarão a propriedade do lote, Ezequiel agarra-se à exceção de que quanto mais unidos estiverem em torno de um “projeto de futuro”, mais força terão para garantir a posse e propriedade da terra. A mãe do ouro escolhe um sem-terra para herdar o ouro, enquanto a “coronela do INCRA” escolhe assentados divididos para conseguirem a posse da terra. Uma espécie de maldição incide sobre o fazendeiro, o escravo ou o estrangeiro, que não descansam no leito da terra, voltam e ficam rodeando a riqueza enterrada. Como sugere N28, para muitos o ouro e seu encantamento são colocados pelo Diabo, que o enterra para atentar, amaldiçoar e matar. Assim, se o homem seguir a tentação do ouro, poderá perder a vida para o Diabo, como aquele que enterrou o ouro. O Diabo torna-se uma figura de mediação entre a vida e a morte. Provavelmente, aquele que perde a vida para o Diabo por deixar-se seduzir pela tentação da riqueza individual, não partilhada, transforma-se em uma assombração. O morto que enterrou o dinheiro e não pagou a dívida ficou com o tesouro para ele e lucrou, roubando. Dessa forma, perdeu sua vida para o Diabo e transformou-se numa assombração. A terra da fazenda onde o ouro foi enterrado adquire a mesma característica do ouro e dos escravos, torna-se fechada.

Batismo do Ouro Com rezas, novenas e folias de reis, os assentados buscam a proteção divina para as famílias e para a produção. A terra abre-se aos assentados por meio de adubos e estufas, que dificultam a transmissão de saber tradicional aos filhos, e o controle do trabalho pelo pai. Por outro lado, a atuação do INCRA, a legislação e a família extensa de Sinira dificultam a herança da terra. A fazenda fechada pela morte de muitos escravos (N1) começa a abrir-se à produção dos sem-terra, que dividiram as terras unidas e procuram trabalhar em família. Engajando-se na luta pela terra, os trabalhadores buscavam transformar a terra de negócio dos latifúndios improdutivos em terra de trabalho. Entretanto, os riscos de não conseguirem realizar a vida da família no assentamento levam muitos a terem de mesclar a terra de trabalho à terra de negócio. As imagens do Diabo e do senhor de escravos vinculam-se ao mercado e ao INCRA que, cada vez mais, afirmam seu controle sobre a produção e sobre a apropriação de seus lotes por parte dos assentados. Se uma maldição se impôs sobre aquele que enterrou o ouro, pode-se pressupor que uma maldição também paire sobre os sem-

212

terra que, para produzirem, têm de submeter-se ao mercado e ao INCRA. Ao analisar os rituais do “batismo do dinheiro” entre camponeses do Vale Cauca, M. Taussig procura demonstrar como a constituição do mercado envolve a interação entre o fetiche da mercadoria e aquele advindo da magia. Com tal batismo, é negado à criança seu lugar nos ritos e na cosmologia local, enquanto o praticante enriquece, cometendo um ato imoral. O fetiche da mercadoria é lançado no reino do sobrenatural e do mal (1980, :126-:129). No “batismo do ouro encantado”, apesar de haver a possibilidade do enriquecimento individual e imoral, o narrador partilha o segredo e, assim, abre a possibilidade de que todos enriqueçam ou de que todos permaneçam iguais, livrando-se dos perigos malignos dessa troca com as giras do demônio. Como uma possível interpretação do ato do batismo, pode-se dizer que ele tem capacidade para reverter não só a maldição que incide sobre aquele que enterrou o dinheiro, mas também a maldição que dificulta a obtenção de renda de seus lotes por parte dos sem-terra. Segundo Sertanio, jogar o próprio sangue sobre a bola de fogo desfaz o encantamento e garante a riqueza a quem a encontra. Se, é da terra que os assentados retiram sua riqueza, em família, o fechamento da fazenda, da terra infértil, é o que impede a realização da produção. Nas terras que constituíam a riqueza do fazendeiro (N15), as famílias dos sem-terra ocupam o lugar dos filhos herdeiros. “Filhos bastardos”, os sem-terra não conseguem herdar as terras do fazendeiro, e não conseguem legá-las a seus próprios filhos. Tanto em N17, a mãe do ouro quer transmitir seu filho, quanto em N26 a mulher quer transmitir a riqueza da terra. O ouro enterrado faz-se mediação entre a terra que o fazendeiro deixou para os filhos produzirem (N6), e aquela que os sem-terra receberam após a luta política e a compra pelo Estado. Os filhos do fazendeiro transformaram a terra em dinheiro e, assim, esses filhos equiparam-se ao dinheiro. Os sem-terra tentam transformar os frutos da terra em renda, ao mesmo tempo em que buscam fazer da terra território de parentesco (K. Woortmann, 1990) para garantirem a terra a seus filhos e, como resultado, assegurarem a continuidade da ordem moral familiar. A mediação do mercado na reciprocidade negativa entre os filhos do fazendeiro, o Estado e os sem-terra parece bloquear a possibilidade de constituir a terra enquanto território de descendência, nos moldes de uma ética camponesa (N6, N15). Uma parte dos assentados busca constituir suas famílias no assentamento e assegurar a transmissão de saberes e terra às gerações futuras. O vínculo de sangue entre um sem-terra e o ouro enterrado nas terras que pertenciam ao fazendeiro talvez sinalize a possibilidade dos sem-terra assumirem o lugar dos filhos do fazendeiro, numa ordem moral e sagrada. Entre esse pai poderoso, que foi o fazendeiro, e os sem-terra pais e, 213

ao mesmo tempo, filhos bastardos, coloca-se a imagem tensa da mãe do ouro, que “dá a riqueza da terra”, mas também “vem te pegar”. Entre o falecido latifundiário e os assentados que conquistaram a terra, surge a imagem da “coronela do INCRA”, incumbida de assegurar e auxiliar a renda e trabalho dos assentados, mas, ao mesmo tempo, representando a ameaça de “tomar o lote” de quem não agir segundo as regras. Suponho que o batismo do ouro ou o ato de desenterrar a riqueza das terras do falecido fazendeiro implica numa reciprocidade entre os sem-terra e o fazendeiro falecido. O batismo do ouro com o sangue de um sem-terra mostra o vínculo entre os termos antagônicos (latifundiário/sem-terra) dos conflitos agrários. O batismo do ouro é também aquele dos sem-terra reconhecidos como herdeiros do fazendeiro, não pelos contratos do INCRA-Satanás (Lelo) ou pelo mercado (N15), mas pela ordem moral da família, onde o batismo, a reza e as bênçãos são os sinais divinos que não só lhes possibilitam produzir, como também lhes garantem a continuidade do território de parentesco. A mãe do ouro faria, portanto, a mediação entre o pai fazendeiro e os filhos sem-terra, as giras do demônio e a “estrela guia”, a terra de trabalho e a terra de negócio. Com o “sorriso encantado”, os narradores refletem sobre as possibilidades de enriquecer nas terras que antes pertenciam ao fazendeiro, e de legarem aos filhos a terra conquistada. A perigosa empatia com a imagem do fazendeiro rico traduz-se em desigualdade quando um assentado ou família de assentados começa a deter maior poder econômico que outras (Mourão). Assim, ao contarem a outros os segredos do ouro, alertam para os perigos da tentativa de enriquecimento individual. Reconstruindo visões do espaço da morte, os narradores partilham os riscos de tentar buscar o ouro encantado nas terras que pertenceram ao fazendeiro. Perder a alma e a liberdade para o Demônio, senhor, mercado, etc. são conseqüências desse enriquecimento desigual. Na busca por conquistarem terras para a família, muitos assentados opõem-se aos solteiros ou à família de Sinira. A mãe solteira, que trabalha como um homem e também possui aliança com muitos homens solteiros, assegura que solteiros e famílias sem laços de parentesco permaneçam nos lotes. Sinira representa um risco para os filhos de assentados e para a “comunidade” (Machado), e a possibilidade para que se construa um “projeto coletivo” que não vise apenas às famílias (Ezequiel). A mulher que quer legar a riqueza aos solteiros (N17, N26 e N27) impossibilita a transmissão e divisão da riqueza da terra, negando, desse modo, a ordem moral da família. Entre apropriar-se individualmente da riqueza e dividi-la com a família, Acácio, Solano, Sertanio, Ernesto, Moisés e Severino optam pela partilha da experiência no espaço liminar e perdem o ouro. Também o fazendeiro escolheu transmitir a riqueza à família, e acabou perdendo as terras para os sem-terra 214

(N15). O “sorriso encantado” evoca, por meio do olhar distante e da contemplação, os novos processos de produção que transformam a terra de trabalho idealizada pelos sem-terra em terra de negócio, possibilidade aberta para que os assentados realizem suas famílias e conquistem sua liberdade. Ao retirarem a autonomia do pai, tais processos dificultam a transmissão de saberes e da própria terra. Para alguns assentados, tal processo gera uma escravização com relação ao mercado e o risco de não conseguirem renda (Ramiro). A aproximação da imagem dos escravos viria acompanhada da perda de liberdade pelo retorno do cativeiro. O mando submeteria os assentados, sendo ele exercido diretamente pelo INCRA, pelo mercado, pelo movimento ou por assentados. Para outros, surge a esperança de enriquecimento pelo negócio e possibilidade de realizar a família e o trabalho, fato esse que honraria a luta pela terra e a reforma agrária, sinais também da vitória de Deus sobre o Diabo (Jaci e Lucila). Os sem-terra se aproximariam da imagem dos escravos vendoos apenas como ancestrais que sofreram e lutaram, não havendo o perigo do retorno do cativeiro. A liberdade dos sem-terra na terra conquistada, atestada pela produção e constituição da família no lote, seria a “luta no lote” (João Rebelo, Silas, Machado e Hermes.), posterior e complementar à “luta pela terra”, contribuição dos assentados à luta política contra as “elites opressoras”. Relatando suas visões nos espaços da morte, os narradores retratam esses processos por meio de imagens de bolas de luz e ouro encantado, alertando para os perigos mortais e imorais implícitos no vínculo com o mercado e o Estado. Creio que tentativas de cura dos “traumas deixados pelo capitalismo” (Ramiro) vão sendo tecidas pelos narradores que percebem os perigos das promessas de progresso e riqueza, além de estarem conscientes da desigualdade que emerge com a liberdade conquistada pela submissão ao mercado.

215

Considerações Finais

I

Aos dezessete anos travei meu primeiro contato com o que vim a descobrir, mais tarde, ser a luta pela terra e reforma agrária. Visitei o acampamento Nova Canudos, em Porto Feliz-SP, com o Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). A vertigem dos barracos de lona preta derretendo ao sol, esparramados às margens da rodovia, as falas dos militantes e as discussões à sombra de uma mangueira parecem estar ainda presentes em meus olhos e em meu olhar. Ecoam ainda as palavras de um acampado que registrei num caderno de poesia, espécie de caderno de campo de um etnógrafo espontâneo. Disse o acampado: “Essa luta aqui, que eu faço, não é pra mim não, é para os meus filhos e para a sociedade inteira”. Diamante fundido entre si e o mundo, essas palavras e gestos animam uma alteridade tecida por um caminho na fronteira entre os sem-terra e o pesquisador. Em meio a constatações acadêmicas do “Impossível Diálogo” (J. S. Martins, 2000b), diante da questão agrária, foquei a atenção em falas e gestos de pessoas abstratamente denominadas como “base”, “massa”, “sem-terra”, “militantes”, etc. que adquirem “consciência política” através de trabalhos de base da frente de massas, setor do movimento. Histórias de assombração, enquanto recursos de distanciamento com relação à racionalidade presente em discursos de agentes do governo, latifundiários, padres e militantes, e num modo dos assentados contarem sua própria “história política” (acampamento, ocupação, conflitos entre assentados), permitiram, talvez, entender melhor a complexidade do olhar crítico desses assentados, que sentem nos nervos, as tensões de lutar “para os filhos e para a sociedade inteira”. Vivendo em meio às dificuldades da questão agrária, os assentados mantêm diálogos tensos com o Estado, o mercado, a Igreja Católica, o MST e entre eles mesmos. Permanecem buscando o possível e o impossível na terra ora árida, ora fértil da questão agrária. Descrevendo e comentando narrativas, pretendi mostrar a complexidade de uma experiência, muitas vezes, simplificada em termos de latifundiários x sem-terra, base x liderança, ethos camponês x ideologia política, etc. Por um lado, busquei ampliar as possibilidades de compreensão 216

de gestos e palavras que expressam a experiência desses assentados. Por outro lado, acredito que captar as imagens tensas que compõem seus pontos de vista ajude a estranhar as formas de reforma agrária em disputa no cenário político atual. Talvez, assim espero, as narrativas que versam sobre escravos, fazendeiro, bolas de luz, ouro encantado e os próprios sem-terra ajudem nessa vontade compartilhada de transformar a sociedade inteira. Perceber assentados e militantes não como agentes que reproduzem distorcidamente teorias sociológicas, mas como sujeitos que produzem um pensar crítico relevante para a “história possível” da reforma agrária (idem), constitui um princípio importante que norteou esse trabalho.

II No período de 1979 a 1985 ocorre uma importante intensificação da luta pela democracia, impulsionada, em grande parte, pelas lutas trabalhistas no campo e na cidade. A gênese do MST, enquanto um movimento social nacional, torna-se possível a partir da articulação das diversas lutas camponesas localizadas. Como mostra B. M. Fernandes (1996), as ocupações de terra estabelecemse como a principal ação de luta posta em prática pelas famílias do movimento. Para o autor, a questão agrária é recolocada no cenário político nacional devido o aumento das ocupações por todo o país que leva à intensificação dos conflitos agrários ( :17). Grande parte da mídia passa a promover discursos que demonizam a atuação dos sem-terra (J. S. Martins, 2000b). Além disso, órgãos do governo federal, como o INCRA, e de governos estaduais, como o ITESP, começam a atuar mais próximos aos grupos a serem beneficiados através de medidas que levam à reforma agrária. A partir desse novo contexto em que se inserem os movimentos sociais de luta pela terra e pela reforma agrária, inicia-se um período marcado por inúmeras pesquisas acadêmicas que enfocam as novas formas de organização política, econômica e social, características dos acampamentos e assentamentos. J. S. Martins, ao iniciar seu trabalho sobre a “Reforma Agrária”, aponta que a posse da terra e a escravidão são dois temas pendentes da história brasileira, e que se relacionam à questão do trabalho livre e à questão agrária (2000b, : 11). A imagem tensa dos escravos que sofreram na antiga fazenda no tempo dos senhores surge nas narrativas. Pensando sobre os escravos, assentados refletem acerca das contradições da identidade dos sem-terra e sobre a própria condição da terra, fechada e pouco fértil. A imagem de “escravos companheiros que são maus também” aproxima e distancia os sem-terra desses antecessores, cujo sofrimento reverbera até os dias atuais nesses 217

“trabalhadores livres” que descobrem, em “senzalas que viram delegacias”, as marcas de um cativeiro que se aproxima. Questão agrária e questão do trabalho livre são tematizadas através das histórias de assombração e salientam, a meu ver, a necessidade de perceber os sem-terras não como “heróis sacrificiais”, pobres da terra que perseguem interesses estranhos aos seus, traçados por agentes mediadores (CPT e MST), como aponta J. S. Martins ( :14), mas como agentes transformadores, cujas ações de ocupação de latifúndios impulsionam uma “reforma agrária” sempre racionada e paleativa do governo federal, como mostram os dados da pesquisa de B. M. Fernandes (2000a). O cemitério na mata e as “catumbas” salientam as dificuldades que os assentados enfrentam, trabalhando numa terra que também tem a sua história. O acampamento muitas vezes torna-se o lugar seguro, o tempo de luta, de união e de uma identidade de sem-terra, para onde os assentados dirigem seus pensamentos quando estão diante da dificuldade em produzir e em transmitir seus conhecimentos e a terra aos filhos. Escravos são imagens de trabalhadores fortes, que, mesmo em face do sofrimento, ausência de direitos, e violência, se contrapunham aos senhores. De modo semelhante, para B. M. Fernandes (1994) (2000a), os sem-terra surgem como trabalhadores explorados e expropriados que, em trabalhos de base, ocupações, acampamentos, passeatas, místicas, etc, considerados espaços de socialização política, adquirem consciência de seus direitos e da necessidade de contrapor-se aos latifundiários e ao Estado. No entanto, os acampamentos e ocupações constituem espaços onde emergem momentos de conflitos entre os próprios sem-terra que, unindo-se em torno de uma identidade comum, percebem diferenças em suas próprias condições materiais e de conhecimentos como mostra o trabalho de M. C. Turatti (1999c). A fala de Sertanio, em que o trabalhador, ao chegar ao acampamento, percebe a diferença entre aqueles que tinham instrumentos de trabalho e aqueles que possuíam apenas a roupa do corpo, faz-se fértil para entender essa questão. Escravos são maus também, porque suas imagens vêm carregadas do sofrimento do cativeiro e da morte, das quais os sem-terra procuram distanciarse. Como apontam alguns assentados, os sem-terra também estão impregnados dos “vícios que o capitalismo deixa”. Propondo-se a construir um projeto coletivo, de “futuro”, surgem inúmeras dificuldades e conflitos. O afastamento do próprio movimento, quando ocorrem os conflitos pela divisão dos lotes, revela dificuldades que a atuação política da organização tem para entender e agir em meio a essas situações. “Intelectuais orgânicos”, como são definidos por B. M. Fernandes, ao descreverem apenas os momentos das ocupações como centrais à constituição de uma identidade de sem-terra, engajados na luta contra latifundiários, o Estado e exploradores em geral, deixam de lado 218

importantes dimensões conflitivas desse processo. Tanto para o MST quanto para tal intelectualidade, há a dificuldade em tomar tais momentos como férteis para o aprofundamento crítico de uma consciência que apenas desperta no ato de “virar sem-terra”. Penso que um longo processo de mediações é que aprofunda uma “consciência critica” desses trabalhadores. Processo esse marcado por conflitos e crises entre os sem-terra e o próprio MST. A “consciência de direitos” e da necessidade de lutar contra a exploração e expropriação não se encerra, portanto, nos trabalhos de base, acampamentos e marchas, como leva a crer o ponto de vista harmonizador desse autor. Insistindo em refletir sobre conflitos entre os próprios assentados e conflitos dos assentados com o MST, o Estado e latifundiários, as histórias de assombração abordam tais temas, salientando dissonâncias e distorções, que sinalizam para a mais longa e complexa constituição da identidade dos sem-terra, e de uma “consciência crítica”. Suponho que o olhar crítico conseguido pelos assentados através de suas narrativas, o ato de aproximar-se e distanciar-se da imagem de sofredores, são dificilmente conseguidos pelas análises científicas. Essa visão dos sem-terra como “heróis sacrificiais”, ou simplesmente como “heróis”, com os quais o pesquisador se identifica ou se distancia, porque ele também tem ideais de “transformação da sociedade”, gera grandes dificuldades para a constituição do conhecimento. Por outro lado, olhares que satanizam o movimentam e suas ações são comuns à mídia, como aponta J. S. Martins (2000b), e colaboram para a construção de um maniqueísmo que empobrece a atuação do MST e mesmo a qualidade do diálogo político (:20). Por fim, deve-se ter atenção às relações entre os sem-terra e funcionários do Estado. Imagens como a “coronela do INCRA” e “os sem-terra escravos do INCRA” são expressivas para refletir sobre a distância que há entre esses funcionários e os trabalhadores, marcando relações conflituosas ou entendidas em termos de “dádivas”. Perguntando incessantemente sobre o que é um sem-terra, o que é um fazendeiro, o que é um escravo, as imagens desconstroem certezas, lançam novos questionamentos na tentativa de compreender suas experiências.

III

No assentamento, por vezes, pude perceber um sentimento de rejeição e culpa quanto ao distanciamento do movimento após os conflitos pela divisão dos lotes. Alguns diziam que no assentamento não havia “os sem-terra de verdade” e, por isso, o movimento teria “ido embora”. 219

Outros se diziam “sem-terra de verdade”, por manterem ainda laços com o movimento, opondo-se a outros “individualistas” e “falsos sem-terra”. Aproximando-se de atributos comuns à imagem que perceberam ser o “fantasma fazendeiro”, imagem carregada de tensão entre o cruel senhor de escravos, o latifundiário que obtém a renda da terra, e o pai que quer legar terra aos filhos, os assentados assustam-se com o fato de terem de ceder à terra de negócio e de não conseguirem seguir princípios aprendidos nos trabalhos de base do movimento. Distanciando-se da terra de trabalho, alguns assentados percebem na produção para o mercado uma solução possível para fazer a terra pouco fértil produzir e gerar renda. Na difícil relação com o INCRA e com o mercado, o controle da produção pelo pai e o apoio dos padres vêm a ser alternativas, apesar da incorporação de relações norteadas pelo mando e autoridade, de superar a submissão aos poderosos “senhores” do Estado e do mercado, que os levaria de volta ao sofrimento e à perda da autonomia. De modo diferente, a “coronela do INCRA” passa a ser garantia de que os assentados sem laços de parentesco permanecerão nos lotes. Creio que tais questões se assemelhem à crítica que J. S. Martins (2000b) faz a um caráter quantitativo da proposta de reforma agrária do MST e da CPT, que buscam a desapropriação de grande quantidade de terras em curto período de tempo. Latifúndios produtivos e mesmo facetas menos palpáveis da renda da terra permanecem sem questionamento nesse modelo, restando milhares de assentados que, para produzirem, têm que se submeter à exploração do mercado. Os perigos de um Estado que compra a terra do latifundiário e a dá aos sem-terra transparecem em N15, pois, apenas com a compra e repasse da posse a assentados, troca mercantil, o fantasma do fazendeiro volta a rondar. Transformar a terra, adquirida pela “compra” e que produz como terra de negócio, em terra de trabalho, território de descendência, morada da vida, vem a ser desafios que os assentados enfrentam, constituindo aquilo que denominam “a luta no lote”. Sem uma continuidade de luta não apenas pela desapropriação de terras, mas também pela garantia de financiamentos, assistência, formas alternativas de inserção no mercado, acesso à educação e ao conhecimento de novas técnicas de produção somados aos saberes adquiridos ao longo da vida, em suma, sem uma continua pressão do Estado para a qualidade da reforma agrária, creio que haja reais possibilidades de a luta converter-se em uma reforma agrária meramente econômica. Trabalhos como o de M. E. Miranda (1998), de Simonetti (1999c) e de M. Justo (2005c) vêm iluminar as dimensões contraditórias que envolvem esse processo de assentamento e início de produção dos sem-terra em suas dimensões conflitivas. Simonetti (1999) analisa o conflito entre assentados e o MST, no Assentamento Reunidas, localizado na cidade de Promissão. A autora 220

conclui que o verdadeiro conflito se dá entre um campesinato ainda não preparado para as propostas de coletivização e de socialização trazidas pelo “movimento” (dirigentes), resultando em um retrocesso nos valores de coletivização e cidadania (luta por direitos) conseguidos no tempo do acampamento, quando os camponeses estavam sob o auxílio do movimento. Por outro lado, Miranda (1998) também enfoca o conflito entre assentados e o “movimento” no mesmo assentamento que Simonetti estudou (1999c). A autora atribui ao movimento certa incompetência por não perceber a complexidade do ethos camponês e não saber respeitá-lo. O conflito dos camponeses buscaria a preservação e conservação de um modo de vida que fora abalado pela perda de liberdade ao aderirem a formas racionalizadoras da produção. Essas formas são trazidas por agentes de esferas externas como o MST e o Estado. Já M. Justo (2005c), que estudou o Assentamento C.L., procura mostrar como conflitos entre assentados revelam distintas apropriações de atributos identitários de camponeses, operários, militantes e moradores de rua que emergem quando, em situações de conflito, os assentados se diferenciam entre si. Através de imagens como ouro e diamante escondidos em morros, árvores e plantações os assentados descrevem esperanças de encontrar a riqueza da terra. Desigualdades de renda entre assentados, conflitos entre famílias baseadas numa ética camponesa e assentados sem laços de parentesco vão marcando as disputas em meio às dificuldades de produzir numa terra pouco fértil e conciliar a terra de trabalho à terra de negócio. Imagens tensas como a mãe do ouro e o boitatá vão revelando a complexidade das relações com o mercado e o INCRA, que “dão terra e renda”, mas que também “vem te pegar”, como as estranhas bolas de luz. Numa busca permanente pela autonomia, surgem tanto conflitos entre assentados quanto conflitos de assentados com o MST, com o INCRA e o ITESP, com a Igreja Católica e com ONGs. Suponho que uma grande dificuldade das pesquisas acadêmicas com relação à questão agrária esteja no fato de isolarem determinados conflitos, visando a encontrar “culpados”, sem perceber as tensões entre esses diversos conflitos que compõem a experiência dos assentados ou acampados. Os sem-terra surgem como camponeses não preparados para os ideais do MST, como camponeses incompreendidos pelo movimento, Estado, Igreja Católica, manipulando aspectos identitários para estabelecer conflitos entre si. Na mídia, aparecem os sem-terra portadores de um radicalismo demoníaco, ou vítimas, “heróis sacrificiais” em episódios como o massacre de Eldorado dos Carajás, num maniqueísmo empobrecedor. Nas atuações de órgãos estatais, os sem-terra surgem como desconhecedores dos direitos, de técnicas de trabalho modernas, sempre reconhecidos pelo signo da falta e da carência. Abordar tais conflitos de um modo mais abrangente, percebendo221

os como o resultado de relações entre diversos atores que geram problemas, e também soluções possíveis, certamente foi um aprendizado fundamental para minha formação de pesquisador, adquirido através do convívio com os assentados e através de minhas tentativas de interpretar suas estranhas narrativas. Compartilhando “histórias de assombração”, os assentados vão estranhando a questão agrária em meio às dificuldades da luta pela terra, que não envolve apenas a ocupação, o conflito com o latifundiário, e a adesão a ideais socialistas. Tal luta se faz no acampamento, na ocupação, na divisão dos lotes, na relação com a terra, na constituição da família, nas relações tensas com o Estado, com o mercado e com o MST. Fazendeiro fantasma, mãe do ouro e escravo são imagens que ajudam a profanar inimigos e aliados claros. Perceber como atributos de mando, autoritarismo e violência podem estar também presentes na imagem do sem-terra talvez ajude a entender as relações estabelecidas com esses outros, às vezes ameaças à autonomia, outras vezes possibilidades para sua realização. Nesse sentido, penso que os assentados pratiquem, no modo mais radical possível, aquilo que G. Lukács (2003a) designou como sendo a autocrítica, tão necessária à luta proletária da década de 1920, quanto essencial para que a luta pela terra e pela reforma agrária se transforme na luta para mudar a sociedade inteira, almejada pelos sem-terra e por muitos de nós.

222

Bibliografia Bakhtin, Mikhail. “A História do Riso”. In.“A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento”. São Paulo/Brasília, Ed. Unb/ Hucitec, 1993a. Barthes, Roland. “Diderot, Brecht, Eisenstein”. In.Barthes, Roland. “O óbvio e o obtuso: Ensaios críticos”. Rio de Janeiro, ed. Nova Fronteira, 1990. Bauman, Richard.“Verbal Art as Performance”. Illinois, Waveland press, 1977. Benjamin, Walter.(1929).“O Surrealismo”.In. “Magia e técnica, arte e política”, In. “Obras escolhidas” vol.I. São Paulo, ed. Brasiliense, 1993b. _______________.(1935/1936).“A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”. In. “Magia e técnica, arte e política”, In. “Obras escolhidas” vol.I. São Paulo, ed. Brasiliense, 1993b. ______________.(1939) “Que é Teatro Épico”. In. “Magia e técnica, arte e política”, In. “Obras escolhidas” vol.I. São Paulo, ed. Brasiliense, 1993b. ______________. (1929)“O Surrealismo”.In. “Magia e técnica, arte e política”, In. “Obras escolhidas” vol.I. São Paulo, ed. Brasiliense, 1993b. ______________. “O Narrador”. In. “Magia e técnica, arte e política”, In. “Obras escolhidas” vol.I. São Paulo, ed. Brasiliense, 1993b. _______________.(1928) “Teses obre o Conceito de História”.In. “Magia e técnica, arte e política”, In. “Obras escolhidas” vol I. São Paulo, ed. Brasiliense, 1993b. _______________. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In. “Obras escolhidas” vol.II São Paulo, ed. Brasiliense, 1994. Brandão, Carlos Rodrigues. “Casa de Escola: Cultura Camponesa e Educação Rural”, Campinas, Ed.Papirus, 1983. ______________________. “Somos as Águas Puras”. São Paulo, ed. Papirus, 1994. _______________. “O Afeto da Terra”.Campinas, ed.Unicamp, 1999a. Buhler, Maira Santi. “Vida e Morte no Campo Alegre”. Dissertação entregue ao Departamento de Antropologia da USP, São Paulo, 2005a.

223

Candido, Antonio. “Os Parceiros do Rio Bonito”. São Paulo, ed. Duas Cidades, 2001. Constituição Federal de 1988. (http://www.camara.gov.br/legislacao/constituicaofederal) Dawsey, John C. “De que riem os ‘Bóias-Frias’? : Walter Benjamin e o Teatro Épico de Brecht em Carrocerias de Caminhões”.Tese de Livre Docência, São Paulo, FFLCH-USP, 1999b. _____________. “Victor Turner e a Antropologia da Experiência”.In.Revista Cadernos de Campo, n.13, ano 14, 2005b. Douglas, Mary. “Pureza e Perigo”. São Paulo, ed.Perspectiva, 1976. Ewen, Frederic. “Bertold Brecht”.São Paulo, ed. Globo, 1967. Fernandes, Bernardo M. “MST: Formação e Territorialização”. São Paulo, ed.Hucitec, 1996. Hartmann, Luciana. Tese de Doutorado, Tradições orais nas fronteiras entre Argentina, Brasil e Uruguai. Santa Catarina, PPGAS, UFSC, 2004. __________________. “A Formação do MST no Brasil”. São Paulo, ed.Vozes, 2000a. Justo, Marcelo. “Exculhidos”. Tese de Doutorado, São Paulo, FFLCH-USP, dep. Geografia, 2005c. Levi-Strauss, C. “Antropologia Estrutural”. Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 2003a. _____________.(1964). “O cru e o cozido”.São Paulo, ed. Cozac Naiff, 2004. Lukacs, Georg.(1919) “História e Consciência de Classe”.São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2003b. Martins, José de Souza. “Capitalismo e Tradicionalismo”, São Paulo, ed.Pioneira, 1975. ____________________. “A morte e o morto”, In. “A morte e os mortos na sociedade brasileira”. São Paulo, Ed. Hucitec, 1983. ____________________. “Caminhada no chão da noite”. São Paulo, Ed. Hucitec, 1989. ____________________. “Expropriação e Violência”. São Paulo, ed.Hucitec, 1991. ___________________. “A Aparição do Demônio na Fábrica, no Meio da Produção”.In.Revista Tempo Social, São Paulo, 1993. ____________________. “Reforma Agrária: O Impossível Diálogo”.São Paulo, ed.Edusp, 2000b. ____________________. “A vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira”.In. “História da vida privada no Brasil”, Vol.4, São Paulo, ed.Cia das Letras, 2002. ____________________. “O Cativeiro da Terra”, São Paulo, ed. Hucitec, 2004. Marx, Karl.(1890). “O Capital”.Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1971. Mauss, Marcel.(1923). “As técnicas do corpo”.In. Sociologia e Antropologia, São Paulo, Cosac & Naify, 2003c. 224

____________.(1938). “Uma categoria do Espírito Humano: a noção de Pessoa, a de ‘Eu’”.In. Sociologia e Antropologia, São Paulo, Cosac & Naify, 2003b. Miranda, Maria E. “Análise de uma Situação de Conflitos entre os Assentados e o MST”.Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia da FFLCH-USP, São Paulo, 1998. ______________. “Os Assentados frente aos desafios Legais”. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Antropologia-USP, 2003d. Monteiro, Duglas T. “Os Errantes do Novo Século”. São Paulo, ed. Duas Cidades. Moura, Margarida. “Os Herdeiros da Terra”. São Paulo, ed. Hucitec, 1978. Novaes, Sylvia C. “Jogo de Espelhos”. São Paulo, Edusp, 1994. Queiroz, Maria Isaura Pereira de. “O Campesinato Brasileiro”. Petrópolis, ed.Vozes, 1976. Rapchan, Eliane S. “De Identidades e Pessoas: Um Estudo sobre os Sem Terra de Sumaré”. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia-USP, São Paulo, 1993. Sahlins, Marshall. “Stone Age Economics”. Chicago and New York, Aldine/Atherton ed., 1978. Schechner, Richard. “Between Theater and Anthropology”. Philadelphia, University of Pennsylvania press, 1985. ________________. “Comportamento Restaurado”, In. Barba, Eugenio(org.). “Dicionário de Antropologia Teatral”. Campinas, ed. Hucitec, 1995. ________________. “Performance Theory”. Philadelphia, University of Pennsylvania press, 1988. Silva, V. G. da. “Candomblé e umbanda - caminhos da devoção brasileira”. 1. ed. São Paulo: Ática, 1994. Simonetti, Mirian C.L. “A Longa Caminhada”. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Geografia-USP, São Paulo, 1999c. Taussig, Michael.“The devil and commodity fetishism in South America”. Ed. U.N.C.Press, 1980. ______________.(1987). “Cultura do Terror”. In. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, ano 10, 1983. ______________. “Mimesis and Alterity”. New York/ London. Ed. Routledge, 1993. ______________.“Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem”. Rio de Janeiro. Ed. Paz e Terra, 1993. _______________. “The Nervous Sistem” New York, ed. Routledge, 1992.

225

Turatti, Maria C. M. “Os Filhos da Lona Preta”.Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia da FFLCH-USP, São Paulo, 1999c. Turner, Victor.(1969). “O Processo Ritual”.Petrópoles, Ed. Vozes, 1974. ___________ . “ From ritual to theatre”. New York, Paj publications, 1982. ____________. “Dramas, Fields, and Metaphors”. Ithaca and London, Cornell University Press,1974. ___________. “The Anthropology of Experience”. Urbana and Chicago, University of Ilinois Press, 1986. Velho, Otávio. “Besta Fera”. Rio de Janeiro, ed. Relume Dumará, 1995. Vasquez, A.P. “Agricultores, Companheiros e Irmãos”. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Sociologia-USP, 2002. Woortmann, Ellen F. “A árvore da memória”. In. Anuário Antropológico/92. Rio de Janeiro, ed. Tempo Brasileiro, 1994. Woortmann, Klaas (1990). “Com Parente não se Neguceia”.In.Anuário Antropológico, Brasília, ed.Unb/Tempo Brasileiro, 1987.

226

ANEXOS

227

Folia de Reis e Novena Não é apenas através do matrimônio, do compadrio e do trabalho coletivo que as famílias extensas fortalecem seus laços. Duas semanas antes do Natal, famílias mais ligadas à Igreja Católica iniciam uma série de encontros e rezas, a novena. Participam dos encontros as famílias de Salvador e Doralice, Hermes e Alícia, Deodato e Esmeralda, Solano e Celestina, Lindalva, Acácio e Vera, Ivone, Valentino e Januária. Durante nove dias todos os finais de tarde as famílias deixam suas casas e rumam juntas para a casa em que será feita a novena daquele dia. Ao todo nove casas recebem o grupo para realizar as rezas e discussões. A cada dia um tema diferente é discutido, sendo sempre o encontro coordenado por Salvador, que é ministro da Comunidade Padre Josimo. M.I.P.de Queiroz insere as novenas no conjunto de ritos do catolicismo rústico brasileiro. Nas palavras da autora: “Vemos, pois, que os ritos do catolicismo popular que se conservaram no meio rústico brasileiro dizem respeito ao reforço da solidariedade do grupo de vizinhança, no caso da festa religiosa; das famílias entre si, no caso das novenas familiares; dos indivíduos entre eles, no caso de diferentes ritos promovendo o compadrio”(1976, :92). A formação de uma novena no assentamento é um fato importante, já que famílias que não se conheciam quando chegaram ao acampamento, anos depois estabelecem laços de parentesco e relações de vizinhança. Pensando com M.I.P.de Queiroz, as novenas viriam reforçar a solidariedade entre essas famílias que passam a viver no assentamento. Nos anos em que acompanhei a novena, os temas abordavam as relações de família. Num dos dias, foi discutido o respeito dos filhos aos pais. Como pais e filhos estavam presentes, a conversa tomou ares de debate. Valentino dizia que sua filha Simone não o ouvia. Simone dizia que respeitava o pai, mas às vezes não concordava com o que ele dizia. Padrinhos e tios de Simone manifestaram-se sempre dizendo que ela deveria ouvir mais os conselhos do pai e obedecer ao que ele dizia, pois, como disse Celestina: - “Ele sabe mais e viveu mais que você”. Por outro lado, os primos e amigos de Simone intercediam em seu favor: - “Ué, mas a gente não pode Ter razão também?”. Por fim, falas mediadoras eram proferidas por Salvador e seu filho Deodato. As rezas comuns aos encontros eram “Ave Maria”, o “Pai nosso”, “Creio em Deus pai” e uma reza específica à celebração da novena. Momentos de silêncio e introspecção alternavam-se à leitura de trechos da 228

bíblia. Passagens dos apóstolos que narravam a anunciação, à chegada do menino Jesus intercalavam-se a salmos. O clima era sempre de muita paz e fraternidade. Ao final, geralmente, eram servidos chá quente de erva cidreira, pão e bolo. Nesse momento, as pessoas conversavam sobre assuntos do dia a dia, as crianças brincavam e alguns liam o jornal “O Caminho” da paróquia de Sarapuí. Num dos dias eu, Salvador e Valentino ficamos tentando resolver as palavras cruzadas do jornal. Depois de muito tempo completamos o jogo com: Belém, Grávida, Salvador, Estábulo, José, Felizes, Pastores, Manjedoura, Caminho, Anjo e Jesus. Essas palavras estavam presentes também num texto acima, dirigido às crianças. O texto explicava que a palavra Natal significava Nascimento e contava a história do menino Jesus, cujo nome significa Deus Salva. Quando chegou o tempo de Maria dar a luz, ela e José foram para a cidade de Belém. Ninguém abriu as portas para abrigá-los. O casal apenas conseguiu um estábulo onde Jesus Cristo pôde nascer. Pastores ficaram sabendo do nascimento pelo anúncio de um anjo: “Nasceu Jesus Cristo, Salvador de todos os homens”, e foram visitá-lo. Ao lado do texto sobre o nascimento há um artigo intitulado: “Aborto, temos o direito de matar?”. Nesse, um bispo condena a legalização do direito de toda mulher a matar seu filho, projeto de lei de uma deputada do PC do B. Mais abaixo havia uma reportagem sobre o comparecimento do então governador Geraldo Alkimin na exposição de produtos da Associação Arte Raiz e lançamento do livro “Sarapuí, sua história e seus antepassados” de Hélio Holtz, membro de uma família de importantes políticos e proprietários de terras da região. O reconhecimento dos laços fundamentais que unem essas famílias faz lembrar a experiência de communitas pensada por V.Turner (1969). Rezando para Deus pai e para a Mãe de Deus, os assentados louvavam a família sagrada ao mesmo tempo em que fortaleciam os laços e aliviavam as tensões em suas próprias famílias. Assim, as novenas iam constituindo-se como um espaço para esses assentados pensarem os problemas atuais que envolvem a questão da família, tomando como base a história do nascimento de Jesus Cristo. Os laços de parentesco entre essas famílias iam fortalecendo-se a cada encontro até a celebração do jantar de Natal, dia 24 de Dezembro, a ser realizada na antiga sede da fazenda. O jantar coletivo conclui a novena daquele ano e comemora a um só tempo o nascimento de Jesus e a união entre os participantes. As novenas acontecem no assentamento desde sua formação. Entretanto, ano após ano o número de participantes vem diminuindo. É cada vez maior o número de famílias que “passam para crente”, deixando de cumprir os ritos católicos do natal. Por mais que sejam divulgadas nas celebrações católicas semanais, das quais participam outras famílias católicas, essas não participam da novena. Ramiro, Ezequiel e Dalva não comparecem à reza da novena e muito menos à celebração natalina. Assim, por meio do rito católico da novena o drama da 229

constituição da família assentada é reforçado a cada ano. Ao celebrarem laços comuns respectivos a uma dada “ordem moral”, essas famílias reforçam também a oposição e o conflito para com a outra configuração familiar existente, que fica às margens do ritual.

A Folia de Reis Nos anos de 2004 e 2005, a véspera do natal contou com um novo rito natalino, do qual participaram quase todas as famílias do assentamento, mesmo aquelas que eram adeptas às religiões evangélicas. A Folia de Santos Reis Terra Prometida começava a andar pelo assentamento, a tocar músicas e pedir esmolas em nome dos três reis magos para a festa de reis no dia seis de janeiro. Contrapondo-se a L.C.Cascudo que diz ser a folia um bando precatório que pede esmolas para as festas do Espírito Santo e de Santos Reis, C.R.Brandão aponta: “Mas ela não é um bando errante. Longe disso, é um grupo corporado de trabalho religioso. Aqueles que volta e meia tomam por algum motivo os caminhos de terra das estradas das roças do país, podem ao acaso dos janeiros topar com pequenos grupos de três a cinco pessoas, que se acompanham de pelo menos uma bandeira, duas violas, um pandeiro e uma ‘caixa’ ”(1983,:25). A decisão de formar uma folia teve origem nas aulas de música que eu dava no assentamento. À medida em que iam aprendendo a tocar o Cururu e músicas de folia de reis, os participantes lembravam-se de como eram boas as folias das quais haviam participado em Minas Gerais, no Paraná, em Andradina (SP). As lembranças vinham conforme as músicas eram tocadas. No assentamento surgiram ex-alferes da bandeira, ex-músicos e musicistas de reis, exacompanhantes, ex-devotos. O interesse pela folia de reis vinha desde os mais velhos até jovens e crianças. Começamos, então, um processo conjunto de estudo e pesquisa sobre o que eram as folias de reis, seus significados e como se realizavam os ritos. Livros, conversas com ex-foliões, vídeos, constituíram os primeiros passos. Logo surgiu o boato de que uma folia ia andar no assentamento. De casa em casa as pessoas perguntavam como seria. Diziam que nunca mais tinham visto uma folia de reis, uma coisa tão bonita e que estava se perdendo. Era comum ouvir histórias de folias das regiões de origem dos assentados, de dádivas alcançadas, da graça e temor aos palhaços. Mesmo os evangélicos lembravam-se das folias com sorrisos na boca, diziam que elas eram importantes, pois faziam parte do folclore que estava sendo esquecido. 230

Pensando sobre os narradores, no sistema corporativo medieval, e suas faculdades de intercambiar experiências W.Benjamin diz: “No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário”(1936,:199). Lembrando-se das folias de outros tempos e de outros lugares, esses migrantes de diversas partes do país intercambiam experiências de fé e música. Como grande parte dos participantes que integrariam a folia de reis estavam também envolvidos na novena, os ensaios e discussões passaram a ser feitos depois dela. Durante os dias de preparação ouvimos músicas muitas vezes encontradas em fitas antigas, que serviam de recordação à mãe de Coralina. Nessas fitas estavam gravadas folias do norte de Minas e Bahia. Dois discos foram encontrados no lixão da cidade por Solano que procurava uma enxada velha para trabalhar. Os discos eram do dono do lixão que não tinha mais vitrola para rodá-los e deu-os de presente a Solano, após ouvi-lo dizer que ajudariam a pesquisa da folia. Praticamos o coro, o toque do violão e do pandeiro. Solano assumiu esse último instrumento, já que havia sido tocador de pandeiro nos forrós do Paraná, onde se apaixonou por Celestina. Joel, filho de Salvador, queria ser alferes da bandeira como o pai havia sido em Minas Gerais. Seus irmãos Hermes e Deodato cumpririam os papéis de mestre e contramestre. Apesar de não sentirem qualquer legitimidade para esses papéis foram designados a tais funções pelo grupo, já que ambos conheciam bem as folias e improvisavam versos muito bem. Suas irmãs cantariam e tocariam violão. Sua mãe, ex “cavaquinista” de folia, integraria o coro. Aos poucos um repertório mínimo de canções estabelecia-se. Músicas de saudação ao presépio, de pedir a abertura da casa, de louvar os donos da casa e de agradecer a oferta e a comida permitiam a organização do ritual. Restava ainda preparar as roupas, a bandeira, decidir o trajeto e avisar às pessoas da folia. O espaço da aula de música cedeu lugar a um espaço talvez semelhante às oficinas medievais lembradas por W.Benjamin. Suponho que a noção de comportamento restaurado pensada por R.Schechner para refletir de rituais à danças estéticas e teatro seja interessante para entender o que foi esse processo de formação da Folia de Reis terra Prometida. Para o autor: “os executores entram em contato com essas sequências de comportamento, recuperamnas, lhes dão novamente vida e até as inventam e, então, se recomportam de acordo com essas sequências, seja por serem absorvidos por elas, desempenhando o papel, entrando em transe ou existindo lado a lado com elas...O trabalho de restauração acontece em ensaios e/ou na transmissão do comportamento do mestre para o discípulo. Compreender o que acontece durante o treinamento, ensaios e oficinas – investigando a forma condicional que é 231

o medium dessas operações- é o caminho mais seguro de ligar a representação estética e ritual”(1995, :206). Entendendo as lembranças de folias como seqüências organizadas de acontecimentos, movimentos codificados, textos conhecidos que existem separados dos foliões ou ex-foliões é possível dizer que a pesquisa, ensaios, conversas, etc. permitiram a restauração do comportamento, gerando algo novo, uma folia que não era mais aquela de Minas ou do Paraná, mas que fazia despertarem as lembranças, sentimentos e a fé daquele grupo de assentados. A decisão sobre o trajeto da Folia, quais casas iam ser visitadas e a ordem, constituiu um momento tenso para a folia, pois havia o receio de que famílias que possuíam inimizades para com os foliões não fossem aceitar a folia, e mesmo amaldiçoá-la. Os evangélicos deveriam ser consultados, já que sua religião não aceita essas manifestações católicas. Joel e eu passamos em todas as casas do assentamento perguntando se a folia poderia cantar. Apenas uma casa, onde moravam evangélicos, negou a visita da folia. Havia grande receio quanto a passar na casa de Ramiro ou de Tábata. Entretanto, o assentado ficou muito feliz ao saber que haveria uma folia de reis no assentamento. Pediu que passassem em sua casa. Tábata também não se opôs à visita. Com a notícia da folia há uma certa atenuação no conflito entre as duas “ordens morais” conflitantes opõem as famílias do assentamento. O os problemas para a constituição da família assentada passa a ter algo semelhante à ação reparadora (V.Turner, 1974). De alguma forma, o antagonismo que excluía as famílias formadas em torno de Sinira é atenuado e tais famílias e assentados participam do rito natalino. Restava ainda preparar a seqüência do repertório, fazer as promessas, pedidos e construir os presépios. Chapéus de palha enfeitado com fitas amarelas, azuis, vermelhas, verdes e brancas, e camisas brancas com emblemas do MST compunham a vestimenta. A bandeira vermelha e azul tinha o desenho da sagrada família e dos três reis santos, estando também enfeitada com fitas coloridas e flores. A folia de reis foi batizada como “Folia de Reis Terra Prometida”, nome que segundo os foliões expressaria a diferença de ser uma folia de sem-terras. A primeira noite em que a folia de reis cantou foi na festa de encerramento do curso Fé e Política. Estavam presentes pessoas de outros acampamentos e assentamentos da regional Grande São Paulo, militantes do movimento, padres ligados à teologia da libertação e muitos assentados do Carlos Lamarca.Valentino, sua esposa Januária e seu filho Cristiano interpretaram um presépio humano, e para este a folia cantou seu repertório. Muito aplaudida no final, a folia começava ali sua caminhada.

232

As visitas às casas foram feitas dos dias vinte e cinco até o dia cinco de Janeiro. Nas visitas, o alferes entregava a bandeira ao dono da casa. Em meio à cantoria e aos versos improvisados discutia-se o sentido do natal, da viagem dos três reis e da folia. Pedia-se a benção para a casa, a família, plantações e criações dos donos da casa. Muitos moradores lembravam-se das folias de outros lugares e tempos, diziam que a nova folia estava muito boa e afiada. Mesmo aqueles com quem os foliões tinham algum tipo de inimizade, herança dos conflito pela divisão dos lotes, recebiam a folia com café, bolos, pães e contribuíam com frangos, sacos de arroz, feijão e macarrão para o dia da festa. Todas as noites a folia saía percorrendo o assentamento. Atrás dela iam juntando-se famílias que acompanhavam a andança e as visitas. Ao receber a folia o dono da casa abria as portas a vinte, trinta pessoas que o cumprimentavam e partilhavam a cantoria e a comida. No dia da festa de reis, quase a totalidade das famílias visitadas pela folia fizeram-se presentes para a janta coletiva, a música e o baile. Como em lembranças evocadas por foliões e assentados, alguns fatos misteriosos aconteceram com a folia. Quando foram visitar a casa de Moisés a corda de um dos violões estourou. Era apenas o primeiro dia e o mestre não poderia ficar sem instrumento. Então, o filho de Moisés surgiu com a única corda que havia na casa, a exata corda ré que faltava. Noutro dia o pau que sustentava a bandeira no mastro quebrou-se. Algum tempo depois o alferes encontrou no mato um pedaço de pau exatamente com o mesmo tamanho e espessura do quebrado. Segundo os foliões, eram indícios da benção que o grupo recebia de Deus e dos Santos, atestando também a fé dos foliões e dos assentados. Os mistérios seguiram-se até que no segundo ano de andança, durante os ensaios da folia vimos bolas de fogo no céu da noite. Os foliões entenderam que aquilo era uma benção, proteção divina à folia. Se a novena possuía um sentido importante para as famílias católicas que dela participaram, a inserção da folia de reis no período da novena de certo modo estendeu o circulo de participantes dos encontros de natal para todo o assentamento. A folia passou a ter um importante papel na celebração dos laços coletivos e familiares e para que tensões e conflitos entre os assentados fossem atenuados no período do natal. Entretanto, a folia não cumpriu apenas um papel dentro do assentamento. Os foliões passaram a ser freqüentemente convidados a apresentarem-se em encontros do MST. Nessas apresentações o aspecto musical do grupo de folia era afirmado em detrimento do aspecto religioso. Ao final dos debates políticos realizam-se noites culturais. Nessas a folia apresenta-se junto a grupos de teatro e músicos ligados ao setor de cultura do movimento. Os discursos de anúncio aos foliões manifestam a importância da iniciativa para valorizar as tradições culturais camponesas, continuamente desvalorizadas e esquecidas. Aplausos iniciam e fecham a 233

cantoria em meio aos discursos do setor de cultura do movimento. Não há caminhadas pelas estradas de terra, não há portas a se abrir ou esmolas a pedir. Pensando com R.Schechner (1988), é possível dizer que aspectos de entretenimento eram enfatizados para o público de militantes, enquanto a eficácia ritual de conceder a benção de Santos Reis à casa, família, plantação e criação dos assentados era diminuído. Dessa forma, os foliões, em sua maior parte de uma família de militantes que se distanciavam do movimento, foram reincorporados à estrutura da organização. Aos olhos do movimento eles expressam, de modo “artístico”, a luta do MST por resgatar a cultura dos excluídos da história. De todo modo, acredito que haja diferenças fundamentais no modo como os assentados que recebem a folia em suas casas entendem-na, e no modo como os militantes do MST a vêem. No primeiro caso, a folia exerce uma função muito mais ativa, há uma real eficácia já que é ela que vai, através de sua andança ritual, fortalecendo os laços dos assentados entre si e desses para com os Santos Reis. É dessa forma, que os foliões entram nas casas, vestidos com as camisetas do movimento. Por meio do grupo o MST, o Natal e os Santos Reis articulam-se no rito que possui um forte caráter de eficácia. De modo diferente, o lugar da folia nos encontros é mais passivo, já que ilustra a ação do movimento por meio das músicas que cantam e tocam num palco. Situam-se à margem do debate político, nas noites culturais, onde os militantes buscam divertir-se, descontrairse das reuniões e debates. Assim, a separação entre atores e espectadores, palco e platéia, trabalho e diversão acentuam aspectos de entretenimento presentes na folia. Alguns foliões dizem preferir tocar no assentamento, outros dizem gostar das duas formas, manifestando sempre a diferença que há nessas duas experiências. À semelhança da ação reparadora, a Folia de Reis Terra Prometida vai recompondo laços e aliviando tensões entre as famílias e dos assentados para com o MST.

234

Bibliografia Benjamin, Walter. “O Narrador”. In. “Magia e técnica, arte e política”, In. “Obras escolhidas” vol.I. São Paulo, ed. Brasiliense, 1993b. Brandão, Carlos Rodrigues. “Casa de Escola: Cultura Camponesa e Educação Rural”, Campinas, Ed.Papirus, 1983. Queiroz, Maria Isaura Pereira de. “O Campesinato Brasileiro”. Petrópolis, ed.Vozes, 1976. Schechner, Richard. “Performance Theory”. Philadelphia, University of Pennsylvania press, 1988. ________________. “Comportamento Restaurado”, In. Barba, Eugenio(org.). “Dicionário de Antropologia Teatral”. Campinas, ed. Hucitec, 1995. Turner, Victor. “Dramas, Fields, and Metaphors”. Ithaca and London, Cornell University Press,1974.

235

Educação de Adultos Introdução Em 1998 ocorre o assentamento das famílias do MST neste assentamento que recebeu o nome de Carlos Lamarca. Após dois anos de acampamentos à beira de estradas próximas e ocupações em “fazendas improdutivas” da região perto de Sorocaba (SP), os trabalhadores conseguiram a chamada “volta a terra” nesta “propriedade improdutiva”, situada no município de Itapetininga (SP), mas mais próxima da cidade de Sarapuí (SP). Por isso todos os serviços públicos, inclusive a escola, são utilizados até hoje nesta última cidade. Muitas destas famílias têm origem rural, mas a grande maioria vivia na periferia de grandes centros urbanos como São Paulo, Sorocaba e Campinas antes de aderirem ao movimento. No passado, grande parte destas famílias sofreu a perda da terra em que trabalhavam e surge a necessidade da migração. Migram para os centros urbanos e passam a morar em “favelas”. O contato com o MST se da através dos “trabalhos de base” (de “educação popular”) que têm como meta trazer os trabalhadores para o movimento.No entanto, o assentamento das famílias traz à tona novas tensões e crises. O Assentamento Carlos Lamarca é relevante para a pesquisa, pois nele situam-se muitas das crises e tensões do MST e das relações dos trabalhadores com a educação. Logo no início, as propostas de organização do trabalho do movimento (cooperativas e associações de produtores) não são aceitas por boa parte dos trabalhadores. Conseqüentemente, dáse uma cisão em dois grupos. Aqueles que não aceitam as propostas do movimento se organizam em torno do trabalho coletivo e familiar em seus lotes e, ao mesmo tempo, passam a se distanciar das práticas do movimento.O segundo grupo organiza sua produção pela associação de produtores, e permanece engajada nas práticas do movimento até hoje. Dada a “divisão” do assentamento os “trabalhadores engajados” não conseguem efetivar escolas e cursos de alfabetização com uma pedagogia do MST. O medo da nova perda da terra faz com que os filhos devam estar preparados tanto para os trabalhos na cidade, quanto para os trabalho com a terra. Assim, os pais percebem a importância da educação escolar, e da educação no trabalho com a terra. Por outro lado, muitos trabalhadores começam a perceber a necessidade da alfabetização, da matemática e do aprofundamento nos estudos escolares. Penso que as dificuldades colocadas pela administração de seus lotes, associações, participação no movimento e negociações de financiamento com bancos e 236

instituições públicas (INCRA e ITESP) colocam os trabalhadores e trabalhadoras rurais diante de novos desafios. Para isso a necessidade da alfabetização e aprofundamento nos estudos escolares torna-se uma necessidade para a realização de sua própria autonomia. Além disso, seus filhos freqüentam a escola, e um número cada vez maior se forma. Isso faz com que as relações entre pais e filhos apresentem grandes disparidades, sendo este um dos motivos da grande saída de jovens do assentamento. Constitui-se de modo claro um conflito entre os valores transmitidos pela escola e os valores dos pais. Deste modo, a tentativa dos pais de obterem os conhecimentos “escolares” deve ser entendida também nesta perspectiva de atingirem uma melhor compreensão do universo de princípios e valores de seus filhos, podendo participar de modo mais ativo da educação de seus filhos. Todas estas tensões e conflitos vieram de encontro a mim quando terminei de contar a um grupo de assentados sobre minha pesquisa de mestrado. Ofereci-me para desenvolver algum tipo de atividade de intervenção social no assentamento, e todos logo propuseram que eu realizasse um trabalho de educação de adultos.

Aulas

Paralelamente ao meu trabalho de pesquisa sobre a socialização dos jovens do assentamento decidi organizar um curso de educação de adultos. Para tanto, era preciso recuperar toda a experiência que já havia sido feita neste sentido. Iniciei uma série de conversas com as duas militantes do movimento que já haviam trabalhado com educação de adultos no Assentamento, Eva e Soraia. Foi Eva quem iniciou os trabalhos de educação de adultos no assentamento. Antes que fosse feita a divisão dos lotes, quando todos ainda estavam acampados, Eva começou a convocar as pessoas do acampamento para o curso. As aulas eram dadas no final da tarde, e contavam com a participação de boa parte daqueles que não sabiam ler e escrever. A turma era formada por homens e mulheres. As aulas eram dadas todos os dias ao final da tarde, mas era necessário que não se prolongassem muito, pois não havia energia elétrica. A maioria dos alunos possuía idades superiores a quarenta anos. Eva utilizava o material do EJA (Educação de Jovens e Adultos) do MST. Segundo ela, os alunos estavam progredindo muito. No entanto, devido ao aumento de atividades de militância no movimento, Eva precisou parar de dar o curso.

237

Após um certo intervalo de tempo, Soraia, irmã de Eva e militante do movimento, assume a tarefa deixada pela irmã. O grupo de trabalhadores e trabalhadoras encontrava-se agora em outro momento de sua trajetória. Conseguiram a desapropriação das terras da fazenda e agora começavam a ocupar seus lotes. As disputas pelos lotes geraram uma série de conflitos entre os assentados. Fato este que teve impacto também na educação de adultos. Todo final de tarde, homens e mulheres deixavam seus lotes e caminhavam com seus cadernos e lápis para a ex-sede da fazenda, que agora seria um centro de formação. Devido à distância dos lotes até a sede (de 6 km às vezes) algumas pessoas desistiram do curso. Outras desistiram por causa de inimizades adquiridas no período de divisão dos lotes, e disputas sobre o modo como se daria a produção e habitação. O curso durou alguns meses, mas logo Soraia teve de assumir novas responsabilidades delegadas pelo movimento. Os alunos ficaram mais uma vez sem professor e seus cadernos tiveram de ser guardados. Muitos ainda não haviam conseguido o que pretendiam: aprender a ler e a escrever. Quando comecei a pesquisa fazia já um ano que estavam sem aulas. Decidi passar na casa de cada um dos ex-alunos de Eva e Soraia para conhecê-los e obter maiores informações sobre suas experiências para com a escolarização e alfabetização. Levantamos o nome de vinte pessoas que haviam passado pelas aulas. No entanto, consegui realizar apenas doze entrevistas. Como não possuía muita experiência com alfabetização de adultos decidi convidar uma amiga da faculdade de pedagogia da PUC para ajudar-me. Ficamos vivendo no assentamento durante um mês. Assim era possível realizar minha etnografia e trabalhar no curso de educação de adultos. Ana e eu perguntamos à comunidade se não haveria alguém que se dispusesse a nos ajudar. Pensávamos na continuidade do trabalho por alguém que morasse lá. Foi então que Anali falou que gostaria de nos ajudar. Ela morava ali há alguns anos, mas não havia participado do acampamento. Veio depois com seu marido que era sobrinho de uma assentada. Anali tinha o ensino médio completo e começara o curso de história na Universidade Federal do Maranhão, sem concluí-lo. Pensamos em nos dividir e dar aula em três pontos do assentamento, na casa das pessoas. Isso diminuiria a distância que fez com que muitos desistissem do curso dado por Soraia. Passamos novamente nas casas convocando para o curso. Todos os dias nos encontrávamos para elaborar as aulas. Não conseguimos realizar o curso nos três pontos do assentamento. Assim, Ana e Anali davam aulas na casa de Celestina (uma das alunas) e eu dava aulas na casa de Xica. Trabalhamos com grupos pequenos de cinco e duas pessoas, sendo o meu o menor. Apesar de termos convidado número considerável de homens, nenhum apareceu para as aulas.

238

Os dois grupos eram formados por mulheres em sua maioria com mais de quarenta anos. Das sete alunas duas haviam feito o primário e queriam continuar os estudos. Ambas tinham idades abaixo de quarenta anos. Desse modo, iniciamos o trabalho com grupos heterogêneos, algo que penso ser comum em cursos de educação de adultos. Como estratégia de aula pensamos em toda aula abordar um tema que fosse interessante para todas as alunas. Discutiríamos este tema e depois trabalharíamos com exercícios específicos para cada pessoa. Pensamos em abordar temas que resgatassem a história de vida das alunas e vinculassem-se tanto a seu dia a dia de trabalho, como a suas participações políticas.

Encontros

Para a primeira aula decidimos fazer uma atividade que envolvesse a todas enquanto grupo. Levamos para a aula uma cartolina, giz de cera, tesoura e cola. No inicio da aula fizemos uma discussão sobre o porquê de elas quererem voltar a estudar. Xica e Sirlei, que formaram o grupo com o qual trabalhei, disseram que queriam estudar para aprender mais sobre as coisas. Estudar significava poder participar melhor das atividades do movimento. Além disso, Xica queria aprender a escrever para poder escrever cartas a seus parentes que moravam longe, na Bahia. Sirlei queria voltar a freqüentar a escola. Como já tinha até a quarta série, queria preparar-se para prestar a prova pra quinta, e terminar o ensino básico. Seu marido, Solano, tinha terminado o básico, calculava como ninguém. Ela, quem sabe, poderia um dia prestar um concurso público e conseguir um emprego. Uma parenta sua havia conseguido. Estava trabalhando como enfermeira. Para Xica, que já era avó, ler permitiria que ela viajasse sozinha, para visitar seu velho pai, e sua cidade natal Bom Jesus da Lapa. A primeira aula foi muito descontraída. Colocamos as cadeiras no meio da sala de Xica. Nos sentamos e começamos a conversar sobre a importância de estudar. Contaram-me que faziam grandes esforços para que seus filhos estudassem. As duas filhas de Sirlei estavam na quarta e sexta séries. Ela se sentia frustrada quando sua filha vinha perguntar alguma coisa da lição de casa e ela não sabia explicar. Tinha de esperar o pai. No entanto, ela gostava quando as meninas vinham contar das aulas e da escola, quando lhe ensinavam alguma coisa que estavam aprendendo. Contou que sempre olhava o caderno das filhas. Faria de tudo para que elas dessem valor ao estudo e à oportunidade que a vida estava dando para elas. Xica contou que apesar de ter criado sozinha todos 239

os seus filhos (dos quais apenas uma morava com ela), sempre os estimulou a terminarem os estudos. Todos chegaram ao final do ensino médio, e apenas dois não se formaram neste nível. Foi com muito custo, pois eles passaram muita necessidade, mas graças a Deus ela havia conseguido. Hoje todos têm trabalho e moram fora. Xica contou que seu pai era ruim. Que não queria que ela estudasse. Escola não era para mulher. Além disso, não tinha muita escola lá em Bom Jesus. O pai de Sirlei deixou-a estudar até o final do primário. Muitos de seus colegas abandonaram os estudos devido à distância que tinham de percorrer até chegarem à escola. Ela não desistiu. Foi até o final da quarta série. Tinha um pouco de medo no caminho, pois no final acabou ficando sozinha. Quando chegou a hora que cursar a quinta série seu pai não deixou. Ela teria de mudar-se para a cidade. A cidade não era lugar de menina de família morar sozinha, havia muitos perigos lá. Ela, que sempre morou na região de Campinas, ficou um pouco triste. Começou a ajudar a mãe e tia nos trabalhos da casa, como muitas de suas amigas de escola estavam fazendo. Xica havia tentado o MOBRAL algumas vezes. Apesar de ter tirado o diploma não conseguia ler e escrever. Chegou a pensar que não dava para a coisa, que estava muito velha. Mas depois que viu na tv uma senhora de setenta anos dizer que estava começando a ler e a escrever percebeu que nunca era tarde para começar. Por isso estava ali. Tinha muita vontade de ler e escrever. Enquanto íamos conversando as duas iam desenhando o contorno de suas mãos na cartolina. Desenhavam a direita e escreviam o que traziam para este grupo. Desenhavam a esquerda e escreviam o que esperavam levar. Xica escreveu de seu jeito e depois leu o que havia escrito. Palavras como União, Aprender, Coragem, Vontade foram desenhando-se no papel. Desenhei também minhas mãos e escrevi o que trazia e o que esperava levar do curso. Ao final demos as mãos e pensamos um nome para nosso grupo, que eu escrevi no cartaz onde colamos todas as mãos. A mesma atividade foi realizada na casa de Celestina, onde o outro grupo de mulheres demonstrou igual empenho e força de vontade. *** Todos os dias, às cinco da tarde íamos para a casa das alunas e iniciávamos as atividades. O horário havia sido sugerido por elas. Era bom, pois era um pouco antes da novela, e elas já tinham terminado de arrumar a casa. Combinamos com elas que teriam dois cadernos. Um deles seria para as atividades de aula. O outro seria um diário onde contariam como foi seu dia. Todas gostaram da 240

idéia. Nunca tinham tido um diário. Durante aqueles dias era possível vê-las durante à tarde sentarem-se numa sombra e escreverem. Escreviam coisas que lembravam. Geralmente narravam seu cotidiano, mas escreveram também poesias e canções. Todo começo de aula olhávamos o que elas haviam escrito. Foi assim que percebemos que dona Lindalva e dona Doralice, que haviam participado dos cursos de Eva e Soraia estavam lendo e escrevendo. A partir deste momento pudemos pedir que elas escrevessem textos. Elas optaram pelos versos. Sirlei narrava seu dia a dia, e contava que às vezes se sentia sozinha e triste sem saber por que. Lúcia também narrava seu dia a dia, contava sobre as peripécias de seus filhos, e sobre os dizeres de seu marido. Celestina escrevia algumas palavras, e nos surpreendemos no dia em que ela leu o que tinha escrito, exatamente como havia escrito. Não leu o que queria ter escrito. Difícil traduzir a complexidade e emoção deste momento. Ela que era nossa aluna mais descrente de sua capacidade, e estava lendo. Começamos a trabalhar com ela a escrita a partir da leitura, o que começou a dar grande resultado. De todo este trabalho, duas aulas me chamaram a atenção. A primeira delas foi quando lemos para elas um livro infantil que narrava a história de um menino que queria ajudar uma senhora a recuperar a memória. Elas acompanharam a história atentas. Admiravam-se das peripécias do menino, de suas brincadeiras e de como a senhora participava destas brincadeiras. Aos poucos foram lembrando-se de suas próprias brincadeiras e peripécias. Nossas aulas que tinham como tema “A importância da memória” transformaram-se em uma grande colcha de retalhos de peripécias e brincadeiras infantis daquelas senhoras. A menina Xica que jogava pedras no marinheiro e roubava suas rapaduras. A moça Sirlei que deixava a saia proibida escondida numa árvore, e à noite quando ia pra festa tirava sua calça e vestia a saia que sua mãe queria rasgar, a menina Lindalva que começou a cozinha escondida com cinco anos, tendo aprendido só de ver a mãe. São essas algumas das maravilhosas histórias que pudemos conhecer, e que elas puderam trocar. A aula foi se transformando num espaço para além do aprendizado da alfabetização ou dos conteúdos escolares, transformava-se num espaço de convivência diferente daquele aos quais aquelas senhoras estavam acostumadas. Decidimos então trabalhar com o tema trabalho. Para tanto escolhemos um poema que abordava o cotidiano de trabalho na roça. O texto entendia que o trabalho na roça era repetitivo, todos os dias se fazia a mesma atividade. Elas logo de princípio disseram que aquilo era verdade para o trabalho delas, mas não para o trabalho dos homens. Um dia eles iam plantar pimentão, no outro iam cortar lenha, no outro iam para a cidade resolver os negócios, quando chovia ficavam em casa, no outro dia construíam uma parede da cozinha, faziam o forno de lenha, etc. Elas não. Todo 241

dia acordavam cedo, preparavam o café, arrumavam as camas, varriam a casa, lavavam a roupa, preparavam o almoço, arrumavam a casa, preparavam o jantar, assistiam a novela, rezavam o terço, etc. A única coisa que mudava era a comida. Elas sempre estavam inventando pratos e temperos novos. Assim começamos a fazer uma discussão sobre por que havia esta diferença, se isso as incomodava, e como poderiam mudar este fato.

Xica aprende a ler e a escrever

A aula do dia 17 de julho foi uma aula muito importante. Era este um dia muito especial para Xica, seu neto estava prestes a nascer. Cheguei a sua casa e ela estava terminando de lavar a louça. Ela mostrou-me seu diário e três palavras estavam escritas do modo ‘’correto’’: MEU, DIÁRIO e AMO. Pedi então que ela lesse, e ela leu o que havia escrito. Fiquei muito impressionado. Hoje havíamos nos programado para trabalhar matemática através da música Chico Mineiro. Percebendo que Xica havia lido aquelas palavras perguntei se ela conhecia a música Chico Mineiro. Disse-me que não muito. Peguei a folha e comecei a copiar as palavras da música uma a uma no caderno dela e pedia para ela ler. Ela foi lendo, silaba com silaba ia juntando e conseguia formar as palavras. Tinha alguma dificuldade apenas no CH, EM, EM, O e U. Foi lendo, lendo! Leu a música inteira. Nós começamos a rir muito. Ela estava lendo, finalmente. Acredito que já estava tudo lá. Meu trabalho foi apenas dizer que eram importantes. Em meio a suas brincadeiras, peraltices, traumas, amizades emergiu a leitura, em todos os sentidos. Após sua tentativa na infância de ir para a escola (onde freqüentou uma vez a primeira série) e anos de Mobral Xica começava a ler. Prometeu que quando estivesse lendo tudo faria uma festa. Mataria um boi e chamaria todos os seus parentes. Xica chorava e eu chorava também. Mas o fato de Xica conseguir ler não se explica por um repentino milagre. Na aula anterior, quando lia seu diário perguntei a ela como era o alfabeto que ela havia aprendido quando criança. Em seu alfabeto o efê era fé, o ge era guê, o ême era me, e assim muitas letras eram diferentes. Seu marido, que estava na sala durante a aula, riu e disse que estava tudo errado. Ela falou que seus filhos também riam deste modo e que quando chegou a São Paulo e freqüentou o Mobral, todos achavam esquisito seu modo soletrar o abc. Muito da dificuldade de Xica escrever e ler encontravase nesta dificuldade colocada pelo que é certo e pelo que é errado. O que ela aprendeu em sua terra

242

era o errado, e o que lhe ensinavam na cidade era o certo. Mas errado não era apenas seu abc, eram também suas lembranças de “baiana”, sua cor, seu jeito de falar, sua vontade de voltar. Contou de todo o pré-conceito que sentiu, e de tudo aquilo que a magoava, e que ela não sabia que era preconceito. Durante as aulas fomos revisitando este passado, sua Bom Jesus da Lapa, suas amigas de infância, seu pai ruim, o padre, a avó, os castigos, etc. Naquele dia revisitamos seu abc. Fizemos um abc do jeito dela ao lado de um abc do jeito daqui de São Paulo. Expliquei que o abc dela estava mais próximo do modo da fala do sertão baiano. Sugeri que ela aprendesse os dois, que não esquecesse o antigo e adotasse o novo. Ela o fez. Aprendeu que J pode ser gê ou jota, que G pode ser gê ou guê, que F pode ser fé ou efê, etc. Quando leu “Chico Mineiro” valeu-se dos dois modos, ia percebendo qual fazia mais sentido para formar a frase. Neste sentido digo que ela não aprendeu a ler, mas aprendeu que já lia sem o saber.

A festa No final das três semanas programadas para as atividades resolvemos fazer um encontrão. Além das atividades da educação de adultos Ana estava realizando oficinas com as crianças, e eu estava dando aulas de música. Reunimos os três grupos de atividades e fizemos uma grande festa. O grupo de música contava com 13 alunos, e umas 15 crianças e jovens participavam das oficinas para crianças. Decidimos fazer atividades que envolvessem a todos. A festa iniciou-se no final da tarde com uma grande caça ao tesouro. Para esta caçada utilizamos os trabalhos dos três grupos como pistas: a canção que um aluno de música compôs, o poema escrito por uma aluna da alfabetização, uma canção de roda das crianças, etc. Todos participaram muito empolgados. Senhores, senhoras, jovens e crianças corriam ao redor da sede procurando as pistas e os prêmios. Após a caça ao tesouro fizemos uma visitação ao museu das atividades (uma das casas da sede). Este museu expunha todas as atividades das crianças, músicos e educandos. Todos pareceram gostar muito de conhecer o que os outros haviam feito. Além disso, expusemos fotos do assentamento que mostravam diferentes momentos da história do grupo. Após a visita do museu houve a apresentação de música. Os jovens músicos tocaram canções que haviam aprendido na aula, paródias que haviam desenvolvido e músicas que compuseram em grupo e sozinhos. Mas uma parte da apresentação foi muito importante para os trabalhos de alfabetização. Eu havia pedido para que meus alunos de música musicassem os versos de dona Doralice, dona Lindalva e Alicia. Eles fizeram músicas muito bonitas. O resultado foi uma 243

grande emoção quando as três ouviram seus textos cantados. Emoção esta tanto das mulheres quando de seus amigos e parentes.

Considerações Finais Gostaria de tomar este trecho do trabalho como lugar que abriga algumas considerações sobre problemas e conquistas extraídos desta prática inicial. Tentou-se, por meio deste trabalho, realizar um primeiro passo daquilo que C.R.Brandão definiu como sendo uma “Pesquisa Participante”. Para tanto, parte de minha pesquisa de campo foi se realizando lá, na sala de aula, ou “casa de aula”. Suas lembranças e opiniões que surgiam dos debates tomaram forma e posição necessárias ao distanciamento. Assim, creio que fomos coletivamente exercendo a crítica e a análise que caracterizam uma Educação Popular. Nesse sentido recupero o dizer de Brandão, quando salienta que a

“Educação popular era, então, um dos nomes que traduzia o trabalho ali realizado. Um trabalho exercido por agentes de mediação que, procurando abdicar de possuírem projetos históricos alternativos, se colocaram a serviço do trabalho popular de produzi-los, fortalecêlos e conduzi-los através também da acumulação do saber e do poder do saber.’’ (C.R. Brandão; 1984-:230).

Ana e eu nos constituímos como agentes mediadores para a constituição deste saber, não apenas o saber da escrita, mas o saber de princípios, valores e práticas que foram sendo debatidas em grupo e, assim, possibilitando uma melhor compreensão sobre problemas latentes em suas vidas. Acredito, que o curso, com todas as suas imperfeições, possibilitará uma inserção mais crítica e mais ativa de todos nós nos meios sociais dos quais fazemos parte (família, movimento social, academia, etc.). Mas, neste momento, faz-se necessário compreender alguns dos problemas suscitados por essas práticas. Em primeiro lugar, a questão do multiculturalismo colocou-se de forma muito presente. Os dos grupos de alunas eram compostos por pessoas vindas de regiões muito distintas do país (Sertão da Bahia, Paraná, Campinas, Sertão de Minas Gerais, interior de São Paulo, etc.). Quase todas tiveram socialização em culturas diversas, em épocas diversas. E, para complicar o quadro, todas 244

têm trajetórias de migração por diversas regiões do país. Para lembrar Esteve, comentando sobre o trabalho de um autor estrangeiro,

“O professor confronta-se, cada vez mais, com diferentes modelos de socialização, produzidos pela sociedade multicultural e multilíngue. Ser professor nos subúrbios de qualquer das grandes cidades européias significa confrontar-se, quotidianamente, com um aglomerado de alunos que receberam a sua socialização primária em diferentes culturas e em diferentes línguas maternas.’’(J.M. Esteve; :102).

Concordo com ele que tal coloca-se como um problema ao professor, tanto de países da Europa como aqui. No entanto, este foi um problema positivo em nossa prática, pois proporcionou espaço para que tais diferenças se manifestassem. As diversas experiências de socialização, minha inclusive, transformaram-se em material de análise, e permitiram que entendêssemos melhor os problemas atuais da vida naquele assentamento. Portanto, aproximo-me mais daquilo que L.Gonçalves e P. Silva vão afirmar em seu trabalho:

“No fundo, o multiculturalismo, não importa onde se manifeste, coloca o reconhecimento da diferença, o direito à diferença, como o dilema moderno das sociedades multiculturais. Assim agindo, põe em questão o tipo de tratamento que as identidades tiveram e vêm tendo, nas democracias tradicionais”.( Gonçalves, L.A.O. & Silva, P.B.G. 2003,: 64)

Ter como linha norteadora do curso a memória e o cotidiano foi o que nos permitiu, a todos nós, um grande envolvimento com os encontros. Além disso, convenci-me de que é importante acompanhar a trajetória de vida, tanto dos professores, como salienta I.F. Goodson “Há já algum tempo que estou convencido que o estudo das histórias de vida dos professores é muito importante no que respeita à análise do currículo e da escolaridade” (I.F. Goodson; :65), como dos próprios alunos, e compartilhá-las. Só desta maneira penso ser possível construir conjuntamente uma Educação popular.

245

A cultura escolar, mais do que a escrita especificamente, colocava-se como um dos grandes desafios aquelas mulheres, e à maioria dos pais daquele assentamento. Como nos mostra C.R. Brandão:

“O ensino escolar é importante quando não absolutamente essencial, na cidade e mesmo ‘na roça, hoje em dia’. Ela não só é condição de importância crescente para se viver na cidade, como é percebida como um dos principais componentes da própria idéia de cidade, o lugar do sujeito escolarizado, ou seja, do roceiro ressocializado através dela para ser justamente um cidadão.”(C.R.Brandão; 1983-:223).

Entender porque cada uma daquelas mulheres buscava o aprendizado escolar foi uma das metas de nossos encontros colocada desde o início. Tanto as mulheres como meninas e filhas, presentes em suas infâncias, como seus filhos e seus comportamentos, constituíram a base para entender uma expressão comum “hoje em dia tudo está mudado”. “Hoje em dia esta mudado” surgia nos momentos em que confrontávamos as experiências de socialização dos filhos com a socialização delas. “No meu tempo” era outra expressão recorrente” querendo dizer de um tempo ao qual se pertencia, no qual se compreendia o mundo, no qual se era sujeito. “Hoje em dia” era o tempo dos filhos, onde tudo é mais fácil, tem perua para levar à escola, não tem de andar dez quilômetros. Os pais ‘’hoje em dia’’ incentivam o estudo dos filhos, fazem de tudo para que estudem e possam se tornar “alguém na vida”. Os pais do “meu tempo” eram ruins, queriam que os filhos ajudassem e que fossem iguais a eles. Queriam que os filhos continuassem a viver naquela dureza. Era recorrente que se ouvisse “ meu pai não deixava eu estudar” e se “tivesse estudado podia estar em condição melhor hoje”. Dar aos filhos a possibilidade do estudo representa dar a eles também a possibilidade de ascensão social. Mas, para entender e ajudar estes filhos que estão sendo escolarizados é preciso escolarizar-se. Um segundo problema que gostaria de abordar vem a ser o fato de encontrarmos no curso uma maioria de mulheres como alunas.

De acordo com os dados de M.P. Carvalho “(...)

considerando o recorte por sexo, nas faixas etárias acima de 40 anos vamos encontrar mais mulheres do que homens analfabetos (...)”.(M.P. Carvalho; 2003-:186). No assentamento essa diferença não se afirma, havendo quase igualdade em termos de analfabetos do sexo masculino e do sexo feminino. No entanto, no que diz respeito à vontade e disponibilidade para a chamada ‘’ volta 246

ao estudo’’, há uma grande discrepância. Pensando as analfabetas que participavam dos encontros concordo com Carvalho quando do diz que “Isso nos permite dizer que a diferença entre as proporções de homens e mulheres alfabetizados tem a ver com o percurso escolar que meninos e meninas estão fazendo no nosso ensino, evidenciando uma trajetória mais longa e mais tumultuada para as pessoas do sexo masculino”.(M.P. Carvalho; 2003-:186).

Suas interações com o espaço escolar foram sempre muito conturbadas marcadas pela intransigência dos pais, e pelas más condições para o estudo. Mas, alguns elementos surgidos em nossa ‘’casa de aula’’ podem iluminar nosso problema. Um dos motivos para a vontade de aprender a ler e escrever foi à vontade de escrever cartas aos familiares. Tanto homens como mulheres apresentam trajetórias intensas de migração, o que traz uma grande distância dos parentes. Entretanto, é a mulher quem migra primeiro. É muito comum encontrarmos no assentamento mulheres que, ao casarem, deixaram a casa dos pais e foram morar na casa dos pais do marido, ou próximo. Esse deslocamento podia se dar de uma fazenda a outra, de uma cidade a outra e, até, de um estado a outro. A migração também se dá quando a nova família ruma para grandes centros, em busca de melhores condições de vida. Nestes grandes centros há, geralmente, parentes do marido que deram apoio à nova família. Assim, as mulheres teriam uma ‘’dupla migração’’, e este fenômeno permite que compreendamos melhor essa ‘’vontade de escrever para os parentes’’, e a festa que Xica daria no dia em que aprendesse a ler e escrever, chamando todos os parentes. Um último ponto que gostaria de salientar vem a ser a visão de rotina e cotidiano que essas mulheres apresentaram nos encontros e em seus diários. O dia a dia de trabalho dos homens era visto como variado e movimentado, eles andam muito, se esforçam muito, vão sempre para a cidade (bancos, mercado, etc.), fazem sempre uma atividade diferente (plantar, colher, adubar, destocar, tratar do gado, etc.). Já as mulheres cuidam das crianças, da comida, da roupa e da limpeza da casa, todos os dias, ‘’do mesmo jeito’’. Essa visão da própria atividade como algo repetitivo era apontado pelas mulheres como uma das motivações para saírem de casa e virem aos encontros, uma ruptura na rotina que permitia que se encontrassem, convivessem e discutissem temas que achavam interessantes.

247

A participação no movimento também se coloca como uma das necessidades da “escolarização”. As muitas reuniões, textos para ler, falar, coragem de falar em público, de ler em público, são algumas das “vontades” destas mulheres. Apesar da recente criação de grupos de discussão sobre gênero no MST, o movimento continua tendo maior participação de homens que de mulheres. A própria necessidade de criar-se um grupo interno ao movimento para afirmar a necessidade da participação das mulheres já embasa tal fato. Acredito que as dificuldades encontradas por essas mulheres para a participação nos encontros do movimento, e o trabalho de “conscientização” deste grupo de discussão de gênero, contribuíram para a vontade destas mulheres em participarem dos encontros. Portanto, o curso teve como principal apoio a troca de experiências, ou, “troca de idéias”. Este espaço de interação foi suscitado por um lado, por esse revisitar as memórias individuais coletivamente. Por outro lado, o multiculturalismo ajudou a vermos nossas diferentes socializações com uma postura comparativa, e que propiciava o distanciamento necessário ao conhecimento. Com este espaço foi possível entender melhor suas realidades de vida, sem ele não seria possível compreender suas experiências. Como nos diz Fernandes: “Sem espaço interativo não há troca de experiências e, por conseguinte, os sujeitos não têm a possibilidade de elaborar seus conhecimentos. Quando isso acontece, as relações, o diálogo, a troca de experiências são enfraquecidas e surgem lideranças autoritárias que procuram dominar as massa(s...)’’(B.M. Fernades; 1996: :234-).

248

Bibliografia

Brandão, C. R. “Repensando a pesquisa participante”. São Paulo, ed. Brasiliense, 1984. Brandão, C. R. “De Angicos a Ausentes”. São Paulo, ed. Conrag, 2001. Brandão, C.R. “Casa de Escola”. Campinas, ed. Papiros, 1983. Carvalho, M.P. “Sucesso e Fracasso Escolar”. São Paulo, Edusp, 2003. Esteve, J.M. “Fatores de Mudança”.In. Nóvoa, Antônio ( org.) Profissão Professor. 1995. Porto, Porto ed. Fernandes, B.M. “MST: Formação e Territorialização”.São Paulo, ed. Hucitec, 1996. Gonçalves, L.A.O. & Silva, P.B.G. “Multiculturalismo e educação”. Educação e Pesquisa. Revista da Faculdade de Educação da USP. V.29 n.1 jan./jun.2003. São Paulo. Goodson, I.F. “Dar voz ao professor”.Porto, Ed. Porto, 1992.

249

Família de Salvador

Diagramas de parentesco

250

Famílias de Angelina e Aldo

251

Família de Ramiro

Família de Dania

252

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.