NERY, João; MARANHÃO Fo, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Transhomens no ciberespaço: micropolíticas das resistências. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). (In)Visibilidade Trans 2. História Agora, v. 16, nº 2, p. 139-165, 2013.

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Transhomens no ciberespaço: micropolíticas das resistências João Walter Nery1, Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho2

Resumo: João Walter Nery, autodeclarado transhomem, e Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho, autodeclarado entre-gêneros, analisam, nesta comunicação, alguns dos múltiplos discursos de transhomens (ou homens transexuais) brasileiros através de narrativas produzidas em ambiente virtual (fóruns, grupos do Facebook e diálogos proporcionados por correio eletrônico). Esta cartografia de ciberespaços foi construída a partir da análise dos conteúdos coletados por observação participante. A revisão teórica permitiu complementar o estudo com impressões socioculturais e pesquisas acadêmico-científicas em relação à transidentidade e seu amplo espectro de masculinidades. Palavras-chave: Transidentidades, transhomens, homens transexuais, fóruns de discussão virtuais.

Transmen in cyberspace: micropolitics of resistances Abstract: João Walter Nery, self-declared transman, and Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho, self-declared “in-between-genders”, analyze, in this paper, some of the multiple discourses of Brazilian transmen (transsexual men) through narratives produced in virtual environment (forums, Facebook groups, and dialogues exchanged by e-mails). This cyberspace cartography has been constructed over analysis of the topics collected by participant observation. The bibliographical review allowed complementing the study with social and cultural impressions, as well as academic-scientific research concerning transidentities and its spectrum of masculinities. Keywords: Transidentities, transmen, transexual men, internet, virtual discussion forums.

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Graduado em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor universitário, psicoterapeuta e pesquisador em gênero, especializado em Sexologia pelo Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (IEDE), ex-mestrando em Psicologia da Educação pela Universidade Gama Filho (UGF). Depois da publicação de Viagem Solitária: memórias de um transexual trinta anos depois e depoimentos na mídia, tornou-se referência nacional como ativista pelos direitos da causa LBGTTTI. Contato: [email protected]. 2 Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em História pela Universidade de Santa Catarina (UDESC), especialista em Marketing e Comunicação Social pela Fundação Cásper Líbero, graduado em História pela USP. Contato: [email protected].

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Meu pai me disse: meu filho tá muito cedo, Eu tenho medo que você case tão moço. Eu me casei e veja o resultado, Tô atolado até o pescoço. Minha mulher, apesar de ter saúde Foi pra Hollywood, fez uma operação Agora veio com uma nova bossa, Uma voz grossa que nem um trovão Quando eu pergunto: o que é isso, Joana? Ela responde: você se engana Eu era Joana antes da operação Mas de hoje em diante o meu nome é João Não se confunda, nem troque meu nome Fale comigo de homem pra homem Fique sabendo já de uma vez Que você me paga tudo que me fez Agora eu ando todo encabulado E essa mágoa é que me consome Por onde eu passo todo mundo diz Aquele é o marido da mulher que virou homem Jackson do Pandeiro e Elias Soares

Neste texto em conjunto, os pesquisadores João Walter Nery, autoidentificado transhomem, provavelmente o primeiro do Brasil, operado em 1977, e Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº, atualmente autodeclarado entre-gêneros, realizam um estudo sobre pessoas que se identificam como transhomens3. Ainda são escassas as pesquisas brasileiras que destacam trabalhos de campo no ciberespaço, como os de Jungblut (2009, 2010a, 2010b, 2011, 2012), de Rifiotis (2012), de Pace e Giordan (2012) e de Segata (2009a, 2009b, 2010, 2012a, 2012b). Sobre a circulação de pessoas trans através da internet, destacam-se os trabalhos de Ávila e Grossi (2010), Amaral (2012), Amaral e Toneli (2013) e Coacci (2013). 3

Os autores utilizarão, neste texto, o termo transhomem em substituição a outros sinônimos: homens trans, transexuais masculinos e/ou FTMs (female to male). Serão abordados o uso deste termo e suas definições nas considerações sobre masculinidades. Certamente, cada um destes termos não dá conta das múltiplas autodeclarações sobre trânsitos de gêneros e devem ser vistas com fins didáticos e heurísticos, sob rasura (MARANHÃO Fº, 2012a e 2012b).

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Também são poucos os trabalhos que analisam as transvivências, ou experiências subjetivas de transhomens. Ávila e Grossi (2010, p. 1) argumentam que: que são praticamente inexistente, no Brasil, estudos sobre transmasculinidade e que os transexuais masculinos parecem ter menos visibilidade que as transexuais femininas, tendo em vista a ampla variedade de estudos sobre travestilidades femininas, como os de Marcos Benedetti (2005), Don Kulick (1996, 1997,1998), Roger Lancaster (1998) e Fernanda de Albuquerque e Maurizio Janelli (1995), e transexualidade feminina, como o estudo de Berenice Bento (2006) em comparação com a quase inexistência de similares sobre transexualidade masculina.

Os pesquisadores realizaram uma cartografia digital de inspiração etnográfica, fundamentada em análise de conteúdo e observação participante em fóruns e grupos da rede social Facebook. A coleta de dados ainda contou com relatos pessoais enviados por correio eletrônico. Os conteúdos das conversas provenientes dos grupos de discussão foram complementados com experiências pessoais e referências bibliográficas, algumas das quais escritas por pessoas que se designam transhomens, homens trans4 (ZOBY, 2011, ALMEIDA, 2012, HALBERSTAM, 2012, ZAMUR, 2013). Foram analisadas discussões em grupos como FTM Brasil, FTMS, Disforia de Gênero, MTF & FTM, FTMachos, Empregos para trans, Homens Trans Héteros e ABHT – Associação Brasileira de Homens Trans. Tal trabalho de etnografia digital foi complementado através de conversas com integrantes desta rede social e referências bibliográficas. As vozes acolhidas através de narrativas em fóruns fechados e mensagens privadas não foram identificadas por seus nomes reais. Optou-se por manter o conteúdo das narrativas em seu formato original, linguagem típica da comunicação via internet. A média de idade nos fóruns de transhomens do Facebook varia de 16 a 40 anos. Após algumas considerações sobre masculinidades e pessoas assignadas como mulheres no espectro da transidentidade masculina, ou transmasculinidade. Os autores apresentam temas distintos, como as resistências dos transmeninos, transfobia vivenciada pelos transadolescentes, o uso de sanitários, a (in)visibilidade trans e questões relacionadas à documentação. Por fim, sem a intenção de 4

Ou através de termos similares que identificam o trânsito de gênero do feminino (socialmente atribuído/designado na gestação ou no nascimento) ao masculino, de auto-identificação e auto-declaração.

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finalizar o assunto, os pesquisadores trazem considerações inconclusivas sobre um tema caracterizado pelo recente diálogo e troca de informação entre pessoas cujas subjetividades se fortalecem através da criação de laços e construção de pertencimento.

1. Masculinidades: algumas considerações Alguns relatos acerca de adequações de gênero do feminino para o masculino estão presentes em mitos, como o de Tirésias e o de Santo Onofre da Capadócia, mas também em experiências reais de coletivos específicos, como as mulheres-homens da Albânia 5 e os/as nguiu do México6. Autores como Henry Fielding (1746) comentaram sobre pessoas designadas como mulheres, que se apresentavam socialmente como homens e se casavam com mulheres, denominando tais pessoas como female husbands (CLAYTON, 2004, p. 152). Jack Halberstam, que também se apresentou como Judith, seu nome de registro, usa o termo female husband para designar Anne Lister, que não seria “uma travesti feminina”

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(HALBERSTAM, 1998, p. 67). A

condição de “mulher no nascimento”, para muitas dessas pessoas, foi somente percebida após a morte, como no caso de James Allen, em 1829, citado no artigo de Halberstam, ou do instrumentista de jazz Billy Lee Tipton8 (1914-1989), retratado no livro O Trompete (KAY, 1998). De acordo com Coll-Planas e Missé (2010), pessoas transexuais entendem que a não correspondência entre sexo e gênero podem demandar modificação corporal mediante cirurgias e hormonização. A definição de transidentidades, para a pesquisadora Simone Ávila9, abrange diversos contextos em que “uma pessoa sente o desejo de adotar, temporariamente ou

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Conheça as mulheres homem da Albânia. Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2013. 6 Nguiu é uma espécie de termo guarda-chuva utilizado pelo povo zapoteca, do sul do México, que identifica pessoas assignadas como mulheres e autoidentificadas como homens. Muxe and Nguiu. Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2013. 7 Ou “a female tranvestite”, conforme termo original. 8 Batizado como Joss Moody, de acordo com a narrativa de Kay. 9 Transidentidades. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2013.

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permanentemente, o comportamento e os atributos sociais de gênero (masculino ou feminino), em contradição com o sexo genital”. O termo transhomem é uma das muitas classificações dentro das transidentidades, sendo uma das autodesignações adotadas por pessoas que “nasceram mulheres” 10, ou melhor, designadas como tal a partir do nascimento ou ainda no período de gestação, no entanto, identificam-se como homens. Além deste termo, são também utilizados: homens trans, FTMs 11 , homens transexuais, transmen e transmasculinos. Os termos mais utilizados por ativistas são homem trans ou FTMs. Tais autodefinições acabaram por convergir em uma aquarela de masculinidades (ALMEIDA, 2012). Ainda acredita-se relevante mencionar que, entre as discussões virtuais que possibilitaram esta pesquisa, os transhomens costumes tratar-se por man, brother e véi. Em 2010, Simone Ávila lançou a página virtual “Sou transhomem... e daí?”

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, criado

adotando o termo a partir da tradução do inglês (transman) e do francês (transhomme). Assim, o nome que designa tal sujeito torna-se um substantivo, palavra com que se denomina, não como o adjetivo, que qualifica um objeto. Ao usarmos “masculino” ou “feminino” após “transexual” (transexual masculino, transexual feminino), ou ao usarmos “transexual” após homem ou mulher (homem transexual, mulher transexual) estamos qualificando o sujeito”. Esta forma de nomear também afasta a lógica do binarismo de gênero, “como, por exemplo, homem/mulher, masculino/feminino” (ÁVILA et al, 2011, p. 4). Almeida (2012) classifica as identidades de transhomens em quatro grupos, com a hipótese de que ocorra uma transitividade entre eles. O primeiro grupo é formado por pessoas que não querem um total descolamento do feminino, permanecendo “como ‘mulheres’ por diferentes e variados condicionantes”: familiares, subjetivos, objetivos e sociais, o “que não as impede de, na intimidade, utilizarem nomes ou apelidos masculinos, alguns objetos característicos da indumentária masculina” e conciliá-los “com signos sociais que permitem preservá-las (quando desejado ou necessário) na identidade feminina” (ALMEIDA, 2012, p. 515-516).

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Os autores farão o uso de aspas, neste trecho e em outros, com o objetivo de marcar o sentido irônico referente a tais termos. 11 Do inglês female to male, que se traduz “de mulher para homem”). 12 Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2013.

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Outro grupo é “formado por ‘homens’ que não optam por modificações corporais cirúrgicas nem hormonais. Fazem uso de outros recursos culturais disponíveis para terem a aparência próxima do gênero com o qual mais se afinam” e se dizem “satisfeitos e efetivamente pertencentes ao gênero masculino”. Um terceiro coletivo é influenciado pelas “perspectivas de ‘desnaturalização das identidades’, como as de Judith Butler e Beatriz Preciado”, que constroem performances públicas em que os gêneros se misturam, expressando, dessa forma, insatisfação com o ‘binarismo dos gêneros’ e/ou com a ‘heteronormatividade’. Eles/as explicitam o desejo de modificações corporais às vezes pela via, inclusive, da ingestão de testosterona, mas não querem a mastectomia ou outros procedimentos cirúrgicos (ALMEIDA, 2012, p. 515-516).

Finalmente, um último grupo é composto por: indivíduos que fazem e/ou desejam modificações corporais através da hormonização por testosterona e uma ou mais intervenções cirúrgicas, além de se valerem em larga medida de outros recursos sociais (roupas e calçados masculinos, faixas torácicas – a fim de dissimular o volume dos seios – e próteses penianas de uso público). Buscam também frequentemente o reconhecimento jurídico do sexo e do nome masculinos e têm se tornado mais visíveis na cena pública brasileira, em função do processo transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS), que favorece o acesso a modificações corporais de alta complexidade (ALMEIDA, 2012, p. 515-516).

Transhomens, assim como os outros termos de autodesignação, procuram dar vistas ao conflito entre características masculinas e femininas designadas/atribuídas/assignadas a partir da observação (anterior ou posterior ao nascimento) de órgãos genitais e a subjetividade do gênero das pessoas. Essas transubjetividades ultrapassam o binarismo esperado, fissuram a heteronorma da sexualidade e negam que a anatomia dos corpos possa ser tomada como único destino possível. São, assim, pessoas que, para a medicina, ciências ‘psi’ e sociedade em geral, “nasceram mulheres”, mas por se identificarem como homens, transformam-se através de uma adequação corporal ao gênero declarado. Além das autodefinições elencadas, muitas destas pessoas tem se identificado no Facebook, como menino, homem ou man. O termo trans quase não é usado. 144

Para alguns destes indivíduos, designar-se homens, meninos, guris, garotos ou men, significa entender a transexualidade como um estado transitório, efêmero, que desembocará na adequação ao gênero de identificação. Em movimento contrário, há pessoas que se identificam como trans, ou outra variação terminológica, com fins de acesso ao processo de hormonização e cirurgias proporcionadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ou de reconhecimento jurídico, ou para atuarem como ativistas em políticas públicas, reivindicando direitos, como é o caso de João W. Nery. Algumas destas pessoas se identificam ora como homens, ora como transhomens e alguns não querem rótulos – lembramos que as autoidentificações são múltiplas e contingenciais. As diferenças devem ser entendidas a partir da diversidade de experiências pessoais em relação a marcadores sociais distintos: classe, orientação sexual, status acadêmico e profissional, geração, limitações físicas (pensadas aqui como sinônimo de “deficiências”), origem, etnia, raça, moradia, preferências culturais, religião, dentre outros. Tal perspectiva auxilia numa desuniversalização,

desessencialização,

desmedicalização

e

despatologização

das

transidentidades. Transexperiências são distintas, pessoais e únicas. A grande variedade existente de termos e definições linguísticas deve servir como recurso didático e heurístico, podendo ser colocada sob rasura (MARANHÃO Fº, 2012a, 2012b), especialmente porque o termo transexual foi cunhado em um contexto de medicalização de pessoas com identidade de gênero “transtornada”. Para Maranhão Fº, tais pessoas podem ser entendidas como entre-gêneros (MARANHÃO Fº, 2012b)13, que caminham entre mobilidades identitárias diversas. Dentre tais experiências entre-gêneros, destacam-se, neste trabalho, as transvivências masculinas, ou 13

A expressão entre gêneros refere-se a pessoas que vivenciam experiências de trânsito e/ou bricolagens identitárias de gênero. Dentre estas pessoas, destacam-se as que não se identificam com o gênero e/ou o sexo atribuídos no nascimento ou a partir de biotecnologias (como ecogramas e ultrassons) que “identificam sexo” – e sinalizam para o gênero. Tal conceito procura identificar algumas das diversas situações de deslocamentos identitários individuais e coletivos relacionados a gênero. Tais pessoas – como todas as outras –, tem atribuídas a elas, na gestação e/ou no nascimento, não só um sexo (detectado especialmente por conta da presença de vagina ou pênis) como um gênero (feminino/masculino). Por terem um gênero atribuído/designado na gestação e/ou nascimento que não as contemplam (feminino/masculino) e se identificarem com o gênero distinto, vivenciam experiências entre gêneros. Estão entre o gênero de atribuição e aquele o qual se identificam e/ou se expressam. Há também as pessoas que se encontram entre o gênero de designação e os dois outros gêneros, com os quais se expressam e/ou identificam (como ocorre com pessoas que se identificam bigêneras ou pangêneras). A expressão entre gêneros pode acolher, igualmente, pessoas que se percebem entre o gênero que lhes foi assignado e nenhum outro gênero de identificação e/ou expressão – como é o caso dos agêneros (MARANHÃO Fº, 2012b).

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as peregrinações de gênero dos transhomens – termo preferido por Nery e Maranhão Fº neste texto para designar estes sujeitos específicos. Há diversas demandas pessoais e coletivas de transhomens. Algumas dizem respeito à inserção e participação no ativismo trans, às relações afetivas e sexuais, à permanência e/ou exclusão escolar, à inclusão no mercado de trabalho, ao uso do nome social, à retificação de prenome e sexo14. Ser transhomem, muitas vezes, tem a prerrogativa de desafiar normas de gênero. A resistência à generificação sexista das pessoas e dos objetos é uma reação intrínseca a um poder coercitivo, manifestado através do binarismo compulsório, que tenta imprimir um modelo hegemônico na sociedade, onde corpo, subjetividade, desejo e práticas sexuais sejam lineares e “coerentes” entre si.

2. A resistência e as peculiaridades dos transmeninos Poucos trabalhos têm identificado vivências de transmeninos e transmeninas, ou como define Gaspodini (2013), as transcrianças. Conforme o argumento do autor, Grande parte do sofrimento na transexualidade advém do fato de perceber-se nãocisgênero. Não são as características biológicas macho/fêmea que predeterminam a identificação com as categorias homem/mulher, construídas sócio-historicamente. O sofrimento desse “não-pertencimento” se intensifica a partir das ações dos adultos, guiados por um sistema de crenças e normas, que acabam por negar à criança a autonomia de sua construção identitária (GASPODINI, 2013).

A primeira manifestação da resistência dos transhomens costuma ser na é na infância. Apesar de não possuírem ainda o que alguns descrevem como “terríveis caracteres sexuais secundários” 15, quando se percebe a sensação de estranheza. Inicia-se o enfrentamento dos conflitos e, conscientemente ou não, reações de resiliência.

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Lembramos que em documentos, em sua vasta maioria, escolhe-se por definir o “sexo biológico” dos indivíduos em detrimento do gênero. 15 Os caracteres sexuais secundários são modificações do corpo que ocorrem devido ao funcionamento do

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“Destruí minhas Barbies e bonecas Eliana” é uma das narrativas sobre roupas e brinquedos, provenientes dos fóruns de discussão. Muitos concordaram no fato de terem possuído objetos considerados femininos, como bonecas – geralmente desnudadas, riscadas, com os seios amputados e os cabelos cortados. Outros as tratavam como namoradas, beijando-as e usandoas para reforçar suas próprias identidades, figuras masculinas em construção. Os transmeninos parecem traduzir, de forma lúdica, através da brincadeira e sua relação com objetos, aspectos de sua subjetividade. Alguns transmeninos foram obrigados por suas mães ao uso de faixas nos cabelos compridos e mencionaram que colavam chiclete ou tentavam pegar piolho na escola para forçarem seus cortes de cabelo (Leo gostava da faixa, porque o Tai do Digimon também usava uma). Poucos conseguiram ganhar bonecos, como afirmou também Leo: “Brincava sempre com o Ken kkk, tive a sandália e o óculos do Seninha e usava uma calça do Tigor T”. A maioria teve tamanco da Carla Perez, camiseta da Lilica Ripilica, botas brancas ou rosas da Xuxa – motivos de grande constrangimento e descontentamento. Narrativas como estas parecem demonstrar que, numa determinada aprendizagem do que é “ser um menino”, brincar (ou cuidar) de bonecas não é permitido – visto que tal atividade é associada desde a infância com características femininas (especialmente maternais). Nessa espécie de pedagogia do gênero masculino, talvez brincar de bonecas, só fosse permitido “só quando adulto e se forem infláveis”. Quando perguntados sobre as brincadeiras prediletas a maioria respondeu: lutas, futebol, carrinhos, pipa, peão, soldadinhos, bola de gude, carrinho de rolimã, espião, videogame, casinha (quando eram o pai), jogos de ação, que envolviam corrida, como piques (esconde, bandeira), polícia e ladrão, bicicleta, skate e jogos competitivos. Ramon complementa: brincar de faz de conta pq dai eu podia ser um cara nas brincadeiras, tipo power rangers. Inventar e desenhava as coisas, que eu falava que ia construir kkkk mas no fim só ficava no papel mesmo... Gostava mt de legos tb, coisa de montar... brincar de espião na rua da casa da minha vó, foi uma infância bem aproveitada até, apesar do sofrimento... Eu sofria mais na escola mesmo, que eu não me soltava, era

sistema reprodutor.

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MUDO, não falava com ninguém. No jardim eu falava por sinais com a professora kkkk.

3. Transfobia na adolescência: a estraga-prazeres Embora alguns autores abordem o universo de adolescentes que se autodesignam como travestis e transmulheres

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(DUQUE, 2011, AMARAL, 2012, 2013), estudos sobre

transhomens adolescentes são insuficientes. Nery e Maranhão Fº não identificaram trabalhos sobre esta temática específica. Para o transhomem adolescente, é extremamente indesejável o desenvolvimento de características sexuais secundárias, sendo este sofrimento acentuado pela percepção de rejeição advinda do preconceito social em relação à mobilidades de gênero. Esta violência recebe o nome de transfobia, definida por Jaqueline de Jesus como o “medo ou ódio com relação a pessoas transgênero” (DE JESUS, 2013), especificada assim por diferir das outras LGBTfobias17. De um modo geral, a adolescência é o período em que os transhomens preferem ser confundidos com travestis, moleques imberbes ou gays18, do que com sapatões. Thiago é um dos que “passam batidos” como uma figura masculina e achou incrível quando a mãe ( que não o vê assim), veio lhe perguntar: “Mas se ele é gay, como que dá em cima de você?”. Na escola, além da discriminação, alguns são instigados à violência como “comprovação de masculinidade”, explicitando a lógica do “se você quer ser homem, aprenda a brigar como homem”. Muitos se tornam quase mudos, com medo do efeito da voz mais aguda do que o desejado. A preocupação também permanente com o disfarce das mamas ou com a gesticulação, nem sempre “máscula o suficiente” gera muita ansiedade, introspecção e sentimentos persecutórios.

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Seguindo a escolha linguística para o gênero masculino, o mesmo acontece no feminino, quando transmulheres são sinônimo de mulheres trans, MTF (male to female), transwomen ou transfeminina. 17 Homofobia, lesbofobia, bifobia, transfobia e intersexofobia são formas de violência específicas relacionadas à população LGBT. 18 Isto por aparentarem ter corpos masculinos.

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A questão do nome social permeia diversos espaços sociais dos transhomens, como a procura por um trabalho, por exemplo. Segundo Luis, “as empresas sempre dão um ‘jeitinho’ de dizer não quando te veem, e se te admitem muitos não querem colocar o nome social no crachá!”. Na hora de preencher um currículo, não se sabe qual nome causará menos problemas. Transhomens com escolaridade de nível superior, que conseguem empregos valorizados e/ou de sucesso, geralmente, permanecem com o nome de registro para não perder o cargo. Um deles, mestre em Antropologia, não aguentando o “enxotamento” da universidade, preferiu trabalhar como autônomo, lavando pets. Nos hospitais, inclusive os credenciados pelo SUS, transhomens não são respeitados com seu nome social conforme estabelece a legislação. Poucos frequentam ginecologistas ou psicoterapeutas particulares, porque estes não estão preparados/as para recebê-los. Impedidos de realizar doação de sangue, alguns sofrem injúria, como Vitor, ao ser insultado por um atendente como “lésbica escrota”. Nos presídios, poucos sabem da existência da transexualidade masculina e muitos se veem como “lésbicas caminhoneiras” 19 . Dois representantes da ABHT constataram este fato no Presídio do Bom Pastor, em Recife e doaram um exemplar do livro Viagem Solitária (Nery 2011), como forma de propulsionar o debate. Raros são os que têm apoio familiar. Em grande maioria, são considerados “lésbicas doentes ou safadas”, que envergonham os familiares e a vizinhança, como é o caso de Samuel: Meu pai sente vergonha de andar comigo na rua, insiste em corrigir as pessoas quando me tratam no masculino e mesmo assim, estou fazendo questão de não tirar a barba. De vez em quando ele joga na minha cara que não entende uma pessoa querer ser homem e arrumar um ‘viado’ pra namorar (se referindo à minha namorada q é MTF). Ainda bem q moro sozinho.

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Nem todas são necessariamente transhomens.

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A família é, muitas vezes, o espaço de relações sociais mais fortemente reprodutor de sofrimento, sobretudo se muito religiosa, utilizando-se do pecado e da culpa para condená-los. Citamos, entre as atrocidades cometidas, o “estupro corretivo” 20, inclusive com participação de familiares, como forma de “tratamento”. Os que ainda não desenvolveram recursos suficientes para abandonar tal contexto de violência veem-se obrigados a suportá-lo, como Kaio: Eu desisto, não aguento mais levar porrada (física e mental) nem preciso abrir a boca pra mãe enfiar a mão na minha cara, basta me ver vestido com roupas masculinas e binder21. Ontem tentou me enforcar, porque meu pai a acusou de não ter me criado direito. Vou voltar com o meu nome de registro, me vestir como uma garota e afogar meu próprio ser. Meu único desejo ultimamente tem sido a morte, mas me recuso a morrer como mulher, isto não aceito de forma alguma.

E também Silas: Hoje no telefone com minha mãe, ela ficou constantemente me chamando de “querida”' (mas num tom de pirraça mesmo) Pedi que ela parasse com isso e o que ela me respondeu: Vai para o quinto dos infernos! e desligou na minha cara. Os pais sempre acham q é só um super homossexualismo.

Como ocorre com as pessoas cisgêneras 22 , há pessoas transgêneras que se declaram heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pansexuais e assexuais. A orientação sexual também é motivo de discriminação em ambos os segmentos, sendo que nos transhomens, a confusão e a invisibilidade são maiores ainda, como demonstra Breno: "Quando digo que sou um transgay, ninguém entende, perguntam logo: Mas se vc gosta de homem, pra que deixou de ser mulher???". Transgay, como refere Breno, é o transhomem que se sente atraído e/ou envolvido afetivamente por outro homem (trans ou cisgênero). Em meio às próprias inter-relações entre a população LGBT também há reclamações de discriminação, como demonstram Lino e Alceu, respectivamente: "Sofro no meio gay, por não

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é uma prática criminosa a qual um ou mais homens estupram mulheres lésbicas ou que parecem ser, aparentemente com o objetivo de corrigir suas orientações sexuais. 21 Binders são coletes para a faixa torácica, servindo para esconder as mamas. 22 Pessoas cisgêneras identificam-se com características de gênero atribuídas ao seu sexo biológico.

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ter uma aparência de um macho alpha com um pinto no meio das pernas e para a maioria, um ftm continua sendo visto como uma mulher". Por incrível que parece o meio LGB e até o T também é o mais preconceituoso. As pessoas heteros são mais tranquilo. Pelo menos comigo foi assim. Não tive e não tenho problemas com homem cis e até os gays que conheço também não tive muito, mas as lésbicas... PQP... É tenso!!! Mas, como não dou muita confiança, eu corto logo.

4. Transhomens (in) visíveis Outra discussão levantada pelos transhomens refere-se à sua (in)visibilidade política e midiática. Azimute Zamur comenta: “falando em política, acredito que graças a pessoas como eu, outras tantas estão descobrindo que é possível mudar de gênero, de sexo e de vida” (ZAMUR, 2013, p. 568). A resistência é experiência que pode ser contínua. Halberstam argumenta sobre a menor visibilidade de transhomens. Para o mesmo, transgênero pode ser uma mulher que deseja se tornar homem, mas ninguém faz muito caso disso e ela se torna invisível. Quando um homem quer se tornar uma mulher, há ideia de que é fácil, porque a mulher já é artificial, então basta se vestir, usar maquiagem e salto. A mulher que quer se tornar um homem enfrenta mais problemas porque há tanto poder social investido na categoria homem que não acreditamos que isso possa acontecer. Acreditamos que masculinidade é uma prerrogativa de corpos biológicos e um lugar de privilegio social. Então a sociedade se interessa menos por mulheres que se tornam homens que por homens que se tornam mulheres, que são considerados fabulosos, expressivos culturalmente. O homem transgênero, por outro lado, é alguém que está invadindo o território da masculinidade, que é protegido por homens, para os homens. Então eles passam despercebidos. (HALBERSTAM, 2012, p. 9-10).

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Ainda acerca da invisibilidade, Almeida entende que grande parte do corpo social ignora a condição dos transhomens grande em parte devido ao olhar falocêntrico que impregna as representações sobre a experiência masculina. Nesse sentido, é como se os comportamentos e os significados considerados masculinos emanassem necessariamente da presença material original do pênis. Tais representações tornam-se evidentes quando muitas pessoas, na presença de homens trans – especialmente dos que dispõem de corpos peludos e musculosos e não fizeram faloplastia – manifestam extrema perplexidade, como se esses contrariassem toda a lógica e é comum que em seguida utilizem expressões, tais como “como pode ser tão perfeitinho?” (ALMEIDA, 2012, p. 519).

Almeida acrescenta outra motivação para a menor visibilidade: o resultado das adequações corporais de transhomens. Com a mamoplastia masculinizadora (mastectomia bilateral) e o uso de testosterona, os “homens trans, ao contrário do que ocorre com as mulheres trans, tornam-se bastante próximos fisicamente às expectativas sociais de como deve parecer um homem, o que contribui para invisibilizá-los”. Relata que “por esse motivo, não sei se homens trans desejam comunidades reais e muito menos formar grupos políticos, ou se a necessidade de encontrar pares se basta nesses encontros pontuais e/ou virtuais de socialização”, pois o desejo mais forte pode ser o “de sumir na multidão, o ‘direito à indiferença’”. (ALMEIDA, 2012, p. 519). Transhomens convivem com a urgente necessidade de politização e desenvolvimento de estratégias de visibilidade. No Brasil, o marco da representatividade dessa categoria identitária se deu a partir da organização e fundação da Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT), em São Paulo, em 30 de junho de 2012, no Centro de Referência da Diversidade (CRD). No endereço eletrônico da ABHT23, uma pergunta se faz claramente visível: “onde estão os homens trans no Brasil?”. Ao acessar o link, uma série de indicações de blogs e canais da internet sobre o tema, tanto no Brasil como no exterior possibilitará uma variedade de caminhos para compreender essas subjetividades. Os blogs indicados são o de João Nery, o 23

Associação Brasileira de Homens Trans. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2012.

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Vídeos Transgêneros, o Transexualidade FTM, o Becoming Bernardo, o Trans-Boy, Meu Segundo Nascimento e TechnoHombre. Os canais sugeridos são Power Rangers FTM, FTM Brasil, Kaito Felipe, Leonardo Peçanha, Bruno Oliveira, Jack A. Macalister e Jack Akai. Ao que tudo indica, um movimento crescente de resiliência entre os transhomens acontece através da organização de uma associação específica, e de diversas plataformas cibernéticas de compartilhamento de informações. Narrativas coletadas no Facebook evidenciam esta crescente visibilidade: Juliano comentou: “foi graças a João Nery e outros homens trans que eu saí de todos os armários possíveis. Agora me admito homem trans com muito orgulho na escola e no trabalho e o mais importante, em casa também. Mas sei q a luta eh longa.” Para Marquinho, “se a gnt não der a cara pra bater e se mostrar socialmente, como vamos ter nossos direitos assegurados na sociedade?”. É graças à persistência de alguns transhomens que políticas públicas têm sido implementadas, reavaliadas ou melhoradas. Terry anunciou: HOMENS TRANS DE RECIFE / REGIÃO METROPOLITANA: Conseguimos o endocrinologista! A secretária da gestora da Secretaria de Saúde ligou para mim hoje à tarde e disse que conseguiram atendimentos endocrinológicos para vocês no Hospital Barão de Lucena e no Hospital Agamenon Magalhães. Ela me pediu para eu enviar para elas vários dados de vocês... Me passem tudo inbox o mais URGENTE possível. Nome de registro, nome social, endereço, nome da mãe, número do Cartão SUS (se tiver, se não tiver, não precisa), data de nascimento, RG e telefone. Quem precisar de laudo, como alguns de vocês já sabem, uma conselheira do Conselho Regional de Psicologia já se ofereceu para facilitar isto. Nossa primeira vitória, nosso primeiro passo para o início dos atendimentos do Processo Transexualizador no SUS aqui em Pernambuco!

Zoby comenta que a maior visibilidade tem refletido nos hospitais que realizam tratamento pelo SUS: “alguns, como o HUB (Hospital Universitário de Brasília), já estão criando grupos exclusivamente masculinos” (ZOBY, 2011, p. 4). Uma das principais reivindicações (hormonização a partir dos 16 anos) foi conseguida no SUS em São Paulo, assim como o uso

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de bloqueadores hormonais no início da adolescência. Os transhomens de outros estados reivindicam esta melhoria também em suas localidades. Com o objetivo de emponderar os transhomens brasileiros acerca de seus direitos ao exercício da cidadania e incentivar o protagonismo da militância, será realizado o 1º Encontro de Homens Trans do Norte e Nordeste, de 14 a 16 de junho, em João Pessoa, com o apoio da prefeitura local. Entretanto,

a

questão

da

visibilidade/invisibilidade

de

transhomens

perpassa

impreterivelmente a situação de registros jurídicos de reconhecimento.

5. Documentação A questão dos documentos aparece como um dos problemas principais. Os transhomens passam por dificuldades financeiras por não conseguirem trabalho, têm seu pedido de nome social negado na lista de chamada das escolas e em seus documentos. O mesmo acontece com a carteira de habilitação a motoristas. Apenas Beto não quis mudar os documentos: “Sou mulato, moro no Nordeste e toda hora sou parado na rua para ser revistado. Prefiro ter documentos femininos porque assim, pelo menos, tenho a lei Maria da Penha 24 para me proteger. Tá maluco ir parar numa prisão masculina”. Em relação a esta lei, contudo, deve-se destacar que uma de suas lacunas está no recebimento de transhomens (em diversos estágios de adequação de gênero) nas delegacias de mulheres: os/as funcionários/as responsáveis, assim como a lei, não estão suficientemente preparados/as para atender a este público. Uma forte tendência entre transhomens é o isolamento social, sobretudo no próprio quarto, como forma de se preservar do sofrimento em contato com as relações sociais. Pensamos ser esta uma das razões pelas quais as discussões no ciberespaço têm proporcionado o diálogo e a troca de experiências, bem como a criação de laços e redes de apoio mútuo. Alguns buscam informações no Facebook sobre como adequarem o nome e o sexo em seus documentos, como Mathias: “Prezados, algum de vocês é (ou conhece) um homem trans que conseguiu 24

A Lei Maria da Penha é uma lei de gênero e baseia-se no princípio da isonomia. Prevê também, no âmbito familiar, a proteção de homens agredidos ou ameaçados por mulheres.

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alterar o nome e o sexo em decisão de 1º grau em Santa Catarina? Por favor, entrem em contato comigo. Obrigado”. Enquanto em alguns países, como a Inglaterra, o critério “sexo” já foi abolido dos passaportes, no Brasil é aprovado o novo modelo de documento de identificação, constando como obrigatória a definição sexual, o que ocasionou revolta e indignação a Cris: “E pra quem não mudou judicialmente o sexo, vai passar mais constrangimento ainda? Só vou andar com a carteira de motorista que tá num plástico velho e nem dá pra ler”.

Figura 1

Vitório relata: “não paro de pensar nisso, vai ser horrível. Só vou mudar meu RG quando não der mais pra usar em lugar nenhum”. Joaquim acrescenta: “ai...e o Brasil, ou engatinha ou escorrega na maionese 4 vezes prá trás, precisamos fazer pressão política para retirar o campo ‘sexo’ desta nova carteira, como também do passaporte”. Em outra postagem acompanhada de imagem ilustrativa (Figura 1), Joaquim comentou:

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Sinto-me enganado mais uma vez pelo Governo Federal. Anunciaram no dia 29 de Janeiro que o Cartão SUS teria o nome social de pessoas trans. Olhem o cartão novo e me digam se também não se sentem enganados? Além de ter em letra maior o nome de registro tem também bem visível o sexo. Sabem quando aqueles funcionários preconceituosos, que estão na base, vão chamar a gente pelo nome social? NUNCAAAAAAAA!

Trans brasileiros reivindicam a aprovação de um projeto de lei semelhante ao aprovado na Argentina, pela Lei de Identidade de Gênero. Em nosso país, os deputados federais Jean Wyllys e Erika Kokay, em 20 de fevereiro de 2013, protocolaram o Projeto de Lei 5002/13, intitulado Lei de Identidade de Gênero – João W. Nery 25 . Esta lei garante o direito do reconhecimento à identidade de gênero de todas as transidentidades no Brasil, sem necessidade de autorização judicial, laudos médicos ou psicológicos, cirurgias e hormonioterapias. Preserva todo o histórico do indivíduo, assegura o acesso à saúde no processo de transexualização, enfim, auxilia na despatologização das transidentidades. O contexto atual aponta para diversas lacunas na asseguração de direitos de pessoas trans em relação às cisgêneras, daí a importância de articulação política e estratégia de um movimento social preocupado com estas demandas específicas.

Algumas considerações Como visto, desde crianças muitos transhomens procuram transgredir / transcender as normas de gênero que a sociedade impõe a seu respeito, os definindo como mulheres, em contradição ao modo como se percebem e se sentem. A reelaboração contínua de suas identidades e representações subjetivas e sociais se dá a partir da adequação às masculinidades, e na agenda política dos transhomens emergem assuntos fundamentais, especialmente associados à aparência corporal e ao nome, vistos serem estes dois referentes identitários dos mais importantes. O ativismo transhomem,

25

Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2013.

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emergente no Brasil, tem procurado se articular para resistir a medidas governamentais que são fonte de constrangimento a estas pessoas. As transidentidades ainda podem ser consideradas incompreendidas em diversos contextos sociais, grande em parte na produção (ou não) de conhecimento sobre o assunto. É recente a articulação dos transhomens brasileiros, facilitada pelas relações virtuais nos ciberespaços. A troca de experiências de vida entre essas pessoas e contextos fortalece a autonomia de subjetividades através da criação de laços de pertencimento, fazendo com que muitos procurem se fortalecer politicamente, resistindo a medidas governamentais que lhes seriam fonte de constrangimento, bem como para garantir seus direitos a adequações jurídicas que atendam a algumas de suas necessidades. O ativismo político e a articulação em movimentos sociais parece ser a melhor forma de conquistar visibilidade, garantir direitos e construir sentimentos de comunidade e identidade. Este artigo não pretende esgotar a reflexão e produção de conhecimento acerca da transmasculinidade. Questões que envolvem a vida e as subjetividades dos transhomens são emergentes e, por esta razão, este trabalho apresenta primeiras considerações sobre o assunto, convidando a novas discussões e desdobramentos.

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