Neurociência e Psicopatologia: compreendendo os fundamentos da neuropsicologia e da psicobiologia do sofrimento psíquico

May 29, 2017 | Autor: Hélio Tonelli | Categoria: Psicologia Cognitiva, Psicopatologia, PSICOBIOLOGIA, Neurociências, Neuropsicologia, Neuroanatomia
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Neurociência e Psicopatologia Compreendendo os fundamentos da neuropsicologia e da psicobiologia do sofrimento psíquico

Hélio Tonelli 2016

Neurociência e Psicopatologia

Resumo Este texto foi elaborado com base nas aulas da disciplina de neuroanatomofisiologia do curso de pós-graduação em neuropsicologia da FAE Business School, por sugestão de alguns alunos de sua primeira turma, em meados de 2016, a grande maioria psicólogos, muitos deles pouco familiarizados com a neurociência, outros se sentindo desatualizados com a matéria por diversas razões. Ele é alicerçado na anatomia e na fisiologia do sistema nervoso central, mas é voltado à neuropsicologia e à psicobiologia dos transtornos mentais. Prioriza, portanto, as funções corticais e a relação entre os prejuízos a seu funcionamento e o surgimento de sintomas psicológicos e psiquiátricos. Este enfoque psicopatológico baseia-se na premissa de que distúrbios em sistemas neurais subjacentes ao processamento de representações mentais específicas acabam por comprometê-las, distorcendo a visão do mundo e originando sofrimento psíquico em suas diversas formas. O conceito de representação mental é inicialmente discutido e, em seguida, são apresentados os princípios básicos da organização anatômica do sistema nervoso e como diferentes “setores” do sistema nervoso central, representados por grupos neuronais especializados, desempenham suas tarefas. Segue-se uma seção onde são abordados diversos aspectos do trabalho dos neurônios na geração de representações mentais e outras dedicadas à organização hierárquica do processamento da informação pelo cérebro e a criação do comportamento e cognição, sendo discutidos os papéis específicos dos córtices associativos frontal, parietal, temporal e límbico, e, sem que se perca de vista a orientação neuropsicopatológica, são feitas considerações acerca da interface mente-cérebro na produção de sintomas psíquicos. Não é preciso dizer que este é um texto preliminar, cuja finalidade é organizar a informação básica que, por sua vez, facilitará a aquisição de conhecimentos mais profundos por meio da leitura de textos de maior complexidade, atualmente muito mais acessíveis tanto pelas bases de dados tradicionais quanto pelas redes sociais acadêmicas. Também é importante acrescentar que seu conteúdo será mais bem compreendido e assimilado se imagens ou ilustrações de um atlas do sistema nervoso central estiverem disponíveis para consulta. Tendo em vista que boa parte deste trabalho tem como principal orientação teórica o livro Principles of Neural Science (5ª Edição, 2013), editado por Eric Kandel e colaboradores, sugiro o uso de suas imagens como apoio.

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Introdução Vivemos em um mundo em que múltiplos estímulos se sucedem ou ocorrem simultaneamente. A todo o momento somos invadidos por uma avalanche de informação da qual temos de selecionar a parte mais importante para nossa sobrevivência. Nosso cérebro tem de organizar os estímulos que invadem nossos sentidos, priorizando e selecionando alguns em detrimento de outros, a fim de que possamos dar significados ao mundo e atuar nele da forma mais adequada. O cérebro recebe sinais tanto do ambiente externo quanto do próprio corpo e é capaz de selecionar os que se originam de eventos relevantes em um dado momento. Por exemplo, quando estamos em um ambiente potencialmente hostil, é mais importante para nossa sobrevivência prestar atenção às coisas que se movimentam – e, por conseguinte, podem nos causar algum dano físico – do que à beleza da paisagem. Desta forma, o cérebro organiza a percepção e coordena a ação, bem como armazena dados perceptivos na memória para referência futura. A parte sensorial do sistema nervoso é aquela responsável pela detecção e pela condução da informação do ambiente externo (mas também do interno) até o cérebro, que a “processa” e engendra um comportamento, função das partes pré-motoras e motoras do sistema nervoso. Faremos diversas referências às partes sensoriais e motoras do sistema nervoso ao longo deste texto. Como veremos adiante, todo este trabalho é executado pelos neurônios, células do sistema nervoso especializadas na transmissão e processamento da informação. Outra perspectiva interessante a respeito das funções do cérebro – e de nossa mente – é que ele é um órgão detector de padrões. Isso significa que ele está programado para perceber e registrar eventos que se repetem no ambiente, além de fazer correlações entre diferentes padrões que habitualmente se sucedem, criando relações de causa e efeito. Estes padrões são denominados em psicologia cognitiva de representações mentais. As representações mentais, criadas a partir desta contínua procura e extração de padrões pelo cérebro e pela mente, são valiosas porque nos permitem fazer previsões acerca do que vai acontecer. Por exemplo, depois de um relâmpago, segue-se o trovão e possivelmente, a chuva. Além disso, elas também nos permitem simular situações mentalmente, o que nos protege dos possíveis riscos de vivenciar, de fato, as situações simuladas.

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Representações mentais são cópias, mapas ou simulações do mundo O conceito de representação mental não é novo – uma teoria representacional da mente já era observada na obra do filósofo Aristóteles – mas ele foi aperfeiçoado pelos teóricos computacionais da mente. Estes cientistas propõem que estados mentais e processos cognitivos são constituídos pela ocorrência, transformação e armazenamento no cérebro/mente de estruturas de informação de um ou de outro tipo, as quais eles também chamaram de representações. As representações mentais são objetos mentais com propriedades semânticas, isto é, com significados. Do ponto de vista filosófico, pensamentos, crenças, desejos, percepções e imagens são estados mentais dotados de intencionalidade, isto é, referem-se a coisas. Por exemplo, minha lembrança de minha mãe é um estado mental criado por meu cérebro (uma representação mental construída a partir de minhas percepções, memória e crenças a respeito de minha mãe), que se refere à pessoa de minha mãe. Os filósofos da mente também discutem muito a respeito da natureza destas representações mentais, sugerindo que existem duas variedades básicas de representações: aquelas que têm características fenomenais, isto é, as que são mais parecidas com as sensações (imagens, sons, cheiros, por exemplo) e aquelas que têm um caráter mais conceitual, como os pensamentos, sendo comumente expressas através da linguagem. O conteúdo fenomenal de uma representação mental refere-se àquilo que ela representa; por exemplo, o azul do mar, a transparência do cristal. Todavia, muitas representações mentais não podem ser expressas fenomenalmente e exigem mais elementos linguísticos quando são recrutadas. Por exemplo, avalie o caráter de suas representações mentais para “justiça” ou “decisão” e perceba que elas não são essencialmente caracterizadas por imagens. De maneira simplista, é possível afirmar que as representações mentais são cópias, modelos ou mapas mentais do mundo, que nos auxiliam na navegação por ele e que são elaboradas a partir da incessante atividade cerebral de conferir sentido ao mundo, estabelecendo relações entre diferentes estímulos. Como afirmado acima, as representações mentais também têm a valiosa propriedade de permitir previsões a respeito das relações entre as coisas do mundo, com uma boa chance de acerto. Existem diversos tipos de representações mentais, alguns mais óbvios, como as representações mentais das pessoas que conhecemos ou dos aromas de um vinho ou do azul do céu – estas têm muitas características fenomenais e por isso, um caráter de imagem mental (ou um caráter imagético) – e outras não tanto, como nossas 4

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representações mentais dos estados mentais de outras pessoas. Este tipo de representação mental é muito importante em nossa espécie, na medida em que somos seres sociais e, como tal, prestamos muita atenção às outras pessoas e a seus estados mentais. Representações mentais de estados mentais resultam de nossa habilidade involuntária e espontânea de simularmos os eventos mentais daqueles com quem nos relacionamos e se refletem na tendência humana para a preocupação com o que os outros pensam, sentem, desejam e pretendem. Simulações dos estados mentais dos outros nos permitem prever com uma boa dose de acerto como as pessoas devem se comportar. O processo de criação de representações mentais pelo cérebro pode ser extremamente complexo, como na elaboração de representações mentais das ações das outras pessoas, as quais envolvem o recrutamento tanto de áreas corticais sensoriais (que processam, por exemplo, informações visuais veiculadas pelas faces das outras pessoas) quanto de áreas pré-motoras e motoras do córtex cerebral, as quais criam, no observador, mapas sensoriais e motores das ações de terceiros (que simulam suas posturas e atitudes). Ou como nas representações mentais de nosso espaço pessoal, em que mapas de como ocupamos o espaço com nossos corpos são configurados a partir de informações oriundas dos receptores tácteis distribuídos por nossa superfície corporal e de informações proprioceptivas fornecidas por nossos músculos e pela posição de nossas articulações. No entanto, apesar da complexidade subjacente aos processos de elaboração de representações mentais, a ciência tem progredido muito no que tange à sua compreensão. Neste texto estudaremos o trabalho realizado pelo sistema nervoso central na elaboração de diversos tipos destes mapas, imagens, cópias ou simulações mentais do mundo. Começaremos estudando um pouco da organização anatômica das estruturas constituintes deste sistema e depois discutiremos a respeito das células que o compõem, os neurônios e as células da glia, sempre com ênfase à compreensão da cognição e da formação de representações e de suas perturbações, resultando em sofrimento psíquico. O termo cognição se refere a todos os processos pelos quais a informação sensorial é transformada, reduzida, elaborada, armazenada, recobrada e utilizada, na forma de comportamento. Veremos que a cognição é o resultado do trabalho do cérebro, mais precisamente do córtex cerebral, que, como afirmado acima, recebe informações 5

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sensoriais do meio externo e interno, as quais são processadas em regiões onde também são integradas (não apenas a outras sensações, mas também a memórias e emoções) e transformadas em uma percepção. Veremos que, ao observarmos algo, digamos, uma maçã, áreas sensoriais especializadas na aquisição e transmissão de um tipo específico de sensação (e por isso chamadas de áreas sensoriais unimodais) – por exemplo, cor, forma, textura, movimento – acabam por convergir a informação obtida a partir da contemplação da maçã – vermelha, arredondada, lisa e parada – a áreas sensoriais que integram estas informações (e por isso são chamadas de áreas sensoriais multimodais), as quais serão, em seguida, utilizadas por outras áreas cerebrais que programam um comportamento relacionado à maçã: pegá-la, comê-la ou guardá-la. Evidentemente, a decisão final do que fazer com a maçã também leva em conta aspectos mnêmicos (relativos à memória), como as lembranças das experiências pregressas reforçadoras ou não do consumo de maçãs ou as lembranças das informações adquiridas acerca das vantagens ou desvantagens de comer estas frutas; aspectos emocionais, que abrangem as variáveis emocionais reforçadoras ou aversivas relacionadas a comer maçãs e, por fim, aspectos cognitivos, como as crenças sustentadas a respeito destas frutas (elas fazem bem para a saúde?, seu consumo é seguro?, elas engordam?). Veremos que o aprendizado a respeito das coisas no mundo baseia-se em como nosso equipamento para percebê-lo é concebido, mas que, apesar de sua eficiência em captar informações, nossas percepções não são réplicas fidedignas, fotográficas do mundo. Isso porque a experiência e os sistemas de crenças também influem na maneira como percebemos tudo à nossa volta, o que torna a percepção um processo construtivo. Exemplos disso incluem as diferentes atitudes de pessoas religiosas e não religiosas em relação à natureza, à morte ou à própria vida. Boa parte da compreensão que hoje se tem a respeito do funcionamento do cérebro deriva de observações bem conduzidas das alterações de comportamento que se seguem a lesões cerebrais, uma metodologia de estudo inaugurada por Paul Broca, o pai da neuropsicologia, no século XIV. Broca ficou famoso pelo pioneirismo no estudo das afasias, alterações da linguagem causadas por lesões cerebrais. Depois dele, outros pesquisadores estudando lesões cerebrais mostraram que danos a estruturas específicas do cérebro levam a déficits neuropsicológicos mais ou menos previsíveis ou estereotipados. É certo que em diversos transtornos mentais existem alterações neuropsicológicas associadas a avarias no tecido cerebral, de múltiplas origens. Muitas 6

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delas ainda não foram suficientemente elucidadas por serem extremamente delicadas ou sutis e, por estas razões, indetectáveis por nossas tecnologias. Tais alterações comprometem a elaboração de representações mentais e, por conseguinte, a visão de mundo e o comportamento daqueles que sofrem destas desagradáveis condições. Por exemplo, a perspectiva da maternidade pode estar profundamente deturpada em uma mulher com depressão pós-parto, onde ideias e crenças de ruína e de desesperança podem, inclusive, colocar em risco a segurança do bebê e da própria mãe. Da mesma forma, um indivíduo paranoico achará que a maioria das pessoas têm intenções malévolas em relação a ele e uma mulher sofrendo de anorexia nervosa terá uma autoimagem corporal incompatível com a realidade. A neuropsicologia e a psicobiologia são ciências que estudam a mente saudável ou doente e sua relação com o cérebro ou com o corpo. Elas têm sido valiosas não só para gerar conhecimento essencial na identificação e classificação de muitas doenças neurológicas e psiquiátricas, mas também para a compreensão dos mecanismos neurofisiopatológicos subjacentes a estas condições e para a elaboração de estratégias terapêuticas mais eficazes na reabilitação dos pacientes que delas sofrem. Graças às contribuições da pesquisa neuropsicológica e psicobiológica, hoje em dia sabemos que transtornos como esquizofrenia, depressão e transtorno bipolar costumam cursar com alterações em diversos domínios cognitivos, as quais podem existir tanto nas fases agudas quanto nos períodos de remissão destas condições. O autismo é um bom exemplo de transtorno neuropsiquiátrico em que foram bem documentadas alterações em um domínio cognitivo específico denominado cognição social, que diz respeito às operações mentais realizadas pelo cérebro durante o convívio com outras pessoas. Surpreendentemente, já foram descritos déficits cognitivos muito semelhantes afetando os parentes mais próximos de pacientes sofrendo não só de autismo, mas também de outros transtornos neuropsiquiátricos, como a esquizofrenia e os transtornos do humor, mesmo aqueles que nunca manifestaram sintomas destes transtornos. Achados como estes inquietam os pesquisadores e os clínicos, que questionam se tais alterações cognitivas, ao acometerem parentes próximos saudáveis de indivíduos doentes, não teriam o papel de gerar predisposição à doença em questão. Imagine que, se houver uma relação entre estilos cognitivos disfuncionais em parentes saudáveis de portadores um determinado transtorno mental e risco aumentado para o desenvolvimento deste transtorno, a pesquisa neurocientífica com foco em estratégias de prevenção de 7

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transtornos mentais em indivíduos vulneráveis poderá auxiliar na diminuição da ocorrência de casos novos. Portanto, apesar de ainda estarmos muito longe de compreendermos o funcionamento do cérebro, o conhecimento atualmente disponível a respeito da “fisiologia da mente” já permite entendermos melhor a psicobiologia de vários sintomas psiquiátricos. De fato, atualmente é possível encontrar uma quantidade razoável de trabalhos científicos publicados em periódicos de impacto científico relevante a respeito da neuropsicologia dos delírios, as principais alterações do conteúdo do pensamento desenvolvidas por pacientes sofrendo de esquizofrenia. Muitos destes trabalhos discutem quais vias neurais podem estar funcionando inadequadamente na produção destes sintomas. Da mesma forma, muitos pesquisadores têm se ocupado com metodologias de estudo que permitam compreender de que forma são distorcidas as representações mentais geradas pelos cérebros de indivíduos severamente deprimidos, fazendo com que eles tenham as típicas perspectivas pessimistas e niilistas que têm da vida, das pessoas e do futuro. Não tenho nenhuma dúvida de que o interesse pela fisiologia do cérebro e da mente modifica inexoravelmente a maneira como um profissional de saúde mental se comporta diante do sofrimento psíquico. E também estou certo de que este conhecimento também esclarece a respeito de como estes profissionais não deveriam se comportar quando trabalham com seus pacientes. Por exemplo, muitas das pessoas que atendo me questionam, no momento em que lhes prescrevo um antidepressivo, se não seria melhor “descobrirmos a causa” de seus sintomas, ao invés de lidarmos com eles usando remédios. Na verdade, esta não é uma postura exclusiva dos pacientes, mas também de muitos profissionais da área de saúde que, como os pacientes, creem que sintomas depressivos ou ansiosos devem ser enfrentados com “força de vontade” e uma forte motivação para buscar sua “causa”. Tenho visto muitos pacientes encontrando “causas” para seus sintomas mentais sem melhorar deles. Sinceramente não acredito que a ignorância a respeito da origem do sofrimento psíquico possa ser a principal razão deste sofrimento e que seu alívio total e duradouro venha de insights sobre estas causas, como muitos terapeutas ainda insistem em afirmar (é verdade que saber um pouco a respeito daquilo que nos faz sofrer ajuda, mas não cura). Fosse assim, por que não ensinar fisiologia do pâncreas àqueles que sofrem de diabetes como a parte principal de seu tratamento? Afinal de contas, a causa desta doença encontra-se em uma disfunção 8

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daquele órgão. Quando uso este tipo de argumento é comum que me perguntem a razão pela qual comparo o pâncreas – ou a insulina – com a mente. E eu respondo: por que não? A ciência tem mostrado que a mente é produto da atividade cerebral – evidentemente com a contribuição de outras partes do corpo – da mesma forma que a insulina é produto da atividade de células do pâncreas. E, se não fosse produto do cérebro ou de qualquer outra parte do corpo, seria produto de quê? De alguma estrutura fora do cérebro? Fora do corpo? Estudar neurofisiologia pode ajudar muito em dilemas muitas vezes enfrentados pelos psiquiatras e psicólogos não somente a respeito das doenças mentais, mas também a respeito dos psicotrópicos, cujo uso é visto pelas pessoas como muito mais potencialmente danoso do que quaisquer outras medicações, pela razão de serem substâncias que modificam funções mentais. Lembro que não temos preconceitos apenas em relação aos psicotrópicos, mas também em relação aos doentes mentais, a quem, muitas vezes delegamos a total responsabilidade por melhorarem de horríveis transtornos mentais quando nos propomos a buscar “as causas” de seu sofrimento em momentos em que eles estão em crise, usando o argumento de que esta atitude lhes proporcionará um alívio mais consistente de suas queixas do que aquele proporcionado por um antidepressivo ou por um ansiolítico. Isso sem considerar o próximo argumento contra os remédios, o de que eles causam uma indesejável melhora “artificial”, afetando a “essência” psíquica do paciente. Será? Vejamos o que nos diz a neurociência, a neuropsicologia e a psicobiologia. Antes de começarmos a discutir o papel dos neurônios na criação de representações mentais, vale a pena apresentar de forma sucinta como nosso sistema nervoso está organizado anatomicamente. A seguir, tratarei das principais subdivisões do sistema nervoso, a fim de que possam ser mais bem compreendidos os papeis dos neurônios de cada uma delas na formação destes mapas, imagens, representações ou simulações do mundo, as quais estão avariadas nos transtornos psiquiátricos. Aspectos essenciais da anatomia do sistema nervoso O sistema nervoso está dividido em sistema nervoso central e sistema nervoso periférico. O sistema nervoso central é composto pelo cérebro e pela medula e o sistema nervoso periférico, pelos nervos, gânglios nervosos e pelos órgãos terminais. Os nervos podem ser vistos como “fios”, que conduzem informações “de fora para dentro” do sistema nervoso, na forma de percepções visuais, auditivas, tácteis, olfativas e 9

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gustatórias, e dele “para fora”, na forma de comportamento. Estes “fios” contêm axônios de neurônios, que são prolongamentos do corpo celular destas células que, apesar da espessura microscópica, podem ter uma extensão de vários centímetros. Os órgãos terminais estão situados na periferia do organismo e se enquadram em dois grupos: o grupo dos órgãos sensoriais, especializados na captação de estímulos sensoriais (visão, audição, olfato, paladar e tato, por exemplo) e o grupo dos órgãos efetores, relacionados à contração de músculos (voluntária ou involuntariamente) e à secreção glandular. O sistema nervoso periférico supre o sistema nervoso central com informações sobre o meio interno (dentro do corpo) e o meio externo (o ambiente) e também conduz à periferia os impulsos nervosos provenientes do sistema nervoso central, a fim de promover toda a gama de fenômenos fisiológicos que podem ser agrupados sob o termo genérico “comportamento” e que abrangem não apenas a contração dos músculos que podem ser acionados voluntariamente (eles são chamados de músculos estriados esqueléticos), quando andamos ou lutamos, por exemplo; mas também a secreção glandular e a contração da musculatura involuntária presente no trato gastrintestinal e no coração (estes músculos são chamados, respectivamente, de músculo liso e estriado cardíaco). O sistema nervoso periférico pode, ainda, ser subdividido em uma parte somática (que inclui os nervos sensoriais, os quais recebem informação da pele, músculos e articulações e os nervos motores, que enviam informação à musculatura estriada esquelética) e uma parte autonômica (que medeia a sensação e o controle motor das vísceras, sistema cardiovascular e glândulas exócrinas, através da contração da musculatura lisa e estriada cardíaca). O sistema nervoso central está dividido em sete partes: a medula espinhal, a medula oblonga, a ponte, o cerebelo, o mesencéfalo, o diencéfalo e o telencéfalo (ou hemisférios cerebrais). Excluindo-se a medula espinhal, todas as outras subdivisões são consideradas partes do cérebro. A medula espinhal se estende da base do crânio até a primeira vértebra lombar e um corte transversal dela nos mostra um desenho peculiar, que reflete a organização das estruturas microscópicas que compõem o tecido nervoso. No sistema nervoso são descritos dois tipos de substâncias ou matérias: a cinzenta e a branca. A substância cinzenta é composta de corpos celulares de neurônios e a branca, pelos axônios dos neurônios. Na medula espinhal a substância cinzenta dispõe-se centralmente e a 10

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substância branca, perifericamente, ao contrário do que acontece nos hemisférios cerebrais. A substância cinzenta central medular tem um formato de “H”, composto pelos cornos anteriores e posteriores da medula. No corno posterior são encontrados neurônios sensoriais, os quais recebem informação sensorial da periferia. No corno anterior localizam-se neurônios motores e interneurônios (estes controlam os disparos dos neurônios motores). A substância branca é composta por tratos ascendentes e descendentes, que são “caminhos” por onde transitam fibras nervosas que se dirigem para o cérebro, trazendo informação sensorial (as vias ascendentes) ou para a periferia, levando informação motora (as vias descendentes). Sua coloração branca se deve à presença de mielina, um lipídeo que compõe uma bainha em torno dos axônios, importante na regulação da velocidade de propagação da informação pelos neurônios através dos impulsos nervosos. Da medula espinhal partem 31 pares de nervos espinhais, os quais, invariavelmente, têm uma subdivisão sensorial e uma subdivisão motora. A medula espinhal tem 8 segmentos cervicais, 12 torácicos, 5 lombares e 5 sacrais, de onde emergem os nervos que conduzem as informações sensoriais e motoras para as respectivas regiões. A medula ou medula oblonga é uma extensão da medula espinhal e lembra muito sua estrutura em termos anatômicos e funcionais. Contém grupos neuronais que regulam a pressão arterial e a respiração e também os primeiros componentes das vias que medeiam o paladar, a audição, o equilíbrio e o controle dos músculos faciais e do pescoço. Juntamente da ponte e do mesencéfalo, constitui o tronco cerebral. Na ponte são encontrados os núcleos pontinos, os quais retransmitem informação sobre sensação e movimento do córtex ao cerebelo, uma região importante do cérebro relacionada ao controle dos movimentos, ao aprendizado motor e também a alguns aspectos da cognição. Aqui também existem grupos neuronais envolvidos no controle da respiração, paladar e sono. O mesencéfalo conecta componentes do sistema motor, particularmente o cerebelo, os gânglios da base e os hemisférios cerebrais e também contém componentes dos sistemas visual e auditivo, além de vias neurais conectadas aos músculos oculares, os quais controlam os movimentos dos olhos. No mesencéfalo, mais precisamente na formação reticular ascendente, também são encontrados núcleos de neurônios especializados na liberação de substâncias como a dopamina, a noradrenalina e a 11

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serotonina, que são muito importantes tanto na compreensão das alterações do funcionamento do cérebro que estão por trás das doenças mentais, quanto do mecanismo de ação de boa parte das medicações utilizadas no tratamento destas doenças. Discutiremos com um pouco mais de profundidade a função destes núcleos mais adiante. Como já foi dito acima, medula oblonga, ponte e mesencéfalo constituem o tronco cerebral, cujas funções poderiam ser resumidas da seguinte forma: no tronco cerebral são coordenadas as sensações que chegam ao pescoço, face e cabeça através de 12 pares de nervos cranianos, bem como são controlados os movimentos destas regiões do corpo. O tronco é, ainda, a porta de entrada para estímulos auditivos e gustativos e também conduz informações para o controle do equilíbrio, além de servir de via por onde transitam sistemas ascendentes e descendentes de informação sensorial e motora, já que está localizado entre o cérebro e a medula espinhal. O tronco medeia reflexos autonômicos de regulação da frequência cardíaca, da pressão arterial e dos movimentos das vísceras do aparelho digestório e ainda contém a formação reticular ascendente, que, conforme foi afirmado acima, consiste de uma série de grupos neuronais interconectados que se distribuem por todas as estruturas que compõem o tronco cerebral. Estes grupos de neurônios recebem um “resumo” da informação sensorial que chega ao sistema nervoso, regulando, assim a vigília e os níveis de consciência. O cerebelo contém o maior número de neurônios de todas as partes do sistema nervoso central, inclusive os hemisférios cerebrais. Contudo, por não apresentar grande variedade celular, sua circuitaria é razoavelmente entendida. Recebe informação somatossensorial da medula espinhal (isto é, todas as sensações cuja origem é o próprio corpo: por exemplo, tato, dor e informações sobre articulações e posição dos membros – ou propriocepção), informação motora do córtex cerebral através de células dos núcleos pontinos e informação sobre o equilíbrio dos órgãos vestibulares do ouvido interno. O cerebelo é importante tanto para manutenção da postura quanto para a coordenação dos movimentos dos olhos e da cabeça, bem como para o controle motor fino e aprendizado de tarefas motoras. O diencéfalo compõe-se de duas grandes subdivisões: tálamo e hipotálamo. O tálamo é uma importante estação para a transferência da informação sensorial (exceto a olfatória) dos receptores sensoriais periféricos para regiões de processamento sensorial 12

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nos hemisférios cerebrais. Grosso modo, o tálamo é responsável por selecionar quais sensações serão “percebidas”, por permitir que algumas delas cheguem ao córtex e outras não. Desta forma, o tálamo não funciona apenas como um retransmissor, mas também como um filtro sensorial. O tálamo também participa da coordenação da informação motora que chega do cerebelo e dos gânglios da base, transmitindo esta informação para as regiões dos hemisférios cerebrais envolvidas com a produção de movimento. O hipotálamo participa de vários processos essenciais para a manutenção da homeostase e reprodução, como a regulação do apetite, da sede e do ritmo sexual. Ele também regula a glândula hipófise e suas secreções, incluindo o controle do crescimento, da alimentação, da ingestão líquida e do comportamento materno. Os hemisférios cerebrais (ou telencéfalo) abrangem o córtex cerebral (que é uma “capa” de substância cinzenta envolvendo toda a superfície dos hemisférios cerebrais), a substância branca subjacente, os núcleos da base, a amígdala e a formação hipocampal, que são núcleos de substância cinzenta (portanto, contém corpos celulares de neurônios) localizados fora do córtex. Lembre-se de que a distribuição das matérias cinzenta e branca nos hemisférios cerebrais é oposta àquela observada na medula espinhal. Os hemisférios cerebrais processam informações perceptuais, motoras e cognitivas, além da emoção. Os dois hemisférios estão conectados por uma estrutura chamada de corpo caloso e são divididos anatomicamente em quatro lobos: parietal, temporal, frontal e occipital, cada um com suas sub-regiões funcionais. O córtex do cíngulo circunda toda a superfície dorsal do corpo caloso e é envolvido na regulação da emoção e da cognição. A amígdala é um núcleo subcortical com forma de amêndoa, cujo papel é a análise do significado emocional, motivacional ou aversivo dos estímulos sensoriais; portanto, uma parte importante dos sistemas sensoriais envia informações à amígdala, que, após analisá-las, abastece com informações o neocórtex, os gânglios da base, o hipocampo, o hipotálamo e o tronco cerebral. Através dos outputs enviados ao tronco cerebral, a amígdala modula as respostas somáticas e viscerais da emoção, as quais, em última análise, constituem a principal matéria prima para a formação de sentimentos emocionais, como discutiremos adiante. O hipocampo tem por incumbência a formação de memórias de longo prazo, mas não é o local onde estas memórias ficam definitivamente armazenadas, razão pela 13

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qual uma lesão hipocampal não “apaga” memórias pré-existentes, mas impede a formação de novas memórias episódicas, como frequentemente observamos em indivíduos portadores de demências, que se esquecem de coisas que acabaram de acontecer, mas mantém lembranças de eventos ocorridos há décadas. Os gânglios da base regulam os movimentos e também contribuem com funções cognitivas. São compostos pelo núcleo caudado, putamen, globo pálido, núcleo subtalâmico e substância negra e são as principais estruturas comprometidas, por exemplo, na doença de Parkinson, cujos sintomas mais conhecidos são de natureza motora, como os tremores e o andar característico, em passos curtos. Entretanto, portadores de Doença de Parkinson costumam apresentar sintomas afetando a cognição, que nesta doença pode ficar dificultada ou “truncada”, da mesma forma que os movimentos. Pacientes com Parkinson também têm problemas emocionais. Vista a organização anatômica essencial do sistema nervoso, podemos começar a discutir a fisiologia dos neurônios, células que representam a unidade funcional do sistema nervoso, e de seu papel na formação de representações mentais. Também discutiremos rapidamente sobre as funções das células da glia, outros grupos celulares presentes no sistema nervoso. Novos aspectos relacionados à anatomia do sistema nervoso também serão acrescentados a seguir. Como os neurônios criam as representações mentais Como vimos, o cérebro é capaz de selecionar, dentre a profusão de sinais que recebe continuamente, aqueles que provêm de eventos importantes para nossa sobrevivência. Desta forma, ele organiza a percepção, separando uma parte dela para armazenamento na memória, a fim de poder utilizá-la como referência futura e utiliza a outra parte para construção do comportamento. Todo este trabalho é feito por células nervosas interconectadas de forma organizada, as quais conduzem informações umas às outras se servindo das propriedades elétricas de suas membranas e também de substâncias químicas que liberam. O sistema nervoso não é constituído apenas de neurônios. Outros grupos celulares, denominados conjuntamente de glia, incluem diferentes tipos celulares, os quais desempenham papéis de suporte e proteção às células neuronais.

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Neurônios Nosso cérebro tem cerca de 100 bilhões de neurônios e cada um deles está conectado com milhares de outros neurônios. Imagine, a partir destes números, o quão complexo é o estudo da resultante de toda a atividade destas células. Ramón e Cajal, um cientista espanhol, foi quem descobriu, no final do século XIX e meados do século XX, que os neurônios não estão continuamente ligados, como em uma rede, mas que existem espaços entre eles, as sinapses, onde a transmissão da informação ocorre através da ação de substâncias produzidas e liberadas pela célula que transmite um impulso nervoso em estruturas receptoras localizadas na membrana celular da célula que recebe a informação. O principal papel dos neurônios é gerar e transmitir informação para outros neurônios e estas células se organizam em sistemas especializados em elaborar representações mentais de diversos tipos. O neurônio que transmite uma informação é denominado de neurônio pré-sináptico e o que a recebe, neurônio pós-sináptico. Um neurônio tem 4 regiões morfologicamente distintas: o corpo celular, os dendritos, os axônios e os terminais pré-sinápticos. Os dendritos recebem sinais de outros neurônios (pré-sinápticos), o corpo celular é o centro metabólico da célula e contém o núcleo e as organelas, que poderiam ser comparadas aos “órgãos internos do neurônio”; o axônio conduz sinais elétricos ou potenciais de ação (um potencial de ação é um sinal através do qual o neurônio recebe, analisa e conduz a informação) e os terminais pré-sinápticos são regiões por onde os sinais são transmitidos para outra célula (pós-sináptica). Os sinais elétricos que caracterizam o potencial de ação fluem em uma única direção em um neurônio, isto é, dos sítios de recepção – normalmente os dendritos – para o axônio e seus terminais. Já vimos que no sistema nervoso central os corpos celulares dos neurônios são encontrados na substância cinzenta e seus axônios, na substância branca, bem como que existe uma distribuição diferente das substâncias cinzenta e branca no cérebro e na medula espinhal. No cérebro, a substância cinzenta é encontrada perifericamente, no córtex cerebral e em núcleos subcorticais (a amígdala, o hipocampo e os gânglios da base). Na medula espinhal a substância cinzenta assume o formato de um “H” circundado pela substância branca.

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Neurônios sensoriais “trazem” informação sensorial da periferia para o sistema nervoso central e chegam ao neuroeixo através do corno posterior da medula e neurônios motores “levam” comandos motores do cérebro – mais precisamente do córtex motor primário – à musculatura esquelética e partem do corno anterior da medula. A comunicação entre dois neurônios é feita através das sinapses, que são espaços ou fendas onde importantes eventos acontecem para que seja possível a transmissão da informação de uma célula para outra. Nos terminais sinápticos do neurônio présináptico são encontradas as vesículas sinápticas, reservatórios carregados de neurotransmissores, como a dopamina, a noradrenalina e a serotonina, os sinalizadores químicos da informação. Os neurotransmissores são substâncias produzidas dentro dos neurônios a partir de nutrientes de nossa dieta e liberados para a fenda sináptica em um processo em que a membrana da vesícula se funde com a membrana celular dos terminais axônicos. Estas substâncias, quando liberadas para a fenda sináptica, ligam-se a proteínas receptoras, localizadas na superfície do segundo neurônio, promovendo nele uma série de efeitos celulares que permitirão a continuidade da propagação da informação através daquela segunda célula. A maioria dos remédios utilizados em psiquiatria – e também as drogas de abuso – atuam de forma a alterar as ações celulares de diferentes neurotransmissores. Por exemplo, os antidepressivos aumentam mais ou menos seletivamente a quantidade de serotonina, noradrenalina e dopamina na fenda sináptica, a cocaína e as anfetaminas aumentam a ação da dopamina na fenda sináptica e os antipsicóticos, fármacos utilizados no tratamento da esquizofrenia e outras psicoses, bloqueiam a ação da dopamina na fenda sináptica. Os neurônios podem ser classificados de diversas formas. Do ponto de vista funcional, eles são categorizados em neurônios sensoriais, neurônios motores e interneurônios. Os neurônios sensoriais conduzem informações dos órgãos dos sentidos ao cérebro. Eles trazem informações captadas pelos órgãos dos sentidos para o cérebro, que fará o trabalho de elaborar percepções e representações mentais, as quais criam nossa visão de mundo e organizam um comportamento compatível. Os neurônios motores enviam comandos para os músculos, fazendo-os se mexerem, por exemplo, quando corremos, lutamos ou falamos. Os interneurônios conectam-se entre outros neurônios, por exemplo, entre neurônios sensoriais e motores, regulando sua atividade.

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Células da Glia No sistema nervoso existem de 2 a 10 vezes mais células da glia (ou, simplesmente, glia) do que neurônios. As células gliais, como também podem ser chamadas, distribuem-se em torno dos neurônios e são diferentes deles do ponto de vista morfológico, além de não terem as mesmas propriedades de membrana das células nervosas. A glia pode ser subdividida em micróglia e macróglia. A micróglia é composta de células imunes, mobilizadas por antígenos em situações de lesão, infecção ou doenças degenerativas, tendo propriedades inflamatórias. Atualmente a inflamação é vista como um importante “vilão” por trás de muitas condições psiquiátricas; assim, pacientes deprimidos poderiam sofrer de um processo inflamatório subagudo subvertendo a função cerebral (Anisman e cols., 2005). É possível que a inflamação do sistema nervoso interfira no adequado processamento da informação, alterando, por exemplo, processos cognitivos e a regulação das emoções. Indivíduos obesos também parecem sofrer de processos inflamatórios cerebrais induzidos por substâncias químicas liberadas pelas células gordurosas, o que produziria sintomas comumente reportados por estes pacientes e que incluem depressão, alterações da concentração e, principalmente, alterações da sensação de saciedade ao alimento. A macróglia compõe 80 % das células cerebrais e é composta por três tipos de células: os oligodendrócitos, os astrócitos e as células de Schwann. Os oligodendrócitos e as células de Schwann são pequenas células formadoras de uma bainha, chamada de bainha de mielina, a qual envolve os axônios dos neurônios. A função da bainha de mielina (uma substância de natureza lipídica) é aumentar a velocidade de condução do impulso nervoso e, como já foi dito acima, é ela quem confere a cor esbranquiçada à substância branca. A diferença é que os oligodendrócitos são encontrados no sistema nervoso central e as células de Schwann, no sistema nervoso periférico. Os astrócitos têm um formato de estrela e suas funções, embora ainda não sejam totalmente esclarecidas, incluem diversas atividades de suporte aos neurônios. Por exemplo, os astrócitos parecem atuar como verdadeiros “faxineiros”, recolhendo restos de neurotransmissores depois que estas substâncias são liberadas para a fenda sináptica; auxiliam na nutrição neuronal e regulam as concentrações iônicas dos espaços extracelulares, que, como veremos adiante, são essenciais na configuração dos

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potenciais de repouso e de ação, os quais estão por trás da atividade de propagação da informação do sistema nervoso. Transmissão da informação entre os neurônios: potenciais de ação e de repouso Os sinais gerados em um neurônio, importantes para o cumprimento de sua função, são determinados pelas propriedades elétricas de sua membrana. Toda a célula neuronal mantém uma diferença de potencial elétrico em seu interior em relação ao exterior quando está em repouso. Na situação de repouso as cargas elétricas estão dispostas com negatividade dentro da célula e positividade fora dela, um estado que é garantido pela ação de bombas iônicas, proteínas de membrana especializadas em bombear íons (átomos carregados eletricamente) contra uma diferença de concentração. Este estado é chamado de potencial de repouso. Não fossem as bombas iônicas, as cargas elétricas se igualariam dentro e fora da célula. A bomba de sódio e potássio bombeia íons sódio para o meio extracelular e potássio para o meio intracelular, ambos contra diferenças de concentração que distribuiriam aqueles íons de outro modo, fosse o transporte passivo de íons o único processo envolvido. O efeito da bomba de sódio e potássio é garantir que haja mais sódio no meio extracelular e mais potássio no meio intracelular. A negatividade intracelular é, ainda, proporcionada por proteínas não difusíveis carregadas negativamente ali presentes. A concentração extracelular de cálcio e cloro no potencial de repouso também é maior. Em meio à intensa atividade elétrica do cérebro, sempre haverá neurônios “ligados” e neurônios “desligados”, jamais sendo encontrados neurônios “meio-ligados” ou “meio-desligados”. Os neurônios “preferem” estar desligados, isto é, ficar em seu estado de repouso. Neurônios “ligados” estão trabalhando, isto é, propagando um potencial de ação e eles iniciam esta atividade após terem recebido um sinal químico de outro neurônio. Como disse logo acima, o sinal químico é um neurotransmissor liberado pelo neurônio pré-sináptico que se liga a receptores específicos de membrana no neurônio pós-sináptico, promovendo abertura de canais iônicos e entrada de cargas positivas para dentro da célula. É importante lembrar que quando a célula está em repouso ela está com seu interior repleto de cargas negativas. Quando as cargas positivas entram para o meio intracelular de um neurônio em repouso através do acionamento de canais permeáveis a íons, iniciou-se o processo de despolarização neuronal e o movimento das cargas começa nos dendritos e no corpo celular e só se 18

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alastrará pelo axônio e terminais axônicos caso haja carga positiva suficiente para este processo “sensibilizar” uma região da célula situada entre o corpo celular e a emergência do axônio, denominada cone de implantação ou zona de disparo – o que normalmente ocorre quando o neurônio é massivamente ou constantemente estimulado por outros neurônios pré-sinápticos. A zona de disparo é “quem vai decidir” se aquele neurônio levará o processo de despolarização adiante; ela parece representar, portanto, uma primeira função neuronal integrativa, ao permitir ou não a ocorrência do sinal de disparo (ou a propagação daquela informação). Mais precisamente, a chegada de um potencial excitatório (ou despolarizante) de membrana faz com que haja entrada de sódio, cálcio e cloro para o meio intracelular e saída de potássio para o meio extracelular, tornando o meio interno temporariamente positivo. A entrada suficiente de cargas positivas para o meio extracelular, ao longo do axônio e, finalmente, para os terminais axônicos, deflagra uma liberação de neurotransmissores das vesículas onde são armazenados nesta região (as vesículas sinápticas). Lembre-se que imediatamente após o potencial de ação, as cargas negativas são restabelecidas no interior do neurônio por ação das bombas iônicas, fazendo com que o neurônio reassuma a condição de “desligado”.

Porém,

existem

neurotransmissores

inibitórios,

como

o

ácido

gamaminobutírico (ou Gaba), que provocam hiperpolarização ou aumento da negatividade intracelular dos neurônios, impedindo a liberação de neurotransmissores pela célula pós-sináptica e, consequentemente, a transmissão da informação. Muitos interneurônios regulam a atividade de outros neurônios inibindo-os através de uma ação hiperpolarizante. Efeitos imediatos e tardios da neurotransmissão e regulação da expressão de neurotransmissores A ligação de um neurotransmissor com seu receptor na célula pós-sináptica faz com que ocorram dois efeitos, um imediato e outro mais tardio. O efeito imediato caracteriza-se pela permissão da entrada de íons para dentro da célula pós-sináptica (promovendo despolarização/estímulo ou hiperpolarização/inibição) e o efeito tardio se dá sobre o genoma, isto é, a ativação de um fator de transcrição que pode gerar vários efeitos, entre eles o aumento ou a diminuição da produção de canais iônicos ou receptores celulares, aumentando ou diminuindo, respectivamente, a capacidade da membrana de um neurônio de responder àquele neurotransmissor. Desta forma, o efeito tardio da neurotransmissão pode, através do estímulo ou do bloqueio da síntese de proteínas 19

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receptoras, que, em última análise são os “órgãos sensoriais” dos neurônios, respectivamente, aumentar ou diminuir a capacidade de um neurônio responder a um estímulo trazido por outros neurônios. Sabemos, por exemplo, que havendo uma pequena quantidade de um neurotransmissor na fenda sináptica, ocorre um mecanismo de favorecimento da síntese de proteínas componentes dos receptores dos neurotransmissores, o qual promove tanto o aumento da quantidade de receptores daquele neurotransmissor ou de sua expressão (um fenômeno denominado de “regulação para cima” ou up-regulation de receptores), como da capacidade do receptor de responder ao neurotransmissor, a fim de que não haja prejuízos na propagação da informação. Acredita-se que na depressão aconteça algo parecido: a carência de aminas cerebrais (dopamina, noradrenalina e serotonina) na fenda sináptica acabe por determinar um estado de regulação para cima dos receptores celulares para estas substâncias. Isso, por si, não seria um problema, não fosse o fato de que também são regulados para cima receptores específicos denominados de autorreceptores, localizados na célula pré-sináptica, cuja função é inibir a produção de monoaminas por esta célula. Quando os autorreceptores estão ligados a monoaminas, eles enviam sinais à célula, que “entende” que há quantidade suficiente destas substâncias na fenda sináptica e que, portanto, não precisa liberar mais. Se há regulação para cima de autorreceptores, a “eficiência” deste mecanismo de interrupção de liberação de monoaminas aumenta. Lembre-se de que na depressão já existe pouco neurotransmissor na fenda, portanto, aumentar a eficiência do mecanismo de diminuição da liberação destas substâncias só piora o problema. Os antidepressivos entram em ação bloqueando outras proteínas localizadas na membrana pré-sináptica, denominadas de bombas de recaptação de monoaminas. Quando bloqueadas, estas bombas deixam de retirar os excedentes de monoaminas da fenda, aumentando seu tempo de ação, o que acaba por reverter a regulação para cima dos autorreceptores. Voltemos aos neurônios. Tendo em vista que eles são células com propriedades de membrana que permitem a propagação de um impulso elétrico que, em última análise, conduz uma informação, identificamos nestas células quatro regiões funcionais. Uma zona de input, representada pelos dendritos, os quais recebem a informação de outros neurônios; uma zona integrativa, representada pelo cone de implantação ou zona de disparo, a qual delibera se uma informação vai ou não ser “levada adiante” na dependência do quanto o neurônio em questão é “provocado” por outros neurônios; uma 20

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zona condutiva, o axônio, e uma zona de output, representada pelos terminais sinápticos, onde acontece a “fase química” da transmissão da informação. O trabalho dos neurônios De que forma a atividade dos neurônios gera representações mentais? Este é um dos pontos de maior controvérsia em neurociência e em filosofia e muitos pesquisadores acreditam que esta pergunta jamais poderá ser completamente respondida. Mas é possível esboçar algumas respostas preliminares, as quais exigem a compreensão de mais alguns aspectos da fisiologia destas células. Neurônios têm diferentes funções no sistema nervoso e isso se reflete funcionalmente pela disposição de algumas destas células dispararem (entrarem no estado “ligado”) frente a alguns estímulos e não a outros. Portanto, existem populações de neurônios que ficam mais ativos diante de tipos bem específicos de estímulos, por exemplo, estímulos visuais, tácteis ou auditivos. Todavia, este tipo de “especialização” parece ir além das meras modalidades sensoriais, existindo neurônios sensíveis a diferentes domínios de uma modalidade sensorial. Considere a visão, o sentido mais bem estudado na neurociência: neurônios do córtex visual primário, que fica localizado no lobo occipital, parecem se especializar no processamento de um único domínio sensorial visual, seja cor, forma ou movimento. Isto significa que neurônios especializados em cor ficam ativos diante de um estímulo colorido, neurônios especializados em formas ficam ativos quando confrontados com diferentes formatos das coisas e neurônios especializados em movimento ficam ativos quando há coisas se mexendo. Informações mais simples, decodificadas por neurônios especializados em ficarem ativos por elas, serão integradas com outras informações da mesma modalidade sensorial em níveis corticais hierarquicamente superiores e completamente transformadas em percepções nos córtices associativos, onde ocorre um nível muito sofisticado de integração da informação com diferentes modalidades sensoriais, bem como com material emocional e mnêmico, dando origem a representações mais elaboradas. Assim, neurônios de uma região específica do córtex associativo temporal, o sulco temporal superior, uma área onde há maior integração de várias modalidades sensoriais na elaboração de representações de faces humanas, parecem ficar mais ativos quando estimulados por uma ou por outra região de um rosto. A especialização parece acontecer dentro de uma área associativa: existem neurônios que disparam frente à observação da região dos olhos e adjacências de outras pessoas e neurônios mais especializados e sensíveis à região da boca. Não obstante, já foi 21

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sugerido que alguns neurônios responderiam a categorias gnósticas de alta complexidade, como os populares e controversos “neurônios da avó” (grandmothers cells), que só entrariam em atividade mediante a visão da avó do indivíduo, mas este suposto e sofisticadíssimo nível de integração é questionável. Mais alguns exemplos: neurônios localizados no córtex pré-motor disparam especificamente mediante a observação de outras pessoas executando determinadas ações, como agarrar, puxar, alcançar, mas não à observação de ações motoras mais ordinárias. Estes neurônios são chamados de neurônios espelho e eles estão envolvidos na elaboração de representações mentais das ações de outras pessoas, as quais nos permitem compreender o sentido de determinados movimentos corporais dos outros e, portanto, de suas intenções. Estas representações mentais são importantes na configuração de nossas capacidades cognitivas sociais. Outros neurônios do córtex prémotor, denominados neurônios canônicos, geram representações de “oportunidades de manipulação” que diferentes objetos, como canetas, xícaras raquetes nos proporcionam. Como discutiremos adiante, estes neurônios transformam informação sensorial em intenções de ação. Neurônios do córtex pré-frontal têm um padrão de disparo cujas características nos permitem compreender a que funções eles servem. Eles ficam particularmente ativos em tarefas denominadas tarefas de resposta atrasada (ou, em inglês, delayed response tasks), em que um determinado cenário é mostrado a um sujeito experimental – seja ele um ser humano, seja um animal – do qual uma informação será solicitada após um breve período em que este cenário é retirado do campo visual do sujeito. Um cenário comum mostrado a macacos experimentais é o de dois recipientes em que num deles é deixado um alimento, que estará disponível somente após aquele breve período de tempo em que este cenário ficará inacessível visualmente. O desempenho desejável neste tipo de teste exige que seja mantida na memória uma informação relevante (a localização do alimento) durante o período em que ela não está sensorialmente disponível. Neurônios do córtex pré-frontal ficam particularmente ativos durante o intervalo de tempo entre a supressão da informação e sua disponibilização, como que garantindo que ela permaneça acessível na mente para guiar o comportamento, concluídas as condições de obstáculo sensorial. O trabalho destes neurônios pré-frontais configura o que é chamado em neuropsicologia de memória de trabalho, isto é, um tipo de memória altamente volátil, cuja principal utilidade é manter uma informação na 22

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mente a fim de que seja realizada uma tarefa, como anotar um número de telefone que nos é ditado. No cenário experimental exemplificado acima, até que se possa ter acesso ao alimento. A memória de trabalho, portanto, permite a sustentação, a manipulação e o processamento da informação, mas de forma temporária. Assim, as representações mentais da memória do trabalho abrangem “mapas” ou “cópias” mentais de coisas que já estiveram disponíveis em um momento imediatamente anterior, não estão agora, mas precisam ocupar nossa mente até que finalizemos a resolução de um problema no qual estamos concentrados e que envolve o uso destas cópias. Depois disso, elas desaparecem. Estas representações têm duração efêmera, e, como disse acima, representam um tipo de memória de curta duração que é completamente diferente das memórias de longa duração, como a memória episódica, a memória semântica e a memória procedural, cujos aspectos representacionais são processados por outros neurônios. William James, o pai da psicologia americana, definiu as memórias de longa duração como lembranças de estados mentais experimentados no passado. Esta é uma diferença fundamental entre a memória de trabalho e as memórias de longa duração: representações geradas pela memória de trabalho são descartadas após terem sido utilizadas e não são recobráveis, ao passo que as representações das memórias de longo prazo são reativáveis voluntariamente, na medida em que elas estão associadas a um traço mnêmico duradouro. Além disso, a memória de trabalho é altamente restrita em termos de capacidade de armazenagem, enquanto a memória de longo prazo parece ter uma capacidade ilimitada. Os neurônios que processam a memória de trabalho parecem ser especializados em informações verbais, espaciais ou em informações a respeito de objetos; alem disso, existem neurônios especializados em promover a repetição daquelas representações enquanto precisamos delas. Os neurônios especializados em material verbal parecem se dividir em duas categorias, alguns processam conhecimento fonológico, isto é, grosso modo, geram imagens de coisas a partir de sons (mas também codificam conceitos no caso de representações menos fenomenais), outros neurônios são responsáveis por ficar repetindo aquela informação enquanto ela ainda for necessária. Os neurônios do subsistema visuoespacial da memória de trabalho lidam com a criação de imagens a respeito de objetos e de sua localização espacial. Também é possível que existam neurônios da memória de trabalho especializados em objetos e neurônios especializados em posição no espaço. É importante acrescentar que os sistemas constituintes da memória de trabalho estão localizados em diversas regiões do cérebro: por exemplo, os neurônios responsáveis pelo processamento de material verbal 23

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localizam-se nos córtices parietais posteriores e os repetidores de informação dependem, pelo menos em parte, de processos articulatórios localizados na área de Broca. Já os neurônios visuomotores da memória de trabalho estão distribuídos nos córtices parietal, temporal, frontal e pré-motor. Diversos transtornos psiquiátricos podem causar comprometimento das representações mentais geradas pela memória de trabalho. É, inclusive, possível afirmar que todos eles podem comprometer esta função, ao menos em momentos em que os sintomas psicológicos são mais severos. Por exemplo, pacientes gravemente deprimidos e ansiosos costumam se queixar de que facilmente se esquecem de coisas triviais ou de que têm muita dificuldade em se concentrar para resolverem os menores problemas. Da mesma forma, indivíduos sofrendo de esquizofrenia ou de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (ou TDAH) também têm problemas na memória de trabalho. Juntamente de outras funções cognitivas, como a atenção, a inibição cortical, o planejamento e a seleção de estímulos relevantes e irrelevantes, a memória de trabalho faz parte de um grupo de processos cognitivos chamado de funções executivas, as quais costumam estar comprometidas, portanto, em diversas doenças mentais. Os neurônios do córtex cerebral estão organizados de uma forma peculiar, o que aumenta a capacidade computacional do cérebro e, consequentemente, sua capacidade representacional. O neocórtex, ou a parte filogeneticamente mais recente do córtex cerebral, mais desenvolvida nos primatas antropoides e mais ainda nos seres humanos, é organizado em camadas neuronais. A primeira camada, contada a partir da superfície pial (a parte mais externa do córtex, revestida pela pia mater, uma das membranas que constituem as meninges, membranas que revestem o cérebro), é chamada de camada molecular e contém principalmente dendritos e axônios de outras camadas. A segunda camada contém pequenos neurônios de forma esférica e de forma piramidal e é chamada de camada granular externa. A terceira camada, a camada piramidal externa, é composta essencialmente por neurônios com formato piramidal, um pouco maiores do que os neurônios piramidais da camada anterior, embora contenha poucas células esféricas. A quarta camada contém apenas neurônios esféricos e por isso é conhecida como córtex granular, apesar de também ser chamada de camada granular interna. A quinta camada é formada por grandes neurônios piramidais e recebe o nome de camada piramidal interna. A sexta camada tem uma população celular heterogênea e por esta razão é conhecida como camada multiforme. É interessante que diferentes regiões 24

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funcionais do cérebro apresentam camadas corticais mais ou menos proeminentes. Por exemplo, o córtex motor primário tem uma camada piramidal interna mais acentuada em relação às demais e os córtices sensoriais primários têm o córtex granular mais saliente. Isso nos diz muito a respeito do trabalho executado pelas populações celulares que compõem cada camada. Portanto, as células esféricas que caracterizam as camadas moleculares têm um papel predominantemente receptivo, sensorial, e as células piramidais das camadas piramidais, um caráter mais efetor, motor, por assim dizer. O que poderíamos esperar do arranjo citoarquitetônico de uma área cerebral associativa, como o córtex pré-frontal, levando em conta o fato de que áreas associativas processam informação não essencialmente motora ou sensorial? Que em áreas como estas encontraríamos um córtex em que haveria proeminência da camada contendo tanto células receptivas (esféricas) quanto células efetoras (piramidais), isto é, a terceira camada, ou camada piramidal externa. Um anatomista alemão chamado Korbinian Brodmann mapeou o cérebro em 47 áreas distintas do ponto de vista citoarquitetônico, que hoje são denominadas áreas de Brodmann. Assim, o córtex motor primário ou M1 (a área cortical de onde “partem” as fibras neuronais que “acionam” os músculos voluntários) é a área 4 de Brodmann, o córtex somatossensorial primário (a área cortical para onde convergem as fibras que “trazem” informações sobre o tato e sobre a propriocepção ou sensações do próprio corpo) é a área 3 de Brodmann (apesar desta região funcional do córtex também abranger as áreas 1 e 2 de Brodmann), a área de Broca (relacionada à fala) abrange as áreas 44 e 45 de Brodmann, a área de Wernicke (relacionada à compreensão do significado das palavras), as áreas 39 e 40 de Brodmann e o córtex visual primário é representado pela área 17 de Brodmann, por exemplo. Como foi dito mais acima, no cérebro existem áreas de substância cinzenta que estão localizadas fora do córtex, onde os neurônios se organizam em núcleos na substância branca subcortical, chamados de núcleos subcorticais, os quais têm uma organização citoarquitetônica característica (lembre-se de que os corpos celulares dos neurônios estão localizados na substância cinzenta e seus axônios na substância branca) e que incluem a amígdala, o hipocampo e os gânglios da base (os quais, por sua vez, são compostos pelo globo pálido, pelo núcleo lentiforme e pelo núcleo caudado). As funções destes núcleos abrangem, respectivamente e de maneira sintética, a análise do significado emocional e/ou motivacional dos estímulos ambientais, a consolidação da 25

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memória de curto prazo em memória de longo prazo e a regulação do movimento e funções cognitivas. A amígdala é altamente sensível a quaisquer sinais ambientais de perigo e recompensa e parece “percebê-los” muito antes de termos plena consciência de que estamos diante perigo ou de uma oportunidade de recompensa. Alguns neurônios da amígdala são os primeiros a “perceber” pistas ambientais de risco ou de recompensa e dão início a respostas do organismo para reagir prontamente a ameaças ou oportunidades hedônicas antes mesmo que tenhamos consciência delas. Seres humanos obtêm informações relevantes para sua sobrevivência a partir da contínua observação e do escrutínio das emoções de outros seres humanos. De fato, somos muito competentes para, muito rápida e espontaneamente, interpretarmos o significado emocional de diversas expressões faciais das pessoas ao redor, mesmo as mais sutis. Lembre-se de que existem neurônios especializados em analisar partes específicas da face humana e saem do estado “desligado” diante de mínimas mudanças na configuração destas partes do rosto das pessoas. Neurônios da amígdala detectam primeiro as expressões faciais de medo em pessoas que estão à nossa volta, por exemplo. Perceber que alguém está amedrontado pode significar que há algo perigoso ao redor; assim, certos neurônios da amígdala ficam muito ativos diante da presença de alguém com medo, colaborando para a deflagração de alterações do ritmo cardíaco, da pressão sanguínea e da respiração, que preparam nosso corpo para enfrentar uma eventual ameaça. Um aspecto interessante disso tudo é que, ao contrário do que diz nossa experiência subjetiva, não ficamos com medo só depois de percebermos conscientemente que alguém muito próximo está apavorado, ou seja, nossa reação de medo não é uma consequência da constatação de perigo, mas ela resulta das alterações físicas que se seguem à percepção inconsciente do perigo por neurônios da amígdala. Só temos consciência do medo quando certos neurônios da amígdala já detectaram pistas de perigo há algum tempo e acionaram respostas em nosso corpo, preparando-nos para a luta ou para a fuga. Da mesma forma, não temos medo somente depois de termos visto uma serpente – ou quando temos consciência de ter visto uma – porque muito antes de termos consciência de que a vimos, aqueles neurônios da amígdala já a tinham “visto” e acionado respostas corporais que, em última análise, são a “matéria prima” para a emoção medo. Só depois disso é que teremos consciência de estarmos com medo da serpente. Sentir medo e todo o arsenal de pensamentos que ele determina é o resultado do tratamento que o córtex 26

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cerebral dá àquela emoção, que, em última análise, pode ser definida como “construída” a partir dos sinais da periferia, como aumento dos batimentos cardíacos, da pressão e da frequência respiratória, que chegam ao cérebro. A conscientização de uma emoção – também chamada de sentimento emocional – é a resultante do trabalho cortical de criação de representações mentais carregadas cognitivamente. Muitos transtornos ansiosos, como a fobia social, uma condição em que os pacientes têm desconforto social incapacitante em razão de temores exagerados de serem avaliados negativamente pelos outros, parecem resultar de disfunção na amígdala. Estes aspectos do papel da amígdala no processamento emocional põem em xeque nossas crenças a respeito de como funciona a mente, pois intuitivamente acreditamos que temos o pleno poder de controlar emoções através da razão. Esta psicologia intuitiva da mente abrange uma ideia de que as emoções se sucedem ao pensamento, ou a eles estão submissas, quando na verdade parece que são nossas emoções que configuram nossos pensamentos, pelo menos em princípio. Este é o dilema de muitos pacientes ansiosos que, por conta de hiperatividade de alguns neurônios da amígdala, não conseguem mudar determinados pensamentos e perspectivas a respeito das outras pessoas, que por eles são vistas como exageradamente críticas ou interessadas nos erros e defeitos dos outros e, portanto, estariam sempre prontas para criticá-los. No caso dos fóbicos sociais, é possível que neurônios da amígdala, responsáveis por elaborar representações mentais das expressões faciais das outras pessoas, hiperdetectem nelas sinais de hostilidade ou de má vontade; enfim, de quaisquer estados mentais que possam favorecer ou confirmar os temores que estes pacientes têm de estarem continuamente sendo mal avaliados. Problemas no tratamento emocional de estímulos externos pela amígdala parecem também explicar a razão pela qual as perspectivas de mundo de portadores de outros transtornos ansiosos além da fobia social estejam tão avariadas. Pessoas que sofrem de transtorno de ansiedade generalizada (ou TAG) veem o mundo como um local ameaçador, perigoso, onde eventos catastróficos estão por acontecer a todo o momento. Falamos logo acima que, ao contrário da memória de trabalho, as memórias de longo prazo podem ser reativadas voluntariamente porque elas estão associadas a um traço duradouro de memória. Para que isso aconteça, é preciso que informações da memória de trabalho sejam “transferidas” dela para a memória de longo prazo. Os estudos de lesão cerebral mostram que quem faz isso é o hipocampo, pois indivíduos 27

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com injúrias a esta região do cérebro passam a não conseguir reter informações de longo prazo após a lesão, embora retenham as lembranças de longo prazo que tinham antes dela. Mas a expressão “memória de longo prazo” é muito genérica e, embora nos faça pensar em lembranças de passagens de nossa vida (um tipo de memória chamada de memória autobiográfica), ela envolve uma série de processos mnêmicos distintos. De fato, memórias de longo prazo podem ser adquiridas com e sem grande participação da consciência. As primeiras incluem memórias chamadas de explícitas e elas podem, ainda, ser subdivididas em memórias episódicas e memórias semânticas; as últimas são chamadas conjuntamente de memórias implícitas. Memórias episódicas são nossas memórias sobre experiências pessoais e também podem ser chamadas de memórias autobiográficas e memórias semânticas dizem respeito ao armazenamento de conceitos e significados. Quando nos lembramos de fatos que aconteceram durante os anos em que vivemos junto de nossos avós, por exemplo, utilizamos a memória episódica e quando refletimos sobre o conceito de mortalidade, recrutamos nossa memória semântica. Apesar de estudos de lesão cerebral sugerirem que as memórias de longo prazo dependam da integridade de processamento de neurônios dos lobos temporais mediais, região onde está localizado o hipocampo, sabe-se também que pacientes com lesões de estruturas localizadas nesta região não perdem memórias adquiridas previamente à lesão. Qualquer pessoa que já tenha convivido com alguém apresentando uma demência do tipo Alzheimer, em que há prejuízos na formação de novas memórias por processos acometendo o adequado funcionamento de neurônios hipocampais, sabe que esta pessoa se esquece de fatos recentes, como o que comeu na hora do almoço, mas não perde a capacidade de se lembrar de coisas que aconteceram há muito tempo, como a cerimônia de seu casamento. Isso sugere que não haja uma “central de armazenamento” de memórias de longo prazo; ao contrário, elas são amplamente distribuídas entre diversas regiões do córtex cerebral. Memórias implícitas, por sua vez, são adquiridas sem esforço consciente e servem para guiar nosso comportamento de forma inconsciente. Elas não são comprometidas por lesões da parte medial do lobo temporal. Existem diversos tipos de memórias implícitas. O priming é um deles e consiste na influência provocada pela exposição prévia a um estímulo na resposta a outros estímulos. Os primeiros experimentos com priming utilizaram como paradigma experimental o reconhecimento de palavras após exposição a outras palavras, de forma que reconhecemos muito mais 28

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rapidamente a palavra “rato” quando ela é precedida da palavra “gato” do que quando ela é precedida da palavra “ambulância” ou, após a exposição à palavra “comida”, completemos a sequência de letras e espaços “s_p_” como “sopa” e após a exposição à palavra “animal” a completemos como “sapo”. A explicação do fenômeno priming baseia-se no modelo de redes semânticas. Segundo ele, conceitos ou representações mentais de palavras estão organizados como “nodos” ou “estações” em uma rede semântica, onde conceitos muito relacionados (ou conceitos proximais), como “rato” e “gato” estão mais próximos uns dos outros do que conceitos menos relacionados (ou conceitos distais), como “gato” ou “rato” e “queijo”. A presença de um priming ativa a rede semântica fazendo com que as estações mais próximas dele sejam ativadas antes das mais distantes. O comprometimento deste tipo de memória pode estar associado ao aparecimento de sintomas psicóticos em indivíduos vulneráveis, em razão de ativação anômala de conceitos muito distais, o que pode gerar associações espúrias entre significados e comprometimento da interpretação da realidade. Neurônios processando a memória implícita do tipo priming funcionariam como máquinas de busca mental, procurando por conceitos mais pertinentemente associados aos estímulos com os quais nos deparamos em um determinado momento, permitindo assim o uso adaptativo das informações previamente adquiridas para as tomadas de decisão naquele instante. O priming, portanto, tem um papel muito importante na maneira como nos comportamos no dia a dia e, consequentemente, em nossas decisões, porque ele não se restringe apenas a palavras e conceitos, mas também a ideias e a emoções, sendo capazes de “preparar” ou “conduzir” nossos próximos pensamentos e tomadas de decisão. Tendo em mente que estrategistas de marketing já conhecem e estudaram bem o fenômeno, imagine o quanto de efeito priming não pode, muitas vezes, ter pautado a maneira como você gastou seu dinheiro. O fenômeno do priming parece não se restringir à ativação de conceitos e de pensamentos, mas também de emoções e até de comportamentos, isto é, algumas de nossas ações e emoções podem ser “formatadas” por determinados eventos, um processo do qual na maioria das vezes não temos a menor consciência. Assim, a mera visualização do logotipo de uma famosa cadeia de restaurantes pode deflagrar um forte desejo por consumir um dos calóricos pratos ali oferecidos, bem como a mera exposição prévia a conceitos associados à terceira idade, pode fazer com que você se movimente mais lentamente do que o habitual, da mesma forma que uma pessoa idosa (Kahnemann, 2011). O fenômeno do priming parece influenciar o gerenciamento de representações mentais através da procura por um contexto por onde representar, 29

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favorecendo uma atividade representacional adequada às necessidades de um dado momento. Além do priming, existem outras formas de memória e de aprendizado implícito, como os fenômenos de habituação, sensibilização e condicionamento. Habituação e sensibilização são consideradas memórias implícitas não associativas, pois envolvem o aprendizado das propriedades de um único estímulo. O aprendizado associativo, por sua vez, abrange o aprendizado sobre as relações entre dois estímulos ou entre um estímulo e um comportamento. A habituação é a forma mais simples de aprendizado implícito e ocorre quando aprendemos a ignorar um estímulo identificado como neutro. Ela se baseia por diminuição da eficiência sináptica nas vias neurais envolvidas na interpretação daquele estímulo. A sensibilização, também denominada pseudocondicionamento, ocorre, por exemplo, quando somos expostos a um estímulo nocivo e passamos a responder de forma mais vigorosa não apenas àquele estímulo nocivo, mas até mesmo a estímulos neutros. O aumento da eficiência sináptica está por trás da sensibilização. No condicionamento clássico animais experimentais aprendem sobre as relações entre dois eventos e sua essência consiste no pareamento de dois estímulos, um condicionado e outro não condicionado, fazendo que respostas comportamentais que não apareceriam mediante a apresentação do estímulo condicionado isoladamente passem a acontecer. Estímulos não condicionados não exigem aprendizado de respostas comportamentais, pois as reações a eles são inatas. Por exemplo, temos respostas inatas à dor, como comportamentos de esquiva a estímulos nocivos, e à fome, como a salivação mediante à exposição a alimentos. Estímulos condicionados não costumam provocar comportamentos, a não ser quando pareados com estímulos não condicionados, através do condicionamento. Por isso que, por exemplo, cães condicionados pelo pareamento de um som (um estímulo condicionado) e de alimento (um estímulo não condicionado), salivam quando só de ouvir aquele som. No condicionamento operante animais experimentais aprendem sobre a relação entre seus comportamentos e suas consequências. Em experimentos com este tipo de aprendizado, um animal faminto é deixado em um recinto onde é possível que receba alimento através de uma ação que precisa ser aprendida, por exemplo, acionar uma alavanca. O aprendizado se dá através da atividade comportamental aleatória daquele animal no recinto, a qual primeiramente inclui o acionamento acidental da alavanca, com o consequente acesso ao alimento. A partir daí o animal passa a acionar a alavanca sempre que está com fome, em uma taxa maior que a esperada se esta ação fosse puramente

espontânea.

Mais

adiante

discutiremos 30

um

pouco

mais

sobre

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comportamentos condicionados e em que situações condicionamentos acidentais podem explicar alguns sintomas psicopatológicos. Neurônios agrupados em núcleos da formação reticular ascendente do mesencéfalo, dos quais já falamos no início desta seção, liberam neurotransmissores como a dopamina, a serotonina e a noradrenalina e influenciam a motivação, as emoções e a memória, afetando assim a formação de representações mentais. Estes neurônios não desempenham funções propriamente sensoriais ou motoras, seu trabalho é o de regular os níveis de atenção e de vigília, domínios mentais que ficam muito comprometidos em pacientes com lesões desta região do cérebro. Quando estamos muito motivados, a dopamina liberada por neurônios destes núcleos em regiões do sistema límbico e do córtex cerebral opera aumentando a atenção e a eficiência cognitiva para buscarmos aquilo que queremos ou precisamos. Estados motivacionais como a fome e a sede estão relacionados ao aumento do trabalho dos neurônios dopaminérgicos mesencefálicos e são capazes de alterar drasticamente nossa visão de mundo pelo menos até saciarmos estas necessidades fisiológicas. Lembre-se de como fica sua mente quando você está com sede ou com muita fome: em que você pensa, presta atenção ou o que você procura? Estados motivacionais modificam, portanto, nossas

representações

mentais

temporariamente

(e

consequentemente,

nosso

comportamento); o mundo visto com fome ou com sede é completamente diferente do mundo apreciado quando temos nossas principais demandas fisiológicas saciadas. Transtornos por uso de substâncias ou dependências comportamentais como o jogo patológico, o comprar patológico e até mesmo o comer compulsivo são condições clínicas em que estes sistemas dopaminérgicos de regulação da motivação são cooptados, respectivamente, por substâncias químicas ou por comportamentos aditivos, fazendo com que substâncias ou comportamentos adquiram “saliência” para um indivíduo, isto é, eles assumem um caráter daquilo que é mais importante para ele. Drogas de abuso e comportamentos aditivos passam, então, a dominar a mente do dependente, comprometendo severamente outras esferas de sua vida. Condições como estas modificam as representações mentais de prazer e de desprazer, gerando cópias ou mapas mentais disfuncionais do mundo que, mais cedo ou mais tarde, inexoravelmente colocarão o sujeito em sérios apuros. Boa parte das substâncias utilizadas no tratamento de diversas condições psiquiátricas como a esquizofrenia, a depressão e a ansiedade agem aumentando ou 31

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diminuindo a atividade dos neurônios daqueles núcleos mesencefálicos. Por exemplo, drogas antipsicóticas utilizadas no tratamento da esquizofrenia diminuem a hiperatividade de neurônios dopaminérgicos de uma das vias dopaminérgicas do mesencéfalo denominada via mesolímbica, hiperatividade esta que provoca surgimento de sintomas como delírios e alucinações, característicos da doença, a respeito dos quais discutiremos mais detalhadamente quando abordarmos os mecanismos neurais de formação de crenças. A hiperatividade dos neurônios dopaminérgicos mesolímbicos parece deturpar as representações mentais de alguns indivíduos fazendo com que eles desenvolvam um tipo de saliência diferente daquela causada por substâncias químicas em dependentes químicos. Trata-se aqui de uma saliência aberrante (Kapur e cols, 2005), em que eventos corriqueiros passam a ser vivenciados com um caráter de novidade, devido à excessiva alocação de atenção a eles proporcionada pela atividade dopaminérgica exacerbada. Muitos portadores de esquizofrenia percebem eventos ordinários como carregados de significado ou de “sinais premonitórios”, normalmente de que coisas ruins estão para acontecer ao sujeito. Estes pacientes podem ficar muito agitados diante do ruído mais alto de um automóvel que passa na rua, ao interpretarem que ele significa o anúncio de sua morte. Um paciente esquizofrênico em surto pode, ao ouvir o barulho de fogos de artifício, ter certeza de que eles foram utilizados malevolamente na comemoração de seu sofrimento pelos vizinhos. Outro pode acreditar que as palavras ditas pelo apresentador do telejornal da noite são referências diretas à sua pessoa. Ao bloquearem a atividade anômala da dopamina na via dopaminérgica mesolímbica, os antipsicóticos ajudam a aliviar este tipo de experiência, que, quase invariavelmente leva à formação de outros sintomas muito comuns na esquizofrenia: os delírios. Delírios são falsas crenças resistentes à argumentação lógica e, do ponto de vista neuropsicológico, são “racionalizações” dadas pela mente frente à experiência da saliência aberrante e serviriam como um “alívio explicativo” para ela (Corlett e cols., 2010). Substâncias como as anfetaminas ou a cocaína podem, através de seu papel de estimulante da ação da dopamina, induzir saliência aberrante em algumas pessoas, as quais podem desenvolver pensamentos muito parecidos com os de esquizofrênicos em surto. Os antidepressivos, por sua vez, exercem sua ação contra a depressão aumentando a atividade dos neurônios serotoninérgicos, dopaminérgicos e noradrenérgicos destes núcleos mesencefálicos, de forma mais ou menos seletiva, corrigindo a propensão à 32

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produção de representações carregadas de culpa, menos-valia e desesperança, características dos deprimidos. Uma grande parte dos remédios utilizados em psiquiatria age nestes sistemas de transmissão localizados nos agrupamentos celulares mais ou menos definidos do mesencéfalo, corrigindo disfunções no trabalho de neurônios responsáveis por controlar os níveis de atenção e de vigília, as quais comprometem a qualidade das representações mentais em pessoas sofrendo de doenças mentais. Por conseguinte, ao contrário do que muitas pessoas imaginam, os remédios que prescrevemos não “criam” novas representações, apenas devolvem a capacidade que aquelas células já tiveram, de elaborarem imagens e mapas mentais mais funcionais e, portanto, perspectivas mais realistas do mundo e das pessoas. Nossa atividade mental e nosso pensamento são construídos a partir da potente atividade representacional dos neurônios do cérebro, configuradas utilizando ingredientes sensoriais, emocionais, mnêmicos e cognitivos, favorecendo uma navegação segura e saudável pelo mundo. Portanto, quaisquer avarias no tecido cerebral poderão trazer problemas na criação destas importantes bússolas, através das quais navegamos pelo mundo. Transtornos mentais afetam esta intensa atividade representacional através de processos ainda pouco compreendidos e atualmente dispomos de recursos farmacológicos e psicoterapêuticos para corrigir pelo menos uma parte destes problemas. Antes de começarmos a discutir as doenças do pensamento, vale a pena olharmos com um pouco mais de cuidado as formas através das quais o cérebro organiza a informação processada pelos neurônios. A hierarquia do processamento cerebral da informação A informação neural de tudo o que vemos, ouvimos ou sentimos na forma de tato, paladar ou olfato, e trazida pelos neurônios sensoriais, deve passar por vários pontos de retransmissão desde sua origem, os receptores sensoriais distribuídos pela periferia do corpo, até seu destino, os córtices sensoriais primários. Existe um córtex sensorial primário para cada modalidade sensorial, assim, temos o córtex visual primário, localizado no lobo occipital, o córtex olfatório primário, localizado na área piriforme (ou uncus) do lobo temporal, o córtex auditivo primário, localizado no lobo temporal, o córtex gustativo primário, localizado no córtex insular e o córtex somatossensorial primário, localizado no lobo parietal anterior, mais precisamente na região do giro pós33

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central. Lembrando que os córtices sensoriais primários são regiões de entrada das sensações, que ali chegam “cruas” e precisam ser mais integradas entre elas e com as emoções e memória, o que será feito nos córtices associativos. Os principais córtices associativos são o parietal, o temporal, o frontal e o límbico. Pontos de retransmissão da informação e somatotopia Em cada um dos pontos de retransmissão, a informação sensorial pode ser amplificada ou diminuída, na dependência do nível de vigilância. A cada estágio de retransmissão, um neurônio recebe inputs de milhares de neurônios pré-sinápticos e é a resultante destas influências sobre o neurônio pós-sináptico que governa o output dele para o próximo estágio de processamento. É possível dizer que, nestes pontos de “parada” a informação pode ser reconfigurada pela influência da informação trazida e adicionada por outros neurônios. Tendo em mente o conceito já estudado de que um neurônio só dispara um potencial de ação quando é suficientemente “provocado” a fazê-lo pelos neurônios que o estimulam, havendo estimulação suficiente para que a zona de disparo “permita” a propagação do impulso por todo o axônio, pode-se pensar a respeito de como variam estas influências de outros neurônios. Um bom palpite é que, em condições normais, as influências pré-sinápticas a um neurônio sensorial variem de acordo com as condições ambientais. Assim, é possível que em uma dada condição, o input neuronal – ou a “provocação para o disparo” – seja suficiente para propagar um impulso e, em outra, isto não aconteça. Lembre-se de que os neurônios “preferem” ficar em um estado de repouso, pois isso é mais econômico. Por esta razão, nosso cérebro desenvolveu a capacidade de não prestar mais atenção a coisas com as quais já esteja habituado. Por exemplo, se seu escritório fica em uma rua barulhenta e seu isolamento acústico não é muito bom, é bem provável que com o tempo o ruído de fora não lhe atrapalhe tanto quanto no início. Isso ocorre porque este ruído passa a ser interpretado por sua mente como algo familiar e como um estímulo para o qual não valha a pena gastar energia na forma de atenção, pois ela já sabe que nada há de ameaçador ou de gratificante por trás de todo aquele barulho. Nos pontos de retransmissão da informação sensorial aquele sinal passa a ser gradualmente suprimido a ponto de não mais ter acesso à consciência, ou pelo menos não com tanta força como inicialmente. Isso porque aquele neurônio condutor de um tipo irrelevante de informação terá sua atividade suprimida por neurônios inibitórios em pontos de retransmissão. Diz-se, em ciência cognitiva que nestes pontos o “sinal” (conteúdo sensorial relevante) é separado 34

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do ruído (conteúdo sensorial irrelevante). Já discutimos este fenômeno quando tratamos da habituação. Nos sucessivos estágios de retransmissão da informação sensorial há um arranjo topográfico organizado a partir dos pontos de origem desta informação, isto é, áreas vizinhas na superfície de recepção sensorial também se avizinham nos pontos de retransmissão da informação. Este fenômeno é denominado somatotopia. Por exemplo, células vizinhas da retina projetam para núcleos também vizinhos no tálamo, um dos pontos de retransmissão da informação sensorial, que, por sua vez, projetam para regiões adjacentes do córtex visual, constituindo mapas sensoriais que não refletem apenas a distribuição de receptores visuais, mas também sua densidade na superfície receptiva. Da mesma forma que a informação sensorial é somatotópica, a motora também o é. Portanto, existem áreas corticais representando tanto a superfície sensorial quanto a motora de cada parte do nosso corpo, de forma que áreas onde há muita sensibilidade, como a face e os lábios, podem ter uma área de representação muito maior no córtex somatossensorial do que a das costas, sabidamente menos sensíveis. Da mesma forma, partes do corpo com maior mobilidade, como as mãos e o rosto, têm maior representatividade no córtex motor primário do que outras áreas menos “móveis”, como as costas, apesar de sua superfície anatômica ser maior. Tipos de processamento cortical Os sistemas funcionais sensoriais e motores têm, ainda, uma organização hierarquizada. Se estimularmos diversas áreas do córtex de uma pessoa e pedirmos para que ela nos reporte sua experiência enquanto estimulada, encontraremos diferentes relatos na dependência da área envolvida. Algumas regiões provocariam algo parecido com uma experiência sensorial simples, crua, sem integração, outras provocariam sensações mais complexas, integradas com emoções e talvez com memórias. Outras regiões provocariam movimento e outras, intenção de movimento. Tudo isso porque diferentes regiões corticais processam a informação de forma variável em relação ao grau de integração, como já foi discutido antes. Cada região cortical constrói um tipo distinto de representação, na dependência de sua “especialização”. O córtex pode ser designado como córtex primário, secundário e terciário, de acordo com o tipo de trabalho que ele faz. Desta forma, existem córtices sensoriais primário, secundário e terciário e córtices motores primário, secundário e terciário. A diferença é que as áreas sensoriais primárias 35

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são a parte inicial do processamento sensorial e o córtex motor primário, o estágio final do processamento dos comandos motores. Vejamos o que isso significa. Cada área sensorial primária é “especializada” no processamento e na transmissão de um tipo específico de informação sensorial. Isso significa dizer que existem áreas sensoriais primárias especializadas, por exemplo, no processamento e transmissão de cor, ou de forma, ou de movimento, no caso das áreas visuais primárias. Cada área sensorial primária transmite sua informação para uma área de associação unimodal, onde ocorre uma sofisticação no tratamento dos dados processados que passam, então, a ser mais integrados em córtices sensoriais hierarquicamente superiores, produzindo uma informação mais completa. Assim, em uma área sensorial unimodal as informações visuais de cor são integradas às de forma e às de movimento. Cada área unimodal envia o produto de seu processamento para uma das quatro áreas corticais de associação multimodal, que, por sua vez, integram a informação de duas ou mais modalidades sensoriais – por exemplo, cor, forma e movimento são associadas a informações olfativas e auditivas – as quais, posteriormente serão utilizadas em planos de ação. As principais áreas corticais de associação multimodal são o córtex associativo parietal, o córtex associativo temporal, o córtex associativo frontal e o córtex associativo límbico. As funções de cada uma destas áreas de associação podem ser resumidas de forma muito simplificada, da seguinte maneira: o córtex associativo parietal está relacionado à orientação sensorial do comportamento motor e à consciência espacial; o córtex associativo temporal relacionase ao armazenamento da memória semântica ou conhecimento a respeito das coisas; o córtex associativo frontal é responsável pela memória de trabalho e pela organização do comportamento e o córtex associativo límbico processa aspectos emocionais e memória episódica autobiográfica. O córtex motor primário, também chamado de M1, medeia movimentos voluntários dos troncos e membros e contém neurônios que projetam diretamente para a medula espinhal. Vimos que ele é o estágio final do processamento motor, portanto, antes de “chegar” até M1, a informação já foi processada nos córtices motores secundário e terciário. O córtex pré-motor (ou córtex motor secundário) coordena a ação a partir de informações recebidas do córtex pré-frontal – considerado o córtex motor terciário – e é o local onde são elaboradas representações mentais de intenções. Neurocientistas acreditam que tudo o que chamamos de “cognição” é gerado nos 36

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córtices sensorial e motor terciários, uma vez que, apesar dos nomes que têm, estas regiões processam um tipo de informação que não é propriamente sensorial nem motora. Isso porque no córtex sensorial terciário o nível de integração sensorial é muito alto, e, em consequência, as representações mentais ali geradas são muito mais sofisticadas e compatíveis com uma percepção, que, em última análise, é uma cópia mental com alta capacidade preditiva. E no córtex motor terciário as ações e os movimentos são planejados, para serem implementados pelo córtex motor primário, após uma fase de processamento no córtex pré-motor, que dá origem às intenções de ações e também às cognições motoras (Jeannerod, 2010) que nos permitem compreender as ações de terceiros. A atividade cognitiva do córtex motor terciário é muito importante na configuração de nossa mente moderna, já que está intimamente relacionada à nossa capacidade de manipular objetos com nossa mão preênsil, como discutiremos a seguir. Simplificadamente, intenções corresponderiam a estados mentais muito próximos da execução de um ato motor, embora filósofos tenham muito mais a falar a respeito delas. De qualquer forma, se as representações mentais do planejamento de nosso comportamento motor equivalem a nossas intenções como, por exemplo, quando planejamos pegar uma xícara para tomar café ou sentarmos em uma mesa de trabalho para trabalharmos no computador ou qualquer outra coisa (por esta razão, em áreas prémotoras são representadas as oportunidades de interação entre o corpo, normalmente a mão, e os objetos), parece-me plausível pensar nestas representações mentais como fenômenos cognitivos e até mesmo como pensamento. Há autores que, por conta disso, sugerem que o pensamento seja um “ato motor” executado sem ação muscular (e, segundo o neurologista britânico Hughlings Jackson, nosso ato motor mais complexo) (Feinberg, 2011). De fato, em nossa espécie o pensamento é um “comportamento” em si, isto é, ele não se resume exclusivamente ao planejamento de nossas ações, às vezes ele é a própria ação. Pessoas que sofrem de transtorno obsessivo compulsivo sofrem de pensamentos indesejáveis, desagradáveis e intrusivos, muitas vezes experimentados por elas como estranhos às suas mentes ou não gerados por elas. Não seriam estes terríveis sintomas parecidos com muitos tiques motores, os quais são executados à revelia da intenção e da vontade e, por conseguinte, carecem de planejamento? Falando um pouco mais sobre a função das áreas pré-motoras cerebrais, regiões onde representações mentais de objetivos comportamentais e ações voluntárias são 37

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elaboradas: ações como alcançar, manipular, apanhar e puxar, possíveis em função de possuirmos uma mão preênsil, têm um importante papel na configuração de capacidades cognitivas dos primatas. A mão preênsil ajustou a maneira como estas espécies agem no mundo, em um processo lento e gradual, caracterizado, em termos neurofisiológicos, pela configuração de circuitos conectando sensação e ação, os quais deram origem a movimentos adaptados à manipulação de diferentes objetos. Assim, áreas pré-motoras regulam os movimentos da mão para que eles se ajustem à manipulação de uma caneta, de uma xícara, de um copo ou de uma raquete de tênis. As representações mentais aqui geradas envolvem, portanto, relações entre o corpo e um objeto no contexto de um objetivo em particular, razão pela qual existem conexões recíprocas entre o córtex prémotor e o córtex parietal posterior. Quando áreas pré-motoras são eletricamente estimuladas, há produção de movimento, da mesma forma que acontece quando o córtex motor primário, ou M1, é eletricamente estimulado. Mas a diferença é que os movimentos produzidos pela estimulação de alguns neurônios do córtex pré-motor codificam tipos específicos de movimento, definíveis como movimentos objetivodirigidos, como alcançar, manipular, apanhar e puxar. Existem, ainda, outros padrões de resposta neuronal pré-motora, como a de neurônios locais, chamados de neurônios canônicos, que ficam ativos em instantes entre a visualização de um objeto e a execução de um comportamento diretamente ligado a ele, como se “estudassem” a melhor maneira de interagir com aquele objeto. Em outras palavras, estas células estariam transformando representações sensoriais em representações motoras. Existem, também, os neurônios espelho, que disparam quando da execução e da observação daqueles movimentos sendo executados por terceiros. Eles são importantes para que sejamos capazes de compreender as ações das outras pessoas, na medida em que, através do trabalho dos neurônios espelho, somos capazes de simulá-las em nosso córtex pré-motor. Movimentos voluntários como os executados pela mão preênsil são diferentes de ações reflexas (que podem ser definidas como respostas estereotipadas e inflexíveis a estímulos), permitindo uma ampla variedade de respostas frente a um único estímulo. Por exemplo, a observação de um objeto dispara uma atividade automática e espontânea de se avaliar as múltiplas maneiras de manipulá-lo ou das oportunidades pragmáticas que ele propicia, uma tarefa dos neurônios canônicos.

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Veremos logo a seguir que regiões do córtex parietal processam as relações entre nosso corpo e os objetos encontrados no mundo. É possível, portanto, que neurônios parietais criem representações mentais das relações entre nosso corpo e um determinado objeto, enviando estas informações para neurônios pré-motores que, por sua vez, criem representações mentais de atos motores em potencial ou oportunidades de interação contexto-específicas com aquele objeto. Assim, antes de manipularmos uma xícara, o córtex parietal calcula as relações espaciais entre ela e nosso corpo, informação que, encaminhada ao córtex pré-motor, permite o planejamento de como a pegaremos, bem como o ajuste da mão para que o façamos dentro de um determinado contexto: se pela alça (por exemplo, para evitarmos o contato com a superfície quente do corpo da xícara) ou se pelo corpo (por exemplo, quando queremos aproveitar para aquecer nossas mãos em um dia frio). Como o sistema nervoso central cria o comportamento Como já foi exaustivamente repetido, o cérebro recebe informação sensorial do ambiente externo e interno, organizando as ações através de uma sofisticada atividade computacional que depende de neurônios conectados de forma muito precisa. Veremos a partir de agora com um pouco mais de detalhe como se dá esta organização desde a recepção dos estímulos até a elaboração e a execução do comportamento. Vamos levar em conta a neurofisiologia do tato, que é uma modalidade sensorial muito bem estudada, para iniciar esta discussão a partir do estudo das vias sensoriais. Transformando informação sensorial em informação eletroquímica O primeiro desafio do sistema nervoso central é converter os diversos tipos de informação sensorial a que estamos expostos em informação eletroquímica. Assim, eventos físicos como luz, pressão, sons e substâncias químicas precisam ser transformados em eventos eletroquímicos, um trabalho que é realizado pelos receptores sensoriais. Os receptores estão distribuídos por todo o nosso corpo e são sensíveis a tipos específicos de eventos físicos; por exemplo, a retina é especializada em converter energia luminosa em padrões característicos de disparo neuronal que representam as propriedades daquele estímulo; receptores tácteis localizados na pele, chamados mecanorreceptores, convertem a pressão exercida neles em padrões de disparos adequados para a criação de representações tácteis, muito úteis em nossa navegação física pelo mundo. A atividade neuronal de conversão de um evento físico qualquer em 39

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informação eletroquímica é chamada de transdução. Depois de “convertida” de forma que possa ser conduzida pelos neurônios, esta informação precisa seguir até o cérebro. Vias sensoriais: o exemplo do tato A informação transduzida pelos receptores tácteis é levada até a medula espinhal pelos neurônios sensoriais. É importante saber que os corpos celulares destes neurônios – os quais são classificados, de acordo com sua forma, como pseudounipolares – estão localizados em um gânglio nervoso dorsal e que seus axônios entram na medula espinhal pelo corno posterior da substância cinzenta. Eles podem fazer sinapses com neurônios motores neste ponto de entrada ou então “subirem” a níveis mais elevados da medula espinhal através de “estradas” localizadas na substância branca da medula espinhal, mais precisamente nas colunas dorsais da substância branca adjacente aos cornos posteriores da medula. Nas colunas dorsais, existem duas vias por onde as fibras sensoriais transitam e elas são chamadas fascículos grácil e cuneiforme. O fascículo grácil localiza-se mais medialmente e o fascículo cuneiforme, mais centralmente, na região dorsal da medula espinhal. Os axônios que entram na medula na região sacral sobem mais próximos da linha média. Já os axônios de níveis mais altos ascendem progressivamente em posições mais laterais das colunas dorsais. Os axônios destes neurônios sensoriais pseudounipolares ascendem pela medula pelos fascículos grácil e cuneiforme sem cruzar a linha média até chegarem aos núcleos grácil e cuneiforme da medula oblonga, onde fazem sinapses com os segundos neurônios da cadeia de transmissão sensorial do tato. Agora sim, estes neurônios cruzam a linha média na região da decussação sensorial – também localizada na medula oblonga – e seguem para o tálamo através de outra “estrada”: o lemnisco medial. Portanto a informação táctil do lado direito é processada pelo cérebro esquerdo e vice-versa. No tálamo existe uma segunda sinapse, de onde um terceiro neurônio da cadeia conduz as informações até o córtex somatossensorial. O córtex somatossensorial, também denominado de área 3b de Brodmann, situase em uma região do cérebro denominada de giro pós-central, que é o primeiro giro após o sulco central do cérebro. Ao longo de cada ponto de retransmissão da informação táctil repete-se o já citado fenômeno da somatotopia, isto é, a ocorrência de um mapa da superfície receptiva, o qual inclui não apenas a localização, mas a densidade dos receptores de uma modalidade sensorial. No córtex somatossensorial não poderia ser 40

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diferente, embora as áreas corticais representando diferentes superfícies corporais não sejam proporcionais às regiões do corpo ali representadas. Isso acontece porque algumas regiões do corpo são mais sensíveis ao tato: por exemplo, a ponta dos dedos das mãos, as próprias mãos e a língua são muito mais sensíveis ao tato do que as costas, por isso existem áreas corticais somatossensoriais muito mais extensas para mãos e língua do que para as costas. O famoso homúnculo sensorial de Penfield, com sua cabeça, lábios e mãos enormes e braços, troncos e pernas desproporcionalmente pequenos, é um diagrama que ilustra convenientemente a magnitude da representação de diferentes áreas do corpo no córtex somatossensorial. Na verdade o córtex somatossensorial não tem apenas um, mas quatro mapas completos da superfície sensorial da pele, situados nas áreas 3a, 3b, 1 e 2 de Brodmann. Os processos tácteis mais básicos são processados nas áreas 3 (consideradas áreas unimodais) e, na área 2, a informação táctil é integrada à informação a respeito da posição dos membros (também chamada de propriocepção porque ela nos dá informações sobre nossa postura e posições utilizando de informações enviadas pelos músculos e articulações). A área 2 também envia informações para áreas associativas multimodais localizadas no córtex parietal posterior, onde elas são integradas com informações auditivas, visuais e mnêmicas. Isso é importante para o reconhecimento táctil de objetos e seu acesso e, na medida em que é integrada, a informação somatossensorial será utilizada no controle de nossos movimentos e de sua coordenação com a visão, bem como na memória táctil, por exemplo. Recordando o conceito de processamento hierárquico da informação, áreas sensoriais unimodais do tato processam um tipo específico de informação sensorial, neste caso, táctil. Áreas multimodais de associação combinam diferentes modalidades sensoriais, por exemplo, tato e propriocepção, e tato, propriocepção e visão, gerando uma percepção unificada, a qual pode ser, inclusive, armazenada na memória. Um dos principais propósitos da informação somatossensorial é coordenar o comportamento motor ou o movimento dirigido. Por exemplo, quando apanhamos uma xícara, utilizamos deste tipo de informação para guiar nosso comportamento, pois temos de reconhecer nossa posição em relação à xícara, a posição espacial da xícara e a melhor maneira de pegar uma xícara (pegar uma xícara é diferente de pegar uma colher ou um lápis), dentre outras operações combinando aspectos sensoriais e motores (estas operações podem também ser chamadas de sensório-motoras). É possível afirmar, portanto, que a percepção 41

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“abastece” sistemas motores de informações sensoriais fundamentais para a execução de um movimento. Um fluxo contínuo de informação sensorial táctil, proprioceptiva e visual é essencial para a modulação dos movimentos de apanhar uma xícara, a fim de que eles sejam apropriadamente sequenciados. Vias motoras O córtex motor primário também tem organização somatotópica – portanto, também existe um homúnculo motor – e ele foi desenhado a partir dos sinais observados quando a área 4 de Brodmann (ou área M1) é estimulada. Os axônios dos neurônios motores de M1 “partem” do córtex motor primário em seu trajeto descendente na direção dos cornos ventrais ou anteriores da medula espinhal através de uma via denominada trato córticoespinhal, passando pela cápsula interna (no telencéfalo) e pelo pedúnculo cerebral (no mesencéfalo). Noventa por cento destas fibras cruzam a linha média na decussação das pirâmides e continuam seu trajeto descendente pelo trato córticoespinhal lateral, chegando aos cornos anteriores, onde fazem sinapse com um neurônio motor. O córtex motor recebe influências reguladoras do cerebelo e dos gânglios da base, o que aperfeiçoa suas funções. O cerebelo tem um papel de corrigir erros de movimentos, comparando, por exemplo, o comando motor cortical com a informação somática a respeito daquilo que, de fato, ocorreu em termos de movimento. Neste sentido, o cerebelo exerce um papel de controle preditivo dos movimentos. A maior influência do cerebelo sobre os movimentos se dá através de suas conexões com núcleos talâmicos (os núcleos ventrolaterais do tálamo), os quais se conectam diretamente aos córtices motor e pré-motor. Os gânglios da base, por sua vez, não só recebem informação de áreas sensoriais e motoras como também de áreas importantes no processamento da motivação, cognição e emoção, enviando informações para o córtex através do tálamo. O tálamo, já discutido acima, é uma estrutura subcortical com formato oval que constitui a parte dorsal do diencéfalo. Ele conduz o input sensorial de todas as modalidades – com a exceção do olfato – para as áreas sensoriais primárias do córtex, atuando como um verdadeiro filtro sensorial. Ele é composto por diversos núcleos bem definidos, classificados em quatro grupos: anterior, medial, ventrolateral e posterior. O lemnisco medial, via do sistema sensorial, termina em um destes núcleos, o núcleo ventral pósterolateral, que contém as células que processam a informação sensorial transmitindo-a para o córtex somatossensorial primário. O grupo anterior de núcleos talâmicos recebe fibras provenientes do hipotálamo e do hipocampo e tem funções 42

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relacionadas ao processamento da emoção e da memória. O grupo medial recebe fibras dos gânglios da base, amígdala e mesencéfalo e também tem um papel de processamento mnêmico, e o grupo ventral de núcleos do tálamo relaciona-se ao controle motor, na medida em que eles trazem informações oriundas dos núcleos da base e do cerebelo para o córtex motor. O grupo posterior de núcleos talâmicos inclui os núcleos geniculados medial e lateral, o núcleo pósterolateral e o pulvinar. O núcleo geniculado medial recebe informação do sistema auditivo que conduz para o lobo temporal e o núcleo geniculado lateral recebe informação visual da retina, que conduz ao lobo occipital. O pulvinar varia em importância em diferentes espécies; assim ele é virtualmente inexistente em roedores e relativamente maior no cérebro de primatas (Arendt e cols, 2008). Esta estrutura parece relacionar-se ao aumento de áreas associativas parietais, occipitais e temporais, integrando funções visuais e de movimento dos olhos. Finalmente, a cobertura externa do tálamo é denominada núcleo reticular do tálamo, cuja imensa maioria dos neurônios utiliza o neurotransmissor inibitório Gaba e não se conectam com o neocórtex, mas com neurônios de outros núcleos talâmicos, o que sugere que sua função é de regular a sua atividade. Por esta razão, talvez seja a porção do tálamo que melhor desempenhe a tarefa de filtro sensorial. Noções de processamento cognitivo A percepção não é uma reprodução literal do mundo A noção intuitiva de que o produto final da percepção é algo parecido com uma reprodução literal do mundo à nossa volta é enganosa, apesar de sermos continuamente convencidos disso pela experiência subjetiva de que trazemos cópias de alta fidelidade a respeito daquilo que vimos. Nossa percepção e aprendizado a respeito do mundo são processos construtivos, isto é, eles não dependem exclusivamente dos estímulos que chegam ao cérebro, mas também do aparato mental daquele que percebe; enfim, da organização dos sistemas sensoriais e motores, além daqueles sistemas cerebrais envolvidos com a emoção, motivação e recompensa. Lembre-se de que nossa visão do mundo quando famintos é completamente diferente daquela que temos quando saciados. Pode parecer contraintuitivo que áreas motoras do córtex participem da construção de percepções, todavia, é importante considerarmos que ações têm um papel chave neste processo. Áreas motoras interpretam a informação sensorial com base na experiência, dando forma ao nosso comportamento. Considere, por exemplo, que um objeto distante 43

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parece menor do que quando está localizado mais próximo, assim como um objeto que se distancia nos dá a impressão de ter suas proporções gradativamente diminuídas. Este tipo de informação vai sendo incorporado ao longo da vida, na medida em que percebemos as relações de nosso corpo com o mundo a nossa volta. Da mesma forma, acabamos aprendendo pela experiência que objetos com contornos nítidos parecem estar mais próximos do que objetos com contornos mal definidos, um exemplo simples de como uma representação visual não é configurada levando em conta exclusivamente aspectos da realidade visual, mas também de uma heurística criada a partir da experiência de enxergar coisas próximas e distantes. Além disso, temos conhecimentos intuitivos a respeito das características físicas do mundo, os quais pautam não apenas o jeito como percebemos as coisas, mas também nossas ações em relação a elas. A tridimensionalidade dos objetos é um aspecto fundamental do mundo físico que precisa ser adequadamente interpretado pelo cérebro para que acidentes não ameacem nossa integridade física. Embora antigamente se achasse que o sentido de tridimensionalidade fosse obtido através da coordenação da visão com a experiência de movimento pelo mundo (e, consequentemente, da distância), hoje em dia se sabe que bebês muito novinhos, e que ainda não conseguem se deslocar sozinhos, já são capazes de entender o que é distância. Por exemplo, eles parecem se defender de objetos que se aproximem deles e tentam alcançar, embora de forma desajeitada, objetos distantes que lhes interessam. Bebês também parecem compreender o que é chamado de princípio da constância de tamanho (Gopnik e cols, 2001), isto é, se você mostrar a eles uma bola e depois mostrar a mesma bola a uma distância duas vezes maior, eles saberão que é a mesma bola, apesar da imagem em suas retinas mostrar um objeto com metade da dimensão inicial. De outra forma, se você mostrar uma bola e depois mostrar uma bola semelhante a uma distância duas vezes maior, sem alteração de suas dimensões, eles saberão que a bola foi substituída por uma maior, apesar da imagem em suas retinas mostrar um objeto com as mesmas dimensões. Estes achados sugerem que possam existir módulos mentais especializados em processar informações sobre o mundo físico, os quais já estão presentes ao nascimento. Apesar de inatos, eles estão sujeitos ao aperfeiçoamento de suas capacidades computacionais através do aprendizado, melhorando a construção de percepções. Conforme foi dito acima, tato e a propriocepção permitem, respectivamente, que tenhamos informação sobre determinadas propriedades físicas dos objetos do ambiente 44

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e sobre a posição e movimentação de nosso corpo em relação a estes objetos, fazendo com que tenhamos uma representação muito mais rica sobre sua localização em relação aos nossos corpos, tornando nossa aproximação, distanciamento e contato com eles muito

mais

precisos.

A

adequada

integração sensório-motora

permite que

comportamentos tão diferentes quanto apanhar uma xícara de café, desenhar ou jogar tênis possam ser executados de forma precisa e automática, não sendo necessário qualquer planejamento consciente. Para que isso funcione adequadamente, o cérebro tem de gerar representações mentais do espaço pessoal (o espaço ocupado por nosso corpo), do espaço peripessoal (o espaço do ambiente que está ao alcance de nossas mãos) e do espaço extrapessoal. O córtex associativo parietal Vimos logo acima que o córtex somatossensorial é composto de 4 áreas, cada qual processando um tipo diferente de informação. A área 3a de Brodmann recebe informação de músculos e articulações, importante na propriocepção dos membros, e a área 3b recebe informações tácteis a partir da superfície da pele. A informação táctil é processada na área 1 e integrada com a propriocepção de membros e articulações na área 2, uma área associativa de ordem mais alta (lembre-se: ela integra dois tipos distintos de informação sensorial). Tato e propriocepção reúnem informações fundamentais na geração de representações de espaço pessoal, a qual não é determinada ao nascimento, mas vai sendo construída com a experiência e o aprendizado, podendo também ser avariada por falta de uso ou lesões. A área 2 projeta para as áreas de associação multimodal 5 e 7 localizadas no córtex parietal posterior que também recebe input sensorial dos sistemas auditivo, visual e do hipocampo. Nesta área cortical informações tácteis e proprioceptivas são integradas com outras modalidades sensoriais, a fim de possibilitar a formação de percepções espaciais dos objetos fora do espaço pessoal. Lesões do córtex parietal posterior, onde a maioria destas operações cerebrais é realizada, podem levar a sintomas comportamentais curiosos, como a negação de uma parte do corpo. Pacientes com este quadro, que, de certa forma é um distúrbio da consciência para uma parte específica do corpo, podem não vesti-la, não higienizá-la e até mesmo negar que ela os pertença. Tais fenômenos se devem à abolição, precipitada por uma agressão ao córtex parietal, da capacidade de integrar a informação do espaço pessoal geradas pelo tato e a propriocepção com outras informações sensoriais, particularmente visuais e mnêmicas, a respeito do próprio corpo. Dependendo da 45

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extensão e da localização da lesão parietal, os pacientes podem negar até mesmo o espaço extrapessoal mais remoto. Alguns quadros neurológicos enigmáticos, como crises convulsivas psicogênicas (crises que têm um importante componente psicológico) e transtornos dos movimentos corporais incaracterísticos parecem decorrer de disfunção conjunta de diversas áreas cerebrais, as quais incluem, além do córtex parietal posterior, áreas de regulação da emoção (de fato, muitos destes fenômenos neurológicos aparecem em pessoas que sofrem de transtornos emocionais), do controle cognitivo e do planejamento motor (Perez e cols., 2015). Psiquiatras frequentemente são chamados para atender estes pacientes, os quais, por conta da atipicidade de seus quadros clínicos, acabam sendo muitas vezes considerados simuladores. Nem sempre este é o caso. Muitos pacientes desenvolvem o que chamamos de fenômenos dissociativos, que são condições em que existe uma dissociação (ou uma separação estanque e inconveniente) de processos mentais que deveriam caminhar em conjunto. Por exemplo, a memória para determinados eventos “se isola” de demais instâncias da mente, tornando-se inacessível, nos casos de amnésias dissociativas, ou toda a identidade do indivíduo dissocia-se da sua mente e ele se esquece de quem é e pode acabar vagando pelo mundo por não saber mais quem é sua família e onde fica sua casa, nos casos de fugas dissociativas. Outros fenômenos dissociativos incluem estados de transe e possessão, onde há dissociação transitória de elementos da mente, estados estes que nem sempre são considerados doentios, caso ocorram exclusivamente em ambientes religiosos em que estes comportamentos são admitidos e até mesmo estimulados. Em todas estas situações parece haver algum tipo de “desconexão”, transitória ou duradoura, de processos cerebrais importantes na construção de representações que, quando integradas, dão sentido ao nosso corpo e à nossa mente como um todo, bem como à nossa identidade. É importante reconhecer que condições como estas comprometem de forma mais ou menos duradoura aquilo que chamamos de consciência e que engloba não somente a autoconsciência ou consciência autobiográfica, mas também a subjetividade, definida como a experiência de sermos o centro da experiência; a unidade, definida como o aspecto integrativo de nossas experiências como únicas; e a intencionalidade, que é a conexão dos eventos da experiência em direção a um objetivo. Há perda da subjetividade em casos de transes, possessões e transtornos dissociativos da identidade, bem como há perda da unidade em amnésias dissociativas e fenômenos de déjà-vu e comprometimento da intencionalidade em todas estas condições. Em um dado momento estamos conscientes de uma pequena fração dos estímulos com que nos 46

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deparamos, por isso, para alguns autores, um evento cognitivo essencial na configuração da consciência é a atenção visual, cujo processamento está muito relacionado ao trabalho do córtex parietal, que também está encarregado de elaborar mapas das relações entre os objetos e eventos no campo visual. Assim, estudos dos disparos de determinados neurônios do córtex parietal de macacos mostram que estas células entram em atividade quando um estímulo visual entra no campo visual, independentemente do animal estar interessado naquele estímulo. Através de suas conexões com o córtex préfrontal, o córtex parietal envia para ali estas informações, que podem ser cruciais no planejamento do comportamento motor. O córtex associativo parietal tem, portanto, um papel fundamental na orientação visual do comportamento motor, na percepção e na cognição espacial, e lesões a esta região do cérebro podem cursar com alterações da consciência corporal (por exemplo, pacientes que negam que um de seus braços seja seu ou que barbeiem somente um dos lados do rosto, bem como alguns casos um pouco diferentes, de pessoas que relatam experiências de estarem fora de seus corpos – alguma dúvida de que existem alterações da consciência por aqui?), do controle motor (por exemplo, pacientes que passam a ter dificuldades para alcançar objetos ou o fazem de forma disfuncional e meio atrapalhada, em alterações do comportamento motor chamadas de apraxias) e da capacidade de perceber ou prestar atenção a eventos ou objetos localizados no campo visual contrário ao lado de suas lesões (lembre-se que a informação sensorial de um lado do corpo é processada pelo lado oposto, pois as fibras cruzam a linha média em seu trajeto em direção ao cérebro). Problemas no processamento do córtex associativo parietal podem abranger ainda dificuldades com cálculo ou quaisquer atividades que envolvam manipulação de dígitos, como a escrita e a leitura. Isso porque quando fazemos contas e quando escrevemos e desenhamos, manipulamos espacialmente números, letras e formas. As representações mentais geradas pelo córtex associativo parietal têm um caráter visual e somatossensorial, isto é, envolvem a integração de informações provenientes da visão, do tato e da propriocepção, as quais, depois de integradas, acabam por configurar mapas de nosso espaço pessoal e extrapessoal, permitindo que executemos tarefas como calcular adequadamente a distância de um objeto e nosso corpo ou a distância e as relações entre dois objetos no campo visual, coordenando, assim, aquilo que vemos com nossos movimentos.

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O córtex associativo temporal As principais funções do córtex associativo temporal incluem o armazenamento da memória e o conhecimento semântico, ou do significado das coisas. Como uma área associativa, aqui, informações de diversas modalidades são integradas a fim de que sejam geradas representações mentais adequadas para nossa navegação pelo mundo. Neurônios de áreas inferiores do córtex temporal, as mais estudadas e compreendidas desta região, são muito ativos diante de formas, cores e texturas, independentemente do comportamento motor do indivíduo e, portanto, do tamanho da imagem e de sua localização, o que sugere que estas células não estão envolvidas com a orientação do comportamento motor, como os neurônios parietais. Lesões em regiões associativas temporais podem causar agnosias, que são déficits perceptuais onde há prejuízo da compreensão de estímulos sensoriais devido a problemas na integração da informação no processo de construção de uma percepção. Pacientes com déficits cognitivos decorrentes de lesão ao córtex associativo temporal não terão nenhum problema em copiar o desenho de um cachorro, por exemplo, embora tenham dificuldade em saber o que estão desenhando. Ao contrário de pacientes com lesão parietal, que teriam extrema dificuldade na execução deste tipo de tarefa porque sofrem de limitações na manipulação espacial de formas, embora consigam reconhecer que o desenho que têm de copiar é de um cachorro, pacientes com lesão temporal até são capazes de copiar, na medida em que não sofrem de problemas de coordenação entre a visão e os movimentos, mas, ao serem perguntados a respeito de qual animal estão desenhando, podem dar uma resposta muito vaga, como “poderia ser um gato, um boi, ou qualquer outro bicho”. Outro tipo bastante peculiar de agnosia é a prosopagnosia, que consiste de um prejuízo específico do reconhecimento de faces (por isso ela é também chamada de cegueira para faces). A prosopagnosia parece surgir em decorrência de lesões de uma região temporal chamada de giro fusiforme, mas ela também pode ser congênita ou hereditária. No lobo temporal esquerdo da maioria das pessoas é encontrada a área de Wernicke, localizada na região mais posterior do giro temporal superior e representada pela área 22 de Brodmann. Trata-se de uma importante área cerebral associada à linguagem que, quando lesada, causa um tipo muito específico de afasia ou distúrbio da linguagem de origem cerebral. Pacientes com afasia de Wernicke, provavelmente a mais debilitante das condições decorrentes de lesão do córtex associativo temporal, têm 48

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dificuldade para compreender o significado das palavras faladas ou escritas, embora consigam falar de forma fluente, mas incompreensível. Isso porque na área de Wernicke são armazenados os “templates” auditivos e visuais da linguagem falada e escrita, respectivamente. Observe que nesta região a função primordial do córtex associativo temporal é mantida, isto é, integrar informações de ordem sensorial (visão e audição) com informações de ordem semântica, ou seja, o “significado” daqueles símbolos e sons. As afasias de Wernicke são sempre discutidas conjuntamente com as afasias de Broca, decorrentes de prejuízo às funções da área de Broca, localizada no lobo frontal esquerdo da maioria das pessoas e representada pelas áreas 44 e 45 de Brodmann, cujas lesões comprometem a capacidade de expressar a linguagem escrita e falada, mas não a capacidade de compreender significado das palavras. A área de Broca também reflete o papel do córtex associativo em que está localizada (o córtex frontal), que é o de organização da atividade motora ligada à expressão da linguagem. No córtex associativo temporal também é processada a memória semântica, a qual se forma através da associação de múltiplos pedaços de informação a respeito de alguma coisa, que, em principio podem estar desconectados. Alguns autores propõem que a memória semântica se organiza como uma rede semântica, já discutida quando falamos de priming, na qual nodos de informação – ou representações semânticas de palavras ou conceitos – estão distribuídos de forma tal que representações mais relacionadas entre si situam-se mais “próximas” umas das outras. Portanto, quando alguma coisa nova a respeito de algo é aprendida, uma nova associação entre dois nodos é estabelecida. Do ponto de vista neuronal, tais associações de informações são configuradas a partir de alterações de conexões sinápticas. Demências semânticas são exemplos de condições onde processos degenerativos afetando o córtex associativo temporal comprometem as habilidades verbais dos pacientes afetados, fazendo com que eles tenham dificuldade para encontrar palavras, nomear objetos e compreender conceitos. Alguns estudos correlacionam memória semântica e distúrbios do pensamento em psicoses esquizofrênicas e sugerem que a capacidade de compreendermos adequadamente os significados do mundo tem muito a ver com a habilidade de contextualizar a informação. Por exemplo, nas frases O homem chegou à lua e O homem matou a sua esposa, existem diferenças nos significados de homem, as quais são automaticamente detectadas por indivíduos saudáveis, que são capazes de ativar saudavelmente suas redes semânticas e encontrarem os conceitos mais 49

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apropriadamente empregáveis em cada uma das situações. Indivíduos portadores de esquizofrenia e até mesmo pessoas com condições de vulnerabilidade às psicoses, como os parentes assintomáticos de primeiro grau de esquizofrênicos ou indivíduos com traços esquizotípicos de personalidade seriam susceptíveis a ativarem exageradamente estas redes, acionando conceitos muito distais – e, portanto, descontextualizados – o que resultaria em maior dificuldade em encontrar os sentidos mais apropriados para homem naquelas frases. A ambiguidade semântica gerada nestas pessoas por situações semelhantes às do exemplo acima poderia estar por trás do aparecimento de sintomas do pensamento como os delírios, que são falsas crenças resistentes à argumentação lógica, muito comuns em indivíduos sofrendo de psicoses esquizofrênicas (Tonelli, 2014). O córtex associativo frontal O córtex associativo frontal tem como principal função o controle do comportamento motor dirigido a um objetivo. Esta área do cérebro planeja o comportamento, priorizando e selecionando as informações mais relevantes em um determinado momento, inibindo outras. Profissionais de saúde mental costumam dizer que um paciente excessivamente desinibido, com comportamentos inconvenientes e impulsivo está “desfrontalizado”, referindo-se à aparente falta de mediação do comportamento pelo córtex frontal, o que resulta em atitudes inadequadas, indiscretas, impulsivas ou perigosas. Estes comportamentos são inespecíficos, isto é, não são exclusivos de um ou de outro transtorno mental e podem acontecer em pacientes portadores de demências, esquizofrenia, TDAH ou na fase maníaca do transtorno bipolar, por exemplo. Áreas frontais conectam-se em série, hierarquicamente; assim, o córtex motor primário ou M1 (área 4 de Brodmann) é o ponto final do processamento frontocortical e, como já foi dito antes, a região de onde partem os neurônios que acionarão os músculos voluntários, produzindo movimento. Mas o córtex motor primário é regulado por neurônios de outras áreas frontais, os quais o fazem a partir de informações relevantes que conduzem, por exemplo, material de natureza emocional ou mnêmica. Áreas pré-motoras conectam-se ao córtex motor primário e processam aspectos globais do comportamento motor, como a coordenação dos membros durante a realização de um determinado movimento. Os populares neurônios espelho estão localizados no córtex pré-motor e são células que entram em ação quando executamos ou observamos outras pessoas executarem determinados tipos de movimentos, mas não quaisquer 50

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movimentos. Os tipos de movimentos executados ou observados que excitam os neurônios espelho têm um forte caráter intencional, isto é, não são simples ações, e abrangem atos de agarrar, puxar, prender, alcançar, manipular, para citar apenas alguns. Ao dispararem mediante a observação destas ações e não exclusivamente à sua execução,

sugerem

alguns

autores

que

estas

células

colaboram para

que

compreendamos os comportamentos das outras pessoas, através da simulação de suas intenções. Seria como se, por meio da representação neural destas intenções, que se caracteriza pela simulação de um estado motor/intencional das pessoas a nossa volta, pudéssemos nos colocar “dentro delas” e entendê-las melhor. De fato, há quem sugira que pelo menos uma fração de nossas capacidades empáticas poderiam ser mediadas pelos neurônios espelho, bem como que prejuízos à atividade deles poderiam estar por trás de déficits cognitivos sociais, ou das capacidades inatas e espontâneas que temos de decifrar as outras pessoas, déficits bem descritos em transtornos como o autismo, a esquizofrenia e em alguns transtornos de personalidade. Áreas corticais pré-motoras, por sua vez, recebem influências da região dorsolateral do córtex pré-frontal, que tem um importante papel no controle cognitivo do comportamento. É esta região que fica mais ativa quando, diante de um alimento muito saboroso, mas altamente calórico, começamos a pensar se vale a pena consumilo, haja vista o risco de ganho de peso. Quando usamos da reflexão para inibir uma tendência comportamental, nosso cérebro está exercendo um controle cognitivo sobre os impulsos. Como o córtex pré-frontal dorsolateral recebe informação emocional de outras regiões do córtex frontal, principalmente da região órbitofrontal, ele acaba tendo de regular o desejo e o impulso de consumir aquilo e, quando está saudável, é capaz de refrear as tendências imediatistas impostas pelas emoções e motivação. Estudos de neuroimagem funcional têm demonstrado que a atividade do córtex pré-frontal dorsolateral está prejudicada em indivíduos sofrendo de obesidade mórbida (Carnell e cols, 2012), fazendo com que eles percam o “freio inibitório” proporcionado por esta região do cérebro, causando uma dificuldade de controlar adequadamente o comportamento alimentar, por um aumento da impulsividade para consumir alimentos, particularmente os mais calóricos. Poderíamos, portanto, afirmar, que a obesidade mórbida “desfrontaliza” aqueles que dela sofrem. Os mecanismos envolvidos no prejuízo do controle cognitivo em indivíduos obesos mórbidos envolvem inflamação cerebral (Castanon e cols., 2014; Fernández-Sánchez e cols, 2011), resistência cerebral 51

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à insulina (Heni e cols, 2015) e influências da flora intestinal modificada pela obesidade no trabalho do cérebro (Alcock e cols., 2014; Rogers e cols., 2016). Ao contrário, acredita-se que pessoas sofrendo de anorexia nervosa, um transtorno alimentar caracterizado por deturpações da imagem corporal e uma impressionante capacidade de não comer, desenvolvam uma espécie de “hipercapacidade” inibitória frontocortical ou uma “hiperfrontalização”. Outras condições psiquiátricas estão associadas a disfunções do córtex associativo frontal, por exemplo, o TDAH e a esquizofrenia, mas atualmente sabemos que quaisquer transtornos mentais podem afetar o funcionamento desta importante região do cérebro, na medida em que, em todas estas condições, a atividade de outras regiões cerebrais parece não “desligar” em momentos em que isso é necessário, a fim de “dar licença” para que o córtex frontal funcione. Muitos pacientes deprimidos se queixam de que não conseguem se concentrar para tomar decisões porque seus pensamentos depressivos “invadem” sua mente, da mesma forma que muitos ansiosos sofrem do mesmo problema. Alguns dependentes químicos dizem que, quando “fissurados”, perdem completamente a capacidade de usar a mente para qualquer outra atividade que não seja pensar em obter ou consumir uma droga. Portadores de obesidade mórbida têm queixas muito parecidas com a dos dependentes químicos, relacionadas ao consumo de alimentos calóricos, o que reforça a tese de alguns pesquisadores da obesidade de que ela seria uma forma de dependência da comida. Já discutimos que neurônios pré-frontais disparam em testes de resposta atrasada, mantendo na mente informações importantes em um determinado momento,as quais já não estão disponíveis sensorialmente, um processo cognitivo denominado memória de trabalho. A memória de trabalho é avaliada neuropsicologicamente por diversos testes, como o teste de Stroop e o teste Wisconsin de classificação de cartas. No primeiro, são apresentados nomes de cores escritos com letras de cores diferentes da cor que a palavra representa (por exemplo, a palavra “vermelho” escrita em verde), e pede-se ao indivíduo testado que preste atenção apenas na cor daquelas palavras. Se você fizer o teste de Stroop, perceberá que sua mente experimentará um conflito entre duas informações que lhe são apresentadas simultaneamente (a representação verbal e a sensorial de uma cor), precisando um pouco mais de esforço cognitivo para resolver a tarefa do que seria necessário para simplesmente ler o que está escrito. Para a adequada execução daquela tarefa, os neurônios do córtex pré-frontal dorsolateral terão de manter em sua mente uma representação da tarefa, que é a de prestar atenção ao aspecto 52

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sensorial da informação, suprimindo a tendência automática de ler, que, como também estudamos acima, seria reforçada por neurônios da memória de trabalho especializados no processamento de material verbal. O teste Wisconsin de classificação de cartas é um teste em que os indivíduos avaliados têm de descobrir as regras para acertar no arranjo de grupos de cartas, de acordo com cor, forma ou quantidade de figuras nelas representadas. O acerto depende da capacidade do indivíduo testado de prestar atenção em estímulos relevantes, selecionando-os e priorizando-os, para que consiga descobrir a regra proposta pelo examinador. Indivíduos com lesões do lobo frontal tendem a perseverar em estratégias inadequadas de resolução do teste Wisconsin. O córtex pré-frontal dorsolateral recebe influências regulatórias da região órbitofrontal, uma área envolvida em processos emocionais relacionados ao comportamento e as tomadas de decisão. Pacientes com do córtex órbitofrontal falham em testes neuropsicológicos como o Gambling Task, que mede a capacidade de escolher as melhores cartas de um baralho com base na ponderação acerca de recompensa e punição, representados, respectivamente, por ganhos e perdas financeiras. Indivíduos saudáveis aprendem que o melhor desempenho nesta tarefa está relacionado ao aprendizado de que determinados grupos de cartas são mais adequados, pois, apesar de terem menor retorno financeiro (menor recompensa), também “punem” menos, ao passo que indivíduos com prejuízos no processamento órbitofrontal parecem não sofrer os mesmos efeitos aversivos da antecipação das perdas dos indivíduos saudáveis, o que faz com que perseverem em escolhas ruins. Isso ilustra que as emoções têm um papel definitivo em nossas tomadas de decisão, seja por seus aspectos aversivos, seja por seus aspectos recompensadores. Portanto, a ideia compartilhada de que boas decisões são tomadas deixando-se as emoções à parte e utilizando-se apenas da razão não somente é inadequada como parece ser impossível do ponto de vista neuropsicológico. É verdade que algumas pessoas têm uma impressionante capacidade de antecipar problemas e se deixarem influenciar por pensamentos que evocam emoções desagradáveis, mesmo quando estão passando por momentos muito favoráveis de suas vidas. Diz-se que estas pessoas têm um alto nível de neuroticismo. Por neuroticismo subentende-se, portanto, uma disposição variável nas pessoas de se incomodarem com pensamentos e emoções negativos de vários tipos. Indivíduos com maiores escores em instrumentos que “medem” este traço têm maior risco de desenvolverem transtornos mentais. Sugere-se que indivíduos mais “neuróticos” sejam também mais criativos, por conta de sua 53

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tendência constante a ter pensamentos autogerados (ou pensamentos estímulo independentes) não necessariamente negativos. Pensamentos autogerados são pensamentos que não têm uma relação imediata com a informação sensorial recebida no momento em que eles ocorrem, razão pela qual eles podem, através de reativação de memórias e imaginação de novas situações, tanto antecipar problemas – causando, assim, emoções desagradáveis – quanto soluções. Diversos estudos sugerem que a origem cerebral dos pensamentos autogerados engloba regiões mediais do córtex frontal, como o córtex órbitofrontal ventromedial, região que faz parte da rede default, um conjunto de estruturas cerebrais interconectadas, cuja atividade é mais evidente em momentos em que não executamos nenhuma tarefa que exija esforço cognitivo. Atualmente postula-se que em vários transtornos mentais existam dificuldades variáveis de se “abaixar o volume” da rede default, a qual passa a invadir a mente de forma indesejável com seus pensamentos carregados de emoções negativas, prejudicando a capacidade de concentração, de resolução de problemas e de tomadas de decisão (Perkins e cols., 2015). É muito comum que pessoas com problemas de depressão e ansiedade se queixem de não conseguirem controlar pensamentos desagradáveis a respeito do passado e do futuro. As funções dos lobos frontais compreendem diferentes tipos de processamento de informação, os quais variam desde as funções executivas – que “organizam” a utilização das memórias, percepções e crenças dando forma ao raciocínio, ao pensamento e à linguagem – até a regulação da expressão emocional, que está por trás de diversos traços de personalidade e estilos de controle de impulso. Desta forma, funções frontais costumam estar comprometidas em praticamente todos os transtornos mentais. No transtorno bipolar do humor, este comprometimento pode resultar em comportamentos sociais inapropriados, muito comuns nas crises maníacas, ou na dificuldade em tomar decisões dos pacientes deprimidos. No transtorno obsessivo compulsivo, falhas em processos executivos associados à regulação do pensamento e das ações resultam em imagens e ideias intrusivas (obsessões) e comportamentos compulsivos; na catatonia, um fenômeno caracterizado por imobilidade motora de origem neurológica, que pode acontecer em portadores de esquizofrenia ou de transtornos do humor, falhas na regulação de processos motores dão origem a estes intrigantes sintomas.

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É possível, inclusive, identificar “assinaturas psicopatológicas” relacionadas a disfunções

em

diferentes

circuitos

frontocorticais,

isto

é,

alguns

quadros

neuropsicológicos podem ser explicados a partir de prejuízos no trabalho de vias neurais bem específicas do lobo frontal. Assim, quando disfuncional o circuito dorsolateral origina déficits executivos, problemas no raciocínio e na solução de problemas, aprendizado e habilidades motoras, comuns, por exemplo, no TDAH. Quando muito severos, os déficits executivos podem causar problemas na capacidade de autocuidados, intensa

apatia, falta

de iniciativa, embotamento emocional,

diminuição

da

espontaneidade e mutismo, sinais e sintomas que podem acometer tanto pacientes sofrendo de esquizofrenia quanto de depressão. O circuito frontocortical órbitofrontal tem duas subdivisões, a lateral e a medial. Sinais e sintomas decorrentes de prejuízos na função órbitofrontal lateral associam-se a fenômenos de desinibição, que incluem irritabilidade, instabilidade emocional e impulsividade, característicos da fase maníaca do transtorno bipolar ou de alguns transtornos de personalidade. O comprometimento da função órbitofrontal medial também está associado a anormalidades na expressão emocional, porém os sinais e sintomas mais comuns são agressividade, medo patológico e depressão, em razão de suas conexões diretas com a amígdala (Taylor e Vaidya, 2009). Como foi estudado logo acima, a parte medial do córtex órbitofrontal associa-se à produção de pensamentos autogerados ou estímulo independentes, os quais podem contribuir para o aparecimento de emoções disfuncionais em pessoas com alto grau de neuroticismo, seja através de exageradas simulações de um futuro catastrófico, seja através de insistentes lembranças de um passado considerado penoso. O córtex associativo límbico Funções

tradicionalmente

atribuídas

ao

sistema

límbico,

particularmente

o

processamento de emoções, são atualmente reconhecidas como tarefas das porções ventromedial e órbitofrontal do córtex frontal, áreas que também fazem parte do córtex associativo límbico. Este córtex associativo abrange uma série de estruturas localizadas na linha média, em torno do corpo caloso, como o córtex do cíngulo, o córtex entorrinal, a formação hipocampal e o córtex parahipocampal, áreas mais relacionadas ao processamento da memória do que propriamente de emoções. O sistema límbico, primeiramente descrito por Papez, incorpora, além das regiões corticais acima descritas, 55

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núcleos subcorticais conectados entre si, como a amígdala, o hipotálamo, os corpos mamilares, o septo, o núcleo acumbens e a área tegmental ventral mesencefálica. Conforme discutido anteriormente, o hipotálamo tem um papel fundamental na manutenção de processos homeostáticos, como a regulação do apetite, da sede, do ritmo sexual, regulação das secreções da glândula hipófise e, através de suas íntimas relações com o sistema nervoso autônomo, também regula ritmo cardíaco, pressão sanguínea, temperatura, níveis de glicemia e funções viscerais. A íntima relação do sistema límbico com o sistema nervoso autônomo é um aspecto chave do processamento emocional, na medida em que as estruturas límbicas influenciam as funções autonômicas. E estas influenciam o cérebro e, por conseguinte, a mente. Foi William James, considerado o pai da psicologia americana, quem primeiro sugeriu, no final do século XIX, que as emoções são configuradas a partir dos sinais corporais periféricos – alterações do ritmo cardíaco, da pressão sanguínea e de outros parâmetros corporais – e que só são tornadas conscientes quando estes sinais são interpretados pelo córtex e transformados em sentimentos. O córtex também dá um tratamento cognitivo aos sentimentos, fazendo com que determinados pensamentos acompanhem certas emoções. Para James, portanto, as emoções são a percepção por nossa mente de alterações de condições fisiológicas precipitadas por algum estímulo externo. As emoções têm, portanto, componentes somáticos e cognitivos; os últimos abrangem as alterações atencionais, de memória e pensamentos característicos que acompanham cada sentimento emocional. Sinais vindos dos estímulos ambientais são detectados por nossos órgãos dos sentidos e, através das conexões das vias sensoriais com estruturas do sistema límbico – particularmente a amígdala – passam a exercer influência sobre o hipotálamo e tronco cerebral, os quais medeiam mecanismos neuroquímicos para a promoção de alterações na atividade autonômica e liberação de hormônios do estresse, como o cortisol. Existe, também, influência direta da amígdala sobre neurônios motores, promovendo certos comportamentos reflexos, como o freezing (ou congelamento), em que a musculatura esquelética é totalmente paralisada, fazendo com que o fiquemos completamente imóveis diante de uma situação de perigo. O freezing é um comportamento útil em situações de perigo distal, isto é, em que uma ameaça não está tão próxima a ponto de justificar uma reação de luta e fuga, sendo melhor ficar imóvel e em silêncio, aguardando a cessação do perigo, de forma a economizar uma enorme quantidade de energia a ser investida em um possível enfrentamento ou fuga. Mas a amígdala também 56

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se conecta a diversas estruturas corticais, participando da regulação de aspectos cognitivos da resposta emocional, como atenção, memória e processos de tomada de decisão. Como foi discutido logo acima, a amígdala está constantemente “atenta” a estímulos ambientais sugestivos de perigo ou de recompensa. De fato, alguns estímulos são naturalmente dotados de valência ou competência emocional positiva (reforçadora) ou negativa (aversiva), isto é, não é necessário nenhum aprendizado para o reconhecimento do que estes estímulos significam. Em psicologia comportamental eles também são chamados de estímulos não condicionados. Através do aprendizado associativo ou condicionamento somos capazes de “carregar” estímulos naturalmente sem competência emocional de um potencial para desencadear respostas emocionais. Estes estímulos passam, então, a ser chamados de estímulos condicionados. A amígdala tem um papel essencial no fenômeno de condicionamento clássico (ou Pavloviano), isto é, a capacidade de deflagramos uma resposta emocional frente a um estímulo inicialmente sem valência emocional (por exemplo, um som ou uma luz), o qual foi condicionado através do pareamento com um estímulo não condicionado (por exemplo, presença de alimento ou um choque elétrico). Vejamos com isso funciona com um pouco mais de detalhe. Suponha que condicionemos um animal experimental pareando um som (estímulo condicionado) e um choque elétrico (estímulo não condicionado). O animal condicionado apresentará respostas emocionais de medo caracterizadas por alterações de sua frequência cardíaca e respiratória, pressão arterial e liberação de substâncias relacionadas ao estresse cada vez que ouvir aquele som, mesmo que não receba o choque em seguida, pois sua mente aprendeu que outra experiência desagradável acompanha aquele som. É verdade que, se não receber o choque pareado ao som outras vezes, o condicionamento se extingue, ou seja, o animal “se esquece” da relação entre o estímulo sonoro e o estímulo doloroso. Ainda bem que isso acontece, pois não seria conveniente que houvesse armazenamento de todas as informações relacionadas a associações entre estímulos condicionados e não condicionados, mesmo aqueles pouco significativos ou com baixa frequência de ocorrência, pois isto seria um gasto desnecessário de energia. Todavia, muitos pacientes ansiosos parecem nunca se esquecerem de determinadas associações espúrias que acabam fazendo entre eventos não necessariamente relacionados ou meramente coincidentes. Existem pacientes que ficam ansiosos quando, por exemplo, transitam por 57

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lugares onde anteriormente tiveram uma crise de pânico. Estas crises costumam ser muito dramáticas, apesar de aparentemente inofensivas, e se caracterizam pelo aparecimento súbito e inexplicável de sintomas como taquicardia, falta de ar, sensações de formigamento em extremidades, tonturas, desconforto abdominal e sensação de morte súbita ou de enlouquecimento. Evidentemente o quadro é bastante intenso e, como qualquer experiência emocional dramática, nossa mente “exige” uma explicação, nem sempre imediatamente disponível, a respeito do que aconteceu. É comum e compreensível que quem quer que seja que sofra uma crise de pânico passe a acreditar que teve um mal súbito cardíaco e que é necessária uma investigação médica urgente, afinal de contas, esta seria uma explicação plausível. Quem já teve um ataque de pânico costuma desenvolver temores recorrentes de voltar a ter outro episódio semelhante, o que explica muitos comportamentos de esquiva. Para quem sofre de pânico normalmente é difícil aceitar que todos aqueles sintomas foram “apenas uma crise emocional”, por isso é comum que estes pacientes aceitem procurar um profissional de saúde mental para se tratarem. Pois bem, em muitos dos casos descritos a amígdala parece estabelecer uma associação entre o episódio de pânico e quaisquer estímulos sensoriais presentes no momento daquele evento, promovendo o receio – reconhecido pelos próprios pacientes como absurdo – de transitar por aqueles locais, achando que assim evitam o risco de terem aqueles sintomas novamente. Mas voltemos ao animal condicionado: o que faz com que ele se condicione? A função de “memória” e de “aprendizado” da amígdala. Embora ela não seja um reservatório de memórias declarativas, ela é capaz de “se recordar” ou de “aprender”. Vejamos como a amígdala desempenha esta tarefa examinando o trajeto seguido por cada um dos estímulos que nosso animal experimental recebeu pelo sistema nervoso central e de que forma é feita a associação entre ambos. Conforme aprendemos acima, o som segue suas vias sensoriais até o tálamo, uma das estações de retransmissão sensorial e, em seguida, para o córtex auditivo primário. O choque é um estímulo nociceptivo ou nocivo; portanto, existem receptores para estímulos dolorosos distribuídos pela superfície do corpo e estes receptores podem ser mecânicos, térmicos e químicos, para os diferentes tipos de dores que eles transduzem. Os sinais destes receptores seguem por vias sensoriais até o tálamo e depois, para o córtex somatossensorial primário. Todavia, tanto o estímulo doloroso quanto o sonoro são tratados conjunta e diretamente pela amígdala, mais precisamente por um de seus 58

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núcleos, o núcleo lateral, antes de serem processados pelos córtices sensoriais primários. A amígdala, ao processar conjuntamente os dois estímulos, associa-os, através de modificações sinápticas, de forma que o som, antes um estímulo sensorial neutro, passe a ser capaz de deflagrar respostas corporais ao estresse, como o aumento da frequência cardíaca, respiratória e da pressão arterial, liberação de substâncias do estresse e, quando conveniente, comportamentos motores do tipo freezing ou de luta e fuga. O aprendizado proporcionado pela amígdala é do tipo associativo, baseado no pareamento entre dois estímulos, onde um deles tem valência emocional negativa ou positiva. Tratase de um aprendizado (ou de uma memória) reflexo, implícito ou não declarativo, que gera respostas automáticas. No entanto, nada impede que o material “aprendido” pela amígdala adquira um caráter mais explícito e isso é possível graças às conexões que ela tem com o hipocampo. Por esta razão é que aquelas associações “acidentalmente” feitas pela amígdala de indivíduos ansiosos passam também a ter um caráter explícito, tornando-os conscientes de que têm receio de passar por este ou por aquele local, evitando-os ostensivamente, e não simplesmente disparem reações ansiosas automáticas quando passam por ali, embora isso também ocorra. Como o ser humano é uma espécie altamente social, somos muito dependentes de nossa capacidade de “decifrar” as pessoas, isto é, compreender de forma espontânea e automática, quais são seus estados mentais. Isso porque ao estarmos aptos para reconhecer implicitamente desejos, crenças e intenções das outras pessoas, isto é, de gerar representações mentais dos estados mentais delas, conseguimos prever seus comportamentos com uma boa probabilidade de acerto. Estudos de neuroimagem funcional mostram que a atividade da amígdala aumenta quando somos expostos a expressões faciais, particularmente expressões de medo, raiva, nojo e prazer, consideradas emoções simples ou básicas. Pois bem, sendo as expressões faciais das pessoas com quem vivemos marcadores ambientais fundamentais em nossa espécie, é compreensível porque a amígdala está tão atenta a elas: estas expressões podem nos dar sinais muito confiáveis das intenções destas pessoas, mas também podem nos alertar a respeito de perigos detectados primeiramente por elas. Suponha que você está andando por uma trilha selvagem junto de um amigo e que ele veja uma serpente antes de você. Por conta da sensibilidade que sua amígdala tem por faces humanas, ela será muito rápida em captar as expressões faciais de seu amigo após ele ter visto a serpente, e de interpretar, embora em um nível subconsciente, que ele encontrou alguma coisa 59

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ameaçadora. Lembre-se também do que acontece na mente de seu amigo. A amígdala dele percebe a serpente em um nível pré-consciente e dispara sinais para o corpo para que ele tome providências de fugir, congelar ou lutar antes que ele tenha consciência do que acaba de ver. Mas interações sociais também são pautadas por estados emocionais complexos, os quais abrangem sentimentos como vergonha, culpa, orgulho, indignação e desprezo, que, ao contrário de emoções mais simples, não ocorrem de forma tão automática e incluem um viés cognitivo importante. Estas emoções são processadas em outras áreas corticais, incluindo as regiões órbitofrontal e medial do córtex pré-frontal, cujas lesões podem levar a comportamentos antissociais, como desobediência a regras e normas sociais, desrespeito ao direito dos outros e falta de empatia. Como vimos acima, disfunções em circuitos órbitofrontais laterais costumam ser acompanhados de comportamentos impulsivos, irritabilidade e desregulação emocional, que são muito comuns não apenas em sociopatas, mas em outros transtornos de personalidade, causando problemas no convívio social. Mas problemas na expressão destas emoções ocorrem em praticamente todos os transtornos mentais. A afetividade humana é extremamente complexa e tentar estudar o repertório emocional humano restringindo-se às emoções básicas comunicadas pelas expressões faciais é correr o risco de empobrecer o assunto. Atualmente a compreensão neurobiológica do grupo das emoções denominadas secundárias, morais ou sociais tem se desenvolvido muito. E aqui, como em muitas áreas da neurociência, é difícil separar o estudo das emoções complexas de sua relação com a cognição social. Uma evidência desta associação é a grande superposição de áreas cerebrais que são ativadas tanto por estas emoções quanto por outras operações mentais relacionadas ao convívio social, tais como a percepção de pistas sociais (que ativa a junção temporoparietal, uma importante área do cérebro social) e o conhecimento conceitual social (que recruta o córtex temporal anterior) (Fontenelle e cols, 2015). Observadas em contextos sociais, estas emoções podem ser categorizadas como pró-sociais e socialmente aversivas. Emoções pró-sociais como culpa, vergonha, embaraço, compaixão e gratidão levam à cooperação, reciprocidade e conformidade social. Algumas das emoções prósociais estão presentes nas relações entre pais e filhos e entre cônjuges, por exemplo; outras aparecem na ligação que podemos desenvolver com outras coisas, como a 60

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natureza, valores, ideias e crenças. Emoções socialmente aversivas como o desprezo, a raiva e a indignação são experimentadas diante da observação da violação de direitos ou regras e comumente deflagram comportamentos agressivos, punição, dissolução de grupos sociais e sua reorganização. É difícil descrever a essência fenomenológica das emoções. No entanto,quando as experimentamos, sabemos muito bem a que elas servem. Por exemplo, o nojo, considerado uma emoção básica, pode ser definido como o sentimento de repulsa relacionado à perspectiva de se colocar na boca algo supostamente contaminado. Todavia, a evolução parece ter selecionado mais um papel para esta emoção, em contextos sociais, fazendo com que ela sirva tanto para a proteção do corpo (quando sentimos o que é chamado de “nojo essencial”, por exemplo, diante da perspectiva de ingerir comida contaminada), quanto para a proteção da “alma” em situações onde aspectos morais estão em jogo. Situações de violação de regras e normas sociais e crimes cometidos por outras pessoas podem nos causar fortes sentimentos de desprezo e de indignação (“nojo moral”) dirigidos ao agente daquelas ações, como que para nos protegermos da “contaminação” por elas. Todavia, o tipo de violação de regras que deflagra o nojo social é predominantemente de ordem corporal, como agressão física ou sexual. Veremos que violações de normas sociais estão mais relacionadas ao sentimento de indignação. Regiões cerebrais simultaneamente ativadas pelo nojo essencial e moral incluem a amígdala, os gânglios da base, o córtex órbitofrontal lateral, a ínsula, o córtex anterior do cíngulo, o córtex temporal inferior. Embora tanto o nojo essencial quanto o nojo moral gerem o mesmo tipo de representação, parece que eles recrutam seletivamente diferentes regiões corticais. Assim, o nojo moral parece ativar adicionalmente o córtex da junção temporoparital, uma das áreas relacionadas ao processamento da cognição social. Expressões psicopatológicas do nojo costumam aparecer nas fobias, nos temores que pacientes obsessivo-compulsivos podem ter de contaminação e de sujeira, mas também na repulsa que alguns pacientes podem desenvolver de si mesmos quando têm obsessões de temática violenta, sexual ou religiosa. Algumas pacientes anoréxicas desenvolvem repulsa por alimentos calóricos. A culpa aparece quando achamos que causamos algum tipo de dano a alguém, mas também pode ocorrer quando transgredimos alguma regra. Estudos de neuroimagem mostram que esta emoção complexa recruta as regiões anterior, dorsolateral e órbitofrontal lateral do córtex pré-frontal, o córtex temporal anterior, a 61

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ínsula, a amígdala, o córtex anterior do cíngulo e o sulco temporal superior. Logo, lesões nestas áreas podem estar associadas a comportamentos antissociais “adquiridos”, quando indivíduos com histórias pessoais de comportamentos adequadamente guiados do ponto de vista ético, passam a desenvolver atitudes egocêntricas, ilícitas ou imorais depois da lesão. Em contraste, a culpa patológica pode existir em estados depressivos, no transtorno do estresse pós-traumático (pacientes abusadas sexualmente podem sofrer de insuportáveis ideias de culpa e vergonha, incontroláveis através da argumentação de que não foram responsáveis pelo que aconteceu com elas) e em colecionadores patológicos (ao serem obrigados a se desfazerem de objetos). Sentimentos de culpa podem, ainda, surgir nas dependências químicas, normalmente após o consumo da substância, e, da mesma forma, em adições comportamentais, como a tricotilomania, no transtorno de escoriação, no jogo patológico e nos transtornos de controle dos impulsos. A raiva é um sentimento negativo frequentemente associado a algum obstáculo na trajetória que leva à realização de um desejo e não envolve, obrigatoriamente, um contexto moral. Mas a indignação sim. Ela costuma associar-se à percepção de injustiças ou de violação de regras sociais e, como vimos, ao contrário do nojo social, do qual pode compartilhar muitas características fenomenológicas, a indignação acontece mais frequentemente diante de violação de normas sociais. Muitas vezes a raiva e a indignação favorecem comportamentos agressivos. Áreas cerebrais como o córtex órbitofrontal lateral, o córtex pré-frontal dorsolateral, o córtex pré-frontal anterior, a ínsula, a amígdala e o córtex anterior do cíngulo são ativadas em indivíduos sentindo estas emoções. Condições psicopatológicas em que estes sentimentos são comuns incluem a mania, as psicoses, em alguns transtornos de personalidade (particularmente os transtornos paranoide e borderline) e também em indivíduos autistas. A vergonha é uma emoção presente quando existe uma ameaça à reputação e motiva a busca por reparar uma opinião positiva a nosso respeito, podendo associar-se a sentimentos de baixa autoestima. O embaraço é um tipo mais ameno de vergonha, pois, ao contrário desta, não precisa vir acompanhado de sentimentos de rebaixamento da autoestima ou do status social. Uma condição psicopatológica classicamente associada à presença de fortes sentimentos de vergonha relacionados ao escrutínio social é a fobia social, mas ela pode acontecer em várias outras condições, como a anorexia nervosa e os distúrbios da imagem corporal, o transtorno do estresse pós-traumático e a depressão. 62

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Regiões comumente recrutadas em estados mentais de vergonha incluem amígdala, ínsula, estriado ventral e o córtex pré-frontal dorsomedial. Conclusões O presente texto teve um enfoque psicobiológico, isto é, ele parte do princípio de que a mente é produto da atividade cerebral, mais especificamente do trabalho dos neurônios, que se organizam de forma peculiar em diferentes regiões do cérebro. Grande parte deste trabalho consiste na geração de representações mentais, que, grosso modo, são cópias, imagens ou mapas das coisas, do mundo, das pessoas e de suas mentes, de nosso espaço pessoal, do espaço a nossa volta e até mesmo de nossa própria atividade mental. Os transtornos psiquiátricos são condições em que existem subversões de representações mentais derivadas de processos patológicos afetando os neurônios responsáveis por elas. Ainda não somos capazes de identificar quais processos são estes, apesar de já termos recursos terapêuticos eficazes e relativamente seguros para corrigilos. Além disso, métodos de estudo da atividade cerebral, como a ressonância magnética funcional, já permitem a identificação de quais áreas estão mais ativas quando o cérebro desempenha uma tarefa específica. Estes estudos podem elucidar muito a respeito do que acontece no cérebro de pessoas sofrendo de transtornos psiquiátricos, já que muitos deles mostram ativação anômala de regiões do cérebro em várias destas condições. Portanto, o enfoque psicobiológico da mente normal e da mente perturbada é de imenso valor não só na busca de tratamentos biológicos para condições como a esquizofrenia, o transtorno bipolar, a depressão e os vários transtornos ansiosos, que tanto sofrimento trazem para as pessoas que delas sofrem, como para a compreensão de tratamentos tradicionalmente considerados “psicológicos”, como as psicoterapias e as reabilitações cognitivas. Dizer que estes tratamentos não têm um viés biológico é um subproduto de nosso dualismo intuitivo, que tem, em si, alguns riscos. Em primeiro lugar, a crença de que, por sua essência puramente psicológica, eles seriam inócuos. Em segundo lugar, sua aplicação “liberal”, destituída, por exemplo, de estudos de eficácia e segurança. Juntos, a percepção de que métodos terapêuticos psicológicos são inocentes e sempre seguros e o consequente uso indiscriminado de muitas destas técnicas, além de potencialmente prejudiciais aos pacientes, acabam por diminuir o interesse pelo estudo científico de seus “mecanismos de ação”, isto é, de como se dá sua ação no tecido cerebral, de forma a aliviar o sofrimento psíquico, bem como de possíveis efeitos indesejáveis decorrentes de sua aplicação. Como o leitor crítico certamente observou, a 63

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discussão de muitos aspectos de neuroanatomia e neurofisiologia aqui realizada foi uma “visão panorâmica” destes instigantes temas, cujo principal objetivo foi o de estimular o seu interesse por buscar o aprofundamento do assunto através de textos onde há maior aprofundamento do assunto. E há muitos textos e artigos de excelente qualidade, alguns deles sugeridos na bibliografia a seguir. Além de uma introdução à neuroanatomia e à fisiologia do sistema nervoso central, procurei fazer algumas correlações entre processos subvertendo a normalidade fisiológica do sistema nervoso central e suas resultantes psicopatológicas. Estas correlações têm como principal objetivo mostrar ao leitor que, através do estudo das raízes biológicas do sofrimento psíquico, podemos encontrar algumas respostas e alguns insights sobre a origem cerebral da mente. Bibliografia Alcock J, Maley CC, Aktipis CA. Is eating behavior manipulated by the gastrointestinal microbiota? Evolutionary pressures and potential mechanisms. Bioessays. 2014 36: 940 – 949. Amaral DG, Strick PL. The Organization of the Central Nervous System. In: Kandel ER, Schwartz JH, Jessell TM, Siegelbaum SA, Hudspeth AJ. Principles of Neural Science 5th Edition 2013 McGraw-Hill Companies Inc., 337 – 355. Amaral DG. The Functional Organization of Perception and Movement. In: Kandel ER, Schwartz JH, Jessell TM, Siegelbaum SA, Hudspeth AJ. Principles of Neural Science 5th Edition 2013 McGraw-Hill Companies Inc., 356 – 369. Anisman H, Merali Z, Poulter MO, Hayley S. Cytokines as a precipitant of depressive illness: animal and human studies. Curr Pharm Des. 2005; 11: 963–972. Arend I, Machado L, Ward R, McGrath M, Ro T, Rafal RD. The role of the human pulvinar in visual attention and action: evidence from temporal-order judgment, saccade decision, and antisaccade tasks. Prog Brain Res. 2008;171:475-83. Bear MF, Connors BW, Paradiso MA. Neurociências. Desvendando o sistema nervoso. Artmed, 2002. Blackmore S. Consciousness: a very short introduction. Oxford University Press, 2005.

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