Neutralidade analítica e pensamento oriental

June 4, 2017 | Autor: Marlos Terencio | Categoria: Psicanálise, Filosofia e psicanalise, Psicanálise e Religião
Share Embed


Descrição do Produto

Marlos Gonçalves Terêncio NEUTRALIDADE ANALÍTICA E PENSAMENTO ORIENTAL Aproximações conceituais entre diferentes produções do pensamento humano, tal como aqui será proposto entre a psicanálise e determinadas filosofias orientais, costumam gerar dificuldades quanto a aspectos epistemológicos e metodológicos. Uma das dificuldades concerne ao fato de que um trabalho de gênero comparativo só se faz no âmbito das analogias. Logo, parece-me importante assinalar que nesta comunicação as analogias serão mantidas em seus devidos lugares: não farei mais do que aproximações entre conceitos e práticas que não se equivalem, e levarei em conta que são irredutíveis as especificidades de cada sistema de pensamento em debate. Por sua própria natureza o empreendimento comparativo também pode não ser bemvindo a pensadores representativos das disciplinas em pauta. Questiona-se qual seria a utilidade da construção de paralelos, uma vez que grandes muros conceituais e culturais, além dos geográficos e temporais, distanciam as elaborações em questão. No caso específico da psicanálise, é compreensível que cause estranheza a proposta de um diálogo com as chamadas “filosofias orientais”, pelo simples fato de que entre elas e a invenção freudiana não é fácil vislumbrar semelhanças que motivem aproximação. A estas objeções responde-se que o procedimento comparativo, tal como será realizado nesta comunicação, visa tão somente explicitar algumas possibilidades de diálogo que motivem a criação de um espaço fértil para o desenvolvimento de um novo olhar sobre a neutralidade analítica. É importante frisar que esse esforço não perderá de vista que a psicanálise nada ter a ver com religiões e misticismos no que concerne às ilusões motivadas pelo desejo de proteção de um pai todo-poderoso ou de regressão a uma experiência egóica indiferenciada. Para começar, vale lembrar e explicitar aqui alguns aspectos do interesse do próprio Lacan pelo Extremo Oriente, partindo-se do empenho biográfico desenvolvido por Elisabeth Roudinesco. Pouco se comenta não ser apenas a letra chinesa e sua relação com o inconsciente que interessavam ao mestre francês, senão também as duas grandes filosofias nativas da China: o taoísmo e o confucionismo. Motivado por tal interesse, em 1969, Lacan procurou a colaboração de François Cheng – sinólogo, filósofo e poeta chinês – dando origem a uma relação de trabalho intensiva e profícua que só veio a se desfazer em 1973, por necessidade do último. Esta ruptura não se

Neutralidade analítica e pensamento oriental

2

efetivou sem protestos por parte de Lacan, o que permite entrever a importância do contato para ele. Como é sabido, o que Lacan buscava no ensino de Cheng eram principalmente maneiras em que a filosofia chinesa pudesse auxiliá-lo na formalização da tópica do Real, Simbólico e Imaginário. E foi precisamente no principal clássico taoísta intitulado Tao-te Ching, atribuído ao filósofo Lao-Tzu, que, segundo Roudinesco, Lacan encontrou inspiração para uma nova definição do real dentro do quadro da “teoria dos nós”. O clássico de Lao-Tzu, escrito por volta do quinto século a.C., é constituído de 81 aforismos que tratam essencialmente da experimentação de uma realidade para além de todo e qualquer esforço de simbolização. Esta realidade é definida como o Tao e sua essência é indicada como vazia, o próprio nada. Entretanto, o Tao é simultaneamente definido como o caminho daquele que se aventura pelo que transcende a representação. É justamente essa noção de vazio que toca Lacan em sua tentativa de cernir o real de uma análise. O vazio taoísta não é, portanto, uma ausência estéril, mas uma não-existência a partir da qual toda criação se torna possível. É como um palco que sustenta a grande peça da existência: o que seria dos atores sem um palco para atuar? Cito um trecho ilustrativo do 11º aforismo do Tao-te Ching: “Trinta raios cercam o eixo: a utilidade do carro consiste no seu nada”. O vazio é aqui representado pelo eixo da roda: é a ausência no centro deste objeto que sustenta o movimento de todos os raios e permite uma roda ser o que ela é. Com essa noção em mente podemos perceber uma certa compatibilidade com o sujeito concebido a partir do pensamento lacaniano: sujeito sem essência, falta-em-ser, significante para outro significante. Um fluxo constituído pelo desejo que só faz girar em torno de uma falta irreconciliável com a ordem simbólica. A questão da natureza do desejo nos remete sem dúvida também ao budismo e sua versão nascida do encontro com o taoísmo: o zen. Referências a essas práticas passam a ser algo freqüentes na obra de Lacan a partir do Seminário 10 - “A angustia”, em 1963, quando ele havia recém retornado de viagem ao Japão, na qual inclusive visitou mosteiros. Neste seminário Lacan mostra-se intrigado com o fato de que práticas religiosas de origem tão longínqua e diversa poderem resumir-se numa fórmula que o psicanalista também deve enunciar – de que o desejo é uma ilusão, um movimento sem fim em busca de algo que nunca existiu. O desejo gira em torno deste nada que Lacan convencionou como objeto a, causa primeira e última do desejo. Se a neutralidade analítica entendida pela psicanálise lacaniana diz respeito essencialmente a fazer-se semblante do objeto a, poderíamos dizer que o analista

Neutralidade analítica e pensamento oriental

3

deve saber encarnar esse vazio fértil de inspiração taoísta, tal como afirma a psicanalista Mônica Torres, da Escola de Orientação Lacaniana de Buenos Aires, em seu trabalho “A neutralidade lacaniana”. Como também esclarece Eric Laurent, é esse precisamente o Tao do psicanalista, o seu caminho, que se define em permanecer imóvel quando ao redor tudo é movimento. Em outras palavras, é saber fazer-se de palco, de sustentação para o desfile de significantes que constituem o analisante. Traduzo aqui um trecho significativo do Seminário 24. Nele Lacan afirma ser “a neutralidade do analista senão justamente isso, essa subversão do sentido, a saber, essa espécie de aspiração não para o real mas pelo real” . Uma maneira de entender esta aspiração do analista pelo real é justamente como semblante de um vazio que está além e ao mesmo tempo é fonte de toda representação. É nesta posição que ele pode atuar não como sujeito suposto saber, num posicionamento que construiria novos sentidos para um sujeito que sofre justamente pelo excesso destes, mas, ao contrário, promovendo um caminho de desconstrução ou esvaziamento. Se formos coerentes com a posição lacaniana de que não há uma hermenêutica psicanalítica, podemos entender que o intérprete por excelência não é o analista, mas, ao contrário, é o eu do analisante. E o trabalho analítico vai justamente apontar que tipos de significados ele construiu para a vida em sua incansável atividade semântica. Trata-se aqui da subversão do sentido que Lacan defende em sua segunda fase intelectual. É interessante notar que seus estudos aprofundados em filosofia chinesa são concomitantes com as elaborações sobre a clínica do ato ou do real, que resultam numa dialetização do faire savoir pelo savoir-faire com o não sabido. Esta coincidência não é mero acaso, já que o caminho taoísta também segue uma orientação – por assim dizer, desconstrucionista – que podemos depreender das próprias palavras de Lao-Tzu no seu 48º aforismo: “Quem pratica o estudo aprende mais a cada dia, quem pratica o Tao diminui a cada dia.”. Desta forma, o atravessamento do fantasma pode ser visto como as dolorosas confrontações com as camadas imaginárias que deram base ao eu a partir dos significantes do Outro, suportes que se desmontam e direcionam o sujeito a ater-se ao seu vazio radical, à experimentação do sem sentido de sua existência – ainda que, a rigor, permaneçamos sempre colados ao sentido, como lembra Lacan. Tal mudança de posição subjetiva não é fácil, visto que o eu percebe o desmonte de seus significados como a própria morte, a despedida cheia de pesar da onipotência imaginária.

Neutralidade analítica e pensamento oriental

4

No processo analítico essa fixidez semântica tende pouco a pouco à desestabilização. Desta forma, a direção da cura também lembra a imagem da roda citada por Lao-Tzu, pois o sujeito, agora confrontado à experiência do vazio-em-ser, da castração, passa a ter a opção de tornarse cada vez mais desejo em fluxo. A experiência do vazio transforma-o em projeto, incessante vir-a-ser. Para encerrar esta idéia, vale lembrar novamente o texto de Mônica Torres, ao se referir à noção de Tao simultaneamente como vazio e caminho. Traduzo algumas de suas palavras: “O analista deve encarnar esse vazio e esse vazio se faz causa de que o sujeito encontre seu caminho”. Outras noções lacanianas relacionadas com a neutralidade analítica também dão margem a paralelos com a filosofia oriental. Sabemos, por exemplo, que o semblante do objeto a diz respeito claramente à posição do morto e à dessubjetivação do analista. Não é difícil perceber uma certa compatibilidade destas noções com a meta de dissolução do eu, comum ao taoísmo, ao budismo e ao zen-budismo. Um mestre budista concordaria com Lacan ao considerar o eu como o sintoma humano por excelência, a doença mental do homem, ainda que as noções de eu nestes dois sistemas de pensamento tenham apenas correspondência aproximada. Os psicanalistas, por sua vez, haveriam de concordar com o budista, quando este afirma ser o eu apenas uma ilusão. Não só concordamos como também sabemos que o eu é nada mais que uma coleção de imagens, o habitante do registro do engodo. O psicanalista André Camargo Costa, em artigo publicado na revista Percurso com o título “Lacan e a arte zen do psicanalista”, chama a atenção para a analogia que o próprio Lacan desenvolve, ainda que rapidamente, entre a psicanálise e o budismo zen na abertura de seu primeiro seminário. Percebe Lacan que a técnica zen consiste numa recusa de todo sistema, sistema que vai definir na seqüência de sua comunicação como correspondente ao eu humano. Sabemos que a psicanálise não tem meta assim tão radical como a morte do eu, mas temos que reconhecer que a arte do analista, a posição subjetiva que dele se espera, demanda uma suspensão de seu eu, caso contrário teríamos que abandonar o retorno à Freud do movimento lacaniano e retomar noções como intersubjetividade e identificação com a “parte sã” do eu do analista. Deste modo, entendo que formas de dessubjetivação são essenciais tanto no fazer do analista como na prática daquele que se utiliza dos métodos de meditação orientais. Apesar dos objetivos diversos, há, em ambos os casos, a experiência de uma certa abstinência do

Neutralidade analítica e pensamento oriental

5

desejo, em seu sentido comum, e do saber, na medida em que o sujeito se dispõe a aproximarse da experiência do vazio. Além destas, há ainda uma outra forma de abstinência compatível entre ambos os sistemas, que diz respeito aos processos de atenção ou escuta. É possível distinguir similaridades nas características da atenção uniformemente flutuante e de algumas formas de meditação, na medida em que esta última possa ser corretamente definida. Há uma multiplicidade de métodos de meditação assim como há inúmeros malentendidos a respeito do que elas significam em termos práticos. Essencialmente elas se afastam tanto da concentração como da auto-hipnose, e dizem respeito unicamente ao desenvolvimento de uma atenção sobre os conteúdos da própria consciência, sem nenhum tipo de seleção ou julgamento. Trata-se de uma observação que apenas testemunha, sem refletir sobre algum conteúdo em particular. É talvez, por assim dizer, uma introspecção flutuante. Como já foi mencionado, os objetivos que motivam a utilização dessas formas de escuta são claramente divergentes na psicanálise e nas filosofias orientais. Mas vale apenas notar que a neutralidade na investigação do psiquismo em ambas as práticas derivam, em parte, de uma estratégia de atenção diferente daquela produzida naturalmente na vida cotidiana, por que se afasta da seleção, da reflexão e do julgamento do material significante, o que resulta numa libertação dos sentidos convencionais da palavra. Finalizando, quero enfatizar que todas as considerações expostas nesta comunicação demandam que relativizemos a importância do aspecto dogmático e doutrinário que certamente existe nas filosofias orientais. Parto do entendimento de que o verdadeiro meditador nada tem a ver com o crente, pois aferra-se somente a sua introspecção e descarta toda a doutrina na medida em que esta torna-se um empecilho para a investigação da natureza vazia de seu psiquismo. Neste ponto de vista, lembra o historiador japonês D.T. Sukuzi que o zen-budismo, por exemplo, “não dá nenhuma importância intrínseca às escrituras sagradas ou à sua exegese pelos sábios e pelos doutos. A experiência pessoal atua vigorosamente contra a autoridade e a revelação objetiva”. E é numa perspectiva subversiva análoga que entendo a psicanálise, enquanto prática que liberta da servidão ao saber do Outro. Mas, acima de tudo, entendo-a como um método de investigação do psiquismo, de forma que todo o aparato teórico e doutrinal deve estar permanentemente aberto a uma revisão que, por sua vez, nasce das descobertas realizadas na prática efetiva de cada sessão de análise.

Neutralidade analítica e pensamento oriental

6

REFERÊNCIAS COSTA, André Camargo. “Lacan e a arte zen do psicanalista”. Percurso, nº34, 2005. LACAN, Jacques. La Angustia. 1962/63. [Inédito] Seminário 10. LACAN, Jacques. Lo no sabido que sabe de la una-equivocación se ampara en la morra. 1976/77 [Inédito]. Seminario 24. LAO-TZU. Tao-te Ching. (Texto e comentário de Richard Wilhelm). São Paulo: Pensamento, 1995. LAURENT, Eric. “Su control e el nuestro”. Freudiana: Revista psicoanalítica publicada en Barcelona. [disponível em http://www.ilimit.com/cdcelp/freudiana]. ROUDINESCO, Elisabeth. Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. SUZUKI, D.T. Conferências sobre Zen-Budismo. In: SUZUKI, D.T.; FROMM, E.; DE MARTINO, R. Zen-Budismo e Psicanálise. São Paulo: Cultrix, 1970. TORRES, Mônica. “La neutralidad lacaniana”. Jornadas de la Escuela de Orientación Lacaniana 2003: Más Allá de la neutralidad analítica. [disponível em: http://www.eol.org.br].

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.