Neutralidade de Rede: a Evolução Recente do Debate

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Biblioteca Digital Revista de Direito de Informática e Telecomunicações - RDIT, Belo Horizonte, ano 4, n. 7, jul. 2009

Neutralidade de rede: a evolução recente do debate Jorge Oliveira Pires Luis Fernando Rigato Vasconcellos Cleveland Prates Teixeira Resumo: Este artigo procura mostrar que está em curso uma mudança na tendência vista anteriormente como predominante nos EUA, contrária à neutralidade de rede. Essa mudança tem sua origem em casos concretos de bloqueio de conteúdo ou degradação de conexão e no avanço de argumentos econômicos a favor da neutralidade, com base na literatura sobre mercados de dois lados. Palavras-chave: Neutralidade de rede. Internet. Economias de rede. Eficiência. Mercados de dois lados. Sumário: Introdução - Neutralidade de rede: definição - O que é discriminação de conteúdo e quais são as suas justificativas? - Formação de preços em mercados de dois lados e discriminação de conteúdo - Conclusões

Introdução Nos últimos anos, e a bem da verdade, nos últimos meses, o debate sobre a implementação formal de regras que permitam a manutenção da “neutralidade” da rede mundial de computadores tem apresentado novidades. Dentre essas novidades pode-se enumerar: - a adoção desse princípio por autoridades de alguns países, como, por exemplo, o Ministério do Interior e das Comunicações do Japão e a Autoridade Postal e de Telecomunicações da 1 Noruega; - a instalação de consulta pública, tanto nos EUA como no Canadá, para escrutínio das práticas de gerenciamento de tráfego de internet dos Internet Service Providers (ISPs);2 - a recente mudança de postura por parte da agência reguladora das telecomunicações nos EUA, Federal Communications Commission (FCC), no sentido de perseguir mais agressivamente a neutralidade como objetivo regulatório; - a proposição, nos EUA, novamente, de projeto de lei que altera o Communications Act para incluir princípios de neutralidade de rede (não houve sucesso nas tentativas anteriores de aprovar legislação semelhante);3 - a criação de instrumentos para inspeção do conteúdo dos pacotes transmitidos pela Internet (deep packet inspection); e - o surgimento de alguns novos argumentos, tanto contra, quanto em favor da neutralidade, com base em teorias de formação de preços em mercados de dois lados. Uma dentre as mais importantes dessas novidades foi o anúncio por parte da FCC de proposta de adoção de dois novos princípios (em adição aos quatro já existentes) para balizar a sua ação no que 4 diz respeito à internet. São eles: o princípio da não discriminação e o princípio da transparência. Em conjunto, eles podem ser interpretados como uma manifestação da vontade das autoridades dos EUA (ou ao menos de parte delas) de adotar a neutralidade de rede como um fio condutor da política de regulação da internet naquele país. Ainda que a adoção de uma política de neutralidade de rede não seja fato consumado, pois se trata apenas de uma proposta, o anúncio da FCC é uma importante mudança de rota, mudança esta que parece ser reflexo das experiências recentes vividas no âmbito do próprio FCC. Em especial, faz-se referência ao julgamento de mais um importante caso concreto envolvendo a noção de neutralidade 5 de rede, nomeadamente o caso Comcast – BitTorrent, em que foi constatada a degradação da conexão de usuários com base no conteúdo transmitido, mais precisamente com base no tipo de

aplicação utilizada por esses usuários. Também parecem ter sido importantes as lições tiradas da consulta pública implementada para definir as condições sob as quais as práticas de gerenciamento do tráfego de internet dentro das redes dos ISPs poderiam ser consideradas razoáveis. Para uma avaliação mais apurada dos benefícios de uma regulação da internet que venha a adotar o princípio da neutralidade de rede é preciso analisar de forma mais detalhada os seus efeitos sobre a eficiência do mercado de banda larga, incluindo as questões concorrenciais pertinentes a tal mercado. Essa eficiência precisa, como veremos, ser considerada também sob a perspectiva dinâmica, isto é, dos ganhos e perdas de bem-estar ao longo do tempo. Contudo, é preciso lembrar que o impacto da neutralidade de rede não se restringe a esse tipo de questão, há desdobramentos importantes sob outros pontos de vista, como (i) o da facilitação que a internet pode representar em termos do comércio em geral, (ii) das questões envolvendo direitos do consumidor e (iii) da liberdade de expressão. Esses aspectos não podem ser considerados menos importantes, apesar de não serem alvo de uma avaliação extensiva neste artigo. Este artigo está dividido em três seções, além desta introdução. Na seção 2, é oferecida uma definição do conceito de neutralidade de rede, passo inicial para qualquer análise. Na seção 3, é caracterizada a discriminação de preços proposta pelos detentores de infraestrutura e algumas de suas justificativas são analisadas. Em seguida, na seção 4, são analisados aspectos relacionados aos impactos de eficiência dessa discriminação, a partir de um arcabouço de mercado de dois lados. A seção 5 traz algumas conclusões sobre o avanço recente do debate.

Neutralidade de rede: definição O passo anterior a qualquer análise sobre o impacto da neutralidade de rede na eficiência econômica é definir o que se entende por neutralidade de rede. Fundamentalmente trata-se de um princípio sob o qual os usuários da internet teriam o direito de acessar qualquer tipo de conteúdo, serviços e aplicações de cunho legal, conforme sua vontade, sem a interferência de operadores de rede ou de governos. Sob um ponto de vista prático, isso significa que todo tráfego, isto é, todos os pacotes de dados transmitidos utilizando o Internet Protocol (IP) deveriam ser tratados da mesma forma, independentemente do seu conteúdo, da sua origem ou destino, da aplicação ou dos equipamentos utilizados. Em outras palavras, não deveria ser permitido o bloqueio ou tampouco a degradação da conexão no acesso a quaisquer sítios, serviços, aplicações ou mesmo com base nos tipos de informações específicos que são transmitidos. A definição de neutralidade expressa acima é razoavelmente ampla. O princípio genérico de neutralidade pode então ser analisado sob vários pontos de vista: econômico, social, político e de liberdades individuais. Ou seja, os detalhes dessa discussão passam, assim, por temas variados que vão desde a eficiência econômica, à liberdade política e à liberdade de expressão de ideias. Não espanta, assim, que o debate em torno do tema seja acirrado e que por vezes ocorra de a definição do conceito de neutralidade de rede se tornar confusa, exatamente por abarcar tamanha gama de questões. Em especial, é comum no debate leigo que haja uma confusão da ideia de neutralidade de rede com a de uma regulação que impediria a discriminação de preços com base na largura de banda (e, portanto, na velocidade de acesso). Ora, isso é um grande equívoco. A discriminação de preços com base na velocidade de acesso já existe e tem plena justificativa na análise de eficiência econômica, como se verá mais adiante. A ideia de neutralidade da rede esteve subjacente a todo desenvolvimento da internet, na medida em que a concepção e desenvolvimento desta se deu sob o princípio end-to-end. Sob tal princípio toda inteligência da rede é colocada em suas margens (nos dispositivos dos usuários finais), e não em seu núcleo. Assim, os dispositivos de roteamento em meio à rede apenas desmontam os pacotes de dados gerados pelos usuários ou servidores de conteúdo e os endereçam aos seus destinatários, onde ao final serão remontados para compor uma mensagem de e-mail, uma página no browser, etc. A transmissão desses pacotes de dados deve então se dar de roteador a roteador, até que chegue ao seu destino. Quando um pacote chega a um determinado roteador a retransmissão para outro roteador segue o princípio do best effort, o que significa dizer que será feito o possível para que esse pacote seja retransmitido o mais rapidamente possível, mas não há garantias de que isso vai efetivamente ocorrer. Frequentemente há descarte de pacotes em razão de congestionamento, em especial quando a memória buffer não dá conta da quantidade de informações recebida num determinado momento. Os softwares que usam o protocolo IP são então capazes de detectar pacotes 6 descartados e depois recuperá-los. Esse tipo de estrutura revela a concepção original da internet

como uma rede redundante, isto é, sua capacidade de se manter em operação mesmo que segmentos inteiros sejam fisicamente destruídos. Uma conclusão inicial que se pode tirar do que foi analisado até agora é a de que a negação do princípio da neutralidade necessariamente representa um rompimento com as ideias originais da concepção da internet e uma mudança de rumo cujas consequências precisam ser muito bem escrutinadas. Ainda que esse rompimento seja claro, sob o ponto de vista lógico é preciso analisar se há razões para que o princípio de neutralidade continue vigorando. O design com “inteligência nas pontas” garantiu até o momento que os empreendedores que desenvolvem aplicações e serviços tivessem a possibilidade de acessar todo e qualquer usuário 7 conectado à rede. Com efeito, o debate em torno da neutralidade de rede é tido por alguns como o debate entre as pontas e o miolo da rede, pelo controle da mesma.8 Ou seja, a neutralidade seria defendida pelas empresas que ofertam serviços nas pontas da rede e criticada pelas empresas que 9 gerenciam o miolo da rede. Cada grupo gostaria que a maior parte da “inteligência da rede” fosse atribuída à porção sob seu controle. Isso porque quem detém a porção da rede com mais “inteligência” tem mais oportunidades de inovação e lucro.10 Mas que mudanças são efetivamente propostas pelos críticos da neutralidade de rede? Isto é, como a inteligência pode ser movida para o miolo da rede e que justificativas existem para que isso seja feito? Como se verá nas seções seguintes, os críticos da neutralidade de rede alegam que a possibilidade de discriminar conteúdos proporciona maior eficiência econômica, enquanto os defensores da neutralidade questionam essa visão, dizendo exatamente o contrário.

O que é discriminação de conteúdo e quais são as suas justificativas? O princípio da neutralidade de rede vem sendo questionado de maneira agressiva pelos detentores da infraestrutura de rede. O exemplo mais comumente citado desse questionamento é a declaração de Edward Whitacre Jr, CEO da SBC/AT&T:

Now what they would like to do is use my pipes free, but I ain’t going to let them do that because we have spent this capital and we have to have a return on it. [...] The Internet cannot be free in that sense, because we and the cable companies have made an investment and for a Google or Yahoo! Or Vonage or anybody to expect to use these pipes free is nuts!

Essa declaração ilustra um dos principais argumentos dos detentores de infraestrutura de rede para que não seja imposta a neutralidade: a necessidade de um retorno adequado sobre o investimento feito por eles. Segundo os provedores de infraestrutura, esse retorno só poderia ser obtido se eles fossem capazes de cobrar preços diferentes conforme o tipo de usuário. Ou seja, seria preciso discriminar preços. O argumento costuma ir um pouco além, com o acréscimo da ideia de que, sem o retorno adequado proporcionado pela discriminação de preços, não haveria incentivos para investimento na expansão da infraestrutura de rede. A pergunta que surge imediatamente, em face do argumento da necessidade de discriminar preços, é a seguinte: mas já não há discriminação de preços nesse mercado? A resposta a essa indagação é afirmativa, mas há que se fazer algumas ressalvas. A discriminação de preços com base na intensidade de uso já existe e tem sólido respaldo na análise de eficiência econômica. Seria impensável uma situação em que todos os usuários passassem a ter exatamente a mesma velocidade de acesso e a pagar o mesmo preço, pelo simples fato de que as necessidades de cada um são distintas. Portanto, é preciso ressaltar de antemão: o princípio da neutralidade de rede que se analisa aqui não está de forma alguma associado à homogeneização de larguras de banda e preços. Os provedores de infraestrutura de acesso já cobram dos seus usuários preços distintos, conforme a escolha de planos de acesso definidos por essas empresas. Cada plano de acesso costuma ter uma velocidade contratada e também uma franquia de volume de tráfego. O tráfego de dados que vai 11 além da franquia contratada pode ser cobrado em adição a uma fatura mensal fixa. Cada usuário escolhe o plano que se adapta às suas características de acesso, às suas necessidades. A discriminação que os provedores de infraestrutura propõem, contudo, é outra, em adição a essa.

A ideia é a de cobrar tarifas não apenas dos usuários do serviço de acesso (sejam eles empresas ou consumidores finais), mas também dos provedores de conteúdo para que produtos e serviços destes possam chegar à base de assinantes da rede (isto é, aos usuários que contratam o serviço de acesso do detentor da infraestrutura). Essa tarifa seria negociada caso a caso e poderia ser estipulada com base na qualidade do serviço contratado. Os ISPs alegam que é possível fazer um fracionamento da banda de tráfego em partes com qualidades de serviço distintas (tiering). É como se houvesse uma pista expressa, de alta velocidade e outra de menor velocidade, pelas quais poderiam viajar os pacotes de dados. Dessa forma os ISPs poderiam oferecer planos de serviços de qualidade superior aos provedores de conteúdo. Nesses planos as aplicações dos provedores de conteúdo poderiam chegar aos clientes da rede do ISP com maior rapidez. Para tanto seria preciso pagar um prêmio adicional, negociado caso a caso. Assim, por exemplo, o Yahoo! poderia negociar a contratação junto à AT&T de um plano de serviço de qualidade superior, sob o qual o acesso dos usuários finais da AT&T aos seus serviços de busca e de correio eletrônico seria bem mais rápido que o acesso aos serviços correlatos de seus 12 Alguns críticos da neutralidade de rede argumentam que deveria ser possível concorrentes. 13 inclusive a negociação de acordos de exclusividade no provimento desse serviço especial. Um exemplo fictício, ainda que usando nomes reais de agentes brasileiros seria o seguinte: o Mercado Livre, o Submarino e o UOL terem que pagar tarifas para a Telefónica, a Oi e a NET para que seus serviços on-line pudessem chegar de maneira eficaz aos assinantes do Speedy, do Velox e do Virtua. Caso esses provedores de conteúdo não desejassem pagar essas tarifas, o acesso a seus serviços ocorreria com uma velocidade menor ou, eventualmente, poderia ser até bloqueado. Uma justificativa frequentemente empregada para a discriminação com base no conteúdo é a de que ela propiciaria maior grau de concorrência entre plataformas ou entre redes, pois representaria uma maneira de competir com base na diferenciação de produto, algo que vai além da simples concorrência em preços e extensão da rede. Os detentores de infraestrutura de rede poderiam, segundo essa perspectiva, adotar diferentes abordagens para o gerenciamento do tráfego, introduzindo diversidade no mercado e procurando atender demandas heterogêneas dos 14 consumidores. Cada uma das plataformas (ADSL, cabo, BPL) poderia oferecer então um perfil diferente de tiering e os consumidores escolheriam aquele que melhor se adaptasse a suas necessidades. Uma possibilidade, por exemplo, seria a de um ISP oferecer prioridade para serviços que são muito sensíveis a atrasos de transmissão de pacotes, como é o caso do VoIP e do streaming de vídeo. Outro ISP poderia otimizar a sua rede para serviços de e-mail e navegação, enquanto um terceiro poderia oferecer condições de segurança diferenciadas para o comércio eletrônico. Os problemas com esse tipo de raciocínio são vários. Em primeiro lugar, haveria um aumento gigantesco dos custos de transação dos provedores de conteúdo, o que reduziria os incentivos para o desenvolvimento de novas aplicações. Isso porque seria preciso negociar e pagar tarifas a vários provedores de infraestrutura. No exemplo citado acima, mesmo os consumidores finais poderiam vir a precisar contratar mais de um provedor de infraestrutura de acesso, tendo os seus custos aumentados expressivamente. Em segundo lugar, haveria uma fragmentação da internet em porções que não conversariam bem entre si em razão de dificuldades deliberadamente criadas e cujas consequências em termos de perdas de efeitos de rede poderiam ser significativas. O bloqueio do acesso a determinados serviços poderia ser, nesse sentido, especialmente danoso. Os críticos da neutralidade de rede alegam, contudo, que em geral não há incentivos para que haja bloqueio de conteúdo, pois ele acabaria por reduzir o valor da própria rede para os usuários finais e isso não seria do interesse do ISP. O bloqueio só poderia vir a ocorrer nos casos em que a aplicação ou serviço ofertado pelo provedor de conteúdo concorre com serviços ofertados pelo próprio ISP (e.g.: VoIP e telefonia convencional). Segundo esses críticos, os casos de bloqueio deveriam ser então analisados no contexto habitual da conduta anticompetitiva derivada da integração vertical e 15 não haveria justificativa para uma regulação a priori com base no princípio da neutralidade da rede. Não há até o presente momento notícia de implementação comercial de esquemas de discriminação com base no conteúdo, isto é, de cobrança de tarifas dos provedores de conteúdo para acesso aos consumidores finais de uma rede. Em razão disso, alguns autores alegam que a discussão sobre a discriminação seria uma discussão em tese. Porém, existem casos concretos de bloqueio e degradação de conexão que contrariam, senão totalmente, ao menos em parte essa visão. Argumentos um pouco mais consistentes para justificar a necessidade de discriminação de conteúdo costumam ter por base as análises recentes de mercados de dois lados. Dada a complexidade dessa análise, optou-se por dedicar uma seção inteira a ela (a próxima).

Formação de preços em mercados de dois lados e discriminação de conteúdo A análise de mercado de dois lados tem sido extensivamente empregada em estudos sobre indústrias de rede. Os diversos produtos e serviços prestados por meio da internet, tais como, mecanismos de buscas, sites de conteúdos, aplicativos de e-mail e redes sociais, estão certamente entre os serviços que podem ser analisados sob essa perspectiva. De acordo com essa literatura, há normalmente um agente econômico que faz as vezes de um intermediário entre dois lados de um mercado, agindo como uma plataforma entre esses dois grupos. Na realidade, tal tipo de estrutura de mercado é bastante comum em diversas indústrias. Por exemplo, na indústria de videogames, os consoles fazem o papel da plataforma que interliga os usuários de videogames com os desenvolvedores dos jogos. Usualmente os fabricantes do hardware não cobram do usuário nenhuma tarifa ou taxa pelo uso de sua plataforma (apenas obviamente o custo de aquisição dos consoles), mas cobram royalties dos desenvolvedores dos jogos. Assim, a estes últimos interessa desenvolver aplicativos para aquelas plataformas (consoles) que têm um bom número de usuários. Por outro lado, para o fabricante do console também é interessante que haja um bom acervo de jogos para tornar seu produto mais atraente. Outro exemplo bastante citado é o da indústria de meios de pagamento, como os cartões de débito e crédito. Nesse mercado as credenciadoras (detentoras das bandeiras) agem como uma plataforma entre os portadores dos cartões e os lojistas. Nesse caso, a plataforma pode cobrar tanto dos portadores de cartões (anuidade pela manutenção do cartão), quanto dos lojistas credenciados (uma percentagem das suas vendas, além do aluguel dos terminais em que são realizadas as transações). Vale a mesma discussão sobre os incentivos econômicos apresentados aos agentes econômicos: é de interesse dos portadores de cartão que o maior número de lojistas possível trabalhe com determinada bandeira, ao mesmo tempo que, para os comerciantes é interessante que o cartão tenha grande número de portadores, do contrário não valeria a pena ser credenciado e manter equipamentos para realizar poucas transações. Esse tipo de estrutura também está presente em muitas redes de telecomunicações. Na internet, por exemplo, os provedores de acesso detentores de infraestrutura funcionam como uma plataforma entre os milhares de usuários da rede e os provedores de conteúdo e aplicativos, tais como, Google, Yahoo!, YouTube, redes de relacionamento virtuais, etc. A internet tem mantido, desde suas origens, um esquema de precificação bastante peculiar. Os provedores de acesso tipicamente cobram taxas de acesso16 dos usuários e dos provedores de conteúdo que estão diretamente ligados às suas redes, mais uma tarifa de uso que normalmente varia em função da largura de banda contratada. Por outro lado, os provedores de conteúdo e aplicativos usualmente não cobram de seus usuários pelo acesso a seus sites, optando por financiar sua operação indiretamente, por meio de publicidade. Esse esquema de precificação não está presente em outras redes de telecomunicações ou mídia. Na televisão por assinatura, por exemplo, são os operadores de cabo que pagam aos provedores de conteúdo para carregar suas programações em suas grades. Obviamente, nesse caso quem escolhe o que o consumidor vai assistir são os operadores, e não os usuários, o que distingue ainda mais a situação com relação ao caso da internet. Já no caso da telefonia comutada tradicional os usuários que desejem fazer uma ligação ou transmissão pagam aos operadores uma tarifa de terminação pela duração da ligação. No caso da internet, uma vez conectados, os usuários estabelecem comunicações com servidores ou outros usuários sem pagamentos adicionais por isso. Essa característica da internet deriva, como visto, de suas próprias características de construção, em especial da arquitetura end-to-end. A existência de economias de redes é bastante comum em mercados de dois lados. Segundo esse conceito, o valor econômico e social da rede aumenta quanto maior o número de usuários conectados a ela. Do ponto de vista econômico a literatura tem mostrado que, na presença de tais externalidades, e diante de restrições na capacidade de precificar em alguns lados do mercado, a distribuição dos preços em um ou outro lado do mercado pode ter um efeito importante sobre o volume de uso da rede e sobre o bem-estar econômico. Isso ocorre porque muitas vezes há diferenças significativas nas disposições a pagar, e, portanto nas elasticidades-preço da demanda, em um ou outro lado do mercado. No exemplo dos cartões de crédito, a disposição a pagar dos portadores de cartão para tê-los em suas carteiras é, em geral, menor que a disposição a pagar dos lojistas para manter os terminais necessários para efetuar as transações. Isso porque, à medida que cresce a importância desses

meios de pagamento, os lojistas são menos capazes de evitar essa modalidade, perdendo negócios se o fizerem. Em consequência, o que se vê nesse mercado é uma espécie de subsídio entre os lojistas e os portadores de cartão. Os portadores de cartões por vezes pagam anuidades reduzidas ou são isentos delas, enquanto os comerciantes pagam percentuais relativamente elevados de suas vendas. Note-se que esse esquema só é possível devido a dois fatores. Em primeiro lugar, por razões contratuais ou legais os lojistas não são capazes de oferecer descontos para outras modalidades de pagamento, como, por exemplo, cheque ou dinheiro. Se assim lhes fosse permitido, existiria ao menos um meio pelo qual os lojistas evitariam a “cobrança” desse subsídio pelos operadores da plataforma. O segundo fator é o poder de mercado dos operadores da plataforma, que fomenta substancialmente a capacidade de impor esse tipo de esquema de precificação, no qual custos adicionais são impostos aos comerciantes e que provavelmente não existiria em condições mais competitivas. Em um mercado competitivo os lojistas arbitrariam entre os meios de pagamento de menor custo. A ideia fundamental aqui é a de que é possível atingir um nível mais alto de bem-estar se no mercado com maior elasticidade-preço da demanda for cobrado um preço menor que no mercado mais preço-inelástico. Isto é, o acréscimo de um novo usuário em um dos lados do mercado aumenta o nível de satisfação do outro lado mais que a adição de um novo usuário de seu próprio lado. Economides e Tåg (2009)17 enumeram cinco consequências econômicas do fim da neutralidade de rede na internet (em adição à capacidade que os ISPs passariam a ter de impor tarifas positivas sobre os provedores de conteúdo não conectados às suas respectivas redes). São elas: (i) Introduz-se a possibilidade de priorização de pacotes ou a degradação na entrega de pacotes de provedores de conteúdo e aplicativos que não pagarem os “pedágios” cobrados pelo detentor de infraestrutura; (ii) Caso os provedores de acesso se engajem na discriminação de pacotes de acordo com suas origens, é possível que eles determinem quais provedores de conteúdo e aplicações serão bem-sucedidos e quais não serão. Se os provedores de acesso forem integrados com provedores de acesso e aplicativos, o que é comum, isso pode levar a grandes distorções no mercado e redução do processo de inovação na internet; (iii) Empresas menores e menos capitalizadas raramente estarão dispostas a pagar ao provedor de acesso pela prioridade de tráfego nas redes, o que também reduziria o ritmo de inovações na web; (iv) Os provedores de acesso podem vir a beneficiar seus próprios provedores de conteúdo (integração vertical) em detrimento de concorrentes independentes; (v) Como a internet foi concebida como uma rede que conecta outras redes, a possibilidade de cobranças de pedágios em cada uma dessas redes parciais reforça sobremaneira a possibilidade de fragmentação da rede mundial. Embora haja uma extensa literatura sobre as questões estruturais e legais envolvidas na abolição ou manutenção da neutralidade de redes no caso da internet, as contribuições da teoria econômica sobre o assunto são muito recentes e estão longe de uma consolidação minimamente consensual. Com o recrudescimento do debate tem havido uma preocupação maior em explicar os efeitos do enforcement da neutralidade sobre questões importantes como os incentivos econômicos que se apresentam para a atividade inovadora tanto dos provedores de acesso como dos provedores de conteúdo e aplicativos. Alguns trabalhos interessantes sobre essa questão são os de Economides e Tåg (2009),18 Hermalin e Katz (2007)19 e Lee e Wu (2009).20 Economides e Tåg (2009) buscam inspiração na literatura sobre mercados de dois lados para desenvolver um modelo no qual a neutralidade de rede é definida como uma restrição dos provedores de acesso à capacidade de precificar livremente dos dois lados do mercado. Mais especificamente, trata-se de uma restrição à capacidade de cobrar uma tarifa dos provedores de conteúdo pela entrega de pacotes, mesmo que esses não estejam diretamente conectados às redes ou backbones dos provedores de acesso detentores de infraestrutura. A neutralidade seria, segundo esses autores, uma consequência direta da incapacidade dos provedores de acesso de inspecionarem o conteúdo dos pacotes transmitidos com relação às suas origens. Assim, sem saber de qual provedor de conteúdo ou aplicativo os pacotes vieram não seria possível cobrar desses provedores pela passagem dos pacotes pelas redes dos operadores.

Ocorre que, recentemente, tornou-se possível fazer esse tipo de inspeção, com a concepção de tecnologias de deep packet inspection, como a ofertado no mercado pela empresa canadense Sandvine e que foi utilizado pela Comcast para degradar a conexão de usuários do aplicativo de peer -to-peer BitTorrent. Como consequência, a neutralidade de rede deixou de ter uma proteção natural de ordem técnica. No modelo de Economides e Tåg, a abolição dos preceitos da neutralidade de rede se equipara a um esquema de precificação nos dois lados do mercado, ou seja, a uma plataforma que cobra tanto dos usuários finais, uma tarifa p pelo acesso à rede, como dos provedores de conteúdo, de quem se cobra uma tarifa s. No caso em que há neutralidade, s seria igual a zero. Os autores então percorrem um exame de bem-estar entre essa possibilidade e um mercado de apenas um lado, onde a plataforma só pode cobrar a tarifa dos usuários finais em dois regimes distintos de mercado: (i) a plataforma é constituída por um monopolista; e (ii) a plataforma é um duopólio, por exemplo entre operadores de ADSL e cabo. O diagrama a seguir ilustra as interações entre usuários e provedores de conteúdo e vice-versa, por meio da plataforma.

No diagrama acima, a é o valor marginal de um novo usuário para os provedores de acesso, enquanto b é o valor marginal de um novo provedor de conteúdo para os usuários. Por exemplo, a é o valor que o Google atribui a cada novo usuário, enquanto b é o valor de um novo Google para os usuários. Ambos os parâmetros têm origem nos efeitos de rede prevalecentes em cada lado do mercado e são centrais na análise que se segue. Os autores mostram que em um cenário no qual a plataforma é livre para cobrar de ambos os lados do mercado (isto é, onde não há enforcement da neutralidade de rede) haverá incentivos para que se cobre uma tarifa positiva dos provedores de conteúdo (s>0) se e somente se a for maior que b. Ou seja:

A condição acima significa que: se o valor de um usuário adicional para o provedor de conteúdo for maior que o valor de um provedor de conteúdo adicional para o usuário final, a cobrança de uma tarifa positiva dos provedores de conteúdo maximiza o excedente privado (lucros) da plataforma monopolista. No estágio atual de desenvolvimento da internet, pode-se dizer que a hipótese formulada acima seja uma boa aproximação da realidade.

Economides e Tåg recorrem então ao exemplo da indústria de videogames para ilustrar a condição que derivaram. Segundo a racionalidade implícita nessa condição, os fabricantes de consoles, como o Sony Playstation, cobram uma tarifa positiva dos desenvolvedores de games, pois cada novo usuário teria um valor maior para o desenvolvedor que o valor de um novo game para os usuários. Outras indústrias apresentariam situação inversa, isto é, a
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