Nexos entre região e nação no Estado Novo: o projeto regionalista de Gilberto Freyre e a contemporização

June 3, 2017 | Autor: Gustavo Mesquita | Categoria: Conceptual History, Gilberto Freyre, History of Brazilian Republic
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Fernando Nicolazzi, Helena Mollo & Valdei Araujo (org.). Caderno de resumos & Anais do 4º. Seminário Nacional de História da Historiografia: tempo presente & usos do passado. Ouro Preto: EdUFOP, 2010. (ISBN: 978-85-288-0264-1)

Nexos entre região e nação no Estado Novo: o projeto regionalista de Gilberto Freyre e a contemporização

Gustavo Rodrigues Mesquita ∗

À guisa de introdução

O objetivo do presente estudo consiste em responder a uma problemática central para a investigação acerca do movimento regionalista no Brasil: Qual é o sentido do conceito de região contido na obra freyriana? Mais ainda, qual a função desempenhada por esse conceito dentro do contexto histórico dos anos 1930 e 40, o qual demarca, fundamentalmente,

a

aceleração

do

processo

de

modernização

institucional

implementada pelo Estado Novo? Selecionando essas perguntas como ponto de vista norteador da narrativa e adotando a abordagem metodológica procedente da fusão entre a História dos Conceitos com a História Social; abordagem que consiste na análise semântica de um denominador comum registrado na linguagem das fontes, ou seja, conceitos e teorias que orientam a ação política desenvolvida pelo Estado-nação (KOSELLECK, 2002) – no caso em pauta, o governo forte e centralizador de Getúlio Vargas –, pretende-se construir uma explicação, em primeiro lugar, acerca do que o movimento regionalista se contrapunha no horizonte das instituições sociopolíticas situadas no princípio da implantação do sistema republicano no Brasil, para logo em seguida desdobrar dessa contraposição a perspectiva de um projeto geopolítico que foi levado a efeito pela ideologia da modernização autoritária, a saber, o projeto de regionalização do Brasil como componente do processo histórico de nacionalização. Norte e Sul compunham nossas duas únicas regiões geográficas. Não obstante, a intervenção do IBGE em 1941 altera essa equação, configurando o território oficial em cinco macrorregiões naturais, quais sejam, Norte, Nordeste, Leste, Sul e Centro-Oeste. Para legitimar a nova ordem política instaurada, o Estado Novo opera o tempo presente no sentido de afastar o passado da Primeira República, que passa a ser

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Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás (UFG). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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Fernando Nicolazzi, Helena Mollo & Valdei Araujo (org.). Caderno de resumos & Anais do 4º. Seminário Nacional de História da Historiografia: tempo presente & usos do passado. Ouro Preto: EdUFOP, 2010. (ISBN: 978-85-288-0264-1)

denominada de “velha” e identificada como “ruína”, valorizando as interpretações históricas voltadas para o estudo do passado colonial (SANDES, 2009). A publicação de Casa-grande & senzala (1933), Evolução política do Brasil (1933) e Raízes do Brasil (1936), dentre outros ensaios de interpretação nacional, todos durante o mandato de Getúlio Vargas, pode ser explicada como a produção intelectual decorrente de uma conjuntura política determinada pela efervescência do ideário político centralizador. Consciente da operação estado-novista relativa aos usos do passado, percebendo que as elites intelectuais e as elites políticas contemporâneas poderiam confundir seu projeto como um discurso apologético de retorno ao passado do liberalismo republicano (definido como vício político), Gilberto Freyre posiciona-se como ponto de inflexão do significado semântico atribuído ao regionalismo como categoria política: do antigo conteúdo federalista que viabilizava a autonomia assimétrica das unidades estaduais ao instrumento teórico de compreensão da formação da sociedade brasileira, desdobrandose desse instrumento compreensivo a idéia de unidade nacional que, no entender de Freyre, só poderia ser de fato concretizada mediante a valorização dos ideais de brasilidade, isto é, mediante o reconhecimento das manifestações espontâneas que legitimam a autenticidade da cultura nacional. Ademais, seu pensamento inclui a perenidade da tradição patriarcal e a intangibilidade da questão fundiária. No que concerne os nexos entre região e nação, já com a mudança semântica obtida pelo esforço de reflexão empreendido pelos intelectuais ensaístas, as identidades regionais ressurgem nos anos 30 contendo nova linguagem antropológica, racionalizada a partir das noções de pensar e sentir sua própria região. Essa nova linguagem foi capaz de proscrever o antigo sentido de sectarismo político disputado pelos estados federativos, incidindo também sobre o modelo liberal por meio do qual Minas Gerais e São Paulo centralizavam o desenvolvimento material e econômico da nação. Para o novo regionalismo, em contraste, a vivência comunitária que se concilia ao tempo e ao espaço naturais às tradições da região torna-se suscetível de aprofundar o sentimento de pertença do homem à sua comunidade política nacional. Conferindo-lhe raízes sentimentais, o viver regional vincula o homem junto ao seu meio social originário – seja rural ou urbano –, junto à reciprocidade da práxis cultural de seu meio e junto aos discursos narrativos que definem a identidade do ser regional como lugar de 2

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radicação das memórias vivas e das tradições (NORA, 1999) (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008). Consequentemente, a existência humana nessas condições resulta no fortalecimento da identidade nacional e da coesão social – fatores de integração ao Estado-nação. Com todas essas características, memória e região consubstanciam um par indissolúvel e propenso a circunscrever a identidade de um grupo social, isto porque o passado, na forma de memória, “traduz um sentimento de comunidade afetiva capaz de criar identidades” (SANDES, 2002, p. 15). A interpretação de Gilberto Freyre (1936) a respeito da criação identitária voltada para o nexo entre região e nação aventa que é o patriarcado rural, por oposição ao “exógeno” e “desordenado” patriarcado urbano novecentista, que se estabelece como sustentáculo precípuo da construção histórica das tradições regionais do Brasil. Federalismo, regionalismo e mudança

A representação histórica do passado republicano assinala a existência de uma herança transmitida do Império à República, a saber, a organização política integrada pelo ideário da democracia liberal, pelo poder das oligarquias agrárias estaduais e pelo ingresso excessivo de bacharéis formados em Direito no funcionalismo público do Estado republicano. Quanto a esse último ponto, Gilberto Freyre, na qualidade de cientista social que detinha um conhecimento direto da modernidade, acabava por concluir: No Brasil do seculo passado [19], os publicistas e politicos de tendencias reformadoras, defensores mais de idéas e de leis vagamente liberaes que de reformas correspondentes ás necessidades e ás condições do meio, para elles desconhecido, sempre escreveram e falaram sobre os problemas nacionaes com um simplismo infantil. Para alguns delles o grande mal do Brasil estava indistinctamente nos grandes senhores; nos vastos dominios; na supremacia de certo numero de familias. E para resolver a situação bastava que se fizessem leis liberaes. Apenas isto: leis liberaes. A mania das soluções [apenas] juridicas, herdou-a a Republica do Imperio [...] Mania que se poderia chamar [de] “romantismo jurídico”. A nossa legislação social se caracteriza por um

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soberano desdem por quanto significa tradição regional, realidade nacional (FREYRE, 1941, p. 174).

Segundo a literatura especializada, essa organização política pouco se altera com a implantação da República, ao passo que a nova ideologia forjada em torno da ordem e do progresso – em torno da filosofia positivista, portanto – encerra uma utopia irrealizável por via do modelo liberal não-intervencionista (BOSI, 2008). A inovação do republicanismo consistir-se-ia pela formulação de um novo pacto político legalizado pela Constituição Federal de 1891 e reformulado pelo presidente Campos Salles, denominando-se de “Política dos Estados”. Esse novo pacto político centrava-se na adoção do sistema federalista, o qual confere autonomia aos presidentes – hoje governadores – para decidir pelas medidas e ações cabíveis a seus respectivos estados, visando, com o novo sistema, a descentralização do poder monárquico. No entanto, essa inovação também caiu em ruína, pois o que se verificou na prática política do período republicano foi o vício do coronelismo: os presidentes coligavam-se aos coronéis e às clientelas estaduais com o objetivo de permanecer no poder, manipulando o sufrágio nas eleições para a consecução de tal objetivo (CARVALHO, 1998). Os historiadores ainda desdobraram dessa experiência a real impossibilidade tanto de uma democracia com participação popular quanto da formação de uma opinião pública eficiente. Por fim, o período primeiro-republicano ficou marcado pela historiografia como a força máxima do modelo da democracia liberal, geralmente autoritária e excludente, e pelos privilégios mantidos pelas oligarquias agrárias estaduais. O que importa analisar dessa experiência política situada no princípio da República brasileira é que o regionalismo era entendido pelos contemporâneos como o aporte teórico que viabilizava a continuidade do modelo liberal e do controle da atividade política pelas oligarquias estaduais. A teoria regionalista permanecia associada ao federalismo monopolista – associação que resultou no recrudescimento das disparidades regionais –, ampliando a crise econômica na qual as elites do Nordeste perderam sua posição privilegiada no cenário nacional para as elites de São Paulo e Minas Gerais. Por decorrência da crise, os nordestinos imergiram numa situação de decadência de seu status, lesando a produção e o comércio do açúcar, ao passo que a

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supremacia mercantil deslocou-se para o controle dos estados mais desenvolvidos da nação. Mais ainda, atribuía-se ao regionalismo a imagem de uma teorização vinculada ao passado ruinoso da política brasileira, cuja origem reside no comando privadofamilístico do poder público, provocando a tensão entre a esfera pública e a esfera privada do corpo social ao longo da República Velha, entre famílias de caudilhos no Rio Grande do Sul e de famílias das oligarquias do Rio de Janeiro ao Nordeste do Brasil (GOMES, 1998). Assim sendo, os contemporâneos consideravam o regionalismo como a instituição política originada por uma teoria que resultou no atrofiamento do poder impessoal e racional do Estado republicano. Ora, é precisamente essa representação recente de instituição política reacionária e desmoralizante que Gilberto Freyre busca ressignificar. Desde 1924, quando retorna ao Recife com o fim de sua morada de cinco anos nos Estados Unidos e na Europa para o estudo de graduação e mestrado em Ciências Humanas (GIUCCI; LARRETA, 2007), Freyre começa a construir um novo sentido para o regionalismo, atribuindo-lhe a propriedade de um movimento intelectual não mais aprisionado aos vícios políticos da nação, mas abrindo ao movimento uma nova frente de reflexão sobre os agentes e processos de longa duração inseridos na formação social do Brasil, além de aplicar métodos inovadores de interpretação histórica, sociológica e antropológica em suas análises. Nessa direção, o pensamento freyriano emerge como discurso científico voltado para a interpretação dos processos histórico-sociais que definiram a singularidade da nação.

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Construindo um pensamento social, a moderna teoria regionalista procura

abarcar as experiências do passado como fundamento histórico para alterar a realidade

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Essa singularidade resulta da característica historicamente construída por meio do par mestiçagem e trópico, por meio da interpenetração de etnias e culturas e da complementaridade entre os extremos de cultura (lusa, afro, moura e indígena). Não obstante, Gilberto Freyre inverte o antigo paradigma racial arraigado no imaginário coletivo de determinados setores da população brasileira: do antigo sentido de inautenticidade da cultura mestiça e negra, culminando na crença geral de que essa era a principal causa das “mazelas” da nação, essencialmente a “degradação moral” e a “depreciação eugênica”, ao novo sentido de singularidade autêntica e prodigiosa de um povo majoritariamente mestiço. Foi o destaque conferido pelo autor em suas obras dos anos 30 ao papel civilizacional dos povos orientais na formação social do Brasil que facultou a inversão do paradigma racial. Desse modo, o intelectual abre um novo horizonte de possibilidades às estratégias políticas de governo.

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do tempo presente. A pesquisa histórico-sociológica sobre o passado brasileiro foi empreendida com base numa visão de mundo específica, ou seja, a tradição do patriarcado rural como estrutura que estabiliza a ordem social. O regionalismo de Gilberto Freyre, portanto, aproveita a fenda aberta pelo presente revolucionário de 1930 para defender um projeto político que, em parte, foi atendido pela ideologia soberana da modernização autoritária e nacionalista. Não se trata de uma simples coincidência o fato do autor ter registrado como subtítulo da primeira edição de sua obra-mestra, Casagrande & senzala, publicada em 1933, como “formação da família brasileira sob o regimen de economia patriarchal”. Pois é certo que o intelectual pernambucano estava aproveitando a fenda aberta no campo das ideologias políticas para reivindicar como matriz cultural de toda a nação a experiência nordestina. Com efeito, o conceito de região sofre uma inflexão em seu conteúdo semântico. Região então passa a designar os cinco territórios geográficos do Brasil que se distinguem um dos outros por suas potencialidades e características específicas, e cuja realidade espaço-temporal é passível de mudanças. 2 As regiões se inscrevem como os fundamentos geopolítico e geoeconômico da nação. Quando associadas às categorias de raça e de classe, tornam-se o principal critério de estratificação social em conformidade com a realidade brasileira. Em função de todas essas propriedades, as regiões devem ser equivalentes em importância e equilibradas em economia. Novamente, Gilberto Freyre chama a atenção para o problema da unidade nacional, indicando que seu equacionamento depende exclusivamente da intervenção política do poder central vigente. Ademais, a necessária ação política destinada ao projeto de contemporização das disparidades regionais – para remanejar o Nordeste de volta a seu devido lugar – cooperaria para resolver, inclusive, o problema recente da segurança militar do país, que

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Tais mudanças em hipótese alguma se referem à estrutura de poder tradicional, uma vez que Gilberto Freyre se notabiliza como um intelectual inovador, sem dúvida, mas plenamente vinculado à aristocracia rural pernambucano. Ao contrário, o pensamento regionalista emprega a acepção própria das ciências humanas para sugerir mudanças no trato público: a acepção antropológica propõe a gestão das diversidades regionais por via do Estado e a intermediação dos conflitos étnicos por via da antropologia jurídica; a acepção sociológica propõe o controle do ritmo de intervenção política para estreitar a relação entre Estado e Sociedade Civil; a acepção ecológica ou geográfica propõe como necessária a atenção conferida pelos órgãos públicos competentes aos problemas econômicos regionais (modo de produção adequado à geografia do lugar), fluviais (poluição dos rios), florestais (desmatamento) e culturais (supressão das identidades e diferenças por um modelo de organização social padronizado pelo telos industrialista).

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foi gerado pela propulsão da competitividade nos negócios e relações internacionais inseridos no cenário global, fato esse que estava intensificando a pressão interna com relação à demarcação e proteção militar das fronteiras territoriais da nação brasileira. O desafio ao novo conceito produzido por Gilberto Freyre consistia em provar para as elites intelectuais e para as elites políticas dos anos 30 e 40 (seus principais leitores) que o novo regionalismo não mais ensejava o sectarismo político praticado ao longo da República Velha, mas que estava inteiramente adequado à realidade de mudanças impostas pelo presente revolucionário. Nesse sentido, o pensamento freyriano termina por endossar algumas das realizações originadas pelo modelo do antiliberalismo e do intervencionismo administrado por Getúlio Vargas e seus correligionários. Apesar da produção de duras críticas contra a ditadura e o processo de centralização políticoadministrativa desenvolvido ao longo da implantação do Estado Novo, é possível inferir que, ao contrário, parte de seu pensamento apoiava tanto a modalidade do antilberalismo praticado pelos novos governantes quanto o ritmo acelerado de intervenção política gerido por Getúlio Vargas e seu corpo ministerial. Cumpre concluir que o discurso regionalista insurge nos anos 30 como alternativa de redução dos excessos causados pela modernização autoritária. O Estado Novo opta por se apropriar e valorizar a interpretação do passado centrada nas tradições culturais das regiões. Entretanto, a relação de Gilberto Freyre e seu pensamento social com o regime dirigido pela nova elite política define-se pelo signo da ambiguidade, porque revela pontos de contato e pontos de atrito em torno da modernização autoritária. O regionalismo do Estado Novo e a contemporização

Neste instante, é preciso perceber que nos colocamos diante de uma questão exegética: o processo acelerado de centralização do poder atrelado ao autoritarismo e ao cerceamento da liberdade de expressão implicaria em constatar uma constante tensão entre Gilberto Freyre e Getúlio Vargas, também implicaria em afirmar que Gilberto Freyre sempre se posicionou intransigentemente contra o governo Vargas, sempre emitindo críticas “unilaterais” contra a ditadura. No entanto, a hipótese que desenvolvo percorre uma direção inversa e é encontrada em uma camada de sentido mais profunda: a produção do projeto regionalista gerou uma relação confusa, ora aproximação ora

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distanciamento, de Gilberto Freyre com o Estado Novo. Ao mesmo tempo em que ele criticava a centralização e a industrialização por meio de artigos escritos para os principais jornais de sua época, como, por exemplo, o Correio da Manhã, utilizava os recursos agenciados pelo Ministério da Educação e Saúde, então presidido por Gustavo Capanema, para pesquisas documentais, publicação de livros complementares à sua obra e viagens internacionais de propósitos acadêmicos, além de ter convivido com alguns dos intelectuais que assumiram cargos públicos privilegiados graças a Revolução de 1930. Ademais, convém lembrar que sua consagração efetiva no meio intelectual dos anos 40 só foi possível por meio da ação ideológica voltada para a resolução da questão nacional. 3 Rigorosamente, o conjunto do pensamento de Freyre encaminha-se para demonstrar que, se o regime do patriarcalismo teve a sabedoria de bem manejar os conflitos históricos, caberia à razão de Estado, remodelada a partir de 1930, retomar as lições e experiências do passado para que se construa tanto o tempo presente quanto o tempo futuro (BASTOS, 2006). É a partir desta chave de leitura que se consegue perceber que o regionalismo freyriano e o centralismo getuliano não foram dois conceitos que se excluíam reciprocamente. Muito pelo contrário, em certa medida, cooperaram contiguamente buscando contrabalancear a modernização autoritária, reduzindo-lhe os excessos, portanto, firmaram um pacto em prol da reconstrução do campo simbólico que priorizava a redefinição da idéia de regionalidade, de modo a estabelecer o sentido do novo nexo entre região e nação: o de se constituir como a ligação à idéia de nacionalidade ou identidade nacional. Nessa direção, a mudança no nexo entre região e nação executada mediante o pacto entre o regionalismo e o centralismo recebeu, incorporou e acionou o discurso narrativo acerca da autenticidade da cultura familística, ruralista e mestiça própria à experiência nordestina como ideal equivalente de caráter

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Outra experiência comprobatória da veracidade deste ponto de contato refere-se à atuação de Gilberto Freyre juntamente com os arquitetos Lúcio Costa e Alfredo Reyes no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), no ano de sua fundação, o ano simbólico de 1937. O trabalho do grupo consistiu na preservação dos lugares de memória das comunidades rurais situadas no centro-sul do país, restaurando algumas casas-grandes anteriormente abandonadas (FREYRE, 1941).

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nacional. Portanto, é possível constatar nessa relação uma confluência de determinados interesses, ao passo que o sociólogo Gilberto Freyre nutria-se de expectativas. Lembremos, pois, que os anos 40, caracterizados pela continuidade do processo político centralizador, pelo desenvolvimento da máquina burocrática do Estado e, consequentemente, pela expansão da governabilidade da sociedade civil, demarcaram a execução efetiva do projeto de regionalização do território brasileiro. A geografização do espaço de acordo com as características ecológicas (topográfica, climática e de bioma) das regiões do Brasil foi realizada mediante ação política do governo Vargas somente após a publicação e assimilação de Nordeste (de 1937), obra considerada pelos contemporâneos como um avanço decisivo nos estudos da História Regional. O projeto geopolítico, levado a efeito em 1941 com a precedente fundação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)4, foi obra do geógrafo Fábio de Macedo Soares Guimarães e sua equipe. E o território oficial do país, antes dividido essencialmente entre Norte e Sul, foi reconfigurado em cinco macrorregiões equilibradas, a saber, Norte, Nordeste, Leste, Sul e Centro-Oeste.5 Essa divisão foi realizada segundo o critério de ajustamento das diferenças étnicas, culturais e do modo de produção (agrário, pecuário, talássico ou industrial) das novas regiões do país, visando, mediante tal empreitada, o reforço definitivo da unidade nacional. Trata-se de uma evidência histórica que confirma o diálogo profícuo entre o centralismo e o projeto regionalista. Prosseguindo no objetivo de desenvolver a hipótese da confluência de interesses entre ambas as partes, importa agora analisar outro aspecto desse pacto, o da integração regional em meio às mudanças operadas na ordem da sociedade brasileira no tempo do Estado Novo. Ora, a partir da aliança sistemática com outros intelectuais de matriz regionalista, as idéias sociológicas de Freyre foram capazes de contemporizar o jogo de forças econômicas insurgidas com a Revolução de 1930. O discurso reivindicatório da formulação de um pacto interregional que não levasse a efeito o isolamento e a

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Mediante o decreto-lei nº 782, promulgado pela Presidência da República em 13 de outubro de 1938. Fonte: .

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Mediante resolução nº 72, de14 de julho de 1941, promulgado pelo IBGE. Fonte: .

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decadência da sociedade nordestina, que não concentrasse as decisões políticas e o crescimento econômico nas regiões do Sul e que celebrasse um padrão lento de modernização foi atendido e acionado, em parte específica, pelo poder central. É disso que se trata a contemporização das disparidades regionais, tendo em vista que as medidas para o estabelecimento de acordos políticos entre a classe emergente da burguesia industrial e a classe decadente agro-exportadora implicaram na manutenção do modelo latifundiário de integração regional a partir das grandes propriedades privadas, quais sejam, estância de gado no Sul, fazenda de café no Leste e engenho de açúcar no Nordeste. Enfim, o pacto de 30 é explicado na tese alçada por Elide Rugai Bastos. Vale a citação: É a partir da família que [Freyre] coloca a questão do tradicionalismo e do modernismo, forma pela qual aponta a debilidade política e social da burguesia industrial que, para impor seu projeto, uma nova ordem social, necessita do apoio dos setores tradicionais, só eles capazes de compreensão e manutenção da velha ordem da sociedade. O discurso de Gilberto Freyre, que emerge como “científico”, transfigura-se em “discurso político” na medida em que se coloca como elemento fundamental para a manutenção do pacto de 30. Desse modo, o pensamento de Gilberto Freyre transforma-se na garantia de uma forma de encaminhamento da revolução burguesa que legitima a articulação “pelo alto” [...] Esse papel exercido pelo seu pensamento permite que vejamos em Freyre o intelectual orgânico do pacto de 30 na medida em que seus trabalhos expressam as possibilidades de as oligarquias agrárias estarem presentes na “nova ordem” em curso, sem que para isso fossem necessárias mudanças estruturais” (BASTOS, 1986, p. 56-57) (Grifos da autora).

Para concluir a explicação do problema de investigação, resta notar que o sociólogo pernambucano alienou-se do debate sobre cidadania, pois deduziu que as classes populares não obstaculizariam a reconstrução da nação desde que fossem assimiladas suas expressões culturais, obrigando-o a conceber um projeto político alijado da luta social pela cidadania. Referências bibliográficas 10

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