NICOLAZZI, Fernando (org.). História e historiadores no Brasil. Do fim do Império ao alvorecer da República, c. 1870-1940 (2015).pdf

June 1, 2017 | Autor: Fernando Nicolazzi | Categoria: Escrita da História, Historiografia Brasileira
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HISTÓRIA E HISTORIADORES NO BRASIL

do fim do Império ao alvorecer da República – c. 1870-1940

Conselho Editorial da Série Monumenta Editor Leandro Pereira Gonçalves Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil

Chanceler Dom Jaime Spengler Reitor Joaquim Clotet

Angela de Castro Gomes

Vice-Reitor

Universidade Federal Fluminense / Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

Evilázio Teixeira

Elizabeth Cancelli Universidade de São Paulo, Brasil

Fernando Catroga Instituto de História e Teoria das Ideias/ Universidade de Coimbra, Portugal

Lucília Neves de Almeida Delgado Universidade de Brasília, Brasil

Marieta de Moraes Ferreira Fundação Getúlio Vargas, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil / Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Marlon Jeison Salomon Universidade Federal de Goiás, Brasil

Ruth Maria Chittó Gauer Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil

Conselho Editorial Jorge Luis Nicolas Audy – Presidente Gilberto Keller de Andrade – Diretor da EDIPUCRS Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe Agemir Bavaresco Augusto Buchweitz Carlos Gerbase Carlos Graeff-Teixeira Clarice Beatriz da Costa Söhngen Cláudio Luís C. Frankenberg Érico João Hammes Gleny Terezinha Guimarães Lauro Kopper Filho Luiz Eduardo Ourique Luis Humberto de Mello Villwock Valéria Pinheiro Raymundo Vera Wannmacher Pereira Wilson Marchionatti

Série

4

Monumenta

Fernando Nicolazzi organizador

HISTÓRIA E HISTORIADORES NO BRASIL

do fim do Império ao alvorecer da República – c. 1870-1940

Porto Alegre, 2015

© EDIPUCRS 2015 DESIGN GRÁFICO [CAPA] Shaiani Duarte DESIGN GRÁFICO [DIAGRAMAÇÃO] Thiara Speth REVISÃO DE TEXTO DOIS PONTOS – Editoração

Edição revisada segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33 Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (51) 3320 3711 E-mail: [email protected] Site: www.pucrs.br/edipucrs

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) H673

História e historiadores no Brasil : do fim do império ao alvorecer da República : c. 1870-1940 [recurso eletrônico] / organizador Fernando Nicolazzi. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2015. 417 p. - (Série Monumenta ; 4) Modo de acesso: ISBN 978-85-397-0695-2 1. Brasil – História. 2. Historiografia – Brasil. 3. Historiadores – História. I. Nicolazzi, Fernando. II. Série. CDD 981.00072

Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

SUMÁRIO 7

introdução Fernando Nicolazzi

13

joão capistrano de abreu, necrológio de francisco adolfo de varnhagen Apresentação de Maria da Gloria de Oliveira

33

sílvio romero, da interpretação filosófica na evolução dos fatos históricos Apresentação de Rodrigo Turin

67

pedro lessa, reflexões sobre o conceito da história Apresentação de Ângela de Castro Gomes

169 josé da rocha pombo, a concepção moderna

da história

Apresentação de Piero Detoni

211 euclides da cunha, discurso de recepção

na academia brasileira de letras

Apresentação de Luiz Costa Lima

245 manoel de oliveira lima, o atual papel do

instituto histórico e geográfico brasileiro

Apresentação de Mara Rodrigues

269 joão ribeiro, discurso de posse no ihgb Apresentação de Patricia Hansen

287 francisco josé de oliveira vianna, o valor

pragmático do estudo do passado

Apresentação de Piero Detoni

325 alcides bezerra, os historiadores

do brasil no século xix

Apresentação de Pedro Afonso C. dos Santos e Mateus Henrique de Faria Pereira

357

manoel bomfim, os que fizeram a história do brasil Apresentação de Rebeca Gontijo

395 afonso taunay, a propósito do curso

de história da civilização brasileira

Apresentação de Karina Anhezini

INTRODUÇÃO

Fernando Nicolazzi1

Este livro oferece ao leitor um conjunto significativo de textos elaborados por diferentes letrados brasileiros entre as décadas de 1870 e 1940, período-chave para a compreensão dos desenvolvimentos, influxos, desvios e mesmo rupturas ocorridas na história da historiografia nacional. Se o contexto setecentista, no âmbito das suas academias literárias, semeou o gérmen da erudição histórica no mundo luso-americano, colocando como problema intelectual os modos pelos quais uma história da América portuguesa poderia ser escrita; se as primeiras décadas do século XIX foram marcadas por uma relativamente intensa produção estrangeira sobre o Brasil e sua história, além dos acalorados debates internos sobre o tema da autonomia política e da definição de um novo Estado e suas relações com a antiga metrópole, o que implicava, por sua vez, a definição de uma outra história; e se, finalmente, desde a década de 1830, o império brasileiro se viu na contingência de elaborar para si mesmo uma história, estabelecendo a simbiose entre a formação da nação e os desenvolvimentos do Estado e, com isso, organizando um tempo próprio para esta história; o ambiente intelectual que se abre a partir do último quartel do século, sem abdicar totalmente do substrato sobre o qual se situa, coloca-se como tarefa oferecer distintas perspectivas para se elaborar o relato sobre a formação do Brasil. 1  Departamento de História/UFRGS. Bolsista de Produtividade do CNPq. Esta coletânea é resultado do projeto “Ensaio histórico e escrita da história: a historiografia brasileira entre 1870 e 1940” e contou com apoio financeiro do CNPq e da FAPERGS.

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Os textos que compõem esta coletânea dão mostras dos caminhos e descaminhos seguidos pela historiografia brasileira nos quase 70 anos que apartam o primeiro do último texto aqui publicado. A começar pelo importante necrológio escrito por Capistrano de Abreu por conta do falecimento de Francisco Adolpho de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro. Publicado no Jornal do Commercio no final de 1878, o artigo, encerrando a década que marcou a emergência da chamada “geração de 1870” com seu “bando de ideias novas”, segundo famoso dizer de Sílvio Romero, acaba também por, em certa medida, encerrar os trabalhos de uma geração. O elogio crítico elaborado pelo historiador cearense ao seu, hoje, mais notório predecessor, ao dar adeus àquele que “estremeceu sua pátria e escreveu-lhe a história” (segundo epíteto gravado no monumento à memória de Varnhagen), era também um adeus ao modelo de história que caracterizou a geração da qual o Visconde de Porto Seguro fazia parte. Como se poderá perceber ao ler o texto, correlato com a apresentação feita por Maria da Glória de Oliveira, Capistrano cobra de Varnhagen algo que talvez este não poderia oferecer e que, considerando o registro de alguns contemporâneos, nem mesmo ele Capistrano sucedeu cumprir. Todavia, esta demanda, ainda que não satisfatoriamente respondida, foi significativa de uma nova forma de história que caberia à geração sucedânea realizar. Tal é, também, a importância do texto de Sílvio Romero sobre a interpretação filosófica dos fatos históricos, apresentado como tese para ingresso no Colégio Imperial Pedro II, em 1880, e que é aqui antecedido pelas palavras introdutórias de Rodrigo Turin. Em tom polêmico e amparado, em grande medida, por referências da tradição intelectual germânica, Romero se depara com um problema da possibilidade de se projetar uma racionalidade filosófica aos fatos que constituem o processo histórico. Velho problema, é bem verdade, cujas origens podem ser remetidas à antiguidade grega, mas que, com os filósofos do Iluminismo europeu, ganhou novas tonalidades. Contudo, já não

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se tratava mais de se pensar a história à la Voltaire, pois as referências eram outras, profundamente distintas. Costuma-se definir tal referencial, com o qual não apenas Romero, mas Capistrano e outros autores aqui apresentados também compactuaram, pela noção de cientificismo. Mas é possível também, próximo a isso, sugerir uma matriz naturalista de pensamento, caracterizada por uma projeção organicista para as ciências sociais. Dentro dessa matriz, uma das constantes indagações era a respeito da cientificidade do saber histórico. Nesse sentido, o texto de Pedro Lessa, originalmente publicado como uma apresentação à obra História da civilização na Inglaterra, de Heny Thomas Buckle, é sintomático do problema mencionado. Ao recorrer a um autor que era consideravelmente difundido nos trópicos, espécie de modelo para a escrita de uma história que quisesse assumir para si o estatuto de verdadeira ciência, Lessa, cuja ocupação era antes no âmbito jurídico do que propriamente no historiográfico, mostrava-se sintonizado com as principais questões que se colocavam para a historiografia da época, inclusive pelo fato de que sua resposta colocava em suspeição a própria capacidade do saber histórico em se constituir como uma ciência plena, nos moldes das ciências duras. Daí, como bem indicado por Angela de Castro Gomes, a alteração sintomática do título do texto original quando da sua publicação nas páginas do IHGB. Questões semelhantes, ainda que desenvolvidas de forma particularmente distinta, aparecem no texto de Rocha Pombo, aqui apresentado por Piero Detoni, que se desdobra em duas frentes correlatas: definir os critérios gerais para a moderna produção da história e, como consequência disso, precisar os requisitos fundamentais para se escrever a história do Brasil. O tema ecoa, como se sabe, as preocupações que dominaram a historiografia oitocentista desde a fundação do IHGB. O discurso pronunciado por Euclides da Cunha por conta do seu ingresso na Academia Brasileira de Letras pode, à primeira vista, soar deslocado em uma coletânea voltada para a reflexão sobre a história

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e sua escrita no Brasil, como sugere desde o início de seu texto de apresentação Luiz da Costa Lima. Não obstante o fato de o autor de Os sertões ter também ingressado no IHGB, sua fala pronunciada na agremiação literária aparenta distância das preocupações até aqui indicadas. Sua pertinência nesta coletânea, entretanto, se dá justamente por este desvio que ela permite, ainda que o tema de fundo permaneça ali: no discurso, Euclides problematiza, de forma singular, as fronteiras entre as esferas da literatura e da ciência, colocando como dois personagens distintos, mesmo que encarnados em uma mesma pessoa ou voz autoral, o poeta e o cientista. No limite, seu texto funciona aqui como um momento importante dentro do qual os limites disciplinares começam a ser pensados de forma bastante intensa no Brasil. Basta lembrar que no ano seguinte, em 1907, José Veríssimo publicava seu Que é literatura? Talvez seja neste mesmo conjunto de problemas que devam ser lidos os três textos subsequentes, todos, não despropositadamente, publicados também nas páginas da revista do IHGB. Oliveira lima, João Ribeiro e Oliveira Vianna, aqui apresentados respectivamente por Mara Cristina de Matos Rodrigues, Patricia Santos Hansen e Piero Detoni, oferecem, cada qual a sua maneira, representativas reflexões sobre os desígnios esperados não apenas para a história, mas igualmente para o historiador brasileiro, onde se pode notar, no movimento dos cerca de dez anos que apartam o primeiro do terceiro, o teor das questões implicadas. Da questão documental ao processo de síntese, passando pelas condições estruturais da sociedade brasileira, como é o caso do segundo texto, a história se mostra ainda um campo não apenas em disputa, mas também em processo de consolidação segundo as novas diretrizes que se colocavam. Não é à toa, nesse sentido, que tanto Alcides Bezerra, apresentado por Mateus Henrique de Faria Pereira e Pedro Afonso dos Santos, quanto Manoel Bomfim, apresentado por Rebeca Gontijo, já na década de 20, colocassem em perspectiva histórica a produção historiográfica nacional. Se o primeiro arrola produções do século XIX, incluindo

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autores europeus e elencando alguns dos brasileiros mais representativos, o segundo, com um tom tanto mais crítico, procura romper definitivamente com um registro histórico voltado para o elogio das elites nacionais, tal como, segundo o autor, se manifestaria na obra de Varnhagen. Por fim, encerrando esta coletânea já na década de 1930, o texto de Afonso Taunay, com introdução de Karina Anhezini, marca também um momento importante dentro da história da historiografia brasileira, em que as universidades começam a ser instituídas e, com isso, uma conformação disciplinar dos saberes passa a tomar forma de maneira mais evidente, abrindo um novo período no qual novas e velhas questões são colocadas segundo diferentes perspectivas. * Esta coletânea foi pensada a partir de conversas ocorridas em 2010, durante o Seminário Nacional de História da Historiografia, ocorrido na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana/MG, e animadas pelas iniciativas de Estevão de Rezende Martins e Rebeca Gontijo. Ao longo deste longo percurso, outros tantos pesquisadores acabaram se envolvendo, seria impossível de aqui enumerar seus nomes. Os textos que compõem este volume, como se verá, são bastante heterogêneos não apenas na qualidade, mas também na sua extensão. Esta foi uma escolha deliberada no sentido de oferecer a versão integral de cada, mesmo que isso implicasse a disparidade do número de páginas de cada um. A expectativa é de que o livro se torne uma fonte de consulta e pesquisa relevante para os interessados no estudo da história da historiografia brasileira. Isto explica, inclusive, a escolha dos autores convidados para escrever as apresentações de cada um dos documentos, todos eles pesquisadores com experiência neste campo de pesquisa e especialista nos temas apresentados. Gostaria de manifestar meus sinceros agradecimentos a eles, pela generosidade em participar desta empreitada e pela paciência na espera dos trâmites editoriais.

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Estes mesmos agradecimentos são dirigidos aos pesquisadores que auxiliaram com a tarefa de transcrição das fontes: Pedro Afonso dos Santos, doutorando em história/USP e bolsista FAPESP; Thiago Augusto Modesto Rudi, mestrando em história/UNESP e bolsista FAPESP; Piero Detoni, mestrando em história/UFOP e bolsista FAPEMIG; Gabriela Correa da Silva, mestranda em história/UFRGS e bolsista CNPq; Wilson Arnhold Chagas Junior, graduando em história/UFRGS e bolsista PROBIC/FAPERGS; Allejandro Gomes Romero, graduando em história/UFRGS e bolsista PIBIC/CNPq. A revisão contou com o apoio de Gabriela Menezes Jaquet, Eliete Lucia Tiburski, Franciele Machado, Cristian Macedo e Cesar Saad. Manifesto especial gratidão a Piero Detoni, cuja participação foi de grande importância dos primórdios até o final desta tarefa. Enfim, um último mas não menos significativo e sincero agradecimento vai para Jurandir Malerba, que vem há algum tempo atuando na importante tarefa editorial de disponibilizar fontes imprescindíveis para o estudo da história da historiografia e da teoria da história no Brasil. Este livro seria inviável sem a sua participação e considerável paciência. Todas as fontes transcritas seguem com a datação da sua publicação original, bem como com a referência da obra que serviu de referência para a transcrição. Os textos passaram por um trabalho de atualização ortográfica e gramatical que procurou, na medida do possível, manter as características estilísticas de cada autor. As notas originais dos autores foram respeitadas tal como constam nas obras de referência. As notas acrescentadas pelo organizador seguem sinalizadas com (N.O.). Porto Alegre, julho de 2014.

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JOÃO CAPISTRANO DE ABREU Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen

apresentação Maria da Glória de Oliveira1

Quando escreveu o Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, em dezembro de 1878, João Capistrano de Abreu, aos 25 anos, era um recém-chegado à Corte. Como a maioria dos homens de letras de sua geração, o jovem cearense emigrara da província natal em busca de oportunidades de trabalho no jornalismo e no ensino. Nascido em 23 de outubro de 1853, na localidade de Maranguape, no Ceará, Capistrano viveu até a juventude no sítio Columbijuba, propriedade rural de sua família. Completou a sua formação no Colégio Ateneu Cearense, em Fortaleza, e, no ano de 1875, migrou para o Rio de Janeiro, onde permaneceria até a morte, em 1927 (ABREU, 1999: vii-lxxvii).2 Nos primeiros anos na capital do Império, escreveu artigos de crítica literária e breves ensaios sobre história do Brasil para os periódicos Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio e O Globo. Em 1879, admitido em concurso como funcionário da Biblioteca Nacional, entrou em contato com o acervo de obras raras e códices documentais inéditos, domiciliando-se ao território da pesquisa histórica. Alguns anos depois, conquistaria a cobiçada vaga de professor de corografia e história no Colégio D. Pedro II, com a tese que se tornou uma referência importante na historiografia brasileira, intitulada Descobrimento do Brasil e seu desenvolvimento no século XVI. No Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – lugar de elaboração e legitimação do saber historiográfico no Brasil do século XIX –, Capistrano

1 

Professora do Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

2 

Os dados biográficos reproduzidos aqui foram extraídos de CÂMARA, 1969, e VIANNA, 1999.

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foi admitido como sócio correspondente em 1887, elevando-se à classe dos membros beneméritos em 1917. A despeito desse acolhimento, manteve uma relação ambígua com a agremiação, evidenciada na crítica impiedosa e mordaz que, por vezes, dirigiu aos seus consócios: “Se lançarmos os olhos para o Instituto Histórico, veremos aí homens distintos, e que têm adiantado nossos conhecimentos em diferentes questões; nenhum, porém, será capaz de escrever uma história do Brasil” (ABREU, 1975: 136). Capistrano foi reconhecido por seus pares, e até mesmo louvado, precisamente pelo método de estudos e de pesquisa que praticava, por sua preocupação constante em repertoriar fontes documentais que suprissem as lacunas e inexatidões da história pátria. Mostrou-se sempre avesso a títulos, condecorações e pompas acadêmicas que a ele pudessem ser dedicadas. Uma atitude refratária que, para muitos, poderia indicar certa propensão à misantropia, mas que, inadvertidamente, era justificada por seu modo de conceber e praticar o ofício de historiador. Em 1915, comentando a edição de um catálogo de manuscritos do Conselho Ultramarino, afirmava o quanto ainda era prematuro escrever a história do Brasil. Cinco anos depois, sustentaria veredicto semelhante a propósito da publicação da História da Colonização Portuguesa do Brasil, de Carlos Malheiro Dias: “Agouro mal dela: no Brasil, nós não precisamos de história, precisamos de documentos [...]” (RODRIGUES, 1977: 165).3 A redação do Necrológio marca o início de um diálogo crítico que Capistrano manteve, ao longo da vida, com o legado historiográfico do Visconde de Porto Seguro e, mais especificamente, com a História Geral do Brasil (ABREU, 1975: 131-147).4 Em uma das passagens mais

3  Carta a João Lúcio de Azevedo [09.07.1920]. In: RODRIGUES, 1977. Para o comentário sobre o catálogo do Conselho Ultramarino, ver carta a Mário de Alencar [15.09.1915]. In: RODRIGUES, op. cit., p. 243, v. 1.

Quatro anos após o Necrológio, Capistrano escreveu o artigo Sobre o Visconde de Porto Seguro, publicado no jornal Gazeta de Notícias, por ocasião da inauguração do monumento em memória a Varnhagen, erguido em São João de Capanema. 4 

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citadas da correspondência ativa do historiador cearense, ele anuncia a ambição de escrever uma história do Brasil “a grandes traços e largas malhas”, com melhor encadeamento dos fatos, de modo a “quebrar os quadros de ferro” da escrita varnhageniana (RODRIGUES, 1977: 130).5 Não por acaso, em 1900, Capistrano seria encarregado pela Editora Laemmert da revisão e anotação da terceira edição da História Geral, trabalho que se estendeu pelos sete anos seguintes.6 Capistrano nunca recusou a Varnhagen o epíteto de fundador que cumprira o encargo de estabelecer as bases fundamentais para a escrita da história brasileira. A tarefa de anotação da obra monumental do Visconde de Porto Seguro exigiu a verificação de suas copiosas fontes, a confrontação com outros testemunhos, de modo a retificar, ou seja, tornar mais exata e menos incompleta a primeira grande narrativa sobre o passado nacional.7 Os Capítulos de História Colonial tornaram-se a obra mais conhecida e referenciada de Capistrano, não obstante a contribuição reconhecida de Caminhos antigos e o povoamento do Brasil, das monografias sobre o Descobrimento do Brasil e das importantes anotações críticas como os da História do Brasil de Frei Vicente do Salvador. A publicação em 1907, simultaneamente à terceira edição revista da História Geral de Varnhagen, é apontada por seus comentadores como o coroamento do trabalho de toda uma existência dedicada ao estudo da história.8 Em sua edição original, os Capítulos de História Colonial, escritos sob encomenda para o Centro Industrial do Brasil, não apresentaram os aparatos textuais do discurso historiográfico moderno – a narrativa duplicada em notas de rodapé, incluindo a citação das fontes documentais. A ausência destes 5 

Carta ao Barão do Rio Branco [17.04.1890]. In: RODRIGUES, op. cit.

6  Concluída em 1853 (mesmo ano em que Capistrano nascera), os primeiros volumes da História Geral haviam sido publicados pela primeira vez em Madri, entre 1854 e 1857. Sobre a escrita da história de Varnhagen, ver CEZAR, 2007, pp. 159-207. 7  Desenvolvi uma análise do trabalho de anotação da História Geral por Capistrano em OLIVEIRA, 2009, pp. 86-99. 8 

Entre as pesquisas recentes sobre Capistrano, ver GONTIJO, 2006, e PEREIRA, 2010.

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traços formais, contudo, nunca pôs em xeque o valor de seu conteúdo historiográfico, nem impediu que a Capistrano fossem atribuídas todas as virtudes de um verdadeiro historiador. Mais do que um texto circunstancial, o Necrológio pode ser lido como um dos primeiros ensaios de história da história do Brasil.9 Nele, Capistrano promove a reabilitação do nome de Varnhagen, vinculando-o ao importante momento de fundação da historiografia brasileira, não se eximindo, contudo, de propor um escrutínio crítico de seu legado de historiador. Após meio século de investigações ininterruptas, o Visconde de Porto Seguro concluíra, um ano antes de sua morte, a reimpressão, revista e ampliada, de sua História Geral do Brasil. Na primeira parte do Necrológio, Capistrano recapitula a sua trajetória de vida, comparando-o a um “destemido bandeirante”, atraído pelos “códices corroídos pelo tempo; livros que jaziam esquecidos ou extraviados” (ABREU, 1931: 127). É sugestiva esta primeira imagem de historiador, associada a Varnhagen, como explorador pioneiro no território ainda desconhecido e pouco explorado das fontes da história nacional. O Visconde de Porto Seguro, afirma Capistrano, tudo viu, tudo examinou, o que remete à noção de autópsia como instrumento e operação cognitiva, por excelência, de toda a investigação histórica.10 “Varnhagen determinou as posições geográficas, identificou as espécies biológicas, corrigiu os erros dos copistas e do escritor, provou a autenticidade do escrito de modo irrefragável, ao mesmo tempo descobriu o nome do autor – Gabriel Soares de Sousa” (ABREU, 1931: 128). Desse modo Capistrano se refere ao primeiro trabalho publicado de Varnhagen, Reflexões críticas sobre o escrito do século XIV, cujo impacto, segundo ele, seria decisivo para as investigações da história do Brasil. Não se tratava apenas da restauração de um manuscrito com a atribuição de sua autoria. Mais do que isso,

9  Além da publicação no Jornal do Comércio, em 16 e 20 de dezembro de 1878, o Necrológio foi reproduzido em Apenso à 4ª edição da História Geral do Brasil, de Varnhagen. 10 

Sobre a noção de autópsia, ver HARTOG, 1999, pp. 273-283.

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Varnhagen convertera o relato do cronista em uma fonte histórica por meio das operações e procedimentos da crítica documental.11 “Não se limitou a dar o rol dos reis, dos governadores, capitães-mores e generais; a lista das batalhas, a crônica das questiúnculas e intrigas que referviam no período colonial”. De acordo com Capistrano, Varnhagen fizera mais do que apresentar os fatos segundo a sua cronologia, organizando-os segundo certa ordem de significação. A História Geral o distanciava, sob muitos aspectos, dos seus antecessores na escrita das histórias do Brasil como Sebastião da Rocha Pita e Robert Southey, isto porque Varnhagen “procurou e sempre muitas vezes conseguiu colocar-se sob o verdadeiroponto de vistanacional” (ABREU, 1931: 139, grifos meus). A afirmação de Capistrano remete a um dos aspectos cruciais da concepção moderna de história: a constatação de que o conhecimento histórico cientificamente elaborado é constituído por perspectivas portadoras de inteligibilidade e sentido, isto é, pontos de vista social e pessoalmente condicionados. Assim, a posição a partir da qual o historiador investiga e escreve torna-se um pressuposto fundamental desse conhecimento (KOSELLECK, 2006: 161-188). Mas... até que ponto Varnhagen teria sido bem-sucedido na ambição de escrever uma narrativa histórica do ponto de vista da nação? Mesmo apontados os méritos do Visconde de Porto Seguro por apresentar algo mais do que a simples crônica dos acontecimentos, em seu desfavor pesava, segundo Capistrano, a defesa da “cruzada cruenta” das bandeiras paulistas como a “solução mais natural” nas relações da metrópole com os índios tupis. Ou seja, a principal vulnerabilidade de Varnhagen estava em sua visão do passado colonial. Deste modo, a crítica de Capistrano incide sobre a lógica explicativa de uma historiografia comprometida, acima de tudo, com os desígnios do Império e na qual os movimentos que prenunciavam a independência, como a Conjuração Mineira e a Revolução

11 

A esse respeito, ver CEZAR, 2000.

Fernando Nicolazzi (Organizador)

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Pernambucana, eram abordados como sintomas de uma “crise” por contrariarem certa ordem que pressupunha um Estado nacional centralizado e territorialmente unificado como coroamento do processo inaugurado com a colonização. A Varnhagen faltara, sobretudo, a compreensão do processo de formação da vida social brasileira. Sintonizado com a emergência da sociologia nas décadas finais do Oitocentos, Capistrano será categórico ao afirmar que, sem o auxílio do aparato conceitual da nova ciência, não era possível perceber as relações históricas constitutivas dos diferentes aspectos e fatores da vida de um povo. Não havia dúvida de que a historiografia do Visconde de Porto Seguro tornara tangível, pela primeira vez, “uma massa ciclópica de materiais acumulados”, oferecendo aos seus leitores as evidências documentais do passado nacional. Por esta singularidade, a sua História deveria ser reconhecida como obra inaugural. Os méritos de Varnhagen como homem de arquivo e investigador de fontes nunca deixariam de ser reconhecidos. O que Capistrano sinalizava, contudo, era a necessidade da adoção de novos pressupostos para a melhor compreensão dos dados desse passado. As condições de possibilidade para a escrita da história do Brasil depois de Varnhagen não se reduziam à descoberta e à investigação de novas fontes, mas demandavam a incorporação, pelo historiador, de instrumentos teóricos capazes de conferir ao passado não apenas uma ordenação cronológica sob a forma narrativa, mas o estatuto de objeto de uma verdadeira reflexão científica. Desta forma, poder-se-ia elevar o “edifício” cujas bases haviam sido lançadas com a “massa ciclópica” de fontes documentais, coligidas tenazmente pelo Visconde de Porto Seguro. Tratava-se de uma história a ser erigida por acumulação progressiva e por retificações constantes e sucessivas, alicerçada na produção monográfica das histórias provinciais. A metáfora da historiografia como edificação e a analogia da obra histórica com a ideia de monumento, recorrente entre os letrados do século XIX, servia, portanto, para assinalar a concepção da ciência histórica moderna.

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Mais do que um tributo à vida e à obra do historiador falecido, o Necrológio de Varnhagen também projeta uma importante expectativa. Para o jovem Capistrano, eram visíveis os sinais de vigor e profusão dos estudos históricos naquele final dos anos de 1870, mas quem escreveria uma nova (e mais “científica”) história do Brasil depois do Visconde de Porto Seguro? Não se tratava apenas de dar continuidade à obra de fundação. Era necessário esperar por alguém que se incumbisse da missão de mostrar a unidade dos três séculos dessa história e arrancasse “das entranhas do passado o segredo angustioso do presente” (ABREU, 1931: 140).

referências ABREU, J. C. de. “Necrológio de Francisco Adolpho de Varnhagen”. In: Ensaios e Estudos (crítica e história). 1ª série. Rio de Janeiro: Livraria Briguiet, 1931. ______. “Sobre o Visconde de Porto Seguro”. In: Ensaios e Estudos. 1ª série. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975. CÂMARA, José Aurélio Saraiva. Capistrano de Abreu. Tentativa biobibliográfica. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1969. CEZAR, Temístocles. “Quando um manuscrito torna-se fonte histórica: as marcas de verdade no relato de Gabriel Soares de Sousa (1587). Ensaio sobre uma operação historiográfica”. In: História em Revista. Pelotas/RS, v. 6, pp. 37-58, dez. 2000. ______. “Varnhagen em movimento: breve antologia de uma existência”. In:Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, 2007. GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao historiador. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFF, 2006. HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006. Fernando Nicolazzi (Organizador)

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OLIVEIRA, Maria da Gloria de. “A anotação e a escrita: sobre a história em capítulos de João Capistrano de Abreu”. In: História da Historiografia, v. 2, 2009. PEREIRA, Daniel Mesquita. Descobrimentos de Capistrano: a história do Brasil. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010. RODRIGUES, José Honório (Org.). Correspondência de Capistrano de Abreu. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1977. VIANNA, Hélio. “Ensaio biobibliográfico”. In: ABREU, J. C. O descobrimento do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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necrológio de francisco adolfo de varnhagen, visconde de porto seguro1 João Capistrano de Abreu

I A Pátria traja de luto pela morte de seu historiador – morte irreparável, pois que a constância, o fervor e o desinteresse que o caracterizavam, dificilmente se hão de ver reunidos no mesmo indivíduo; morte imprevista, porque a energia com que acabara a reimpressão de sua História, o vigor com que continuava novas empresas, a confiança com que arquitetava novos planos, embebeciam numa doce esperança de que só mais tarde nos seria roubado, depois de por algum tempo gozar do descanso a que lhe dava direito meio século de estudos e trabalhos nunca interrompidos. Filho da nobre Província de São Paulo, iluminava-lhe a fronte a flama sombria de Anhanguera. O desconhecido atraía-o. Os problemas não solvidos o apaixonavam. Códices corroídos pelo tempo; livros que jaziam esquecidos ou extraviados; arquivos marcados com o selo da confusão, tudo viu, tudo examinou. Pelo terreno fugidio das dúvidas e das incertezas caminhava bravo e sereno, destemido bandeirando à busca de mina de ouro da verdade. Muito moço tivera de acompanhar o pai a Portugal e no exílio, ao hálito perfumoso da saudade, infiltrara-se-lhe um patriotismo profundo e casto. A Pátria parecia-lhe suave e virginal, envolta em um nimbo

1  Publicado originalmente no Jornal do Commercio, entre 16 e 20 de dezembro de 1878. Edição do texto consultada: ABREU, João Capistrano de. Ensaios e estudos (critica e historia). 1ª série. Edição da Sociedade Capistrano de Abreu. Livraria Briguiet, 1931 (N.O.).

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vago e puro, como a memória de um ente amado, que não tornamos a ver, e pelos campos em que brincara, pelas matas, a cuja sombra se acolhera, pelos céus, sob cuja cúpula abrira os olhos à luz da existência, eram as suas mais ternas e mais cordiais aspirações. A essas aspirações veio dar nova força a campanha que fez sob as ordens do Duque de Bragança, o herói legendário que a seus olhos de férvido realista simbolizava a alma da Pátria. O estudo das ciências físicas que então cursava não conseguiu concentrar em si o pensamento que, inquieto, almejava por outros objetos. Persistente, como já então nos aparece, dominado pelo respeito do que considerava dever, pôde levar a termo o tirocínio acadêmico; porém, no cultivo das ciências, não era o esmero das observações, a beleza do método e das experiências, a força e o alcance das teorias e generalizações, que lhe despertavam o interesse ou incitavam a atividade; era a aplicação que de seus conhecimentos podia fazer a Pátria, o dia que projetava sobre as coisas nacionais. Um livro existia, vasto como uma enciclopédia, interessante como um romance, fértil como um punhado de verdades, roteiro, corografia, história natural, crônica. Longo tempo inédito, fora afinal publicado pela Academia das Ciências, porém mutilado, anônimo, inçado de erros, eivado de incorreções. Varnhagen determinou as posições geográficas, identificou as espécies biológicas, corrigiu os erros dos copistas e do escritor, provou a autenticidade do escrito de modo irrefragável, ao mesmo tempo que descobriu o nome do autor – Gabriel Soares de Sousa. Grande parte das Reflexões críticas sobre o livro deste – o primeiro trabalho que imprimiu – perderam a atualidade em consequência de novos estudos posteriores, em que ninguém entrou com capital maior que o dele. Quando foram publicadas, produziram o efeito de uma revelação, abriram um mundo novo às investigações de todos aqueles que se ocupavam de nossos anais.

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Essa obra e a que de colaboração escreveu sobre a Chorographia Caboverdiana mostram-no indeciso, flutuando entre as ciências positivas e a história. À história pertencem todas as outras publicações suas; a contar do Diário da Navegação de Martim Afonso, preito rendido a São Paulo, na pessoa do povoador e primeiro donatário da capitania. Depois, embarca para o Brasil, e durante o tempo que aqui demora, comunica ao Instituto o fogo que o abrasava. Percorre a Província do seu nascimento, mas não é só o sentimentalismo que lhe guia os passos na peregrinação: é a sina do futuro historiador que investiga os cartórios, compulsa as bibliotecas dos mosteiros, examina os padrões das outras eras, colhe glossários e tradições, e nas localidades comenta e verifica os dizeres de Taques e Frei Gaspar da Madre de Deus. Voltando a Portugal, nomeado adido à nossa legação, não arrefece um só instante. Na Revista do Instituto, pululam as memórias que envia, como os documentos que oferece, e quase não há sessão em que seu nome não apareça. De frente com essas ocupações, que satisfariam outros menos ambiciosos, ou fatigariam outros menos diligentes, leva os encargos de editor: reimprime o Caramuru e o Uruguai, e publica a até então desconhecida Narrativa de Fernão Cardim, o provincial jovial, bonachão e viveur, tão familiar aos leitores das Minas de Prata de José de Alencar. Aos tempos que passou em Lisboa ou aos que de perto se seguem, prendem-se duas obras importantes: o Florilégio da Poesia Brasileira, com um esboço de História literária, onde têm ido beber – muitas vezes sem confessá-lo – todos os que se têm ocupado com o assunto, e a edição do Roteiro do Brasil, de Gabriel Soares, um dos seus maiores e melhores títulos à gratidão do porvir. Em Madri, para onde mais tarde foi removido, possui-o o mesmo espírito febril, e a ideia, que se tornara fixa, da história pátria. Em Simancas, como em Sevilha, na Biblioteca Columbiana, como na do Escorial, colige a messe opulenta que ninguém ainda teve tão completa,

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e, quando enfim saiu à luz a sua História, podia gabar-se de que um só fato não existia que não tivesse pessoalmente examinado, ao passo que os fatos materiais por ele descobertos, ou retificados, igualavam, se não excediam, aos que todos os seus predecessores tinham aduzido. Esgotada a primeira edição da História, com uma rapidez de que entre nós há poucos exemplos, não se dá pressa em reimprimi-la; enfeixa novos dados, visita as províncias; explora todos os lugares históricos, sobe o rio da Prata, tendo a mão o roteiro de Pero Lopes; imprime ou reimprime manuscritos raros ou curiosos. Do Paraguai traz as obras de Montoya, hoje tão accessíveis e úteis graças a ele e a Platzmann. No Chile, discute os diários de Colombo e procura fixar a posição da verdadeira Guanahani. No Peru, em Venezuela, em Cuba, como em São Petesburgo, Estocolmo e Rio de Janeiro, em todos os lugares que habita ou atravessa, levado pelos deveres de diplomata ou capricho de touriste, principalmente em Viena, onde ultimamente residia, deixa traços fulgurantes de sua passagem em páginas inspiradas pelo amor do futuro da Pátria e dominados pela preocupação constante de seu passado. Se a história do Brasil ocupa as suas faculdades, não as ocupa exclusivamente: aqui publica o Livro das Trovas e Cantares, o Cancioneiro do Conde de Barcellos, o Cancioneiro da Vaticana, que tanto concorreram para o conhecimento da poesia portuguesa antiga. Ali editas as obras de Vespúcio, escreve-lhe a biografia, comenta-o, defende-o, sustenta os seus direitos à descoberta do Continente que guarda seu nome. Além vulgariza a obra de Garcia da Orta, rara tanto como preciosa, ou a carta de Colombo, escrita ao voltar da primeira viagem. Hoje se bate com D’Avezac, Major e Netscher; mais tarde, disserta sobre as novelas e livros de cavalaria portuguesa, e afirma a origem turaniana dos povos americanos. Por fim, entrega-se aos trabalhos de pura fantasia: na Lenda de Sumé, celebra a tradição encontrada pelos primeiros exploradores de um homem que ensinara aos indígenas a

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agricultura e os rudimentos de civilização que possuíam; no drama de Amador Bueno, mostra-nos a literatura nacional como a compreende, e introduz-nos na sociedade dos tempos coloniais. Sempre e sempre o perseguia a ideia da história pátria. Enquanto não publicava a nova edição, ou antes, a refusão e remodelo da obra, escreveu um dos mais nobres capítulos, a História das Lutas Holandesas, em cuja confecção empregou documentos abundantes, descobertos nos exames a que procedeu nos arquivos de Amsterdam e Haya. Depois de constantes revisões que lhe levaram mais de vinte anos, publicou de novo a História Geral do Brasil, e, para tornar o preço menos elevado, cede ao editor a propriedade da edição sem retribuição alguma. Como coroa de seus cabelos brancos, sonha uma terceira edição para que desde então começou a preparar-se, e prometeu-nos a História da Independência, infelizmente destinada talvez a não vir à luz.2 Em seguida, abandona a posição cômoda e brilhante de nosso ministro em Viena, para, nos confins de nossos sertões, procurar um lugar pela posição defensável, pela situação central, pelas condições higiênicas, próprio a servir de capital a esta Pátria, que tanto amava que não mais devia ver. Enquanto demorou nesta cidade, examinou os panfletos, jornais e memórias contemporâneos do primeiro reinado que ia agora historiar; publica, na Revista do Instituto, o texto mais completo e fiel que possuímos da carta encantador de Vaz de Caminha. De passagem por Porto-Seguro, reconhece as localidades que viu Cabral na sua viagem afortunada. Apenas chega a Viena, envia-nos o folheto retificando um erro que deixara escapar quando confundiu em um dos botânicos brasileiros. Pouco antes de morrer, quando a enfermidade mortal o obrigava a guardar o leito, escrevendo a um amigo, o Dr. Ramiz Galvão, muito digno diretor da Biblioteca Nacional, quase nem alude às dores que o conservam prostrado e impotente: sobre questões de história pátria,

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Publicada na Revista do Inst. Historico, 79, parte 1ª (1916).

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sobre pontos obscuros que deseja esclarecidos, sobre manuscritos, cuja existência deseja conhecer, é que rola toda a carta. Nobre e tocante vida voltada ao trabalho e ao dever! Grande exemplo a seguir e a venerar!

II Descoberto este Continente, aqueles mesmos que tinham chamado a Colombo visionário foram os primeiros a achar facílima a empresa e a gabar-se de poder executá-la. Depois que Varnhagen publicou sua História, e apresentou a massa ciclópica de materiais que acumulara, muitos se julgaram aptos a erguer um monumento mais considerável, e atiraram-lhe censuras e diatribes que profundamente nos pungiram. Também ele tinha muitos pontos vulneráveis. Era dos homens inteiriços, que não poliam sem quebrar, não tocam sem ferir, e matam moscas a pedradas, como o urso do fabulista. Em muitos pontos em que sua opinião não era necessária, ele a expunha complacentemente, com tanto maior complacência quanto mais se afastava da opinião comum. Suas reflexões às vezes provocam um movimento de impaciência que obriga a voltar à página ou a fechar o volume. Muitos assuntos sem importância, ou de importância secundária, só o ocupam por serem descobertas suas. A polêmica com João Lisboa, em que tinha talvez razão, porém em que teve a habilidade de pôr todo o odioso de seu lado, converteu em inimigos seus os numerosos admiradores do grande maranhense. Homem de estudo e meditação, desconhecia ou desdenhava muitas das tiranias que se impõem com o nome de conveniências. Sensível ao vitupério como ao louvor, se respirava com delícias a atmosfera em que este lhe era queimado, retribuía aquele com expressões nada menos que moderadas. Essas feições são as que geralmente se associam no espírito do leitor brasileiro ao nome do Visconde de Porto-Seguro. Ninguém procura sob

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as aparências rudes o homem verdadeiro – o trabalhador possante, o explorador infatigável, o mergulhador que muitas vezes surgia exausto e ensanguentado, trazendo nas mãos pérolas e corais. Parece que nos domina a fatalidade de perceber os objetos sob os aspectos mais desfavoráveis; uma idiossincrasia tinge tudo de negro ou amarelo: cedemos a uma predisposição pessimista, niilista, anárquica, talvez bebida com as águas, ou inspirada com as nossas brisas, talvez herdada dos Tupis, que, segregados por lutas intestinas e rivalidades perpetuamente renascentes, não conseguiram fundar um estabelecimento análogo ao que se encontrou no México e no Peru. Entretanto, é difícil exagerar os serviços prestados pelo Visconde de Porto-Seguro à história nacional, assim como os esforços que fez para elevar-lhe o tipo. Não se limitou a dar o rol dos reis, governadores, capitães-mores e generais; a lista das batalhas, a crônica das questiúnculas e intrigas que referviam no período colonial. Atendeu sem dúvida a estes aspectos, a uns porque dão meio útil e empírico de grupar os acontecimentos, a outros, porque rememoram datas que são doces ao orgulho nacional, ou melhor, esclarecem as molas que atuam sob diferentes ações. Fez mais. As explorações do território, a cruzada cruenta contra os Tupis, o aumento da população, os começos da indústria, as descobertas das minas, as obras e associações literárias, as comunicações com outras nações assumem lugar importante em sua obra. A sua opinião sobre os Tupis tem encontrado geral desfavor: julga que a compressão exercida sobre eles era mais que necessária, era indispensável, e aos seus olhos as bandeiras que os paulistas levaram até às missões jesuíticas eram a solução mais natural que se podia imaginar. Sem querer defendê-lo, pode-se em todo caso chamar a atenção para circunstâncias atenuantes. Ele não colocou o debate no terreno abstrato e absoluto da justiça, porém no da conveniência e da utilidade. Na tragédia que se desenrolava nas veigas platinas, ou nos campos amazônicos, não via a braços a liberdade e a escravidão, porém jesuítas

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que queriam isolar os caboclos para convertê-los em instrumento de manejos políticos, e patriotas que queriam incorporá-los à civilização transformada em forças vivas do progresso. Quem comparar o estado de São Paulo com a calma podre daquele cemitério de um povo que se chama Paraguai; quem não esquecer que nesses dois lugares funcionou o sistema que ele defende e o que combate, hesitará certamente antes de condenar o historiador. Além disso, o exagero a que depois levou uma Ideia justificável, se não justa, a princípio não existia: brotou de contradições veementes e polêmicas irritantes. Acresce, enfim, que espírito introspectante (sic), natureza subjetiva, determinada antes por impulsos íntimos que influências extrínsecas, Varnhagen não primava pelo espírito compreensivo e simpático, que, imbuindo o historiador dos sentimentos e situações que atravessa – o torna contemporâneo e confidente dos homens e acontecimentos. A falta de espírito plástico e simpático – eis o maior defeito do Visconde de Porto-Seguro. A História do Brasil não se lhe afigurava um todo solidário e coerente. Os pródromos da nossa emancipação política, os ensaios de afirmação nacional que por vezes percorriam as fibras populares, encontram-no severo e até prevenido. Para ele, a Conjuração mineira é uma cabeçada e um conluio; a Conjuração baiana de João de Deus, um cataclisma de que renda graças a Providência por nos ter livrado; a Revolução pernambucana de 1817, uma grande calamidade, um crime em que só tomaram parte homens de inteligência estreita, ou de caráter pouco elevado. Sem D. Pedro, a independência seria ilegal, ilegítima, subversiva, digna de forca ou do fuzil. Juiz de Tiradentes e Gonzaga, ele não teria hesitado em assinar a mesma sentença que o desembargador Diniz e seus colegas. Mesmo assim, a obra de Varnhagen se impõe ao nosso respeito e exige a nossa gratidão, e mostra um grande progresso na maneira de conceber a história pátria. Já não é a concepção de Gandavo e Gabriel Soares, em que o Brasil é considerado simples apêndice de Portugal, e a

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história um meio de chamar a emigração, e pedir a atenção do governo para o estado pouco defensável do país, sujeito a insultos de inimigos, contra os quais se reclama proteção. Não é a concepção dos cronistas eclesiásticos, que veem simplesmente uma província, onde a respectiva Congregação prestou serviços, que procuram realçar. Não é a de Rocha Pitta, atormentado pelo prurido de fazer estilo, imitar Tito Lívio e achar no solo americano cenas que relembrem as que passaram na Europa. Não é a de Southey, atormentado ao contrário pela impaciência de fugir às sociedades do Velho Mundo, visitar países pouco conhecidos, saciar a sede de aspectos originais e perspectivas pitorescas, a que cedem todos os poetas transatlânticos, desde os autores de Atala e do Corsário até os da Orientais e Clara Gazul... Não. Varnhagen atende somente ao Brasil, e, no correr de sua obra, procurou sempre e muitas vezes conseguiu colocar-se sob o verdadeiro ponto de vista nacional. É pena que ignorasse ou desdenhasse o corpo de doutrinas criadoras que nos últimos anos se constituíram em ciência sob o nome de sociologia. Sem esse facho luminoso, ele não podia ver o modo por que se elabora a vida social. Sem ele, as relações que ligam os momentos sucessivos da vida de um povo não podiam desenhar-se em seu espírito de modo a esclarecer as diferentes feições e fatores reciprocamente. Ele poderia escavar documentos, demonstrar-lhes a autenticidade, solver enigmas, desvendar mistérios, nada deixar que fazer a seus sucessores no terreno dos fatos: compreender, porém, tais fatos em suas origens, em sua ligação com fatos mais amplos e radicais de que dimanam; generalizar as ações e formular-lhes teoria; representá-las como consequências e demonstração de duas ou três leis basilares, não conseguiu, nem consegui-lo-ia. Fa-lo-á alguém? Esperemos que sim. Esperemos que alguém, iniciado no movimento do pensar contemporâneo, conhecedor dos métodos novos e dos instrumentos poderosos que a ciência põe à disposição de seus adeptos, eleve o edifício, cujos elementos reuniu o Visconde de Porto-Seguro.

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Sinais de renascimento nos estudos históricos já se podem perceber. Publicações periódicas vulgarizam velhos escritos curiosos, ou memórias interessantes esclarecem pontos obscuros. Muitas Províncias compõem as respectivas histórias. Períodos particulares, como a Revolução de 1817, a Conjuração Mineira, a Independência, o Primeiro Reinado, a Regência, são tratados em interessantes monografias. Por toda parte pululam materiais e operários; não tardará talvez o arquiteto. Que venha, e escreva uma história da nossa Pátria digna do século de Comte e Herbert Spencer. Inspirado pela teoria da evolução, mostre a unidade que ata os três séculos que vivemos. Guiado pela lei do consensus, mostre-nos o rationale de nossa civilização, aponte-nos a interdependência orgânica dos fenômenos, e esclareça uns pelos outros. Arranque das entranhas do passado o segredo angustioso do presente, e liberte-nos do empirismo crasso em que tripudiamos. Mas, ah! Bem pouco digno serás de tua missão, oh! Nobre pensador, se não sentires a gratidão inundar-te o peito, se não sentires o respeito e a veneração dominarem-te a alma, se não ajoelhares fervoroso e recolhido ante o tumulto de um grande combatente, que jamais abandonou o campo – Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto-Seguro.

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SÍLVIO ROMERO Da interpretação filosófica na evolução dos fatos históricos

apresentação Rodrigo Turin1

Silvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero tinha 28 anos quando escreveu, por ocasião do concurso para professor de filosofia do Colégio Imperial Pedro II, sua tese intitulada Da interpretação filosófica dos fatos históricos. Oriundo de uma família tradicional, mas atingida pela decadência financeira, o jovem sergipano Silvio Romero, à época em que compôs sua tese, já havia decidido pelo investimento de seus esforços na construção de uma carreira centrada no exercício das letras. Depois de formar-se pela Faculdade de Direito do Recife e de ensaiar, como deputado provincial, uma inserção no exíguo espaço político dominado pelas elites locais, partiu para o Rio de Janeiro. Ao se fixar definitivamente na corte, em 1879, passou a escrever em jornais, como O Reporter, através do qual começou a se fazer visível, principalmente pelo seu tom combativo e polêmico. Foi naquele jornal que travou sua primeira polêmica literária na corte, ao defender-se de uma resenha sobre seu livro A Filosofia no Brasil, de 1878, escrita por Sousa Bandeira para a Revista Brasileira. Em seu livro, Romero havia se dedicado a demolir os sistemas filosóficos adotados no Brasil desde Mont’Alverne, defendendo, ao final, a renovação representada pelos escritos de seu ex-professor Tobias Barreto. O argumento de Romero centrava-se em contrapor a “extravagante” junção, promovida pela geração romântica brasileira, entre Eloquência, Filosofia e Teologia, com as correntes filosóficas mais avançadas, como o positivismo e o transformismo, adotadas e divulgadas por Barreto, ao qual se filiava (ROMERO, 1969).

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Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

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Em sua resenha, Sousa Bandeira havia acusado Romero de ter escrito um verdadeiro panegírico de Tobias Barreto, desmerecendo o que havia sido produzido anteriormente. Sua renovação, acusava o resenhista, promovia um ecletismo “estéril e inconsequente”, “caminhando de sistema a sistema”, mas sem “um princípio sólido que servisse de critério e método seguro para as investigações” (BANDEIRA apud MENDONÇA, 1938: 243). Por fim, concluía Sousa Bandeira, a crítica corrosiva de Romero apenas destruía, nada construindo de positivo. Em sua resposta, além de defender a importância de Tobias Barreto e de justificar os princípios que fundamentavam seu suposto ecletismo (a observação, a experiência e a indução), Romero acusaria aquele autor de mascarar em sua resenha o verdadeiro motivo da apreciação negativa da obra: as críticas pouca lisonjeiras que lhe havia dirigido. “É que a passagem que se lê na Filosofia no Brasil a seu respeito desnorteou-lhe o critério, e ele teve mais em vista ferir o autor do que discutir a obra” (ROMERO, 1969: 150). Silvio Romero, no entanto, não agiria de forma diferente, ocupando boa parte de sua resposta com ataques pessoais ao resenhista. Esse debate indica, como já destacou José Murilo de Carvalho, a presença característica do argumento ad personam nas controvérsias letradas do século XIX (CARVALHO, 2000). Mais do que um fator cultural e marca da continuidade de uma formação retórica ao longo do século, essa forma de argumentação, que se acirra na segunda metade do século XIX com as inúmeras polêmicas literárias, também denuncia uma crescente complexificação do espaço letrado carioca, marcada pela emergência de grupos marginalizados e com menos acesso aos mecanismos de consagração estabelecidos durante o Segundo Reinado (VENTURA, 2000; ALONSO, 2002; NASCIMENTO, 2010)2.Estas querelas acerca da “renovação”, seja literária ou filosófica, aconteciam

2  A respeito das polêmicas literárias da virada do século, cf. VENTURA, 2000. Sobre a experiência de marginalização política dessa geração, cf. ALONSO, 2002; assim como a comparação entre as gerações de 1830 e 1870, realizada por NASCIMENTO, 2010.

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não apenas por meio da luta por legitimação de determinadas ideias e conceitos, mas também através de ataques diretos entre os autores, seja na forma de denuncia à moralidade do autor (sua falta de sinceridade ou patriotismo, por exemplo), seja como desmascaramento das condições de ascensão por meio de favorecimento que restringiam e condicionavam em boa parte a mobilidade naquele espaço letrado (TURIN, 2009). É a este último modelo de estratégia, adotada comumente por agentes marginalizados ou ainda não estabilizados socialmente, que recorreu o jovem Silvio Romero ao responder as críticas que Sousa Bandeira dirigiu a Tobias Barreto, com quem Romero compartilhava, mais do que as ideias, uma condição social homóloga: Suponhamos um jovem, filho de um ex-lente-filósofo e exdeputado ricaço, sobrinho de outro também ex-deputado e ex-presidente de província, parente por afinidade de um desembargador honorário, influência política e ex-presidente de província de primeira ordem, suponhamos, digo, um jovem que, apesar de QUASE REPUBLICANO e fazer PRELEÇÕES LIBÉRRIMAS, durante o curso acadêmico no CLUB POPULAR demagógico do Recife, e que, logo depois de formado dá o braço a um ministro conservador e poderoso, que o faz seu oficial de gabinete, sendo depois o jovem preclaríssimo feito, ainda por conservadores, SECRETÁRIO de uma província importante e depois empregado numa das secretarias de Estado, um tal MOÇO-FELIZ tem direito de vir a dizer a Tobias que este não tem encontrado outras dificuldades, além das que todos encontram. LATET ANGUIS... (ROMERO, 1969: 156).

A trajetória relatada por Romero referia-se, obviamente, à seguida por seu interlocutor, cuja rede de relações condicionava e possibilitava as tomadas de posições e a construção de uma carreira, cuja base era antes política que intelectual. Apresentando-se, por sua vez, como um “homem novo, sem fortuna, sem posição, obscuro”, Romero requeria para si a legitimidade de um capital especificamente intelectual, pautada nos critérios autônomos fornecidos por uma racionalidade científica (ROMERO, 1969: 147). A promoção e a defesa, em seu livro, de

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determinados autores como Kant, Comte e Spencer, e seus correlatos sistemas filosóficos, pautados em conceitos-chaves como “autonomia”, “progresso”, “positividade”, “experiência”, “evolução”, são um indício dessa experiência, ao mesmo tempo que em possibilitavam torná-la inteligível e eficaz. Sua “consciência filosófica e histórica” não estava desvinculada, portanto, de uma razão prática. O fato de Romero acusar em seu adversário o favorecimento e a influência de relações sociais e políticas em sua carreira letrada não deve implicar, obviamente, em desconsiderar que o próprio Romero dependeu dessas relações na construção de sua trajetória. O grau de autonomia da produção intelectual, naquele momento, não permitiria o contrário. Contudo, suas experiências anteriores no Recife, como a carreira política abortada e os desfavorecimentos explícitos que impediram sua entrada por concurso na Faculdade de Direito, mesmo obtendo a classificação em primeiro lugar, certamente foram incorporadas por ele, tendo efeitos no modo como percebia e posicionava-se naqueles primeiros embates letrados na corte. A atuação de Romero atrela-se, desse modo, diretamente à construção, ainda bastante incipiente, de critérios autônomos de seleção e avaliação da produção intelectual, procurando distanciar-se daquele modelo de letrado hegemônico no Segundo Reinado, nomeado pelo poder político e com este comprometido. Sua tese para o concurso do Colégio Pedro II, com seu tom arriscadamente polêmico, pode ser vista como uma clara tomada de posição nessas lutas entre distintos princípios de legitimação da produção intelectual. Tendo visto em que termos se configuraram os primeiros embates através dos quais Romero construía sua identidade intelectual, não é de espantar que ele inicie sua tese com uma discussão sobre sistemas filosóficos e ecletismo. A qualificação de “vulgar” e de “impertinente” que atribui à pergunta acerca de qual sistema filosófico determinado autor segue remete não apenas à sugestão de um membro da banca de

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que as teses do concurso deveriam versar sobre “um dos três sistemas de filosofia da história: providencialismo, livre arbítrio, fatalismo”, como também se vincula à acusação de ecletismo a ele anteriormente proferida por Sousa Bandeira. Do mesmo modo como já afirmara em sua réplica ao resenhista, Romero contrapõe a concepção de sistemas filosóficos, frutos de uma era subjetivista de conhecimento, às conquistas da ciência e da filosofia modernas que, desde Kant, fundamentavam-se em doutrinas positivas e experimentais. Mais do que a adoção de um ou outro sistema, fruto de “opiniões fantasiosas” e que se sustentavam em autoridades estabelecidas, o que cabia à filosofia como tarefa eram “verdades para explicar, fatos obscuros para resolver” (ROMERO, 1951:143). O ecletismo, desse modo, deixa de ser visto como um elemento de fragilidade intelectual para ser visto como uma qualidade que define o caráter experimental e positivo do conhecimento, critérios últimos de autoridade e de legitimidade da ciência moderna. O que leva Romero, em ato contínuo, a deslegitimar a qualificação daquele que o estava avaliando: “Percebe-se de pronto que o nobre lente tomou o assunto na altura em que o deixaram Agostinho e Pelágio, no século V, ponto de vista atrasado, que infelizmente é ainda hoje o mais corrente no grêmio dos tomistas de todas as cores, e dos sectários da ciência oficial, posição sem dúvida cômoda, mas que indica uma certa dose de inércia intelectual” (ROMERO, 1951: 144). O que chama a atenção em sua tese é o forte caráter polêmico que imprime aos argumentos. Não seria surpreendente se Romero já fosse, à época, alguém solidamente posicionado no espaço letrado carioca, ou ainda se contasse com o suporte de indivíduos bem posicionados socialmente na corte. Nesse momento de sua carreira, no entanto, ainda lutava para ter seu nome reconhecido no Rio de Janeiro; e levando em consideração sua recente experiência de malogro no concurso de Recife – justamente por falta de relações que garantissem o resultado do concurso –, é possível lançar a hipótese de que sua tese, com seu tom

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polêmico e bastante afirmativo, inseria-se como uma clara e arriscada aposta na afirmação daqueles critérios especificamente intelectuais de avaliação, implicando tanto a apresentação daquilo que se colocava como o mais “atual” no estado da arte, incluindo a enumeração exaustiva de autores e citações copiosas em línguas pouco convencionais naquele espaço (como o alemão, por exemplo, ao invés do latim ou do francês), como o ataque direto ao “atraso” e ao “comodismo” dos professores estabelecidos: “Desde muito e sobretudo em matéria filosófica, os nossos professores têm a veleidade de haver atingido o grau supremo da ciência humana, sem darem-se, contudo, ao trabalho de o atestarem por fatos e publicações dignas de apreço. É um negócio de camarilda científica, onde triunfa a chata retórica e a presunção decide os resultados” (ROMERO, 1951: 145). O caráter herético de sua tese pode ser ainda melhor avaliado quando confrontado com o perfil que regia o ensino de filosofia naquela instituição. Criado em 1838, o Colégio Imperial Pedro II tinha por objetivo o estabelecimento de um padrão que regulasse o ensino secundário no Brasil, até então disperso e nas mãos de iniciativas privadas (HAIDAR, 1972). Ao estabelecer um padrão, definindo as matérias que deveriam formar os bons cidadãos, buscava-se também – como deixou claro Bernardo de Vasconcelos em seu discurso de inauguração – reproduzir uma elite letrada, capacitando-a a tornar-se herdeira daquele Estado em construção (VASCONCELLOS, 1999: 244). O Colégio Pedro II abrigou em seu corpo docente um grupo bastante diversificado, desde figuras de pouco destaque no espaço letrado, até escritores notórios, como Gonçalves de Magalhães e Joaquim Manuel de Macedo. O modo de ingresso desses docentes era basicamente por indicação, tendo o governo livre poder para suas nomeações, mesmo após a instauração, em 1847, de um concurso de títulos. A seleção desses docentes, que poderia lhes angariar certo status simbólico, era explicitamente guiada pela preocupação com a moralidade do candidato, devendo-se refletir

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no caráter moralizador que se esperava da instituição, muito mais do que por suas qualidades e produções intelectuais. Os compêndios selecionados para o ensino de filosofia no Colégio Pedro II mostram-se, do mesmo modo, indícios sobre os critérios que presidiam aquele projeto pedagógico (VECHIA, 2003; GASPARELLO, 2004). Dentre eles, destaca-se o Curso Elementar de Filosofia para as Escolas, do abade Eustaque Barbe, e o manual de A. Pellissier, Curso Preciso e Completo de Filosofia Elementar. Permito-me aqui citar apenas uma passagem da obra de Pellissier, para dar ao leitor uma visão das razões de seleção daquelas obras, assim como do modo como o ensino da filosofia era entendido no Pedro II: Meu objetivo será atingido se estes estudos puderem desenvolver ou sugerir na juventude estudiosa o culto e o respeito religioso do passado, demonstrando-lhes pelos próprios fatos algumas verdades capitais, muito facilmente colocadas em esquecimento; por exemplo: o mundo não data de ontem e a luz não esperou nosso nascimento para se fazer. A maior parte das utopias que seduzem a imaginação há muito tempo, foram devidamente julgadas e pesadas, mostrando-se demasiadamente leves e ligeiras. Os princípios metafísicos e morais que proclama a doutrina cristã formam o fundo comum das grandes escolas da filosofia, já que são expressões de crenças essenciais da razão humana, são a voz de Deus falando a nosso espírito e ao nosso coração (PELLISIER, 1878: VIII).

A refutação de utopias e doutrinas perigosas, o reforço do reconhecimento da autoridade que só o tempo é capaz de produzir, a vinculação da filosofia à moralidade cristã, são todas preocupações claramente já expressas pelo discurso de Bernardo de Vasconcelos e reforçadas, com maior ou menor intensidade, durante as três primeiras décadas de funcionamento da instituição. As invectivas de Romero contra os docentes, acusados de comodismo e de inércia intelectual, inverte a vinculação até então atribuída entre tempo e autoridade. A valorização do novo, da novidade, enquanto “avanço” da ciência, não deixa espaço, em Romero, para a reverência a sistemas e doutrinas. Todas elas se submetem aos

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(e se dissolvem nos) critérios de observação e de crítica racional. O que se traduz no próprio sentido de sua filosofia da história que, resgatando Buckle, entende o movimento da humanidade como um processo de libertação, seja dos despotismos políticos, seja da própria natureza, garantindo, ao fim, uma maior conquista de autonomia do homem. Há, portanto, uma clara homologia, que não deve ser ignorada, entre a experiência social de Romero (assim como de outros contemporâneos) e a elaboração de sua filosofia da história, através da qual expressava e orientava sua inserção no espaço letrado, reafirmando valores como laicidade, autonomia e meritocracia; formas de configuração e de realização de um futuro. Este posicionamento, em sua tese, só se fez possível graças às mudanças que vinham ocorrendo no Colégio Pedro II. A partir de 1874, o governo havia instaurado o concurso de provas como critério de seleção dos docentes, “dispondo sobre a composição das mesas de exame e sobre o tribunal de julgamento de tais certames, tribunal composto de examinadores, do reitor do Externato ou do Internato” (ESCRAGNOLLE, s/d: 118). Sem essa abertura de um espaço formalizado de concorrência, com todas as suas limitações, seria impossível a atitude de Romero. A formalização desse sistema de avaliação permitia a aposta alta do candidato, pois mesmo sua desclassificação poderia se mostrar produtiva. Afinal, como já havia ocorrido em sua experiência no concurso de Recife – que reverberava ainda no espaço letrado –, o desfavorecimento por critérios heterônomos produziu, em negativo, o reconhecimento de suas capacidades propriamente intelectuais3. 3  É interessante, nesse sentido, destacar como, após as etapas de avaliação, se processou a afirmação do resultado do concurso. Obtendo notas melhores que seus concorrentes, com exceção justamente da tese, onde desferiu os ataques à banca e aos professores do colégio, Romero foi classificado em primeiro lugar. Podemos encontrar no parecer da comissão avaliadora a explicitação do confronto de perspectivas ali colocadas, entre os critérios meritocráticos inscritos na formalização do concurso e as prerrogativas morais e filosóficas que vinham presidindo a seleção de docentes: “Os examinadores cumprem o dever de declarar que para a classificação do bacharel Silvio Romero atenderam aos seus incontestáveis talentos, lucidez de exposição e aptidão profissional, sem investigar se a filosofia de Comte, da qual o candidato é ardente sectário, vai de encontro à unidade do plano de estudos deste Imperial Colégio, matéria esta que o governo Imperial decidirá em sua sabedoria” (MENDONÇA, 1938: 293).

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A nomeação de Silvio Romero para o cargo de professor do Colégio Imperial Pedro II lhe garantiria, finalmente, um pouco mais de estabilidade em seus investimentos literários. Sua atuação no Colégio continuaria pautada na afirmação daqueles princípios que definiam suas posições e disposições intelectuais, como quando, em 1882, faz um relatório novamente criticando os manuais e a divisão das matérias ensinadas, ou, ainda, quando defende, como membro da banca, a aprovação em concurso de outro letrado em situação semelhante à sua: Capistrano de Abreu. Em suas obras posteriores, através das quais reforçaria sua consagração literária, sua filosofia da história encontraria desenvolvimento e aplicação, com destaque para a História da Literatura Brasileira, de 1888.

referências ALONSO, Angela. Ideias em movimento. A geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. CARVALHO, José Murilo de. “História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura”, Topoi, nº 1, pp. 123-152, 2000. DÓRIA, Escragnolle. Memória histórica e documentada do Colégio de Pedro Segundo. s/d. ______. “A Filosofia no Brasil”. In: Obra Filosófica. Introdução e organização de Luís Washington Vita. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1969. ______. “A Filosofia no Brasil e o Sr. Dr. Herculano Bandeira”. In: Obra Filosófica.Introdução e organização de Luís Washington Vita. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1969. GASPARELLO, Arlette Medeiros. Construtores de identidades: a pedagogia da nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira. São Paulo: Iglu, 2004. HAIDAR, Maria de Lourdes. O ensino secundário no Império Brasileiro. São Paulo: Edusp, 1972.

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MENDONÇA, Carlos Süssekind de. Silvio Romero. Sua formação intelectual, 1851-1880. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1938. NASCIMENTO, Márcio Luis do. Primeira geração romântica versus Escola do Recife: trajetórias de intelectuais da Corte e dos intelectuais periféricos da Escola do Recife (Tese de Doutorado), São Paulo: FFLCH/USP, 2010. PELLISIER, A. Précis d’un cours complète de philosophie élémentaire. Paris: A. Durand et Pedone Lauriel Editeurs, 1878. p. VIII. ROMERO, Silvio. “Da interpretação filosófica na evolução dos fatos históricos”. Studia, Rio de Janeiro, Colégio Pedro II, a. II, n. 2, dez. 1951. TURIN, Rodrigo. “Uma nobre, difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista”.História da Historiografia, n.2, p.12-28, mar. 2009. VASCONCELOS, Bernardo Pereira de. “Discurso proferido por ocasião da abertura das aulas do Colégio de D. Pedro II aos 25 de Março de 1838”. In: CARVALHO, José Murilo de (Org.). Bernardo Pereira de Vasconcelos. São Paulo: Editora 34, 1999. VECHIA, Ariclê. “Imperial Collegio de Pedro II no século XIX: portal dos estudos históricos franceses no Brasil”. In: VECHIA, Ariclê; CAVAZOTTI, Maria Auxiliadora. A escola secundária. São Paulo: Annablume, 2003. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. História cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

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da interpretação filosófica na evolução dos fatos históricos1 Silvio Romero

“As regras e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso, ou antes, do abuso de nossas faculdades naturais, são as cadeias que nos retêm em perpétua menoridade” (Kant). “Só existem hoje os ignorantes e os espíritos grosseiros para acreditar n’uma liberdade pertencente a cada um dos atos do homem, em um liberum arbitrium indiferente” (Schopenhauer).

Nada mais vulgar, tratando-se de filosofia, do que a impertinente pergunta: a que sistema pertence. Mas isto tem uma explicação. As ciências, antes de se constituírem, atravessaram fases preparatórias, em que predominaram, na falta de dados e doutrinas positivas e experimentais, as opiniões singulares, o modo de ver subjetivo de cada autor.2 Daí os sistemas. As ciências particulares acham-se hoje em dia livres de semelhante reuma, que até agora, para os espíritos superficiais ou caprichosos, conserva-se enraizada no corpo da filosofia. E contudo vai nisto um grosso engano; toma-se o que foi pelo que é, perdura-se em conservar um vício metafísico que não tem mais razão de ser.

1  Tese apresentada para o concurso da cátedra de Filosofia no Colégio Pedro II realizado entre dezembro de 1879 e janeiro de 1880. Edição do texto consultada: ROMERO, Silvio. “Da interpretação filosófica na evolução dos fatos históricos”. Studia, Rio de Janeiro, Colégio Pedro II, a. II, n. 2, dez. 1951. As notas seguem conforme notação feita pelo autor (N.O.). 2 

Ed. Zeller, Die Philosophie der Griechen.

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Compreende-se facilmente, por exemplo, que a astronomia, quando era a astrologia, e a química, quando era a alquimia, fossem o campo predileto dos debates contraditórios, das questões sem termo, e dessem pasto às fantasiosas combinações dialéticas dos espíritos irrequietos. Assim também era a filosofia, quando o seu supremo ideal consistia em afastar-se do curso das verdades ensinadas pela experiência – para atirar-se estática à busca das essências, dos enigmas irresolúveis.3 Agora, porém, que, desde Kant, não deve passar de uma síntese de todas as ciências particulares, incumbida, na opinião mais sensata, de preparar a intuição geral do universo, ela não há de ter sistemas; porque nas ciências, que lhe servem de apoio, não os há. Existem, sim, verdades para explicar, fatos obscuros para resolver; mas não há opiniões fantasiosas e subjetivas existem ordem e concatenação de doutrinas, e não teorias individuais.4 Pretender encerrar o universo inteiro no âmbito asfixiante de meia dúzia de fórmulas, as mais das vezes, filhas de uma imaginação desregrada e de um critério míope, é por certo ainda mais extravagante do que querer encerrar uma vasta ação dramática entre as quatro paredes de um teatrinho de tábuas, como o desejo bufônico do Diretor no Faust: “So schreitet in dem engen Bretterhaus Den ganzen Kreis der Schöpfung aus, Und wandelt mit bedächtger Schnelle Vom Himmel durch die Welt zur Hölle!”5*

3 

A. Lange, Geschichte des Materialismus.

4  Existem, sim, verdades para explicar, fatos obscuros para resolver; mas não devem imperar opiniões fantasiosas e subjetivas; precisamos de ordem e concatenação de doutrinas, e não de teorias individuais. (N.O.). 5   Goethe, Faust. “Assim circula pela pequena casa de madeira / Toda a gama da criação / E anda com pressa cautelosa / Do céu, via terra, até o inferno”. Tradução de René Gertz. (N.O.).

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Ainda mais cresce de ponto semelhante anomalia, tratando-se de aplicar qualquer dessas teorias que aí andam, como bitola infalível, à massa complicadíssima dos acontecimentos humanos.6 O programa que está diante de nós, se bem o compreendemos, visa, nem mais nem menos, a perguntar-nos qual é a teoria que abraçamos para explicar a marcha, a evolução dos acontecimentos históricos. Tanto isto é verdade que um dos majores domus da comissão julgadora, cidadão que não temos a fortuna de conhecer, mas que dizem ser um valoroso espírito, dignou-se de informar-nos que o sentido da tese não pode deixar de ser a discussão dos três sistemas que existem de filosofia da história, isto é, o providencialismo, o livre arbítrio e o fatalismo! “Os três únicos sistemas...”. Únicos porque e como? Todos os que houverem estudado um pouco de filosofia histórica e social devem saber que, desde os mais remotos tempos, apareceram tentativas de explicar cientificamente a evolução dos acontecimentos humanos. Mais de oitenta sistemas se hão produzido a tal respeito, e hoje até já existe uma história da filosofia da história. Correm aí livros elementares, que devem andar na mão de todos, que fazem o histórico das muitíssimas teorias dos pensadores que hão tentado descobrir e demonstrar a lei que rege os destinos humanos. Além do livro superficial e lacunoso de Robert Flint – The philosophy of history in Europe, de que parece já haver um tal ou qual conhecimento entre nós, graças à tradução francesa, existem, entre outras, duas obras importantes – Die Philosophische Geschichte Auffassung der Neuzeit, de Mayr, e La Scienza della Storia, de Marselli, que deviam ser lidas por aqueles que entre nós se encarregam de confeccionar as teses, que às vezes são verdadeiras charadas, de nossos programas de ensino. Como quer que seja, porém, e dado que os sistemas de todos os autores se devam reduzir a alguns poucos principais, o número destes é, em todo o caso, superior aos três lembrados pelo digno examinador. 6 

Herbert Spencer, Principles of Sociology.

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Percebe-se, de pronto, que o nobre lente tomou o assunto na altura em que o deixaram Agostinho e Pelágio no século V, ponto de vista atrasado, que infelizmente é ainda hoje o mais corrente no grêmio dos tomistas de todas as cores, e dos sectários da ciência oficial, posição sem dúvida cômoda, mas que indica uma certa dose de inércia intelectual.7 Para resolver-se uma qualquer questão, dada nos países cultos, de ordinário não é mister fazer uma excursão ao estrangeiro; dentro do círculo em que se move o pensamento nacional, deparam-se ao trabalhador os elementos do problema, os dados científicos da coisa. Não assim entre nós, e este é, aos meus olhos, o mais completo documento de nossa pobreza intelectual; sempre temos necessidade de pedir um guia aos povos ilustrados. Tal a nossa posição, diante do programa que temos a discutir. Onde estão os trabalhos de filosofia e mais ainda, os de filosofia da história devidos a penas brasileiras, que sirvam de apoio à solução que procuramos? Não existem! Não é sem motivo que esta lacuna é aqui propositadamente lembrada. Desde muito e sobretudo em matéria filosófica, os nossos professores oficiais têm a veleidade de haver atingido o grau supremo da ciência humana, sem darem-se, contudo, ao trabalho de o atestarem por fatos e publicações dignas de apreço. É um negócio da camarilda científica onde triunfa a chata retórica e a presunção decide dos resultados. Diante de tal fato, extravagante e anormal, que talvez só entre nós se repita com tanta afoiteza, cumpre-me desde logo humildemente declarar que, tendo de submeter-se ao juízo de homens, que podem ser muito ilustrados, eu não duvido, mas que não tenho na conta de meus mestres, porque eles não são, não podem sê-lo de quem quer que se afaste um pouco da tonadilha comum, cumpre-me logo declarar, digo,

7 

Vi. Guizot, Histoire de la Civilisation en France.

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que, qualquer que pessoa ser a estranheza que lhes isto cause, apelo de seu juízo para o bom-senso da nação, para o critério de todos os homens verdadeiramente ilustrados e independentes, que não ocupam posição oficiais no país. Isto, que não é uma baforada de orgulho, mas simplesmente a centésima repetição do que tenho escrito e publicado pela imprensa, é necessário que fique aqui ainda uma vez consignado como uma advertência e um protesto. O ponto, repetindo a linguagem consagrada, que nos serve de tese, para ser discutido com todo o cuidado que requer, forneceria matéria para meia dúzia de volumes e, todavia, é forçoso comprimir as ideias e os fatos para encerrá-los em algumas poucas páginas. A concepção da sociedade humana como um todo complexo, que se desenvolve por leis princípios certos, é muito antiga; veio sempre a percorrer a curva evolucional do pensamento especulativo, ora clara, ora indecisamente; mas só nos últimos tempos é que ela firmou-se definitivamente, e conquanto a sociologia não tenha ainda, na frase feliz de alguém, encontrado o seu Newton, já é possível falar, sem extravagância, numa ciência da história. Nem é inexplicável a razão por que esta permaneceu tantos séculos erma e estéril, como simples narração cronológica, sem base científica. Sem um conhecimento exato das leis que regem o mundo físico, seria impossível um trabalho científico aplicado à história, e aqueles que conhecem a marcha do pensamento humano para dar-se conta do enigma do universo devem conhecer que só mui recentemente é que as teorias cosmológicas adquiriram um certo grau de firmeza. São de todo exatas estas palavras do sábio Wundt: “Zwischen der frühen Ahnung, dasses eine gesetzmaessige Ordnung der Dinge gebe, und der klaren Erfassung der einfachsten Naturgesetze liegt ein langer Weg geistiger Arbeit, welcher die Ue berwaeltigung fest gewurzelter falscher Meinungen vielleicht mehr ersch Wert hat als das Verstaendnis

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der Wahrheit. Die ganze Kosmologie des Alterthums ist ein dunkles Meer von Irrthumern, aus dem nur selten, den Leuchtthürmen einer fernen Küste vergleichbar, ênzelne früh erkannte Wahrheiten emportauchen.”8

Se assim era a cosmologia dos antigos, o que não foi a sua sociologia? Suponho não ser da mente dos formuladores do ponto que eu deva aqui fazer o histórico das mais célebres teorias, que hão sido formuladas, no intuito de explicar cientificamente os fatos humanos. Seria um trabalho ingrato de simples balística intelectual, em que era mister somente pôr ao meu serviço o muito que de proveitoso se tem escrito sobre os diversos sistemas de filosofia da história. Destarte, não será preciso expor e criticar, entre os mais antigos, o acaso de Demócrito e Epicuro, os ciclos de Platão, o desenvolvimento orgânico dos povos de Aristóteles, o messianismo profético dos judeus, a graça de Agostinho, a predestinação de alguns teólogos, a providência de Bossuet, os ricorsi de Vico, a imanência panteística de Spinoza, o otimismo progressista de Leibnitz, e, mais modernamente, o pessimismo de Schopenhauer, o inconsciente de Hartmann, o trágico de Bahsen, a imaginação de Forsschammer.9 Basta-me afirmar, com os mais autorizados críticos hodiernos, que a concepção dos acontecimentos tem atravessado até hoje quatro largos períodos – a teologia, a metafísica, a física da história e, finalmente, a história científica.10

8  Deutsche Rundschau, zweiter Jahrgang. Heft 3. * “Entre a antiga intuição de que existe um ordenamento regular das coisas, e a percepção clara das mais elementares leis da natureza há um longo caminho de trabalho intelectual a percorrer, o qual talvez dificulta a superação de ideias profundamente enraizadas muito mais que a própria compreensão da verdade. Toda a cosmologia da antiguidade é um tenebroso mar de equívocos, do qual só muito raramente emergem algumas verdades isoladas e precocemente reconhecidas, iguais a faróis de praias distantes”. Tradução de René Gertz (N.O.). 9  Vide Mayr, Die philosophische Geschits auf fassung der Neuzeit, e Nic. Marselli, La Scienzza della Storia. 10 

Marselli. La Scienza della Storia.

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Este modo de ver e de julgar tem um grande apoio nos modernos estudos mitológicos, religiosos e linguísticos, e é confirmado pela célebre lei dos três estados, entrevista por Schellinge Saint-Simon e formulada brilhantemente por Comte. Fazendo abstração dos nomes dos autores, os diversos sistemas de explicação histórica, no que eles têm de essencial, se podem reduzir aos seguintes:

O primeiro sistema que se nos depara, como se viu, é o da ação da vontade divina sobre o homem. É o puro reinado da transcendência; é a fase primitiva e teológica da história. O homem, ignorando as leis que regem o desenvolvimento do universo, voltou-se para um auxiliar estranho, poderoso e formidável, que lhe guiasse os passos.11

11 

Bréas, Hercule et Cacus; Guiberanatis, Zoological Mithology; Bluckle.

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A ação da vontade divina sobre a marcha da história divide-se em duas ideias teológicas ingloriamente discutidas na idade média, que não nos devem mais preocupar, como anticientíficas e inverificáveis. Destroem a responsabilidade humana e assentam numa pretendida ciência do absoluto, que implica uma contradictio in adjecto. A teoria do livre arbítrio aparece em seguida. Se a predestinação originava o fatalismo teológico, e pior de todos os fatalismos, o liberum arbitrium indifferentiae inaugurava a doutrina do acaso, fazia do homem um ente extraordinário, desprendido de todas as relações e influências. Não havia mais uma lei para a marcha social; predominava o capricho de cada um. Aceito as palavras de Schopenhauer: “Tal qual sois, tais quais serão, deverão ser vossas ações: o liberum arbitrium indifferentae não passa de uma invenção da filosofia na sua baixa idade desde muito chasqueada; e para carregar esta bagagem só existem hoje algumas mulheres com chapéu de doutor”. Devo passar de relance sobre todos estes sistemas. Quanto à liberdade relativa, distinta do livre arbítrio radical, adiante será discutida e indicar-se-á o sentido em que pode ser aceita. As doutrinas metafísicas da identificação das manifestações divinas e humanas abrem a vasta série de teorias da imanência, isto é, daqueles sistemas que explicam o desenvolvimento do universo por leis inerentes a ele mesmo, sem um auxílio exterior. A imanência, como a compreendem hoje os sectários da unidade das forças físicas, os defensores das teorias monísticas, em geral, é aceitável e é muito diferente da imanência a Spinoza e a Hegel.12 A doutrina destes paira nas alturas do absoluto, pressupõe o conhecimento esmerilhado das ações divinas, e eu digo, com Littré, que para estas nós não temos ni barque ni voile...13

12 

Vid. Hackel, Naturliche Schoepfunges. Geschichte,passim.

13 

“Nem barco, nem vela” (N.O.).

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A Hero-Worship de Carlyle tem o defeito de desconhecer o valor das criações populares e dar um culto por demais exagerado e sobre-humano a alguns tipos privilegiados. Um sistema de história, que não dá conta das criações anônimas, é perfeitamente incompleto e falso; hoje só os espíritos retardatários desconhecem que os mais imponentes produtos da atividade humana, como a linguagem, as mitologias, as religiões, os contos, as legendas, as grandes epopeias, não são obra dos heróis, são produções anônimas. Carlyle diante de Buckle faz uma figura apoucada. O determinismo naturalístico inaugurou a fase a que Marselli chama a física da história. Seus principais representantes foram: Buchez, Quetelet e Comte. Fez a crítica impecável da teologia e da metafísica, e prestou relevantíssimos serviços. Tem mais de um lado aceitável, sendo combatível somente por não dar conta exata disso a que os alemães chamam – o fator humano. Cheguemos ao ponto culminante deste esboço – o critério científico da história, como ação combinada da natureza e do homem. Duas correntes gerais de estudos constituíram por si sós toda a revolução intelectual do século XIX: o grande desenvolvimento das ciências físicas por um lado, e por outro a descoberta dos antigos monumentos do pensar humano, como o sânscrito, as inscrições cuneiformes e hieroglíficas, que vieram a formar o fundamento da ciência histórica. Viu-se então um fenômeno surpreendente: o método de comparação tornou-se a base de todas as ciências, quer das que se ocupam da natureza, quer das que tratam do homem, e assim como o critério histórico entrava no coração daquelas, o senso naturalista invadia as últimas. É por isso que um só hálito de profundeza científica resuma das páginas de um livro de biologia de Darwin e de um tratado de linguística de Schleicher. É a mesma tendência, o mesmo método-histórico-naturalista. Estas ideias são vulgaríssimas para aqueles que se hão ocupado de crítica científica na Europa, ainda que sejam banidas e esconjuradas

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por certos doutores brasileiros. Até a simples crítica literária tornou-se impossível sem determinarem-se as influências geológicas, climatéricas e fisiológicas sobre a intuição dos poetas. É por isso que desde Gervinus, principalmente na Alemanha, todo crítico de senso procede a este estudo preliminar para compreender um espírito qualquer. F. von Hohenhausen teve razão em dizê-lo: “Seit Gervinus wendet die deutsche Literaturgeschichte ihre Aufmerksamkeit auf einem früher zu sehr vernachlässigsten Punckt, auf die locale Bedingtheit der Poesie. Sie berstrebt sich, auch in den bedeutenden literarischen Erscheinungen die Einflusse pragmatisch aufzusuchen, welchei die Abstammung und die heimathlichen Gewohnheiten des Dichters auf seinen Character und sein Wiren ausgeübt haben. Je eigenthümlicher, je ursprünglicher und culturferner ein Landsctricj ist, je mehr wird er zu Geburtsstätte eunes Originals sich geeignet erweison.”14

O que se diz da literatura deve-se afirmar de todas as manifestações espirituais da humanidade: sempre há aí a combinação binária das forças físicas e mentais. Dentre os modernos filósofos da história, aquele que melhor desenvolveu essa dupla base de uma concepção científica do assunto foi o jovem escritor inglês H. Th. Buckle, cujas ideias já tive ocasião de desenvolver noutro lugar, defendendo-as das sugestões de Littré, e que exporei agora novamente, buscando aguardá-las das objeções que lhes foram feitas por Dubois-Reymond e Lange, dois admiradores e sectários do insigne autor da Civilization in England.15 Neste notável livro há a distinguir a parte crítica e a dogmática.

14  Deutscher Kaempfer. n. 2. “Desde Gervinus, a história da literatura alemã concentra sua atenção sobre um ponto antigamente muito ignorado, isto é, os condicionamentos locais da poesia. Ela procura, mesmo nas manifestações literárias as mais significativas, pelas influências pragmáticas que a ascendência e os costumes da terra natal possam ter exercido sobre o caráter e a obra do poeta. Quanto mais peculiar, mais original e afastada da cultural uma localidade estiver, tanto mais apropriada se revelará para constituir o berço de algo novo e original”. Tradução de René Gertz (N.O.). 15 

Vid. A Poesia Popular no Brasil, na Revista Brasileira, s. 3.

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A primeira consiste na refutação da maneira antiga de explicar a história. Vejamo-la. Buckle insurge-se contra o método dos teólogos e o dos metafísicos; porque ambos desconheceram a lei da normalidade evolucional dos fatos humanos – um por meio da doutrina extravagante da predestinação, e outro por meio da caprichosa num livre arbítrio de cada homem. “The theory of predestination is founded on a theological hypothesis; that of free-will on a metaphysical hypothesis”.16 Estas duas doutrinas para o nosso autor, além de outros defeitos que lhes são inerentes, não só hão corrompido as fontes de nossos conhecimentos, mas ainda deram fundamento a seitas religiosas, cujas animosidades mútuas hão perturbado a sociedade e muitas vezes alterado as relações da vida privada.17 Os sectários da predestinação exigem de nós que acreditemos que o autor da criação fez uma distinção arbitrária entre os eleitos e os não eleitos; que ele desde toda a eternidade condenou à perdição milhões de criaturas ainda não nascidas, que um ato seu somente pode chamar à existência e que assim procede não em virtude de um princípio de justiça, porém por uma mera ostentação de poder despótico.18 Esta doutrina, estando fora da alçada de nossos conhecimentos, não mereceu ao escritor uma refutação. Quanto ao livre arbítrio, que se prende ao Arminianismo, firma-se em duas suposições: a existência de uma faculdade independente chamada consciência, e a crença de que os seus ditames são infalíveis. “But”, diz o nosso autor, “in the first place, it is by no means certain that consciousness is a faculty; and some of the ablest thinkers have been of opinion that it is merely a state or condition of the mind.

16  P. 13. “A teoria da predestinação é fundada em uma hipótese teleológica; aquela do livre-arbítrio, em uma hipótese metafísica” (N.O.). 17 

P. 12 do v. I.

18 

P. 13 do v. I.

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Should this turn out to the case, the argument falls to the ground; since, even if we admit that all the faculties of the mind, when completely exercised, are equally accurate, no one will make the same claim for every condition into which the mind itself may be casually thrown. However, waiving this objection, we may, in the second place, reply, that even if consciousness is a faculty, we have the testimony of all history to prove its extreme fallibility”. E acrescenta: “Consciousness is infallible as to the fact of its testimony; but fallible as to the truth”.19 Buckle firma-se em Kant e prova que nossas ações são sempre influenciadas por seus antecedentes, pelo meio em que vivemos, por nosso organismo, nossas aptidões hereditárias, e muitos outros móveis obscuros, que a ciência pode dilucidar. Neste caminho, aberto por Kant, se hão precipitado os mais distintos escritores modernos, nomeadamente Schopenhauer, Wagner, Drobisch, Lange, na Alemanha.20 Todos os filósofos e fisiologistas, historiadores e críticos – Büchner e Hackel, como Herzen e Ferri –, caminham na mesma direção. Os argumentos principais dos adversários podem reduzir-se a dois: um de ordem psicológica e outro de natureza moral. O primeiro consiste em dizerem que temos consciência da liberdade de nossas ações, isto é, temos a consciência de pudermos praticar ou deixar de praticar uma ação. Primeiramente, semelhante afirmação é destituída de fundamento; porquanto não temos consciência da liberdade, e sim de certas ideias que

19  V. I, p. 15. “Mas, em primeiro lugar, não é de modo algum certo que a consciência é uma faculdade; e alguns dos mais hábeis pensadores são de opinião de que se trata apenas de um estado ou condição da mente. Sendo este o caso, o argumento cai por terra; pois, mesmo que se admita que todas as faculdades da mente, quando completamente exercidas, são igualmente acuradas, ninguém fará a mesma afirmação para toda condição na qual a própria mente pode ser casualmente colocada. Todavia, renunciando esta objeção, pode-se, em segundo lugar, replicar que, mesmo se a consciência for uma faculdade, temos o testemunho de toda a história para provar sua extrema falibilidade. A consciência é infalível quanto ao fato do seu testemunho; mas falível quanto à verdade” (N.O.). 20 

Lange, Geschichte des Materialismus, II, p. 500.

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nos estimulam à ação. A liberdade, como no-la ensinam, é uma afirmação do sentimento e da educação, e não um fato primordial irredutível, e a consciência não a poderia jamais firmar, quando todos sabem, menos os filósofos beatos que muitas de nossas ações são inconscientes. E onde anda aí a consciência e a liberdade? Demais, a consciência é enganadora como uma bacante ébria; a prova que, e este ponto reclama atenção, os indivíduos educados sub um regime fatalístico têm a consciência da fatalidade de seus atos! O argumento de ordem moral consiste no remorso que se tem quando se pratica o mal... Nada prova, além da falta de atenção da parte dos propugnadores dos velhos erros. A ideia de responsabilidade é um produto da inteligência, e basta o conhecimento que o homem tem de seus atos para responder por eles. O remorso não passa do sentimento de nossa inferioridade pessoal. Tanto o vexame moral não se produz somente após os maus atos da vontade, que, quando cometemos erros de conhecimento, ou somos acusados até de alguma imperfeição física, sentimo-nos igualmente abatidos. Por outros termos, e para tudo dizer claramente: o homem sente-se fustigado por alguma coisa que o acabrunha diante de qualquer imperfeição de que se veja acusado. Um aleijão físico, um fiasco intelectual, incomodam-nos e fazem-nos corar tanto quanto a prática de uma ação feia. Para sermos consequentes, deveríamos criar, pelo menos também uma categoria de remorsos intelectuais. Além de tudo, quem não sabe que o arrependimento nunca existiu na maior parte dos delinquentes de profissão? Lombroso tirou a limpo este ponto, firmando-se nas mais exatas observações prolongadas por muitos anos.21 No mais entra aí em larga escala a educação. Um crente católico aflige-se porque deixou de jejuar em certos dias; a beata desfalece, por-

21 

Vid. Lombroso, L Uomo delinquente.

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que se esqueceu de rezar às almas. Sente remorsos em consequência de uma falta destas... O muçulmano fatalista deixa cumprir-se a vontade de Alá, e não se lembra de sua liberdade para resistir-lhe. A consciência é muda em tudo isto; limita-se a refletir as ideias que a educação ou outra qualquer fonte lhe sugere. Kant dizia que a liberdade no indivíduo tem duas faces únicas: a de ser e a de praticar – operari sequitur esse. A liberdade no operari, ele a reduziu a poeira, provando que um ato qualquer é sempre o resultado de uma casualidade, de um antecedente, e não pode, portanto, ser livre quando este o não é. Seria uma derrogação de princípio. O nexo causal é sempre uma verdade para todos os que admitem que os nossos conhecimentos são relativos e se desenvolvem por evolução. Por uma dessas contradições, que às vezes se asilam sorrateiramente nas concepções dos mais belos gênios, Kant admitia liberdade no esse.22 A liberdade de ser? Herzen, firmado no bom-senso e nas especulações científicas, reduziu-a a fumaça.23 Cada um de nós é aquilo que a natureza deixou ser; entramos no mundo presos a mil circunstâncias de época, lugar, pátria, tradições nacionais, inclinações e vícios de família, defeitos e predisposições de organismo... e se nos vem a falar na liberdade de ser!... “Eu podia ser outro”, diz Kant. Sim; o filósofo podia ter sido outro, se a natureza o tivesse produzido diverso do que ele foi, mas, ainda neste caso, nem ele seria ele próprio, nem a modificação que sofresse seria um resultado de sua vontade. O problema da liberdade tem sido mal compreendido. Uma anomalia é para notar-se.

22 

Kant, Werk,v. V, pp. 20, 21, 111, 268, 270, VI, 149, II, 24; II, pp. 419,420.

23 

Fisiologia della Volonta.

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Os filósofos mais empenhados na defesa teórica do livre arbítrio são os que mais amesquinham a natureza humana, e são os mais autoritários na prática. Os que admitem que por evolução é que o homem vai adquirindo suas melhores qualidades espirituais, e engrandecendo o seu desenvolvimento filético, são os mais tolerantes e entusiastas da liberdade política e social. Tanto tem do liberal um Häckel como de retardatário qualquer desses paradigmas da ignorância que arrotam aos ares as gentilezas do livre arbítrio! É que para Häckel, como para Buckle e todos os que meditam desprevenidos sobre a vida humana, a liberdade é mais uma conquista da inteligência sobre o fatalismo da natureza, do que o poder que dá a teologia a cada um para fazer disparates. A velha teoria das faculdades da alma, desacreditada desde Hume e Herbart, é a fonte de todos os erros da velha psicologia sobre a liberdade. Citado em Buckle. Criando domínios exclusivos na vida espiritual, a antiga escola fez da vontade um ermo recluso do espírito, separado por uma trincheira de abstrações das outras faces da vida psíquica. A liberdade não é um predicado da vontade, é, antes, uma resultante da inteligência; consiste não em praticar ações caprichosamente, sem motivo e precedentes; mas no discernimento intelectual de abraçar um partido. Como diante de muitas teorias diversas e encontradas, o homem estuda, medita, trabalha para formar uma ideia de um assunto qualquer, e, as mais das vezes, se após muitos ensaios contraditórios e o abandono de umas quantas opiniões, é que chega a abraçar uma doutrina e, abraçando-a, o fez em virtude de uma necessidade lógica, assim é com a liberdade. Ele tem sempre precedentes racionais, por isso mesmo não é, não pode ser, o livre arbítrio indiferentice. Aplicando tal ordem de ideias à marcha coletiva da humanidade, a liberdade desta consiste em ir-se subtraindo à pressão do

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despotismo. Do despotismo da natureza, que a fustiga de todos os lados e contra o qual ela vai obtendo triunfos por meio da indústria; do despotismo dos padres, que se arrogaram o direito de dispor das consciências, e contra o qual ela vai conseguindo vitórias por meio da crítica; do despotismo dos tiranos, de todas as formas e tamanhos, que se apossaram do poder de dispor de seus destinos, e contra o qual ela vai obtendo desforras por intermédio da ciência e da revolução. Mas voltemos a Buckle. Aos sistemas decrépitos dos metafísicos e teólogos, ele opõe o evolucionismo regido pelas leis físicas e mentais. Ouçamo-lo neste ponto: “Rejecting, then, the metaphysical dogma of free will, and the theological dogma of predestined events, we are driven to the conclusion that the actions of men, being determined solely by their antecedents, must have a character of uniformity, that is to say, must, under precisely the same circunstance, always issue in precisely the same results. And as all antecedent are either in the mind or out of it, we clearly see that all the variations in results, in other words, all the change of which history is full, all the vicissitudes of the human race, their progress or their decay, their happiness or they misery, must be the fruit of a double action; an action of external phenomena upon the mind, and another action of the mind upon the phenomena.”24

Buckle firma-se em Quetelet, que, com a transformação da estatística pelo cálculo das probabilidades, prova, de ano a ano, a repetição

24  V. 1º, p. 20. “Rejeitando, assim, o dogma metafísico do livre arbítrio, e o dogma teológico dos eventos predestinados, somos levados à conclusão que as ações dos homens, sendo determinadas apenas pelos seus antecedentes, deve ter um caráter de uniformidade, quer dizer, deve, sob precisamente as mesmas circunstâncias, sempre levar precisamente aos mesmos resultados– e como todo antecedente esta, seja dentro da mente ou fora dela, nós claramente vemos que todas as variações nos resultados, em outras palavras, toda a mudança da qual a história está repleta, todas as vicissitudes da raça humana, seu progresso ou sua decadência, sua felicidade ou sua miséria, deve ser fruto de uma dupla ação; uma ação de fenômenos externos sobre a mente, e outra ação da mente sobre os fenômenos” (N.O.).

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gradativa dos mesmos crimes, do emprego das mesmas armas para igual número de assassínios, de suicídios, também a repetição da celebração de igual soma de casamentos...25 São geralmente aceitos os fatos esclarecidos pelo ilustre calculista belga e comprovados pelos mais sérios observadores novíssimos. As ações humanas são regidas por um complexo de leis que, as mais das vezes inconscientemente para nós, atiram-se no caminho da vida, como uns quase atores. Mas a história, que não é uma cadeia de fatos sempre novos e desarmônicos com seus antecedentes, como já se pretendeu, não se repete, como pode algum inconsiderado acreditar. Os dados estatísticos, que representam o elemento estático na humanidade, não podem chegar até aí; a marcha da história é evolucional, e tanto basta para que não se dê repetição, como não há disparatada incoerência. O filósofo inglês divide as leis, que regem os acontecimentos humanos, em físicas e mentais. Estas subdividem-se em normais e intelectuais. Na história há um fluxo e refluxo de ações e reações. As leis físicas atuam sobre a raça humana, e esta, que nos tempos primitivos sofria-lhes a pujança quase sem resistir, já se vá habilitando a neutralizar-lhes a cega pressão. As influências desta ordem são pelo autor classificadas em quatro categorias: clima, alimentação, solo e aspecto geral da natureza. Deste último, diz: “The last of these classes, or what I call the general aspect of Nature, produces its principal results by exciting the imagination, and suggesting those innumerable superstitions which are the great obstacles to advancing knowledge. And as in the infancy of a people the power of such superstitions is supreme, it has happened that the various aspects of Nature have caused

25 

Ibrid, p. 24 e seguintes; Quetelet, Physique Sociale.

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corresponding varieties in the popular character, and have imported to the national religion particularities which, under certain circumstances, it is impossible to efface.”26

O célebre fisiólogo alemão Du Bois-Raymond, espírito eminente, porém, como diz Häckel, tem a habilidade de dissimular a fraqueza de uma argumentação e a falta de profundeza do pensamento por uma miragem de teses e antíteses, por belas imagens e comparações floridas, referindo-se, na sua bela conferência “Culturgeschichte und Naturwissenchaft”, à doutrina de Buckle sobre a impressão da natureza nas criações mitológicas, aceita-a, e, ao mesmo tempo, no final de seu arrazoado, diz que o escritor britânico exagerou um pouco, e acaba por estas palavras: “O encadeamento das casas seria exatamente estabelecido, se dissesse que o caráter psicológico de um ramo da humanidade é originado, entre outras, pelas impressões produzidas pelo aspecto da região em que ele se desenvolveu, e que este caráter particular, por sua vez, junto a muitas outras circunstâncias, determinou as formas religiosas.”

Du Bois-Raymond, obedecendo ao seu sestro, quis e não quis ao mesmo tempo estar de acordo com Buckle. Que outra coisa ensina este senão que o aspecto geral da natureza só por si é insuficiente para explicar as criações mitológicas. Tanto ele o reconhece que, para isso, como para tudo mais, não faz entrar em linha de conta somente aquele fator. Du Bois-Raymond foi vítima de uma de suas ilusões à francesa. O filósofo britânico, depois de estabelecer a influência da natureza na civilização, passa a explanar o que ele chama a ação das leis mentais.

26  P. 39. “A última destas classes, ou o que chamo de aspecto geral da natureza, produz seus principais resultados excitando a imaginação e sugerindo aquelas inumeráveis superstições que são os grandes obstáculos para o avanço do conhecimento. E como, na infância de um povo, o poder destas superstições é supremo, aconteceu que os vários aspectos da Natureza causaram variedades correspondentes no caráter popular, e importaram para a religião nacional particularidades que, sob certas circunstâncias, é impossível de apagar” (N.O.).

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Sendo o homem um ser inteligente e altamente progressivo, foi paulatinamente meditando sobre as coisas e adquirindo conhecimentos, a que foi dando uma aplicação prática. Mundo das artes, das indústrias, das ciências, ele precata-se da ação brutal dos fenômenos externos e como que, em certo sentido e até certo ponto, volve-os a seu favor. Todas as grandes invenções são largos passos que damos nesse caminho. O progresso das ciências é o mais forte incentivo de nosso melhoramento. As conquistas intelectuais são as que mais depressa nos arrojam para diante. É por isso que elas são melhor fermento de adiantamento do que a mera intuição moral. Buckle demonstra que a simples educação moral é insuficiente para prevenir grandes catástrofes e injustiças se ela não é secundada por conhecimentos científicos. Prova-o com a Inquisição espanhola, cujos principais chefes eram indivíduos de uma vida casta e pura, mas cuja ignorância deixava-os ser invadidos pelo mais atroz fanatismo.27 O venerável Lange, como o chamou Helmholtz, na sua célebre Geschichte des Materialismus, diz que Muckle adotou um ponto de vista falso para provar que o progresso real dos costumes e da cultura em geral depende essencialmente do progresso intelectual. Parece-me infundada a observação de Lange. Não há falsidade em sustentar-se que os móveis principais, veja-se bem, principais e não exclusivos da cultura, que não passa de uma conquista das ideias, sejam os progressos intelectuais. Buckle o que quis significar é que as reformas no pensamento se produzem mais rapidamente do que as revoluções na moral.

27 

V. 2, p. 583; v. 1, p. 188.

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E isto é exato; a moral é como a matemática: modifica-se lentamente, diz um autor, pela justa posição das verdades, e não pela revolução das teorias. O autor da História do Materialismo, admirador aliás de Buckle, cujos engenhosos escritos ele recomenda a Wagner, insinua, entretanto, que o inglês declarou a moral invariável! Lange olvidou-se; exagerou as coisas; tomou uma tal ou qual lentidão de progresso por invariabilidade! A sua própria exageração o refuta. Na ação das leis mentais sobre a natureza é que está o elemento autônomo do homem, sua atividade consciente e seu impulso para libertar-se da fatalidade. Creio que, por mais amigos que sejamos da retórica, nós os brasileiros, não se há de exigir de mim que alce agora o coturno e decante as maravilhas e as conquistas reais, levadas a efeito pelo homem desde os fins da época terciária, quando ele não passava de um selvagem erradio, até hoje que circulou a terra de linhas férreas e telégrafos. Ele, que não tinha o poder de avançar às vezes muitos passos além de sua caverna, agora tem a liberdade de comunicar-se em poucos minutos de um continente para outro. Essas é que são as conquistas da sua forca livre. A dupla ação da natureza e da inteligência é hoje princípio elementar da filosofia da história. Marselli diz: “Accettare eziandio dalle Scienze naturali le dottrine, le leggi e porle a base della Storia, come la natura inorganica stà a base de quella organica...”.28 Mayr escreveu: “Muitas coisas consideráveis, em lugar de serem preparadas por uma mão diretora, são consequências fortuitas de muitas relações e coincidências: o homem, porém, combate vitoriosamente

28  La Scienza della Storia, I, p. 383. “Aceitar assim das ciências naturais as doutrinas, as leis e colocá-las na base da história, como a natureza inorgânica está na base da orgânica” (N.O.).

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muitas vezes em nome de certas ideias as resistências que encontra no caminho.”29

A história, portanto, não deve mais ser uma simples exposição árida de fatos; tampouco poderá ser mais um estudo abstrato e inaplicável ao gosto das deduções de Hegel e consócios. Como se vê, a doutrina mais corrente em filosofia da história, ou melhor, em história científica, está igualmente distante do providencialismo, essa paródia da predestinação, do livre arbítrio, essa caricatura do acaso, e do fatalismo materialístico, esse espantalho de todos os beatos, quero dizer, de todos os pregadores de antigualhas. É claro, pois, que os três únicos sistemas, na frase de nosso examinador, além de outros claros, abriram mais um para a doutrina, que aí ficou esboçada. O ponto de vista que predomina entre os nossos filósofos e historiadores é ainda hoje o das amplificações retóricas, ao gosto de alguns modelos franceses. É por isso que, ainda há pouco, um notável jornal de Leipzig, falando da vida espiritual dos brasileiros, escreveu estas palavras: “Ihre mechanische Nachahmung französischen Wesens hat sie daran gehindert, einen Anlauf zu selbstständiger geistiger Entwickelung zu nehmen, und Alles, was ihre Literatur producirt, trägt den Stempel der Oberflächlichkeit, der Gedankenarmuth, des Nachbetens.”30

É duro; mas é verdade; envergonhemo-nos disso. Quando não possamos já devassar largos horizontes intelectuais e produzir feitos perduráveis, abramos mão de nossos preconceitos e deixemos a crítica limpar o caminho obstruído por pobres e inúteis destroços.

29 

Die philosophische Geschichtsauffassung der Neuzeit, I, p.48.

“Sua imitação mecânica da essência francesa a impediu de tomar um impulso para um desenvolvimento intelectual autônomo, e tudo aquilo que sua literatura produz leva a marca da superficialidade, da pobreza de ideias, da reza alheia”. Tradução de René Gertz (N.O.). 30 

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PEDRO LESSA Reflexões sobre o conceito da história

apresentação Angela de Castro Gomes1

Em 25 de julho de 1921, morria, na cidade do Rio de Janeiro, o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Pedro Augusto Carneiro Lessa. Nos mais importantes jornais da cidade, os necrológios publicados evidenciavam a importância do “ilustre jurista e homem de letras”, registrando as contribuições de sua trajetória de vida e resumindo seu desaparecimento como “uma perda nacional”. Pedro Lessa nascera no Serro, em Minas Gerais, em 1859, tendo ascendência negra (o que não era dito), e tendo-se enobrecido nas arcadas da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, onde se formou em 1883. Foi certamente como estudante que se integrou em uma rede de sociabilidade político-intelectual, tornando-se positivista, abolicionista e republicano, bem aos moldes da chamada geração de 1870. Dessa forma, antes da República, já iniciara sua carreira como professor nessa mesma faculdade de Direito, sendo, após a proclamação, eleito deputado à Assembleia Constituinte de São Paulo e designado Chefe de Polícia desse estado. Não deu seguimento à sua carreira política, mas foi logo consagrado como advogado, professor, juiz e “homem de letras”. Em 1907, foi nomeado para o STF, tendo igualmente tomado posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e, em 1910, na Academia Brasileira de Letras (ABL), quando sucedeu Lúcio de Mendonça, que também o substituiu no STF. Permaneceu sempre ligado ao mundo das letras e da política, sendo

1  Professora Titular do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e do CPDOC/FGV. Bolsista de Produtividade em Pesquisa 1A do CNPq. Sobre Pedro Lessa ver também GOMES, 2012, cap. I.

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um dos fundadores da Liga da Defesa Nacional, em 1916, juntamente com Rui Barbosa, Olavo Bilac e outros intelectuais. Assim, em 1921, embora sua memória fosse reivindicada principalmente pelo STF, pelo brilho de seus pareceres e de sua contribuição para a constituição de uma doutrina brasileira do habeas corpus, os necrológios dos jornais deixavam claro que ele era bem mais que um magistrado. No caso de O Jornal,2 sua morte é classificada como o desaparecimento de uma figura de relevo “na vidado pensamento no Brasil”: “Ele queria agir numa esfera mais larga e de repercussão mais viva. Os seus livros de direito, os seus ensaios de crítico e de historiador foram, depois dos anos de magistério, o derivativo de atividade rara do seu espírito”. E, entre suas contribuições, o periódico lembra um ensaio em especial intitulado, É a história uma ciência? Introdução à História da Civilização de Buckle. Portanto, embora seja um texto singular em sua produção, toda voltada para questões jurídicas, ele marcou sua trajetória intelectual, sendo lembrado quando de sua morte, até porque foi responsável por sua indicação como sócio do IHGB. As condições de produção desse ensaio, bem como seu conteúdo, marcado pela polêmica intelectual, são exemplares e muito úteis para se ter acesso aos debates que dominavam o campo da História, no Brasil da virada do século XIX para o XX. Publicado na revista do IHGB em 1908, com o título “Reflexões sobre o conceito da História”, segundo nota que o precede, já aparecera “alhures”. Por isso, a intenção da Comissão de Redação era permitir sua leitura “aos que não puderam ainda apreciar as esclarecidas considerações sobre o conceito de História e aos que desejarem de pronto relê-las”.3 De fato, o ensaio fora escrito com outro título e para outra

2  O Jornal, 26.07.1921, a. III, n. 767, p. 3. Consultei também: Gazeta de Notícias, 26.07.1921, a. XLVI, p.3 e 4; Correio da Manhã,26.07.1921, a. XXI, n. 8180, capa e p. 3. 3  O texto está publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,t. 69, v. 114, 1906, p. 193-285, publicada em 1908. Ele será usado em todas as citações de páginas aqui realizadas.

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situação. Na capa do volume que o publica isoladamente, aparece como É a história uma ciência?, havendo o seguinte esclarecimento: “O estudo reproduzido nesse opúsculo foi escrito e publicado como introdução à História da Civilização na Inglaterra, de Buckle, traduzida para o vernáculo pelo Sr. Adolfo J. A. Melchert”. Trata-se de uma edição de 108 páginas, feita pela Tipografia da Casa Eclética, situada na Rua Direita, nº 6, em São Paulo, no ano de 1900, o mesmo das comemorações do Quarto Centenário do Descobrimento.4 Portanto, a revista do IHGB reeditava um texto que conduzira Lessa à casa dos historiadores, mas que fora produzido com uma finalidade específica: apresentar o livro de Buckle ao público brasileiro. Na verdade, o estreitamento das relações de Pedro Lessa com o IHGB datava desse momento, pois é em 1901 que seu nome é proposto como sócio correspondente pela Comissão de História. Ele é então apresentado como “autor de importantes trabalhos jurídicos e literários, servindo de título de admissão a sua [...] curiosa monografia – ‘É a história uma ciência?’. O dr. Pedro Lessa é lente catedrático da Faculdade de Direito de S. Paulo, onde já exerceu o cargo de chefe de polícia. Tem uma vida ilibada, toda dedicada ao estudo. Goza do melhor conceito entre seus contemporâneos. Tem 41 anos de idade. Rio, 23 de abril de 1901” (RIHGB, 1901: 188). No parecer de resposta da Comissão de Admissão, que aprovou sua indicação, verifica-se que o trabalho foi considerado “erudito, patriótico e repositório precioso de fatos” (RIHGB, 1901: 254). Alguns anos depois, em 1912, e já como sócio efetivo, seu nome é elevado à condição de sócio honorário, o que não ocorria necessariamente com todos os integrantes do IHGB, evidenciando-se assim sua respeitabilidade intelectual na Casa.

O opúsculo consultado está na Biblioteca Nacional e foi dedicado, pelo autor, ao Dr. José Carlos Rodrigues, proprietário da coleção comprada por Benedito Ottoni. Informo que não consegui consultar o livro traduzido de Henry Thomas Buckle. 4 

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Entretanto, por razões pessoais, embora membro da instituição desde 1901, só lhe foi possível tomar posse em 10 de junho de 1907.5 Na oportunidade, encontrava-se em plena fase de consagração intelectual e política. Sua produção era fortemente marcada por discursos e conferências, além de livros e estudos de Direito. Seu nome já era muito respeitado no campo jurídico e sua atuação no STF o consagraria, pois foi considerada, posteriormente, uma garantia de cumprimento da lei, sobretudo nos períodos de exceção experimentados durante a Primeira República.6 Mas Pedro Lessa também era um leitor de Varnhagem e João Francisco Lisboa e seu interesse pela história tinha razões filosóficas e pragmáticas em nada distantes de suas preocupações com os fundamentos e a aplicação do Direito. Nesse sentido, suas “Reflexões sobre o conceito de História” são tanto uma exceção no conjunto de sua produção, como um complemento muito pertinente e revelador do universo mental dos intelectuais da virada do século XIX para o XX. Sendo assim, uma importante indicação sobre o texto é a sugestiva alteração do título realizada pelo IHGB. Em lugar de uma pergunta direta sobre a cientificidade da história, algumas “reflexões” sobre seu conceito. Certamente, tal mudança, nada ingênua, relaciona-se à resposta dada por Pedro Lessa à questão título. Outra possibilidade para pensar o “ajuste” realizado remete ao próprio Buckle e a seu livro, originalmente publicado na Inglaterra, em dois volumes, respectivamente em 1857 e 1861.7 Buckle,

5  O discurso de posse de Pedro Lessa está na RHIGB, t. 70, v. 116, 1907, p. 716-22, publicado em 1908. 6  “Bibliografia de Pedro Lessa”, A Manhã, Suplemento Autores e Livros, a. IV, 23.07.1944, p.49 e 53. 7  O volume I de História da civilização na Inglaterra, London, John Parker, 1857, continha uma exposição das ideias e métodos científicos de Buckle. O volume II, de 1861, era um estudo de “aspectos peculiares” da história da Espanha, França, Escócia e EUA e foi nele que apareceram menções sobre o Brasil. Em 1866 houve uma nova edição da obra de Buckle, dessa feita em três volumes e com o título História da civilização na Inglaterra, França, Espanha e Escócia.Segundo comentaristas, foi por meio dessa edição que o autor se tornou mais conhecido internacionalmente.

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um rico autodidata e grande viajante, tornara-se famoso e respeitado por suas principais ideias, especialmente nas décadas finais do século XIX, quando várias teorias deterministas e o paradigma evolucionista começaram a circular mais intensamente. Considerando-se as “reflexões” de Pedro Lessa, vale esclarecer que, de uma forma geral, Buckle era reconhecido por seu esforço para tornar a história uma ciência. Uma proposta desafiadora, que exigia o abandono de dois sistemas, doutrinas ou dogmas muito compartilhados: de um lado, as explicações fundadas na vontade divina ou predestinação, e, de outro, aquelas que advogavam a vontade humana ou livre arbítrio. Para muitos leitores de Buckle, entre os quais Pedro Lessa, nessa proposição residia uma grande contribuição ao pensamento científico da época. O século XIX era considerado, já no início do XX, como de grande importância intelectual, tanto pelos avanços das ciências naturais como pelos avanços das ciências sociais e da história. Essas últimas, inclusive, não mais poderiam ignorar os conhecimentos estabelecidos pelas primeiras, nem se abster de trabalhar com os métodos da “observação e da comparação” voltados para os “acontecimentos humanos”. Pode-se ponderar que, entre 1900 e 1908, quando o livro de Buckle e o texto de Pedro Lessa são publicados, essas proposições não eram algo inteiramente novo. Além disso, também já estava em pauta outra crítica, realizada pelos intelectuais brasileiros, que atacava o europocentrismo da visão de mundo de muitos intelectuais europeus. Ou seja, o “pensamento social brasileiro”, ao menos até as décadas de 1920/30, trabalhava com os paradigmas evolucionistas e cientificistas, mas interpretando-os continuamente, quer para aderir a eles em alguns aspectos, quer para negá-los, mais ou menos radicalmente. O que talvez constitua um diferencial para o caso do livro de Buckle é o fato de ele ter analisado, em algumas páginas, o exemplo do Brasil, o que, certamente, produziu maior interesse, pesando para sua tradução e redação de um texto introdutório à sua publicação.

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Começando pelo fim e antecipando a resposta de Pedro Lessa à pergunta “é a história uma ciência?”, verifica-se que ela é negativa: a história não é, e talvez nunca se tornasse uma ciência. Portanto, o autor discorda das intenções e das respostas de Buckle, que acreditou ser possível tornar a história uma ciência e que a considerou fundada em uma doutrina na qual a natureza tinha grande centralidade, mesmo se filiando ao que se chamava “determinismo psicológico”. É justamente por essa filiação que João Luiz Alves,8 comentarista de Pedro Lessa, considera os elogios deste ao livro como sinceros e advindos da concordância com uma assertiva básica: se a natureza modificava o homem, o homem também modificava a natureza, e “dessa influência recíproca devem necessariamente decorrer todos os acontecimentos”. Ficasse Buckle nesse postulado e com ele desenvolvesse sua história da civilização, seu livro dificilmente seria contestado. Nesse sentido, a resposta negativa de Lessa à sua questão título só ganha sentido quando se percebe o que o autor entende por ciência e por história, o que exige do leitor percorrer com atenção suas “reflexões”. O ensaio de Pedro Lessa suscitou aplausos, debates e também incômodos, dentro e fora do IHGB, que perduraram durante a década de 1900. É o que se pode constatar pelo discurso de recepção, proferido por Clovis Bevilaqua, outro grande nome do Direito brasileiro de então, quando de sua entrada na ABL, em 1910. Fazendo o elogio ao jornalista, político e magistrado, caracterizado como possuidor de uma posição “empirista” em relação ao Direito, Bevilaqua reserva uma parte da saudação para comentar as concepções de Lessa sobre a questão da cientificidade da história. Considerando duas variáveis – o passar do tempo e o “tom dubitativo” da conclusão do autor no ensaio de 1900 –, ele expressa sua crença (uma forma de desejo) de que Lessa pudesse ter alterado sua maneira de pensar. Segundo Bevilaqua, chamado a prefaciar a “obra magnífica de Buckle”,

8  Sobre a recepção da Introdução de Pedro Lessa ao livro traduzido para o português, ver ALVES, 1944: 56. Trata-se de um texto “resenha”, onde o autor acompanha cada parte da monografia de Lessa. O jornal também indica que foi pronunciado como Discurso Acadêmico na ABL, v. 5.

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Lessa discutira com todos os autores “que se externaram sobre o assunto”, para concluir recusando à história o caráter de ciência. Porém, “em dez anos, as ideias, que se não petrificam na intransigência do sectarismo, podem sofrer modificações, e vós fechastes o trabalho de então, como quem não considera o caso irrevogavelmente julgado [...] . [...] Dissestes que ‘a História coleciona e dispõe, metodicamente, os materiais, em cuja observação e comparação haurem suas induções ciências diversas. O método descritivo, aplicado pelo historiador, é um excelente instrumento’, acrescentastes, ‘para a aquisição de verdades gerais da Sociologia e seus ramos especiais’. [...] Este pensamento é justo [...] . Mas, se assim é, forçoso se faz reconhecer que o historiador, para apanhar a verdadeira expressão dos fatos e a sua natural filiação, tem de penetrar-lhes o âmago e descobrir as influências físicas, econômicas, étnicas, morais e até individuais, de cujo concurso resultaram. Não será um simples narrador [...] . E nessa tarefa, sem dúvida escabrosíssima, há os elementos de uma ciência, não de leis ou de noções, mas de fenômenos, que se expõem metodicamente, coordenados, segundo a relação da casualidade” (BEVILAQUA, 1910).9 Está aí, muito claramente, uma demanda por um tipo de cientificidade da história que, se não era a das ciências sociais, não transformava o historiador em um “simples narrador”, isto é, um literato, um ficcionista, mesmo devendo ser ele um “homem de letras”. Uma década depois do fim da redação das “reflexões” de Pedro Lessa, pode-se aventar que os princípios da escola metódica fossem mais conhecidos e compartilhados no Brasil, assumindo o historiador, por meio deles, tanto a face do erudito que faz a crítica documental, como a face do narrador que “explica as causas” de eventos singulares, que de fato aconteceram. O “tom dubidativo” apontado e sentido por Bevilaqua remete-nos às tensões presentes no ensaio que, algumas vezes, tornam difícil, para o leitor, saber ao certo

9  Discurso de recepção de Clóvis Bevilaqua, proferido em 6 de setembro de 1910. Em ABL, sessão do acadêmico Clóvis Bevilaqua: . Acesso em: 10 jun. 2012.

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qual a posição do autor quanto às possibilidades de a história vir a ser uma ciência, ainda que não nos moldes das ciências naturais e das ciências sociais praticadas na virada do século XIX para o XX. Ao defender que história e “filosofia da história” eram “coisas distintas”, Lessa afirmava que a segunda era equivocada e irrealizável, justamente por pretender produzir generalizações sobre o passado de toda a humanidade, e também explicar o presente e prever o futuro (aliás, um único futuro). Demarcava, assim, um estatuto preciso para a história, bem distante dos arroubos desse tipo de filosofia. A impossibilidade da “filosofia da história” advinha da constatação dos “limites” inerentes à “verdadeira” natureza dos “fatos históricos” e, portanto, da própria história como disciplina. Esta trabalhava com fatos que não se repetiam (eram singulares); que não podiam ser “completamente” desvendados, por sua multiplicidade e também por sua contingência, já que, em boa parte, não eram “fatos necessários”. Dessa forma, mesmo quando a história descobria as causas de um fato (pois geralmente não existia uma única causa, dada à complexidade dos fenômenos sociais), não se podia, por meio desse conhecimento, estabelecer “relações constantes”, isto é, leis e previsões de futuro. Isso porque tal fato jamais tinha ocorrido antes e jamais ocorreria depois, o que, de forma alguma, invalidava o esforço realizado pelo historiador. A história, avaliando-se suas possibilidades e seu “método descritivo”, não era e não seria uma “ciência”, segundo o modelo das ciências sociais da época, que podiam e faziam operações de generalização, embora apenas para o presente, e não para o passado ou para o futuro. Assim, o que a leitura do ensaio de Pedro Lessa deixa como estímulo para pensar é se tal “limitação” e “falta de cientificidade”, cuidadosamente demonstrada, significava uma real perda de força/sentido para a História, na visão do autor. A dúvida justifica-se pelo fato de ser essa “negação de cientificidade” a única forma divisada, dentro da lógica construída pelo texto, de a história demarcar seu campo “moderno” de atuação, diferenciando-se tanto de uma “velha” história (a

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“filosofia da história”), como das novas ciências sociais, em particular da sociologia, que buscava as leis dos fenômenos sociais do presente. Ambas, aliás, embora de forma inteiramente distintas, querendo produzir generalizações e previsões para a humanidade. Numa certa perspectiva, pode-se imaginar que Pedro Lessa desejava identificar e delimitar o objeto da história segundo os “modernos parâmetros” de seu tempo, que eram os da escola metódica, que ele conhecia e citava. Na perspectiva cientificista da época, tal opção implicava um grau de “inferioridade” e de “limitação” para a história, mas tal “posição” estava sendo enunciada como uma “condição” para a disciplina demarcar sua própria especificidade. Por conseguinte, era por meio dessa “limitação/ delimitação” que a história, de um lado, tornava-se fundamental para o trabalho das novas ciências sociais; e, de outro, tornava-se uma disciplina capaz de compreender os fatos do passado, que, por serem singulares e complexos, não eram previsíveis, nem passíveis de enunciação por qualquer tipo de lei. Justamente por isso, a História era o conhecimento que fundava os alicerces memoriais de um povo, também singular e complexo, valendo o investimento dos “modernos” historiadores.

referências ALVES, João Luiz. “O conceito de história para Pedro Lessa”. A Manhã, Suplemento Autores e Livros, a. IV, 23 jul. 1944. BEVILAQUA, Clóvis.“Discurso proferido em 6 de setembro de 1910”. In: ABL, sessão do acadêmico Clóvis Bevilaqua: . Acesso em: 10 jun. 2012. GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. IHGB. Revista do IHGB,t. 64, v. 104, 1901. LESSA, Pedro. “Reflexões sobre o conceito da história”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 69, v. 114, 1906, publicada em 1908.

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reflexões sobre o conceito da história1 Pedro Lessa

a história antes de buckle Na Grécia e em Roma, consistia a missão do historiador em narrar os acontecimentos memoráveis. Obra de arte, e não de ciência, a história se escrevia geralmente para perpetuar, encarecendo, os feitos militares, ou políticos;2 e seu principal merecimento estava em reproduzir tradições e crônicas, muitas vezes infiéis, sob os primores literários do estilo descritivo. Dionísio de Halicarnasso nota uma certa semelhança entre a forma animada e pitoresca da História de Heródoto e a dos poemas de Home-

1  Publicado originalmente com o título “É a história uma ciência? Introdução à História da Civilização de Buckle”, em 1900. Edição do texto consultada: LESSA, Pedro. “Reflexões sobre o conceito da história”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 69, v. 114, 1906, publicada em 1908. As notas seguem conforme notação feita pelo autor (N.O.). 2  Tácito deplorava não poder incluir nos seus Anais os assuntos que faziam o objeto da história, qual a entendiam os antigos romanos: – Não se devem comparar os meus Anais com as antigas histórias do povo romano. Nesse tempo, havia para contar grandes guerras e grandes batalhas; muitas cidades tomadas por força, e muitos reis vencidos ou feitos prisioneiros; e, se alguma vez só fazia menção dos negócios domesticus, era para relatar livremente as discórdias dos cônsules com os tribunos, os debates sobre as leis agrárias e as contendas do povo com os grandes. Mas o meu objeto é muito somenos, e pode ser talvez que também assim seja a minha glória: pois escrevo de uma época em que, quase sempre tem havido paz, ou poucas vezes tem sido perturbada; e na qual não posso dar notícia senão de desgraças internas, e do governo de um príncipe que nunca ambicionou estender o seu império... A descrição de diversos povos e diferentes países, a variedade das batalhas, e as ações ilustres dos grandes capitães, naturalmente prendem e enluvam a atenção dos leitores; mas, eu não posso nem tenho para contar senão ordens e decretos atrozes; continuas acusações; perfilas violações da amizade; ruína e desgraças de muitos inocentes; e ao mesmo tempo quais foram as suas causas; objetos estes que, por serem, quase em tudo semelhantes, chegam por fim a enfastiar. (Annales, liv. 4º, XXXII e XXXIII).

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ro.3 A profunda concisão de Tucídides e a perfeição ática de Xenofonte fizeram da História da guerra do Peloponeso e da Retirada dos Dez Mil inimitáveis modelos de narração. Sallustio, de quem dizia o poeta Marcial primus romana Crispus in historia, exige do historiador, como primeira condição de sucesso, “uma linguagem a altura dos acontecimentos”.4 Sem embargo das suas qualidades de homem de ação, dos seus dotes de incomparável cabo de guerra, César foi exímio na gramática e na retórica; e tão rigoroso era o seu classicismo, que aconselhava a evitar as expressões novas ou incorretas, com a mesma solicitude com que o marinheiro deve fugir das penedias.5 É por isso que Cícero, segundo o testemunho de Suetônio, admirava o estilo puro dos Comentários, ao ponto de recomendar que ninguém “bordasse sobre essa talagarça”.6 Tito Lívio é a eloquência romana: tendo vindo já muito tarde – quando a liberdade era apenas uma tradição – para exercitar os seus talentos oratórios, e achando interdita a tribuna das arengas forenses, transportou o rostro para as Décadas, e, no dizer de Taine, “il fut historien pour rester orateur”.7 Quinto-Curcio, um simples retórico, a nenhum escritor cede na descrição das batalhas. A energia, a profundeza e o brilho do estilo de Tácito, que “a poesia, o ódio e o estudo inflamaram e sombrearam”, só se encontram uma vez na história.8 Mas, sob as formas atraentes ou empolgantes dessa consumada arte de descrever, não se preocupe, pois frequentemente seria vão esforço apurar a fidelidade das informações, inquirir a verdade dos fatos. Não se observavam, porque só ainda não conheciam, os câno-

3 

Histórias de Heródoto, trad. De Miot, pref., XXXVIII.

4 

Catilina III.

5 

Mommsen, História Romana, v. 7, liv. 5º, cap. XII.

6 

Suetonio, Os Doze Césares, Julio Cesar, L. VI.

7 

Essai sur Tite-Live, introdução, § 1º. * “Ele foi historiador para permanecer orador”. (N.O.)

8 

Taine, obra citada, conclusão. § 2º.

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nes da heurística, da diplomática e da crítica de interpretação, sem os quais ninguém hoje se aventura à árdua tarefa da historiografia.9 Raros historiadores, ao reconstruírem os fatos políticos e militares da vida de um personagem, de uma família ilustre, ou de um povo em determinado período (e cifrava-se nisso a história), procediam a um escrupuloso exame de provas, ou se davam ao ímprobo labor de cirandar meticulosamente os documentos. Quão poucos poderiam repetir, convencidos, as palavras de Tucídides! “No que toca à verdade dos fatos, diz o autor da História da guerra do Peloponeso, não dei crédito às primeiras pessoas que encontrei, nem as minhas impressões pessoais; narrei somente os acontecimentos de que fui espectador, ou sobre os quais adquiri informações precisas e de certeza absoluta”.10 Na Anabase, Xenofonte descreve fatos de que foi testemunha, porquanto fez parte da expedição de Cyro, o moço, a qual comandou depois da morte de Clearcho, e por isso a sua narrativa se aceita como verdadeira; mas, na Cyropedia, tanto desdenhou a verdade, que é hoje opinião unânime não passar a História de Cyro de um romance moral.11 Em verdade, aquele jovem príncipe, dotado pela natureza de todos os encantos imagináveis do espírito e do corpo, educado no seio de um povo singular, que a tudo antepunha a utilidade pública, e de tal arte formava o coração de seus filhos, que estes não cometiam jamais atos censuráveis, nem tinham nunca motivo para corar; aqueles bárbaros, tão zelosos cultores da justiça que nas escolas só ensinavam as normas do direito, tão imbuídos dos preceitos da mais pura ética, que escrupulosamente praticavam todas as virtudes mais tarde preconizadas pelo cristianismo; aquele perfeito e elevadíssimo

9 

10 

Langlois e Seignobos, Introduction aux Études Historiques, liv. 2º. Tradução de Lévasque, liv. 1º, XXII.

Já o rançoso Laharpe comparava a Cyropedia ao Telemaso de Fénelon, no Discurso Preliminar que precede a tradução de Suetonio. Bossuet é um dos poucos historiadores que dão credito à Cyropedia (Discours sur l’Histoire Universelle,parte primeira, 7ª época). 11 

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estoicismo, que nos faz antever em cada Persa, sectário da religião mazdeísta, o mais bem acabado protótipo do místico medieval;12 tudo isso por certo pode constituir o ornato e o ensinamento moral de um livro destinado à educação da juventude, mas destoa profundamente da severidade do historiador. Se, para escrever a Retirada dos Dez Mil, Xenofonte faz de Tucídides o seu modelo, quanto à fidelidade da exposição, na Cyropedia imitou o pai da história, o qual com fábulas e lendas, entretecidas nos fatos, compôs os seus nove livros, consagrados às nove musas, e que mais se assemelham aos cantos de uma epopeia do que aos capítulos de uma história. Não obstante o manifesto desdém de Quintiliano, ao aludir às histórias gregas,13os historiadores romanos não foram menos descaroáveis para com a verdade. Dificilmente compreendemos hoje o modo como Tito Lívio se preparou para escrever a história, a sua absoluta ausência de curiosidade quanto aos documentos e testemunhas com que devia cimentar suas narrativas. Era-lhe fácil ir ao tesouro público e ao templo das Ninfas, para ler sobre as tábuas de bronze as leis régias e tribuniciais, os antigos tratados celebrados com as nações vencidas pelo povo romano, os decretos do senado e os plebiscitos; cumpria-lhe, ao menos, recorrer aos anais preparados pelos pontífices, que minuciosamente foram anotando todos os acontecimentos merecedores de transcrição na história romana; mas Tito Lívio teve por indigno de si proceder a essas pesquisas, aliás, tão fáceis a um cidadão romano; nem sequer visitou os lugares onde se passaram muitos dos feitos militares, por ela descritos. Daí os equívocos, os erros, as falsidades, que abundam nas Décadas,14 Sallustio escreveu somente para revelar a admirável perfeição do seu estilo, e por isso “explorou a história, como se fora a sua

12 

Cyropedia, liv. 1º.

13 

Instit., Orat., 11, 4.

14 

Taine, obra citada, parte 1ª, cap. 2º e 3º.

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província d’África, como egoísta e artista de gênio”, tratando apenas dos fatos susceptíveis de descrições brilhantes pela forma.15 Asinio Pollião contesta a fidelidade dos Commentarios, notando que Cesar diminui as façanhas dos seus companheiros d’armas, e altera, encarecendo, os próprios feitos.16 Cícero, conta-nos Plutarco, tinha formado o plano de escrever uma história de Roma, na qual pretendia incluir parte da história grega, com quase todas as suas fábulas.17 A história, para os gregos e romanos, é um generoso literário. A amplificação oratória, as ficções, o maravilhoso épico inçam as narrativas, desfigurando os fatos e subtraindo-os à justa apreciação dos mais claros e seguros entendimentos. O que constitui a sedução da história na antiguidade é a língua, o estilo, a arte da composição, a movimentação dramática, fonte inesgotável de emoções e de prazer, a nos mostrar, em quadros animados da mais vivida eloquência, as grandes de fortes virtudes do heroísmo e do patriotismo.18 Alguns historiadores desse período alimentavam a pretensão de fazer da história um vasto repositório de lições políticas e morais, a “mestra da vida”.19 Políbio e Plutarco foram insignes no gênero. Já Xenofonte tinha sido um iniciador, e Sallustio fez preceder a cada uma de suas obras (Catilina, seu bellum catilinarium, e Jugurtha, seu bellum jugurthinum) um dos discursos da mais enaltecida moral, tão destoante da vida de quem foi expulso do senado por suas escandalosas imoralidades.

15 

Taine, conclusão. § 2º.

16 

Suetonio, Julio Cesar, LVI.

17 

Vida de Cicero,LIV.

18 

Vacherot, La Science ET La Conscience,II, Les historíens.

É concepção que ainda neste século domina o espírito de alguns historiadores. No túmulo de Alexandre Herculano, no convento de Jeronymos, veem-se as seguintes palavras, que lá tivemos ocasião de ler, e foram transladas de um dos seus escritos: “Aqui jaz um homem que conquistou para a grande mestra do futuro, para a história, algumas verdades importantes”. E Oliveira Martins começa a sua História de Portugal, dizendo: “A história é, sobretudo uma lição moral: eis a conclusão que, a nosso ver, são de todos os eminentes progressos ultimamente realizados no foro das ciências sociais” (Advertência). 19 

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A antiguidade clássica não fez da história uma ciência. Nem quanto a essa doutrina (para a maior parte dos pensadores ainda hoje impossível) que, muitos séculos depois, se chamou a filosofia da história, conseguiu mais do que rudimentar e grosseiro esboço. Apenas o gênio profundo de Tucídides teve uma percepção fugaz das leis a que estão sujeitos os fenômenos sociais: acreditava o autor da História da guerra do Peloponeso que seu estudo seria útil a todos que quisessem, partindo do conhecimento de fatos passados, compreender os fatos futuros, que “segundo as leis humanas serão semelhantes, ou análogos”.20 Mas, lançadas acidentalmente essa e outras observações de admirável justeza, o historiador grego prossegue em sua narrativa, sem induções, sem sistematizar os fatos, explicando, quando muito, os acontecimentos como um político, pela natureza das instituições, pelo papel desempenhado pelos partidos, pelo conflito de interesses, pelo jogo das paixões, pela eloquência dos homens de Estado e pela tática dos homens de guerra.21 Ainda é a personalidade humana, a vontade individual ou coletiva, que ocupa a cena da história, como em Heródoto. Não se nota mais a sensibilidade ingênua, a imaginação juvenil de Heródoto, para quem a queda de um raio sobre os bárbaros reunidos junto aos muros do templo de Minerva Pronéa, e o despenharem-se com fracasso dois rochedos do cume do monte Parnaso, são maiores prodígios, os mais portentosos acontecimentos que pode narrar um historiador.22 O autor da História da guerra do Peloponeso não se eleva às causas naturais dos fatos, nem nos dá as leis a que aludiu no começo de sua crônica, em um rasgo assombroso do gênio. Continuador do método histórico de Tucídides é Políbio, que procura explicar a superioridade política e militar de Roma, comprando-lhe as instituições com as dos

20 

Liv. 1º, XXII.

21 

Vacherol, obra citada.

22 

História de Herodoto, liv. 8º, XXXVII e XXXVIII, trad. De Miot.

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outros povos. Mas toda a filosofia de Políbio está condensada nesta fórmula: “Cumpre estudar a constituição de um Estado, como a causa primordial dos bons e maus sucessos em tudo. É dessa constituição, como de uma fonte, que derivam as empresas e seus efeitos”.23 Salústio,, Tito Lívio, Tácito, todos os historiadores romanos, nos dão uma única explicação da grandeza e da decadência de Roma: a cidade cresceu, elevou-se, dominou, em consequência de suas virtudes e por uma predestinação divina; decaiu, perdeu a liberdade e o império do mundo, em consequência da dissolução dos costumes, produzida pelo luxo.24 Não passa dessa rudimentar consideração a filosofia da história em Roma. Não se pretenda tampouco descobrir, nos historiadores gregos e romanos, a coordenação metódica dos fatos, a sistematização científica dos elementos preparados pelo historiador, para as generalizações das ciências sociais. Taine caracterizou bem a história, tal como foi compreendida pela antiguidade clássica, dizendo que ela nos oferece unicamente uma sucessão de acontecimentos, e não classes de fatos.25 Preocupados com os feitos bélicos e as ações dos políticos, os historiadores do período greco-romano poucas ou nenhumas informações nos ministram sobre a indústria, o comércio, e os costumes domésticos, a religião, a ciência, as letras, as artes liberais e mecânicas, sobre todos aqueles fatos estudados hoje pelos historiadores, como o conteúdo principal da história. É lendo Ottfried Muller, Thirlwall, Grote, Niebuhr, Mommsen, Cartius, Fustel de Coulanges, que bem conhecemos e compreendemos a Grécia e Roma. A Idade Média nos legou alguns toscos esboços de história universal, modelados pelos escritos de Eusébio, Orosio e outros historiadores católicos.

23 

Políbio, Historia Geral, VI.

24 

Vacherot, obra citada, I. Taine, obra citada, introdução.

25 

Obra citada, conclusão.

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A prática das glosas, tão útil ao desenvolvimento do direito no período medieval, transplantada para o estatuto e composição da história, foi fecunda em resultados, especialmente na sua aplicação às coleções de documentos e às dissertações críticas.26 E cifrou-se nisso o progresso da história na Idade média, que, facilmente se compreende, a nenhum princípio, doutrina, método ou classificação científica, subordinou as investigações ou a exposição do historiador. Na renascença, Maquiavel bosquejou a sua original concepção da história, baseada em um abstrato semifatalismo. O principal cardeal da teoria do famoso secretário florentino é o movimento das esferas. A direção dos astros, o curso das estações, a passagem da vida para a morte, tudo é preestabelecido e dominado pela evolução circular do universo. Também o homem está sujeito a esse princípio: multiplica-se cegamente, invade a terra; e, quando o mundo regurgita de habitantes, as esferas o despovoam pelas pestes, fomes e inundações, para que a humanidade recomece a sua faina. O movimento circular universal verifica-se no seio das sociedades; os Estados organizam-se e corrompem-se, como os indivíduos; passam da monarquia à aristocracia, e desta à democracia, para regressarem à primeira forma de governo. Todas essas contínuas mutações são resultantes do impulso comunicado pelas esferas, e os homens nunca poderão adivinhar o fim definitivo do universo.27 Admitindo o princípio, mal se compreende a incongruência das deduções. Acreditam muitos, diz Maquiavel, que Deus e a fortuna, ou o destino, regem as coisas deste mundo, e de tal arte que toda a prudência humana é impotente para lhes deter, ou regular, o curso; a concepção é aceitável com uma limitação: “A fortuna dispõe da metade de nossas ações, mas confia a outra metade ao nosso livre arbítrio”.28

26 

Langlois e Seignobos, obra citada, liv. 3º, cap. 5.

27 

Machiavel, Oeuvres Politiques, app., p. 573.

28 

O Príncipe, cap. 25.

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Tito Lívio é o guia, o mestre de Machiavel, que repete, convencido, estas palavras do historiador romano: “Oecaecat animus fortuna, cum vim suam ingruentem refringi non vult” Os homens podem secundar o destino, mas nunca obstar aos seus decretos.29 Os fatos históricos se repetem, porquanto os mesmos desejos e as mesmas paixões dominam em todos os tempos e em todas as regiões, o que permite aqueles que estudaram os acontecimentos do passado prever os que o futuro reserva às nações, e aplicar-lhes os remédios já experimentados com sucesso, ou a imaginar novas combinações. Demais, não raro é dado ao homem conhecer o futuro de um modo sobrenatural. A atmosfera está repleta de inteligências celestes, que, tomadas de piedade pela miséria dos mortais, os instruem sobre os fatos vindouros por meio de prognósticos.30 Isso não quer dizer que as religiões sejam verdadeiras. Em todos os tempos, o dogma religioso é uma engenhosa falsidade, engendrada pelos homens em proveito de seus interesses.31 Quanto ao engendramento e à decadência das sociedades, só há uma explicação aceitável, é a dos historiadores romanos, adaptada ao princípio fundamental da doutrina de Machiavel: o luxo, a sensualidade e os vícios extinguem a economia e todas as virtudes, que constituem a grandeza e o sustentáculo dos Estados. Já o poeta satírico Juvenal tinha afirmado essa verdade: “...Gula et saevior armis Luxuria incubuil, victum que ulciscitur orbem” (Sat. VI). Com a nossa hodierna concepção da natureza da ciência, dificilmente poderíamos dar a denominação de teoria científica da história a essa amálgama informe de erros, preconceitos, penetrantes observações admiráveis e verdades empíricas, que se nos deparem no Príncipe e no Discurso sobre Tito Lívio.

29 

Discurso sobre Tito Lívio, liv. 2º, cap. 29.

30 

Discurso sobre Tito Lívio. Liv. 1º, cap. 56.

31 

Obra citada, passim.

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A doutrina de Bossuet é o polo oposto à de Machiavel. E, como seria imperdoável ousadia traduzir, ou resumir, o que escreveu a águia de Meaux, transcrevamos um trecho do Discurso sobre a historia universal, em que está condensada a sua teoria providencialista da história: “Ce long enchaînement des causes particulières, qui font et défont les empires, dépend des ordres secrets de la divine Providence. Dieu tient du plus haut des cieux les rênes de tous les royaumes; il a tous les coeurs en sa main: tantôt il retient les passions; tantôt il leur lâche la bride, et par là il remue tout le genre humain. Veut-il faire des conquérants, il fait marcher l’épouvante devant eux, et il inspire à eux et à leurs soldats une hardiesse invincible. Veut-il faire des législateurs, il leur envoie son esprit de sagesse et de prévoyance; il leur fait prévenir les maux qui menacent les États et poser les fondements de la tranquillité publique. Il connoît la sagesse humaine, toujours courte par quelque endroit; il l’éclairé, il étend ses vues, et puis il l’abandonne à ses ignorances: il l’aveugle, il la précipite, il la confond par elle-même; elle s’enveloppe, elle s’embarrasse dans ses propres subtilités, et ses précautions lui sont un piège. Dieu exerce par ce moyen ses redoutables jugements, selon les règles de sa justice toujours infaillible. C’est lui qui prépare les effets dans les causes les plus éloignées, et qui frappe ces grands coups dont le contre-coup porte si loin. Quand il veut lâcher le dernier et renverser les empires, tout est foible et irrégulier dans les conseils. L’Égypte, autrefois si sage, marche enivrée, ETOURDIE et chancelante, parce que le Seigneur a répandu l’esprit de vertige dans ses conseils; elle ne sait plus ce qu’elle fait, elle est perdue. Mais que les hommes ne s’y trompent pas: Dieu redresse quand il lui plaît le sens égaré; et celui qui insultoit à l’aveuglement des autres tombe lui-même dans des ténèbres plus épaisses, sans qu’il faille souvent autre chose, pour lui renverser le sens, que ses longues prospérités. C’est ainsi que Dieu règne sur tous les peuples. Ne parlons plus de hasard ni de fortune, ou parlons-en seulement comme d’un nom dont nous couvrons notre ignorance. Ce qui est hasard à l’égard de nos conseils incertains est un dessein concerté dans un conseil plus haut, c’est-à-dire dans ce conseil éternel qui renferme toutes les causes et tous les effets dans un même ordre. De cette sorte tout concourt à la même fin; et c’est faute d’entendre le tout, que nous trouvons du hasard ou de l’irrégularité dans les rencontres particulières.”32

32 

Parte terceira, cap. 7, fim.

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Deus intervém na direção das coisas humanas, obrigando constantemente a natureza a sair das leis por ele próprio estabelecidas; é um senhor absoluto, despótico, cuja vontade constitui o único vínculo que mantém a ordem no universo. Com razão observa Laurent que os milagres por meio dos quais Deus, tal como o concebe Bossuet, subverte a regularidade dos fatos históricos assemelham-se aos golpes de Estado de um monarca voluntarioso, que se compraz em violar as leis que promulgou.33 As inconsequências da doutrina de Bossuet são manifestas. O homem, expulso do paraíso, foi entregue ao seu próprio arbítrio; suas inclinações se corromperam, seus desmandos tocaram o extremo, e a iniquidade cobriu a superfície da terra. Tal é o resultado da direção providencial! Deus se arrepende de ter criado os homens. Medita contra eles uma vingança terrível, o dilúvio universal. Então Deus, que criou todos os seres, destrói a mais bela parte de sua obra, e o Onipotente, por esse modo, se vinga de miseráveis criaturas,

33  Históire de l’humanité, Philosophie de l’históire, liv. I, cap. I. * “Este longo encadeamento de causas particulares, que fazem e desfazem os impérios, depende de ordens secretas da Divina Providência. Deus sustenta do mais alto dos céus as rédeas de todos os reinos; Ele tem todos os corações em sua mão: ora ele retém as paixões, ora ele lhes solta as rédeas, e assim ele move todo o gênero humano. Quer ele criar conquistadores, faz caminhar o pavor diante deles, e os inspira e seus soldados ousadia invencível. Quer ele criar legisladores, ele envia seu espírito de sabedoria e capacidade de previsão; faz-lhes evitar os males que ameaçam os Estados e colocar os fundamentos da tranquilidade pública. Ele conhece a sabedoria humana, sempre curta em alguns lugares; ele a esclareceu, estende seus pontos de vista, e então ele a abandona a suas ignorâncias: ele a cega, a precipita, a confunde por ela mesma; ela envolve-se, ela se embaraça em suas próprias sutilezas, e suas precauções são uma armadilha. Deus exerce, por este meio, seus formidáveis julgamentos, de acordo com as regras da sua justiça sempre infalível. É ele quem prepara os efeitos nas causas mais remotas, e bate seus grandes golpes cujo contragolpe leva a muito longe. Quando ele quer soltar o último e derrubar os impérios, tudo é fraco e irregular nos conselhos. O Egito, antes tão sábio, anda inebriado, atordoado e cambaleando, porque o Senhor trouxe o espírito de confusão em seus conselhos; ela não sabe mais o que faz, ela está perdida. Mas que os homens não se enganem: Deus, quando lhe agrada, endireita os sentidos extraviados; e quem os outros insultou à cegueira, cai ele próprio na mais espessa escuridão, muitas vezes sem que seja por vezes necessário outra coisa, para inverter o sentido, que suas longas prosperidades. Assim, Deus reina sobre todas as nações. Não se fala de acaso ou de fortuna, ou falemos somente a partir de um nome com o qual cobrimos a nossa ignorância. O que é acaso no que diz respeito ao nossos conselhos incertos é um plano concertado em um conselho superior, ou seja, neste conselho eterno, que contém todas as causas e os efeitos na mesma ordem. Desta forma, tudo contribui para o mesmo fim; e é por falta de entender o todo, que encontramos o acaso ou a irregularidade nos encontros particulares”. (N.O.)

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abandonadas por seu criador. No célebre dia em que o sol detém o seu curso por ordem de Josué, Deus se distrai no alto do céu, atirando pedras sobre os infelizes fugitivos, para lhes completar o extermínio. Jerusalém e Babilônia caem – uma seguida à outra, de acordo com a palavra dos profetas; mas Deus faz convergir todos os rigores de sua cólera contra os Caldeus, ao passo que aos Judeus dispensa um castigo paternal. Toda a indulgência para com os seus eleitos; toda a crueldade para com o resto do gênero humano. De resto, o povo de Deus, objeto da mais carinhosa educação por meio de milagres, a ouvir frequentemente a palavra dos profetas, acaba por desconhecer as profecias, ri-se dos milagres e mata o Filho de Deus, vindo ao mundo para salvá-lo! Os maiores personagens da história, Cesar, Alexandre, todos os grandes conquistadores, são instrumentos da providência: “Dieu ne les envoie sur la terre que dans sa fureur”.34 A história é um vasto campo de carnificinas. Quando dois povos se guerreiam, Deus quer vingar-se de um deles ou de ambos.35 A filosofia da história de Bossuet não podia negar, com esse providencialismo, segundo o qual “Dieu fait tout, il voit, de l’éternité tout ce qu’il fait”.36 Indiscutivelmente não temos aqui uma teoria que possa pretender os foros da ciência. Vico alimentou a pretensão de fundar a filosofia da história, e para muitos a Sciencia Nuova foi o início dessa doutrina. No conceito do filósofo italiano, as nações passam por três idades, que se repetem eterna e necessariamente: a idade divina, a heroica e a humana. Há três espécies de naturezas, que derivam três espécies de costumes, que produzem três espécies de direito natural, que dão origem a três espécies de governo.37 Para comunicarem entre si costumes, leis e governo, os

34 

“Deus não os envia sobre a terra que em sua fúria” (N.O.)

35 

Laurent, ibidem.

36 

“Deus faz tudo, ele vê, da eternidade, tudo o que faz” (N.O)

37 

Michelet, OEuvres choisice de Vico, t. 2º, p. 261.

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homens formaram três espécies de línguas e de caracteres. A primeira natureza foi dominada pela imaginação, poética ou criadora, divinizou os seres materiais, e se caracterizou por uma feroz barbárie. A segunda produziu os heróis, de origem divina. A terceira foi humana, inteligente; reconheceu a consciência, a razão e o dever.38 Os primeiros costumes tiveram o caráter religioso que se atribui a Deucalião e Pyrrha. Os segundos foram os de homens susceptíveis, e que facilmente se encolerizavam por questões de honra, tais como Aquiles. Os terceiros foram subordinados à noção do dever, e faziam consistir a honra no cumprimento dos deveres civis. O primeiro direito foi imposto pelos deuses. O segundo – o direito da força submetida à religião. O terceiro – o direito ditado pela razão humana desenvolvida. O primeiro governo foi a teocracia; tudo era ordenado pelos deuses; foi a idade dos oráculos. Em seguida veio o governo heroico ou aristocrático. Mais tarde se estabeleceu o governo humano, em que predominava a igualdade civil e política. A primeira língua, língua divina mental, compunha-se de cerimônias sacras, sinais silenciosos. Depois os homens adotaram a linguagem das armas, e, afinal, a linguagem articulada, de que usam hoje todas as nações.39 As nações reproduzem eternamente as três idades. É a famosa lei dos ricorsi, em virtude da qual a idade média repetiu a idade antiga. Os três períodos – divino, heroico e humano – se nos deparam nas duas idades, o que Vico tenta mostrar, descendo a uma comparação minuciosa entre os fatos antigos e os medievais.40 Há apenas três exceções a essa lei: Cartago, Cápua e Numancia não repetiram as três idades –a divina, a heroica e a humana. Os Cartagineses foram detidos em seu desenvolvimento histórico pela sutileza peculiar ao espírito africano, agravada pelos hábitos do comercio marítimo. Cápua também abriu uma

38 

Obra citada, p. 252.

39 

Pp. 265 e 269.

40 

Pp. 347 e 363.

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exceção à lei dos ricorsi, em consequência da extraordinária doçura do seu clima. E Numancia parou na idade heroica a um aceno Scipião.41 Os fatos históricos, segundo a Sciencia Nuova, são o produto de dois fatores: a nação dos homens e a intervenção da Providência, que, muitas vezes, contraria a vontade humana, e sempre lhe é superior. Na teoria de Vico, não há lugar para o fatalismo, porquanto os homens são dotados do livre arbítrio. Também não é admitido o acaso, porquanto os mesmos fatos, repetindo-se, produzem regularmente os mesmos efeitos.42 A ideia fixa de Vico, observa com razão Vacherot, é descobrir o imutável no variável, a unidade na diversidade; em uma palavra: a lei no fato, apreender os mesmos traços, os mesmos caracteres, nessa variedade de atos, pensamentos, instituições, costumes e línguas, que nos apresentam os anais do mundo.43 Tal é o escopo que procurou atingir “o gênio religioso e melancólico” do autor dos princípios de filosofia da história. Alcançou-o? Responde-nos Laurent em poucas palavras.44 Comparemos a nossa idade com a idade média, ou com a antiga, ou estas duas entre si, e vejamos se os três períodos repetem os mesmos fatos, e na mesma ordem de sucessão das três épocas–divina, heroica e humana. Seria uma tarefa ingrata, por infantil, demonstrar que o presente difere do passado quanto aos costumes, à religião, às instituições políticas e jurídicas, às ideias científicas, ao progresso das artes, à indústria e à guerra. E reconhecer essa verdade infrangível é negar a lei histórica dos corsi e ricorsi, isto é, toda a filosofia da história de Vico. Em filosofia, Vico é um precursor de Hegel, assim como na história é um precursor de Niebuhr. No conceito do autor da Scienza Nuova, o que procede e produz tudo o que há é o espírito: o espírito

41 

Michelet, citado, p. 365.

42 

P. 382.

43 

La science et la conscience, II, Les historiens.

44 

La Philosophie de l’Histoire, p. 82 a 85.

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do homem que produz a ideia, a vontade do homem produz o fato. A ideia e o fato partem do mesmo centro; deve, pois, haver entre o fato e a ideia analogia e harmonia necessárias, ou, segundo a linguagem de Hegel, identidade da natureza humana e da história.45 No sistema de Hegel, o real e o ideal são duas manifestações de uma razão absoluta, que perpetuamente se transforma; o princípio de sua filosofia é que “tudo o que é real é racional, e tudo o que é racional é real”.46 A razão absoluta começa a existir como ente puro, ente em si, ou lógica; manifesta-se depois como a natureza; e finalmente se volta, ou dobra sobre si mesma, conservando os elementos que adquiriu fora de si, e transforma-se em espírito. Abstrusa concepção, que levou Schelling e Hartmann a perguntarem: porque a razão, o puro pensamento, de sua natureza essencialmente contemplativo, teria renunciado a afortunada paz do repouso, para se entregar aos tormentos de um fieri perpétuo, aos trabalhos de um operoso querer, aos infortúnios da existência real? D’onde procede a ideia, para a razão, aquele impulso espontâneo que a deixa escurecer o eterno esplendor que lhe é apanágio, e precipitar-se na confusa agitação da realidade?47 Niebuhr aproxima-se mais da verdade, e, no dizer de Taine, a sua vista penetrante da natureza humana e o seu extraordinário conhecimento dos fatos o colocam entre os gênios modernos. Para ele, nada é subitâneo nas instituições humanas, que se formam e desenvolvem gradualmente, não em virtude de vontades arbitrárias, mas pela força das situações; o homem não se conserva o mesmo por um só instante, e a história é a narração desses contínuos e ininterruptos movimentos.48

45 

Lerminier, Introduction Gènérale à l’Histoire du Droit, p. 180.

46 

G. Carle, La vita del diritto nei attoi vapporti cotta vita nociale, p. 376.

47 

Carle, p. 382.

48 

Taine, obra citada, p.116.

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Para alguns, Voltaire é o verdadeiro criador da filosofia da história. Não que tenha escrito uma teoria filosófica: O Ensaio sobre os costumes não merece tal denominação. É um misto de considerações filosóficas, fatos insignificantes e anedotas satíricas, um bello chaos, como já disse um crítico reputado.49 Mas, observam os que nas obras de Voltaire descobrem uma concepção científica da história, em vez de começar por uma doutrina, para impor depois aos fatos, ao autor do Século de Luiz XIV, da História de Carlos XII e do Império da Rússia sob Pedro o Grande, compreendeu, com o seu maravilhoso bom-senso, que a doutrina devia decorrer naturalmente do estudo dos fatos. Importa inquirir os fatos, como única base sólida para a filosofia da história. Antes de Voltaire, a história era incompleta, pois só abrangia os acontecimentos políticos e religiosos. Foi ele quem incluiu na história os costumes, as letras, a filosofia, todos os elementos, em suma, que refletem a vida da humanidade.50 Mas qual a concepção científica da história de quem cinicamente escreveu estas palavras: “Réduisez-la à la vérité, vous la perdez, c’est Alcine dépouillée de ses prestiges”?51 Ora, todos os fatos são dominados pela Providência: “la Providence fait tout; Providence tantôt favorable, devant laquelle il faut également se prosterner dans la gloire ou dans l’oppobre. Ainsi pensait mon oncle, ainsi pensent tous les sages”.52 Ora pelo destino, pelo acaso, pela cega fatalidade: “N’y a-t-il pas visiblement une destinée qui fait l’accroissement et la ruine des États”;53 “Une fatalité aveugle gou-

49 

E. Faguet, Dix-Huitième Siècle, Études Littèraires, p. 268.

50 

Laurent,Philosophie de l’Histoire, pp. 85 e 86.

51 

Reduza ela à verdade e você a perde; é Alcine desprovida de seus prestígios” (N.O.).

52  La Défense de mon oncle,cap. 1º. “A Providência tudo faz: Providência ora favorável, diante da qual é preciso igualmente se prostrar na glória ou no opróbio. Assim pensava meu tia, assim pensava todos os sábios” (N.O.). 53  Introd. à l’Essai sur moeurs,L I. “Não há visivelmente um destinado que faz o crescimento e a ruína dos Estados” (N.O.).

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verne les affaires du monde”.54 Os fatos históricos estão sujeitos ao acaso, doutrina que Frederico II, o grande amigo de Voltaire, resumiu nesta frase: “Plus on vieillit, plus on se persuade que sa sacrée Magesté le Hasard fait les trois quarts de la besogne de ce misérable univers”.55 Providência ou acaso, nenhuma das duas ideias oferece um fundamento racional a uma explicação científica. A providência exprime uma vontade superior às leis, e sem o conhecimento destas, isto é, das relações necessárias derivadas da natureza das coisas, do que é comum, constante, permanente na produção dos fenômenos, não temos ciência. O acaso é a antítese direta como subordinar a uma lei.56 Voltaire foi incapaz de um sistema: “Ce grand esprit, c’est un chaos d’idées claires”.57 No Espírito das Leis e nas Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência, Montesquieu fez admiráveis observações sobre a história política. Não tentou escrever sobre a filosofia da história propriamente dita, não estudou as leis a que estão sujeitos os fatos históricos em geral, reduzindo as leis obtidas a um princípio superior, fundamental. O famoso livro décimo quarto do Espírito das Leis nos mostra apenas a influência do caráter e das paixões sobre as leis, e a do clima sobre as paixões e o caráter do espírito. Mas Montesquieu não faz depender a vida social unicamente do clima: diversas coisas governam os homens–o clima, a religião, as leis, as máximas de governo, os exemplos do passado, oscostumes.58 Montesquieu é, acima de tudo, legislador, e para ele os bons legisladores são os que se opõem aos vícios do clima, e os maus os que favorecem as tendências naturais derivadas das causas

54 

Siècle de Louis XV, cap. 1º. “Uma fatalidade cega governa os assuntos do mundo” (N.O.).

Laurent, obra citada, p. 91. “Quanto mais se envelhece, mais se persuade que a sagrada majestade do acaso faz três quartos da tarefa deste miserável universo” (N.O.). 55 

56 

Stuart Mill, Système de Logique, v. 2º, p. 48.

57 

Faguet, Dix-Huitième Siècle, p. 219. “Este grande espírito é um caos de ideias claras” (N.O.).

58 

De l’Esprit des Lois,liv. XIX, cap. IV.

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físicas.59 Se algumas vezes exagera a influência do clima, ao ponto de se não poder explicar dentro de sua teoria a diversidade do espírito, do caráter, costumes e instituições, entre povos vizinhos, como os atenienses e os tebanos na antiguidade, os gregos e turcos na época atual,60 logo se nos revela o legislador, com a sua confiança nas instituições, acreditando poder melhorar os homens e as sociedades pela força das ideias. Nem no Espírito das Leis, nem no estudo sobre a grandeza e a decadência dos romanos, se nos depara uma teoria, uma filosofia da história. São considerações, como bem diz Taine, um conjunto de notas, e não um sistema. E uma sequência de observações, ou ponderações, por mais interessante que sejam, não é uma filosofia da história.61 Montesquieu não descobriu leis gerais da história, não deu a sua teoria um princípio fundamental, superior; apenas explicou as razões particulares de certos fatos, formulou algumas leis especiais. Para ele, o espírito de uma lei é o conjunto das relações que prendem essa lei a diversos fenômenos, e explicam-lhe o aparecimento e a existência. E, porque as formas de governo incontestavelmente influem no caráter das leis, ele se ocupa largamente com os governos, dividindo-os em monarquia, despotismo e república, e subdividindo esta em democracia e aristocracia. Não que as formas de governos tenham a influência preponderante que o empirismo político lhes atribui. As formas de governo são efeito, e não causa, do caráter de um povo; fora inútil transplantar leis e instituições políticas de uma nação para o seio de outra, diferente no que toca à raça, às qualidades intelectuais e morais, aos antecedentes históricos e às condições físicas.62 A proclamação desta verdade já era bastante para fundar a gloria imarcescível de um escritor.

59 

Obra citada, liv. XIV, cap. V.

60 

Laurent, obra citada, p. 111.

61 

Taine, obra citada, p. 179, 5. ed.

62 

Flint, La Philosophie de l’Histoire de France, p. 52.

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Pelo seu livro Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain, Condorcet merece um lugar saliente entre os que pretenderam criar a filosofia da história. A sua ideia fundamental está exposta logo na introdução da obra. É sua intenção traçar um quadro em que sucintamente nos apresenta as sociedades humanas em todos os estados por que têm passado, com todos os progressos que têm feito para a verdade ou para a felicidade, para chegar à conclusão de que não há limite ao aperfeiçoamento das faculdades humanas. A perfectibilidade do homem é infinita; os progressos dessa perfectibilidade, de hoje em diante independentes da compressão de qualquer poder, têm como termo único a duração do globo em que nos colocou a natureza. Condorcet divide as fases porque tem passado a humanidade em nove épocas. Na primeira, os homens viveram em hordas, ou agremiações selvagens e errantes caçadores e pescadores. Nesse período rudimentar já havia uma autoridade pública, uma certa organização da família e uma linguagem articulada. Caracteriza-se a segunda época pela passagem do primitivo estado ao dos povos agricultores: estabeleceu-se a propriedade, introduziu-se desigualdade das condições, inventaram-se as artes mais simples, adquiriram-se as mais rudimentares noções da ciência. Na terceira época, inventou-se a escrita alfabética. A quarta compreende os progressos realizados pela Grécia até a divisão das ciências no século de Alexandre. A quinta abrange os progressos das ciências na Grécia e em Roma, desde sua divisão até sua decadência. A sexta e a sétima são duas fases da idade média: a primeira termina com as cruzadas, a segunda com a invenção da imprensa. A oitava época vai da invenção da imprensa ao período em que as ciências e a filosofia sacudiram o jogo da autoridade, movimento que Descartes teve a honra de iniciar, segundo nos diz Condorcet. Começa, finalmente, anona época com essa revolução intelectual, para acabar com a revolução política de 1789. Como se vê, nem os acontecimentos escolhidos para assinalar o começo de cada período, ou para dividir as épocas da história da humani-

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dade, são todos do mesmo valor, têm exercido a mesma influência, nem sequer pertencem à mesma ordem: ora o que distingue uma época é um fato industrial, ora um fato político, ora um acontecimento religioso.63 Imbuído das prevenções do sectarismo fanático do seu tempo, Condorcet reputa o cristianismo uma impostura, a monarquia e a igreja duas instituições essencialmente perniciosas. Daí uma palpável contradição na sua doutrina: a que fica reduzido o contínuo aperfeiçoamento do homem, o progresso incessante e ilimitado, a infinita perfectibilidade, que tão entusiasticamente preconiza Condorcet, se as mais importantes e duradouras instituições são obstáculos a esse progresso incessante e ilimitado, fazem recuar a humanidade, ou pelo menos lhe paralisam o movimento ascendente para a verdade ou para a felicidade? Por um bem entendido determinismo, Condorcet baseia o progresso moral sobre o desenvolvimento intelectual: o interesse mal compreendido é a causa mais frequente das ações contrárias ao bem geral; a violência das paixões é, na maior parte dos casos, o efeito de hábitos a que nos entregamos por um erro de cálculo, ou por ignorância e falta de reflexão.64 Na décima época, a em que estamos, o progresso intelectual há de produzir como resultados – a extinção de um mesmo Estado e o aperfeiçoamento real do homem sob o aspecto intelectual, moral e físico. Neste ponto de sua teoria, as extravagâncias de Condorcet atingem os limites do ridículo: a medicina, a Hygiene, a economia política e a arte do governo não têm a eficácia de prolongar consideravelmente a vida humana, ou de lhe assegurar uma duração cujo termo se não pode calcular, como pensava aquela nobre vítima das selvagerias de 1789.65 A teoria de progresso contínuo e ilimitado é cabalmente refutada pelo próprio Condorcet, que, não raro, nos descreve fatos históricos

63 

Flint, obra citada, p. 102.

64 

Progrès de l’esprit humain, dixième èpoque.

65 

Flint, obra citada, pp. 116 e 117.

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que são obstáculos ao progresso, ou recuos para as trevas do passado. Nota-se na Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain, o mesmo defeito das obras de Voltaire, de Rousseau, de Diderot, de todos os escritores do século XVIII em França: excelentes na arte de destruir, eram incapazes de uma construção sistemática em qualquer província do saber. Foram todos um pouco desequilibrados.66 Herder, o autor das Ideias sobre a filosofia da história da humanidade, no sentir de Laurent, é um poeta, e não um historiador, ou um filósofo. Mas o que é certo é que as suas Ideias constituem um dos mais famosos subsídios prestados ao tentame de formar a filosofia da história. Herder, a princípio, se diz deísta, e manifesta-se um espírito profundamente religioso, dominado por uma confiança ilimitada na sabedoria eterna e na bondade infinita do Criador. Entretanto, não admite o providencialismo na história, contradição que tanto irrita a vaniloquente filosofia de Laurent, para quem a filosofia da história tem por base estas duas ideias: o progresso e o governo providencial. A ideia de progresso envolve o conceito de que os homens e os povos preparam por si mesmos o seu destino: a ideia de governo providencial quer dizer que a humanidade tem no seu criador um guia, que dirige e educa, sem lhe suprimir o livre arbítrio, doutrina que só podem aceitar os espíritos afeitos à vacuidade e às incongruências da fofa pseudofilosofia do autor dos Estudos sobre a História da Humanidade. Com essa observação, não pretendemos significar que não exista na teoria de Herder a contradição apontada por Laurent. É absurdo, no conceito do historiador e filósofo alemão, supor que Deus dirige os atos dos homens e dos povos, e intervém incessantemente no drama interminável da história, permitindo a prática de ações boas e más, o aparecimento de homens santos e perversos, tudo predispondo para um desfecho determinado. Para os sectários

66 

Faguet, Dix-Huitième Siècle, p. 208.

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do providencialismo na história, as mais hediondas atrocidades, os crimes mais abjetos, cometidos pelas nações por um pretexto qualquer, inventado por seus voluntariosos condutores, todas as carnificinas da história, nada mais são, e como tais se justificam perfeitamente, de que meios de que se utiliza a Providência para realizar seus altos desígnios. O bom-senso de Herder se revolta contra essa concepção abstrusa: “É ultrajar a majestade divina, supor que, para estender o reinado da verdade e da justiça, ela só disponha deste meio: o jugo opressor e as mãos ensanguentadas dos romanos”. Para os sectários do providencialismo, os conquistadores são os instrumentos de que se servem a bondade infinita de Deus e a sua eterna sabedoria, para a realização do bem. Para Herder, aparecem entre as nações os Alexandres, os Césares, os Átilas, do mesmo modo como existem os lobos e os tigres ao lado dos bois e dos carneiros: são produtos da natureza. “Toda a história da humanidade”, diz Herder, “é uma pura história natural das forças humanas, de ações e inclinações, que dependem dos tempos e dos lugares”. O homem é um ser subordinado à natureza, e dela dependente. Herder atribui ao meio cósmico e à organização fisiológica uma influência decisiva sobre a física humana. Demais, o homem não é um ser isolado; está sujeito à lei da solidariedade; para a formação de cada um de nós contribuem os antepassados, os mestres, os amigos, os compatriotas, a raça com todas as suas qualidades.67 O fator preponderante é a natureza: mil anos de disciplina não modificariam o caráter do negro, ou do chim; não fariam o primeiro atenuar suas paixões grosseiras e violentas, nem o segundo libertar-se da tradição e do hábito. Foi o solo da Europa, acidentado, coberto de bosques, cortado por numerosos rios, golfos, montanhas e vales, que formou o espírito ativo e empreendedor do europeu. É por isso que Laurent denomina a doutrina de Herder a do fatalismo da natureza. Mas Herder não su-

67 

Flint, Philophie de l’Historie em Allemagne, cap. IV.

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bordina a sua teoria a um princípio fundamental. Há nas ideias sobre a filosofia da história da humanidade, como reconhecem geralmente os críticos de Herder, falta de precisão nos conceitos, de vínculo que ligue as partes do todo, harmonizando-as, de princípios que dominem as magníficas exposições dos aspectos parciais da história. Qual a lei fundamental da história? A sujeição do espírito humano ao fatalismo da natureza? Não: o homem está adstrito às fatalidades do meio cósmico. A doutrina de Herder quase nos leva à conclusão de Machiavel: a metade das nossas ações pertence ao livre arbítrio, a outra metade, às imposições da natureza. Um pouco antes de Buckle na Inglaterra, já na França o filósofo extraordinário com o qual mantém uma certa afinidade o historiador inglês tentara determinar a lei fundamental da história, e erigi-la à categoria de ciência; mas o gênio assombroso de Augusto Comte e a admirável solidez de seus conhecimentos científicos não lograram evitar à filosofia positiva a sorte dos ensaios anteriores do mesmo gênero. Augusto Comte naufragou como seus antecessores, e de toda a sua vasta obra colossal nos resta unicamente (no que toca à filosofia da história) a indicação do método. O ponto de partida do sistema de Comte é que o homem só conhece, e só pode conhecer, fenômenos, e que esse mesmo conhecimento é relativo, e não absoluto. Não conhecemos a essência, nem o modo real de produção, de nenhum fato, mas, unicamente, as relações de sucessão, ou de semelhança dos fatos entre si, relações que são constantes, ou sempre as mesmas em condições idênticas. As semelhantes constantes que ligam os fenômenos entre si, e as sucessões constantes que os unem como consequentes a antecedentes se denominam leis. As leis dos fenômenos – eis tudo o que deles sabemos. Sua essência e suas causas últimas, quer eficientes, quer finais, são para nós impenetráveis.68 Só

68 

Stuart Mill, Augusto Comte e o positivismo, trad. De Clêmenceau, p. 6.

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podemos, pois, averiguar quais são as leis a que estão subordinados os fatos históricos, e, se a história é uma ciência, qual é a lei fundamental, a que as suas leis especiais, ou derivadas, podem reduzir-se. No sistema de Comte, a filosofia da história é uma parte da sociologia. Essa ciência é dividida em duas partes: a estática e a dinâmica. A primeira limita o seu estudo às condições de existência e de permanência do estado social: abstrai do progresso, da evolução, das modificações por que passam as sociedades; é a teoria do consensus ou dependência mútua dos fenômenos sociais.69 Ensina-se que certos atributos gerais da natureza humana tornam possível a existência social, e que o homem tem uma inclinação espontânea para a sociedade de seus semelhantes, que procura instintivamente, e sem se preocupar, o que se dá depois de um certo grau de adiantamento, com as vantagens ou interesses que se lhe deparam na vida coletiva. Ao lado dos sentimentos egoísticos, tem o espírito humano uma certa benevolência natural, o altruísmo, sentimento mais fraco do que as inclinações pessoais, mas suficiente para manter a sociedade. O trabalho, que é uma injunção da natureza humana, sob o estímulo das duas correntes de sentimentos, modifica e melhora as condições do indivíduo e da agremiação. Pouco a pouco se vai formando o espírito de progresso, em antagonismo com o espírito conservado, que alimentam os instintos pessoais, e daí a luta universal entre as duas ordens de tendências. Constitui-se a família, que é a escola onde os homens aprendem o desinteresse, e contraem os hábitos da conduta que exigem as relações sociais. Finalmente, um outro fenômeno verificado em todas as sociedades é a especialização das funções, que cada vez mais estreita entre os homens os vínculos de interesse e da simpatia.70 Tal é o campo da estática.

69 

Obra citada, p. 89.

70 

Stuart Mill, obra citada, pp. 90 e 94.

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Na dinâmica estuda Comte as leis da evolução social, e é esta parte da sociologia que nos interessa. Há nos fatos da vida humana uma evolução natural? Comte responde afirmativamente: o progresso natural consiste no aumento dos nossos atributos humanos em relação aos nossos atributos animais e puramente orgânicos, no domínio crescente da nossa humanidade sobre a nossa animalidade. Sendo as nossas faculdades mais elevadas de naturezas diversas, cumpre saber qual é a que exerce uma ação preponderante na evolução da espécie. Contra a opinião que mais tarde sustentou Spencer, para quem não são as ideias, mas os sentimentos que governam o mundo, Comte ensina que o desenvolvimento intelectual do gênero humano é o principal agente do seu progresso, porquanto o pensamento é o iniciador e diretor de todos nossos atos, ora agindo com a força que lhe é peculiar, ora servindo-se da força propulsora dos sentimentos. Examinando a ordem natural em que se tem verificado o progresso da inteligência humana, doutrina Comte que o modo geral como os homens concebem o universo deve influir em todas as outras concepções, e, pois o fato predominante de nossa história intelectual deve ser a sucessão natural das teorias do universo. Ora, por três fases tem passado o pensamento humano: a teológica, a metafísica e a positiva. Logo, desse fato, o mais decisivo da evolução da humanidade, se infere a lei fundamental da história. A lei fundamental da história é a lei denominada dos três estados; na frase de Stuart Mill, a espinha dorsal da filosofia positiva. Primitivamente, todos os fatos e acontecimentos do universo são atribuídos à vontade dos seres sobrenaturais: é o período teológico, que se subdivide em três fases– o fetichismo, o politeísmo e o monoteísmo. Sob o fetichismo supõe o homem que todos os corpos são dotados de vida análoga a sua: adora-se um rio, uma montanha, tudo se diviniza. A astrolatria forma a passagem do fetichismo para o politeísmo, estado em que se explicam todas as grandes classes de fenômenos pela ação dos deuses invisíveis. Finalmente, o homem concebe o conjunto de todos

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os fenômenos como produto de uma só vontade, acredita em um Deus único, e temos o monoteísmo. O espírito metafísico, cuja influência se faz sentir desde a época do fetichismo, vai a pouco e pouco minando os fundamentos do teologismo, e substituindo as crenças pelas abstrações realizadas pelas essências, pelas qualidades, pelas virtudes residentes nas coisas. Não é mais um Deus que produz e dirige cada uma das operações da natureza: é um poder, uma força, ou uma qualidade oculta, que se reputa uma existência real, inerente aos corpos concretos, posto que deles distinta. Em lugar das dríades, que presidiam aos bosques, cada árvore, assim como cada animal, possui uma alma vegetativa que se transforma depois em uma força plástica, e mais tarde em um princípio vital.71 O homem procura conhecer as causas primeiras e as causas finais. Ao cabo de um certo espaço de tempo, vai compreendendo que todas as especulações e pesquisas nesse terreno são ociosas, que não lhe é dado conhecer a causa primária ou o fim do universo, e que das coisas apenas podemos saber as propriedades e as relações de coexistência e de sucessão. É o estado positivo, no qual o espírito humano se despede das ilusões da infância e da juventude da humanidade, reconhece os limites da sua faculdade de conhecer, e dentro deles se encerra. Eis a lei fundamental da história, segundo Augusto Comte. Estará constituída a filosofia da história? É certo, é cientificamente certo, que o espírito humano começou pelo estado teológico, passou pela fase metafísica, e entrou definitivamente no período positivo? Podemos com segurança dividir a história nessas três épocas? O próprio autor da filosofia positiva nos leva a responder negativamente. Leiamos atentamente as suas palavras: “A falar com exatidão, a filosofia teológica, mesmo em nossa primeira infância, individual ou social, não tem podido rigorosamente universalizar-se, isto é, em relação a todas as ordens de fenômenos os fatos mais simples e mais conhecidos

71 

Stuart Mill, p. 11.

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foram sempre considerados essencialmente sujeitos a leis naturais, e não atribuídos à vontade arbitrária de agentes sobrenaturais. O ilustre Adam Smith, por exemplo, notou com muita felicidade que em nenhum tempo, nem em país algum, se descobriu um deus do peso. Verifica-se a mesma coisa, em geral, até no domínio dos assuntos mais complicados, quanto aos fenômenos bastante elementares e bastante familiares para impressionarem espontaneamente o menos preparado observador pela perfeita invariabilidade de suas relações efetivas. Na ordem moral e social, que uma vã oposição pretende hoje vedar sistematicamente à filosofia positiva, tem-se tido necessariamente a noção das leis naturais no que concerne aos fenômenos mais simples da vida quotidiana, como evidentemente exige a conduta geral de nossa existência real, individual ou social, que nunca teria podido comportar qualquer previdência, se todos os fenômenos humanos tivessem rigorosamente atribuídos a agentes sobrenaturais, porquanto desde então a oração teria logicamente constituído o único recurso imaginável, para influir sobre o curso habitual das ações humanas. Pelo contrário, importa notar, a este respeito, que foi o esboço espontâneo das primeiras leis naturais peculiares aos atos individuais ou sociais que, ficticiamente aplicado a todos os fenômenos do mundo externo, forneceu no começo, de acordo com as nossas precedentes explicações, o verdadeiro princípio fundamental da filosofia teológica. Assim, o gérmen da filosofia positiva é tão antigo, no fundo, quanto o da filosofia teológica, sem embargo de se ter desenvolvido muito mais tarde. Tal noção importa em muito à perfeita racionalidade de nossa teoria sociológica, porquanto, não podendo a vida humana oferecer nenhuma verdadeira criação, mas uma simples evolução gradual, não se compreenderia o surto final do espírito positivo, se desde os tempos primitivos se não tivessem verificado os seus primeiros rudimentos necessários”.72

Stuart Mill, que adotou muitas verdades ensinadas por Augusto Comte, por que professava a mais profunda admiração, faz restrições à lei fundamental da história:

72 

Cours de philosophie positive, t.4º, pp. 694 e 695, 1. ed.

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“Não se deve crer que a matemática, desde que começou a ser cultivada, tenha jamais passado pela fase teológica. Provavelmente nunca houve homem convencido de que era a vontade de um deus que impedia as linhas paralelas de se encontrarem, ou que fazia da soma de dois e dois quatro, assim como nunca houve quem suplicasse aos deuses a graça de tornarem o quadrado da hipotenusa igual a uma quantidade maior ou menos que a soma dos quadrados dos catetos. Os crentes mais devotos têm reconhecido nas proposições da natureza dessas – uma classe de verdades, independente da omnipotência divina.”73

Littré, o mais ilustre dos discípulos de Comte, reputando empírica a lei dos três estados, propunha a substituição da descoberta do mestre por uma outra do discípulo.74 A história da humanidade, no entender de Littré, divide-se em quatro épocas: a mais antiga é a em que os homens sofrem o império preponderante das necessidades; em seguida, vem a idade das religiões, do desenvolvimento da moral e das primeiras criações civis e religiosas; a terceira é a idade das artes, na qual o sentimento do belo engendra as construções e os poemas; finalmente se abre a idade da ciência, em que a razão se consagra às investigações das verdades abstratas. É mais uma divisão da história, que, como tantas outras, tem o grave defeito, assinalado por Flint, de partir do pressuposto de que os desenvolvimentos especiais da atividade humana formam períodos sucessivos da história, quando a verdade é que esses desenvolvimentos se realizam simultaneamente.75 Entretanto, o fato de um discípulo como Littré propor, à guisa de correção, uma lei fundamental da filosofia da história, tão dissonante da do mestre, já bastava para nos prevenir o espírito contra a teoria do filósofo francês.

73 

Obra citada, p. 48, 2. ed.

74 

Paroles de Philosophie Positive, e Augusto Comte, pp. 49 e 50.

75 

La philosophie de l’historie en France, pp. 339 e 340, trad. De Carrau.

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Em verdade, a reflexão sobre os fatos históricos, desde a mais alta antiguidade, nos convence de que as ideias teológicas, metafísicas e positivas têm sempre coexistido. As três ordens de concepções não assinalam períodos sucessivos do pensamento humano, porém modalidades sincrônicas, posto que diversas, direções várias, posto que cevas, das ideias que formamos sobre os fatos. Se desde os tempos primitivos o homem formou ideias positivas sobre os fenômenos, apreendeu-lhes numerosas leis, de ordens diferentes de conhecimentos, como reconhecem Comte e Stuart Mill, no período atual, denominando positivo, as concepções teológicas e metafísicas subsistem perfeitamente ao lado das verdades científicas. Daí a doutrina de Spencer, para quem “a religião e a ciência são necessariamente correlativas”, representam dois modos antitéticos da consciência, que não podem existir separados: são os polos negativo e positivo, sem aumentar a do outro. A certeza da existência do poder insondável tem sido sempre o fim que a inteligência há procurado atingir.76 O próprio Comte reconheceu essa verdade, quando tentou constituir a sua religião positiva, que Flint qualificava – extravagante contubérnio como fetichismo, do ceticismo, do catolicismo e da ciência. Que melhor argumento poderia ministrar o fundador da filosofia positiva contra a lei dos três estados do que a confissão de que a humanidade ia entrar em um quarto estado, no qual ciência e religião deviam coexistir por toda a continuação da história? Se tal é a verdade em relação ao teologismo, isto é, ao elemento religioso, mais ainda nos convence o estudo da natureza do espírito humano de que a nossa inteligência nunca poderá resignar-se à abstenção de quaisquer cogitações sobre as causas primárias e as causas finais. Tudo nos leva a crer que esse conjunto de especulações sobre os seres que não podemos conhecer pelos processos científicos, e espe-

76 

Les Premiers Principes, pp. 94 e 95, trad. De Cazelles, 8. ed.

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cialmente sobre a Causa Última, que Augusto Comte reuniu sob a denominação de metafísica, há de ser perpetuamente uma fonte inexaurível de consolações ou de esperanças, de incertezas ou de angústias, para esta miserável e torturada impotência do espírito humano.

a história no conceito de buckle O rápido esboço do capítulo anterior comprova a afirmação com que Buckle inicia a História da Civilização na Inglaterra, que é um dos ensaios mais admiráveis no sentido de determinar as leis da história, de alçar a história à dignidade de ciência, ou de constituir a ciência da história. Desde o período greco-romano se tem coligido os anais políticos e militares de todas as grandes nações da Europa; começaram depois a se acumular copiosos dados históricos sobre a legislação, a religião, a ciência, as letras, as belas-artes, os inventos úteis e os costumes; foram examinadas antiguidades de toda espécie; elevou-se a economia política à categoria de ciência; a estatística e a geografia física têm feito progressos maravilhosos; estudaram-se as ações e os traços característicos dos povos civilizados e a vida de numerosas agremiações selvagens em todos os pontos do globo; tornou-se possível comparar as condições da humanidade em todas as fases da civilização, e nas mais variadas circunstâncias. Mas, se excetuarmos algumas observações empíricas, algumas reflexões morais e políticas de utilidade prática, qual o suco ideal extraído de tão abundantes materiais, no que concerne ao domínio da história? Que induções, que generalizações, que leis, que princípios, se formularam que mereçam a denominação de ciência da história? Os próprios historiadores, com poucas exceções, têm limitado a sua tarefa à narração dos acontecimentos. Raros os que tentaram subir até as leis gerais, e entre estes quase todos guiados por processos lógicos subjetivos, dominados por preconceitos, e em uma exata compreensão da natureza da ciência.

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Foi diante dessa riqueza de materiais de dessa escassez de verdades científicas, que o historiador britânico se arrojou ao tentame, como ele próprio qualifica a sua arriscada e trabalhosa empresa, de elevar o importante ramo das investigações históricas ao nível das ciências que se ocupam com a natureza. Com uma nítida visão do seu assunto, começa Buckle por uma indagação primordial, que nesta ordem de ideias necessariamente nos deve ministrar o fundamento de qualquer teoria que aspire aos foros de científica: os nossos atos, individuais e sociais, e consequentemente os fatos históricos, são governados por leis fixas, ou o produto do livre arbítrio? A nossa vontade é livre, independente da ação de quaisquer outros fatores, ou obedece aos móveis e motivos? Eis o problema, cuja solução nos levará a admitir e estudar as ciências que têm por objeto os fenômenos sociais, ou a repelir in limine quaisquer investigações nesse sentido. Não há muito que a filosofia contemporânea, pela boca de Fouillée, proclamava ser a questão do livre arbítrio e do determinismo o problema filosófico por excelência. A adoção de qualquer das duas teorias repercute em todas as ciências que estudam o homem, individualmente considerado ou em coletividade.77 Se professarmos o livre arbítrio, será a mais rematada incongruência qualquer pretensão de estudar cientificamente os fatos dependentes da vontade humana; e consequentemente deveremos repelir, por impossíveis, todas as ciências sociais, como o direito, a economia política, a política e a moral social, ou iremos até ao incomparável despautério de conceber um conjunto de ciências constituídas sobre fatos caprichosos, leis que governam fenômenos arbitrários, regularidade e previsão naquilo que só depende da vontade, superior a todas as circunstâncias internas e externas, que podiam gerar a ordem e permitir a previsão.

77 

Hammon,Dèterminisme et responsabilitè, p. 1ª.

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Mais historiador do que psicólogo, mais preocupado com a estatística do que com a observação do que se passa no espírito humano, Buckle haure o seu principal argumento em favor da tese científica do determinismo na regularidade de certos fatos, que, se fosse uma verdade o livre arbítrio, seriam absolutamente inexplicáveis. A uniformidade, ou, em dadas condições, ao aumento, ou a diminuição lenta e gradual, com que se verificam os crimes e os suicídios, e até fatos insignificantes, que parecem escapar a qualquer lei, como a omissão do endereço nas cartas postas no correio, não têm explicação plausível dentro da teoria do livre arbítrio. Mas tão grave é esta questão, e tal é a sua influência sobre tudo o que interessa às ciências sociais particulares, à ciência social fundamental e à filosofia da história, de cuja constituição adiante trataremos, que importa esclarecer um pouco mais este ponto capital. Tanto mais se faz mister a nossa explanação, quanto é incontestável haver homens ilustrados, que, por deficiência de instrução filosófica, como nota Schopenhauer, reputam o livre arbítrio um fato de certeza imediata, e o proclamam como verdade indiscutível, não acreditando, em sua ingenuidade, que seriamente alguém posso pô-lo em dúvida.78 Pensa Buckle que o homem nos tempos primitivos, não tendo ainda descoberto a uniformidade com que se produzem os fenômenos da natureza, atribuía tudo ao acaso. A observação quotidiana dos fatos e a comparação lhe foram a pouco e pouco sugerindo a ideia da estabilidade nos processos da natureza. Da primeira concepção defluiu das relações necessárias entre os fatos, da qual derivou a doutrina da predestinação. O livre arbítrio e a predestinação – eis os dois princípios opostos, e em luta durante um longo espaço de tempo. Hoje podemos dizer que, na explicação do mecanismo da vontade humana, há duas escolas em renhida controvérsia: a do livre arbítrio e a do determinismo. No conceito da primeira, o livre arbítrio, liberdade

78 

Essai sur le libre arbitre, cap. 2.

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moral, ou liberdade volitiva, quer dizer que, não obstante a pressão contínua e multiforme do meio exterior e a luta interna dos diversos motivos, a decisão final entre duas possibilidades opostas pertence exclusivamente à vontade do indivíduo.79 Por outras palavras, o livre arbítrio é o poder que tem a nossa vontade de se determinar, de se decidir, em virtude de sua própria iniciativa, superior a qualquer influência estranha, interna ou externa, ou o poder que tem o eu de ser ele próprio o autor, o criador de seus atos.80 Para os sectários do determinismo, todos os fenômenos do universo, tanto os físicos como os morais, são determinados por causas superiores à nossa vontade. Divide-se a teoria do determinismo em três subteorias: a do determinismo mecânico, a do determinismo fisiológico e a do determinismo psicológico.81 O determinismo mecânico parte do princípio de que a energia no selo do universo é sempre a mesma, toda a força se resolve em movimento e todo movimento em força, e pretende explicar por essa teoria mecânica todo o mecanismo da vontade. Essa doutrina, até certo ponto, confunde-se com a do fatalismo, segundo a qual tudo está previamente regulado, o homem nada pode modificar pela sua atividade, só lhe cumpre submeter-se, resignar-se, diante do poder misterioso e superior (Deus ou o destino), contra o qual toda luta é impossível.82 Os sectários do determinismo mecânico, bem como os fatalistas, não vêm que o homem exerce um poder de direção, limitado, mas incontestável, sobre as forças naturais. O determinismo fisiológico só admite instintos, sentimentos, inclinações e paixões, e explica todos os atos voluntários pelo temperamento, pelo ambiente, pela sensibilidade.83

79 

Enrico Ferri, Sociologia criminal, p. 262, Paris, 1893.

80 

Rayot, Leçons de psychologie, pp. 447 e 448.

81 

Cepeda, Eléments de Droit Naturel, trad. De Onclair, p. 32.

82 

G.Renard, L’homme est-il ilbre!,p.13.

83 

Cepeda, ob. cit., p.34.

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O determinismo fisiológico abstrai dos motivos consistentes em ideias ou razões de ordem superior, como o dever, a justiça, a solidariedade humana, a abnegação, motivos a que o homem obedece, contrariando seus móveis sensíveis.84 Finalmente, o determinismo psicológico, em antagonismo com o mecânico e fisiológico, insinua-nos que a vontade não está adstrita a essa força cega, manifestação da energia do universo, nem unicamente aos instintos, inclinações e sentimento, mas obedece também às ideias e aos raciocínios, que são motivos determinantes de nossas volições. É a doutrina verdadeira, e aceita por todos os psicólogos, filósofos e pensadores, que têm aprofundado esta difícil e complicada questão. O primeiro dos argumentos exibidos em favor do livre arbítrio repousa em uma grosseira confusão, facilmente dissipável. Se interrogarmos a nossa consciência, afirmam os adeptos do livre arbítrio, obteremos a resposta de que podemos fazer o que quisermos. Cada homem faz o que quer, não há dúvida alguma, desde que se lhe não depare um obstáculo material. Mas, como observa Schopenhauer, essa é a liberdade física, o poder de agir, que nada tem com a nossa intrincada questão. O que a consciência proclama é a liberdade dos atos, com a pressuposição da liberdade das volições, mas sobre esta última liberdade – a das nossas volições – a consciência nenhum testemunho oferece em favor da teoria do livre arbítrio. Isso não nos deve surpreender, porquanto a consciência, nota o filósofo alemão, tal qual habita no fundo da generalidade dos homens, é uma coisa demasiadamente simples e acanhada para poder explicar questões dessa ordem. O problema é outro e muito diverso. O problema é este: nós queremos as nossas volições? Queremos o que queremos? As nossas determinações, as nossas resoluções, são o produto exclusivo de nossa vontade, independente e superior às circunstâncias externas, aos móveis e aos motivos? Ou as nossas volições são o produto destes dois fatores – o caráter, a organização mental, a constituição psíquica

84 

Cepeda, p. 35.

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de cada um, e os móveis e motivos? Quando um homem afirma: “Eu posso fazer o que quiser, caminhar para a direita, ou para a esquerda, conforme quiser, portanto sou livre”, afirma uma verdade irrefutável. Apenas pressupõe a liberdade da vontade, e admite implicitamente que a decisão já está tomada.85 Os nossos atos dependem de nossas volições, de nossa vontade. Mas essas volições, essa vontade, são independentes de quaisquer circunstâncias, de quaisquer forças, internas ou externas? Eis o problema. E a solução única admissível no estado atual da ciência é a de Buckle, como hoje reconhecem todos os homens competentes neste assunto. Em verdade, a observação quotidiana dos fatos nos arrasta a confessar que os homens são resultantes dos tempos e dos lugares em que vivem, estreitamente solidários com tudo o que os cerca, os precede e os segue.86 A hereditariedade, ou meio interno, determina-lhes o caráter e o temperamento, e os modificam. A influência do último fator é frequentemente proclamada: não há quem duvide da ação dos hábitos, dos costumes da sociedade em que vive o indivíduo, da condição social em que nasceu, ou se conserva, da profissão, da higiene, da educação, da instrução, das instituições e das leis.87 A volição é uma resultante destes dois fatores: a constituição psíquica e os motivos. Submeter-se a este ou àquele motivo não é fato que depende do livre querer de cada um. Os motivos não têm uma força intrínseca, sempre a mesma para todas as vontades. Sua energia depende da organização mental dos indivíduos: o que para um homem civilizado, e de coração bem formado, constitui motivo preponderante, pode não passar de um motivo secundário, ou absolutamente nulo, para um cérebro rude e dominado por necessidades fisiológicas e tendências

85 

Essai sur le Libre arbitre, pp. 33 e 34.

86 

Pioger, La ris sociale, la morale et le progreès,parte 2ª, cap. 2º.

Hamon, obra citada, p. 22. Veja-se especialmente o excelente livro do Dr. M. Bombarda, professor de medicina em Lisboa, A consciência e o livre arbítrio, cap. 5º. 87 

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inferiores. Mas, objetam os propugnadores do livre arbítrio, a vontade humana tem em si um princípio ativo, capaz de resistir a todos os móveis e motivos imagináveis, de abstrair dessas forças determinantes, de sobrepor-se a elas, e dominá-las; os motivos não impelem necessariamente a nossa vontade. Na sua linguagem pitoresca, Schopenhauer reproduz essa objeção sob a forma de alguns exemplos. Para provar o livre arbítrio, um homem toma um revólver carregado, e declara que depende exclusivamente de sua livre vontade, sem a influência de motivo algum, suicidar-se ou não. Esquece-se de que a condição capital para que se dê tal fato é a intervenção de um motivo de força esmagadora e por isso mesmo raríssimo, de um motivo que possa sobrepujar o amor à vida ou o temor da morte. Só depois que um tal motivo entra em jogo é que a nossa vontade se determina, resolve a prática do ato, que então é uma consequência necessária. Diz um outro defensor do livre arbítrio: posso dar aos pobres tudo o que possuo, e tornar-me pobre. Poderia, responde o filósofo, se tivesse um caráter diverso, se levasse a abnegação até à santidade; mas, nesse caso, nada poderia impedir a prática desse ato, que se daria necessariamente. Uma ilusão da consciência, muito comum, parece opor-se ao determinismo psíquico: do fato de podermos pensar (note-se bem – pensar) na realização de duas ações completamente opostas, tiramos a conclusão de que, em um determinado caso, podemos querer igualmente dois atos contrários. Schopenhauer desfaz essa ilusão por meio desta bela e significativa prosopopeia: – Eu poderia, diz a água, levantar-me ruidosamente em vagalhões imensos, tragando navios alterosos, açoitando os mais elevados rochedos. – Sim, responde o filósofo, se fosse água do mar, agitada por uma tempestade violenta. – Eu poderia precipitar-me em uma carreira vertiginosa, arrastando na minha passagem troncos de árvores, blocos de granitos, cadáveres de homens. – Sim, poderia tudo isso, mas precisava ser uma grossa torrente, que se despenhasse de alcantilada montanha. – Eu poderia esparzir-me pela atmosfera em ligeiros flocos

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níveos, tão brilhantes como os raios do sol. – Poderia se fosse repuxo de jardim, em dia de céu anilado, sob os revérberos de um sol vivamente fulgurante. – Eu poderia refletir com a maior nitidez as mais puras formas, os contornos das imagens mais belas. – Sem dúvida, se fosse água de lago, cristalina e pura, não encrespada a face pela mais ligeira brisa. Quando supomos que em uma determinada hipótese podíamos ter tomado duas resoluções completamente opostas, esquecemos todas as circunstâncias que rodearam a nossa volição, abstraímos da força que determinou a nossa vontade, do elemento que influi decisivamente na deliberação. A ação desse elemento, o fato de termos obedecido a esse motivo, a circunstância de ter sido ele o preponderante não dependia da nossa vontade, era um corolário das condições do nosso espírito, da nossa organização mental. Em última análise, a única liberdade que tem o homem é a de agir (liberdade dos atos) de acordo com a sua vontade, suas predileções, suas inclinações, de conformidade com os seus moveis e motivos.88 E, sendo assim, o determinismo não destrói a individualidade, a personalidade, o conjunto das qualidades peculiares a um indivíduo, e que o distinguem dos outros indivíduos da mesma espécie. Exatamente por haver uma riqueza admirável de fatores que distinguem a constituição psíquica dos indivíduos, e uma grande abundancia de ideias e sentimentos, de inclinações e paixões, que atuam como forças propulsoras da vontade, e por não conhecermos previamente quais os fatores e os motivos que hão de predominar em um determinado caso, é que não podemos prever, com segurança, os fenômenos voluntários, exceto dentro de certos limites. Um outro argumento decisivo contra o livre arbítrio nos fornecem os estadistas, legisladores, jurisconsultos e moralistas, de todos os tempos. A existência das leis não teria absolutamente explicação, se a vontade humana fosse independente dos motivos. Que homem

88 

Hamon, p. 47.

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sensato se lembraria de dirigir, de governar, o livre arbítrio? As leis têm por basea presunção de que a vontade está sujeita à coação dos motivos. Um código penal é simplesmente uma série de motivos, criados pelos legisladores, para o fim de dominar os móveis e motivos conducentes ao crime.89 Os mais notáveis criminalistas estão acordes neste ponto: para Beccaria, a pena é um motivo sensível oposto ao delito; para Feuerbach, um dos fins da pena é a coação psicológica; segundo Romagnosi, uma das funções da pena é a contraimpulsão à impulsão do crime.90 O legislador serve-se das próprias paixões, das mesmas tendências, que levam ao crime, para afastar o homem da prática dos atos delituosos. A cobiça, a sensualidade, o instinto de destruição querem saciar-se: o legislador estabelece penas que vão ferir o delinquente exatamente no patrimônio, na liberdade (cuja privação lhe tolhe os gozos materiais), na vida, isto é, nos próprios instintos que ele quis satisfazer. A representação das consequências do delito contrabalança, ou sobrepuja as vantagens, os resultados, a utilidade colimada; e assim a ameaça do castigo, a cominação da pena, atua como motivo para vedar a perpetração do crime. Se, algumas vezes, a pena deixa de ser eficaz, e se transgridem as leis penais, isso prova a regularidade com que atuam os diversos fatores que concorrem para formar e caracterizar a nossa constituição psíquica. O moralista não raciocina de outro modo, quando se esforça por nos desviar da pratica do mal, por meio da representação das consequências prejudicais decorrentes da infração dos preceitos éticos, consequências que são as sanções da moral. Como todos os deterministas, Buckle tem sido increpado pelos que não conhecem a doutrina – de ter preconizado um princípio filosófico cujos corolários são imorais. Aceito o determinismo, supõem tais cen-

89 

Essai sur le libre arbitre, appendice 1º.

90 

Hamon – Dèterminísme et responsabilitè, p. 206.

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sores que temos eliminado as noções de imputabilidade, responsabilidade, mérito e demérito, pena e recompensa, e consequentemente os fundamentos da moral e do direito. Nenhuma suposição mais errônea. Sendo os nossos atos voluntários a resultante do caráter individual, ou organização mental de cada indivíduo, e dos motivos, e fazendo-se mister uma certa correlação entre a vontade e os motivos, isto é, que os motivos tenham a força de propulsar um determinado caráter, e que esse caráter esteja formado de tal modo que sobre ele influam esses motivos, nós temos o sentimento claro e seguro da imputabilidade de nossas ações. O determinismo não nega a individualidade, a personalidade; pelo contrário, explica cientificamente por que a constituição psíquica dos indivíduos varia, e distingue cada homem dos seus semelhantes. Ninguém ainda se lembrou, observa Schopenhauer, de se desculpar da prática de um ato condenável, atribuindo-o exclusivamente aos motivos: todos estão corretos de que a imperfeição do seu caráter contribuiu para a produção do ato censurável. Cada um de nós está convencido de que, sob a pressão dos mesmos motivos que o levaram a praticar um ato imoral, outro individuo de mais aperfeiçoada organização mental, de melhor educação e de inteligência mais esclarecida e capaz de reflexão, teria procedido diversamente. As ações voluntárias de um indivíduo decorrem do seu caráter, do conjunto de atributos que o distinguem, e consequentemente lhe são imputáveis. Lançam-se na conta de cada um de nós. Não devemos responder por esses atos? Juridicamente a questão nos parece hoje impossível. A responsabilidade do delinquente repousa exclusivamente na imperiosa necessidade da defesa social, reconhecem todos os criminalistas contemporâneos autorizados: o delinquente responde pelo delito, impõe-se-lhe uma pena, porque a conservação da sociedade o exige. Ora, já vimos que a ideia de pena com exclusão do determinismo psíquico só pode aninhar-se no cérebro de um insensato. Consequentemente, o determinismo não destrói a responsabilidade; o que se não compreende é a responsabilidade sem o determinismo.

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Mas, dir-se-á: a quem ficam reduzidas as ideias de mérito e demérito em face do determinismo? Quando uma ação foi julgada moralmente boa, dizemos que o agente moral é digno de estima e recompensa, eis o mérito. No caso contrário, julgamos o agente digno de desprezo e de punição, eis o demérito.91 Louvamos e estimamos o indivíduo que procede de acordo com os preceitos da ética; desprezamos e punimos a quem transgride essas normas salutares, estabelecidas em proveito do indivíduo, da sociedade, e da humanidade. Mas não é só no domínio dos fatos morais que discriminamos o que é útil do que nos prejudica, ou não nos interessa. Honramos e admiramos, louvamos e estimamos todos os que se distinguem por um talento científico, artístico ou literário, pela habilidade no exercício de uma profissão, por uma preciosa qualidade psíquica ou intelectual. Ninguém liberaliza prêmios ou encômios, recompensa monetária, ou sequer alguns momentos de atenção, ao mau poeta. Prestamos todas as nossas homenagens de estima e admiração àqueles que, por seus dotes naturais, por sua constituição mental, se têm distinguido na arte de exprimir as ideias e sentimentos humanos sob a forma eterna do verso. Entretanto, sabemos que nenhum desses artistas é o autor do seu gênio, que todos eles devem a excelência na sua arte à natureza às circunstâncias. Lamartine, que não equiparamos ao rude burlador de versos sem gênio e sem inspiração, pôde dizer de si próprio com verdade: Je chantais, mes amis, comme l’homme respire, Comme l’oiseau gémit, comme le vent soupire, Comme l’eau murmure en coulant.92

E Hugo escreveu em relação ao seu próprio gênio:

91 

E. Saisset, Principes de la Morale, p. 361.

“Eu cantava, meus amigos, como o homem respira / Como o pássaro geme / como o vento suspira, / Como a água murmura correndo” (N.O.). 92 

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Tout souffle, tout rayon, ou propice ou fatal, Fait reluire et vibrer mon âme de cristal, Mon âme aux mille voix, que le Dieu que j’adore Mit au centre de tout comme un écho sonore!93

Uma mulher nos atrai pelos encantos de sua beleza. Não é ela a autora da perfeição das linhas do seu rosto. Vamos por isso desprezá-la, ou confundi-la com as que não têm o dom fatal de que nos fala Byron? As perfeições morais são estimadas e aplaudidas do mesmo modo que as perfeições intelectuais. As imperfeições, as falhas, os vícios, os defeitos morais são votados ao desprezo e à repulsão, do mesmo modo que as imperfeições intelectuais.94 Tanto umas como outras não nos devem provocar ódio, mas compaixão, e o desejo de corrigi-las, de eliminá-las, nos limites do possível. O determinismo não nos leva à inércia do fatalismo. O determinismo psíquico é a teoria regeneradora da humanidade, a doutrina do bem, da moral, da salvação. Conhecedor da dualidade dos fatores que produzem as nossas volições, não mais se limitará o homem a conselhos ineficazes, a vãos preceitos, à simples formulação de regras de conduta, que são outros tantos motivos contraditoriamente oferecidos pelos adeptos do livre arbítrio como meios de dirigir a vontade humana. Sabendo que os atos morais dependem da correlação desses motivos com a organização mental, e quais os elementos que influem na formação do caráter, procuraremos evitar o mal, cortando-lhe as raízes; eliminar o vício, estancando-lhe as fontes; expungir o crime, dando caça aos seus antecedentes necessários, mais remotos e recônditos. Os indivíduos e as sociedades por seus órgãos se esforçarão por atenuar, quanto possível, as asperezas do meio físico, e por melhorar todas as condições individuais e sociais de que depende o aperfeiçoamento do espírito humano.

93  “Todo sopro, todo raio, seja propício ou fatal, / Faz reluzir e brilhar minha alma de cristal, / Minha alma em mil vozes, que o Deus que adoro / colocou no centro de tudo como um eco sonoro” (N.O.). 94 

Renard, obra citada, pp. 90 a 97.

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Se o determinismo psicológico é a expressão da verdade, Buckle tem razão quando, logo no limiar do seu majestoso edifício, coloca esta epígrafe significativa: “Temos, pois, que o homem modifica a natureza, e a natureza – o homem; e dessa recíproca influencia devem necessariamente decorrer todos os acontecimentos”.95 Podemos aplicar o método científico ao estudo dos fatos voluntários produzidos pelas agremiações humanas, generalizar depois de observar, e assim conhecer as leis a que esses fatos estão sujeitos. E, sendo assim, do conhecimento do passado, podemos colher elementos que nos autorizem a prever o futuro. Não faltam escritores que neguem a possibilidade da previsão em relação aos fatos sociais. Refuta-os Spencer esmagadoramente por meio de uma distinção que cumpre lembrar, o que faremos, servindo-nos dos mesmos exemplos do pensador britânico. Ninguém contesta o desenvolvimento da mecânica, uma das ciências mais adiantadas atualmente, mais próximas da perfeição, e que comportam predições mais seguras e precisas. Os astrônomos se utilizam dos princípios da mecânica como base de suas infalíveis previsões. Suponha-se que se trate de fazer explodir uma mina. Os princípios da mecânica nos autorizam a predizer que cada um dos fragmentos descreverá uma curva; que todas as curvas, embora diferentes entre si, serão da mesma espécie; que, desprezados os desvios produzidos pela resistência do ar, teremos partes de elipses bastante excêntricas para se confundirem com as parábolas. Tudo isso podemos prever com segurança. Mas o que nos é permitido saber previamente em relação à sorte particular de cada fragmento? A parte esquerda do bloco sob o qual se colocou a pólvora saltará em um só pedaço, ou em muitos? Este fragmento será lançado a maior altura do que aquele outro? Será detido em seu curso por um obstáculo? Eis aí perguntas a que a dinâmica não responde, por não ter dados sobre os quais possa formular as suas predições. E assim uma

95 

Traducção de Baillot, v. 1º, p. 24.

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das ciências mais exatas só nos permite previsões gerais em relação a um assunto de seu domínio. O processo geral do fenômeno pode ser conhecido previamente; as particularidades, não. Dá-se o mesmo com a antropologia. Nasce uma criança. Podemos prever o que lhe reserva o futuro? Morrerá em tenra idade? Viverá algum tempo para sucumbir à escarlatina, ou à coqueluche? Cairá de uma escada? Impossível absolutamente prever qualquer desses fatos. Se desses fatos pessoais passarmos aos que Spencer denomina quase-biográficos, algumas conjecturas serão possíveis. É lícito afirmar que o recém-nascido aos três anos não será um matemático, nem aos dez um psicólogo, nem um estadista na puberdade. Se eliminarmos os fatos biográficos e quase-biográficos, ainda nos restarão muitos fatos que podemos prever com segurança, e tais são os relativos ao crescimento, ao desenvolvimento, à estrutura e às diferentes funções do corpo humano. Também a história nos oferece duas ordens de fatos, os contingentes e os necessários, os imprevisíveis e os previsíveis.96 Só os últimos oferecem base para generalizações. A teoria do determinismo psíquico não nos leva à conclusão absurda de que tudo se pode prever no domínio dos fatos sociais. Mas isso não quer dizer que haja fatos dependentes do livre arbítrio e outros regulados por leis fixas, para nos servirmos da expressão de Buckle. Significa unicamente que, devido à extrema complicação das causas e condições de certos fenômenos denominados não lhes conhecemos as leis, e esses são os fenômenos denominados impropriamente contingentes. Buckle precisava começar pela afirmação do determinismo, porque todo o seu estudo sobre a história, o seu método e os seus princípios decorrem logicamente da estreita relação entre os atos humanos e as leis físicas, são aplicações do princípio do determinismo psicológico. As leis fundamentais da história no conceito de Buckle, e segundo ele próprio as formulou, são as seguintes:

96  Spencer. Introduction à la science sociale, pp. 56 a 61. Paul Mougeolle, Les problems de l’histoire, prefacio de Yves Guyot, p. VII.

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“1ª – os progressos do gênero humano dependem do sucesso das investigações no domínio das leis dos fenômenos da natureza e da proporção em que se divulga o conhecimento dessas leis; 2ª – para que possam começar essas investigações, é mister que exista o espírito de dúvida, o qual, provocando as pesquisas científicas, é por seu turno alimentado por elas; 3ª – as descobertas assim obtidas aumentam a influência das verdades intelectuais, e diminuem relativamente, não absolutamente, as verdades morais, porquanto estas, não podendo ser tão numerosas, são mais estacionárias do que as verdades intelectuais; 4ª – o grande inimigo da civilização é o espírito protetor, isto é, a convicção de que a sociedade só pode prosperar, se o Estado e a Igreja dirigirem os nossos passos mais insignificantes, o Estado pela determinação do que devemos fazer, a Igreja pelo ensino do que devemos crer.”97

Tais são, na frase do historiador inglês, as proposições mais essenciais para a vã inteligência da história, proposições que ele julga ter demonstrado pela indução e pela dedução. Terá o erudito e genial escritor formulado as leis fundamentais da história, as bases da filosofia da história, como empreendeu, tão convencido da eficácia do seu método e da superioridade de suas forças intelectuais? O progresso do gênero humano (é a primeira lei) depende do sucesso das investigações no domínio das leis que regem os fenômenos da natureza, e da proporção em que se espalham os conhecimentos dessas leis. Em primeiro lugar, importa saber o que é o progresso do gênero humano. Nada mais vago, mais indefinível, do que a ideia que se faz geralmente acerca do progresso. No sentido comum, o progresso é uma expressão subjetiva, que designa as modificações que satisfazem as nossas preferências.98 Algumas vezes, empregamos o vocábulo para exprimir o aumento, ou a qualidade superior, dos produtos das indústrias; outras, para significar o desenvolvimento das ciências, das letras, das artes, ou as modificações que, direta, ou indiretamente, conduzem à 97 

Trad. De Baillot, v. 4, cap. XV.

98 

Langlois e Seignobos, obra citada, p. 249.

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felicidade.99 No sentido objetivo que lhe deu Spencer, o progresso pode ser definido: o aumento de variedade e de coordenação dos fenômenos, ou a passagem da estrutura homogênea para a estrutura heterogênea. O termo é tão vago como a palavra civilização, que, para alguns, significa unicamente o desenvolvimento das ciências, da literatura e das artes, e para outros abrange a indústria, o comércio, todos os ramos atividade útil, não faltando historiadores que a empregam como expressão apropriada para representar tudo isso e também a vida doméstica, o culto religioso, os usos e costumes, os utensílios e a alimentação.100 Que quer dizer o progresso do gênero humano de que nos fala Buckle? O progresso, ou a civilização (não raro expressões sinônimas) que compreende todas as modificações úteis, que nos dão o bem-estar, e que traduzem uma elevação intelectual e moral, ou o progresso em determinado ramo da atividade humana? Buckle nos responde, primeiramente, definindo a civilização, que é o triunfo do espírito sobre os agentes exteriores, e depois consagrando algumas páginas à noção do progresso. Reproduzamo-lhes as frases: “Se perguntarmos: que é o progresso? A resposta parecerá muito simples: é um duplo desenvolvimento, moral e intelectual; o primeiro se refere aos nossos deveres, o segundo aos nossos conhecimentos”. Confessemos que a resposta pode talvez ser muito simples, mas, com certeza, não é satisfatória. “Esse duplo movimento moral e intelectual”, continua Buckle, “é essencial à ideia de civilização, e encerra toda teoria do progresso mental. Cumprir o seu dever, eis a parte moral; saber como se desempenha

99 

Spencer, Essai sur le progrès, p. 3 e seguintes.

100  Gumplowicz, Sociologie et Politique, p. 90. Flint não admite a sinonímia entre os termos civilização e progresso. “O bom-senso natural do gênero humano, diz o ilustre escritor inglês, absolutamente não tem o direito de afirmar que a civilização seja o progresso, ou mesmo de considerar o progresso um caráter essencial e universal da civilização; é pelos fatos que deve ser provada, a verdade ou a falsidade dessas proposições; e os fatos nos convencem precisamente de que ambas são falsas. Uma grande parte da civilização progressiva é, não a regra, mas a exceção. A civilização progressiva é a única que encerra a noção do progresso” (Philosophie de l’histoire en France: cap. X).

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o homem do seu dever, eis a parte intelectual”. Mas uma grave questão se oferece logo ao espírito do escritor britânico: dessas duas partes, ou elementos do progresso mental, qual é a mais importante? Cumpre sabê-lo para subordinar o elemento inferior ao superior. Se o desenvolvimento da civilização e a felicidade dos homens dependem mais do senso moral que das aquisições da inteligência, naturalmente é esse o estalão de que nos devemos utilizar para medir o progresso da sociedade: se, pelo contrário, tudo está subordinado ao aumento dos nossos conhecimentos, é a atividade intelectual a nossa craveira. Depois de uma longa argumentação, afirma Buckle que o progresso da inteligência, das noções científicas (ou intelectuais, como ele denomina), é o progresso por excelência, e, pois, a medida do progresso do gênero humano. Sendo assim, ou o progresso a que se refere Buckle na fórmula da sua primeira lei da história abrange todas as modificações úteis, intelectuais e morais, que constituem o progresso no sentido amplo; ou exprime unicamente o aumento do nosso patrimônio intelectual. Sendo o fim do historiador britânico traçar a lei fundamental da história da humanidade, e não a lei especial de determinado ramo do progresso humano, é na primeira acepção que deveremos tomar o vocábulo. Mas, nesse caso, a lei de Buckle tem contra si os mais eloquentes protestos da história universal. Em todos os países do Oriente, e mormente na Grécia e em Roma, as instituições políticas, a legislação e a jurisprudência, a religião, a moral, a vida doméstica, a arquitetura, a escultura, a pintura, a dança, a música, a poesia, as indústrias não aguardaram o desenvolvimento das ciências físicas para progredir, nem se desenvolveram na proporção em que foi divulgado o conhecimento das leis naturais. Não há uma só grande ideia moderna, uma concepção filosófica, uma teoria do pensamento que não tenha os seus primórdios na concepção de algum filósofo da Hélade.101 Nas artes,

101 

Latino Coelho, A Oração da Corôa,p. 35.

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“o ponto, onde chegou o gênio grego, deve seguramente reputar-se o limite superior da humana inspiração”.102 Da Hélade receberam os romanos a filosofia e as artes, a que nunca deram o maravilhoso desenvolvimento que entre eles teve a jurisprudência. Entretanto, as ciências físicas apenas ensaiavam os seus primeiros passos, e jaziam imersas em um retardamento que contrastava com a brilhante cultura de outros ramos do saber. A verdade é como nos diz Stuart Mill, e o próprio Comte o reconheceu em uma página que reproduzimos no capítulo anterior, que desde os tempos mais remotos tem havido um desenvolvimento simultâneo em todos os domínios da inteligência humana, ora preponderando um, ora outro. Se a lei de Buckle somente compreende o progresso intelectual, o desenvolvimento das ciências começa pelo defeito de não ser uma lei universal, e muito menos fundamental da história da humanidade. Seria uma lei especial, talvez, do progresso das ciências. Mas, então, já antes de Buckle alguém que lhe era superior em gênio e profundeza de conhecimentos tinha mais precisamente formulado a proposição. De fato, que ficaria sendo, em tal hipótese, a lei do historiador inglês, senão a tese de Augusto Comte, segundo a qual o progresso das ciências que se ocupam com o homem e com a sociedade depende do desenvolvimento das ciências físicas, assim como o destas do das ciências inferiores, na ordem hierárquica geralmente conhecida? A segunda lei de Buckle não é menos falsa. É a expressão de um fato que se tem dado que pode verificar, mas não uma lei fundamental da história. Tem razão Littré, quando assevera que, nem com relação aos indivíduos, nem com relação às épocas, se pode reputar o cepticismo, ou o espírito de dúvida, uma condição necessária das primeiras investigações das leis naturais.103

102 

Obra citada, p. 353.

103 

La sciene au point de vue philosophique, p. 487.

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Buckle impressionou-se por certos fatos da história da Espanha, onde a Igreja, auxiliada pela inquisição, fazia uma guerra de extermínio, só explicável pela estupidez do fanatismo a todos os pensadores e homens da ciência; e por esse modo conservou na ignorância, que sempre lhe é tão agradável, aquela nobre e infeliz nação. Generalizando precipitadamente, vicioso hábito de que severamente, mas com razão, o increpa um seu compatriota ilustre,104 Buckle formulou uma lei geral da história, desmentida a cada passo pelos fatos. Católicos sinceros, protestantes fervorosos, como Descartes, Newton, Haller, fizeram avançar as ciências naturais.105 Na idade média, cegamente sujeita a todos os dogmas teológicos, as especulações da alquimia produziram descobertas importantes, e prepararam o caminho para muitos progressos da química.106 Ainda na idade média, as crenças religiosas não impediram Alberto o Grande de conceber método e verdades científicas muito dissonantes das ideias errôneas que o cercavam; Vicente de Beauvais, de se consagrar ao estudo na natureza, de investigar no domínio da astronomia, da botânica, da zoologia; Rogério Bacon, de ser o propugnador do método experimental naquela época de trevas, de indicar os meios de extrair o fósforo, o manganês e o bismuto, de indireta ou diretamente dotar a civilização com inventos preciosos, como os relógios, as lentes e os espelhos refletores, de ter uma intuição do poder do vapor, e de algumas das principais doutrinas da química moderna, de insistir sobre a necessidade do emprego das matemáticas como auxiliar das outras ciências, e de iniciar os processos para o estudo da refração da luz.107

104 

The Encyclopedia Britannica, artigo de Flint sobre Buckle, v. IV.

105 

Littré, obra citada, ibidem.

106 

Obra citada, ibidem.

107 

White, Histoire de la lutte entre la science et la theologie, cap. XII.

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Dir-se-á: todos esses homens foram perseguidos pela Igreja. Sim, foram perseguidos, mas eram todos católicos sinceros e fervorosos, e isto basta para mostrar que o espírito teológico não é incompatível com o estudo das leis naturais. Os primeiros pensadores da filosofia grega não eram emancipados da tradição, ou da autoridade mitológica, que denominaríamos teológica, se empregássemos a terminologia de Augusto Comte. Entretanto, a mais arrojada concepção do século XIX no domínio das ciências biológicas foi claramente enunciada por Anaximandro no que se chamou o seu famoso paradoxo: a teoria de Darwin sobre a transformação e descendência das espécies.108 Um dos sábios mais eminentes do século passado, Pasteur, que tanto aprofundou as investigações das leis naturais, não era dominado por nenhum espírito de dúvida religiosa. Não foi ele quem disse em uma ocasião solene que “a ciência e a ânsia de compreender são efeitos dos estímulos que põe em nossa alma o mistério do universo”? O estudo dos fenômenos físicos não provém da dúvida religiosa, mas, sim, de uma curiosidade instintiva, que, desenvolvida pelo trabalho e pelo sucesso, toma um caráter de amor do verdadeiro e de paixão pela verdade.109 A terceira lei de Buckle é um paradoxo, que o historiador inglês tenta demonstrar por uma série de paradoxos, explicáveis unicamente pela excentricidade britânica. A moral, conjunto de preceitos impostos à atividade voluntária do homem e que tem por fim a conservação e o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade, é, a princípio, empírica e faz parte das religiões. À proporção que se aumenta o conhecimento do homem e da sociedade, vamos compreendendo a razão de ser das regras éticas, as leis, no sentido científico do termo, que servem de base aos preceitos. A moral, de simples arte que era, transforma-se em arte e ciência ao mesmo tem-

108 

Latino Coelho, obra citada, p. 287.

109 

Littré, obra citada, p. 488.

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po, como sucede à medicina, à navegação, à metalurgia, à agricultura. Todas as artes, todas as práticas, são empíricas em sua origem. Com o progresso dos conhecimentos científicos vão-se elevando à categoria de ciências, ou, melhor, cada arte se vai baseando sobre uma, ou mais ciências.110 A posse dessa verdade incontestável basta para repelirmos o erro de Buckle. Necessariamente a transformação da prática em uma arte iluminada pelas ciências há de aumentar não só os preceitos, como a qualidade das determinações. O próprio Buckle, em contradição com a sua lei, o reconhece, quando escreve esta frase: “As leis morais estão firme e invariavelmente subordinadas às leis intelectuais”.111 Quanto mais profundamente conhecemos a natureza do homem, individual e socialmente consideradas, mais seguras hão de ser as nossas indicações morais, e os nossos preceitos para conservação e desenvolvimento da vida humana. É uma verdade que nos parece evidente. A mesma moral empírica é susceptível de progresso. Não se pode, em sã consciência, negar a imersa superioridade da moral cristã sobre a do paganismo. Buckle não trepida em afirmar a ineficácia absoluta das melhores regras éticas, quando desacompanhadas dos progressos científicos. Mas a isso responde a história da propagação do cristianismo. Não foram as nações mais adiantadas as que primeiro abraçaram a moral cristã; não foram Grécia e Roma; foram os bárbaros.112 E negar o progresso dos bárbaros pela adoção do cristianismo é certamente um paradoxo. As sociedades mais esclarecidas, cujo progresso científico é maior, são melhores, mais humanas, mais justas, mais tolerantes, reconhece Buckle. Que quer isso dizer, senão que representam um aperfeiçoamento moral, que são mais moralizadas? Como, pois, desconhecer a conexão entre o progresso moral e o intelectual?

110 

Bain, Logique deductive et inductive, trad. de Compayré.

111 

V. 1º, p. 253.

112 

Laurent, obra citada, p.231.

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A quarta preposição de Buckle é formalmente refutada pelos fatos que se passam hoje em todos os países cultos, na Europa inteira e na América. O Estado, em vez de contrariar o desenvolvimento das ciências naturais, e de todas as outras, ministra-lhe, pelo contrário, toda espécie de subsídios. Quando na Alemanha, na França, na Inglaterra, na Itália, na Bélgica, na Áustria, na Holanda, Suíça, Estados-Unidos, por toda parte, o Estado, diretamente na maior parte das vezes, indiretamente em outros casos, cria universidades e academias, dota-as de laboratórios e instrumentos aperfeiçoados para o estudo das ciências que inquirem os fenômenos físicos, assim como para o cultivo de quaisquer outros ramos do saber; quando em todos esses Estados há plena liberdade para as investigações científicas; quem ousaria repetir o paradoxo de que o espírito protetor do Estado é o grande inimigo do progresso intelectual. Apresentar esse paradoxo como lei fundamental da história da humanidade, transformar em lei universal um fato que se tem dado em algumas épocas, mas que não tem o caráter de constância e permanência que constitui a lei, toca as raias do absurdo. Não diremos o mesmo do espírito protetor da Igreja. O que se tem dado é isto: quando se propala uma descoberta da ciência, que contraria os textos bíblicos, a princípio a Igreja declara uma guerra cruel aos propugnadores da ideia nova; depois, oferece uma doutrina oposta, com fundamento nos livros sagrados; em seguida, tenta uma conciliação entre os textos e a verdade científica incontestável; finalmente, a ciência triunfa.113 Foi o que se deu com as teorias sobre a estrutura do globo terráqueo, sua configuração e seus limites, sobre os cometas, sobre a idade da terra. Mas a verdade é que não podemos ver hoje na Igreja esse espírito protetor, inimigo do progresso das ciências naturais, de que nos fala Buckle. Pelo contrário, nos institutos cuja direção lhe está confiada, a Igreja atualmente auxilia a ação do Estado no desenvolvimento e na propagação das verdades das ciências naturais.

113 

White, obra citada, p. 154, onde se vêm diversos exemplos.

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Posto que a não inclua entre as quatro proposições que denomina as leis fundamentais da história, Buckle enuncia uma outra asserção, que, no seu entender, é “a base da filosofia da história”. Essa base da filosofia da história é “a grande divisão da civilização em europeia e não europeia”.114A tendência da história na Europa tem sido no sentido de subordinar a natureza ao homem; fora da Europa – no sentido de subordinar o homem à natureza. Nos países bárbaros, acrescenta Buckle, há diversas exceções a esse princípio; nos países civilizados, nenhuma. Se quisermos compreender a história da Índia, por exemplo, devemos ater-nos ao estudo do mundo externo, ou, mais propriamente, dos fatores físicos, que são quatro: o solo, o clima, a alimentação e o aspecto geral da natureza. Se quisermos compreender a história de um país europeu, como a França, ou a Inglaterra, o homem deve ser o nosso principal objeto de estudo. Não porque a pressão da natureza nos países da Europa deixe de ser muito sensível; mas porque vai diminuindo sucessivamente, de geração em geração, à medida que aumenta o saber do homem, e este se aparelha dos meios de prever os fenômenos da natureza, e, consequentemente, de prevenir um grande número de males. Com toda a razão diz Littré que o acerto de Buckle, longe de ministrar a base da filosofia da história, é um erro. Para se poder dividir a civilização europeia e extraeuropeia, fora mister que a civilização europeia fosse autóctone. Mas a Europa inteira se conservava ainda bárbara, quando a Caldeia, a Fenícia, a Assíria e, muito antes, o Egito brilhavam com esplendor das artes e do comércio, fundavam grandes cidades, levantavam esplendidos monumentos, laboravam os metais e ensinavam o resto da humanidade a ler, a escrever, a contar e a medir. Foi na extremidade da Ásia, nessa Grécia, meio europeia, meio asiática, que surgiu a civilização europeia, destinada a se tornar universal. A proposição de Buckle só é verdadeira, quando restringida a um período

114 

V. 1º, p. 173.

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recente; mas, então foge e se esvaece por outro lado, porquanto a civilização emanada da Europa se implanta na América, na Austrália, começa a transformar a Índia, maravilha o Japão, regiões – todas essas – em que, segundo o suposto axioma, a natureza é mais potente que o homem.115 A teoria dos agentes físicos por si só não explica a diferença de progresso entre as nações da Europa e as de outras regiões, cujo solo, clima, alimentação e aspecto geral da natureza se não podem considerar obstáculos ao desenvolvimento da civilização. Nem se quer a diversidade originária das raças, cuja influência Buckle nega, ou despreza, e a que Renan liga tão grande valor,116 nos dá uma razão satisfatória dessa desigualdade de cultura. Os Árabes, nômades e incultos, enquanto permaneceram nos seus desertos, elevaram-se ao mais alto grão de civilização, quando reinavam em Córdoba e Bagdá.117 Na falta de uma explicação racional, o melhor é apelarmos para as felizes conjunturas, com que já se tem procurado ocultar a ignorância das leis que regem o fenômeno.118 Não poucas das induções de Buckle sobre a influência dos fatores físicos são exageradas. No sentir do historiador inglês, o aspecto geral da natureza tem uma influência decisiva na formação das religiões. Não somente os fenômenos físicos permanentes, tais como as montanhas, os rios, a fauna e a flora, como os terremotos, os vulcões, as tempestades, os furacões impressionam a imaginação do homem, ao ponto de determinar notáveis dessemelhanças na religião. A cruel superstição dominante na Índia e a religião amável dos gregos têm sua razão de ser na disparidade apontada. Buckle esquece-se de que na Europa, cujo aspecto físico geral forma um contraste com o da Índia, a mesma superstição, a mesma religião

115 

Obra citada, pp. 493 e 494.

116 

Histoire gènérale des langues admitiques, t. 1º.

117 

Laurent, p. 219.

118 

Littré, p. 490.

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sanguissedenta, existiu em épocas remotas. Os Druidas mancharam o solo da França e o da Inglaterra com os mesmos sacrifícios cruentos dos sacerdotes hindus.119 O clima quente é um dos elementos mais favoráveis à expansão da cultura humana, diz Buckle. Todas as civilizações primitivas tiveram seu berço em regiões favorecidas por um alto grau de calor, e onde, consequentemente, a terra é mais fértil. Na América, foram o México e o Peru os primeiros países que atingiram a um certo grau de civilização. Como explicar o fato de não ter tido o Brasil uma civilização adiantada, como a do México e do Peru? Buckle forja uma teoria curiosa, e cujo único assento é uma noção falsa da geografia física do nosso país. Os ventos Elíseos, que vêm do leste e dominam a costa oriental da América do Sul, atravessam o oceano Atlântico, e por isso chegam à terra sobrecarregados dos vapores acumulados, em sua passagem. Esses vapores, periodicamente, se condensam em chuvas que, não podendo transpor a cadeia gigantesca dos Andes, se precipitam sobre o Brasil, e o inundam em torrentes formidáveis. As chuvas, aliadas à vasta rede fluvial, e acompanhadas do calor, dão ao solo uma atividade prodigiosa, que nenhuma parte do mundo pode igualar. Daí a profusão maravilhosa e incrível da fauna e da flora brasileira. Uma grande extensão do país se compõe de florestas espessas, cujas árvores magníficas se desentranham em frutos com uma prodigalidade inesgotável. E, para que nada falte a esta terra da promissão, as florestas são circundadas de prados extensíssimos, que, regurgitando de calor e de humanidade, fornecem alimento a inúmeros rebanhos de gado selvagem. Em meio dessa pompa, desse esplendor da natureza, não há lugar para o homem, reduzido à insignificância pela majestade que o cerca. As forças con-

119 

Laurent, p. 224.

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trárias são tão formidáveis, que o homem nunca lhes pôde resistir à menor opressão. Aí está como se explica a ausência de uma civilização, aborígene, ou exótica, no Brasil. As montanhas são tão altas, que não podemos vingá-las; os rios tão largos, que não podemos transpô-los.120 Nós a lutarmos com os terríveis efeitos das secas periódicas, a ouvirmos seguidamente lamentar a devastação das nossas matas e a falta de terras férteis, poucas relativamente à extensão corográfica do nosso território, e com esses portentosos tesouros ao alcance da mão, e no seio dessa fabulosa feracidade! A exageração de Buckle é desculpável, quando vemos um escritor brasileiro descrever o seu país com hipérboles ainda mais arrojadas, com amplificações retóricas ainda mais falsas. O escritor baiano Rocha Pitta, na sua famosa História da América Portuguesa, conta-nos que o Brasil “é uma vastíssima região, felicíssimo terreno, em cuja superfície tudo são frutos, em cujo centro tudo são tesouros, em cujas montanhas e costas tudo são aromas; tributando os seus campos o mais útil alimento, as suas minas o mais fino ouro, os seus mares o âmbar mais seleto; admirável país, a todas as luzes rico, onde prodigamente profusa natureza se desentranha nas férteis produções, que, em opulência da monarquia e benefício do mundo, apura a arte, brotando as suas canas espremido néctar, e dando as suas frutas sazonada ambrosia, de que foram mentida sombra o licor e vianda que aos seus falsos deuses atribuiu a culta gentilidade. Em nenhuma outra região se mostra o céu mais sereno, nem madruga mais bela a aurora; o sol em nenhum outro hemisfério tem os raios tão dourados, nem os reflexos noturnos tão brilhantes; e as estrelas são as mais benignas, e se mostram sempre alegres; os horizontes, ou nasça o sol, ou se sepulte, estão sempre claros; as águas, ou se tomem nas fontes pelos campos, ou dentro das povoações nos aquedutos, são as mais puras: é enfim o Brasil terreal paraíso descoberto, onde têm nascimento e curso os maiores rios; domina salutífero clima; influem benignos astros, e respiram auras suavíssimas, que o fazem fértil e povoado de inumeráveis habitadores.”

120 

V. 1º, pp. 121 a 125.

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Ao passo que distribui aos agentes físicos um papel tão importante, Buckle reputa completamente ineficaz a ação do governo e das classes dirigentes para o melhoramento da sociedade. Em apoio dessa indução, exibe uma série de argumentos, notáveis pela excentricidade. Em primeiro lugar, os homens que governam uma nação, em geral, são habitantes do país, imbuídos dos seus preconceitos, educados nas suas tradições, nutridos de sua literatura; e, portanto, as suas medidas legislativas são efeitos, e não causas, do progresso social. Em segundo lugar, todas as grandes reformas, por eles promovidas, consistem não em fazer alguma coisa, mas em desfazer o que estava feito. São esses os principais fundamentos da afirmação de Buckle, e é o próprio escritor britânico o primeiro a lhes provar a falsidade. Tudo o que escreveu Buckle, sobre as reformas e o merecimento de Richelieu, cujo governo foi “tão feliz quanto progressivo,” e a sua apologia de Aranda e Florida Blanca na Espanha, bastam para refutar o primeiro argumento. Segundo o testemunho da história, e especialmente da história contemporânea, o Estado ora tem dirigido e propulsado o movimento social, fazendo adiantar a civilização, exercendo funções inovadoras no sentido do progresso, ora é um elemento conservador; e, então, não raro desempenha um papel benéfico, impedindo as alterações políticas e sociais precipitadas, ainda não compreendidas, e que seriam perniciosas, como reconhece Buckle. Fora inútil lembrar as reformas salutares (em meio de tantas outras funestas) realizadas pela iniciativa do governo, em nosso país – por exemplo, para provar que a ação dos homens que governam ora é favorável ao progresso, ora contrária, não sendo permitido, consequentemente, formular como lei histórica a ineficácia do governo em relação ao progresso social. O segundo argumento de Buckle envolve manifesta contradição. Não poderiam os governos limitar as suas funções a desfazer o que está feito: a sua esfera de atividade se restringiria até desaparecer. Diante das tendências socialistas dominantes em nossa época, e quando o Estado cada vez mais alarga a sua atividade,

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criando instituições, regulamentando fatos sociais, manifestando, em suma, a sua força impulsora e geradora em assuntos de que antes não cogitavam os governos, a proposição do historiador inglês dispensa uma impugnação fundamentada. No conceito de Buckle, em síntese, os fatos históricos têm duas ordens de antecedentes: a influência dos fatores físicos, da natureza, sobre o espírito do homem, e a influência da inteligência humana sobre esses agentes. É, como se vê, uma aplicação da teoria do determinismo. A natureza, em contato incessante com o nosso espírito, excita as nossas paixões, estimula a nossa imaginação, impressiona diversamente a nossa inteligência, dando aos nossos atos uma direção que sem essa influência eles não teriam. O espírito humano, por sua vez, modifica a natureza, reage conforme o grau de resistência dos agentes físicos; e, quando não encontra obstáculos no mundo externo, desenvolve-se segundo as condições de sua organização. Qual das duas influências é a preponderante? A do homem sobre a natureza? A da natureza sobre o homem? Na Europa, responde Buckle, é a inteligência humana que predomina. Fora da Europa, em geral, é a natureza, a qual tanto impressiona a imaginação do homem. Para conhecer, pois, o desenvolvimento da civilização europeia, importa primeiro que tudo estudar as leis mentais, que se dividem em intelectuais e morais, como já vimos. Dessas duas espécies de leis, as primeiras prevalecem, são as mais importantes. Todo o progresso do gênero humano depende das leis intelectuais, isto é, da descoberta das verdades científicas. Leis intelectuais e leis morais, na linguagem de Buckle, significam progresso científico e progresso moral. A inteligência humana, aplicada às investigações científicas, é a fonte de todo o progresso, porquanto domina a natureza, transforma os agentes físicos, que converte em elementos de bem-estar para o homem, e extingue as superstições – causa de tantos males, e especialmente das lutas e perseguições religiosas. As doutrinas morais, imóveis, invariáveis, as mesmas em todos os tempos, em nada concorrem para o

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nosso bem-estar, e até aparecem incapazes de qualquer contribuição para esse fim. Assim como as religiões, a literatura e a política, na teoria de Buckle, têm um papel insignificante, uma ação quase nula, em relação ao progresso do gênero humano: são efeitos, e não causas, das ideias dominantes, em um período histórico. A ciência – eis o elemento dominador da história, a fonte única do progresso da humanidade. Apresentar assim a filosofia da história de Buckle a um espírito refletido, e conhecedor da história, é refutar-lhe as leis fundamentais, as deduções tiradas do princípio verdadeiro do determinismo. Os fatos da história antiga e os fatos da história contemporânea opõem-se formalmente à divisão de toda a história da humanidade em europeia e não europeia. A civilização da Europa foi precedida da civilização das nações do Oriente. A Europa ainda estava mergulhada em um estado próximo do selvagem, quando a China, a Índia, o Egito, a Assíria, a Fenícia, a Media, a Pérsia já contavam muitos séculos de civilização.121Foi nos planaltos da Ásia Central que os primitivos Aryas, ou indo-europeus, formaram o núcleo dessa civilização, que depois se espalhou e desenvolveu pelos hindus, pelos persas, e mais tarde pelos gregos, romanos e celtas.122 Hoje os descendentes desses mesmos Aryas, ou indo-europeus, representam e propagam a civilização europeia nas duas Américas, na Oceania, em todas as partes do globo. Que significa, pois, a divisão da história da humanidade em europeia e extraeuropeia? Será permitido erigir um fato transitório à categoria de lei fundamental da história universal? Considerar as investigações no domínio das ciências que estudam os fenômenos físicos a base única da civilização europeia, ou de qualquer outra, é substituir arbitrariamente por uma concepção individual a ideia representada por esse vocábulo. O progresso do gênero humano não depende exclusivamente do sucesso das investigações das ciências físicas. Reduzir

121  Entre outros os seguintes auctores de obras didacticas: Victor Duruy, Histoire Gènérale, e Consiglieri Pedroso, Compendio de historia universal. 122 

G. Carle, La vita del diritto nei suoi rapporti colla vita sociale, liv. 1º, cap. 1º.

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a civilização ao progresso das ciências que se ocupam com o mundo físico é mutilar essa ideia complexa. Tais ciências, ou quaisquer outras, em seu desenvolvimento, refletem apenas uma das faces da vida da humanidade, que se desdobra em muitos outros ramos de atividade, todos conducentes ao bem-estar do homem, que, segundo Buckle, é o fim da civilização. Dentre tantos elementos o progresso moral nunca se poderá dizer só menos. Para a felicidade humana, qual a concebemos geralmente, não basta domar a natureza, aproveitar-lhe as forças em nosso benefício. O aperfeiçoamento das instituições políticas e sociais, o cultivo dos sentimentos altruísticos, o adoçamento das relações exclusivamente morais, a educação que torna o homem justo, bom, tolerante, generoso e amável, fazem parte da civilização, e nunca se poderiam julgar fatores menos importantes do bem-estar da humanidade que o desenvolvimento científico. Mas dir-se-á talvez: se o progresso moral não acompanha o progresso intelectual, Buckle tem razão ao menos em uma das suas induções. Não: a moral não é estacionária; a doutrina e os sentimentos éticos não são invariáveis, fixos, imóveis, em meio dos progressos das ciências. Se o século XIX foi um período notável pelas descobertas científicas e inventos industriais, não deixou de ser uma idade de progresso moral: a guerra se fez menos desumana; todos os povos cultos aboliram a escravidão, a mais imoral das instituições civis; a posição da mulher se nobilitou; no fundo das propagandas das várias subescolas em que se divide o socialismo há uma ideia, ou um sentimento moral. Posto que menos do que as leis intelectuais, as leis morais progrediram. Em outras épocas, a cultura moral foi superior à científica. Um exemplo temos nos Judeus, povo de quase nula cultura intelectual, mas de uma doutrina moral adiantadíssima. Provam-no o decálogo e as prescrições da lei. Ainda no século XIX, o Estado, mais do que os indivíduos, foi o grande propulsor das investigações científicas. O seu espírito protetor não impediu, favoreceu o desenvolvimento, em proporções nunca antes observadas, das ciências que estudam os agentes naturais.

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Buckle não constituiu a filosofia da história. As suas generalizações não traduzem leis históricas. Nem com a sua extraordinária erudição, nem com o seu admirável poder mental, logrou mais do que um ensaio, um tentame, superior a maior parte dos estudos do mesmo gênero, pelo princípio de que partiu, e pelo método que empregou. Esse mesmo método e esse mesmo princípio, aplicados ao estudo dos fatos históricos, têm sido fecundos em resultados, mas para o domínio de outras ciências. Pela própria natureza das coisas, a filosofia da historia é impossível. A falta do historiador britânico, explicável pelo arrojo de seu gênio, proveio de não ter observado o preceito científico que mais tarde Du Bois-Reymond formulou no seu famoso Ignorabimus, completado por Virchow com o não menos célebre Restringamur.Ignorabimus et restringamur.123

mais algumas teorias. o conceito real da história Fustel de Coulanges, admirável pela discrição e segurança de seus estudos históricos,124 e a cujas investigações se devem subsídios tão preciosos para as induções do direito e de outros ramos da ciência social, era severo para com os filósofos da história. Não via nenhum fundamento científico, nem método baseado nos princípios da lógica, nessas vastas construções abstratas, que constituem os ensaios da filosofia da história; e votava-as a mesma aversão que os positivistas alimentam contra as concepções puramente metafísicas.125 Em verdade, que é a filosofia da história? A doutrina que pretende ensinar-nos as leis que presidem a evolução da humanidade. A darmos

123 

Hacckel. Les preuves du transformisme,cap. VII.

La cite antique, Histoire des Institutions Politiques de l’ancienne France, Recherches aur quelques problémes d’histoire.Uma parte desses trabalhos foi escripta, ou redigida, por seus discípulos. 124 

125 

Langlois e Seignobos, obra citada.

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erudito aos filósofos da história, a sua teoria abrange o curso inteiro da história do gênero humano. Eles nutrem a pretensão de determinar donde veio a humanidade, e qual a direção que há de seguir no futuro.126 Indicar o objeto de tal doutrina é implicitamente mostrar a impossibilidade de sua constituição científica, porquanto não podemos conhecer o conjunto dos fatos que formam o todo da história da humanidade, nem induzir, ou generalizar, para prever o futuro, tomando por base os fatos do passado e do presente. Tal processo lógico, admissível em relação a organismos menos complexos, e séries de fenômenos de incessante repetição, é inaplicável a um ser dotado de tal complexidade, que os seus atos – efeitos das causas múltiplas que concorrem para a formação da psíquica humana, e da infinita e variável riqueza de ideias e sentimentos que constituem os motivos determinantes de nossas volições – são, por seu turno, causas de novos fatos históricos, reproduzindo-se o fenômeno em uma contínua progressão. A prova desta verdade – temo-la no insucesso das principais e mais preconizadas concepções da filosofia da história. A doutrina providencialista responde-nos categoricamente às perguntas: donde vimos, para onde viemos. Há um livrinho, dizia Jouffroy, que se faz decorar as crianças, o qual contém uma solução para todas as questões que se tem formulado sobre a origem e o destino da humanidade, todas sem exceção. Pergunte-se ao menino, que aprende seu catecismo, donde vem a espécie humana, ele o sabe; para onde vai, ele o sabe; como vai, ele o sabe.127 A dialética e a eloquência do gênio de Bossuet fizeram com esses elementos uma teoria sedutora para certa ordem de espíritos. Mas que tem de comum essa doutrina com as investigações da ciência? Conseguiu-se “o grande triunfo final” da filosofia da história, que, no dizer de Flint, outro providencialista, consistirá

126 

Gumplowiez Sociologie et Politique, 16 e Précis de Politique,liv. V. § 1.

127 

Premiers melanges philosophiques, pp. 330 e 374, e 3. ed.

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em descobrir e provar o plano divino, que reduzirá a um denominador comum o caos aparente das ações humanas de que se ocupa a história, e mostrará uma harmonia e um cosmos nesse caos? Para responder afirmativamente, fora necessário começar por onde começam os providencialistas, isto é, aceitar unicamente como a expressão da verdade histórica os livros sagrados, e abstrair da história das nações que, antes dos Hebreus, já gozavam de uma civilização intelectualmente superior à deste povo. A história da Pérsia, a do Egito, a da Índia são eliminadas pelos providencialistas, como se essas nações não tivessem existido. Para admitir a intervenção miraculosa da Providência, e a filosofia da história dos providencialistas, é mister abstrair de alguma coisa que ainda pesa mais do que a história de todas essas nações, isto é, de tudo o que sobre o nosso sistema planetário, sobre a terra, os seus elementos, e o homem, nos ensinam (em oposição aos livros que servem de base à doutrina do providencialismo) a astronomia, a geografia física, a geologia, arqueologia pré-histórica, a antropologia, a meteorologia, a física, a química, a medicina, a higiene, a filosofia comparada, a egiptologia, a assiriologia. As teorias teológicas sobre a formação do universo, sobre a idade, a estrutura, a configuração, os limites e a posição do nosso globo, sobre a antiguidade do homem e sua condição primitiva, sobre a terapêutica e a psiquiatria, para não aludir a muitas outras, estão em formal oposição (como implicitamente têm sido obrigados a reconhecer os sectários do providencialismo miraculoso) com os resultados das investigações científicas, com as verdades baseadas sobre a observação dos fatos. Importa ainda abstrair da lógica e dos princípios elementares de justiça, para aceitar a explicação teológica da história, qual no-la dão todos aqueles que tudo reduzem ao arbítrio da Providência, superior às próprias leis que promulgou. O providencialismo não miraculoso, a doutrina de Laurent, Rocholl, e tantos outros, é uma concepção subjetiva, um tentame de conciliação, que não satisfaz a fé, nem a ciência; não se filia aos livros

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sagrados, nem se submete aos métodos científicos. Laurent repele veemente a intervenção miraculosa da Providência na história; mas quando se lhe diz que nesse caso devemos estudar as leis dos fatos históricos, procurar descobrir o que há de comum, de constante, de permanente, de uniforme, na vida da humanidade, não – responde vivamente o notável jurisconsulto, e medíocre filósofo: admitir leis na história é admitir a história o fatalismo, a negação de Deus e do livre arbítrio. Tudo se explica no providencialismo não miraculoso pela imanência de Deus na humanidade. E isso basta para revelar o caráter não científico da doutrina. Uma teoria filosófica da história, ensinada por eminentes pensadores, e muito vulgarizada, é a que assenta sobre a lei fundamental do progresso contínuo, necessário e universal. Temos aqui uma indução sem base científica. O que a história nos mostra são progressos parciais e intermitentes,128 com períodos estacionários, e recuos para o passado. Como nos certificarmos, perguntaremos com Gumplowicz, da direção do “fio vermelho do progresso”?, de que será sempre uma linha reta?, de que não mais descreverá curvas, nem quebradas?, de que não se partirá, nem se perderá nas profundezas da história? Ao lado da tendência para o progresso, há em a natureza humana uma tendência conservadora: é o que nos ensina a observação. Prevalecerá a primeira dessas forças contínua e universalmente, vencendo os obstáculos dos agentes naturais, dos erros e das ruins paixões dos homens? A humanidade, já o disse um pensador notável, pode ser comparada a um imerso polipeiro, cujas ramificações correspondentes às diversas raças se estendem incessantemente pelo oceano das idades. Os fatos revelados pelo estudo dos principais ramos dessa árvore étnica não são suficientes, pelo menos até o presente, para nos permitir traçar a linha dos destinos humanos. A história é um contínuo devir, um fieri

128 

Langlois e Seignobos, liv. 3º, cap. 4º.

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perpétuo: e, pois, pela sua própria natureza, escapa à determinação de um princípio diretor. Os fenômenos históricos não se repetem, como os dos corpos inorgânicos, os dos organismos individuais, e dos próprios organismos sociais. A evolução de Spencer – consistente na integração da matéria, acompanhada de uma dissipação e movimento, durante a qual a matéria passa de uma homogeneidade indefinida, incoerente, para uma heterogeneidade definida, coerente, e o movimento sofre uma transformação paralela, aceitável em relação aos organismos individuais e sociais – tem o caráter de simples hipótese, quando aplicada à vida da espécie humana. Mera dedução de princípios que regem o desenvolvimento de outros seres, não se apoia, nem pode apoiar-se, no processo indutivo. Nem se diga que o conhecimento do indivíduo e da sociedade nos autoriza a formular a lei fundamental reguladora do desenvolvimento da espécie. Assim como não bastou conhecer o homem individualmente, para constituir a ciência social, também não é suficiente estudar a sociedade, para construir a ciência da evolução da humanidade, ou para prever a sua evolução futura. As sociedades, como os indivíduos, se têm formado, crescido, atingido a maturidade, e decaído. A Grécia e o povo romano da antiguidade clássica só têm de comum com a Grécia e a Itália dos nossos dias a identidade do solo e dos agentes naturais.129 A evolução da humanidade se dará do mesmo modo? Sobre este mesmo globo existirão homens com ideias e sentimentos diversos dos nossos? Ou desaparecerão as sociedades humanas da superfície do planeta? A evolução leva todo o corpo orgânico ao equilíbrio, ponto fatal em que começa, em sentido inverso, o fenômeno complementar e correlativo da evolução, a dissolução. Dar-se-há esse fenômeno com a humanidade? O estado de privação absoluta de movimento, a morte, que termina a evolução dos corpos orgânicos, será o tipo da morte universal, em cujo

129 

Gaston Deschamps,La Grèce d’aujourd’hui.

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seio a evolução da espécie irá absorver-se? Até onde vai a analogia entre a evolução dos organismos individuais e a evolução da humanidade? Devemos considerar como o fim de tudo “um espaço infinito, povoado de sóis extintos e votados à eterna imobilidade”? Ou esse fim aparente será o início de uma vida nova, o sinal da eclosão de mundos futuros, de que nada no passado nos pode dar uma ideia? São perguntas, diz Caro, a que a teoria da evolução não pode responder, e Spencer nos deixa debruçados à margem da eternidade, “interrogando em vão com o pensamento o infinito tenebroso”.130 Taine, na França, e Mommsen, na Alemanha, sem criarem explicitamente uma filosofia da história, de tal arte escreveram, o primeiro – as Origens da França Contemporânea, e o segundo – a História Romana, que bem revelaram a filiação de sua teoria à ideia fundamental da concepção histórica de Hegel, assim como Buckle já se tinha inspirado na Ideia de uma história universal, de Kant, que lançou neste opúsculo as bases da doutrina determinista, desenvolvida pelo historiador britânico.131 Segundo a teoria de Taine e Mommsen, e que também é a de Ranke, todo

130 

E. Caro,Le progrés social, IV.

Causará surpresa aos que não têm aprofundado estes estudos que o autor do Exame da crítica da razão prática, depois de basear toda a sua doutrina moral e jurídica, e a sua metafísica, sobre a noção de causa racional e livre, ou sobre a liberdade volitiva, admita em seguida a teoria determinista como o fundamento da explicação da história. Entretanto, na introdução do opúsculo citado no texto, Kant escreveu: “Quaisquer que sejam as nossas divergências sobre a liberdade da vontade, considerada sob o ponto de vista metafísico, é evidente que as manifestações dessa vontade, isto é, as ações humanas, estão sujeitas ao império das leis universais da natureza, do mesmo modo que os outros fenômenos físicos sejam quais forem”. E o que ainda é mais interessante é o fato de Kant haver oferecido como prova da sua teoria determinista da história os dados estatísticos sobre que mais tarde se apoiou Buckle, cuja filosofia parece a negação da metafísica do filósofo de Koenigsberg. Kant apresenta-nos, para provar a sujeição da vontade aos fatores físicos e aos motivos, a uniformidade ou as alterações graduais e lentas, que se notam na estatística dos casamentos e nascimentos, e acrescenta: “Os registros anuais em que se consignam esses fatos nos grandes países provam que eles se produzem de um modo tão conforme às leis da natureza como as variações da temperatura. Essas variações também são fatos tão irregulares nas suas particularidades, que não podemos provê-los individual e circunstanciadamente; todavia, considerando-os em uma série inteira, verificamos que nunca deixam de fazer crescer as plantas, correr os rios, nem de produzir outras harmonias da natureza, segundo um curso uniforme e ininterrupto” (Opúsculo citado, introdução). 131 

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fato histórico real é ao mesmo tempo racional. Os fenômenos sociais têm sua razão de ser no desenvolvimento da sociedade, em cujo proveito se verificam. Ao historiador, pois, cumpre filiar as instituições às necessidades sociais, que foram chamadas a satisfazer em sua origem.132 “Em 1789”, é assim que Taine começa a descrever o antigo regime, “três espécimes de pessoas, os eclesiásticos, os nobres e o rei ocupavam a situação eminente com todas as suas vantagens, autoridades, bens, honras, ou, pelo menos privilégios, isenções, graças, pensões, preferências e o mais. Se desde tão longo tempo essas pessoas ocupavam esse lugar é porque durante muito tempo o tinham merecido”.133 O clero conquistou a sua posição, satisfazendo uma necessidade sentida por uma nação subordinada a um regime duro e frio, efeito das lutas e da organização política. A religião que pregava a resignação, e inspirava a paciência, a doçura, a humanidade, a abnegação, a caridade, e prometia o reino de Deus, devia necessariamente penetrar e dominar o espírito dos homens sufocados e esmagados sob tal estrutura social. Por outro lado, no seio de um Estado que se despovoava e dissolvia, a Igreja constituía uma sociedade viva e disciplinada, unida por uma doutrina em torno de um escopo. Foi o clero o guarda da literatura, das artes e das indústrias, do amor ao trabalho e do hábito do trabalho regular. A esses benefícios deve o clero o devotamento que granjeou. Pela proteção que dispensava a quantos se acolhiam aos castelos e mansões da nobreza, em uma época na qual “não ser assassinado e ter uma vestimenta de pele durante o inverno era para um grande número de homens a suprema felicidade”, explicam-se o poder e o prestígio da segunda ordem do Estado. O rei é o chefe necessário para organizar a defesa, para libertar o país das invasões estrangeiras, para lutar contra os papas, e os reis das nações inimigas. Assim foi uma necessidade social que deu vida a cada um

132 

Langlois e Seignobos, obra citada, pp. 247 e 248.

133 

L’Ancien Règime, liv. 1º, cap. 1º.

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dos elementos que formaram a estrutura da sociedade francesa e a sua constituição política, antes de 1789. Ouçamos a Mommsen. O processo explicativo é o mesmo. A firme crença na unidade e na omnipotência do Estado era a base das constituições dos povos itálicos, e punha nas mãos de um chefe único um poder formidável, cujos efeitos se faziam sentir não somente sobre os inimigos do país, como sobre os próprios cidadãos. Naturalmente se davam abusos e opressões e, como consequência necessária, apareceram tentativas no sentido de limitar esse poder. Daí a abolição da realeza, e o estabelecimento do poder consular. A profunda modificação foi o resultado do “desenvolvimento natural das coisas”, e a prova está em que mudança idêntica se realizou de um modo análogo, na constituição de todos os povos ítalo-gregos. Não foi só em Roma, foi também entre os Etruscos, os Apúlios, os Sabélios, em todos os povos itálicos e gregos, que os magistrados vitalícios se substituíram pelos magistrados anuais. O organismo da antiga política itálica e grega produziu por si mesmo, por uma espécie de necessidade natural, a extinção do poder vitalício.134Caminhos diversos, acidentes vários, circunstâncias múltiplas, se nos apresentam como causas aparentes dessas e de outras transformações radicais, a causa eficiente é uma necessidade natural da sociedade. E, assim, onde Bossuet divisa sinais evidentes da intervenção da Providência, a castigar os crimes e os pecados dos homens, a revelar a sua afeição a um povo eleito, a exaltar e abater as nações, ora guiando-as para a glória e a felicidade, ora desnorteando-lhes os planos, escurecendo-lhes os destinos, e fazendo-as cambalear como crianças e ébrios, Mommsen e Taine só descobrem uma ordem natural, cimentada por necessidades incoercíveis! Mas a teoria do caráter racional da história é falha e errônea como todas as outras. Para nos convencermos desta verdade, basta generalizarmos. Apliquemos o princípio a quaisquer transformações

134 

Historia Romana, liv. 2º, cap. 1º.

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políticas, de que nos dá notícia a história, ou que se tenham realizado no período contemporâneo, e facilmente havemos de ver que os erros e as ambições criminosas dos homens constituem um fator histórico, não raro preponderante, e que não é lícito omitir. A observação dos fatos mostra-nos que a evolução política e social nem sempre tem um caráter racional. A falsidade da teoria ressalta com toda a evidência, quando atendemos à ação na história dos grandes homens. Longe de nós a convicção de que seja verdadeiro o paradoxo de Carlyle, para quem “a história universal consiste essencialmente nas biografias reunidas dos heróis”.135 Bem sabemos que os grandes homens são produtos do meio social: antes que um grande homem possa refazer uma sociedade, é preciso que a sociedade o faça. Impossível, nota Spencer, um Aristóteles descendente de Pais cujo ângulo facial meça cinquenta graus, ou um Beethoven em uma tribo de canibais. Mas a teoria de Macaulay,136 aceita por Buckle, e a única admissível pelos discípulos de Taine e Mommsen, peca pela exageração oposta à de Carlyle. O papel dos grandes homens, no pensar de Macaulay, é comparável ao das pessoas que, colocadas em uma eminência, recebem os raios de sol um pouco antes que o resto da humanidade: o sol ilumina as montanhas, quando está ainda abaixo do horizonte, e os grandes espíritos descobrem a verdade um pouco mais cedo que a multidão. Tal é a medida de sua superioridade. São os primeiros a refletir uma luz que, sem o seu auxílio, vai dentro em pouco tornar-se visível para os que estão colocados na planície. A verdade está com Stuart Mill, em um meio termo: nem os grandes homens podem tudo, nem deixam de poder alguma cousa, para o bem ou para o mal. Sem o poder mental de Sócrates, de Platão e de Aristóteles, provavelmente não teríamos tido aquelas profundas concepções filosóficas, que ainda hoje os cérebros mais potentes nada mais fazem que

135 

Carlyle,Les héros,trad. de Izoulet, conferência 1ª.

136 

Essai sur Dryden, Melanges, I, 186.

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desenvolver. Sem Milcíades e Temístocles, a Grécia não teria contado as vitórias de Maratona e Salamina. Não sabemos de que modo conciliar a teoria das necessidades sociais como origem dos fatos históricos com a influência exercida na implantação e organização do regime imperial em Roma por César, que, no conceito do próprio Mommsem, ardente admirador das qualidades pessoais do incomparável cabo de guerra e exímio estadista, foi “o único gênio criador que Roma produziu”; “o homem único, que é difícil descrever”; “homem perfeito”; que não olvidava nunca um só dos elementos de que dependia o sucesso de seus planos, e “previa todas as eventualidades”; nem sequer se iludiu sobre a parte que cabe “em todas as coisas humana a fortuna, isto é, ao acaso”; reorganizou o sistema militar romano; reformou as finanças; melhorou a agricultura; remodelou a organização política das províncias e as instituições municipais; e organizou o império, que, plasmado por seu gênio maravilhoso, “foi mais um produto inanimado da arte que uma criação da natureza”.137 Diante do insucesso destas geniais construções da filosofia da história, que se deve dizer das teorias dos historiadores e filósofos que se não elevaram a tão vastas e profundas generalizações, das teorias que bem se poderiam denominar secundárias? Fiel à política doutrinária, ou do justo meio, que procurava conciliar as demais teorias, formando uma doutrina política eclética, assim como o ecletismo filosófico já tentara a aliança, ou a fusão, dos mais desencontrados sistema de filosofia, Guizot escreveu a História da civilização na Europa e a História da Civilização na França, com o intuito, com a ideia preconcebida, de descobrir no passado uma justificação, uma demonstração, da legitimidade das diversas formas políticas que tinham regido a sociedade.138 Guizot não pretendeu criar uma filosofia da história; não

137 

Historia Romana, liv. 5º, cap. XI.

138 

Veja-se Flint, La philosophie de l’histoire em France, cap. X.

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expôs, nem formulou uma só lei universal da história. Como bem nota Stuart Mill, o historiador francês, limitando os seus estudos à Europa moderna,139 não podia remontar às investigações sobre as leis que presidem à evolução de toda a humanidade. A parte filosófica da história de Guizot consistia em descobrir as causas próximas da organização da sociedade moderna. E a conclusão final de toda a sua obra se resume na proposição de que a teoria política dos doutrinários é a verdadeira, porquanto harmoniza todas as demais teorias. O feudalismo, a aristocracia, a teocracia, a monarquia, a democracia, todas essas formas políticas têm existido, e, consequentemente, são legítimas. O único fato da duração de um sistema de governo prova a sua legitimidade: o que é absurdo, ou iníquo, não pode subsistir por muito tempo. Na teoria de Guizot, não temos sequer um ensaio da filosofia da história. Michelet escreveu a Introdução á história universal para demonstrar que a história é o triunfo incessante e progressivo do homem sobre a natureza, do espírito sobre a matéria, da liberdade, em suma, sobre a fatalidade. É verdade, segundo a doutrina de Michelet, que o poder da liberdade vai aumentando, e o da natureza – diminuindo, à proporção que, acompanhando o curso do sol e as correntes magnéticas, avançamos da Índia para a França. Na Índia, a natureza domina o homem. Na França, a liberdade vence a natureza. Esta liberdade, sujeita aos agentes físicos, que na Índia os fatores naturais esmagam, e que se nos revela tão completa quanto possível na França, o país da liberdade política e da igualdade, “palinuro do navio da natureza”, esta liberdade, que depende das fatalidades da natureza, é uma das mais contraditórias concepções que o estudo da história poderia engendrar no espírito de um literato, sem a envergadura do filósofo. Como encanto particular do seu estilo, feito de simplicidade, clareza e sedutora elegância, Renan, melhor do que ninguém, expôs, na História

139  Os trabalhos históricos de Guizot sobre a organização romana são elementos para a sua teoria doutrinária sobre a Europa moderna.

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geral das línguas semíticas, o princípio da diversidade das raças como lei fundamental da história. Os Aryas e os Semitas, quando se estabelecem em uma região qualquer, encontram invariavelmente raças semisselvagens, que exterminam, e das quais apenas se conserva a minoria em lendas e mitos. As partes do globo, não povoadas pelas grandes raças, a Oceania, a África meridional, a Ásia septentrional, ficaram entregues a essa humanidade primitiva. Depois aparecem as primeiras raças civilizadas, mas cuja civilização é impregnada de um caráter material: distinguem-se pelo pouco desenvolvimento dos instintos religiosos e poéticos, grande aptidão para as artes manuais, espírito positivo voltado para os negócios, para o bem-estar e para os deleites da vida, e ausência de espírito público e de vida política. Essas primeiras raças civilizadas contam três a quatro mil anos de história antes da era cristã. Sua civilização desapareceu sob os esforços dos Semitas e dos Aryas; conserva-se unicamente na China. Finalmente, aparecem as grandes raças nobres, os Aryas e os Semitas, vindos da Bactriana e da Armênia, cerca de dois mil anos antes de Cristo. Inferiores a princípio às nações civilizadas que encontram, no concernente à civilização exterior e material, os Aryas e os Semitas revelam uma superioridade extraordinária quanto ao seu vigor, à coragem, ao gênio poético e religioso. Os dois grandes ramos da raça branca não são iguais. Os Semitas têm uma missão religiosa; e, uma vez realizada essa missão, decaem rapidamente, e deixam a raça aryana a dirigir só os destinos do gênero humano. Os Aryas, ou indo-europeus, são os povos predestinados para o progresso das ciências, para as investigações refletidas, independentes, severas, corajosas, filosóficas, em uma palavra, da verdade.140 A teoria de Renan tem contra si os fatos. Não há entre os Semitas e os Aryas a diferença de aptidões assinalada pelo grande orientalista. Os Árabes, genuínos representantes da raça semítica, revelaram uma notável capacidade para o cultivo das ciências em período

140 

Histoire gènérale des langues sèmitíques, t. 1º, p. 494.

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histórico célebre pelo atraso e estacionamento da civilização indo-europeia. Foram eles que, na idade média, ensinaram à Europa a álgebra, ou aritmética generalizada, deduzida por eles do princípio de Diofante; que mediram e conheceram a extensão de terra; que organizaram o catálogo e a nomenclatura das estrelas visíveis; que determinaram a obliquidade da eclíptica, verificaram a precessão dos equinócios, fixaram a duração do ano solar; que aperfeiçoaram os instrumentos de astronomia; que constituíram a química, e descobriram seus principais reagentes; que aprofundaram e desenvolveram a dinâmica e a hidrostática; que aplicaram as descobertas científicas ao melhoramento dos processos industriais, ao aperfeiçoamento da agricultura e das manufaturas.141 Os Fenícios, cognominados os Ingleses da antiguidade, celebrizaram supor sua habilidade para a navegação e para o comércio, e os Cartagineses, mais um ramo dos semitas, durante mais de um século, na luta com os romanos, revelaram as suas qualidades militares, sem que Aníbal fosse inferior a Scipião. A superioridade atual dos Aryas em relação aos Semitas não nos autoriza a formular uma lei fundamental da história, que traduza a permanência, a constância, a universalidade e a perpetuidade desse fato. Os Aryas aparecem na história como os bárbaros, ou semisselvagens. É, ainda que a diferença entre os dois ramos da raça branca tivesse sido uma realidade no passado, nenhuma razão científica teríamos para afirmar a sua duração por toda a existência da espécie humana. Thiers... haverá lugar para este em uma sinopse da filosofia da história? Thiers142 na história é o adorador da força vencedora. Os graves e imperdoáveis crimes da revolução francesa e do império são fatos necessários. Com razão Laurent denominou esta doutrina histórica – a do fatalismo revolucionário. Um sorriso perpétuo para aqueles que a fortuna favorece, nunca uma só palavra de simpatia ou de piedade para

141 

Draper,Les conflits de lá science et de la religion, cap. 4º.

142 

Histoire de la Rèvolution Française, e Histoire du Consular et de l’Empire.

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os esmagados, nem um sinal de respeito aos infortúnios imerecidos e moral, ou um movimento em favor da grandeza intelectual e moral, nunca uma censura às baixezas oficiais: é a idolatria da força.143 As teorias de Bunsen, Loize, Bagehot, e tantos outros, ou são variantes das que já conhecemos, ou conciliações frustradas, ou nos dão apenas uma das faces por que deve ser estudada a história. Bourdeau é apenas um erudito, um simples compilador; mas o seu livro – L’histoire et les historiens – oferece notável utilidade pela abundância de conhecimentos sobre os historiadores, riqueza de observações e induções, nem sempre verdadeiras, pela clareza e pelo método. A exposição dos fatos, nota Bourdeau, não constitui uma ciência; unicamente nos apresenta os materiais de uma ciência. A ideia abstrata da ordem e das causas dos fenômenos, eis o fim de todas as ciências. Para que entre estas se possa incluir a história, é mister descobrir as leis históricas, o que quer dizer – as leis peculiares a esta ciência. Os historiadores até hoje o não têm logrado. A razão é que atribuem a produção dos fatos a uma destas três causas, todas exclusivas da ideia de lei: o livre arbítrio, a direção divina e os caprichos da fortuna, ou do acaso. Nenhuma delas é aceitável. A ciência deve afastá-las, ao averiguar quais são as influências gerais e fixas que determinam os fatos históricos. Bourdeau se aventura a esse árduo e temeroso cometimento. E, depois de observar que é impossível, por enquanto, formular as leis da história, porque a ciência ainda não está constituída, tenta indicar como será possível descobrir essas leis. Em primeiro lugar, cumpre estabelecer leis especiais às diversas séries de fatos, e, em seguida, uma lei geral que abranja a totalidade dos fatos. As leis especiais são de duas categorias: de ordem e de relação. As leis de ordem nos mostram o que a produção dos fatos tem de geral na extensão, e de persistente na duração, o que há de comum e de constante nos fenômenos. As leis

143 

Lanfrey, itado por Laurent, obra citada, p. 156.

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de relação nos apresentam a filiação dos efeitos às causas, averiguação dificílima no domínio dos fatos históricos, que são produzidos por um conjunto de influências várias. Acima das leis de ordem, que dispõem os fatos por séries em razão de sua semelhança, e das leis de relação, que ligam as séries – umas às outras – por um laço de casualidade, as ciências procuram formular uma lei suprema, que resuma as precedentes, e as reduza à unidade. Exemplo desta alta generalização é a lei da gravitação, irredutível, superior a todas as induções relativas aos fenômenos que explica, e compreensiva de todas as leis particulares ou inferiores. Qual a lei geral da história? A do progresso. Há uma necessidade racional do progresso. Não se concebe a razão humana senão como um princípio progressivo de atividade. A espécie humana obedece à lei do progresso, assim como os movimentos dos corpos celestes obedecem à lei da gravitação. Necessariamente, fatalmente, a humanidade gravita para a perfeição. Supondo possível uma fórmula matemática para a lei do progresso, Bourdeau a propõe, e análoga à da gravitação: assim como esta age na razão direta das massas, e na inversa do quadrado das distâncias, assim o progresso parece (curiosa lei!) efetuar-se na razão direta da soma dos melhoramentos e descobertas anteriormente realizadas, na inversa dos obstáculos que se opõem à sua difusão no mundo. A indústria, a arte, a ciência, os sentimentos efetivos, todas as manifestações da atividade humana obedecem à lei geral do progresso. Mas... confessa Bourdeau, há influências perturbadoras do progresso, que se não realiza por toda a parte e sempre com a regular uniformidade de uma lei simples. Nos férteis vales do Nilo, do Eufrates, do Ganges e do Yang-tse-Kiang, a civilização desenvolve-se rapidamente; nas regiões acidentadas da Europa, ostenta uma grande riqueza de formas; nos desertos d’Ásia e d’África, as condições climáticas e geográficas impõem a imobilidade. Demais, coincidências fortuitas, necessidades latentes, tolhem ou impossibilitam, suspendem ou fazer retrogradar a civilização. Eis uma verdade, que Bourdeau, e com ele

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todos os que estudam a história reconhecem. A lei de Bourdeau é uma dedução da natureza do princípio progressivo da razão. Essa dedução será confirmada pela indução, baseada na observação imparcial dos fatos? Neste ponto é lastimável a inópia de fatos e argumentos com que o autor empreende cimentar a sua teoria. Pelo estudo dos fatos históricos podemos prever o futuro da evolução da humanidade? Quanto aos fatos singulares, aos acidentes, responde Bourdeau que não: só podemos prever os fenômenos regulares. Quais são esses fenômenos denominados regulares? São os fatos de ordem econômica, moral, política, jurídica, isto é, são fatos cujas leis formam o conteúdo de várias ciências sociais, mas não da história, e muito menos da filosofia da história, pois não se compreende a filosofia de uma ciência que ainda não existe, ou que é impossível. Tal é a conclusão a que fatalmente nos leva o estudo refletido da teoria de Bourdeau, assim como o de todas as demais doutrinas em que se tem tentado reduzir a história a uma ciência, ou constituir a filosofia da história.144 A função da história consiste em coligir e classificar metodicamente os fatos, para ministrar os materiais que servem de base às induções da ciência social fundamental e das ciências sociais especiais. Quaisquer que sejam as divergências sobre o conceito da ciência social geral, ou sociologia, admita-se a sociologia classificante com Littré, Roberty, Greef, Lacombe e Wagner, ou a sociologia biológica com Spencer, Lilienfeld. Schäffle, Fouillée e René Worms, ou a sociologia dualista com Hauriou, Giddings, Ward, Mackenzie; entenda-se que é uma ciência constituída, ou de formação incipiente (e é onde está, segundo nos parece, a verdade); o que hoje se não pode contestar é que

144  É a mesma conclusão a que chega um notável escritor brasileiro, o Dr Carlos de Laut, posto que estude os fatos e as teorias sob um aspecto diferente: “A filosofia da história ainda não é uma ciência. Nem jamais o poderá ser em todo o rigor da palavra, opina ilustrado professor, pois para que ciência exista, há mister de princípios certos, evidentes, e de tal maneira conhecidos que pela razão sejam aplicáveis a conclusões não menos legítimas e evidentes do que os mesmos princípios; e a este resultado jamais chegará a filosofia da história”. (Em Minas, O grande problema histórico, p. 318).

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há uma ciência social fundamental. A vida em comum é uma lei para o homem, como para certas espécies de animais. Não diremos com Espinas que todos os animais estão sujeitos a essa necessidade. Bastar-nos-á recordar os exemplos, tão conhecidos, de existência gregária, que nos oferecem as formigas, os castores e as abelhas. Assim limitada a proposição de Espinas, pode-se repetir com ele que o meio social é imposição da biologia, uma condição necessária da conservação e da renovação da espécie.145 Os mais profundos espíritos da antiguidade clássica já não alimentavam dissentimentos sobre esta verdade. Platão, o precursor do racionalismo, que considera as leis sociais deduções das ideias – arquétipos, reveladas pelo logos ou verbo divino, n’O Estado ou A República–, firma nitidamente a tese de que há um organismo social, criado pela necessidade. No admirável diálogo entre Sócrates e Adimanto, o Estado nos aparece como um produto natural, a resultante de forças incoercíveis, uma organização subordinada a leis, no sentido científico do termo.146 Verificando-a pelo método experimental, Aristóteles desenvolve a teoria de Platão. A cidade, no conceito do Stagirita, é uma produção da natureza, um ser vivo: “É evidente que a cidade pertence ao número das coisas criadas pela natureza, que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade... Vê-se de um modo evidente porque o homem é um animal sociável em mais alto grau que a abelha e todos os animais gregários. A natureza nada faz em vão. Só, entre os animais, o homem tem o dom da palavra. A voz é o sinal da dor e do prazer, e por isso foi outorgada também aos outros animais, cuja organização é suscetível de dor e de prazer. Mas a palavra tem por fim fazer compreender o útil e o prejudicial, e, consequentemente, o justo e o injusto... Na ordem da natureza, o Estado vem antes do indivíduo.”147

145 

Des societès animales; Introduction historique.

146 

Tradução de Bastieu, liv. 2º. V.

147 

La Politique, tradução de Thurot, cap. 1º, §§ 10 e 11.

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Os sociólogos contemporâneos, quando ensinam que a vida social é uma injunção da natureza humana, uma resultante das tendências e necessidades, dos atributos físicos e morais do homem, reproduzem uma verdade professada há muitos séculos. O estudo das leis a que está sujeito o organismo social faz o objeto da sociologia e das ciências sociais particulares. Se estudamos o que há de uniforme, geral e permanente, na gênese, na estrutura e na evolução das sociedades, temos a sociologia, ou ciência social fundamental. Se estudamos certos fenômenos especiais, certos aspectos particulares da sociedade, por exemplo – a sociedade considerada sob o aspecto da riqueza, da direção dos interesses públicos internos e externos, ou da manutenção da ordem necessária à conservação e desenvolvimento da coletividade –, temos a economia política, a política ou o direito. A sociologia está para com as ciências sociais especiais, na mesma relação em que a biologia para com as ciências que se ocupam da vida sob aspectos especiais, como a zoologia e a botânica, tendo a biologia por objeto os fenômenos essenciais e universais da vida, seja qual for a sua manifestação, ou corpo – vegetal ou animal – que lhe sirva de sede. A história contém os fatos, cuja comparação nos leva às induções da sociologia e das ciências sociais particulares. A filosofia da história foi substituída pela sociologia. Fouillée não hesita em dizer que a filosofia da história precedeu a sociologia, do mesmo modo e na mesma relação em que a alquimia havia precedido – a química, a astrologia – a astronomia. Não procuramos hoje formar uma teoria científica sobre a evolução da humanidade; não nutrimos a pretensão de prever o futuro mais distante da espécie humana. Limitamos a nossa aspiração científica a conhecer a sociedade. Isto é possível. Para alcançar este desideratum, dispomos das duas séries de processos lógicos, dos dois instrumentos únicos que a ciência pode admitir a indução, a generalização, obtida pela comparação dos fatos, e a dedução, a extração pelo raciocínio de verdades gerais menos extensivas, compreendidas virtualmente em verdades gerais superiores. Fernando Nicolazzi (Organizador)

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É a história que nos apresenta os fatos que servem de fundamento às generalizações da sociologia. Sem tão sólida base, a sociologia nada mais poderia conter que especulações, hipóteses, asserções mais ou menos aproximadas da verdade, como tem acontecido às diversas teorias da filosofia da história. A sociologia não se confunde com a filosofia da história, como querem alguns. Do número destes a Barth, para quem as transformações sociais constituem os assuntos peculiares à história, e assim a filosofia da história, para explicar a evolução da humanidade, precisa conhecer as transformações sociais, e, vice-versa: a sociologia, para explicar as transformações sociais, precisa conhecer a evolução histórica.148 Assimilar a sociologia à filosofia da história, confundir a sociedade com a humanidade. Compreende-se uma ciência consagrada ao estudo das agremiações humanas, e que, dentro de certos limites, procura saber como se formam essas agremiações, que elementos, ou forças, concorrem para a produção do fenômeno, de que partes se compõem o todo, e como se tem desenvolvido a vida coletiva, sem uma ciência que pretenda descortinar os fatos futuros da vida da espécie humana. O ideal da sociologia é mais modesto, e por isso mesmo realizável. A formação, o desenvolvimento, a decadência e a extinção das sociedades são fatos que se têm repetido inúmeras vezes na história. A evolução da espécie humana é um fenômeno único, de que nem sequer podemos saber a que fase corresponde o momento atual. Não admira que Barth tenha confundido a sociologia com a filosofia da história, quando Augusto Comte, depois de dividir a sociologia em estática e dinâmica, tratou nesta última parte de formular leis que se fossem verdadeiras, que constituiriam a filosofia da história. A falsa lei dos três estados evidentemente é uma generalização de caráter histórico, e não sociológico, pois abrange a vida de toda a humanidade.

148 

La philosophie de l’histoire au point de vue sociologique, L’Année sociologique, 1808, p. 116.

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A missão da história não se restringe a fornecer os materiais, metodicamente dispostos, para induções sociológicas (subsídio precioso – e aqui nos parece impossível qualquer contestação por aqueles mesmos que negam a existência de uma ciência social e fundamental), abundantes e seguros recursos para as induções, ou para as verificações, das ciências sociais especiais ainda nos proporciona a história. O método da ciência econômica não pode mais ser o preconizado por J. B. Say: – A economia política, como as ciências exatas, se compõe de um pequeno número de princípios fundamentais, e de um grande número de corolários, ou deduções, desses princípios”.149 Se a observação dos fatos não basta para nos dar leis científicas no domínio desta ciência social, se a multiplicidade das circunstâncias que revestem os fenômenos econômicos torna muitas vezes difícil a indução, a mera aplicação do método dedutivo expor-nos-ia a converter a ciência econômica em puro exercício mental, ou nas perigosas ilusões de que nos fala Thorold Rogers, um dos mais convencidos propugnadores do processo indutivo como instrumento complementar do método econômico.150 Adquire-se uma ideia exata da utilidade da história para o desenvolvimento da economia política, quando se lê a excelente história econômica de E. Scheel.151 O conhecimento dos erros do sistema econômico arquitetado pelos gregos e romanos, dos preceitos que na antiguidade clássica e na idade média dominavam os governos em relação à moeda, e dos inconvenientes oriundos da aplicação de tais ideias, corrigindo as nossas teorias concernentes no assunto, é uma prova do quando nos aproveita o estudo dos fatos históricos na constituição desta ciência. Cumpre não esquecer a observação de Stuart Mill sobre o método histórico: nas investigações sobre os fatos sociais, ora procuramos saber qual o

149 

Traitè d’èconomie politique, discours prèliminaire.

150 

Interprètation èconomique de l’histoire.

151 

Schönberg, Manuale di economia politica, v. 1º, traduz o trabalho de Scheel.

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efeito que resulta de uma dada causa pressupostas certas condições, ora é nosso intento conhecer essas condições ou circunstâncias gerais, quais as causas que produzem e os fenômenos que caracterizam os estados de sociedade em geral.152 A história nos auxilia em uma e outra origem de averiguações. A experimentação como método da política oferece perigos manifestos153:a sociedade não é anima vilis. Mas, por isso mesmo, que esse processo preparatório das induções não se aplica a este ramo das ciências sociais; mais palpável se faz a necessidade da observação dos fatos históricos como base da teoria política, pois os fenômenos observados no presente não bastam para se generalizar no domínio de uma ciência tão complicada, que a própria história não ministra materiais suficientes para a formulação de leis seguras, senão em pequeno número de casos. Negar a necessidade da observação histórica para construção da ciência política fora proclamar a inutilidade da experiência dos negócios públicos para a boa direção do Estado, e justificar os arrojados ensaios dos teoristas ambiciosos, apoiados em deduções ainda não verificadas. O saber só de experiência feito, preconizado pelo épico lusitano, não é outra coisa senão uma doutrina baseada na observação dos fatos. As induções políticas são indispensáveis para a verificação das deduções, das hipóteses, das teorias, e, sem o estuda da história, não há induções possíveis neste domínio das ciências sociais. A arte de guiar todas as tendências sociais desencontradas, imprimindo-lhes novas direções comuns e médias, com a mínima resistência coletiva e a mínima perda de forças, e tal no sentir de Schäffle é a política prática,154 precisa ser cimentada pelas generalizações científicas, e estas só podem defluir da história.

152 

Système de Logique, v. 2º, p. 509.

Léon Donnat a propõe na Politique expèrimentale, obra de um teorista que pouco se ocupa com a prática de suas lições. 153 

154 

Struttura e vita Del corpo sociale, trad. de L. Ludovico, v.1, p. 464.

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A moral social e o direito elevaram-se à dignidade de ciência, depois que os seus princípios e as suas deduções passaram, retificando-se, pelo cadinho do método indutivo. E tão copiosos já são os subsídios da história para as generalizações ou verificações do direito, que não nos faltam exemplos e provas da utilidade prestada pelos estudos históricos a esse ramo das ciências sociais. Quem poderia hoje se convencer de que conhece a natureza e o fundamento de uma propriedade, sem ter formado o seu conceito sobre essa instituição em face das interessantes investigações históricas de Summor Maine, Laveleye e outros? É lendo, por exemplo, Laveleye que vemos a evolução que, gradual e necessariamente, fez passar a propriedade da forma coletiva para a individual; que ficamos sabendo como na Índia, no Egito, no Japão, na América, em toda a Europa a propriedade imobiliária – de comunista, ou coletivista, se transforma invariavelmente, e obedecendo a influências incoercíveis, em propriedade moldada pelo individualismo.155 Não teremos aqui uma indicação preciosa de que, nas concessões que a justiça obriga a fazer a parte racional dos programas socialistas, não devemos ir até ao ponto de instituir um regime que, além de condenado pelo estudo imparcial da natureza humana e das necessidades sociais, é repelido pela história, repudiado pelos fatos? Investigações análogas por D’Aguanno, em relação à constituição jurídica da família, comprovam e fundamentam a necessidade da união monogâmica, tal como a delineiam os códigos mais adiantados.156 O mecanismo constitucional da Inglaterra tem sido na história desta nação uma verificação positiva, a nos mostrar incessantemente que o regime não é uma especiosa dedução de princípios errôneos ou falsos. Esses exemplos, tão conhecidos, revelam, com maior evidência que quaisquer outros, a utilidade dos estudos históricos, no que concerne à ciência jurídica.

155 

De la proprièté et de SUS formes primitives.

156 

La genese e l’evoluzione Del direitto civile, parte especial, caps. 4º, 5º e 6º.

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Não enumeraremos as ciências sociais especiais, que já se têm constituído, ou podem constituir-se, com o subsídio da história. Em matéria sujeita a tantas divergências de opinião, quando frequentemente se ensaia a organização de uma nova ciência social especial, é arriscada a precisão de um Lagrésille, a nos oferecer, como num quadro delimitado, a nomenclatura desses ramos do saber social: a psicologia social, a moral social, o direito, a ciência, a genética social, a ideologia social, e outras ideologias quejandas. A história não tem um conteúdo científico próprio, leis do seu domínio, induções, princípios e deduções, que lhe sejam peculiares, generalizações que dela façam uma ciência. Quando o historiador, uma ou outra vez, extrai dos fatos uma verdade geral, o suco ideal que constitui a ciência, é a sociologia; ou qualquer das ciências sociais especiais, é talvez a antropologias, em algumas das suas divisões, é uma outra ciência qualquer, das que se aproveitam dos dados históricos, que conquista mais uma noção, e alarga o âmbito de sua doutrina. Não confundam o que se tem chamado – a filosofia da história com o que se denomina – a ciência da história. A filosofia de uma ciência compreende sempre as verdades mais gerais, os princípios, as mais altas e profundas generalizações do domínio dessa ciência. Ninguém melhor que Vacherot já distinguiu a ciência da história da filosofia da história: a primeira pretende descobrir as leis que regem a sucessão dos fatos; a segunda intenta deduzir essas leis a princípios superiores entrega-se a especulações transcendentes, relativas à direção providencial da humanidade, à perfectibilidade humana, ao progresso universal, à evolução gradual e necessária da espécie.157 A filosofia da história é um conjunto de afirmações subjetivas, de crenças, de conjecturas, de hipóteses, sem base científica, e sem método lógico. O que se chama a ciência da história ou é uma série de verdades gerais pertencentes ao

157 

La sciencie et la conscience,II.

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domínio da sociologia, e de ciências sociais várias, ou um conjunto de observações que não constituem leis, na acepção científica do termo. Não esqueçamos a verdade tão irrecusavelmente exposta por Stuart Mill: as leis, que formam o conteúdo de uma ciência, sem as quais não há ciência, são as relações constantes de sucessão e de semelhança entre os fatos. Nas idades mais remotas, já o fim da ciência era conhecer para prever: quando se procurava averiguar a causa, era principalmente para dirigir o efeito, ou, sendo isto impossível, para prevê-lo, e adaptar a conduta do homem às circunstâncias inevitáveis.158 Que relações constantes de sucessão, de semelhança, ou de uniformidade, nos oferece a história, que não sejam partes integrantes da sociologia, ou das ciências sociais, ou das antropológicas? Taine, para quem a história é uma ciência, no Ensaio sobre Tito Lívio, pretende dar-nos alguns exemplos de leis históricas. Vejamos o que são essas leis históricas: “O historiador estuda duas espécies de leis. Primeiramente cada grupo de fatos tem sua causa. Porque os Samnites foram vencidos? Qual a explicação do fato de terem os Romanos abatido a Etrúria, depois os Gauleses, em seguida Cartago, e mais tarde a Macedônia? Como obtiveram os plebeus a igualdade de direitos? Que mudança passou o poder para os grandes? Por que necessidade se estabeleceu o império?”. Eis a história propriamente dita. O filósofo não se satisfaz com o conhecimento dessas causas parciais. Quer conhecer as causas universais. “Porque essa guerra eterna? Como testou a população de Roma para sustentar essa luta interminável? De que proveio não ter povo algum resistido aos Romanos? Donde procedeu esse talento de agir, de conquistar, de administrar? Porque esse culto disciplinado de deuses abstratos, essa família toda legal, esse extraordinário amor da pátria, esse respeito à letra e à fórmula, essa impotência na arte e na filosofia? Porque causas pareceu a população, a virtude antiga, o espírito militar? Como se explica

158 

Augusto Comte e o positivismo, pp. 6 e 7 da trad. de Clémenceau.

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ter-se esgotado tudo, terem-se aniquilado crenças, talentos, povo, costumes, lentamente, fatalmente, ao ponto de nada mais ficar do que uma administração e um código sob um monarca?”159

Taine está de acordo conosco em que o político, o jurisconsulto, os cultores de diversas ciências recebem da história materiais para suas induções. Tratando das primeiras leis, denominadas por ele explicações parciais, Taine o diz expressamente: “Qu’un politique, un jurisconsulte, un général, s’en tiennent à cette recherche, cela est naturel, puisqu’ils savent désormais tout ce qui peut s’appliquer à leur art; mais, la raison, plus philosophique et plus exigeante, explique ces explications, et réduit ces lois en lois plus générales”.160 Além destas leis, peculiares ao domínio de ciências sociais várias, que outras leis se podem induzir da história? Ouçamos o historiador francês, que nos vai apresentar exemplos de leis propriamente históricas. A expansão romana explica-se pelo interesse pessoal, pelo egoísmo que caracteriza o povo romano: “Eis porque seu espírito é a reflexão que calcula, e não a invenção poética, ou a especulação filosófica, e seu caráter consiste na vontade racionada, e não nos sentimentos e afeições. Daí essa luta infatigável contra uma terra ingrata, esse desprezo pelos que perdem o patrimônio, a nomeada dos que o aumentam, a economia, a frugalidade, a avidez, a avareza, o espírito de chicano, todas as virtudes e todos os defeitos que engendram e conservam a riqueza; a propriedade considerada uma coisa santa e sagrada, o limite dos campos divinizado, as terras e o crédito protegidos por leis terríveis, as formas dos contratos minuciosas e invioláveis; em suma, todas as instituições que podem garantir os bens adquiridos. Ao passo que alhures a família natural, estabelecida sobre a comunhão de origem, é governada pelas afeições, a família romana, toda civil, sob uma comunidade de obediência e de ritos, é a coisa e a propriedade do chefe, governada por sua vontade, subordinada ao Estado, legada sempre por uma lei em

159 

Parte primeira, cap. 4º.

P. 127. “Que um político, um jurisconsulto, um general, realizem esta pesquisa, isto é natural, pois eles sabem tudo o que se pode aplicar às suas artes; mas a razão, mais filosófica e mais exigente, explica estas explicações, e reduz estas leis em leis mais gerais.” (N.O.) 160 

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presença do Estado, espécie de província que está nas mãos do pai de família, e forneceu soldados ao público. Formado de raças diversas, violentamente reunidas, obra da força e da vontade, e não do parentesco e da natureza, o Estado contém dois corpos organizados, que lutam regular e legalmente, não por paixão, mais por interesse, e unem-se sob a mais complicada e a mais bem combinada das constituições que jamais houve. Conquistador por sistema e com método, para conservar e explorar o Estado romano eleva ao mais alto grão a arte militar, a habilidade política, o talento administrativo, e reúne pela força o mundo então conhecido em um império organizado sob o domínio de uma cidade. Sua política consiste em transformar em soldados de Roma os povos vencidos, em ministros de Roma os príncipes e os magistrados estrangeiros, isto é, em aumentar muito as suas forças com pouco dispêndio. Sua arte militar consiste em formar os mais robustos e bravos soldados sob a mais estrita obediência, isto é, em tirar o melhor partido de forças poderosas. Toda a sua sabedoria se reduz a desenvolver-se e poupar-se. Instituição da vontade, máquina de conquista, matéria de organização, o Estado ocupa todos os pensamentos, absorve todos os sentimentos, subordina a si todas as ações e todas as instituições. Esta dominação do interesse pessoal e do egoísmo nacional produz o desprezo da humanidade. Não conquistado ainda, o gênero humano é matéria para conquistas; já conquistado, é uma preza, de que se usa e abusa. Os escravos são espezinhados com uma dureza atroz; esmagam-se povos inteiros; conduzem-se em triunfo e matam-se os reis vencidos. Os deuses são abstrações sem vida poética, tais como os forma a reflexão árida por meio da análise de uma operação da agricultura, ou das diversas partes de uma casa, ou flagelos adorados por temor, deuses de outras nações recebidos nos templos por interesse, como vencidos na cidade, mas sujeitos ao Júpiter do Capitólio, como os povos ao povo romano. Os sacerdotes são leigos, organizados em corporações, simples administradores da religião, sob a autoridade do senado, que regula os sacrifícios expiatórios, e forma com o povo a única autoridade competente para fazer quaisquer inovações. O culto consiste em cerimônias minuciosas, escrupulosamente observadas, porque falta o espírito filosófico e poético, interprete dos símbolos, e o raciocínio, árido e triste, prende-se ás palavras. Serve para o senado do instrumento político, e, como tudo mais, é um meio de dominação.”161

161 

Pp. 180 a 184.

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Toda a arte veio dos países conquistados: o teatro da Etrúria, depois da Grécia: os monumentos são gregos. Na poesia, nenhuma originalidade. As ciências não passam de traduções. Incapacidade para a metafísica. A única ciência romana é a jurisprudência. Essa mesma, a princípio, se reduz a uma compilação de fórmulas. Para a elevar a sistema, foi necessária a filosofia grega, que a vivificou com o direito natural. Da natureza do gênio romano procede a sua história, como de um princípio o corolário. Desde que a família e a religião estão subordinadas ao Estado, a ciência e a arte são nulas, ou meramente práticas, e o Estado tem por exclusiva missão conquistar e organizar a conquista, a história de Roma é logicamente a história da conquista e seus efeitos. A guerra interminável extingue a classe média. Ao contato dos costumes orientais, a família se dissolve. Modifica-se o caráter da propriedade. A religião, fundida com as da Grécia e do Oriente, dilui-se no Pantheon. Só ficam de pé os jurisconsultos, que organizam um código, último efeito do espírito organizador de Roma. E assim a conquista, resultante fatal dos atributos do gênio romano, destrói todos os povos, deixando apenas um sistema de instituições, espaçoso invólucro, forma eternamente brilhante de um corpo já inanido e morto. E, sob os imensos escombros do que foi o império romano, o homem, desiludido, esmagado, aniquilado, se refugia em si mesmo, e, obedecendo às consoladoras sugestões do misticismo oriental, descobre e organiza uma sociedade nova no seio de uma nova religião. A ligação dos fatos é engenhosa e admirável, o encadeamento das causas e efeitos é soberbo; a explicação é genial e maravilhosa. Mas, conterá uma lei, ou uma série de leis, que possam denominar-se históricas, que formem o conteúdo de uma ciência autônoma? Em primeiro lugar, tão discordes são as explicações, engendradas pelos historiadores e homens de ciência – em geral, destes fatos complexos – o engrandecimento e a decadência dos romanos, que nada mais temos que ensaios, tentames de teorias. Por que decaiu o espírito romano? Em consequência

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da sua própria organização, efeito do egoísmo peculiar ao gênio do povo romano, responde Taine, resumindo, como ele diz, a filosofia da história dos modernos em relação a esse fato. O sábio Liebig, aprofundando o estudo das causas do fenômeno, conclui que tudo se explica pela falta de potássio e de ácido fosfórico, de que o solo foi privado por uma cultura irracional.162 O depauperamento dos homens, opina Conrad, foi devido à devastação das florestas, e ao estancamento das irrigações.163 Não contesta o ilustre Du Bois-Reymond, nenhuma dessas causas é verdadeira; a explicação é simples: Roma decaiu e pereceu por não ter cultivado as ciências naturais, e por ter fundado toda a sua civilização na areia movediça da estética e da especulação: se as legiões romanas tivessem armas de fogo, facilmente teriam rechaçado os bárbaros em batalhas sangrentas; e as armas de fogo nos foram dadas pelo cultivo das ciências naturais.164 Não é provável que cada um desses fatos tenha concorrido com outras causas para a produção do acontecimento? Em segundo lugar, descobrir a causa de um fato social não é descobrir uma lei científica. Dada a extrema complexidade dos fenômenos históricos, a causa de um fato pode ser um conjunto especial e único de fatores, ou de circunstâncias, o qual se não tenha reproduzido, nem seja provável venha a se reproduzir. Uma lei é uma relação constante de sucessão, ou de semelhança, ou de simultaneidade. Só o conhecimento de uma relação constante de sucessão entre as causas, ou a causa do fato, e este, é que nos daria uma lei, no sentido científico da expressão. Em se tratando de fatos sociais, um só efeito pode derivar de causas várias, como bem demonstra Stuart Mill.165 A extrema complexidade dos fatos sociais não nos permite generalizar, formular leis, com a facilidade e segurança

162 

Gumplowicz, Sociologie et Politique, §11.

163 

Ibidem.

164 

Ibidem.

165 

Système de Logique.

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com que se procede nas ciências inferiores. Finalmente, admitamos, para argumentar, que Taine haja formulado proposições verdadeiras e incontestáveis na sua explicação da grandeza e decadência dos romanos, ou, por outras palavras, que tenha descoberto algumas leis relativas à evolução e à dissolução da sociedade. Teremos um conjunto de leis históricas, uma ciência da história? Absolutamente não. Admitidas as induções de Taine como leis incontroversas, temos uma nova contribuição para a constituição da sociologia, que é a ciência consagrada ao estudo das leis concernentes à evolução e à dissolução da sociedade. A história coleciona e dispõe metodicamente os materiais, os fatos, em cuja observação e comparação haurem suas induções, ciências diversas. O método descritivo, aplicado pelo historiador, é um excelente instrumento para a aquisição de verdades gerais da sociologia e seus ramos especiais. Sem a observação não se dá um passo no estudo de qualquer ciência; a observação é a base comum do método de todas as ciências; mas cada uma destas tem o seu modo especial de observação. Há ciências que observam, por assim dizer, por simples intuição. São as matemáticas, que facilmente verificam as suas generalizações por meio de experiências ideais, como diz Bain, repetidas ilimitadamente em curto espaço de tempo graças à facilidade com que representamos em nossa imaginação as grandezas e as formas. Muitas verdades matemáticas, geralmente reputadas axiomáticas ou apriorísticas, não passam de induções dessas repetidas experiências ideais. Outras finalmente, para se constituírem ou para se desenvolverem, valem-se do método descritivo: tais são a sociologia e as ciências sociais especiais.166 O método descritivo, peculiar às ciências biológicas e sociais, é ainda um modo especial de observação, mas uma observação transformada ou prolongada.167É a natureza especial dos fenômenos sociais que exige um

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Roberty, La sociologie, cap. 2.

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Ibidem.

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trabalho de preparação e de elaboração intermediário entre a simples observação, a coleção dos fatos, e os últimos esforços da abstração e da análise, tendentes à generalização, ou formulação das leis. Queremos um exemplo do que é a história, considerada sob este aspecto; da utilidade que nos presta; de quanto se distingue da história tal como foi compreendida na antiguidade, e ainda até há pouco pelos simples narradores de fatos, como César Cantu; do que é a história – descrição de fatos cientificamente classificados, e repositório de materiais para as induções das ciências sociais? Temo-lo na História Romana, de Mommsen. Os fenômenos econômicos, os políticos, os jurídicos, os religiosos, os artísticos, tudo o que constitui o tecido da sociedade está classificado, coordenado, disposto e descrito, de acordo com uma certa ordem, em obediência a um certo método. Os fatos biográficos dos grandes homens se mesclam aos fatos de ordem geral, porque são inseparáveis; mas vê-se bem que o intuito principal do historiador é dar-nos classes de fenômenos sociais, coleções metódicas de fatos. Abstração feita da sua tendência para a teoria do caráter nacional da história, Mommsen é um mestre da historiografia. Sem esse defeito, com a perfeita discrição e com a segurança do homem de ciência, Fustel de Coulanges, mais do que nenhum outro, poderia ensinar a escrever a história. A este talvez só falte aquela arte de descrever que para Guizot e Taine é qualidade essencial do historiador, e que nos dá a ilusão de que os fatos se passam aos nossos olhos, e de que os personagens se movem, vivem e falam ao nosso lado, arte de que a antiguidade clássica parece ter guardado o segredo. Compreendida assim, a história provavelmente nunca se elevará às vastas generalizações, que debate tentaram os seus filósofos. A ciência que o gênio arrojado de Buckle supôs ter constituído ainda hoje não é ciência. Mas, se prosseguirmos nestas penosas investigações, de acordo com o princípio e o método iniciados por Buckle, quem sabe quantas induções úteis, quantas leis fecundas na aplicação prática, não

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poderá apreender o espírito humano? É possível que inúmeros fatos, pela generalidade dos homens ainda hoje atribuídos ao acaso, à ação arbitrária de um poder superior, ou à vontade exclusiva dos indivíduos, sejam reduzidos a leis, subordinadas ao princípio do determinismo, para essas leis, como ideias-forças, moverem na realização do bem e do melhoramento da espécie o nosso mecanismo volitivo. Será então desvendada a causa de fatos sociais, que nossa miopia intelectual não sabe como elucidar. Quem sabe se a explicação da miséria moral, que entrega, não raro, as nações prósperas e felizes a funesta incapacidade de audazes ambiciosos, não é a que Shakespeare põe na boca do príncipe dinamarquês: “Felizes aqueles cuja razão e cujo sangue se acham combinados, que não servem de flauta, em que o dedo da fortuna tire som pelo orifício que lhe aprouver”? Quem sabe? “No céu e na terra há mais coisas do que sonha a nossa pobre filosofia”.

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JOSÉ DA ROCHA POMBO A concepção moderna da história

apresentação Piero Detoni1

José Francisco da Rocha Pombo já não era um menino quando passou a redigir a sua História do Brasil, Ilustrada. Próximo de completar 50 anos de idade, em 1905, o polígrafo paranaense aventurou-se na tentativa de narrativizar a experiência histórica brasileira. O estudioso já era conhecido, sem grande destaque, nos meandros do universo letrado da passagem do século XIX para o XX como professor, jornalista, romancista e poeta simbolista, além de historiador. Foi a partir desses domínios que os seus escritos, mesmo que tardiamente, despertaram a atenção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e, antes mesmo do início da redação da sua História, o autor credenciou-se a adentrar, como sócio efetivo, aos nobres salões daquela agremiação fundada sob os auspícios de Pedro II, em 1838. Na nona sessão ordinária de 1900, o IHGB, por meio da comissão de admissão de sócios, incluía Rocha Pombo nos seus quadros oficiais. Duas obras de sua autoria foram avaliadas para tal propósito: Compêndio de História da América e o Paraná no Centenário (1500-1900), ambas publicadas naquele mesmo ano. Eis o parecer emitido pela comissão quando da sua admissão: a “Commissão [declarava] que na compendiosa obra do Sr. Rocha Pombo, [encontrava-se] um grande cabedal de pesquizas historicas e valiosos subsidios para a historia do nosso continente, a par de muita erudição por parte do seu autor” (RIHGB, 1900: 454). Os argumentos do primeiro livro apresentavam uma peculiaridade que resultou numa ressalva severa por parte da comissão: a continuidade de

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Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto.

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um estatuto político e social da Colônia até a República. Algo que não nos causa estranheza se considerarmos a experiência social do autor: defensor fervoroso do abolicionismo e da democracia republicana. Para os sócios que avaliaram o seu ingresso, esses ensejos pareciam despropositados: a comissão não concordava “com esta proposição tão contraria á verdade historica e á mascula energia patriotica, de que deram provas a gloriosa geração da Independencia e as que lhe seguiram” (RIHGB, 1900: 454). Talvez o fato de a instituição, mesmo com a proclamação da República, ter se mantido próxima a uma “leitura monárquica” da história do Brasil e por tomar, em grande parte, o período do pós-Independência como o ponto cume da emancipação do nacional; essas foram, ali, interditadas. Ressalvas colocadas o espaço de trabalho do IHGB estava acessível às suas pesquisas: os “dous sobreditos trabalhos do Sr. Rocha Pombo, mesmo nestas condições, lhe [abririam] lugar distincto entre os mais operosos cultores das cousas patrias, e [constituiria] valioso titulo para sua admissão no gremio deste Instituto” (RIHGB, 1900: 455). É nesse contexto de inserção do estudioso junto ao círculo dos historiadores stricto sensu que compreenderemos melhor o significado do texto o qual nos propomos apresentar: A concepção moderna da história. Reflexão que prefaciou a sua História do Brasil, Ilustrada; obra que contou, ao todo, com dez tomos, publicados entre 1905 e 1917.2 Seus ensejos apontam-nos pistas sobre as demandas projetadas aos escritos historiográficos no período e, já adiantando, seria apressado assinalar que a suas investigações estivessem desprovidas de um arcabouço teórico-metodológico compassado com os anseios para efetivação de uma escrita da história do Brasil renovada, isto é, a realização de uma síntese interpretativa da nação com os parâmetros modernos de cientificidade esperados.

2  Os cinco primeiros tomos foram editados por J. Fonseca Saraiva e os demais por Benjamim de Aguila.

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Rocha Pombo intuía, pois, ordenar a experiência brasileira tomando uma noção de cientificidade que engendraria, narrativamente, os fatos históricos no transcurso temporal. A partir dessa preocupação, a da cientificidade da história, os seus estudos iniciaram-se: “Não só, até os nossos dias, não se constituiu a sciencia da historia: discute-se ainda a mesma preliminar: será a historia uma sciencia”? (ROCHA POMBO, 1905: V). Ponderou, primeiramente, que, se a história não fosse uma prática científica legítima, as demais ciências, chamadas da sociedade, também não poderiam granjear o posto. Os espaços da história acenavam-se, segundo ele, decorrentes dessas visadas pensantes que se destacavam, entre nós, desde a chamada geração de 1870. Assim, a plausibilidade da ordenação dos “phenomenos que se [manifestavam] nos agrupamentos humanos isolados”, bem como a sistematização dos “factos relativos á vida e ao desenvolvimento de uma nação”, decorriam da existência de uma “sciencia social”. Se isso era válido, não se compreendia o desespero por “fundar a historia, uma vez que isso não [seria] mais do que uma generalização dessa sciencia social” (ROCHA POMBO, 1905: VI). Na passagem havia um claro esforço para estabelecer aquilo que Gerard Namer denominou como “estratégias de legitimação do conhecimento” (NAMER, 1977). Localizando a história entre os demais saberes em voga, a psicologia, a etnografia e a sociologia (condensadas sob o signo sciencia social), o autor traduzia os suportes epistêmicos aceitos no interior daqueles campos de conhecimento desde então proeminentes quando o propósito assentava-se na investigação dos homens no tempo. Nessas cité savantes, em estágio de autonomização, notavam-se sobredeterminações – graus diferenciados – de formas sociais e epistêmicas legitimadoras dos saberes; doravante o rastreamento de todas essas condicionantes não nos ocupará por hora, mas sim um ponto em especial que o atraía decisivamente: o desvelamento das leis que regulavam as sociedades.

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Estava em pauta, assim, a constituição de uma ciência histórica legítima e que, para tanto, passava pela “obrigação” da captura das leis que envolviam a sociedade em contraponto com as próprias leis do desenvolvimento histórico. A história se vislumbraria como ciência ao oferecer os procedimentos sintéticos das ciências sociais. O rastreamento das linhas mestras da experiência brasileira caracterizou a noção moderna de história para Rocha Pombo. As suas invectivas, por outro lado, acentuavam a dificuldade em dirimir os nexos causais que guiariam a consecução de uma síntese que abarcasse a história nacional em uma perspectiva total. O busílis enfrentado, desse modo, era o da “organisação da historia como sciencia”, tendo em vista a solução da “desordem apparente” que marcava a facticidade do devir. De forma mais aguda: resolver a “fortuidade” que “[fazia] parecer tudo eventual na vida dos povos” (ROCHA POMBO, 1905: IX). Uma ciência da história ater-se-ia, para se apregoar como tal, ao grande problema de ordem existencial, e epistemológico, que afligia aqueles homens: o progresso humano. A harmonia entre a evolução das nações e o progresso do concerto geral dos povos estabeleceria uma humanidade ideal num futuro em aberto, no “qual todas as patrias se [fundiriam], todas as raças se [incorporariam] e até todos os homens [viveriam] por tudo que tiveram de mais excelente, de mais espiritual, de mais inamissivel” (ROCHA POMBO, 1905: VIII). Desde ao menos a Revolução Francesa, no Ocidente, dispositivos narrativos e epistemológicos apropriados a referendarem aquela experienciação temporal progressista, através de uma grande intriga totalizadora, linear e processual, estavam disponíveis (KOSELLECK, 2004). Essa narração do encadeamento dos fenômenos impactou diversas modalidades de pensamento, como os discursos científicos e sociais. Darwin, por exemplo, assinalava um mundo em progressão evolutiva e respaldado por uma miríade de objetos e circunstâncias incrustadas na própria empiricidade das coisas. A marcha da História

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seria apanhada não teleologicamente, mas evolutivamente e a partir das inúmeras marcas deixadas no tempo– tanto pelo homem quanto pela própria natureza em si (LENOIR, 1998). Quando Rocha Pombo escrevia a sua História, o câmbio entre a experiência temporal moderna e a crescente complexificação das condições para a representação histórica estabilizava-se, paulatinamente, no sistema intelectual dos trópicos. Essa sofisticação operacionalizava-se por meio da história-ciência. Já o progresso dos povos o intelectual assim caracterizava-o: “O genero humano ainda não parou e nada nos [autorizava] a admitir que [viesse] a estacionar um dia. A ordem [era] sempre mais perfeita” (ROCHA POMBO, 1905: VIII). Se o devir caminhava para um futuro em aberto, costurado por rápidas reatualizações experienciais no presente, caberia aos historiadores a sofisticação dos seus métodos de análise para apreensão das leis que dirigiam esse movimento. A história, cientificamente embasada e contornando o acaso e a desordem dos eventos, destacaria “as grandes synteses, a direção dos acontecimentos, sem dar aos incidentes mais que o valor que elles [tinham] como partes do mesmo todo” (ROCHA POMBO, 1905: XVI). Ao efetuarem essa disposição, como já foi assinalado, esses estudiosos legitimavam as suas práticas por meio dos parâmetros de ciência esperados e aceitos. A síntese da experiência nacional, a totalização dos seus caracteres através de uma narrativa histórica orientada por padrões científicos, com dimensões dilatadas e comprometida com o futuro do país desenhava-se como o objetivo primevo de Rocha Pombo. O ensejo leva-nos a algumas inquietações projetadas por Paul Ricoeur junto às elaborações tecidas por Reinhart Koselleck em sua compreensão sobre o fenômeno da modernidade. Afirmou o filósofo francês, inicialmente, que “a depreciação do passado não bastaria para minar de dentro a afirmação da história como totalidade autossuficiente se um efeito devastador não tivesse se acrescido a ela, a saber, a historicização de

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toda a experiência humana” (RICOEUR, 2007: 319). Ou seja, na modernidade, entre os séculos XVIII e XIX, assistia-se ao estabelecimento gradual de uma concepção temporal atrelada à progressiva distinção entre passado e futuro; além de, pari passu, a emergência de formas de inteligibilidade autorreflexivas e provedoras de sentido/racionalidade para a história. Estava em jogo a temporalização do mundo humano, isto é, a tentativa da historicização máxima da trajetória dos homens e dos seus respectivos e múltiplos bens simbólicos no tempo. Tais prerrogativas não tinham outra finalidade senão a de domesticar o passado com vistas ao planejamento de um telos harmonioso e com feições, sobremaneira, progressistas. Ricoeur ressaltou, ainda, que a “valorização do futuro teria permanecido uma fonte de certeza senão tivesse sido acompanhada pela relativização de conteúdos de crenças considerados imutáveis” (RICOEUR, 2007: 319). Na experiência moderna da história, esses dois efeitos, para ele, insinuavam-se envolvidos por uma carga potencialmente antagônica, “na medida em que o segundo, a relativização, [contribuía] para minar o primeiro, a historicização, até então acoplada a uma expectativa garantida por si mesma” (RICOEUR, 2007: 319). Verificou-se o acirramento desse antagonismo durante o longo século XIX e, através da crise do historicismo, que no Brasil correspondeu ao momento em que Rocha Pombo elaborava a sua produção historiográfica, o fenômeno aparecia, em tese, pleno. Para avaliarmos o problema, recorremos a um engenhoso exemplo oferecido pelo autor no qual ele aproximava o exercício do historiador ao do naturalista. Este, um botânico, ao deparar-se com a flora de uma região específica, encontrava-se, num lance de vista inicial, perdido diante da multiplicidade de espécimes as quais selecionaria e catalogaria. A “primeira idea que [surgia era] a de que [seria] baldado todo o esforço no sentido de classificar no meio dessa desordem” (ROCHA POMBO, 1905: X). Entretanto, o naturalista, no processo de esquadri-

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nhamento, aos poucos entendia que em meio àquela “natureza onde tudo, a principio, lhe parecia fortuito e caprichoso” se localizaria um “grande numero de caracteres communs” entre as plantas estudadas. Nesse momento, realizar-se-ia uma seleção mais segura, porquanto princípios de aproximação afiguravam-se evidentes. Intuía-se a existência de plantas que “nunca deixavam de apresentar os mesmos caracteres e que ao mesmo tempo esse grupo de plantas [distinguia-se] de outros”. A dedução desses pressupostos levava o naturalista a concluir “que isso só se [explicaria] por alguma lei que até [ali] não se conhecia e que não [era], portanto, ao acaso que se [atribuiria] a differença entre os grupos e as semelhanças entre os individuos do mesmo grupo” (ROCHA POMBO, 1905: X). Estendendo o procedimento para outras regiões de flora, descobrir-se-iam novas espécimes com predicados próximos e, dedutivamente, diferentes. Ampliando a observação, generalizar-se-iam leis conscienciosas e, consequentemente, úteis para a seguinte compreensão: “Não [podia] ser por acaso que esses phenomenos se [davam] e que alguma causa geral e effectiva [explicaria] tudo isso que lhe parecia a principio anomalia e confusão”. Ao término do exemplo, ele não hesitou ao afirmar que essa disposição que acometera os naturalistas também repercutira entre os historiadores (ROCHA POMBO, 1905: XI-XII). As monografias e os seus mapeamentos histórico-geográficos acerca das regiões do país, envolvidas por operosos trabalhos de erudição, apareciam como aquele primeiro momento de reconhecimento e de apaziguamento da desordem da flora enfrentado pelo botânico. Por meio desse material propedêutico, projetar-se-iam cruzamentos generalizantes através do conhecimento advindo dessas análises particulares e que equacionavam denominadores comuns, leis, do funcionamento societário. Essa visada historiográfica, respaldada na crítica erudita e que objetivava a sintetização futura, abriria espaço para uma concepção moderna de história entre nós. Doravante, Rocha Pombo salientou que

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essa proposta, a qual partilhava, ainda inexistia: “O Brazil, como todas as outras nações americanas, [dizia-se] que, na mais ampla significação do termo, não [tinha] historia” (ROCHA POMBO, 1905: XII). O autor demonstrava, assim, as limitações de uma história de tipo descritivo-erudito-eventual, esteio de uma história dita tradicional, apontando para a necessidade de uma síntese que mobilizasse uma dimensão, mesmo que especulativa, do todo. Evidenciou, também, que a erudição, próxima das ambições dos naturalistas, desenvolvera-se consistentemente, mas ela, em contrapartida, não se afigurava como um suporte científico suficiente para a escrita da história. O metodismo historiográfico fora responsável, através das inúmeras “chronicas” e “memorias avulsas”, bem como por meio das “monografias”, das “theses” e das “historias geraes” que já circulavam, por encaminhar uma fisionomia narrativa para o Brasil; mas esses gestos pareciam aprisionados à esfera dos “meros fragmentos, sem nexo historico e por natureza incompletos e deixando grandes periodos inexplorados” (ROCHA POMBO, 1905: XXVI). Nessa perspectiva, o progresso científico – no caso da história, dependeria da coadunação entre erudição prévia, análise e generalização especulativa –, aliado ao desejo de intervenção nos domínios das leis do devir, trazia consigo o sentimento de que a síntese somente se efetivaria mais adiante, interessaria ao historiador do futuro, e, na pior das hipóteses, era considerada inatingível. As práticas historiográficas desenvolvidas no IHGB daqueles idos podem servir aqui enquanto uma amostra representativa para que compreendamos bem o problema. Se a agremiação não era mais a principal instância catalisadora das pesquisas desenvolvidas pelos artífices de Clio, ela possuía ainda um importante papel simbólico e de consagração para aqueles homens; como também se via envolvida com problemas próximos aos que o historiador paranaense enfrentava. Mesmo com a ocorrência de abalos institucionais em virtude da instauração de um regime político contrário ao que defendera historicamente, as suas

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práticas permaneceram ativas através da publicação da sua revista de história. No Instituto, fosse pelos seus estatutos ou pelo posicionamento dos seus sócios, não havia o “objetivo de escrever a História do Brasil, mas auxiliar na sua preparação”(HRUBY, 2007: 201). A dificuldade na redação de uma macronarrativa totalizante, que sintetizasse a nossa história, aparecia como o signo do espaço de trabalho de toda uma geração que, guardadas as especificidades das produções disponíveis, encaminhava para o futuro a realização de tal empresa. No contexto, alerta-nos Hugo Hruby, “além de faltar fontes para tal intento, a refulgência aos ódios, paixões e partidarismos impediriam, segundo eles, a sua redação”(HRUBY, 2007: 214). Apenas com a passagem do tempo o “apaziguamento das fortes emoções” ocorreria, possibilitando “uma crítica imparcial” das fontes para que, no porvir, pudessem os historiadores, enfim, redigir o “grande livro da pátria”. A própria Revista do IHGB, apesar de estampar algumas análises historiográficas de maior fôlego, era o lugar destacado para a divulgação das fontes concernentes à futura escrita da história brasileira. Nela, “os futuros historiadores teriam sólidas bases para assentar uma obra monumental. Os pósteros [encontrariam], nas páginas do periódico, os subsídios e os dados seguros acumulados para que pudesse ser escrita com ‘verdade, retidão, crítica e imparcialidade’ a História da Pátria”(HRUBY, 2007: 101). As dificuldades na realização da síntese e o gesto de postergar a escrita da história “definitiva” do Brasil apareceram com vigor nas operações de Rocha Pombo. Os desafios colocados ao historiador resumiam-se da seguinte maneira: “A minha tarefa é ainda a mesma tarefa secundaria dos que me precederam: consubstanciar elementos para o historiador do futuro”. A sua História, no entanto, erigia-se como uma proposta mais sofisticada do que as “simples chronicas, porque [havia] de ser uma condensação de chronicas e monographias, de tudo em summa que [tinha] de ser o estofo historico da obra de amanhã” (ROCHA POMBO, 1905: XXI-XXII). Não pondo termo à pesquisa do-

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cumental e impossibilitado de enfeixar os fatos históricos por meio de uma análise com bases positivas, relegou aos estudiosos de um amanhã próximo a escrita sintética da nossa história. Situando o seu esforço como algo um pouco mais complexo do que uma “simples chronica”, forneceu-nos indícios, todavia, de que seria portador da consciência de que os acontecimentos históricos seriam instâncias que extrapolavam o puro decalque do real. A sua proposta historiadora, uma crônica “mais sofisticada”, superava a ambição dos antigos em “registrar grandes acontecimentos, sobretudo de ordem politica; das façanhas militares, das acções dos principes e dos heroes – no intuito de que taes factos ‘se não apagassem da memoria dos homens’” (ROCHA POMBO, 1905: XX-XXI). Ela corroborava na montagem dos relatos da história nacional, dignos da ciência do tempo, que seriam redigidos em uma conjuntura outra. Aos modernos historiadores consistiria a tarefa do acompanhamento meticuloso, e o “mais nitido possivel”, das “relações entre os factos humanos, para [que se soubesse] melhor e com mais segurança, em que sentido elles se [desdobravam]” (ROCHA POMBO, 1905: XXI). A suspeita acerca dos acontecimentos decorridos representarem fielmente uma dada realidade configurou-se, talvez, como o motivo pelo qual Rocha Pombo declinara a tão aguardada síntese. Luiz Costa Lima auxilia-nos nesse ponto diferenciando acontecimento-fato de acontecimento-valor. O primeiro decorreria, próximo à forma de tratamento oferecida pelos antigos do historiador paranaense, da capacidade de “se bastar” por simplesmente ter existido. Já o acontecimento-valor exigia uma decifração prévia da sua significação (LIMA, 1992: 5). Se aos modernos historiadores competiria “alem de uma somma extraordinaria de conhecimentos especiaes, uma copia de informações tão completas e exactas que [tornavam] possivel a segura applicação de taes conhecimentos”; acreditamos na plausibilidade da não efetivação da síntese demandada por falta de soluções teóricas disponíveis e que encarassem os eventos a partir do prisma valorativo, isto é, que suspendessem

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a interpretação dos acontecimentos pautada na relação direta entre esses e o real. No limite, esse era o ponto central que interditava a síntese. Os historiadores, desse modo, viviam a desventura do escrutínio compulsivo dos rastros pretéritos com uma suspeita capciosa ao fundo: seriam eles suficientemente autorizados para “ressuscitar” a história nacional? Não havendo estratégias teóricas para que resolvessem o impasse, de uma forma ou de outra, abstinham-se da tentativa de conciliar uma analítica historiográfica que levasse em consideração a descoberta, mesmo que não totalmente clara, da dimensão de valor dos acontecimentos; a noção de que eles não se sustentavam por si só e que não significavam um acesso certeiro à pretensa verdade do passado. Ao não encontrarem uma solução para a análise dos acontecimentos que enxergasse a insuficiência da sua potência como “espelhamento da realidade”, mantinham-se atrelados à pesquisa erudita, postergando, às gerações vindouras, a escrita de uma história sintética e que apanhasse os nexos causais, as leis, que dirigiram a experiência brasileira. Deixavam de efetivar a generalização cientificamente orientada por não localizarem o valor dos acontecimentos como algo que transcendia a pura evidência de terem existido. Os argumentos presentes em A concepção moderna da história apontavam para o estatuto precário da narrativa historiográfica em sua tendência de “uniformizar as ruínas [do passado]”, na sua desventura de “emprestar-lhe um sentido, em virtude de que tenham sido fatos” (LIMA, 1992: 5). Atrelada a isso, a sensação de aceleração temporal, que exigia a sofisticação das tecnologias historiográficas para a compreensão daquele devir progressista – ainda “precárias” entre nós – levava ao adiamento da grande síntese. Caso a história se constitua em torno dos procedimentos da passagem do arquivo para a escrita, intuímos que o nosso autor encontrou sérios obstáculos para deslocar-se do primeiro plano (da prática historiográfica e dos seus índices de definição de possibilidades e interditos de pesquisa) para a posterior narrativa

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histórica (exposição formal do percurso investigativo e que oferece ao leitor a possibilidade de percorrer, a partir dos resultados apresentados, os caminhos trilhados pelo historiador)(RICOEUR, 2007).Resta-nos, pois, retornarmos às bibliotecas e verificarmos como Rocha Pombo articulou o seu projeto, ou como driblou os impasses com os quais se deparava, relendo os dez tomos da sua monumental História do Brasil, Ilustrada. Mãos à obra.

referências HRUBY, Hugo. Obreiros diligentes e zelosos auxiliando no preparo da grande obra: a história do Brasil no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (18891912). Dissertação de Mestrado em História. Porto Alegre: PPGHIS/PUC-RS, 2007. KOSELLECK, Reinhart.historia/Historia. Madrid: Trotta, 2004. COMISSÃO DE ADMISSÃO DE SÓCIOS. “Nona sessão ordinaria em 6 de julho de 1900. In: RIHGB, t. LXIII, parte II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900. LENOIR, Timothy. The strategy of life: teleology and mechanics in nineteenth-century German biology. Chicago, London: The University of Chicago Press, 1998. LIMA, Luiz Costa. “Auerbach e a história literária”. In: Cadernos do Mestrado em Literatura da UERJ. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1992. NAMER, Gerard. “Sociologie de la légitimation scientifique”. In: Cahiers Fundamenta Scientiae, n. 76, 1977. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007. ROCHA POMBO, José Francisco da. “A concepção moderna da historia”. In: História do Brasil (Ilustrada). Volume I. Rio de Janeiro: J. Fonseca Saraiva Editor, 1905.

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prefácio1 José da Rocha Pombo

§ 1º a concepção moderna da história I– Não só, até os nossos dias, não se constituiu a ciência da história: discute-se ainda a mesma preliminar: será a história uma ciência? Os espíritos mais notáveis do último século têm tomado parte nesta vasta e brilhante controvérsia da qual, pelo menos, vêm cada vez claridades mas imprevistas, devassando horizontes novos, no meio de cuja extensão a atitude das inteligências é a de uma expectativa ansiosa de quem espera por auroras que vão raiar. Por enquanto, não é possível preferir um a outro dos conceitos que se contradizem. O que, sem pretender entrar afoitamente no problema, se poderia notar, mesmo entre os que menos dispostos parecem a conceder à história o predicamento de ciência – é um certo sistema na tenacidade com que resistem ao considerável trabalho dos grandes pensadores que com mais proveito têm cuidado de coligir elementos para a constituição da ciência da história. Os que recusam à história a categoria de ciência e até a possibilidade de que ela venha um dia a assumir esse caráter não fazem questão de aceitar uma ciência da sociedade. Admitiriam talvez na ordem dos conhecimentos organizados a própria psicologia ou pelo menos que esta é uma ciência em formação, mas negam que a 1  Publicado originalmente como Prefácio ao livro História do Brazil, illustrada, de 1905. Edição do texto consultada: ROCHA POMBO, José Francisco da. História do Brazil (illustrada). Volume I. Rio de Janeiro: J. Fonseca Saraiva Editor, 1905. As notas seguem conforme notação feita pelo autor (N.O.).

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história possa aspirar sequer a ser uma ciência. Figura-se-nos aí, em primeiro lugar, uma flagrante contradição. Sim, porque, se é certo que já podemos ordenar os fenômenos que se manifestam nos agrupamentos humanos isolados; se já nos habilitamos a sistematizar fatos relativos à vida e ao desenvolvimento de uma nação; se já temos, em suma, uma ciência social – não se compreende como desesperemos de fundar a história, uma vez que isso não será mais do que generalização dessa ciência social. Incontestavelmente – parece mesmo ocioso indicá-lo – a história há de resultar, ou as leis fundamentais da história hão de ser apanhadas de um estudo comparativo das leis que regem a sociedade. Se estas leis já estão conhecidas, é fácil de conceber, como entende Buckle, que a constituição da ciência da história só espera agora pelo talento de grandes filósofos, pelo esforço e capacidade de generalização de homens de gênio que tomem a si essa tarefa. Outra observação que seria legítimo fazer aos que, admitindo a ciência da sociedade, negam, entretanto, que seja possível a ciência da história, é que assim se desconhece não só que das leis sociais se podem deduzir logicamente leis históricas, mas ainda – e isto é mais estranho – que, jogando com a imensa cópia de material, com a vasta documentação que já fizemos na ordem dos fenômenos coletivos, é hoje lícito avançar que com tanta – e íamos dizendo até – com mais segurança e certeza do que aquelas com que formulamos algumas leis sociais, estamos no caso de apreender algumas leis históricas. Tomemos um exemplo: o progresso contínuo e indefinido do espírito humano e, portanto, o próprio desenvolvimento da civilização no planeta é uma lei histórica2; não se poderia

2  Convém não esquecer que outro princípio capital decorrente desta lei é o de que o progresso das sociedades humanas é regulado pela atividade intelectual: é, portanto, uma resultante do esforço, mais ou menos intenso, das inteligências. Mostra-se Buckle muito empenhado em demonstrar, como base fundamental da civilização, que “os progressos do gênero humano dependem do sucesso das investigações no domínio das leis que regem os fenômenos da natureza e da proporção em que se vulgariza ou espalha o conhecimento dessas leis”. Esse princípio é, de si mesmo, de evidência tão irrecusável, que até nos parecia ocioso todo intento de demonstrá-lo; e por mim creio que ele é mesmo talvez o mais vasto, compreensivo do que, segundo a fórmula do mestre, se nos figura. O progresso das coletividades é fruto,

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sustentar, porém, que seja uma lei social. Há sociedades que deixaram de progredir, que se dissolveram ou que, chegadas a certa fase da sua existência, passaram a sofrer modificação regressiva até extinguir-se. Há outras que parecem ter ficado estacionárias ou cuja evolução é tão lenta que assim se nos afiguram. Mas o espírito que vai vencendo a natureza é cada vez mais forte e mais brilhante. O gênero humano ainda não parou e nada nos autoriza a admitir que venha a estacionar um dia. A ordem é sempre mais perfeita. O homem é cada vez mais sábio, mais poderoso e mais belo. Pouco importa que morram povos, que sucumbam nações, que se extingam raças: nada disso infringe a lei suprema. Porque a Grécia afundou nos tempos, ou porque a China parece dormitar há 50 séculos – não se segue que infrinjam o princípio da ordem universal. Do mesmo modo que ninguém se lembraria de negar a gravidade só porque um pedaço de papel cai mais lentamente

antes de tudo, do esforço do pequeno número de inteligências que – por assim dizer – andam sempre adiante, abrindo caminho à ação dessas coletividades. Atribuir em absoluto o progresso em todas as suas manifestações, ao esforço exclusivo de tais inteligências, não é difícil de compreender que seria de certo pelo menos sair do círculo e da contingência das sociedades. Sim: sem o coeficiente da ação coletiva que se subordina à direção da minoria de intelectuais, é evidente que os esforços destes se restringiria ao domínio da pura especulação; e, no entanto, sabemos que só quando se projetam no conjunto social, só quando se exteriorizam na vida da coletividade é que as conquistas da inteligência se tornam conquistas humanas e se incorporam no patrimônio comum. Em suma, a civilização – isto é, o conjunto dos progressos humanos – consiste exatamente neste trabalho de ir passando para o domínio das coletividades as conquistas que vão fazendo os indivíduos mais capazes de esforço intelectual. O que não deixa a mínima dúvida, no entanto, é que toda obra coletiva – sendo reflexo ou expressão de inteligência – é subalterna do esforço intelectual. É facílimo de observar como em todas as sociedades, os progressos se vão realizando como que à l’insu da enorme maioria que age mais do que pensa. E isso é ainda mais fácil, porque então é mais flagrante o fenômeno, nos países novos que vão recebendo o influxo de conquistas que outros fizeram. Todo o mundo, por exemplo, viaja hoje em trem de ferro ou em bonde elétrico. Entre os passageiros de um veículo desses, porém, quantos estarão no caso de dizer como é que ele se locomove? Não há hoje um indivíduo, por menos culto que seja, que não vá ao telégrafo com uma certeza absoluta de que, através de centenas ou mesmo de milhares de léguas, vai dar, dentro de alguns minutos, notícias à família. Sem Stephenson, sem Morse – que andaram adiante – tais progressos não viriam, pelo menos quando vieram. Na gênese das sociedades humanas é necessário, pois, distinguir duas fases bem assinaladas: aquela em que dominou o instinto, e a subsequente que pode ser chamada a fase da consciência. Até a tribo ou a phratria, é de supor que o instinto fizesse tudo e que os homens se associasse, obedecendo inconscientemente às imposições imediatas da natureza. Da cidade por diante, interviu decisivamente na organização social a consciência dos indivíduos concorrendo com o instinto e sobrepujando-o cada vez mais.

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que um pedaço de chumbo – não é possível a um homem de razão contestar o desenvolvimento contínuo do espírito humano só porque um povo cessou de desenvolver-se e outro se desenvolve incompletamente. Dessa humanidade objetiva e contingente, que se contradiz, às vezes, que às vezes tomba, se esvai, envelhece e morre, já podemos separar essa outra humanidade que afirma sempre, que é imortal e eterna – a humanidade ideal, na qual todas as pátrias se fundem, todas as raças se incorporam e até todos os homens ficam vivendo por tudo que tiveram de mais excelente, de mais espiritual, de mais inamissível. Pela sua contingência, como manifestações exteriores da vida, os fatos humanos se sucedem, desaparecendo uns após outros; mas dos fatos vai ficando tudo que é expressão legítima da sua essência mesma e que nunca se perderá na história. Com a humanidade tem de acontecer o que acontece, em círculo mais exíguo, com os povos; como com os povos acontecerá o que sucede com os indivíduos. A Grécia espiritual viverá eternamente na alma do mundo. A dor de cada um de nós não será jamais perdida. Passarão os fatos de cuja presença a minha dor me avisou; mas a minha dor não passará nunca. Perderei de memória os incidentes da minha vida, os meus sofrimentos como as minhas alegrias, as minhas fortunas como as minhas desgraças; mas o espírito das minhas vicissitudes há de ir com o meu espírito; e na minha agonia eu terei – acrescentado à minha personalidade – o que houve de espiritual em tudo que ficou entre o meu berço e o meu leito de morte. II – O que tem dificultado até hoje a organização da história como ciência e mesmo feito duvidar de que se chegue a esse resultado é toda essa desordem aparente ou esse caráter aparente de fortuidade que faz parecer tudo eventual na vida dos povos. Como é possível sistematizar, ou surpreender entre os fatos humanos um nexo de qualquer natureza, ou distinguir nitidamente relações entre esses fatos no meio da infinita variedade em que eles se apresentam? E não é só dizer que se trata das diferenças notadas e que parecem inexplicáveis quando se

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passa de uma sociedade para outra – diferenças e variedades de instituições, de costumes, de maneiras, de direito, de moral, de religião e até de temperamento, de índole, de tendências: entre indivíduos do mesmo povo e produto da mesma civilização, notam-se diferenças e variedades análogas, que parecem desiludir-nos inteiramente de qualquer tentativa no intuito de descobrir na vida desses indivíduos alguma coisa de normal, de submissa a leis, de ordem lógica: diferenças que desaparecem quando se observa o conjunto dos fatos, mas que se destacam cada vez mais nitidamente à medida que descemos a particularidades, a análises minuciosas dos indivíduos. Já isto, no entanto, nos impressiona e começa a orientar-nos: ao passo que o exame abrange uma esfera mais ampla, isto é, segundo as proporções em que vamos generalizando – a desordem vai perdendo o seu aspecto. Não há dúvida de que, em presença da confusão absurda que a análise dos incidentes denuncia, o espírito filosófico tinha de estacar por longo tempo e que só a infinidade de séculos de experiência é que podia vir mesmo a fazer suspeitar que, no meio dessa confusão, há ordem. É fácil, porém, de atinar com o instante em que foi possível ao pensador aplicar aos fatos da historia o processo a que o espírito humano mais deve o êxito crescente com que o seu esforço vai ampliando a esfera dos conhecimentos: só quando chegou a estudar os fatos sociais em muitas sociedades é que naturalmente ele pode induzir as leis que regem esses fatos. Não é de admirar, portanto, que só em nossos dias se esteja cuidando de constituir a ciência da História. III – O que aconteceu aos historiadores deve ter também acontecido aos naturalistas. Imagine-se o botânico a estudar a flora de uma zona. É tal a variedade de indivíduos, que a primeira ideia que se lhe sugere é a de que será baldado todo o esforço no sentido de classificar no meio dessa desordem. Sim: se ele encontrasse, num retângulo de solo, só palmeiras, em outro só araucárias, num terceiro só uma outra espécie de plantas e assim por diante – nada seria mais fácil do que classificar

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a flora toda dessa zona, mesmo porque, nitidamente destacados em cada retângulo os traços comuns a cada grupo de indivíduos, a classificação se reduziria assim a dar um nome distinção a cada grupo. Mas o naturalista, em vez disso, encontrou no mesmo retângulo uma tal variedade de indivíduos, que a primeira impressão resultante de um golpe de vista sobre o conjunto não podia deixar de ser a de que tinha de renunciar a todo pensamento de sistematização no meio da desordem. Acompanhemos, no entanto, o espírito do naturalista nos processos, nas operações que o conduziram nas diferentes fases do seu esforço e lhe foram transformando o conceito daquela mesma natureza onde tudo, a princípio, lhe parecia fortuito e caprichoso. Desde que passou a estudar mais particularmente os indivíduos do mesmo retângulo, verificou o naturalista que entre muitos deles havia grande número de caracteres comuns. Notou, portanto, que já era possível separar, do meio do tumulto em que na natureza se apresentam, as plantas daquele retângulo submetido a exame. A noção da espécie já foi para o espírito humano um grande progresso. A desordem aparente não desapareceu, de certo, mas o observador constatou que, se no mesmo retângulo há um grupo de plantas que nunca deixam de apresentar os mesmos caracteres e que ao mesmo tempo esse grupo de plantas é diferente de outros grupos – é que isso só se pode explicar por alguma lei que até aí não se conhecia e que não é, portanto, ao acaso que se deve atribuir a diferença entre os grupos e as semelhanças entre os indivíduos do mesmo grupo. Mas a noção de espécie ainda não fez tudo. Tendo estudado um segundo retângulo, percebeu o botânico que neste já se não encontravam alguns dos indivíduos que figuram no primeiro. Ampliando o campo de observações, foi vendo que o mesmo que havia feito entre os indivíduos que figuram no primeiro. Ampliando o campo de observações, foi vendo que o mesmo que havia feito entre os indivíduos do mesmo retângulo era preciso fazer agora entre os diversos retângulos estudados. Destes há alguns cujas produções são

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das mesmas espécies, enquanto que outros se distinguem exatamente pela exclusão absolta de plantas que são características de outros. É assim que o naturalista teve de ser levado a suspeitar, cada vez mais, que não pode ser por acaso que esses fenômenos se dão e que alguma causa geral e efetiva tem de explicar tudo isso que lhe parecia a princípio anomalia e confusão. Depois que estudou diferentes retângulos e pode marcar-lhes com toda precisão as diferenças – foi o naturalista procurando as causas suspeitadas e chegou a constatar que essas causas existem realmente e de modo tão irrecusável que o naturalista já pode dizer si uma certa planta vingará num dado retângulo. Mas que somas incalculáveis de esforço deve ter despendido o espírito humano até chegar à verificação de que toda a flora de uma zona é produto de um certo número de fatores sem os quais essas flores não seria como se nos apresenta! O que se deu com os naturalistas tem se dado com os historiadores. Na vida de um povo, os fatos se sucedem em confusão inextricável e todos como impossíveis de explicar, ocorrendo ao acaso, e muitos parecendo tão disparatados que só ao capricho e fantasia de potestades desconhecidas se deveriam atribuir. O mais que podia o espírito do historiador era ir fazendo o registro dos fatos que presenciava ou de que tinha conhecimento por tradição. E é isto o que se tem feito quase que se pode dizer até hoje. Foi preciso chegar aos nossos dias para que o espírito humano, ao cabo de vagos pressentimentos, de mortificantes meditações, fosse compreendendo que a História tem, como a natureza, as suas leis. IV – O que é curioso notar é que todas as grandes tendências do espírito humano têm vindo até hoje, como que inconscientemente, a afirmar a possibilidade de constituir a ciência da História: todo o nosso trabalho, e em toda ordem de conhecimentos, parece colimar o fim que andamos em vésperas de atingir. Buckle começa a sua grande obra fazendo referências aos materiais até hoje acumulados para a formação da História.

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“Não se pode negar – diz ele – que os materiais recolhidos formam coletivamente uma preciosa e opulenta mina de riquezas incalculáveis. Os anais políticos e militares de todas as grandes nações da Europa e de quase todas as que se acham fora deste continente, foram coligidos com todo cuidado... e as provas sobre que se baseiam esses anais foram escrupulosamente examinadas. Uma atenção particular tem sido dada à história da legislação, à das religiões, e trabalhos não menos consideráveis, ainda que de caráter menos elevado, acompanham os progressos da ciência, da literatura, das belasartes, dos costumes e do bem-estar dos povos. No intuito de argumentar nosso conhecimento, o passado, as antiguidades de todos os gêneros têm sido examinadas; os assentos de antigas cidades têm sido descobertos, inscrições de túmulos e moedas decifradas, alfabetos restabelecidos, hieróglifos interpretados e, em alguns casos, línguas desde longo tempo esquecidas, foram, de novo, estudadas. Muitas das leis que regem as mudanças da palavra humana foram descobertas e nas mãos dos filólogos, serviram para iluminar até os períodos mais obscuros das primitivas migrações humanas. A economia política tornou-se uma ciência e já tem lançado uma grande luz sobre as causas da distribuição desigual da riqueza, que é a origem mais fértil das perturbações da sociedade. A estatística foi cultivada com tanto zelo que hoje possuímos as informações mais extensas, não somente sobre os interesses materiais dos homens, mas também sobre as irregularidades ou singularidades da sua conduta moral; pelo que respeita, por exemplo, a cifra dos diferentes crimes, a proporção que existe em cada um deles e a influência exercida sobre eles, pela idade, pelo sexo, pela educação e por outras condições. A geografia física seguiu todo este grande movimento: os fenômenos climatérios foram registrados, as montanhas medidas, os rios explorados e conhecidos até as nascentes, as produções naturais de todo gênero estudadas com cuidado e suas propriedades, ainda ocultas, se revelaram: cada alimento que sustenta a vida humana foi analisado quimicamente, suas partes constitutivas foram classificadas e pesadas, e reconhecida de maneiras satisfatória, em muitos casos, a natureza da relação que existe entre eles e o corpo humano. Ao mesmo tempo, e afim de fazer tudo o que é necessária para ampliar o nosso conhecimento dos fatos que dizem respeito ao homem, minuciosas indagações se têm organizado relativamente a outros departamentos, de sorte que, pelo que se refere aos povos mais civilizados, conhecemos agora suas estatísticas de mortalidade, de casamento, de

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nascimentos, o caráter de suas ocupações, as flutuações, não somente dos salários, mas também dos gêneros de primeira necessidade. Estes fatos e outros muitos ainda foram reunidos, classificados metodicamente e estão hoje a nosso alcance. Tais resultados que formam, por assim dizer, a anatomia de uma nação, são notáveis por sua natureza minuciosa; e a estes resultados vieram juntar-se outros menos minuciosos, mas ainda mais extensos. Não somente as ações e os traços característicos dos grandes povos foram registrados, mas ainda um número prodigioso de tribos diferentes, em todas as partes do mundo conhecido, foi visitado e descrito pelos viajantes: o que nos permite comparar a condição da raça humana em todas as fases da civilização e nas circunstâncias mais variadas. Se acrescentarmos agora que esta curiosidade relativamente aos nossos semelhantes é em aparência insaciável; que aumenta sem cessar; que os meios de a satisfazer na mesma razão aumentam e que quase todas as observações que se fizeram estão registradas: se reunirmos tudo isto, estamos no caso de formar uma ligeira ideia do valor imenso desta vasta soma de fatos de que estamos hoje de posse e com o auxílio dos quais deve ser estudado o progresso da humanidade.”

Realmente, não é possível, em termos mais sintéticos, dar um total dos elementos que se acham preparados para a constituição da ciência da História. Dir-se-ia que os subsídios aparelhados tanto pelas artes, pelas ciências, como pelas crônicas, pelas monografias, pelas narrativas dos historiógrafos, pelos registros de cortes, pelos arquivos antigos, pelas estatísticas diversas – dir-se-ia que tudo isso foi feito sobre um plano e com endereço aos que, no futuro, viessem a construir a mais vasta, mais complexa, mais profunda e mais humana das ciências – a ciência que tem de abranger todas as outras, todo o conjunto da nossa obra no planeta. Há mesmo um como instinto no espírito dos homens, dos que primeiro assomam na memória do mundo até hoje, um instinto a presentear que a luz indecisa que se vem fazendo desde o alvorecer dos tempos se há de fazer cada vez mais intensa até a larga claridade e esplendor dos nossos dias.

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V – Mas é preciso notar que há mais do que pressentimentos e tendências do espírito humano, mais do que instinto universal a afirmar a possibilidade de constituir a ciência da História. Todos os pensadores, mesmos que lhe recusam o predicamento de ciência, reconhecem que a história é a mestra das nações. A maior parte dos antigos historiadores que tratavam a história, apenas, como narrativa, assinalam que os sucessos de cujo registro se ocupa, hão de servir de lições aos vindouros. Não se compreende como é que os fatos históricos possam vir a exercer influência sobre gerações subsequentes sem que isso signifique não apenas uma relação de dependência entre as gerações, mas até o grau e a forma necessária da dependência em que hão de ficar certas gerações. Se é possível hoje constar no presente o influxo de fatores preparados em fases já decorridas – nada mais lógico do que admitir a possibilidade de prever o resultado ou o efeito, mesmo em futuro imediato e longínquo, de coeficientes atuais. Sim: se explicamos o presente pelo passado – explicaremos o futuro pelo presente. Figura-se-nos ocioso discutir ainda e procurar pôr em evidencia a já muito debatida tese – que os vivos são cada vez mais governados pelos mortos. Tese tão velha, talvez, como o homem, pois que a encontramos na sabedoria de todos os povos mais antigos da história. Ora, se é assim, temos todo o problema reduzido a uma simples questão de lógica. Se a política e a moral de uma época é que vão regular a moral e a política da época subsequente, para sabermos o que é ou o que vai ser a época subsequente é bastante conhecer a moral e a política da época de que a segunda tem de ser uma como projeção, ou corolário. VI – Entenda-se como quiser, no entanto, a História; o que é certo é que nós, hoje, não só compreendemos melhor e explicamos um grande número de fatos que até há pouco pareciam inexplicáveis por anormais na vida de uma nação, como já prevemos muito mais e cada vez com segurança crescente.

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Discutimos hoje um problema de história como se discute um problema de mecânica ou de física. É tão certo que cada sucesso ou ciclo de sucesso tem seus fatores – ou antecedentes de que é resultante – como é certo que não há resistência sem pressão. O que é preciso na história, como nos próprios fatos sociais, é destacar as grandes sínteses, a direção dos acontecimentos, sem dar aos incidentes mais que o valor que eles têm como partes do mesmo todo. Quem observa a história há de ter o mesmo cuidado de quem estuda uma corrente fluvial e procura apanhar-lhe a direção. Imagine-se que eu tomo uma das curvas de um rio e que, ao notar como ali as águas correm para o N, eu me decido logo a assegurar que todo o rio corre no mesmo rumo: compreende-se quanto fico sujeito a enganar-me. Quantas vezes, numa volta de rio, correm as águas para a nascente! Mas uma verdade eu posso afirmar: é que, por mais que as voltas do rio me confundam, não será nunca possível que o rio venha a ter a sua foz no mesmo ponto onde nasce... E a noção que eu logrei dos muitos enganos em que me fizeram cair as curvas que estudei de per si é esta: é que o mais seguro é não estudar parcialmente cada curva, e sim de cada vez maior secção do rio e se for possível (porque isto, sim, me dará certeza absoluta quanto à direção verdade da corrente) o que será trabalho decisivo é assinalar entre a nascente e a foz do rio a linha reta que as curas cortam. É exatamente assim na história. Muitas vezes há incidentes que parecem ficar fora do fato geral e até infringir a lógica dos sucessos que caracterizam uma época. Mas isso acontece quando o nosso espírito não apanha, bem destacado e ao longe, o desdobramento de toda uma série pelo menos de fatos capitais de um ciclo histórico; do mesmo modo que, atentos à direção das águas de uma curva, nos convencêssemos de que essa direção se afasta do rumo geral da corrente toda. Tomemos da história moderna um acontecimento que ainda está sendo discutido: a Revolução Francesa. É impossível desconhecer ou não confessar que o nosso espírito, em presença de semelhante sucesso, sente-se propenso

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a tomá-lo como uma explosão imprevista, eventual, inexplicável por leis históricas. Sobretudo quando vemos, logo após aquele acesso de histeria, cair a França, como exausta e vencida, aos pés de Bonaparte, queremos persuadir-nos de que aquela tragédia teve tudo de monstruosa e absurda e nada de lógica e normal que fique dentro das leis da história. E, no entanto, o nosso espírito, julgando assim, claudica e revela que não sabe ver, por cima e do alto, nem 50 anos da vida de um povo. Mas é bastante uma instantânea sugestão, para que o nosso espírito se aperceba de que a anormalidade daquele vasto e profundo cataclismo de modo algum subverteu as leis históricas e de que não houve recuo do espírito francês caindo dos excessos da Convenção nas angustias do Consulado e do Império. Cessadas as refregas, feito o balanço de tudo, é que se viu como a França e a própria civilização da Europa só tinham ganho – isto é – não haviam parado no seu caminho. Tudo quanto houve de estranho, de absurdo, de horrível ou de belo demais – era contingente e passou. Quando, porém, a França e o mundo, em 1815, voltaram do acesso, sentiram já que não eram a mesma França e o mesmo mundo dos fins do século XVIII: tinham efetivamente lucrado trinta anos de esforço e de trabalho, que nem o entusiasmo delirante de uns pudera exagerar, nem o intento de outros diminuir. A Revolução fora, portanto, uma enorme curva na história do século; mas logo adiante a corrente retomara o rumo do mar. E assim todos os acontecimentos da história humana. Muita gente tem perguntado: se Alexandre não houvesse morrido em Babilônia, quais teriam sido os destinos da civilização ocidental. A sorte de Roma talvez tivesse sido outra, mas o desenvolvimento da civilização no Ocidente havia de ser o que foi. Sim: se o conquistador macedônio volvera as suas ambições para o outro lado do mundo e chegara a apoderar-se de Roma e impedir que se completasse ali a vasta e colossal construção que estabeleceu e manteve no hemisfério toda a ordem política por mais de oito séculos ainda – é claro que de outro modo e por outros processos

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se teria feito a interversão de raças e povos ali operada. E até certas variantes de fatos acessórios podemos admitir, e imaginar mesmo um grande número de hipóteses que seriam perfeitamente legítimas como coincidentes com o fato geral sem que o fato geral deixasse de ser o que foi. Sem a Roma dos Césares, por exemplo, isto é, sem o poder sólido, omnímodo, absorvente do império romano, as duas correntes arianas – a do Mediterrâneo e a do Norte – ter-se-iam encontrado mais cedo. E a primeira consequência que teria uma tal antecipação é fácil de ver que seria a vantagem, quiçá, de determinar que a fusão se operasse em outras condições. Os germanos e os eslavos teriam encontrado mais flagrante o gênio latino e mais vivo o heroísmo das populações do Sul. A fusão seria mais natural e mais perfeita e a Europa ariana e cristã ter-se-ia organizado muito antes e estaria consolidada, tanto para resistir aos mouros no século VIII, como no século XV para fazer frente ao debordamento dos turcos. O que é certo, porém, é que a civilização do Ocidente não teria mudado de rota: as digressões, os episódios da jornada, os incidentes do caminho seriam diversos, mas o fato geral seria o mesmo por mais várias que fossem as particularidades. VII – Concluamos, portanto, que, qualquer que seja o modo de considerar a significação dos acontecimentos, nós hoje não podemos tratar a História como simples narrativa ou mero registro de fatos sociais. O nosso espírito não fica resignado com a tarefa de constatar apenas e sem um esforço ao menos no intuito de apanhar o sentido em que se exerce a ação coletiva de um agrupamento humano. E quanto outras nos não assegurasse, já sabemos que uma enorme vantagem nos deu a nova orientação com que hoje escrevemos a história: a vantagem de encarar, com outro critério e por um prisma diferente, os sucessos que incidem sob a visão do historiador. Entre esses sucessos, os que hoje nos interessam e merecem a nossa atenção mais solícita não são aqueles a que os antigos davam preferência. Estes se satisfaziam com a descrição de batalhas ou com o registro de ocorrências políticas, ou com

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a biografia dos reis e dos grandes guerreiros: nós preferimos ocupar-nos de quanto é, por sua natureza, mais característico da evolução humana, e em vez de fazer crônicas de cortes e de grandes cidades, ou em vez de tratar exclusivamente da administração e da política, procuramos estudar aquilo que constitui a essência mesma da vida de um povo: os seus costumes, as suas opiniões, as suas crenças, a sua legislação, as suas ideias, as suas tendências, as suas instituições, a sua moral, a sua atividade, a sua riqueza. Tudo isto nos diz muito mais, infinitamente mais do que a maior parte das vicissitudes a que os príncipes arrastam as nações ou do que as aventuras em que um pró-homem compromete, muitas vezes, as aptidões e os esforços de uma geração. E disso já estamos positivamente convencidos pelo sucesso com que alguns escritores modernos têm dado à História – assim tratada – um proveito incalculável. Mais do que todos os filósofos e historiadores antigos reunidos, nos dá a evolução da família, até a formação da cidade, esse pequeno livro que é o mais extraordinário monumento que no gênero já levantou o espírito moderno – a Cité antique, em que Fustel de Coulanges assinala, com um colorido de verdade realmente espantoso, a origem, a filiação, o desenvolvimento de todos os fenômenos fundamentais da sociedade humana. Nem todas a bibliotecas especiais de ciências históricas, até meados do último século, nos dizem o que foi a civilização romana tão bem como Th. Mommsen! Nem as epopeias de Homero, nem os grandes trágicos antigos, nem os historiadores gregos, nem todos os gloriosos artistas do grande século de Péricles nos dão a Grécia heroica tão nitidamente como André Lefevre. E tudo porquê? Porque Mommsen e Coulanges fazem a história como ciência, historiam a vida social; e como a história, assim entendida, não é menos do que uma extensão da psicologia – a psicologia das coletividades – eles, como historiadores, estudam o espírito humano. VIII – Estamos agora habilitados a formular o nosso conceito da História. Para os antigos, consistia ela no registro dos grandes acon-

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tecimentos, sobretudo da ordem política; das façanhas militares, das ações dos príncipes e dos heróis – no intuito de que tais fatos “se não apagassem da memória dos homens.” Para os modernos, consiste a tarefa do historiador em apanhar, cada vez com mais precisão e o mais nitidamente possível, as relações entre os fatos humanos, para sabermos, cada vez melhor e com mais segurança, em que sentido eles se vão desdobrando. Se a história não é ainda uma ciência definitivamente formada – é pelo menos uma ciência em via de formação. É fácil de compreender que, assim entendida, a História reclama do historiador, além de uma soma extraordinária de conhecimentos especiais, uma cópia de informações tão completas e exatas que tornem possível e segura a aplicação de tais conhecimentos. Buckle, logo em uma das primeiras páginas da sua História da civilização na Inglaterra, observa quanto tem sido prejudicial ao progresso da ciência histórica o estreito ponto de vista dos historiadores que se têm limitado a narrar os acontecimentos sem procurar saber de que maneira eles se ligam uns aos outros. “Segundo semelhante sistema – diz ele – um autor que, por indolência de espírito ou por incapacidade natural, é impotente para tratar os ramos mais elevados da ciência, não tem mais do que passar alguns anos a ler um certo número de livros – e está então apto a fazer-se um historiador: é capaz de escrever a história de um grande povo, e até sua obra chega a constituir autoridade no assumpto que ele teve a pretensão de tratar”. Não é isso naturalmente o que eu vou fazer: este trabalho não visa a constituir uma história da civilização no Brasil. Para tão alta e difícil tarefa me falecem tanto os conhecimentos especiais que não pode deixar de ter o historiador (e isso principalmente) como o indispensável material que tem de servir de base à construção do que há de vir a ser propriamente a nossa história. A minha tarefa é ainda a mesma tarefa secundária dos que me precederam: é consubstanciar elementos para o historiador futuro e, portanto, fazer apenas um pouco mais que a simples crônica, porque há de ser uma condensação de crônicas

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e monografias, de tudo em suma que tem de ser o estofo histórico da obra de amanhã. Para limitar assim o meu esforço, além das razões que são óbvias, acresce a circunstância de que não se trata, nem mesmo se poderia tratar, por enquanto, de fazer história, no sentido moderno ou segundo o conceito atual da ciência histórica. Como já tivemos ocasião de ver, só se podem aplicar os grandes princípios da história, pelo menos aplicá-los com probabilidade crescente de sucesso, a longos períodos, que permitam destacar bem o sentido dos acontecimentos. O Brasil, como todas as outras nações americanas, pode-se dizer que, na mais ampla significação do termo, não tem história ainda. Por enquanto, estamos todos reagindo contra os males e vícios do regime colonial. Não é necessário ter muito tino histórico para compreender que nem a fisionomia política do continente é definitiva, isto é, que ainda está por fazer aqui a integração das nacionalidades. Pode-se talvez mais do que admitir como hipótese – pode-se mesmo afirmar que, pelo menos a América latina tem de ver alterada a sua atual divisão política. Só cegos não perceberiam que a tendência geral dominante entre os povos americanos é a que os leva a dar cada vez mais força ao espírito regionalista, a tornar sempre mais independente à vida local. Veremos oportunamente as origens prováveis desta tendência. Por agora, é bastante que a assinalemos. Ora, a reação contra essa tendência, contra o excesso de liberdade local ou regional há de fazer-se, e por efeito de leis já suficientemente comprovadas em toda a história e em vésperas agora de largos e imprevistos desdobramentos. As pequenas pátrias, ou mesmo as circunscrições que dentro das mesmas pátrias vierem a ser criadas pela tendência descentralizadora, terão logo necessidade de se anexar para constituir vastas combinações políticas – as únicas que hão de subsistir na fase nova em que fatalmente vai entrar a ordem humana em todo o planeta. De sorte que é preciso prever, primeiro, o parcelamento das nações atuais do continente; em seguida, a organização de vastas soberanias, de impérios colossais por meio de fortes

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alianças ou federações. Só políticos sem descortino é que poderiam não compreender que a fase em que nos achamos é de transição. Nunca foi possível na história fazer-se uma grande nação sem unidade, não apenas de língua, de raça, de crenças, mas principalmente sem unidade de temperamento, de tendências, de espírito. E não é provável sequer essa unidade numa extensão territorial que mede quase 40 graus de latitude. Aqui, a unidade política futura há de assentar sobre a aliança federativa das pequenas pátrias que ainda temos de fundar. E é vendo assim que fazemos uma ideia legítima dos grandiosos destinos deste vasto país.

§ 2º como escreveremos a nossa história I– Os dois fatores da história são o homem e a terra. São os dois grandes objetos que têm diante de si aquele que se propõe a estudar uma civilização ou mesmo dar simples notícia de um povo. É fácil de ver que se no meio da mesma natureza se abandonassem três indivíduos, cada um com o máximo de aptidões características e próprias da respectiva raça, mas um inglês, outro sírio e o terceiro um chin: é fácil de imaginar que esses três indivíduos não seguiram o mesmo caminho nem venceriam essa natureza do mesmo modo e com igual sucesso. Também é certo que se puséssemos um inglês na Islândia, outro inglês na Espanha e um terceiro inglês no Vale do Zambeze ou numa das Molucas, é certo que poderíamos prever, com uma segurança quase absoluta, qual deles teria mais probabilidade de tirar mais proveitos do seu esforço. Isto quer dizer que sem um confronto dos dois elementos não há história possível e que estudar um deles sem estudar ao mesmo tempo o outro, e com igual solicitude, seria o mesmo que pretender traçar uma diagonal sem conhecer os dois vértices opostos, ou marcar a força ascensional de um corpo sem saber primeiro qual é a densidade desse corpo e a do meio em que se vai morrer. Estamos, portanto, em presença da terra: temos de descrevê-la em toda a variedade dos seus aspectos, dos seus

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acidentes geográficos, dos seus característicos de clima. Temos de tratar da extensa e opulenta flora que caracteriza as diferentes zonas, desde as intertropicais até as temperadas do Sul. Naturalmente a fauna aborígene, por menos importante que seja sob o ponto de vista industrial, não nos há de merecer menos atenção. Um grande cuidado teremos de pôr em dar, o mais minuciosamente que nos for possível, um quadro das riquezas de subsolo e de todos os elementos naturais dos outros dois reinos com que aqui conta a atividade industrial. Aberto o cenário, apresentaremos então o ator antecipando, a respeito dele, o que interessa conhecer, antes que por si mesmo, pela sua coragem pelas suas virtudes, pelas suas paixões, pelo seu espírito, pelo vigor do seu esforço, ele venha falar e dizer quem é. II – O homem aqui é um fator excepcionalmente curioso, porque é um produto de três raças inteiramente distintas: as duas raças subalternas – a amarela que aqui encontramos e a negra que foi importada – e a raça indo-europeia que para aqui se trasladou. É necessário um cuidado, uma atenção muito especial no estudo destes elementos e do modo como se fundiram, das proporções em que entraram no estofo étnico da sociedade que aqui se formou. De duas dessas raças, pelo menos – a branca e a africana – pode-se dizer que vinham do seu hábitat de origem e se estabeleciam num hábitat completamente novo: temos de estudar as modificações que nelas operou a deslocação. Pode-se fazer uma ideia do vasto campo que se dilata ante o nosso espírito, tendo de seguir a raça negra no caminho de dores por onde chegou a redimir-se e a incorporar-se no nosso organismo étnico, e tendo de acompanhar os aventureiros europeus na invasão do continente e os primeiros colonos escolhendo paragens em toda a vastidão do território que se lhes abria: todos atropelados de ânsia e a desvendar natureza inteiramente nova! Quanto às populações indígenas, é preciso reunir tudo o que sobre elas já conseguimos saber. Primeiro procuraremos: assinalar bem o caráter do selvagem que encontramos nesta parte do

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continente e as relações em que estavam com tribos de outras partes, discutir as origens das populações americanas, as suas línguas, as suas crenças, os seus costumes, o seu modo de vida, etc. Depois, veremos até que ponto levaram a resistência oposta aos invasores e a importância do contingente com que entraram no caldeamento geral. III – Ao tomar a tarefa de escrever a história do Brasil, o primeiro trabalho que se nos impõe– tanto por necessidade de método e ordem, como pela conveniência de delimitar a esfera dentro da qual se tem de agir – é esboçar um programa, tão minucioso e conciso quanto for possível, de toda a obra a executar. Esse programa há de ser uma síntese geral da obra e para o formular, o que é indispensável, antes de tudo, é fazer um inventário do material com que se vai jogar. O autor de uma das melhores histórias nacionais do povo americano que conhecemos, o Sr. Barros Arana, ao prefaciar a sua excelente História General do Chile, nota as dificuldades que tem de vencer quem se incumbe e de condensar fatos históricos relativamente a qualquer país da América. Essas dificuldades crescem, sobretudo, quando se trata de acontecimentos do período colonial, porque a maior parte da documentação indispensável se acha quase sempre nos arquivos das antigas metrópoles. O Sr. Barros Arana divide em três grupos as obras que constituem toda a literatura histórica do Chile. O primeiro grupo compreende o sem-número de crônicas e memórias avulsas dos contemporâneos. Estes eram quase todos soldados e aventureiros, homens sem instrução e muitos até sem vislumbre de imputabilidade. Têm o mérito de serem testemunhas presenciais dos fatos que narram, tornando-se, infelizmente, esse mérito muito restrito pela pouca fé que inspiram muitas das informações que nos deixaram. O segundo grupo é composto de monografias e teses, cujos autores, pela maior parte, são homens competentes, mas cujos trabalhos não passam de meros fragmentos, sem nexo histórico e por sua natureza incompletos e deixando grandes períodos inexplorados. O terceiro e último grupo compreende as histórias gerais quase todas

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também muito incompletas. Tudo isso que o autor chileno expõe no seu prefacio podíamos nós aplicar ao nosso país. A mesma divisão do material a ordenar é razoável que façamos, acrescentando, apenas, que nós outros já temos a nossa disposição, quanto a trabalhos do primeiro grupo, os mais fartos mananciais que, bem aproveitados, devem fornecer as mais abundantes colheitas a investigadores conscienciosos. Cabe aqui consignar o grande cuidado com que, desde meados do último século principalmente, se recolhem em todo o Brasil, todas as memórias, notícias, tradições de todo o gênero que possam vir a interessar ao historiador futuro. Por toda parte registra-se zelosamente tudo que se refere ao governo, à administração, às indústrias, às artes, às ciências, à vida coletiva, às populações indígenas. Em todas as nossas capitais existem hoje clubes e sociedades de eruditos que com afã se dedicam a estudar pontos da nossa história, a discutir fatos controversos, a recolher dados e a coligir documentos, sendo que muitos desses institutos já mantêm publicações periódicas que formam verdadeiros e preciosos repositórios de elementos do mais alto valor que transmitem aos vindouros. Entre esses institutos, é justo destacar os de São Paulo, de Recife, da Bahia; o Museu Goeldi do Pará, o Museu Paulista e especialmente essa notável associação que já conta 60 e tantos anos de uma existência laboriosa e utilíssima, havendo-se constituído o centro de tudo quanto, dentro desse longo período da nossa vida nacional, tem havido no país de mais excelente pela inteligência e pelo amor da pátria: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Só as coleções das revistas publicadas por todas essas sociedades formarão amanhã uma biblioteca importantíssima, de proveito incontestável para os que tiverem de estudar os vários departamentos da nossa vida. Além de tais publicações e das bibliotecas que têm conseguido formar todos esses institutos e outros congêneres, que não teríamos espaço para nomear, contamos com alguns arquivos especiais de história, com muitas bibliotecas públicas, bibliotecas de associações e algumas par-

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ticulares de inegável valor, onde se encontram documentos de preço e informações valiosas a coligir e a condensar. Ainda assim, no entanto, tudo isso anda longe de ser o máximo que é possível obter. Porque nós aqui podemos dizer o que diz o Sr. Barros Arana em relação ao Chile. A vida das antigas colônias esteve sempre estreitamente presa às respectivas metrópoles e é nos arquivos de além-mar que se reserva até hoje a maior soma de dados, pelo menos dos dados referentes ao Período colonial. O Sr. Barros Arana, enfrentando com a insuficiência dos arquivos do Chile, teve que recorrer aos da Espanha. Passou em Madrid mais de trinta anos a revolver coleções, a copiar documentos, a reunir a grande soma de materiais de que se utilizou para a sua obra, talvez, por isso em grande parte, a mais completa de todas as que se têm escrito no Sul América. IV – Nós estamos privados de semelhante subsídio. Temos que nos adstringir ao que é possível reunir aqui. Não só a impossibilidade de fazer explorações mais completas em Lisboa, em Madrid, em Sevilha e em Cádiz, como ainda nos arquivos de Roma, de Munique, de Viena, de Bruxelas e de Haia, conforme aconselhava, em 1843, o Dr. Carlos Frederico Ph. de Martius; não só essa impossibilidade, mas ainda a escassez do tempo de que dispomos para dar conta da presente obra, reduzem-nos à contingência de só fazer o que é, em tais condições, possível, aproveitando do melhor modo o que outros prepararam e que afinal, se não é muito, não deixa de valer sempre alguma coisa. Não pondo em cálculo o material informe existente nos nossos arquivos e bibliotecas – só os trabalhos de consubstanciação parcial já representam regular contribuição cujo proveito não se pode desconhecer. Temos a nosso alcance bom número de monografias, de memórias e narrativas, de teses e dissertações até de histórias particulares de alguns Estados; e tudo isto nos facilitará o arranjo do contexto histórico, simplificando-se, portanto, enormemente a nossa tarefa– a qual, como se vê, se reduz a uma classificação – apenas mais vasta talvez do que as existentes até

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agora– de todo o material com que tem de contar o historiador futuro. A este é que cumprirá estudar, fazer análises, fazer – se nos permite o termo – uma dissecção rigorosa e científica dos elementos que lhe forneceremos para a nossa psicologia de povo. Isto não quer dizer que nós vamos limitar-nos apenas a narrar secamente e sem alma a variedade de sucessos de que se trata; pelo contrário, quando pudermos fazer mais do que simples exposição, procuraremos logo apanhar a diretriz dos acontecimentos, medir, entender, ponderar o valor e a significação dos fatos, de forma a sugerir ao menos ao construtor que vier alguma coisa que o orienta. Mas faremos tudo com muita sinceridade à plena isenção de animo, sem nos mostrarmos preocupados do pensamento de fazer história onde a história não pode ainda ser feita. Por nossa parte, damos o que nos é possível, certo de que contribuímos, apenas, nas condições em que escrevemos, para que outros amanhã deem obra completa. V – Dividiremos, portanto, o presente trabalho em dez partes, sendo: I – O DESCOBRIMENTO; II – A TERRA; III – AS RAÇAS QUE SE FUNDIRAM; IV – A COLONIZAÇÃO; V – FORMAÇÃO DO ESPÍRITO NACIONAL; VI – INTEGRAÇÃO DO TERRITÓRIO E PRIMEIRAS IDEIAS DE INDEPENDÊNCIA; VII – O BRAZIL – SEDE DA MONARCHIA PORTUGUEZA; VIII – A INDEPENDENCIA; IX – O PERÍODO REGENCIAL; X – O SEGUNDO IMPÉRIO. Além dessas dez partes, daremos uma parte suplementar compreendendo os dez primeiros anos de república. PRIMEIRA PARTE – Constará de alguns capítulos preliminares sobre os antecedentes históricos do descobrimento, começando por um esboço da situação geral da Europa no século XV. O nosso intuito será dar uma ideia da ordem política no Velho Mundo, das relações em que se achavam os diversos povos europeus e sobretudo dos homens daquela época, das ideias dominantes, das opiniões, crenças, costumes, paixões, tendências características do tempo, de modo que se nos permita, em

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momento oportuno, formar juízo sobre o tipo humano que para aqui se trasladou. Mostraremos como a expansão para os mares, naquele momento, era uma consequência lógica do estado em que se achavam as populações arianas do continente, todas numa geral e vasta colisão desde o século IV, em seguida, no século VIII, sentindo-se afrontadas pela invasão dos árabes, até, que, em meados do século XV, a irrupção otomana vem dirigir, de modo decisivo, a ansiedade daquele mundo para as novas terras de cuja existência havia uns como pressentimentos e até tradições que seduziam o espírito de aventura, tão fundo e imperioso, obsedante mesmo na alma daquela época. Desenharemos um quadro do largo movimento de navegação que se inicia e que toma logo rápido e surpreendente impulso, destacando, sobretudo, a figura heroica de Portugal, a dianteira d’aquela cavalaria do Oceano, na frase de um historiador. O próprio Colombo ficará como dos maiores incidentes do ciclo lusitano. Fecharemos esta seção com os capítulos relativos à obra de Cabral. SEGUNDA PARTE – Ocupar-nos-emos da terra exclusivamente nesta parte: da natureza sob seus múltiplos aspectos e principalmente de tudo quanto de modo especial interessa à história: como o clima, os acidentes geográficos, o aspecto geral, os elementos econômicos. Daremos o mais minuciosamente que nos for possível, o que é característico da nossa flora e da nossa fauna, das nossas riquezas minerais – de todos os fatores, em suma, com que entra aqui a natureza na obra da civilização. Distinguiremos as diversas zonas que se divide o solo e procuraremos dar de todas uma notícia tão completa quanto nos permitirem os dados que conseguimos reunir – de modo que se possa formar uma justa ideia do hábitat geral das populações constitutivas da nacionalidade. TECEIRA PARTE – Nesta parte, trataremos dos diversos elementos que entraram na formação étnica da sociedade brasileira. Começaremos pelas populações indígenas; indagaremos da sua origem, do

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caminho provável que seguiram no continente; estudaremos as suas tradições, as suas crenças, os seus costumes, o seu grau de cultura, as suas línguas. Procuraremos dar ideia das afinidades existentes entre as diversas tribos e das relações que porventura ainda tivessem guardado com outros povos do continente. Daremos o prognóstico do destino provável da civilização indígenas e não tivesse sido interrompida pela conquista. Trataremos depois da raça branca, destacando bem a índole, o valor moral dos primeiros elementos que aqui vieram representar a cultura europeia. Em seguida, e por último, ocupar-nos-emos da raça africana, que veio tomar aqui o encargo de constituir, quase só por si, o contingente ativo de toda a economia da nova sociedade. Para assinalar o caráter das três raças e a influência exercida respectivamente na formação do nosso contexto étnico, veremos as lutas em que se puseram, sobretudo aquelas que representam protestos das raças assimiladas. QUARTA PARTE – Estudaremos aqui o modo como se operou a trasladação da cultura europeia para esta parte da América. Começaremos pelas primeiras explorações, vindo em seguida o estabelecimento da administração, o serviço da catequese, o primitivo regime econômico. Pondo em confronto o sistema colonial português com o da Inglaterra, assinalaremos as diferenças em que se filia em grande parte a diversidade de sucesso das respectivas colônias e mostraremos, portanto, como não é só a raça que explica a superioridade dos anglo-saxões na América. QUINTA PARTE – Ver-se-á nesta seção como a natureza do regime colonial criou na América latina males profundos e que um desses grandes males foi a antipatia irreprimível dos colonos pelas instituições da metrópole. Indicaremos ainda outros incidentes e vicissitudes da vida da colônia que entraram na geração do espírito americano, tais como o domínio de Espanha, as agressões estrangeiras, etc. Com a vitória do espírito local contra os intrusos, daremos os primeiros sinais da nossa cultura. SEXTA PARTE – Trataremos agora das colisões com a Espanha, principalmente no Sul. Indicaremos a tendência geral que se acentua

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contra o espírito, o governo, a administração, as tradições e as coisas do Velho Mundo e destacaremos o impulso que o ânimo alevantado do Marques de Pombal dera, talvez desapercebidamente, a semelhante tendência. Fecharemos esta secção apontando os indícios mais concretos e positivos do novo espírito, como sejam os primeiros sinais do movimento libertador e, sobretudo, o mais característico do ânimo geral ocorrido antes de 1822 – a conjuração de Minas. SÉTIMA PARTE – Desdobraremos aqui, aos olhos do leitor, os sucessos extraordinários ocorridos na Europa e que determinam o refúgio da família real no Brasil. Assinalaremos, dando uma notícia completa da obra de D. João VI, a influência que o notável acontecimento exerceu nos destinos da colônia. Mostraremos como desde o instante em que a corte chegou ao Rio de Janeiro se podia considerar como destacada a nova nacionalidade. É este um período importantíssimo de construção, durante o qual no Brasil repercutia o grande impulso que ao progresso geral do velho reino tinha valido o reinado de D. José I. OITAVA PARTE – Nesta oitava parte, trataremos da independência, fazendo ressaltar as figuras principais desse movimento – figuras que se podem ter como perfeitamente representativas, porque encarnavam o espírito geral naquele instante. Demonstraremos como a independência se faria fatalmente, mesmo que se não dessem as circunstâncias excepcionais que a facilitaram. Isso se há de ver daquele vigoroso espírito de pátria e daquele forte amor da liberdade, que primeiro atuaram sobre o temperamento cavalheiresco de D. Pedro, e que afinal, passado o entusiasmo da crise, tiveram que se pôr em conflito com a índole autoritária e quase impulsiva do primeiro imperador, levando-o à abdicação. NONA PARTE – Apresentaremos agora o sentimento nacional e o espírito de ordem passando as provações mais tremendas. Ver-se-á como os grandes homens da Regência acabaram, vencendo embaraços formidáveis, de crer a nação, conservando-lhe a unidade no meio da indisciplina geral que largar ensanchas encontrava no patriotismo das populações. Esta, mais

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exatamente do que a da independência, pode-se dizer que é a fase heroica da nacionalidade. Só se lhe pode comparar, descontadas as proporções, o movimento que aliou os pernambucanos do século XVII contra os holandeses. Procuraremos, portanto, dar todo o destaque possível e exato colorido aos estadistas que naquela grande época ilustraram a nossa história. DÉCIMA PARTE – Mostraremos, nesta parte, como ainda ao prestígio e ao influxo daqueles grandes homens que tinham amparado a nacionalidade nos momentos mais difíceis, desde 1921, devemos, no segundo reino, a normalização progressiva da ordem política, o incremento que rapidamente tomou toda a economia interna, a regularidade que se foi estabelecendo em todas as esferas da administração, começando o Brasil a destacar-se, perante as nações europeias, do espetáculo dos outros povos do Sul América, num estado de motim quase contínuo. Aqui terá lugar um esboço geral do desenvolvimento da nossa cultura, sob os diversos aspectos. Ver-se-á como, sobretudo depois da guerra contra Lopez e depois que regulamos definitivamente as velhas questões que tínhamos com os nossos vizinhos do Sul, o país entrou francamente numa fase de reformas ponderadas e caminhava a passos seguros para os seus destinos. PARTE SUPLEMENTAR – Além das dez seções que ficam indicadas, teremos de reunir ao menos os elementos melhor apurados relativamente aos primeiros dez anos do novo regime. Mostraremos, antes de tudo, como os sucessos de 15 de novembro de 1889 só podiam ter surpreendido os homens da alta política do império, alheios à vida e ao espírito regionalista das províncias, onde, mais que sentimentos monárquicos, havia a trabalhar a alma do povo as tendências liberais e talvez até o desamor pela realeza que a colônia preparara. Mostraremos o que era a alta política imperial, feita quase em família, centralizada na corte, de onde não se afastavam as grandes figuras, ficando, portanto, quase tão segregadas do povo como a dinastia. Explica-se assim como, no momento em que não mais teve por sustentáculos os grandes chefes do

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poder militar, o trono se viu desamparado, não sendo suficiente para apoiá-lo a lealdade com que os homens mais notáveis do país tinham preferências pela monarquia: para o que talvez mais concorressem as dolorosas provações que aos povos vizinhos ia custando o sistema republicano do que propriamente arraigados sentimentos monárquicos. Aí sem dúvida o grande erro. Não se pode duvidar de que um só, quanto mais uma ou duas gerações de estadistas notáveis, possa, com esforço e sabedoria, mudar a orientação histórica de um povo. Mas, para isso, é necessário, antes de tudo, que esses pró-homens se mostrem dominados de um ideal, e tão profundamente dominados, que semelhante ideal pareça, aos olhos das massas populares, ser o único legítimo e único possível. É preciso reconhecer que se não dava isso com os homens do império, sobretudo com os dos últimos tempos do segundo reinado. Os menos condescendentes, o mais que faziam era negar oportunidade ao regime que uma propaganda, aliás, feita sem grande alma, inculcava como superior ao monárquico. Sem assentar, portanto, nessa fé que só o inglês e o alemão conhecem, a monarquia no Brasil (país americano que tinha sofrido as vicissitudes que conhecemos) conservava-se artificialmente e não era capaz de resistir aos embates do espírito que o regime colonial, em trezentos anos, tinha criado aqui como em toda a América. No Brasil, esse espírito se desapercebeu no momento da independência, porque esta se tornou a causa dominante. Em seguida, a Regência, pela energia e talento dos seus homens, pode conter esse espírito. A guerra externa amorteceu-lhe os ímpetos por algum tempo. Encaminhado, porém, o país na vida normal, a antiga tendência, que não tinha morrido, reviveu. Reviveu, sobretudo depois que no Paraguai se gerou o orgulho militar e cresceu até o ponto de não mais permitir que o soldado continuasse a ter na política do país a posição subalterna que não tinha em mais nenhum outro da América. Sem Lopez talvez não se tivesse feito a república no Brasil em 1889. Rio, Maio, 1905.

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EUCLIDES DA CUNHA Discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras

apresentação Luiz Costa Lima1

Uma primeira diferença marca o texto de Euclides quanto a obras especificamente concernentes à história, a exemplo de Como Se Deve Escrever a História do Brasil, com que von Martius ganhara o concurso sobre o tema, aberto pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1840, e publicado em 1845, pela revista trimestral do IHGB; para não falar da História Geral do Brasil (1854-57) de Varnhagen: ao passo que estas tinham um evidente propósito historiográfico, a reflexão que Euclides desenvolve se cumpria no interior de sua recepção na Academia Brasileira de Letras (é logo publicada, em 19 de dezembro de 1906, no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e republicada, junto com a saudação de resposta de Sílvio Romero, na revista da ABL, ano II, nº 3, de 1911). Para o conhecedor da obra de Euclides da Cunha, não causa nenhuma estranheza que uma peça formal sua contivesse uma reflexão sobre a história do país. Pois tanto na única obra que publicara em vida, Os Sertões (1902), como nas reuniões de artigos contidas em Contrastes e confrontos (1907) e À Margem da história (1907), seu tema fundamental era a compreensão, que se queria científica, do país. Para fazê-lo, em primeiro lugar, se lhe impunha o mapeamento histórico-geográfico do país, que se cumprisse o quanto possível guiado pela apreciação empírica das regiões estudadas. Por isso mesmo, o “discurso” principia recordando sua recente viagem à Amazônia, a que

fora enviado comandando a expedição oficialmente encarregada da fixação dos limites territoriais com o Peru e a Bolívia. 1  Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Bolsista de Produtividade em Pesquisa 1A do CNPq.

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Tamanha era a obsessão de Euclides pelo conhecimento do país que, assim como a primeira parte de Os Sertões era constituída pela análise dos componentes da terra, assim também, por diversa que fosse a situação em que agora se encontrava, a primeira parte do “Discurso”era formada pelo registro de sua impressão da região amazônica. Porém, mais relevante que a correspondência com a “A Terra”, n’Os Sertões e as primeiras páginas do “discurso” é a absoluta diversidade dos juízos então expostos. N’Os Sertões, havia dominado a hipótese do desmoronamento de “o antiquíssimo Himalaia brasileiro”, com ênfase sobre o caráter de “estranho território”, constituído por “fundos vales de erosão” e “majestosas ruinarias de castelos”, na vasta paisagem estendida em torno do rio São Francisco. O território relatava a ruína geológica que sofrera por tempo imemorial. Agora, diante da Amazônia, a sensação que o invade é a oposta: a de encontrar-se diante de “a gestação do mundo”. A oposição assinalada, contudo, estaria longe de bastante. Dois dados extras precisam ser destacados: 1. A subordinação do que presencia ao que lera. Ou seja, a subordinação do fato à sua interpretação; 2. O papel que, na descrição, terá uma retórica de patente pretensão literária. Desenvolvamos as duas observações em separado. 1. Ao passo que, n’Os Sertões, o caráter da terra em desagregação aponta para algum naturalista que se distanciava das fantasias românticas sobre a região, no caso da Amazônia, já os primeiros parágrafos assinalam a importância decisiva que terá sobre Euclides o texto do naturalista Jacques Huber, a quem conhecera no Museu do Pará. E, na verdade, Euclides não se acanha em descrever sua primeira impressão da terra e como a competência do cientista o levará a invertê-la. Ao contato inicial, “a entrada da Amazônia” lhe parecera apresentar-se como “uma superfície líquida, barrenta e lisa, indefinidamente desatada para o norte e para o sul [...] “ uma espécie de naufrágio da terra”, algo que, enquanto imagem negativa, corresponderia ao desmoronamento do Himalaia,

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descrito n’Os Sertões. Já a monografia que escrevera Huber não só faz com que se corrija senão que o enchia de entusiasmo: “[...] O que se me abria às vistas desatadas naquele excesso de céus por cima de um excesso de águas, lembrava [...] uma página inédita e contemporânea do Gênesis. [...] Atentei outra vez nos baixios indecisos [...] – e vi a gestação de um mundo”. Mal o formula, Euclides logo ressalta a quem deve haver escapado do equívoco. É bastante provável que a passagem que se transcreve seja uma das capitais para a compreensão da inteireza da obra de Euclides: “Prossegui a viagem sob um novo encanto, mas com uma preocupação desanimadora. [...] A nova impressão verdadeiramente artística, que eu levava, não ma tinham inspirado os períodos de um estilista. O poeta que a sugerira não tinha metro, nem rimas: a eloquência e o brilho dava-lhos o só mostrar algumas aparências novas que o rodeavam, escrevendo candidamente a verdade”. A monografia sobre a Amazônia que Huber redigira é a responsável pela transformação que se opera em Euclides. Por ela, assim como n’Os Sertões já provocara a leitura de outros cientistas, “me desviei, sobremodo, dessa literatura imaginosa, de ficções, onde desde cedo se exercita e se revigora o nosso subjetivismo”. Ou seja, naturalistas, geólogos e demais especialistas no exame do solo davam a Euclides o que ele julgava ser matéria firme que exprimisse com veracidade a “terra ignota” que continuava a ser o seu país. Tal veemente exaltação da ciência, no entanto, não impede que a eloquência da frase euclidiana procurasse a entonação literária. Aquela se mistura com esta e dá o tom peculiar à formulação de Euclides. A leitura inteira do “Discurso” seria sua prova. Se preferirmos, tomemos uma passagem exemplar: “Imaginai uns tristes poetas pelo avesso: arrebata-nos também o sonho, mas, ao invés de projetarmos a centelha criadora do gênio sobre o mundo que nos rodeia, é o resplendor deste mundo que nos invade e deslumbra”.

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A passagem tem seu entendimento facilitado a partir da passagem “ao invés de projetarmos a centelha criadora do gênio...”. Como é sabido, para os românticos a “centelha criadora do gênio” era privilégio dos autênticos poetas. Quem seriam, pois, os “tristes poetas pelo avesso” senão os cientistas? A qualificação de “tristes” é o que em retórica se chamaria de antífrase. Euclides faz o elogio do cientista pelo avesso: o cientista é um poeta a que não faz falta a centelha atribuída aos gênios, porquanto oferece “o resplendor deste mundo que nos invade e deslumbra”. O trecho transcrito, por conseguinte, sintetiza toda a concepção de Euclides sobre a relação entre escrita literária e fazer científico, assim como entre a base geofísica e a compreensão historiográfica. É o que deveremos mais bem precisar agora tratando da segunda observação: 2. O leitor de Euclides não hesitará em lhe atribuir uma escrita empolgada, eloquente, que vibra pela altissonância de sua construção. As passagens transcritas ou comentadas já o mostram. Acrescente-se tão só um pequeno trecho da primeira impressão que a Amazônia lhe causava, antes de ser retificada pela leitura de Huber. Ela participa das primeiras frases do “Discurso”: “[...] O que prefigurava grande era um diminutivo: o diminutivo do mar, sem o pitoresco da onda e sem os mistérios da profundura”. Como enunciado desta ordem poderia se conciliar com uma forma de expressão que lhe pareceria por completo inadequada? A questão, entretanto, não era para Euclides transtorno algum. Para ele, a relação entre escrita literária e científica (no seu caso, sob a forma historiográfica) encontrava uma solução que podemos chamar “arqueológica”. Ou seja, tudo consiste em saber distingui-las entre a camada de superfície e a que constituirá a camada profunda. Era o que bem formulava em carta de 3 de dezembro de 1902 a José Veríssimo, a propósito da linguagem que fizera presente n’Os Sertões: “[...] O consórcio da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, é hoje a tendência mais elevada

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do pensamento humano. [...] Eu estou convencido que a verdadeira impressão artística exige, fundamentalmente, a noção científica do caso que a desperta [...]” (GALVÃO; GALOTTI, 1997: 142-143). Assim, em vez de reiterar com Veríssimo que Os Sertões combinava tudo com tudo – “O livro, por tantos títulos notável, do Sr. Euclides da Cunha, é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista...”, etc., etc.–, Euclides distinguia, em sua obra, o cerne – “a noção científica do caso que o desperta” de “a verdadeira impressão artística”, a camada aparente, de superfície (VERÍSSIMO, 1977: 45). Ao distinguir as camadas, Euclides estabelecia um ponto bastante delicado – que seus especialistas até hoje ou não entendem ou preferem não abordar. Reconhecia que os tratamentos científico e literário exigem linguagens diferenciadas. (Hoje diríamos que são formações discursivas bastante distintas). Euclides o reconhecia e praticava. A eloquência estilística desempenharia o papel de oferecer “a síntese mais delicada”, que compensaria “a aridez característica das análises e das experiências”. Passando até hoje ignorada pelos que costumam escrever sobre Os Sertões, a questão, levantada há 15 anos, não tem provocado nem réplica, nem discussão (COSTA LIMA, 1997). Recentemente, ela mostrou outro ângulo graças ao amigo e historiador Valdei Lopes de Araújo, que me apontou para uma certa passagem de José Bonifácio de Andrada e Silva. Enquanto secretário da Academia de Ciências de Lisboa, o futuro “patriarca da independência” escrevia que, ao contrário dos contemporâneos que só prezam as ciências naturais e exatas, reconhecia que, “por mais sublimes que sejam aquelas verdades, para serem úteis e generalizadas precisam de aparecer com ornato e atavios, que só lhes podem dar as Belas-Letras” (ANDRADA

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E SILVA, 1839: 50). Se “os ornatos e atavios” cabem às belas-letras, elas são necessárias como ornamentos, e não por mérito do “esplendor das ciências indispensáveis” (ANDRADA E SILVA, 1839: 50). Pelo “Discurso” na ABL, Euclides tornava público um juízo que antes tinha reservado a uma carta privada, e dava condições de que se compreendesse seu modo de trabalho. Pela passagem de José Bonifácio, sabe-se agora que o fundamento de Euclides se encontrava em documento escrito em português e da autoria de uma figura que a intelligentsia nacional não poderia deixar esquecida. E, contudo, entre 1817 e 1906, os ouvidos permaneceram surdos. E até hoje assim têm permanecido. Tudo que foi escrito até aqui não cobrirá mais do que as páginas iniciais do “Discurso” de Euclides. Elas formam como que um enorme parêntese que anunciava a maneira mesma como ele se via a si como escritor. Via-se como escritor pelos “ornatos e atavios” com que tornava agradável o conhecimento que se esforçava de trazer de sua terra. Mas o parêntese constituído por aquelas páginas de abertura já seria muito longo e o novo acadêmico teria que cumprir o ritual da casa. Esse ritual dele exigia que fizesse, em primeiro lugar, o elogio do patrono da cadeira que passava a ocupar. A ele, Castro Alves, Euclides se referia como poeta à antiga; em suas palavras, um “incorrigível fabricante de quimeras”. Depois, havia de passar a seu predecessor, Valentim de Magalhães, a quem haveria de dedicar a maior parte de sua saudação. Ao tratar do patrono e do predecessor, Euclides cumpria o que dele era exigido. Por isso grande parte de sua fala não tem aqui importância. Em troca, o parêntese que ressaltamos é fundamental para uma compreensão de Euclides que, em geral, continua a nos faltar. Caso se duvide do que se afirma, será bastante que se leia a enorme saudação de resposta de Sílvio Romero: não só ele não estava interessado no que Euclides generosamente explicava, como tampouco tinha interesse na preciosa revelação.

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referências ANDRADA E SILVA, José Bonifácio. “Elogio acadêmico da Senhora D. Maria Primeira” (1817), conforme edição da Tipografia Imparcial de Francisco Paula Brito, Rio de Janeiro, 1839, republicado em Obras científicas, políticas e sociais, Edgard Cerqueira Falcão (Org.), v. II, 1963, sem indicação de local. COSTA LIMA, Luiz. Terra ignota. A construção de Os Sertões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. CUNHA, Euclides da. “Carta a José Veríssimo de 3 de dezembro, 1902”. In: GALVÃO, Walnice Nogueira; GALOTTI, Oswaldo (Orgs.). Correspondência de Euclides da Cunha. São Paulo: EDUSP, 1997. VERÍSSIMO, José. “Campanha de Canudos” (1902)”. In: Estudos de literatura brasileira, 5ª série (1905). São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1977.

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discurso de posse na academia brasileira de letras1 Euclides da Cunha

Há dois anos entrei pela primeira vez naquele estuário do Pará, “que já é rio e ainda é oceano”, tão ineridos estes facies geográficos e mostram à entrada da Amazônia. Mas contra o que esperava não me surpreendi... Afinal, o que prefigurara grande era um diminutivo: o diminutivo do mar, sem o pitoresco da onda e sem os mistérios da profundura. Uma superfície líquida, barrenta e lisa, indefinidamente desatada para o norte e para o sul, entre duas fitas de terrenos rasados, por igual indefinidos, sem uma ondulação ligeira onde descansar a vista. De permeio baixios indecisos, varridos das maretas, mal desenhando-se grosseiramente à tona, à maneira de caricaturas de ilhas; ou ilhas rasas, meio sorvidas pelas marés, encharcadas de brejos – uma espécie de naufrágio da terra, que se afunda e braceja convulsivamente nos esguios reforçados dos mangues... Por cima os céus, resplandecentes e vazios, recortando-se no círculo perfeito dos horizontes como em pleno Atlântico. Nada mais. Calei um desapontamento; e no obstinado propósito de achar tudo aquilo prodigioso, de sentir o másculo lirismo de Frederico Hartt ou as impressões “gloriosas” de Walter Bates, retraí-me a um recanto do convés e alinhei nas

1  Discurso proferido por conta da recepção na Academia Brasileira de Letras, em 1906. Edição do texto consultada: CUNHA, Euclides. “Discurso de Euclydes da Cunha”. In: Revista da Academia Brazileira de Letras, a. II, n. 3, 1911. As notas seguem conforme notação feita pelo autor (N.O.).

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folhas da carteira os mais peregrinos adjetivos, os mais roçagantes substantivos e refulgentes verbos com que me acudiu um caprichoso vocabulário... para ao cabo desse esforço rasgar as páginas inúteis onde alguns períodos muito sonoros bolhavam, empolando-se, inexpressivos e vazios. Desci para um escaler. Saltei em Belém. E a breve trecho achei-me naquele Museu do Pará, onde se sumariam as maravilhas amazônicas. Lá encontrei dois homens: Emilio Goeldi, que é um neto espiritual de Humboldt, e o Dr. Jacques Huber, menos conhecido, botânico notabilíssimo, bem que nada nos recorde dessas figuras oleográficas de sábio saxônico, de faces engelhadas e ralas farripas melancólicas. É um espírito sutilíssimo servido por um organismo de atleta, entroncado e mássico: vir quadratus como deve ser o naturalista, porque as ciências naturais exigem hoje uma sorte de titãs pensadores, em que os cresçam com o cérebro, por maneira que a inervação vibrátil e poderosa se justaponha a uma compleição inteiriça e resistente feita para as rudes batidas do deserto. Aquele sábio resolve um passeio de seiscentas léguas, de Belém às margens do Ucayale, em menos tempo que qualquer de nós uma viagem até a Gávea. Atravessei a seu lado duas horas inolvidáveis – e ao tornar para bordo levei uma monografia onde ele estuda a região que me parecera tão desnuda e monótona. Deletreei-a a noite toda; e na antemanhã do outro dia – um daqueles “glorious days” de que nos fala Bates, subi para o convés de onde, com os olhos ardidos de insônia, vi, pela primeira vez, o Amazonas... Saltou-me, afinal, a comoção que eu não sentira. A própria superfície lisa e barrenta era outra. Porque o que me abria às vistas desatadas naquele excesso de céus por cima de um excesso de águas lembrava (ainda incompleta e escrevendo-se maravilhosamente) uma página inédita e contemporânea do Gênesis. Compreendi o ingênuo anelo de Cristóvão da Cunha: o grande rio devera nascer no Paraíso.

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Atentei outra vez nos baixios indecisos, nas ilhas ou pré-ilhas meio diluídas nas marejadas – e vi a gestação de um mundo. O que se me afigurara um bracejo angustioso era um arranco de triunfo. Era a flora salvando a terra numa luta onde vislumbra uma inteligência singular: aqui enfileirando as aningas de folhas rijas, rebrilhantes e agudas à feição de lanças, em estacadas unidas para o combate das águas; além, estendendo filtros de canaranas e dos aturizais; por toda a banda, alongado e retorcendo os tentáculos flexíveis dos mangues em urdiduras inextrincáveis, em cujas malhas infinitas o lodo quase diluído vai transmutando-se em solo resistente; inventando depois a anomalia dos arbustos-cipós e ajustando sobre tudo aquilo os longos traços de união dos galhos estirados das apuiranas e dos juquiris – até cravar-se no primeiro firme, que se vai construindo um alto miritizeiro, abrindo no azul os seus enormes leques sussurrantes e prenunciando a floresta que vem toda a monotonia daquela imensidade nivelada com as frondes das samaunas, altas e redondas, a ondearem nos sem-fins das paisagens como se fossem colinas... Compreendi os mesmos céus resplandecentes e limpos: e que a terra toda surge à flor das águas e emerge mais e mais, crescendo na ascensão da seiva das florestas atraídas vigorosamente pelas energias incomensuráveis da luz. Prossegui a viagem sob um novo encanto, mas com uma preocupação desanimadora. Com efeito, a nova impressão verdadeiramente artística, que eu levava,não m’a tinham inspirado os períodos de um estilista. O poeta que a sujeira não tinha metro, nem rimas: a eloquência e o brilho dava-lh’os o só mostrar algumas aparências novas que o rodeavam, escrevendo candidamente a verdade. O que eu, filho da terra e perdidamente namorado dela, não conseguira demasiando-me no escolher vocábulos, fizera-o ele usando um idioma estranho gravado do áspero dos dizeres técnicos. Avaliei então quanto é difícil uma coisa trivialíssima nestes tempos, em que os livros estão atulhando a terra, escrever...

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E aquela preocupação, meus eminentes confrades, é a mesma que me constrange no momento de ocupar a cadeira que solicitei e a vossa bondade me emprestou. Não sendo esta investidura uma consagração, mas um tácito compromisso de altear-me por outros trabalhos até a vossa nobilitadora simpatia, imaginai os meus desalentos diante de uma tal empresa. O caso que vos citei é expressivo. Delata que me desviei sobremodo, dessa literatura imaginosa, de ficções, onde desde cedo se exercita e se revigora o nosso subjetivismo, tão imperioso por vezes que faz o escritor um minúsculo epítome do universo, capaz de o interpretar a priori como se tudo quanto ele ignora fosse apenas uma parte ainda não vista de si mesmo. Escritor por acidente – eu habituei-me a andar terra a terra, abreviando o espírito à contemplação dos fatos de ordem física adscritos às leis mais simples e gerais; e como é nesta ordem de fenômenos que se aferem, mais de pronto, as transformações contínuas da nossa inteligência, vai-se-me tornando mais e mais difícil esse abranger os caracteres preexcelentes das coisas, buscando-lhes as relações mais altas e formadoras das impressões artísticas, ou das sínteses estéticas. Realmente, ao contrário do que se acredita, no terreno mássico das indagações objetivas, ao rés das existências, há uma crescente instabilidade. O poeta, o sonhador em geral, quem quer que se afeiçoe a explicar a vida por um método exclusivamente dedutivo, é soberano no pequeno reino onde o entroniza a sua fantasia. Nós, não. Os rumos para o ideal baralha-nos o próprio crescer do domínio sobre a realidade, como se à hierarquia lógica dos conhecimentos positivos acompanhassem, justalinearmente, as nossas emoções sempre mais complexas e menos exprimíveis. Sobretudo menos exprimíveis. No submeter a fantasia ao plano geral da natureza, iludem-se os que nos supõem cada vez mais triunfantes e aptos a resumir tudo o que vemos no rigorismo impecável de algumas fórmulas incisivas e secas. Somos

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cada vez mais frágeis e perturbados. No perpétuo desequilíbrio entre o que imaginamos e o que existe, verificamos, atônitos, que a idealização mais afogueada apagam-no-la os novos quadros da existência. Mesmo no recesso das mais indutivas noções, não é fácil saber, hoje, onde acaba o racionalismo e principia o misticismo – quando a própria matéria parece espiritualizar-se no radium, e o concreto desfecha no translúcido e no intáctil; ou entram, improvisadamente, pelos laboratórios, renascidas, as quimeras transcendentais dos alquimistas... Assim, “diante da realidade crescente – consoante o dizer do menos sonhador dos homens, Rumford – o nosso espírito está em contato com um maravilhoso que faz empalidecer o de Milton”. Imaginai uns tristes poetas pelo avesso; arrebata-nos também o sonho, mas, ao invés de projetarmos a centelha criadora do gênio sobre o mundo que nos rodeia, é o resplendor deste mundo que nos invade e deslumbra”. Avaliai, portanto, os meus embaraços ao ocupar a cadeira de Castro Alves. Estou, mais uma vez, ante uma grandeza que à primeira vista não admiro porque não a compreendo. O que os maiores engenhados pela nossa ardente afetividade, mas como tantos outros que aí andam dobrando os joelhos diante de todas as virtudes e aformoseando, todos os pecados. Recito-lhe os versos; e a breve trecho, sobretudo se insisto na maneira que tanto o extrema dos demais cantores, o meu espírito fatigasse, sem essa intensa afinidade de estímulos que forma o parentesco virtual entre o pensador e os que o leem. Por fim, quedo-me atônito ante uma espécie de Carlyle da rima – extravagante, genial, rebelde – que nos abala poderosamente em cada verso, mas cuja ação é infinitamente breve, como a de uma pancada percutindo e morrendo ao fim dos hemistíquios. Fascinado pelo fulgor de sua idealização exagerada, assisto ao abstruso de uma mascarada indescritível, onde se misturam, emparceirando-se nas mesmas farândulas tumultuárias, reis decaídos, pontífices em apuros, heróis “que tropeçam na eternidade”, mártires a entrarem, trôpegos e aos cambaleios, pela história dentro, “estuários de

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colossos”, e caboclos nus, espantados... Aqui, “as cortinas do infinito” descerradas à perspectiva de novos continentes; além, a cordilheira de píncaros fantásticos que “como braços levantados apontam para a amplidão”; mais longe, dentre um fragor de rimas clangorosas. Os oceanos em tropa e a imaginativa esgota-se acompanhando o desmentido de um arrancado voo de leviatãs alados, que passam, imprimindo nos cenários o trágico pré-esquilano das remotas idades geológicas... Tudo isto a tumultuar entre as fronteiras da geografia romântica de um mundo todo errado, que durante algum tempo teve o polo norte em Jersey e o polo sul em Santa Helena. O infinito acode submisso ao reclamo das rimas imperativas, e Deus – um Deus democrata e meio voltaireano – associa-se de boa sombra àquele desvairado panteísmo, e desce a toda hora das alturas, assumindo a chefia dos povos, ou bradando com ingênuo entusiasmo: marchar... Ora, ante estas coisas imponentes e fragílimas, tornam-se à primeira vista opináveis o renome e o valor de tão incorrigível fabricante de quimeras. Hoje as suas criações singulares sobressalteiam, não comovem. Reconhecemo-nos do melhor grado incapazes de fazê-las, consolando-nos com o reconhecer que não precisamos realizá-las e que se as fizéssemos teríamos feito muito pouco. Mas este conceito é, evidentemente, precipitado e falso... Diante destas grandezas morais, como diante das grandezas físicas, a nossa admiração tem ainda muito do espanto inexpressivo dos selvagens. Castro Alves, como outros representantes naturais da nossa raça, é ainda um incompreendido – porque assim como não temos uma ciência completa da própria base física da nossa nacionalidade, não temos ainda uma história. Não aventuro um paradoxo. Temos anais, como os chineses. À nossa história, reduzida aos múltiplos sucessos da existên-

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cia político-administrativa, falta inteiramente a pintura sugestiva dos homens e das coisas, ou os travamentos de relações e costumes que são a impressão indispensável ao desenho dos acontecimentos. Está como a da França antes de Thiérry. Não lhe escasseiam fatos, episódios empolgantes e alguns atores esculturais que embalem o nosso orgulho. Mas o seu discurso é obscuro – e desdobra-se tão mecanicamente e sobremaneira monótono que nos não permite ouvir, através do estilo incolor dos que a escreveram, a longínqua voz de um passado que entre nós falou três línguas. É talvez certa, torturantemente certa, no fixar não sei quantas datas e lugares, ou compridos nomes de bispos e governadores, mas fala-nos tanto da alma brasileira como a topografia nos fala das paisagens. Lendo-a e relendo-a, acode-me sempre o pensamento de Macaulay no demarcar nesta esfera literária um domínio comum da fantasia e da razão, destinado aos eleitos que sejam ao mesmo passo filósofos e poetas– porque, se tivemos um Porto Seguro e um Robert Southey para relacionarem causas e efeitos e respingarem nos velhos acontecimentos algumas regras de sabedoria política, certo ainda não tivemos um Domingos Sarmiento ou um Herculano que nos abreviasse a distância do passado e, num evocar surpreendente, trouxesse aos nossos dias os nossos maiores com os seus caracteres dominantes, fazendo-nos compartir um pouco as suas existências imortais... Se tal acontecesse, eu não me demoraria tanto diante da memória sagrada do poeta. Recordaria apenas, de relance, a mais nobre das nossas lutas; a campanha abolicionista, que vindo do princípio ao fim do século XIX, da ditadura mansa de D. João VI aos últimos dias do Império, de Hipólito da Costa a Joaquim Nabuco, foi a “guerra dos cem anos” da liberdade civil neste país. E considerando-a, senão na sua tese mais decisiva, no seu período mais brilhante, em que tanto a aviventaram as mais ardentes emoções estéticas, eu não me afadigaria em alinhar tantas frases inexpressivas.

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Recitaria as “Vozes d’África”... Então o que se nos afigura um quimerizar adoidado resultaria lógico; e naquelas visões radiosas veríamos os reflexos de um ideal, aparecendo na esplêndida desordem de inesperado triunfo depois de longo sequestro pelos desvãos mais obscurecidos do passado. E assentaríamos que aquela palavra, onde havia as esperanças de uma raça titânica, que durante trezentos anos trouxe ao colo a nossa nacionalidade criança, graças à cândida afetividade selvagem que lhe modificara os ímpetos da revolta – aquela palavra para ser artística, para ser a expressão vibrante de uma realidade dolorosa, para ser sincera, e portanto, simpática, senhoreando os corações e irmanando-os solidários e unidos diante do destino e da vida, devia ser o que foi, nas suas cruezas, nos seus lances ensofregados, nos seus atrevimentos, nas suas rebeldias, nas suas obscuridades cindidas de repentinos resplendores, no fragor de suas sílabas agitadas a zunirem, a estourarem, a crepitarem e a retinirem como ressonâncias de batalhas, no vulcanismo de suas imagens rútilas e adustivas, nos estiramentos de suas hipérboles nas transfigurações de suas metáforas, no bíblico formidável de suas apóstrofes, no simbolismo maravilhoso de suas alegorias, no entrechocar-se de suas antíteses sucessivas – e até naquele abuso imoderado do infinito, onde se denuncia a tendência a universalizar-se do poeta. A este propósito acode-me um pensamento de Littré: “Se a Ilíada com toda a sua mirífica poesia aparecesse perfilhada pela arte do nosso tempo, seria informe e pueril”. Por outro lado, Dante, se vivesse dois séculos antes, desapareceria entre os trovadores anônimos; Shakespeare no século XIV seria um fazedor de “Mistérios” – e nestes dias não escreveria Macbeth, escreveria os Spectros, assinando-se Ibsen... Se se explicam estes gênios estranhos à luz do princípio geral da relatividade, por que não o aplicar também ao grande poeta? De mim não o justifico apenas. Admiro-o. Qualquer que seja a nossa altitude vindoura teremos sempre nas quarenta páginas do “Manuscrito de Stenio” – os estímulos mais nobres do passado.

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Elas estão para o nosso destino como as singulares “Canções da Espada”, de Th. Koerner, e os singularíssimos “Sonetos Couraçados”, de Fred. Ruckert, para os triunfos imponentes da Alemanha. Certo, não deleitam mais, e não há aí miopia intelectual que não lhes veja defeitos. Passaram. Mas ligaram para sempre, sob a inspiração de uma boa vontade varonil, os melhores aspectos do nosso heroísmo aos aspectos mais encantadores da nossa força. Castro Alves foi dos nossos últimos românticos. Depois dele, em todo o período que vem de 1875 até hoje, temos mudado muito e vamos mudar ainda, sem que se note uma situação de parada, das que se fazem ao menos para se avaliar quanto se andou. É natural. Realizamos duas empresas a que nos impeliam as nossas tradições, e vamos agora arrebatados nas correntes novas que delas se derivaram. Mas, infelizmente, a par destas energias próprias, tivemo-nas estranhas. O quinquênio de 1875-1880 é o da nossa investidura um tanto temporal na filosofia contemporânea, com os seus vários matizes, do positivismo ortodoxo ao evolucionismo no sentido mais amplo, e com as várias modalidades artísticas, decorrentes, nascidas de ideias e sentimentos elaborados fora e muito longe de nós. A nossa gente, que bem ou mal ia seguindo com os seus caracteres mais ou menos fixos, entrou, de golpe, num suntuoso parasitismo. Começamos a aprender de cor a civilização: coisas novas, bizarras, originais, chegando, cativando-nos, desnorteando-nos e enriquecendo-nos de graça. A inteligência brasileira sentia a ventura radiosa da Cendrillon pompeando o fausto gratuito de uma fantasmagoria simpática. Diante de novos descortinos mais amplos, partiu a cadeia tradicionalista que se dilatara até aquele tempo com Alencar e Porto Alegre, e atirou-se para a frente quase envergonhada da sua situação anterior, que entrou a desquerer, repulsando os seus melhores nomes, e sugerindo um protesto tranquilo, laivado de elegante ironia, de alguém que teve o ensejo de a ver naquele

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momento e de acompanhá-la até hoje, até o instante em que vos falo. Sem alentados dizeres, o mestre, que hoje nos preside e guia, apontou então, sorrindo, os perigos de uma avançada de bandeiras, à semelhança de uma fuga. Pelo menos tudo aquilo era ilógico. O espírito nacional reconstruía-se pelas cimalhas, arriscando-se a ficar nos andaimes altíssimos, luxuosamente armados. Os novos princípios que chegavam não tinham o abrigo de uma cultura e ficavam no ar, inúteis, como forças admiráveis, mas sem pontos de apoio; e tornaram-se frases decorativas sem sentido, ou capazes de todos sentidos; e reduziram-se a fórmulas irritantes de uma caturrice doutrinária inaturável; e acabaram fazendo-se palavras, meras palavras, rijas, secas, desfibradas, disfarçando a pobreza com a vestimenta dos mais pretensiosos maiúsculos do alfabeto. Houve então o soleníssimo préstito do Determinismo da Evolução, do inconsciente, do incognoscível; em que se amuletavam, intrusas, algumas velhas carpideiras do romantismo: a Justiça, a Escola e a Liberdade... Assim, não maravilha que a nova geração, do avançar aforado, não soubesse, afinal, para onde seguir. Apenas um exíguo grupo se destacou: arregimentou-se em torno de um filósofo; e afastou-se. Ninguém mais o viu – e mal se sabe que ele ainda existe, reduzido a dois homens admiráveis, que falam às vezes, mas que se não ouvem, de tão longe lhes vem a voz, tão longe eles ficaram no território ideal de uma utopia, no dualismo da positividade e do sonho... O resto ficou numa fronteira indecisa a tatear dentro de uma miragem que, à falta de melhor nome, se chamou durante muito tempo a Ideia Nova. Que era a Ideia Nova? Eu poderia responder-vos que era uma coisa muito velha, uma curiosa infantilidade de cabelos brancos, ou uma novidade de cem anos – mas prefiro a palavra de um poeta do tempo. Escutemo-lo:

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Está deserto o céu. No grande isolamento... Palpita ensanguentado o sol – um coração Mas os deuses de Homero, o Jeová sangrento, Alá e Jesus Cristo, os deuses onde estão? Morreram. Era tempo. Agora encara a terra, Ressoa alegre a forja e sai da Escola um hino. O gênio enterra o mal em uma negra cova. Deus habita a consciência. O coração descerra Aos ósculos do Bem o cálice purpúreo. Vem perto a Liberdade. É isto a Ideia Nova.

Os versos são de 1879 e o poeta, à volta dos vinte anos, chamava-se Antônio Valentim da Costa Magalhães. Nascido em 1859 nesta capital – aquela data e este lugar são elementos dignos de nota na sua formação. Já se tem feito um confronto instrutivo dos nossos escritores do norte e do sul. Talvez fosse mais útil defrontar os que se formam na orla litorânea sob a luz variamente refletida da cultura europeia com os que passam as primeiras quadras no remanso das gentes sertanejas, mais em contato com o gênio obscuro das nossas raças. Neste ponto o regime moral do Brasil reproduz a sua inegável anomalia climática: varia mais em longitude do que em latitude. Mas não me alongarei por aí. Notarei apenas que os primeiros quinze anos de Valentim Magalhães coincidem com uma fase de profundas mudanças da nossa existência política. De 1860, ao levantar-se o preamar democrático, simbolizado em Theophilo Ottoni e rugindo na “Mentira de Bronze” de Pedro Luiz, a 1870 e 1875, quando a monarquia perdeu, uma após a outra, as muletas da aristocracia territorial e da Igreja – foi tão intensiva a decomposição do antigo regime que o simples enfeixar as frases acerbas dos maiores chefes e seus partidos é uma missão de Tácito, e não se compreende que se perdesse tanto tempo para realizar-se o passeio marcial de 15 de novembro de 1889. Assim a juventude do escritor aparelhava-se para a vida quando em torno a sociedade se alterava, apercebendo-se de novos elementos para existir; e isto precisamente no cenário mais revolto de uma tal metamorfose.

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A geração de que ele foi a figura mais representativa devia ser o que foi: fecunda, inquieta, brilhantemente anárquica, tonteando no desequilíbrio de um progresso mental precipitado a destoar de um estado emocional que não poderia mudar com a mesma rapidez; e a sua vida, a sua carreira literária vertiginosa, toda disposta a nobilíssimas tentativas reduzidas a belíssimos preâmbulos, a nossa própria vida literária, impaciente e doidejante, brilhando fugazmente à superfície das coisas, inapta às análises fecundas pelo muito ofuscar-se com as lantejoulas das generalizações precipitadas. Nada sei, infelizmente, dos primeiros tempos em que a sua educação se delineou. Em 1887, contando apenas dezoito anos, matriculou-se na Faculdade de Direito de S. Paulo – e daí por diante, sem um hiato, encadeiaram-se-lhe os dias numa atividade pasmosa. Assim é que para logo colaborou em três periódicos acadêmicos, a Revista de Direito e Letras, o Labarum, onde fulgia o esplêndido humorismo de Eduardo Prado, e a República, onde Lúcio de Mendonça açacalava as suas rimas golpeantes. Noviciando nas letras, Valentim revelou de pronto uma jovialidade transbordante, que foi o traço mais duradouro da sua móvel fisionomia literária, e uma aptidão para o jornalismo, que a breve trecho, em 1878, o tornou aturado colaborador dos melhores jornais do Rio e S. Paulo. Em 1879, já era autor de três opúsculos, Ideias de Moço, Grito na Terra e General Osório, escritos a duas penas com Silva Jardim, e de um livro de versos Cantos e Lutas, onde lhe germinou o renome. Precipito, acinte, as datas e os livros. É o melhor comentário a sua carreira. Em 1880, ainda estudante, desposou a nobilíssima senhora que tanto lhe aformoseou a vida, e, mau grado os novos deveres adquiridos, escreveu apaixonadamente para a Evolução, dirigida por Júlio de Castilhos e Assis Brasil, continuando a colaborar na Gazeta, onde imprimiu “Colombo e Nené”, o seu conhecido poemeto. História e Historiadores no Brasil: do fim do Império ao alvorecer da República

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Fundou a Comédia em 1881; traçou-lhe, transcorridos três meses, o gracioso epitáfio – e foi redigir o Entre ato, com E. Prado, e o Bohemio, com Raymundo Corrêa. Formou-se. Destacara-se notavelmente, granjeando invejável nome entre companheiros que se chamavam Júlio de Castilhos, Silva Jardim, Barros Cassal, Theophilo Dias, Eduardo Prado, Ezequiel Freire, Raul Pompéa, Randolpho Fabrino, Lúcio de Mendonça, Assis Brasil, Affonso Celso, Fontoura Xavier, Augusto de Lima, Alcides Lima, Alberto Sales, Pedro Lessa, Luiz Murat, Julio de Mesquita, Raymundo Corrêa. Cito ao acaso, esquecendo outros compares no merecimento, apenas para notar que ainda não se congregaram sob os tetos de uma escola tantas esperanças e tão discordantes temperamentos – da severa formação política de Castilhos ao evangelho revolucionário de Silva Jardim, da rudeza republicana de Barros Cassal ao monarquismo elegante de Eduardo Prado, ou da melancolia impressionadora de Theophilo Dias ao gracioso humorismo de Ezequiel Freire. Ora, Valentim foi a figura mais representativa no meio de tão díspares tendências, por isto mesmo que lhe faltou sempre uma diretriz à atividade dispersiva. As condições do meio e a sua índole arrastaram-no demasiado à vida exterior e para a sua infinita instabilidade. Depois de formado, persistiu a aceleração de sua carreira, dissipando em força o que adquiria em movimento. Em 1882, publicou os “Quadros e Contos”, livro prometedor, onde refulgem páginas descritivas de excepcional colorido, avivadas todas daquela galanteria do escrever, que raro o abandona – e que se acaso o abandona é para tornar maior. Realmente, joeirando-se todos os seus versos escritos em 1883, talvez nos restassem apenas três sonetos; mas estas 42 linhas perduram nas nossas letras como a expressão mais eloquente de uma saudade ao mesmo passo excruciante e encantadora na sua tocante singeleza. Falecera-lhe o pai extremosíssimo, e Valentim, que até então escrevera para toda a parte, num insofregado anelo da consideração coletiva – surpreendido pela desdita, confiou, chorando,

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à alma da sua esposa, aquele poema de duas páginas “O nosso morto”, que não preciso recitar-vos, tão vivo ele perdura na vossa memória. Mas estas transfigurações eram-lhe instantâneas. Naquele mesmo ano desencadeou na Gazeta de Notícias a sua mais viva campanha de franco-atirador do espírito. Relevai-me o desgracioso símile; as Notas à margem recordam uma escaramuça agitadíssima, estonteadora, sem rumos, à caça do imprevisto, onde não há triunfos nem revezes, e os reencontros e os adversários se travam e se distinguem fugitivos, a relances e aos resvalos, um reconhecimento armado que não para... Porém, o que ali falta no compasso das ideias, sobra na propriedade do dizer e num desvelado apuro de linguagem, que influíram consideravelmente em nosso meio. Muita gente, entre nós, começou a escrever melhor, sob as reprimendas graciosas daquele infatigável caçador de solepcismos e persistente fiscal de pronomes insubordinados. Ao mesmo passo na imprensa diária acentuou-se melhor esta forma literária facílima, que é o artigo do jornal, onde a medida e a intensidade das ideias têm de ceder, não já aos dúbios contornos, capazes de ajustá-las ao maior número possível de critérios, nos limites de uma atenção de quartos de hora, senão também à fluidez de expressão, que lhes permita insinuarem-se nas nossas preocupações, encantando-nos um momento – e passando sem deixarem traços. Continuemos a resenha. Em 1884, trasladou ao português, com Filinto de Almeida, El Gran Galeoto, de Echegaray – e esta tradução, com as suas rimas e variedade métrica, avantaja-se ao original castelhano, onde o drama deriva na cadência única e intolerável dos versos brancos, em redondilha menor. Fundou em 1885 a Semana, e este periódico, estritamente literário, fez a maravilha, nesta terra e naquele tempo, de durar três anos. Mas para isto, à parte um concurso notável, em que se extremavam, para citar somente os mortos, Urbano Duarte, Raul Pompéa, Alfredo Souza e

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Luiz Roza – despendeu o melhor da sua atividade e quanto lhe adviera de herança paterna. Mas não vacilou ante a ruína. Iludia-se quem lhe medisse a fortaleza pela volubilidade. Era um caráter varonil blindado de uma jovialidade heróica. Tinha esse recato do sofrimento que é a única expressão simpática do orgulho. Os seus melhores amigos jamais lhe divinizaram desânimos. O revés não o desinfluiu. Escreveu em 1886 os “Vinte Contos”; em 1887, “Horas Alegres”; publicou, refundidas, em 1888, as “Notas à Margem”; em 1889, “Escritores e Escritórios”;... Vede: não há a solução mais breve no duodecênio que percorremos. Não se pula uma data sem pular-se um livro. O escritor violou doze vezes seguidas o nonum primatur in anno... De 1889 a 1895 houve aparente descanso. A República, feita numa madrugada, criara a ilusão de grandes coisas feitas da noite para o dia. Valentim, como todos, vacilou na vertigem geral. Ordinariamente se acredita que o empolgasse o anseio da fortuna fácil, naquela quadra que a ironia popular ferreteou com o nome de “encilhamento”. Com efeito, salvo alguns artigos esporádicos, o incansável homem de letras parecia mudado num infatigável homem de negócios. E fundou – como toda a gente – uma companhia. Mas considerai como o sonhador desdenhou as voltas retorcidas dos cifrões e alinhou parcelas como se alinhasse versos; aquela “Educadora”, que se transformou depois numa vulgar companhia de seguros, era uma fantasia comercial. Não segurava vidas, segurava inteligências; e o segurado, ao invés de um ajuste sinistro com a morte, a troco de alguns contos de réis, garantia a educação dos filhos. O devaneio mercantil não vingou. Valentim reavivou-se: e no quinquênio de 1895-1900 continuou a marcar os anos pelos livros e opúsculos: em 95, “Filosofia de Algibeira”; “Bric-à-Brac”, em 96; em 97, o seu primeiro romance “Flor de sangue”; “Alma’ e Rimario”, em 98-99 – deixando prontos quatro outros: “Fora da Pátria”, “Na brecha”,

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“Novos contos” e “Outono”, que lhe demarcariam, na mesma progressão, os quatro últimos anos de existência... Uma herança de tal porte não se inventaria num discurso. Vou agitar alguns conceitos falíveis. Revendo estes volumes, o que para logo se põe de manifesto é uma falha de unidade pasmosa. O escritor muda no volver das páginas. Nos “Cantos e lutas” escuta-se, ao toar solene dos alexandrinos, o lirismo humanista que Pedro Luiz divulgara desde 62; e quem quer que admita a ficção das escolas literárias, estudá-lo à luz do critério sociológico de Guyau. De feito, a inspiração não lh’a diluem lágrimas: é robusta, impessoal, refulgente – e a sua ... grande musa austera e sacrossanta que para o céu azul os olhos levanta banhados no fulgor virginal da verdade

era sem dúvida sincera. Mas esta linguagem, cantando herculeamente as odes imortais

nunca mais se repetiu. Ao contrário, a poesia filosófica (e falo assim por obedecer à moda, porque uma tal poesia se me afigura tão absurda quanto uma geometria lírica ou a astronomia romanceada de Flammarion), a poesia “social”, em que tanto importa o subordinar-se a expressão à verdade, teve depois em Valentim um irrequieto adversário. Nos “Escritores e Escritos” desponta-lhe o antagonismo em dizeres concisos, golpeantes; “Em literatura a forma é quase tudo. Especialmente em poesia. É preciso ter como Theodoro de Banville o sentimento das palavras... A forma! eis o grande, o milagroso talismã! Quem o possui atravessa a vida sem conhecer impossíveis aos caprichos do seu gênio”. A “forma” lá está com F. É o fetichismo do vocábulo. Com efeito, poucas vezes na língua portuguesa a palavra foi tão voluntariosa no

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violentar ideias, transfigurando-as ou emparelhando-as nas mais bizarras antíteses. Falando-nos de Junqueiro, por exemplo, diz-nos Valentim em menos de uma página: “A gargalhada de Junqueiro tem a altissonância trágica de Shakespeare e o assobio implacável de Gavroche: é a voz potente de Victor Hugo estridulando com as casquinadas de Aretino. É Voltaire arremangado, dedos na boca, assobiando à Thiara, às batinas e aos solidéus... É o Ésquilo da troça. Hamlet rufando com as tíbias de Iorik na pança congesta de Tartufo...”. Atalhemos – porque vai por diante este ajuntamento ilícito de verbos, substantivos e adjetivos, que se veem juntos pela primeira vez e vivamente se repulsam. Mais expressiva é aquela admiração delirante. Valentim Magalhães era excepcionalmente afetivo. Tudo lhe denuncia um nobre espírito inapropriado a agir sem os estímulos de uma ardente simpatia, vinculando-o às outras almas. Esta literatura associada que em geral, a exemplo dos Goncourts, exige a base da consanguinidade, ele a praticou como nenhum outro, reunindo um irmão legítimo, H. Magalhães (com quem escreveu a paródia à “Morte de D. João”), a Silva Jardim, a Filinto de Almeida e Alfredo Souza, nos laços da mesma fraternidade. Não lhe conheço um livro sem uma dedicatória. São raríssimos os seus escritos dispersos, cujos títulos não tenham logo abaixo um parêntese guardando o nome de um amigo. A admiração, que é o sintoma mais lisonjeiro de um caráter, rompia-lhe sempre num enorme exagero. Admirou daquele jeito Guerra Junqueiro; admirou C. Castelo Branco, “polígrafo indefeso, formidável, único”; admirou Ramalho Ortigão, “um mestre, senhor de todas as verdades do mundo moderno”...; admirou Machado de Assis, esse que arranca aos rígidos vocábulos a música rebelde e fugidia...

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Admirou os seus próprios companheiros. Sendo proeminente na “nova geração”, não desdenhou fazer-se o garboso mestre-sala, para apresentá-la ao país. E o país conheceu-a, em grande parte, através da sua palavra carinhosa. Não preciso exemplificar. No círculo daquela afabilidade irradiante e avassaladora caíram os que chegavam pouco depois, desde Coelho Netto, Medeiros e Albuquerque e Olavo Bilac até os mais obscuros escrevedores da província. A alguns cantou em verso, desde Carvalho Junior, desaparecido tão moço e a quem conhecemos apenas como um “meinsinger” loiro, alegre e extravagante

até alguém que não preciso nomear, tão conhecido nosso é o ... que esculpido Tem, sonhos, dores, alegrias. E é príncipe do Reino Unido Das Harmonias.

Mas esta afetividade dissipava-lhe o espírito. O seu pendor para o artigo ligeiro é expressivo; é a tendência dos que veem tudo de relance, na ânsia de tudo ver. Relendo os “Vinte Contos”, lastima-se que o escritor nunca se demorasse num assunto. A “Feira dos Escravos”, para citar só um caso, na sua urdidura, onde resplandece um desafogado estilo descritivo, e no seu desenlace empolgante, é o lance, inexplicavelmente abandonado, de um belo romance de costumes. Não consoavam, porém, a vibratilidade de Valentim Magalhães e o intrincado episodiar das longas narrativas. Demonstra-nos a “Flor de sangue”. Nada direi do livro malogrado, onde, entretanto, um velho tema se remoça com uma cativante originalidade de desfecho. Considero apenas que a crítica desaçamada, que o estraçalhou até a errata final, não disse mais do que o próprio romancista, no prefácio:

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“O capítulo que primeiro escrevi na intenção de fazê-lo o primeiro do livro, foi o quinto da segunda parte; eu havia principiado pelo fim!” Constantemente traído pelas melhores qualidades morais, anelando envolver na mesma carinhosa simpatia homens e coisas, todo o seu grande talento se diluía espalhado pelos aspectos inumeráveis da vida. Resumo o meu juízo: toda a obra literária de Valentim Magalhães pode ter o título único de um de seus livros – Bric-à-Brac. E a este propósito ouçamo-lo na esplêndida volubilidade de seu estilo disserto, referindo-se àquele livro sem cuidar de que fazia toda a sua psicologia literária: “... Pois esta obra é isto mesmo; é um amontoado de curiosidades literárias, e objetos de arte escrita... Junto a um conto comovido e sincero, um trecho da sátira mordaz e irreverente; em seguida a um grito de entusiasmo, uma caricatura a traço largo; depois de um surto amplo de fantasia caprichosa, um quadro exato e minucioso da vida social – Bric-à-Brac. De manhã à noite, em um só dia, o homem percorre toda a gama sentimental– enternece-se e lacrimeja; encoleriza-se e ruge; alegra-se e ri; enfara-se e boceja, enamora-se e canta; indigna-se e satiriza...” Não prossigamos. Nestas palavras sinceras só há um dizer destoante: aquele encoleriza-se e ruge. A linha acentuada do caráter de Valentim ia de uma elevada altivez a uma robusta alacridade que o forrava aos rancores – embora não lhe faça a grave injustiça de acreditar que ele fosse incapaz do ódio, que é muitas vezes a forma heroica da bondade. Mas este nunca lhe repontou nas polêmicas acirradas que travou e no mais aceso das quais lhe refulgia a graça amortecendo ou falseando os mais violentos golpes. Nos últimos tempos apareceram-lhe adversários a granel. Não houve aí grande homem engatinhando, ou imenso talento inédito, que se não malestrasse arguindo-o em hílares reprimendas, adoravelmente papagueadas, de numerosos defeitos, laivando-lhe o renome e desagabando-lhe os livros. Não lhes deu o prêmio de um revide. Soube apenas

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que existiam, indecisos, amorfos, difusos, diluindo-se e apagando-se por si mesmos– uma espumarada fervilhante, aflorando e morrendo na esteira da sua rota impetuosa. E retorquiu, algures, sorrindo: “A princípio fui gênio; mais tarde coisa nenhuma. Hoje César, amanhã João Fernandes...” Não sei de frase mais verdadeira. Eu andava nos últimos preparatórios quando ele aqui chegou, formado de S. Paulo, e posso afirmar-vos que ninguém, tão moço, ainda passou por estas ruas envolto de tão admirável curiosidade. A sua estrada nesta capital foi a de um triunfador e em poucos dias não houve quem lhe não conhecesse a figura de irrivalizável elegância e o rosto escultural velado de palidez fidalga e aclarado de um olhar que todo ele era o reflexo dos esplendores máximos da vida. Foi, porém, o mais breve dos triunfos. Não que ao escritor diminuísse o engenho, senão porque o surpreendeu um período anômalo da existência política. O quatriênio de 1886-1890 foi decisivo para os destinos do Brasil, tão de golpe nele se afrouxou a coesão de nossos costumes e num desejo desapoderado de novidades desadoramos muitos velhos atributos, que imaginávamos retrógrados e eram apenas conservadores... Aqui se me antolha digressão acidentalíssima. Evito-a. Mas, no adstringir-me ao assunto, aponto, a correr, esta antinomia: precisamente quando a peregrina palavra “evolução” se tornou a rima fácil de todos os versos, rompemos com esta lei fundamental da história – tão bem expressa na continuidade de esforços dos estados sociais sucedendo-se com um determinismo progressivo – e apresentamos o quadro de uma desordem intelectual que, depois de refletir-se no disparatado de não sei quantas filosofias decoradas, nos impôs na ordem política, a mais funesta dispersão de ideias, levando-nos, aos saltos e ao acaso, do artificialismo da monarquia constitucional para ilusão metafísica

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da soberania do povo ou para os exageros da ditadura científica; ao mesmo passo que na ordem artística íamos dos desfalecimentos de um romantismo murcho, às demasias de um falso realismo, que era a pior das idealizações, porque era a idealização dos aspectos inferiores da nossa natureza. Para ainda agravar a crise, os dois ideais da abolição e da República não requeriam mais as emoções estéticas. Resolvidos na ordem moral, estavam entregues à ação quase mecânica dos propagandistas. Estes precipitavam-nos com o desalinho característico da fase revolucionária das doutrinas, em que se conchavam as ideias e os paralelepípedos das ruas, e os melhores argumentos desfecham no desmantelar-se das barricadas investidas. José do Patrocínio e Silva Jardim tomaram por algum tempo a frente da sociedade. Recordando esse passado recente, o que vemos, ao primeiro lance, é aquele mulato formidável ou aquela miniatura de Titã. Ocupam a cena toda. No próprio terreno vibrante da propaganda derivaram, por vezes, ao segundo plano os vultos de maior destaque, desde o velho Saldanha Marinho, tão esquecido depois de morto, a Quintino Bocaiuva, meio esquecido em vida – e que no retrair-se hoje a um voluntário ostracismo e no andar tão despercebido pelas nossas ruas, atravancadas de notabilidades, lembra-me alguém que vai passando devagarinho para a história, esquecido dos homens e da morte, confundindo-se a pouco e pouco com a sua própria estátua – uma bela estátua corretíssima e errante, sem um pedestal que a imobilize e soerga acima da multidão em que se perde... Mas não cedamos à fascinação do assunto. Observemos que em um tal meio não se compreende a existência de uma arte que é sempre o resultado de certa fixidez dos sentimentos gerais. Valentim Magalhães, como outros muitos, foi, naturalmente, apagando-se, mais e mais, naquela movimentação precipitada. Além disto,

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morreu depois dos trinta anos; e neste país quem quer se notabilize e ultrapasse aquele marco, fora dos tablados da política, predestina-se ao suplício lento e indefinível de acompanhar em vida ao enterro pobre da sua própria imortalidade. *** Terminemos. Faltou sem dúvida a Valentim Magalhães essa concentração intelectual que é o segredo dos gênios e dos medíocres: um espírito a dobrar-se, a revirar-se, desesperadoramente, em alguns pensamentos exclusivos e impassível aos reagentes da vida exterior. Para esses a amplitude das ideias, como a das espirais, explica-se por um giro indefinido em torno de si mesmas. Os seus cérebros deveriam circunvoluir em caracol. São os eternos distraídos, ou abstratos, vivendo fora da preocupação que os escraviza, ou da inspeção em que se isolam, com um automatismo de sonâmbulos. Nas conjunturas mais opostas, entre os ruídos e as luzes de um salão de baile, ou num funeral, lá lhes está girando e regirando, torcendo-se e destorcendo-se a ideia absorvente, conservada por esta misteriosa consciente obscura, que vela perpetuamente nas profundezas do nosso espírito, e à luz da qual – sem que o queiramos, sem que o entendamos, sem que o expliquemos – se filiam as mais altas concepções aos mais fugitivos e inapreciáveis incidentes. Então compreende-se que, do cair de um fruto apodrecido, eles passem, de um salto no infinito, para a queda perpétua dos mundos; ou que das oscilações quase imperceptíveis da lâmpada suspensa de uma catedral, entrevistas num êxtase religioso, induzam, de improviso, as leis mecânicas do isocronismo de pêndulo. Na ordem estética recorde-se a horrível anedota de Talma: a soluçar, num desespero, agarrado ao cadáver do filho, e estacando de súbito, ao ouvir pela primeira vez a voz interior e profunda de uma dor verdadeira, que era a sua própria dor, e estudando-a friamente, para a reproduzir, dias depois, intacta, no palco, diante dos espectadores assombrados;

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ou a pertinácia sobre-humana de Flaubert, atravessando decênios a versar, a volver, a revolver, a corrigir, a mondar, e a remondar um assunto único, interminável... Valentim Magalhães foi o avesso desses homens. Repitamos: as condições do meio e o seu temperamento arrastaram-no demais para o mundo exterior e para a sua indescritível instabilidade. Ele entregou-se de corpo e alma ao turbilhão sonoro e fulgurante da existência. Foi o seu grande defeito, dizem. Mas este defeito – o seu maior defeito – é a mais bela imperfeição da nossa vida: o defeito de viver demais.

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MANOEL DE OLIVEIRA LIMA O atual papel do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

apresentação Mara Cristina de Matos Rodrigues1

Oliveira Lima passara a maior parte de sua vida fora do Brasil, devido, primeiramente, à transferência de sua família para Portugal, terra de origem de seu pai, em 1873, e depois à carreira diplomática.2 Após graduar-se em Letras, em 1888, voltou ao Brasil, em 1890, para ser nomeado pelo primeiro governo republicano como segundo secretário da legação do Brasil, em Lisboa, iniciando aí, de forma brilhante, sua carreira diplomática. Seu ingresso no corpo de servidores do Ministério das Relações Exteriores foi propiciado pela construção de trajetória e imagem adequadas ao que se esperava de um diplomata de carreira na Primeira República, consolidadas pelo seu casamento com uma moça que, embora desprovida de dote, tinha nome de família e formação adequada.3 Entretanto, as relações de Oliveira Lima com nomes da mais alta estatura do corpo diplomático, como o Barão do Rio Branco, e políticos poderosos, como Pinheiro Machado, azedariam entre 1903 e 1913,

1 

Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

2  Existem vários textos de caráter biográfico sobre Oliveira Lima dos quais destacamos primeiramente sua autobiografia, publicada postumamente, LIMA, 1937. De grande importância são também os textos a seguir: FREYRE, 1968; GOUVÊA, 1976; LIMA SOBRINHO. In: LIMA, 1971. 3  Oliveira Lima procurou construir uma imagem nobilitante do pai, embora fosse a sua mãe que tivesse laços de sangue com a aristocracia pernambucana. Essa estratégia devia-se ao fato de que no período inicial da República continuavam vigorando os mesmos parâmetros no recrutamento dos diplomatas utilizados no Império. MALATIAN, 2001: 57-62. A figura de Dona Flora, sua esposa, compôs esse quadro. Seguramente a sua sólida formação contribuiu para que se tornasse esposa e também secretária de Oliveira Lima, já que era quatro anos mais velha que o noivo e não dispunha de dote, o que desagradou a família de Lima, mas não inviabilizou o arranjo matrimonial (MALATIAN, 2004:51-64).

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ocasionando sua aposentaria precoce e o autoexílio em Washington, onde veio a falecer em 1928. Seus últimos anos foram dispendidos com a organização da sua vasta biblioteca, acolhida na Universidade Católica de Washington, onde também desempenhou atividades de docência. Seu nome tem suscitado opiniões contraditórias nos meios político, diplomático e intelectual desde os últimos anos de vida, passando pela publicação póstuma de suas memórias, em 1937, e pela comemoração de seu centenário de seu nascimento.4 Sua personalidade marcante e posicionamentos polêmicos alimentaram controvérsias que paulatinamente esfriaram em prol de uma avaliação mais equilibrada sobre sua obra. A trajetória tumultuada no serviço diplomático e as opiniões políticas simpáticas à volta da monarquia no Brasil obscureceram o seu papel relevante como intelectual no país. A decisão de escolher seu discurso no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1913, para ser publicado nesta obra, não deixa de se inserir nas iniciativas que, desde os últimos anos, têm mitigado este equívoco.5 Desta forma, não se pretende apresentar todas as facetas desse intelectual, porque outros já o fizeram com maior competência e porque não é esse o objetivo desta apresentação.6 Em muitas oportunidades nos contentaremos em apenas indicar seus títulos mais importantes, bem como os eventos mais marcantes que afetaram sua carreira como histo-

4  É deste contexto a biografia um tanto laudatória de Freyre. A alcunha de D. Quixote tenta dar conta de seu polêmico personagem (FREYRE, 1968). 5  Dentre as iniciativas mais recentes de recolocar Oliveira Lima e suas atividades políticas, intelectuais e diplomáticas sob uma perspectiva analítica, encontra-se o volume 24 da revista Remate de Males, do Departamento de Teoria Literária da UNICAMP, de 2004, inteiramente dedicado a Oliveira Lima, sua trajetória e suas obras. 6  Dentre os mais importantes comentadores da trajetória intelectual, política, diplomática e dos escritos de Oliveira Lima, ver MALATIAN, 2001. Além deste, destacamos a organização e a introdução de Angela de Castro Gomes para o livro Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Mercado das Letras, 2005, que, além de se reportar às relações de sociabilidade intelectual e as “narrativas de si” construídas nas cartas trocadas entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre – abrangendo sobretudo o período que vai de sua aposentadoria no serviço diplomático até sua morte –, também tratou de suas concepções acerca da escrita da história.

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riador. Em se tratando de um texto escrito para um livro que pretende reunir um conjunto de fontes primárias relevantes para o estudo da historiografia na Primeira República brasileira, optou-se por privilegiar a trajetória desse escritor no IHGB, pensando-o em conjunto com os outros textos e discursos da autoria de Oliveira Lima, ou sobre ele, na Revista do IHGB desde o seu ingresso nesta agremiação até o ano de 1913, em que pronuncia a conferência sobre O atual papel do Instituto Histórico. Contudo, pensar a inserção de Oliveira Lima na historiografia brasileira deste período requer a compreensão de que esta questão está intimamente vinculada ao desenvolvimento de sua carreira diplomática e, consequentemente, às injunções políticas daquele período, às quais serão feitas as referências necessárias ao longo do texto. Nos anos iniciais de sua carreira diplomática, a despeito de suas relações com notórios monarquistas brasileiros residentes e atuantes na Europa, como Eduardo Prado, notabilizou-se por defender o nascente regime republicano que buscava legitimidade internacional. Sept Ans de République au Brésil: 1889-1896, escrita originalmente em francês, buscou atender a esse seu objetivo(LIMA,1896). Esta identificação inicial com o regime republicano não foi empecilho para que Oliveira Lima ingressasse em 1895, quando já era diplomata, como sócio correspondente no IHGB, instituição conhecida como reduto de monarquistas e de homens outrora estreitamente ligados ao Segundo Império. Um deles era o próprio Barão do Rio Branco, com quem detinha inicialmente relações bastante cordiais até transitarem para a dissensão, que inicia em 1902,7 e marcará a carreira de Lima e sua trajetória no IHGB. Inicialmente a assimetria do prestígio das duas figuras no IHGB pode ser percebida por uma coincidência verificada no ano de 1895. Enquanto tramitava a proposição de Oliveira Lima a sócio correspon-

7  Joaquim Nabuco, correspondente de ambos contendores neste período, procurou apaziguar os ânimos, mas acabaria ele também com Oliveira Lima. Sobre esse assunto, ver GOMES, 2004:09-31, MALATIAN, 2001 e ALMEIDA, 2004:121-137.

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dente do IHGB, respaldada pela obra Pernambuco, seu desenvolvimento histórico (LIMA,1895), a primeira de grande impacto do autor, o Barão do Rio Branco era rapidamente elevado a sócio honorário pela “excepcional competência” demonstrada na questão do litígio das Missões entre Brasil e Argentina e também pela sua constante dedicação ao estudo da história pátria(RIHGB, Rio de Janeiro, 1895: 301-365).Os dois diplomatas então se diferenciavam pela idade e pelos motivos invocados para seus movimentos ascensionais no meio intelectual. Oliveira Lima era vinte e dois anos mais novo e tinha o trabalho intelectual como seu maior baluarte, enquanto o Barão era reconhecido antes pela sua capacidade de “fazer a história” do que por escrevê-la.8 No curto discurso de agradecimento pronunciado em sua posse no IHGB, Oliveira Lima apresenta algumas marcas que se repetiriam em sua carreira como historiador-diplomata.9 Ele associa o fazer do historiador e o do diplomata, distingue o nome de Varnhagen dentre outros historiadores e apresenta suas potencialidades intelectuais e eruditas proporcionadas pela própria formação que o aproximava de autores como o escritor português Teófilo Braga (LIMA,RIHGB, 1895:367-368). Segue marcando sua presença na instituição como alguém que estava em permanente labor intelectual lendo em uma das sessões subsequentes do mesmo ano o capítulo de obra que então preparava (RIHGB, 1895: 390, 424). Aspectos da literattura colonial brasileira (LIMA, 1896), juntamente com seu já citado livro sobre Pernambuco, abriram as portas da Academia Brasileira de Letras (ABL) no ano seguinte. Sua vaga na Academia seria assumida somente em 1903 devido à sua ausência do país, já que nesta época servia no Japão.

8  Esse foi o argumento utilizado por João Ribeiro e depois pelo próprio Oliveira Lima (ALMEIDA, 2004:121-137). 9  Historiador-diplomata foi o termo escolhido por Malatian para se referir a Oliveira Lima. (MALATIAN, 2001).

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Em 1902, seu nome aparece novamente na Revista do IHGB, que publicava então a “Relação dos manuscriptos portuguezes e estrangeiros, de interesse para o Brazil, existentes no Museu Britannico de Londres”, extenso catálogo documental enviado de Londres no ano de 1901 (LIMA, 1902: 5-139). Ao apresentá-lo, Oliveira Lima justifica a importância do seu trabalho registrando outros dois que o antecederam: o catálogo de Figanière e as adições e pequenas correções nele feitas por Varnhagen. O que ora apresentava era mais completo, segundo o próprio autor, já que teria descoberto mediante leitura exaustiva dos códices certas referências à colônia portuguesa, quase imperceptíveis a outros leitores. Mediante o uso dos termos amador e curioso nacional, Oliveira Lima contrapunha o trabalho daqueles que consultavam os arquivos, mas sem instrumentos apropriados, ao dele, trabalho de especialista – historiador e arquivista – acostumado a lidar com aqueles códices. A decifração do conteúdo desses documentos apresentava relações íntimas com outra de suas expertises: a diplomacia. Tratava-se de uma operação historiográfica que buscava, desde o império, constituir identidade nacional baseada na narrativa sobre a ocupação, conquista e negociação de territórios ao longo da história da presença portuguesa na América. Contudo, de acordo com esta perspectiva, não era só a diplomacia que instruía a história, pois o historiador deveria, por sua vez, instruir as negociações diplomáticas, tal como fizera o Barão do Rio Branco ao longo de sua carreira.10 O amálgama entre essas duas práticas concebidas mais em sua dimensão erudita do que política era novamente simbolizado pela figura de Varnhagen, anunciando-se a competente manipulação que Oliveira Lima faria da memória desse

10  Sobre as concepções e práticas diplomáticas do Barão e de Oliveira Lima, ver ALMEIDA, 2004. Sobre a tradição de uma história diplomática no IHGB, ver GUIMARÃES, M. 2011:158. Para um exemplo da instrumentalização da história pela diplomacia, ver a ata da 8ª sessão ordinária, de 11 de julho de 1897, onde se leem ofícios do Ministério de Relações Exteriores fazendo um pedido corriqueiro para a consulta de documentos e mapas do Instituto visando a negociações territoriais. Atas das sessões de 1897 (RIHGB, 1897: 342-43).

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historiador e diplomata como referência para sua própria identidade no meio intelectual brasileiro. Esse procedimento é muito mais evidente no célebre discurso proferido em sua posse na ABL, quando escolhe Varnhagen para patrono de sua cadeira como membro fundador. Isso acontece em 1903 quando, de volta ao Rio de Janeiro, após demorados seis meses de retorno do Japão para assumir uma nomeação indesejada para a Legação do Peru, Oliveira Lima encontra-se estremecido com o Barão do Rio Branco.11 Lançava-lhe farpas ao erigir Varnhagen como modelo de diplomata e homem de letras e afirmando que ele prezava mais esta do que aquela qualidade (LIMA; MENDONÇA, 1903:08). Para além das querelas da diplomacia republicana, verifica-se, nesse embate, o confronto de diferentes concepções sobre a prática diplomática, em breve explicitadas nos seus escritos.12 Oliveira Lima desejava uma carreira que associasse as demandas representativas com o trabalho intelectual ligado à pesquisa histórica, tal como Varnhagen (e o próprio Barão) fizera. As relações entre diplomacia e pesquisa histórica, especialmente a sua identificação com Varnhagen, constituíram tema incessantemente retomado por Oliveira Lima. Invocando no discurso de posse na ABL a marca a lápis que Varnhagen deixara nos documentos por ele consultados na Torre do Tombo em Portugal, estabelecia o indício inicial desta aproximação entre os dois, que acabaria por converter a imagem do historiador do século XIX em verdadeiro espectro ao longo de sua trajetória, inclusive e principalmente no IHGB (LIMA; MENDONÇA, 1903: 08).O ingresso na casa da literatura nacional também foi ocasião para que enunciasse uma das aporias da história moderna: a ideia de que sua construção deveria associar erudição e arte, verificação e expo-

11  Dentre os autores que se referem ao início dos conflitos entre Oliveira Lima e o Barão do Rio Branco, o artigo de Almeida é o que mais se detém neste ponto inicial (ALMEIDA, 2004). 12  Uma série de artigos seus sobre o assunto, veiculados na imprensa paulista e pernambucana, foram reunidos no seu livro Cousas diplomaticas.Lisboa: A Editora, 1908.

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sição talentosa, circunspecção de pesquisador e habilidade de narrador (LIMA; MENDONÇA, 1903: 08-09). Esse seria outro tema recorrente em suas considerações acerca da prática historiográfica, como se pode ver, por exemplo, nas cartas trocadas com Gilberto Freyre anos depois (GOMES, 2005)13 e no seu próximo artigo publicado na Revista do IHGB. “Robert Southey”, texto de Oliveira Lima enviado e lido em duas sessões do ano de 1907 – publicado na revista do ano de 1905, ainda não impressa no ano de 1907 –, analisa a biografia e obra de Robert Southey, recorrendo a aspectos caros às suas concepções acerca da prática historiográfica. Adjetivava a Historia do Brazil, de Southey, como “a mais conscienciosa, detalhada e exacta antes da de Varnhagen” e “a mais litteraria, formosa e captivante mesmo depois da de Varnhagen” (LIMA, 1905: 231-253).14Voltava, portanto, ao tema da associação entre erudição e talento narrativo, entre ciência e arte e ao enaltecimento comedido da figura de Varnhagen, cujo estilo de escrita não o agradava. Pode-se dizer que, na perspectiva de Oliveira Lima, a operação historiográfica de seu grande antecessor valorizava mais o momento de arquivo que o literário, enquanto a de Southey e a dele mesmo davam grande relevo a este, embora não descurassem em nada do primeiro.15 A sua nomeação para a Legação da Bélgica e da Suécia em 1908 pode ser indício de que amainava o conflito entre Oliveira Lima e o Barão, como indica a análise da correspondência entre ambos.16 Considerando-se os rastros de sua trajetória nas atas das sessões do IHGB, sua imagem de homem de letras, de fato, parece gradualmente elevar-

13  A correspondência entre Freyre e Lima intensificou-se quando o primeiro, muito jovem, estudava nos Estados Unidos, onde Lima residia já aposentado. 14 

Ver também: Atas das sessões de 1907 (RIHGB, 1907: 668, 681).

15  Tomamos aqui a noção de operação historiográfica conforme a apropriação de Paul Ricoeur, para quem ela coaduna três “fases”: documental, explicativa/compreensiva e a de representaçao literária (RICOUER, 2007: 145-150). 16  Neste período há registro de uma carta cheia de projetos de Oliveira Lima ao Barão do Rio Branco (GOMES, 2004: 27).

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-se a uma situação mais condizente com a que ele tinha no exterior.17 Em 1909, sendo então presidente do IHGB o Barão de Rio Branco,18 é aprovado por unanimidade um voto de grande louvor ao autor de Dom João VI no Brasil (LIMA, 1996)19, que seria sua obra de maior impacto na historiografia nacional.20 Oliveira Lima reabilitava para o Brasil a figura de um rei visto pelos portugueses pelo prisma negativo da fuga de Napoleão. Na sua perspectiva, a vinda da corte para o Brasil representara o início de um processo que ligava o passado monárquico ao presente republicano, o da construção da nacionalidade. Esta tese ia ao encontro dos anseios de toda uma geração de escritores que, como Joaquim Nabuco, desde o princípio da República, em seu célebre discurso de posse no IHGB, ressaltava a necessidade de se reescrever a história nacional sem fazer tábula rasa do passado imperial, como queriam os jacobinos da República(NABUCO, 1896: 309). Em que pese a boa vontade de membros influentes do IHGB e a possível condescendência do Barão, foi somente após a sua morte, no início de 1912, que a situação de Oliveira Lima sofreu uma considerável alteração no Instituto. Nas primeiras sessões em que Afonso Celso exercia a presidência em substituição ao Barão do Rio Branco, o historiador-diplomata seria promovido a sócio honorário. Os propositores da ideia pensaram ser desnecessário argumentar pela sua aceitação: “Os trabalhos admiráveis do nosso eminente companheiro dispensam

17  Para a respeitabilidade de Oliveira Lima entre intelectuais estrangeiros, ver, dentre outros, o discurso de Max Fleiuss por ocasião de sua morte (FLEIUSS, 1928:822-840). 18  Rio Branco assumira a presidência do Instituto em 1908 como nome de consenso, capaz de mitigar conflitos internos então existentes (GUIMARÃES, L. 2006:49). 19  A primeira edição é do ano de 1908; a segunda, de 1945, com prefácio de Octavio Tarquínio de Souza; a terceira é de 1996, e a quarta, de 2006, tem prefácio de Wilson Martins. 20  Atas das sessões de 1909. RIHGB, 1909, t. 72(2):365. Dificilmente os membros do IHGB seriam unânimes em aprovar algo que desgostasse seu dileto presidente; entretanto, o fato de que o Barão estivesse ausente a essa sessão pode indicar cautela para evitar eventuais melindres. Sobre o assunto, ver também a ata de outra sessão, na mesma revista, p. 374, que foi analisada por MALATIAN, 2001: 222.

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quaisquer considerações para justificar esta proposta” (RIHGB, 1912: 241). A nova diretoria ainda contribuiria de outra forma para enaltecer a imagem de Oliveira Lima no meio intelectual brasileiro, pois engajou-se em reproduzir a aproximação que ele forjara nas “escritas de si” entre sua trajetória e a de Varnhagen.21 É nessa condição de reconhecimento dentre os pares do IHGB que Oliveira Lima abre as sessões do ano de 1913, a convite de Afonso Celso, proferindo sua conferência sobre “O Atual Papel do Instituto Histórico” (LIMA,1913: 485-493). No contexto em que sua aposentadoria forçada já estava quase selada, o IHGB, que vinha superando os sérios obstáculos que se interpuseram a sua atuação desde a proclamação da República, jogava seu peso político e oferecia guarida ao novo perseguido pelo regime.22 A decisão de organizar seu primeiro Congresso Histórico a se realizar no ano de 1914, tal como sugeria Oliveira Lima no seu discurso (LIMA, 1913: 439), seguia a mesma tendência ao incluí-lo também dentre os primeiros nomes da Comissão Executiva responsável por estabelecer as bases do Congresso (RIHGB, 1913:505-506). A resposta de Oliveira Lima em seu momento de crise política e profissional à demanda sobre o atual papel do Instituto Histórico reitera suas convicções de que a nacionalidade se conformaria a partir da identificação com um passado comum, cuja união política e moral competia aos institutos históricos. Enfatiza o programa de uma história de continuidade da nação brasileira, cuja matriz portuguesa marcava sua identidade desde o descobrimento, passando pelos diversos

21  A apresentação de Afonso Celso à conferência de Oliveira Lima (RIHGB, 1913, t. 104:484) e a homenagem de Max Fleiuss após a sua morte são exemplos desta reprodução (FLEIUSS, 1928). 22  Tradicionalmente visto pelo regime republicano como reduto de monarquistas, o IHGB reverteu paulatinamente este estigma a ponto de ser considerado instituição de utilidade pública pela Câmara dos Deputados, o que lhe conferia novas possibilidades para superar seus enormes problemas orçamentários. Ver o relatório de Max Fleiuss na RIHGB, 1909, t. 72(2):403. A “trindade do Silogeu”, composta por Afonso Celso, Max Fleiuss e Ramiz Galvão, atuou na reestruturação financeira e resolução dos problemas políticos entre o IHGB e os governos republicanos (GUIMARÃES, L. 2006).

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momentos de crise, inclusive a mudança para o regime republicano, sem interrupção na constituição do sentimento nacional. Para isso, tornava-se fundamental estabelecer relações com instituições congêneres no estrangeiro, bem como promover a integração dos institutos históricos estaduais no Brasil. Em suma, a despeito de contribuir para solucionar os impasses criados pela ruptura republicana na historiografia nacional no que diz respeito ao trabalho de memória que reintegrava o período imperial à trajetória da nação, o mesmo não se aplica quando consideradas suas reflexões sobre a escrita da história. Deste ponto de vista, como bem afirmou Cezar, Oliveira Lima ainda respirava o mesmo regime de historicidade daquele que erigira como modelo (CEZAR, 2007: 163). A presença de Varnhagen, por mais que tenha sido objeto de uma consciente manipulação identitária por parte de Oliveira Lima, se fazia sentir de forma mais profunda e inconsciente na sua prática intelectual. Talvez não como os “quadros de ferro” de cuja prisão Capistrano de Abreu procurava escapar, mas na forma de um espectro, cujo rastro é perceptível como a discreta marca de um lápis, mas muito difícil de apagar.

referências ALMEIDA, Paulo Roberto de. “Oliveira Lima e a diplomacia brasileira no início da República. Um intelectual com ideias fora do lugar ou com propostas fora de sua época?”. In: Remate de Males, n.24, 2004. CELSO, Afonso. RIHGB, t. 104, 1913. CEZAR, Temístocles. “Varnhagen em movimento: breve antologia de uma existência”.In: Topoi, v. 8, n.15, jul./dez. 2007. FLEIUSS, Max. RIHGB, t. 72(2), 1909. ______. RIHGB, t. 104, 1928. FREYRE, Gilberto. Oliveira Lima: D. Quixote Gordo. Recife: E. UFPE, 1968.

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GOMES, Angela. Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Mercado das Letras, 2005. ______. “Rascunhos de história imediata: de monarquistas e republicanos em um triângulo de cartas”. Remate de Males, n.24, 2004. GOUVÊA, Fernando da Cruz. Oliveira Lima: uma biografia. 3 v. Recife: IAHGP, 1976. GUIMARÃES, Lucia M. P. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Ed. Museu da República, 2006. GUIMARÃES, Manoel. Historiografia e nação no Brasil (1838-1857). Trad. Paulo Knauss e Ina de Mendonça. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011. IHGB. Atas das sessões de 1895. In: RIHGB, t. 58(2), 1895. IHGB. Atas das sessões de 1897. In: RIHGB, t. 60(2), 1897. IHGB. Atas das sessões de 1907. In: RIHGB, t.70(2), 1907. IHGB. Atas das sessões de 1909. In: RIHGB, t. 72(2), 1909. IHGB. Atas das sessões de 1913. In: RIHGB, t. 76(2), 1913. IHGB. RIHGB, t 75(2), 1912. IHGB. RIHGB, t. 104, 1913. LIMA SOBRINHO, Barbosa. “Prefácio”. In: LIMA, Oliveira. Obra Seleta. Rio de Janeiro: MEC-INL, 1971. LIMA, Oliveira. “Agradecimento”. In: RIHGB, t. 58(2), 1895. ______. Aspectos da literattura colonial brasileira. Leipzig: F. A. Brockhaus, 1896. ______. D. João VI no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. ______. Memórias: estas minhas reminiscências. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.

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LIMA, Oliveira. “O Atual Papel do Instituto Histórico”. In: RIHGB, t. 76(2), 1913. ______. Pernambuco, seu desenvolvimento historico. Leipzig: F. A. Brockhaus, 1895. ______. “Relação dos manuscriptos portuguezes e estrangeiros, de interesse para o Brazil, existentes no Museu Britannico de Londres”. In: RIHGB, t 65(2), 1902. ______. “Robert Southey”. In: RIHGB, t. 68-2, 1905. ______. Sept Ans de République au Brésil. Paris: Librairie de la Nouvelle Revue, 1896. ______; MENDONÇA, Salvador. Discursos pronunciados na Sessão solemne de 17 de julho de 1903. Rio de Janeiro: Typographia do Jornal do Commercio, 1903. MALATIAN, Teresa. “O diário de Flora”. In: Remate de Males, n.24, 2004. ______. Oliveira Lima e a construção da nacionalidade. Bauru, SP: 2001. EDUSC; São Paulo: FAPESP, 2001. NABUCO, Joaquim. “Discurso de posse”. In: RIHGB, t. 59(2), 1896. RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2007.

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o atual papel do instituto histórico e geográfico brasileiro1 Manoel de Oliveira Lima

Ex mo Sr. Presidente – Estimo sobremodo, que circunstâncias aliás alheias à minha vontade, me tenham demorado no Rio de Janeiro a ponto de alcançar a reabertura das sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, afim de poder pessoalmente apresentar pela primeira vez minhas saudações a V. E., por motivo da sua merecida eleição para presidente dessa benemérita associação. Pela Ilustração, pela elevação moral, pelo espírito tradicionalista que em vós brilha, pelos predicados de talento e de caráter que vos exornam, por todas as razões, sem exceção de uma só, sois o que deve ser o nosso presidente. Lamento por outro lado a minha demora, porque era minha intenção representar o Instituto no Congresso Internacional de Ciências Históricas, que se realizou em Londres, na primeira quinzena deste mês de abril, e do qual acabo de saber que fui escolhido vice-presidente honorário. O meu amigo professor Temperley, historiador de mérito que escreveu uma vida de Canning e ultimamente se especializou na história britânica do século XVIII, pedira-me, na sua qualidade de secretário de uma das seções do Congresso, uma memória sobre a guarda, conservação e divulgação dos arquivos brasileiros. Era intenção do presidente dessa seção reunir uma série de memórias relativas a todos os países

1  Publicado originalmente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1913. Edição do texto consultada: LIMA, Oliveira. “O Atual Papel do Instituto Histórico”. In: RIHGB, t. 76(2), 1913 (N.O.).

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representados, tratando deste assunto que naturalmente se lhe afigura capital, melhor dito, essencial, para a perfeita elaboração dos anais de cada nação, pois que é axiomático que sem arquivos não poderia vir a constituir-se a ciência histórica, a qual vive de documentação. Esta casa já tem felizmente prestado neste campo assinalados serviços, arrancando à ignorância e salvando do olvido os interessantes papéis do nosso passado, de que estão cheias as páginas da sua Revista, e tanto dista de completar-se sua tarefa a respeito, que, ultimamente nos seus próprios depósitos, o Instituto tem ido buscar novo e precioso material. O infatigável secretário perpétuo e o incomparável bibliotecário têm de resto sido afortunados nas suas pesquisas, que nos vão dar ensejo de conhecermos uma série de cartas da imperatriz Leopoldina e muitos outros papéis de igual natureza reservada, tirados da correspondência do Instituto, a qual se revelou uma rica mina inexplorada. Ora, documentos de tal natureza são precisamente os que o historiador mais que aprecia para a reconstituição do cenário e dos personagens, que ele deseja evocar ante os contemporâneos de hoje. É de esperar que o zelo do Instituto não fraqueje neste ponto, antes se afirme e redobre. É preferível que na Revista sobrelevem os documentos aos ensaios: nós carecemos mais de preparar o material, reunindo o muito que anda disperso, do que urge aproveitá-lo. O Instituto prestará ainda inestimável serviço arrecadando arquivos particulares, como o de Ourém ou como o de Osório, e sua atividade neste ponto deve estender-se até além das fronteiras nacionais. Em Portugal, os arquivos públicos estão muito longe de se acharem esgotados. Pelo contrário, impõe-se como trabalho inicial um estudo paciente, seguido e minucioso dos papéis do Conselho Ultramarino, que tão de perto nos dizem respeito. Eles encerraram a verdadeira história social econômica do Brasil colonial, assim como as atas do nosso extinto Conselho de Estado contêm a história política e diplomática do Império na sua trama íntima. O próximo tomo da Revista do Instituto

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publicará informações do maior interesse sobre João Fernandes Vieira, encontradas no arquivo do Conselho Ultramarino pelo nosso estudioso patrício dr. Alberto Lamego. Há poucos dias comunicava-me o nosso distinto consócio dr. Escragnolle Doria sua intenção de devassar os arquivos particulares do antigo reino e respigar nesse tesouro. É uma intenção acertadíssima, porque das famílias nobres de Portugal raras foram – se alguma houve – as que não tiveram parte pessoal no governo e, portanto, no desenvolvimento das capitanias brasileiras nos séculos fecundos da formação da nossa nacionalidade. Sem remontarmos aos primeiros tempos, Pombal teve um irmão governador do Estado do Pará-Maranhão, e ninguém levou mais a peito a defesa e fortuna das terras amazônicas; Cunha, Lavradio, Rezende, Vasconcellos e Sousa foram vice-reis do Brasil; até o duque de Saldanha tomou parte nos acontecimentos do Rio Grande do Sul e da Cisplatina, por ocasião da Independência, e Rodrigo da Fonseca Magalhães foi secretário da Junta Constitucional organizada no Recife por Luiz do Rego, e redator da Aurora Pernambucana, o primeiro periódico da província. Não há quase casa fidalga em Portugal que não possua papéis brasileiros, e semelhantes papéis cumpre conhecê-los e reconhecê-los antes que se dispersem e percam na derrocada do Portugal monárquico. Da Holanda, onde já trabalharam com extraordinário proveito Joaquim Caetano e José Hygino, sabeis que o vosso consócio dr. Pedro Souto Mayor ainda conseguiu ultimamente trazer valioso material inédito, e o extrairia em abundância se para ali se pudesse trasladar com maior demora, como faço votos aconteça algum dia, no interesse e melhor compreensão do nosso passado. A história militar da ocupação holandesa está feita; não assim sua história social, por enquanto falha e descurada. Em Roma existem arquivos de congregações religiosas, praticamente desconhecidas, e que, no entanto, devem encerrar páginas das mais sugestivas, com relação à nossa desenvolução. Basta lembrarmo-nos

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de que o Brasil foi uma criação moral dos Jesuítas, constituindo estes o elemento por excelência da civilização nos dois primeiros séculos, e de que ordens monásticas, como a dos Franciscanos, Carmelitas, etc., tiveram o seu papel no desbravar dos sertões, isto é, na conquista do interior, cooperando assim poderosamente para a cultura geral do Brasil. Tão importante reputo a contribuição, que daí se deve esperar, que muito desejo se concretize breve a Ideia que, em Bruxelas, me expôs o ilustre d. Gerardo de Caloen, abade geral da Ordem beneditina do Brasil e prelado do Rio Branco, de fundar-se em Roma um Instituto histórico nacional, como os que ali possuem outras nações, entre elas os Estados Unidos, no nosso caso não tanto para revisar a antiguidade clássica, quanto para surpreender nos repositórios eclesiásticos o caráter do nosso passado colonial. Nada obsta, antes tudo aconselharia que um tal Instituto fosse organizado, como filial ou correspondente deste nosso Instituto do Rio de Janeiro. Daí partiria a orientação: lá se executaria o trabalho. As academias da língua, fundadas na América espanhola, estabeleceram-se todas como correspondentes da Academia de Madrid, o que tem servido notavelmente para preservar no Novo Mundo a unidade e pureza da língua castelhana, tal como é falada no Velho Mundo, conservando-se pelo menos a expressão literária, que é a comum, o mais livre possível dos provincianismos e crioulismos, que estão inçando por forma tal nossa literatura regional, que já se lê com maior dificuldade no Rio de Janeiro, certas novelas locais do que romances estrangeiros. Entretanto, a Glória de Don Ramiro alcançou o seu renome mundial, graças, sobretudo, à sua linguagem castiça. Não existem obras primas do espírito humano em dialeto: quando muito, podem fixar uma língua já formada. As universidades americanas, onde, seja dito de passagem, a língua e a literatura inglesa recebem esmerado cultivo, chamaram bastante a si aquela missão, que tem sido entre nós a atribuição fecunda dos

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institutos históricos, quando neles se nos deparam trabalhadores do tipo do barão de Studart, no tocante à História cearense. A Universidade de Berkeley, na Califórnia, mantém permanentemente um pessoal de copistas no Arquivo das Índias, em Sevilha, a transcrever quanto se relaciona com a história da conquista e ocupação espanhola da costa do Pacífico setentrional, e este trabalho é dirigido por um professor eminente, como Morse Stephens, o autor de uma História de Portugal, cuja tradução Oliveira Martins prefaciou. Nos arquivos ingleses, franceses, holandeses e suecos, o passado da União é esmiuçado pelos atuais universitários americanos, nas suas origens diversas e divergentes, e conheço professor que vai todos os anos à Europa trabalhar durante as férias no Museu Britânico, no Record Office ou nos Arquivos Continentais. Não quer isso dizer que não existam nos Estados Unidos associações análogas a este nosso Instituto, de estudo do passado pátrio. A Sociedade Histórica do Estado do Wisconsin, que é a mais importante do seu gênero, no Oeste, possui uma biblioteca de 160.000 volumes, e outros tantos folhetos, um museu histórico e etnográfico, tudo alojado num magnífico edifício, e o particularismo de instituições poderosas como ela se funde num largo sentimento unionista e patriótico, manifestado por uma convenção anual das sociedades históricas de todo o país, a qual tem sempre lugar pelo Natal. Fui convidado para assistir à reunião de dezembro último na Associação Histórica Americana, que praticamente traduz aquela convenção, sob a forma de uma sociedade geral. A urgência da minha partida vedou-me semelhante prazer, tendo de esperar por outra ocasião para assistir àquela edificante reunião nacional, que eu tanto estimaria ver imitada entre nós, embora não fosse sob o aspecto permanente de uma associação. Assim como temos tido congressos geográficos – o quarto vai celebrar-se no Recife, depois dos do Rio de Janeiro, S. Paulo e Paraná –, seria de maior conveniência a reunião de um Congresso

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histórico brasileiro, em que fossem representados todos os institutos históricos estaduais, formando-se assim uma federação intelectual e afetiva, que não deixaria de ter sua importância. Tudo quanto for de natureza a reforçar entre nós o sentimento nacional, o sentimento brasileiro, deve ser cuidadosamente cultivado, e todos lucram em verificar que a nossa História, por mais local que pareça, é toda ela a mesma, obedecendo aos mesmos intuitos e à mesma direção: que nos são comuns seus espíritos e seus processos; que a língua, a religião, a tradição e a velha alma portuguesa nos fizeram iguais, e tão iguais, que, apesar das variantes na dosagem maior ou menor dos elementos exóticos, o brasileiro é o mesmo do extremo Norte ao extremo Sul, havendo talvez menos diferença entre um paraense e um paulista, um mineiro e um pernambucano, do que entre um provençal e um normando, um catalão e um andaluz, um lombardo e um calabrês. Verdade é que as misturas de raças na Europa, sobretudo na confusão medieval, foram muito mais largas e profundas do que no Novo Mundo, fundindo-se celtas, hunos, bérberes, árabes, teutônicos, etc. Nossa bela unidade política, e o que mais é moral, compete aos Institutos Históricos e a este principalmente e especialmente, que é o mais antigo e ilustre de todos, representando como que a capital para as províncias, zelá-la, defendê-la e assegurá-la por todos os meios ao seu alcance. Não importa que estes meios sejam intelectuais e não materiais; têm eles grande influência e exercem forte apelo. Qualquer movimento de força tem que ser preparado e disposto pelo movimento das ideias. Não quer isto dizer que o Instituto se confine num nacionalismo estreito e, ao cabo, esterilizador. Muito pelo contrário, deverá pôr-se em contato cada vez mais íntimo com as associações congêneres do estrangeiro e outras, como, por exemplo, o Instituto Teuto-Sul-Americano, que acaba de fundar-se em Bonn sob os auspícios da Sociedade Renana de Pesquisas Científicas – das mais opulentas entre as associações intelectuais alemãs – e que tem em mira desenvolver as relações

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espirituais entre a Alemanha e os países da América Latina, publicando boletins, periódicos e livros de propaganda e estabelecendo um largo Intercambio de publicações por intermédio dos seus comitês locais – tudo no sentido de tornar respectivamente melhor conhecidas umas das outras essas nações que, separadas pelo oceano e geograficamente longínquas, representam o mesmo tipo de civilização cristã. O Brasil deve, aliás, muito à ciência e até um pouco à arte germânicas. Os nomes de Spix e de Martius, do príncipe de Wied-Neuwied e de Pohl, de Rugendas e de Burmeister, devem ser prezados entre nós pelo ardor com que realizaram suas explorações, pela consciência que puseram nos seus estudos etnográficos, botânicos e zoológicos, pelo gosto com que fixaram os aspectos pitorescos da nossa paisagem e da nossa população. É lastimável, para não dizer censurável, sendo tão pouco divulgada entre nós a língua alemã, não se achem ainda traduzidas em vernáculo as interessantíssimas viagens de Spix e de Martius que, segundo ouvi do sr. Secretário perpétuo, o Instituto pensa justamente agora em mandar verter, pelo que o felicito cordialmente. Outras obras de resto existem em alemão, mesmo obras históricas sob a forma de contribuições pessoais, sobretudo para os anais do primeiro reinado, que não só merecem como carecem de ser conhecidas para uma exata compreensão dos acontecimentos dessa época. Nem preciso recordar que a única História filosófica do Brasil, que é a de Handelmann, nunca mereceu as honras de uma tradução. O Instituto agora criado em Bonn visa e, dada à constância do caráter alemão, chegará sem dúvida a coligir, enfeixar e sistematizar semelhantes estudos latino-americanos, não deixando sumir-se a tradição científica na corrente industrial, se bem que a indústria alemã seja considerada a filha da ciência alemã. Tenho a honra de pertencer ao Conselho diretor deste Instituto teuto-sul-americano, que é um fruto do melhor meio acadêmico alemão, e posso recomendá-lo à boa camaradagem do Instituto Histórico.

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O nosso latinismo não perigará por causa desse convívio com o germanismo, antes terá muito a lucrar, rasgando-se novos horizontes intelectuais e colaborando em afirmar a solidariedade moral, que deve ser o objetivo principal da cultura hodierna. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tem, pois, pelo que estamos vendo, um variado, nobre e fecundo papel a desempenhar na evolução da nossa cultura. Compete-lhe em primeiro lugar ser o divulgador máximo das informações relativas ao nosso passado comum, isto é, à nossa tradição nacional, para tanto transformando seus arquivos em depósito de documentos de caráter histórico, oficiais e particulares, interessando todo o Brasil, que a colonização exclusiva e ciosamente portuguesa preparou uno, que na Independência o Império fez realmente uno, e uno deverá ficar se quiser ser grande e forte. Nesta mesma ordem de ideias deverá o Instituto fomentar, dirigir e congregar as pesquisas pelos arquivos da Europa de um pessoal habilitado e ilustrado, entregando tais documentos à publicidade e ao estudo por uma forma metódica e inteligente. A Comissão dos Manuscritos na Inglaterra não esperou que se precisasse a transformação democrática da Inglaterra para recolher nos arquivos das grandes casas aristocráticas britânicas os papéis interessando à História nacional, os quais sendo sistematicamente editados. Cabe, além disso, ao Instituto o cultivar relações proveitosas para ambos os lados com os institutos europeus de natureza intelectual, empenhados em aproximar culturas diversas no aspecto e na substância idênticas. Quando digo europeus, incluo os americanos, porquanto o Novo Mundo deve ser considerado como um prolongamento moral da Europa. Pertence-lhe por fim a altíssima missão de zelar a integridade da pátria brasileira mediante a guarda das suas tradições. Mais de uma vez já tem ido o Governo brasileiro buscar ou robustecer nos arquivos e publicações do Instituto a prova do nosso direito à posse de qualquer território ameaçado de absorção estrangeira. Acon-

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teceu isto na questão da Trindade e também na do Amapá. O Instituto não poderia aspirar a mais legítimo padrão de glória do que esse, a um testemunho tão inequívoco da sua utilidade e da sua benemerência. Hoje, porém, que estão findas as controvérsias de limites e quero crer que também as de domínio, a sua ação pode ser constante e profícua no intuito de preservar a coesão nacional, fornecendo às partes componentes da União a razão de ser e a consciência dos fundamentos, sobre que assentou esta construção, que se impõe pelo arrojo do plano, mas igualmente pela harmonia dos seus variados materiais. Estado colonial, Reino Unido, Império ou República, o Brasil vale e valerá, uno e indiviso, dentro da Federação, pela qual se revelam as origens particularistas da sua História. Não vos faço, meus caros consócios, a injúria de pensar que podeis sequer recear que o carinho pelo passado que se traduz pelo amor da verdade na sua evocação, e portanto da exatidão na sua documentação, possa ser suspeito de tendências reacionárias. O tradicionalismo é uma manifestação de progresso e não de atraso: os povos só o cultivam, quando atingem um grau elevado de adiantamento. Somente espíritos estreitos e obcecados de jacobinos eivados de paixão e fustigados pelo interesse – porque nestes subsiste muito mais espírito de Barêre do que de Saint-Just – poderão pretender o contrário e querer romper a continuidade da nossa História, continuidade que faz a sua substância e a sua beleza. Desde o descobrimento até hoje, o caminho percorrido tem sido árduo e penoso, mas a marcha há sido incontestavelmente gloriosa. A defesa contra as cobiças estrangeiras, a conquista dos sertões, o recuo das fronteiras até as atuais balizas, o alvorecer da consciência nacional, a organização da administração e da justiça sob os auspícios de um rei benfazejo, o advento da nova nacionalidade sob a forma de um império constitucional, a implantação do regime representativo e parlamentar, a abolição da escravidão – praga social alardeando de necessidade econômica –, a mudança do regime pela sugestão demo-

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crática, o desenvolvimento de recursos naturais, a civilização material preparando a moldura para a cultura moral, são fases todas de uma só evolução, que se completam sem se contradizerem, elos todos de uma só cadeia, que constitui o Brasil. Para amar o Brasil como ele deve ser amado, não se pode denegrir um período para enaltecer outro, não se devem exaltar os próceres da Independência à custa dos portugueses que a tornaram possível, nem os propagandistas da República à custa dos homens de Estado do Império, que nos deram o gosto da paz, da ordem associada à liberdade e das coisas da inteligência. Há que enxergar, em todos, os seus serviços reais embora com os seus possíveis defeitos, mas só indagar do que cada um contribuiu para a grandeza da pátria que nos é felizmente comum, e cujo culto não é privilégio, quer de pessoa, quer de regime.

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JOÃO RIBEIRO Discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

apresentação Patricia Santos Hansen1

João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes nasceu em Laranjeiras, Sergipe, em 24 de junho de 1860, e faleceu no Rio de Janeiro em 13 de abril de 1934. Chegou ao Rio de Janeiro no início da década de 1880 e foi apresentado ao círculo de letrados da capital pelo conterrâneo Silvio Romero. Um verdadeiro polígrafo, notam biógrafos e comentadores, ressaltando sempre que o autor dedicou-se ao jornalismo e à crítica literária, à filologia e à história, à pintura, poesia e tradução. Foi professor do Colégio Pedro II e o primeiro membro eleito para a Academia Brasileira de Letras. Ao ingressar no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1915, portanto, era já um intelectual consagrado. Porém, não como historiador. Quando João Ribeiro proferiu o seu discurso de posse, na sessão do dia 20 de abril de 1915, o fez em meio às rápidas homenagens, apresentações de propostas e pareceres, comunicações, leituras de cartas e votações de assuntos os mais comezinhos, como, aliás, costumavam ser as sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, nas quais ocorriam as solenidades de posse dos sócios efetivos, honorários e beneméritos. Não obstante, as cerimônias de posse, assim como as sessões dentro das quais se realizavam, eram rituais rigorosamente cumpridos de acordo com o que estava prescrito nos Estatutos vigentes. A sessão estava relativamente vazia. Para além da presença obrigatória do presidente, o conde de Affonso Celso, contava com os dois secretários, Max Fleuiss e Roquette Pinto, o orador Benjamin Franklin Ramiz Gal-

1  Patricia Hansen é Marie Curie Fellow, integrada como investigadora na área de História da Educação do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.

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vão e mais doze sócios,2 a maioria deles formando o grupo mais assíduo a estas sessões. O mínimo de nove sócios exigidos pelo Estatuto para a realização de uma sessão ordinária estava garantido (RIHGB, 1913). Do mesmo modo, o candidato a “sócio efetivo” havia preenchido todos os requisitos necessários: “residir no Rio de Janeiro e apresentar diretamente ou por algum sócio em seu nome trabalho próprio acerca da História, Geografia, Etnografia ou Arqueologia, quer esse trabalho seja inédito, quer já estampado, uma vez que abone a capacidade do autor” (RIHGB,1913: 361). Do ponto de vista institucional, o processo formal que culminou com a posse em abril de 1915 começou na sessão de 8 de setembro de 1913. Foi nesta ocasião que Max Fleuiss, Pedro Souto Maior, Luiz Gualberto, Norival Soares de Freitas, Roquette Pinto, Manuel Cícero, Raul Tavares e Homero Baptista apresentaram a seguinte proposta: Propomos para sócio efetivo do Instituto o sr. João Ribeiro. Professor de História, tendo publicado uma obra reputada excelente sobre História do Brasil, além de muitos outros trabalhos que tão vantajosamente recomendam a superior cultura do seu espírito, o sr. dr. João Ribeiro poderá prestar ao Instituto os melhores serviços. Apresentamos como título para a sua admissão a referida História do Brasil (RIHGB, 1914: 601-602).

A proposta foi encaminhada para a Comissão de Admissão de Sócios, sendo nomeado relator o sócio Clóvis Bevilácqua, que apresentaria um parecer alguns meses depois. Há pelo menos dois aspectos que, não sendo muito comuns aos processos de admissão do IHGB naquele período, são dignos de nota nessa proposta: a significativa assinatura por oito sócios/proponentes,

2  Antonio Ferreira de Souza Pitanga, Alfredo Valadão, Homero Batista, Basílio de Magalhães, Gregorio Taumaturgo de Azevedo, Antonio Olinto dos Santos Pires, José Américo dos Santos, Eduardo Marques Peixoto, Liberato Bittencourt, Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque, Alfredo Rocha, João Coelho Gomes Ribeiro e Arthur Indio do Brasil.

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o que demonstra o suporte intrainstitucional da candidatura;3 e a apresentação de um único título para sustentar a proposta, particularmente por ser este um manual escolar. Fundado em 1838, os primeiros estatutos do IHGB definiam como fins do Instituto “coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários para a história e geografia do Império do Brasil; e assim também promover os conhecimentos destes dois ramos filológicos por meio do ensino público” (RIHGB, 1908: 18).O compromisso original com o ensino público, contudo, iria desaparecer nos estatutos vigentes a partir de 1912, assim como a exclusividade da história nacional, ainda que esta se mantivesse prioritária. No início do século XX, a redação do artigo 1º passava a ser a seguinte: “O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado a 21 de outubro de 1838 na cidade do Rio de Janeiro, sua sede social, tem por fim proceder a estudos e investigações concernentes à História, Geografia, Etnografia e Arqueologia, principalmente do Brasil”. A afirmação deste objetivo, digamos, mais científico, com ênfase nos “estudos e investigações”, seria amparada pelo artigo 2º, que determinava os meios pelos quais o Instituto deveria realizá-lo, a saber: a) coligir, conservar e classificar documentos, livros, cartas geográficas e outros objetos que lhe possam fornecer elementos de informação e devam constituir um Arquivo, uma Biblioteca e um Museu; b) publicar anualmente a Revista do Instituto Historico e Geográfico Brasileiro, dividida em duas partes, em uma das quais serão insertos trabalhos dos sócios e documentos relativos ao Brasil, e em outra, além desses trabalhos, as atas das sessões, o relatório do 1º Secretário, lido na sessão magna aniversária, e a lista dos sócios existentes, com as suas diversas categorias e data de admissão; c) estabelecer correspondência com as sociedades nacionais e estrangeiras de igual natureza (RIHGB, 1913: 360).

3  Seria interessante efetuar aqui uma análise complementar sobre a maneira pela qual o autor inseria-se nos mais importantes locais e redes de sociabilidade, mas, infelizmente, não cabe nos limites deste texto. Sobre o apoio intrainstitucional para ingresso no IHGB, contudo, destaco a amizade duradoura com Max Fleuiss, da qual são testemunhos as cartas trocadas desde 1895 depositadas no Arquivo do Instituto.

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Neste novo contexto, a apresentação de uma proposta de admissão amparada em um único manual escolar não era uma investida óbvia e somente o caráter excepcional desse livro podia justificá-la. Sendo durante muito tempo a principal instância de consagração de homens de letras, que por contribuição para o conhecimento histórico considerada válida pelos sócios poderiam ser rotulados “historiadores”, o IHGB era, ainda no momento em que João Ribeiro ali ingressou, a instituição que no Brasil tinha autoridade para definir o que era ou não história e, talvez mais importante para a definição de um modelo ou ideal para os que desejavam se aventurar naquela prática, o que era “boa” ou “má” história. Tratava-se efetivamente de uma “sociedade de discurso” capaz de consagrar “aquele que diz e o que diz”, de acordo com Angela de Castro Gomes (GOMES, 2009: 67). Nesse sentido, os estatutos (e suas mudanças), os pareceres sobre os candidatos e suas obras, os discursos de posse e outros são fontes privilegiadas para compreender o que era então concebido como o saber e o fazer histórico, conferindo autonomia e delimitando contornos disciplinares, definindo aos poucos uma identidade para a história e para os seus praticantes. Considerando isso, torna-se necessária uma breve análise do livro escolar História do Brasil,4 enfocando não tanto a obra que justificou o ingresso de João Ribeiro no Instituto, mas aquilo que sobre ela foi dito e suas diversas apropriações.

4  Em sua 1ª edição de 1900, pela Livraria Cruz Coutinho, o livro chamava-se História do Brasil adaptada ao Ensino Primário e Secundário. No mesmo ano, seria desdobrada em três versões: para o curso primário, para o curso médio e, finalmente, a mais bem-sucedida, para o curso superior, que chegaria à 19ª edição em 1966. Ainda em 1900, a Livraria Francisco Alves publicaria a “Edição do Centenário”. De acordo com Múcio Leão, em 1920 a História do Brasil. Curso Primário estava na sétima edição da Livraria Alves. A História do Brasil. Curso Superior, estava na 17ª edição em 1960; “as 14ª, 15ª e 16ª edições, todas elas revistas e comentadas por Joaquim Ribeiro, são da Livraria São José, e saíram em 1955 e 1957”. A única versão sobre a qual Múcio Leão não faz referência a outras edições é a História do Brasil, Curso Médio. Cf. “Bibliografia do Autor”. In: João Ribeiro. Trechos Escolhidos. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1960. pp. 78-79. A “Edição do Centenário” ainda era anunciada na 4ª edição da História do Brasil. Curso Superior, em 1912.

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O texto do livro, assim como o discurso de posse e outros textos de João Ribeiro, expressam em maior ou menor grau a interessante visão de história do autor, suas influências e diálogos, os quais permitiram um modo original de escrever a história do Brasil.5 Entretanto, é principalmente a partir de sua recepção e influência que se pode atribuir ao livro um lugar na história da historiografia brasileira. Vale a pena acompanhar os comentários e a argumentação do Parecer lido na sessão de 22 de setembro de 1913. Os parágrafos iniciais destacam as qualidades excepcionais de João Ribeiro como filólogo, professor, folclorista, poeta, prosador, na “crítica literária e filosófica”, nas “considerações de ordem social e política” e, finalmente, como pianista e pintor. Nas palavras do relator, as mesmas “qualidades de espírito”, a “extensão e a independência” verificadas naquelas atividades, eram também encontradas no “historiador”. É curiosa a forma escolhida para apresentar o livro que faria do autor, “historiador”: “Esse livro, segundo o indica a declaração da página de rosto, é um manual destinado ao ensino da História pátria nos estabelecimentos de ensino secundário. É, porém, um manual de cunho próprio, em que o espírito se ergue das minúcias fatigantes de crônica e abrange os fatos numa generalização” (RIHGB, 1914: 627). A caracterização do livro como um “manual” segundo a “declaração da página de rosto” é quase uma negação de que o livro fosse (somente) isso. Todo o esforço argumentativo que se segue é feito com o objetivo de mostrar que o livro era, na verdade, muito mais do que um manual6. [...] o seu compêndio leva o aluno para caminhos novos, não trilhados pelos nossos historiadores, mas que são traçados por uma concepção científica da vida dos povos [...].

5  Há, atualmente, muitos trabalhos sobre João Ribeiro e sua História do Brasil, considerada do ponto de vista da história da educação ou da historiografia. Cito aqui apenas alguns dentre os que tratam mais diretamente do assunto: PEREIRA, 1998. Memória e história na obra de João Ribeiro; HANSEN, 1998; HANSEN, 2000; MELO, 2008; SILVA, 2008; RODRIGUES, 2011. 6 

Para uma análise mais aprofundada, ver: HANSEN, 2000.

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João Francisco Lisboa havia também tentado escrever a nossa História, desprendendo da confusão mesquinha dos eventos o curso da vida nacional; mas o seu trabalho de cunho superior não foi além dos primeiros momentos da nossa História, e se restringiu, especialmente, a uma região do país. Coube ao sr. João Ribeiro oferecer-nos uma vista de conjunto da civilização brasileira, num compêndio ginasial que instrui a adolescência e orienta os historiadores provectos. Para os primeiros, simplifica os fatos, selecionando-os e sintetizandoos; para os segundos, extrai da marcha geral da civilização, nesta parte da América, elementos para interpretar os acontecimentos, e para mais proveitosamente dirigir as suas investigações (RIHGB, 1914: 627).

Note-se a ênfase dada ao recorte nacional e à questão da escrita, a interpretação não dos “documentos”, mas dos “eventos” ou “acontecimentos”. Mais de um ano depois, o orador do Instituto iria em resposta ao discurso de posse de João Ribeiro sublinhar novamente aqueles aspectos: “As vossas próprias palavras, que acabamos de ouvir com sumo interesse, demonstram claramente quanto haveis meditado sobre esta ordem de assuntos e o espírito filosófico com que tendes por hábito encarar a nossa existência como povo” (RIHGB, 1914: 627). É, pois, pela produção de uma síntese da história do Brasil assentada sobre profunda reflexão filosófica, consciente de sua originalidade, diga-se de passagem, que João Ribeiro conquistará reconhecimento como historiador. Mais ainda, é relevante que para alguns notáveis intelectuais, contemporâneos e pósteros, João Ribeiro fosse citado ao lado de Capistrano de Abreu,7 conforme referências que encontramos aqui e acolá.8 A começar pelo mesmo Ramiz Galvão, que introduz sua “resposta” ao discurso de posse com a seguinte lembrança:

7  Sobre Capistrano de Abreu, ver: GONTIJO, 2006; ARAÚJO, 1998: 28-54; WEHLING, 1999; PEREIRA, 2002. 8 

Ver: FREYRE, 1994: XXXVI; LIMA, 1997: 144; entre outros.

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Há muitos anos entraram para o quadro dos funcionários da Biblioteca Nacional, pela porta larga e luminosa do concurso, dois jovens Brasileiros de real talento e prometedores de brilhante futuro. Deles o mais antigo, Capistrano de Abreu, ali no meio de livros e de documentos preciosos, engolfado na leitura insaciável, investigador e crítico sagaz, adestrou-se para a conquista da cadeira de História do Brasil no Colégio Pedro II, para as eruditas anotações ao livro do Visconde de Porto Seguro, para uma série copiosa de trabalhos históricos de grande valor. O outro sois vós, sr. dr. João Ribeiro. Estudiosíssimo cultor da língua brasileira, desde os verdes anos, começastes ali a série de livros didáticos, que vos deram o justo renome de filólogo, e vos preparastes também para a função de professor de História desse mesmo colégio, que já foi um instituto modelar de ensino [...]. Como filólogo, tendes vosso lugar na Academia Brasileira, e poucos, bem poucos, ali vos disputarão a primazia. Como historiador, confesso, sr. dr. João Ribeiro, que tardáveis aqui, neste Cenáculo, onde se congregam para estudar as coisas da Pátria, quantos por sua História, pela sua Geografia se desvelam (RIHGB, 1916: 622).

Ser citado como uma referência tendo como patamar comparativo Capistrano de Abreu não é pouca coisa, considerando que, a partir dos anos 1930, ganharia força a ideia de que é com Capistrano que “nasce o saber histórico no Brasil e que sua figura é que conclui ou conforma de modo acabado a distinção entre o ‘homem de letras’ e o pesquisador da ciência da história, embora ambos os papéis pudessem estar reunidos, ainda, em um mesmo indivíduo” (GOMES, 1996: 90). Transformado em modelo para os historiadores de seu tempo, mas, principalmente, devido ao reconhecimento póstumo por outros grandes que lhe consagraram como um “marco” na produção historiográfica brasileira, Capistrano de Abreu, pode-se dizer, estabeleceu um padrão para o ofício do historiador. Não obstante, estava longe de representar, em sua prática e escrita, a maioria daqueles que eram socialmente reconhecidos como historiadores na mesma época. Era mais uma exceção, ainda que desejável, do que a norma.

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Os sócios do IHGB constituíam um grupo heterogêneo no que diz respeito às concepções de como fazer ou escrever história, o que é interessante para observar as ideias em disputa, as tensões e os debates de caráter científico, político e filosófico que marcam aquela etapa da conformação do campo historiográfico. Entretanto, eles próprios se reconheciam como historiadores, numa concepção muito ampla e fluida é bem verdade, mas que em larga medida se expressava nos rituais institucionais, em especial naquele de ingresso no Instituto, o mais seletivo, detalhado e rico de simbolismos. Na ocasião da posse, a apresentação do “diploma” que havia sido enviado ao titular após a comunicação da aprovação da “proposta” era acompanhada pelo juramento: “Prometo promover, quanto em mim couber, o engrandecimento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e observar fielmente os seus Estatutos” (RIHGB, 1913: 364). Era após esse compromisso de lealdade para com a instituição, de um notável silêncio com respeito a uma ética, que o novo sócio, declarado empossado pelo presidente, finalmente proferia o seu discurso.

referências ARAÚJO, R. B. Ronda noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.1, n.1, 1988. ATAS das sessões realizadas em 1913. RIHGB, Rio de Janeiro, t. LXXVI, parte II, (1913), 1914. ATAS das sessões realizadas em 1913. RIHGB. Rio de Janeiro, t. LXXVI, parte II, (1913), 1914. ATAS. RIHGB. Rio de Janeiro, t. LXXVIII, parte II, (1915), 1916. Extrato dos Estatutos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. RIHGB. 3. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, t. I, n. I, 1908. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 29ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1994. GOMES, A.C. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentvm, 2009. História e Historiadores no Brasil: do fim do Império ao alvorecer da República

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GOMES, A.C. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. GONTIJO, R. O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao historiador. Niterói: ICHF; UFF, 2008. Tese (Doutorado em História). HANSEN, P. S. Feições e Fisionomia. A História do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro: Access, 2000. ______. Feições e Fisionomia. A História do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro: Access, 2000. ______. João Ribeiro e o Ensino da História do Brasil. In: MATTOS, I. R. (Org.). Histórias do Ensino de História no Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998. LIMA, Manuel de Oliveira. Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. MELO, C. F. C. B. Senhora da história e do esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de História na segunda metade do século XIX. Belo Horizonte: Argvmentum, 2008. PEREIRA, A. C. Memória e história na obra de João Ribeiro. Rio de Janeiro: UNI-RIO, 1998. Dissertação (Mestrado em História). PEREIRA, D. M. Descobrimentos de Capistrano: a História do Brasil “a grandes traços e largas malhas”. Rio de Janeiro: PUC, 2002. Tese (Doutorado em História). RIHGB. Rio de Janeiro, t. LXXV, parte II, (1912), 1913. RODRIGUES, R. R. João Ribeiro e a historiografia brasileira: percursos e perspectivas. 2011. In: Caderno de resumos & Anais do 5º Seminário Nacional de História da Historiografia: biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP, 2011. SILVA, R. C. O polígrafo interessado: João Ribeiro e a construção da brasilidade. São Paulo: FFLCH/USP, 2008. Dissertação (Mestrado em História). WEHLING, A. Capistrano de Abreu e o Descobrimento do Brasil. Acervo – Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v.12, n.1/2, jan./dez. 1999. Fernando Nicolazzi (Organizador)

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discurso de posse no instituto histórico e geográfico brasileiro1 João Ribeiro

Agradecendo a benevolência vossa em me chamar ao vosso grêmio, devo seguir o exemplo de um acadêmico famoso, que em circunstâncias idênticas não quis confessar a sua falta de mérito. Pois que, confessá-lo (e em mim não seria falsa modéstia), seria diminuir o espírito de justiça, a sabedoria e a ponderação que preside às vossas escolhas. Se me escolhestes, é que certamente eu o merecia. Sempre tive as mesmas preocupações que são as vossas; há trinta anos, falando, ou ensinando ou escrevendo, sempre cultivei os assuntos nacionais que, todos, vos interessam. Eis a medida do meu mérito. Premiastes em mim o meu persistente e diuturno esforço. E a recompensa, eu a considero magnífica. Consenti que eu aproveite a ocasião para uma fantasia do espírito. Os arqueólogos e historiadores que, como os geólogos, sabem descobrir os horizontes antigos e sabem deles se orientar, podem desmentir todas as sínteses inábeis dos que são apenas simples curiosos como eu. Mas a própria História é uma contínua substituição de ideias e de fatos. Ao grado do presente, todo o passado se transforma. Quando Mommsen escreveu a sua “História Romana”, o imperialismo já do seu tempo lhe sugeriu a apologia de César e o descrédito de Cícero.

1  Discurso proferido por ocasião do ingresso no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1915 publicado na Revista do IHGB em 1915. Edição do texto consultada: RIBEIRO, João. “Discurso de Posse”. In: RIHGB, t. LXXVIII (1915), parte II, 1916 (N.O.).

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O presente é quem governa o passado e é quem fabrica e compõe nos arquivos a genealogia que lhe convém. A verdade, corrente hoje, sabe buscar, onde há verossímeis, os seus fantasmas prediletos de antanho. Hoje elevamos estátuas a Tiradentes, porque o nosso ideal de agora determinou esse culto. A fuga de d. João VI traduzia-se há pouco pelo eufemismo da transmigração, como se lia nos compêndios. Também na França os revolucionários de 89 ergueram um culto aos Brutos vingadores de Lucrécia. E assim, o presente modela e esculpe o seu passado, levanta dos túmulos os seus heróis e constrói com assuas vaidades ou a sua filosofia a hipótese do mundo antigo. A imparcialidade pode ser imoral: nós temos a obrigação de justificar o presente, de fundar a Ética da atualidade. O contrário seria o suicídio das nossas aquisições. Os Romanos buscaram em Troia a sua falsa ascendência. Os bandoleiros eram já então homens honrados. Isto não é falsificar por vanglória nem deturpar por jactância, nem mentir por amor da mentira. É estender ao passado as mais nobres ambições do presente. É ressuscitar o que é digno de ressurreição. Com esta filosofia, ou antes, com este pragmatismo, é que tenho meditado sobre a nossa História. Por vezes, tenho procurado surpreender o caráter ou a expressão mais geral de nossa vida. O caráter de um povo, ou, o que é mesmo, o fato mais assíduo e frequente da sua História, pode talvez esclarecer-nos a sua vocação ou o seu destino. Resta evocá-lo, descobri-lo nas suas faces essenciais; mas sob aspectos menores e secundários, parece-me que um sentimento fundamental em nosso povo é o seu conservatismo exagerado, e o seu espírito contemporizador, o seu senso profundo e demorado das oportunidades. Entre nós, os problemas, as questões mesmas que tiveram rápida execução, foram precedidas de longa expectativa.

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A lentidão no resolver o anacronismo dos recursos, o misoneismo cauto e seguro contra ideias recentes, parece ter sido a nossa bússola desde os primeiros passos. A nossa História ilustra perenemente essa vocação descansada de país cunctator. Todas as nossas experiências políticas e sociais atraiçoam o culto da tradição, o amor do passado e o temor do futuro. Ao Brasil, antes que visse a luz, já a diplomacia lhe havia traçado contorno. Nasceu sob medida. O meridiano de Tordesilhas marcava-lhe a extensão do berço. Ele é assim, ao mesmo tempo, um fato de Pré-história antes de o ser da sua própria História. Da mesma sorte, a sua primeira organização foi outro anacronismo. Fora desencavar na arqueologia portuguesa a obsoleta Lei mental de d. Duarte para justificar a criação das capitanias hereditárias. E ainda hoje persistem vivedouras as capitanias antigas. E ouço dizer até de algumas, que são ainda hereditárias. Como quer que sejam, elas enchem toda a nossa História e deram-lhe a feição definitiva. Sempre conservadores, sempre lentos, tardos e precavidos, construímos com elementos medievais os fundamentos de uma nacionalidade, que desabrochou no renascimento. Essa mesma lentidão de processos caracteriza a imobilidade da nossa vida. Lembremo-nos de que toda a história colonial combatemos contra todos os povos e lutamos por uma ideia retrógada, a do mare clausum. Com esse lábaro anacrônico e com essa insensibilidade pelo progresso, exasperamos ingleses, holandeses e franceses, a quem chamamos piratas. A escravidão foi outra experiência da mesma espécie, longa, interminável. A ideia abolicionista vencera em todo o orbe. Nós outros resistimos e fomos o derradeiro povo a resolver o problema. A República, outro fato essencial, esteve às nossas portas desde o século XVIII, constantemente, sem descanso, sem quase interrupção.

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Resistimos ainda, e como sempre, fomos os últimos a adotar essa expressão da política continental. A própria Monarquia, sem eco na América, precária e efêmera no México, aqui teve um longo asilo, uma hospedagem por três gerações. E em verdade, que hóspedes excelentes! Não quero, porém, abusar da vossa atenção. Lembrai-vos sem dúvida, das interessantes “Memórias” (publicadas em vossa “Revista”), do major prussiano Von Versen, que não era nada nosso amigo, entretanto a nossa maior inépcia, de que nos acusava, era a da lentidão dos nossos generais, tarde, vagarosa, passeira e inexplicável. Perdoai-me ainda um despropósito: dizem que as nossas terras são o hábitat único de um curioso animal– a preguiça. Deram a esta pobre alimária o nome de um vício a até de um pecado mortal. Mas a natureza não tem vícios, e eu estou que – a preguiça – sabe muito bem por que é lenta e vagarosa. E as suas pausas devem encerrar um segredo divino. É bom entender ou pelo menos respeitar todos os mistérios. Quando vejo o que nos falta, ou quando reflito sobre os nossos defeitos, eu cuido ver a alma incompleta e ainda infante do Brasil, que me diz em sua transparência luminosa: – Para que tanta pressa, se eu tenho por mim a eternidade! Assim é, ou assim deve ser. Um país, quando tem as proporções do nosso, pode desafiar o tempo. É o fato mesmo da grandeza material que nos faz lento. As nossas energias andam dispersas por uma área quase infinita, não é fácil coordená-las ou movê-las; não é de estranhar que sendo dispersas, umas contradigam a outras, ou que sejam entre si indiferentes. Todo o nosso trabalho é concentrar as poucas que concorrem, convergem, ajudam e formam o nosso turbilhão vital. Perdemos, assim em grandeza, em multiplicidades inúteis a eficiência da densidade aproveitável. Por isso é que somos lentos, por uma ataxia fatal e inevitável, e tudo, pois, esperamos da longevidade das coisas. Mas, quantas vantagens nesse vagaroso movimento!

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Quantos frutos! Fomos pelo mare clausum, pelo mar fechado ao comércio dos povos, mas essa ideia anacrônica criou os primeiros surtos da nossa autonomia, guardou-nos das competências mundiais, e sem ela seríamos dilacerados pela cobiça dos corsários europeus, holandeses, franceses e ingleses. Sem esse anacronismo preservador seríamos um retalho andrajoso, multicolor, perdido na Babel das raças. Revivemos com as capitanias hereditárias o feudalismo, é bem verdade. Mas essa tradição arcaica lançou os fundamentos de uma fórmula nova, a da federação. E assim por um caminho antigo e esquecido chegamos à larga estrada do liberalismo de hoje. O feudo preparou o self-government. Conservamos a escravidão, talvez mais do que devíamos. Também é certo; mas soubemos lentamente transformá-la em uma chuva de flores e de bênçãos sem os tormentos formidáveis da Secessão e da guerra civil. Este mesmo admirável senso da oportunidade guiou-nos no problema político. A monarquia, malgrado a impaciência dos republicanos, gozou de longa e demorada hospitalidade; mas, até por isso, com ela evitamos um século de pronunciamentos e de revoluções que abrasaram e ainda crepitam na América Latina. Vê-se, pois, que a celeridade ou a rapidez nem sempre é de vantagem. E antes é um perigo. Nos próprios exemplos da natureza há animais célebres e ligeiros, que são débeis e fracos. Na mesma história humana, neste momento assistimos a um temeroso espetáculo. A grande nação que se originou da pequena Prússia, célere, rápida e fulminante, acha-se agora embaraçada e detida diante das lentidões britânicas e do tardo tropel do valoroso eslavo. Eu acredito, pois, que a nossa descoordenação de movimentos, que resulta da enormidade material da terra, é propícia à maturidade das nossas resoluções.

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Ainda na infância, temos a certeza da vida longa. Somos um povo de tradições e de costumes, e de tal arte arraigados, que podíamos dispensar a lei escrita. No tempo de d. João VI, já tínhamos a independência sem a lei a e antes dela; na Monarquia, já tínhamos a República pela democracia profunda da sociedade. Parece que temos em alto grau o senso da expectativa e da oportunidade. Entre nós não há soluções precipitadas ou antecipadas. A nossa terra é uniforme, sem acidentes abruptos, sem tremores e cataclismas, física e moralmente. Sobre essa região tranquila podemos assentar a tenda da nossa eternidade. Quanto a nossa História, que parece vaga e tediosa como é a paz, e monótona como o trabalho cotidiano, cumpre mostrarmos como é ela fecunda, honesta e bela! E este sábio colégio é a mais formosa contribuição que podemos prestar à definição dos nossos destinos.

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FRANCISCO JOSÉ DE OLIVEIRA VIANNA O valor pragmático do estudo do passado

apresentação Piero Detoni1

Aos onze dias do mês de outubro de 1924, em sua quinta sessão ordinária, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro abria as suas portas para o “illustre sociologo patricio” Francisco José de Oliveira Vianna, eleito sócio efetivo naquele mesmo ano. As palavras emitidas pela Comissão de Admissão, composta por Epitácio Pessoa, Manuel Cicero, Ramiz Galvão, Tavares de Lyra e Miguel de Carvalho, davam, de algum modo, uma ideia dos impactos dos seus estudos junto àquela comunidade historiadora. Era grato, à comissão, opinar pela sua inclusão nos seus quadros efetivos, “não só pelo seu trabalho Aspectos Sociais do Brasil”, presente no Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil e que já o credenciava a figurar entre os seus membros, mas em decorrência das suas duas últimas obras: Populações meridionais do Brasil e Pequenos estudos de Psicologia Social. O seu mérito estaria, pois, na redação desses livros, que o colocavam “a par dos mais eminentes sociologos nacionaes”. Ao elegê-lo, o IHGB adquiriria, “na sua pessoa, um lidimo representante da cultura brasileira contemporanea” (RIHGB, 1927: 323). No discurso, proferido por ocasião de sua admissão2, pontos decisivos que atravessavam a renovação historiográfica demandada à época foram colocados em discussão. E mesmo que provavelmente ele estivesse distante das discussões que marcaram a emergência dos

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Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto.

2  O discurso foi publicado, na íntegra e tal qual a versão original, no mesmo ano pela prestigiosa Revista do Brasil. Projeto editorial destacado no período, preocupado com os rumos da nação e capitaneado por Monteiro Lobato. Na Revista, o discurso passou a trazer o sugestivo título de O valor pragmático do estudo do passado.

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Annales, na França dos anos 20, percebemos, direta ou indiretamente, a presença de uma referência importante daquele contexto: Henri Berr. Este, em seus dizeres, conferiu a complexidade necessária ao estudo dos “phenomenos historicos” e impôs a “syntese historica um aparelhamento cultural prodigioso”. Ao citar Berr, o qual sabiamente notou que “a complexidade das coisas [implicava] a diversidade do saber”, advertia aos nossos intelectuais que, para se fazer história, respeitando os parâmetros científicos em voga, eles teriam que possuir, “em sua cultura”, um “enciclopedismo” próximo ao de “Aristoteles”. Além disso, as modernas “syntheses” ultrapassavam “as possibilidades de um só indivíduo e só as grandes associações culturaes [eram] capazes de realiza-as” (VIANNA, 1927: 439). Aqui nos remetemos ao primeiro enredamento proporcionado pela comunhão dos propósitos intelectuais de Berr e Vianna: a constatação que os estudos históricos reuniriam, através de um gesto interdisciplinar, as competências caras aos especialistas da época. Em seguida, após a realização de uma cooperação mútua das pesquisas disponíveis, um esforço interpretativo mais sofisticado e consciencioso acerca da sociedade se efetivaria e, não obstante, soluções políticas de interesse público tornar-se-iam acessíveis através da chancela de estudos cientificamente referendados. Os empreendimentos institucionais de Berr, em maior ou menor escala, são conhecidos por todos: fundador da famosa Revue de Synthèse Historique, em 1900, ele acreditava na congregação, em torno do seu periódico, de pesquisas plurais e que apontassem para o diálogo disciplinar ininterrupto. Para tanto reuniu, além de intelectuais renomados, jovens estudiosos aspirantes aos postos universitários franceses, dentre os quais, para ficarmos com os exemplos mais emblemáticos, os então desconhecidos Marc Bloch e Lucien Febvre. Ademais, em 1920, aventurou-se em um projeto editorial de grande monta: a criação da coleção L’évolution de l’humanité (GEMELLI, 1987).

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Por trás dessa movimentação institucional estava uma inegável consciência epistemológica que guardava o entendimento de que as ciências possuíam graus variados de autonomia e dependência em suas dinâmicas relacionais. Berr anunciava a noção de interdisciplinaridade: postura divorciada de uma apressada “unificação compacta” entre os saberes, bem como contrária ao “eruditismo” empregado pelos “historiadores historizantes”, cujos nomes de Langlois e Seignobos são incontornáveis. Esse gesto relacionava-se diretamente com aquilo que ele denominava como síntese, isto é, a “unificação da ciência a partir da definição de uma metodologia integradora fundada sobre a história” (GEMELLI, 1987: 228). Do outro lado do Atlântico, Vianna também se ocupava com a estruturação dos andaimes teóricos e epistemológicos para execução de “estudos sintéticos”. No seu discurso de posse, espécie de prestação de contas perante aqueles historiadores, destacava-se a importância do IHGB no que tangia ao desenvolvimento de estudos interdisciplinares e que abarcassem a investigação do passado do país. O grêmio era considerado um “centro cultural por execellencia” (VIANNA, 1927: 438). Contudo, ao acompanharmos o desenrolar dos seus argumentos, perceberemos a prescrição de formas de abordagem e de funções para a história distantes, em boa medida, das praticadas. Para que os seus objetivos fossem perfeitamente compreendidos, Vianna efetuou uma cisão alegórica entre o que chamou de modernos e velhos historiadores. Os primeiros, habilitados no diálogo com as ciências sociais e que assimilavam a inerente complexidade dos fenômenos históricos. Já os velhos historiadores, cujos modelos historiográficos deveriam ser superados, restringiam-se à pura crítica erudita, além de empreenderem pesquisas com pressupostos tidos reducionistas, pautados em observações causais. Desse modo, para esses últimos, “os acontecimentos historicos, o desenvolvimento das nacionalidades, a grandeza e a quéda dos imperios, a evolução geral das sociedades eram consequencias da actuação de um numero limitado de causas e, ás vezes, de uma causa

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unica”. Seria recomendável aos historiadores acompanhar as renovações demandadas para transcenderem esse conjunto de práticas investigativas numa direção que mirasse a complexidade das resultantes que governavam os eventos históricos. Só assim, e diferente do que presumiam tais “espiritos simplistas”, “os phenomenos historicos” se mostrariam como de fato eram: “extremamente complexos”, resultantes da “collaboração de uma infinidade de causas” (VIANNA, 1927: 438). Reinhart Koselleck observou que o saber histórico gestado desde ao menos o início do século XIX atingiu, paulatinamente e com variações contextuais, a capacidade de ater-se ao indicativo no qual os resíduos do passado encontrados nas fontes seriam insuficientes para reintegrá-los, de maneira total, junto ao presente. Argumentou que a disciplina tomou consciência de que a sua tarefa pautava-se na busca da verdade, mesmo tendo em vista a relatividade dos seus conteúdos. É válido notar, desse modo, que, para os vestígios do passado informarem algo sobre o tempo transcorrido, o estabelecimento de uma teoria da história apresenta-se inconteste. Uma história, pois, nunca se revela idêntica à fonte que a ela ofereceu testemunho. “Se assim fosse, toda fonte que [jorrava] cristalina seria já a própria história que se [buscava] conhecer” (KOSELLECK, 2006: 186). Parece-nos que Vianna acenava, em maior ou menor escala, para essa compreensão epistemológica da história: que o elencar crítico das fontes não corresponderia, necessariamente, a uma representação especular do real. As “artes de Clio”, assim, viveriam na tensão entre “a construção de um pensamento teórico sobre a história e a crítica das fontes. Uma [seria] completamente inútil sem a outra” (KOSELLECK, 2006: 188). *** A incorporação dos instrumentais teóricos do cientificismo europeu e a revisão da crítica documental dos historiadores imperiais, já verificados junto ao “bando de ideias novas” que marcou a geração de

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1870,3 abriu possibilidades para profundas reformulações nos princípios diretores do conhecimento histórico entre o último quartel do século XIX e a década de 1920. Dentre muitas, evidenciamos uma dupla demanda: realizar uma síntese interpretativa acerca da formação nacional e corrigir as eventuais lacunas da erudição crítica da geração romântica. Verificou-se, ali, certa primazia da dimensão teórica em prejuízo do aporte erudito que acompanhava as investigações historiográficas. Percebe-se, de acordo com Fernando Nicolazzi, esse movimento no chamado “ensaísmo” de interpretação histórica do Brasil. Mas não nos enganemos: uma “derrota da erudição”, nesse contexto, inexistiu. O próprio IHGB não enfrentou o desafio da confecção de uma “síntese da história do Brasil” e permaneceu fiel aos seus propósitos de origem: a criação de princípios reguladores de controle e de validação do saber histórico por meio da erudição crítica; a aquisição de métodos reguladores da confiabilidade daquilo que estava sendo narrado como história; a interdição dos documentos falsos; o estabelecimento de periodizações precisas; a criação de parâmetros éticos, dentre outros, que revelavam-se constituintes da disciplina história na modernidade e apareciam contundentemente nas práticas do Instituto desde a sua fundação. A disciplinarização dos espaços da história era patente, mas faltavam soluções teóricas disponíveis e que avançassem na direção de um esforço interpretativo que conferisse um sentido coerente para o processo histórico brasileiro e que amenizasse a visada realista-mimética inscrita nas operações eruditas. Na agremiação, ou em propostas outras de escrita da história que circulavam no período, a síntese da experiência histórica brasileira era interditada, isto é, ao não fundamentarem a leitura das fontes do passado através de uma teoria, essas propostas historiográficas eram, irremediavelmente, postergadas. A figura do historiador-sintetizador futuro acompanhou a historiografia brasileira

3  Sobre a “geração de 1870” e a tradução dos modelos teóricos do cientificismo europeu no Brasil da segunda metade do século XIX. Cf. ALONSO, 2002.

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no recorte assinalado e é um sintoma inequívoco de transformações importantes na disciplina, sobretudo no que se referia à postura de construção de quadros teórico-conceituais que tornassem a já consolidada crítica erudita uma instância de análise menos comprometida com a realidade bruta das coisas e mais com o estabelecimento de uma mediação, cientificamente controlada, junto ao passado. Algumas asserções de Vianna exemplificam a situação: os fenômenos históricos apareciam, para ele, com uma fisionomia “variada”, eram “multiplos”; e embora “utilizando as luzes de todas as sciencias e apparelhada com incomparaveis methodos de pesquiza, a critica historica [discernia] e [isolava] sinão uma parte delas, que nem sempre, aliás, [era] a maior parte” (VIANNA, 1927: 438-439). Notamos que os propósitos de Vianna, perante os domínios da história, passavam pelo entendimento de que as fontes levariam à aceitação ou negação das possíveis causas que circundavam determinados eventos históricos. No entanto, em virtude da percepção do não esgotamento das interpretações acerca dos eventos, projeções de fundo teórico se elaborariam. Ao acompanhar a experiência brasileira, ele reconheceu, e Koselleck auxilia-nos por aqui, que a decisão “sobre quais fatores [contariam] e quais não só [poderia] ser tomada no campo da teoria, que [estabeleceria] as condições para a história possível” (KOSELLECK, 2006: 187). Com o suporte de uma teoria que embasasse o perspectivismo historiográfico, a formulação de hipóteses sobre as situações pretéritas emergiria com maior apuro metodológico e balizada por diretrizes cientificamente orientadas. A história, fundamentada em condições de provas e por parâmetros conceituais, aplainaria o paradoxo de ser, por um lado, um saber que objetivava o conhecimento correto das coisas e, por outro, por reconhecer as limitações dessa tarefa. De acordo com a posição de Vianna, seguindo, como já mencionado, os passos de Henri Berr, o historiador, amparado pelas “novas ciências”,

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realizaria o seu ofício de maneira objetiva.4 No entanto, a atenção aos referenciais conceituais, distanciando-se do “culto do documento escrito”, colocava em risco aspectos caros à investigação historiográfica. Era como se a mobilização de um quadro conceitual adequado fosse condição suficiente para a legitimação da representação do passado. Ficava a sensação, nesse sentido, de “que o princípio de veracidade na história se deslocava do documento para a teoria”. A correta interpretação histórica da realidade “parecia ser menos um trabalho penoso e demorado de coleta e crítica das fontes” do que uma projeção conceitual ajuizada; a qual, para além da imediatez das aparências, conseguia “apreender um nível mais profundo da experiência, não totalmente disponível à pesquisa empírica”. Nesse profundo: a invisibilidade das “leis” (NICOLAZZI, 2008: 332). Se a ciência da história não havia determinado as supostas leis gerais que regiam as sociedades e que regulavam a marcha progressiva da humanidade em geral, era certo, no entanto, que elas existiam, “embora ainda não reveladas”. No conjunto das diversas “evoluções particulares”, encontrar-se-iam denominadores comuns: “uma evolução geral”. Encontrando as chaves de compreensão que movimentavam as sociedades do passado, em um nível conceitual, a história atingiria o que estava, em essência, oculto naquelas realidades – que os documentos não acessavam – e, o mais importante, do presente. Isso equivaleria a dizer que o trabalho do historiador seria precedido “pela obra do sociologo e que toda a explicação da vida

4  A proposição de uma ciência fundada na história implicava, para eles, numa suspensão de ao menos três aspectos que caracterizavam a produção historiográfica daqueles idos: 1) Quebra do vínculo direto entre trabalho erudito e representação historiadora; 2) “Suspeita” e “aproximação” com as formas literárias que emolduravam os relatos sobre o passado; 3) Distanciamento da divisão comumente aceita entre “ciências físicas” e “naturais”, de um lado, e “ciências humanas” e “históricas”, de outro; dualidade essa que impossibilitava a história de conquistar, definitivamente, o estatuto científico. Diante do desafio, o filósofo francês prescreveu, ainda, que a história ater-se-ia, absolutamente, à atualidade, à vida; tal como sugeriu-nos o seguinte trecho: “Do ponto de vista da pura ciência, não há problema mais urgente e mais central do que a organização da história – interna e lógica, organização externa e prática. Resolvendo-o, fica resolvido, do mesmo passo, o problema da concordância da história com a vida” (BERR, 1946).

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das sociedades passadas [implicava] necessariamente o conhecimento das leis que [regulavam] a vida das sociedades actuaes” (VIANNA, 1927: 440). Vianna criticou enfaticamente a prática historiográfica amparada, exclusivamente, na erudição crítica das fontes e que as tomavam como uma transparência do real. Para que o passado ressurgisse, aos olhos dos modernos historiadores, tal procedimento era insuficiente: essas abordagens resumiam-se a um plano tido como superficial e distante de quaisquer vestígios substanciais que pudessem informar sobre as dinâmicas sociais de outrora. Assim como Berr, ele acreditava que os vestígios do passado não diziam tudo, “não fixavam tudo, não apanhavam todos os aspectos dos acontecimentos”. Sabia-se que tais testemunhos, obtidos na documentação, mostravam-se, através da crítica e de uma teoria apropriada, capazes de evidenciar situações já transcorridas– embora se argumentasse que esses elementos revelados nem sempre eram essenciais e os “detalhes que elles [fixavam], nem sempre [eram] necessarios, essa alguma cousa, que elles [diziam], nem sempre [continha] o sentido intimo e substancial da realidade”(VIANNA, 1927: 440). Para sanar a condição lacunar das práticas eruditas, teorizando-as, e para alcançar certa positividade das leis que envolviam a sociedade brasileira, o historiador, auxiliado pelas disposições investigativas das ciências sociais, lançaria mão daquilo que Vianna denominou como indução conjectural. Através dessa gestual as “insufficiencias inevitaveis” contidas nos “testemunhos dos archivos” seriam resolvidas e diluídas nos encaminhamentos adjacentes à consecução da “syntese historica”. “[Era] tão frequente e mesmo tão necessario este recurso ao elemento conjectural da parte dos historiadores, que muitos delles não [viam] na sciencia historica senão conjectura, e apenas conjectura” (VIANNA, 1927: 440). A princípio, a assertiva parecia contraditória, pois ele sugeria, em suas proposições, abordagens conjecturais, mas, em contrapartida, o recurso afigurava-se, irremediavelmente, como um dos componentes de toda e qualquer elaboração de foro histórico. Não obstante, o fato

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de os historiadores mobilizarem o referido subterfúgio não tiraria, de maneira alguma, da história o seu estatuto como ciência. Era a sua condição. Adiante a contradição foi esclarecida. Dizia Vianna que, no decorrer da prática historiográfica, havia, necessariamente, modos de intuição e de indução; dito de outra forma, seriam duas modalidades “conjecturais” que direcionariam o historiador na perquirição do tempo: a conjectura arbitraria e a conjectura disciplinada. A primeira, “pura obra de imaginação sem ponto de pega nas realidades da vida”; a outra se orientava através “das leis que [presidiam] á estructura e á physicologia das sociedades humanas” (VIANNA, 1927: 441). Sendo assim, Vianna afirmava, motivado que estava por essa nova modalidade de indução norteada por preceitos objetivos e afiançados pela observação retrospectiva do tempo, que aos modernos historiadores era permitido “fazer da Historia uma ressureição”. Além disso, ela, em virtude desse gesto, aparentar-se-ia como uma “bella obra d’arte”, e tal fato não a impediria de ser, outrossim, “uma verdadeira obra de sciencia” (VIANNA, 1927: 442). Através do exposto, delineamos os eixos do que chamamos de vocabulário da síntese. O vocabulário pode ser tomado como uma categoria analítica para investigação das instâncias ligadas aos procedimentos de compartilhamento (dialógico-crítico) de concepções epistemológicas e teóricas nos domínios de certas plataformas de saber. Para o nosso caso: a partir do saber histórico. A síntese em história, da forma como pensavam Berr e Vianna, constituía-se no espaço intelectual estabelecido pela situação acima descrita e válida, de algum modo, para os dois contextos: a demanda por uma espécie de contato interdisciplinar para a consecução do conhecimento histórico; a consciência de que os vestígios não revelariam “os eventos como de fato foram”; a necessidade do estabelecimento de quadros teórico-interpretativos; por fim, a certificação de uma narrativa historiográfica perpassada por critérios considerados científicos e orientados por um olhar a partir do presente.

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A novidade emprestada por Vianna ao vocabulário da síntese foi, certamente, a indução conjectural, porquanto ela forneceria aos historiadores maiores condições de tornar o passado inteligível. Ela lia o passado a partir do presente e esse passava a ser o locus privilegiado para a efetuação de comparações conjecturais junto às leis que enredavam as sociedades pretéritas. Com o auxílio dessa ferramenta metodológica, “[...] a critica historica [desvendou] o mysterio de certos enigmas, que apenas com os elementos archivaes [era] impossivel esclarecer” (VIANNA, 1927: 442). Ou seja, não era a partir do passado que se compreenderia a esfera do presente, ou o inverso, mas sim por meio de um circuito dialógico presente-passado/ passado-presente, como propunha Henri Berr. Para a concretização dessa postura, não bastava o exercício da exegese documental, mas percorrer o caminho investigativo da observação atenta dos homens e das suas representações simbólicas no presente. Partindo da análise da sociedade contemporânea, a história, auxiliada pelos espaços da “sociologia”, da “ethnographia” e da “anthropologia”, acessaria à “morphologia ethnica das diversas camadas sociaes” e, o mais essencial, adquiria a faculdade de “esclarecer certos problemas do passado a luz exclusiva dos archivos não conseguira illuminar.” Através do conhecimento da “realidade actual”, conhecida por meio das “sciencias da natureza” e das “sciencias da sociedade”, a compreensão histórica do passado, ou das “sociedades extinctas”, tornar-se-ia palpável. Ciências que estudariam, em uma perspectiva cruzada, o “solo”, o “clima” e o “homem”, aprofundando o conhecimento sobre o passado brasileiro, desvendando os segredos não só da “vida organica”, mas, sobretudo, “superorganica”. Eram ciências que proporcionariam uma ontologia da brasilidade, que atingiriam o entendimento daquilo que nos constituiria por anterioridade. Elas “[insuflavam] aos textos paleographicos a halito de uma nova vida [dando] aos depoimentos, fixados nas paginas mortas dos nossos archivos, uma tal vibração e uma sonoridade tal

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que, lendo-as, [era] como se estivessemos a ouvir a voz dos nossos proprios contemporaneos” (VIANNA, 1927: 443-444). O saber histórico, travestido de síntese, reviveria “objetivamente o passado” e disponibilizaria, sem entrar em contradição, elementos modelares/cívicos para a nação. Assim, o historiador, motivado pelo vocabulário da síntese, também retiraria ensinamentos, “valores pragmáticos”, junto à(s) experiência(s) do passado a qual se dispunha a investigar. Doravante, a tradução substancial dessa(s) experiência(s) somente se efetivaria no contato com os problemas da atualidade. Para tanto, ele procederia ao trabalho erudito e de análise crítica (inter) cientificamente orientada. Ao final, recolheria a resultante das leis –existentes a priori e expressas em escalas de concretude variáveis no presente – que sustentavam uma dada ambiência histórica através de uma visada interpretativa teoricamente avalizada e inscrita, invisivelmente, na própria narrativa historiográfica. Portanto, solucionaria um dos eternos paradoxos da história na modernidade: ser objetiva (uma ciência) e parcial (perspectiva política). Vianna inclusive aconselhava, sob a rubrica de Berr, a mobilização de artifícios ficcionais nas narrativas históricas, desde que não comprometessem os princípios de cientificidade solicitados, por causarem “sedução” e “fascínio”. Atestou Vianna que essa “curiosidade tão universal pelas obras da Historia [tinha] a sua razão de ser [no] caracter inevitavelmente artistico de toda ressurreição historica” (VIANNA, 1927: 445).Tendo o controle objetivo na análise crítica dos acontecimentos, e movimentando possíveis arranjos estéticos implicados nos suportes narrativos, a história se efetivaria como um discurso capaz de “ressuscitar o passado”. Ela teria, assim, uma utilidade prática: serviria enquanto “escola de educação cívica”. Acompanhando as suas palavras e finalizando a reflexão: “Ella [dilataria], ella [robusteceria], ella [esclareceria] a consciencia do patriotismo em cada um de nós, [aumentando] o sentimento do respeito para com os nossos maiores” (VIANNA, 1927: 449).

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referências ALONSO, Ângela. Idéias em movimento. A geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. BERR, Henri. A síntese em história. São Paulo: Renascença, 1946. COMISSÃO DE ADMISSÂO. “Quinta sessão ordinaria em 12 de abril de 1924”. In: RIHGB, t. XCVI, parte II, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1927. GEMELLI, Giuliana. “Communauté intelectuelle et stratégies institutionelles: Henri Berr et la fondation du Centre International de Synthèse”. In: Revue de synthèse, vol. 2, 1987. KOSELLECK, Reinhart. “Ponto de vista, perspectiva e temporalidade. Contribuição à apreensão historiográfica da história”. In: Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história: a viagem, a memória, o ensaio. Sobre Casa Grande & Senzala e a representação do passado. Tese de Doutorado em História. Porto Alegre: PPGHIS/UFRGS, 2008. OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. “Discurso de posse”. In: RIHGB, t. XCVI, parte II, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1927.

o valor pragmático do estudo do passado1 Oliveira Vianna

I Meus senhores: Em uma das suas orações magistrais, que são o encanto frequente desta companhia, o vosso insigne orador, mestre insuperável das nossas letras clássicas e não menos das nossas letras históricas, disse uma vez, compendiando em uma formosa síntese, a complexidade, senão a universalidade, da missão cultural do Instituto: “É bem sabido que neste cenáculo fulguram os cultores de todas as especialidades, porque a História, a Geografia e a Etnografia são hoje campos vastíssimos em que se exercitam o talento e a cultura universal para escrever o grande livro da Pátria. Na ampla acepção em que tomamos a História, ela envolve questões múltiplas, que entendem os mais variados ramos do saber humano. Ela é a mestra e todos nós lhe prestamos reverencia e subsídio.” Belas palavras estas, senhores! Elas bem exprimem e resumem a complexidade, a vastidão, a grandiosidade da obra, que constitui a razão de ser desta gloriosa Instituição, e a que emprestais os brilhos do vosso espírito e as excelências do vosso saber. Realmente, este Instituto é um centro cultural por excelência. O nosso maior centro cultural por certo, ou, como já disse um dos

1  Discurso proferido por conta do ingresso no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1924 e publicado, no mesmo ano, na Revista do Brasil com o título mencionado acima. Edição do texto consultada: VIANNA, Francisco José de Oliveira. “O valor pragmático do estudo do passado”. In: Revista do Brasil, n. 107, 1924 (N.O.).

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espíritos mais sutis desta companhia, “a mais austera e venerável instituição sábia do nosso país”. Há, certamente, outras instituições sábias no país, mas esta não só é a mais venerável e mais austera, como mesmo a mais compreensiva e menos especializada – pois o estudo da História, abrangendo hoje todas as especialidades, pede a colaboração de todas as ciências: as ciências da natureza, as ciências do homem, as ciências da sociedade. Os fenômenos históricos, senhores, já não se apresentam mais aos olhos dos modernos historiadores com aquela singela composição com que apareciam aos olhos dos velhos historiadores. Para estes os acontecimentos históricos, o desenvolvimento das nacionalidades, a grandeza e a queda dos Impérios, a evolução geral das sociedades eram consequências da atuação de um número limitado de causas e, às vezes, de uma causa única. Hoje, ao contrário do que presumiam esses espíritos simplistas, os fenômenos históricos se mostram tais como realmente são, e como deveriam ser: extremamente complexos, resultantes que são da colaboração de uma infinidade de causas. Tão variados e múltiplos que, embora utilizando as luzes de todas as ciências e aparelhada com incomparáveis métodos de pesquisas, a crítica histórica não consegue discernir e isolar senão uma certa parte delas, que nem sempre, aliás, é a maior parte. Essa complexidade do fenômeno histórico impôs aos trabalhos da síntese histórica um aparelhamento cultural prodigioso. Como observa sabiamente o ilustre Henri Berr, “a complexidade das coisas implica a diversidade do saber”. E o historiador de hoje, para realizar plenamente a sua missão, teria que possuir, em sua cultura, o enciclopedismo de Aristóteles. Por isso mesmo, as grandes sínteses ultrapassam modernamente as possibilidades de um só indivíduo, e só as grandes associações culturais serão capazes de realizá-las. Há pouco ainda bem o sentistes isso mesmo quando para organizardes o vosso monumental Diccionario tivestes que apelar para as mais variadas competências. E todos que

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aí colaboram, com exceção apenas de um, deixaram nas suas páginas as provas mais luminosas das suas altas capacidades. Em França, na grande obra de síntese coletiva que Henri Berr preside com tamanha audácia e tanto brilho, empenham-se as mais variadas competências. Só na primeira parte, que compreende apenas a Pré-história e a Antiguidade, colaboram cerca de trinta especialistas, todos representando as maiores sumidades da cultura francesa contemporânea. O mesmo acontece com a grande síntese sobre a História Moderna, realizada sob a inspiração da velha universidade de Cambridge. É que todas as ciências e todas as culturas concorrem com o seu contingente para essas complexas edificações do espírito crítico. Os fatores que determinam a evolução de cada povo, sendo incontáveis na sua multiplicidade, para isolá-los, fixá-los e defini-los, o historiador tem que recorrer aos princípios e aos dados de todos os sistemas de conhecimentos. O mais simples fenômeno histórico, porque se realiza dentro de um determinado meio físico, está dependendo naturalmente das condições desse meio físico. Porque se opera dentro de um determinado meio social, está subordinado, nas suas causas e nos seus efeitos, às contingências desse meio social. Porque se resolve, afinal, em atos humanos, está dependendo das leis profundas que regulam a gênese de todos os atos humanos. Isso equivale dizer que o mais simples fenômeno histórico exige para a sua exata compreensão os subsídios de todas as ciências naturais, de todas as ciências antropológicas, de todas as ciências sociais.

II Essas principalmente, senhores. Elas trazem uma contribuição de valor incomparável para a elucidação dos fenômenos históricos. Não é possível hoje realizar nenhum trabalho de interpretação do passado sem recorrer às diversas ciências sociais, aos seus princípios, aos seus métodos, aos seus dados objetivos. Dentre as várias ciências auxiliares

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da História, essas são as mais essenciais à compreensão das realidades do passado. Não conseguiu, ainda, a ciência determinar as leis gerais que regulam a evolução das sociedades humanas, mas o que é certo é que essas leis existem, embora ainda não reveladas. E ao conjunto das diversas evoluções particulares deve corresponder uma evolução geral, dentro da qual se enquadrem todas essas evoluções particulares. O que equivale dizer que a obra do historiador deve ser precedida pela obra do sociólogo, e que toda explicação da vida das sociedades passadas implica, necessariamente, o conhecimento das leis que regulam a vida das sociedades atuais. Daí, senhores, aquele formoso conceito de Émile Waxweiller, o grande mestre do Instituto de Sociologia Solvay, da Bélgica: “Não foi com o auxílio dos fósseis que conseguimos criar as ciências da vida, mas foi justamente com o auxílio das ciências da vida que conseguimos ressuscitar os fósseis”. E isso, senhores, é tão exato nos domínios da Paleontologia, como nos domínios da História – a bela ciência, que é o objeto das nossas mais caras preocupações. Essa colaboração das ciências sociais é indispensável à crítica histórica. Porque a documentação dos arquivos só por si não basta para o perfeito conhecimento do passado. Os documentos não dizem tudo, não fixam tudo, não apanham todos os aspectos dos acontecimentos. Dizem apenas alguma coisa, fixam apenas alguns detalhes, apanham apenas alguns aspectos. E, às vezes, esses aspectos que eles revelam nem sempre são essenciais. Esses detalhes que eles fixam nem sempre contêm o sentido íntimo e substancial da realidade. Há sempre, por mais numeroso e minudente, por mais precioso e exato que seja o testemunho dos arquivos, certos pontos que escapam à determinação testemunhal. E muitas vezes esses pontos, não fixados pelo testemunho, encerram qualquer coisa capital para a compreensão do fenômeno histórico. Representam qualquer coisa mais ou menos análoga àqueles “caracteres dominantes” de Cuvier, por meio dos quais nos seria possível reconstruir, na sua integridade, a estrutura dos acontecimentos.

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Essas insuficiências inevitáveis do testemunho dos arquivos tornam indispensáveis, na elaboração ou síntese histórica, o apelo aos subsídios da indução conjectural. É tão frequente, e mesmo tão necessário, esse recurso ao elemento conjectural da parte dos historiadores que muitos deles não veem na ciência histórica senão conjectura, e apenas conjectura. E todos vós sabeis que para um deles, e um dos maiores, Ernest Renan, a grande ciência da História não era outra coisa senão “uma pequena ciência conjectural”. Essa contingência da História em ter de recorrer frequentemente, senão obrigatoriamente, à indução conjectural em nada a diminui na sua dignidade de ciência. Porque a verdade é que nenhuma das outras ciências foge à fatalidade dessa contingência. E vós bem sabeis como a Física e a Química ainda tateiam na penumbra mais ou menos iluminada das suas conjecturas sob a constituição da matéria. Como a Biologia, na confissão recente de Cuénot, ainda vacila dentro do seu pequeno mundo de conjecturas. Já não direi sobre as origens da vida, mas mesmo sobre o funcionamento íntimo do mecanismo da seleção. Esse coeficiente de conjecturalidade em nada influi sobre o caráter científico da História. É tão ínsito à natureza das suas investigações que já um grande mestre contemporâneo, Alfred Croiset, tão conhecido de todos vós e principalmente do eminente orador dessa casa, porque é príncipe dos helenistas franceses contemporâneos, dizia que querer suprimir da História esse elemento conjectural seria suprimir a própria História: “Retirar da História toda essa parte de intuição, de indução rápida e conjecturável, seria não fazer da História uma ciência rigorosa, o que é impossível, mas suprimi-la”. Há, porém, senhores, que distinguir, nesse trabalho de intuição e indução, de que fala o mestre francês, duas modalidades de conjecturas. Há a conjectura arbitrária, pura obra de imaginação sem ponto de pega nas realidades da vida, e há a conjectura disciplinada, apoiada e orientada no conhecimento das leis que presidem a estrutura e a fisiologia das sociedades humanas.

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Os velhos historiadores, os que historiam antes da constituição das ciências sociais, quando forçados diante dos elementos arquivais a suprir as lacunas dos seus conhecimentos com o apelo à indução conjectural, faziam-no naturalmente de um modo arbitrário. Porque não possuíam nenhum princípio realmente científico, nenhum dado realmente objetivo, capaz de corrigir ou retificar as ilusões da sua visão crítica, ou sofrear os voos e as ousadias da sua imaginação evocadora. E a colaboração histórica era então a fantasia e o arbítrio que refugiavam do prosaísmo e da secura das efemérides para asilarem-se na alta poesia e na imaginosa exuberância dos animadores de visões, à maneira de Michelet. Hoje, senhores, os historiadores estão magnificamente aparelhados com incomparáveis elementos de informação. Não só para retificar as ilusões da sua visão crítica, não só para restringir os surtos da sua fantasia evocadora, mas mesmo para poder reconstituir, com o possível rigor científico, na sua estrutura e na sua vida, as velhas sociedades mortas. Em vez daquela indução conjectural, mera obra de imaginação, refletindo exclusivamente as condições subjetivas de cada historiador, as idiossincrasias do seu temperamento e quase sempre as inclinações das suas simpatias e antagonismos; o que vemos hoje dominar crescentemente no campo das pesquisas históricas é essa outra espécie da indução conjectural, que chamaremos de objetiva. Porque inteiramente inspirada nas condições objetivas da realidade. E, realmente, todo o progresso da crítica histórica tem consistido não na eliminação da conjectura em si mesma, porque isso, como já vimos, importaria em suprimir a própria crítica histórica. Mas, sim, na redução progressiva do coeficiente subjetivo da conjectura, ou, mais exatamente, na substituição crescente da conjectura subjetiva por essa conjectura objetiva que tem para ponto de partida os princípios e os dados da ciência. Essa nova modalidade da indução conjectural assim orientada pela ciência é que supre o historiador moderno com esse contingente das realidades que não puderam ser fixadas pelos textos escritos ou guar-

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dados pelos testemunhos orais. Ela é que lhe permite fazer da História realmente uma ressurreição, isto é, uma bela obra de arte que nem por ser bela obra de arte deixa de ser uma verdadeira obra de ciência. É assim, com o auxílio dessa conjectura objetiva, que a crítica histórica tem conseguido desvendar o mistério de certos enigmas que apenas com os elementos arquivais lhe seria impossível esclarecer. Todos vós sabeis como ainda agora o eminente Moret conseguiu explicar a gênese do poder político no velho Egito faraônico – fato histórico sobre o qual silenciam inteiramente os arquivos paleográficos. Não foi a arqueologia, nem a pré-história, que lhe forneceram elementos para a solução desse obscuro problema. Foi a etnografia comparada, foi a observação da vida atual dos pequenos grupos selvagens da América Setentrional, foi o estudo da gênese e das transformações do poder político nos clãs totêmicos da Oceania e da África. Entre nós mesmos, senhores, nos é possível esclarecer muita obscuridade da nossa história, suprir muita lacuna dos nossos arquivos, corrigir muita conjectura temerária dos nossos historiadores com a observação atenta da nossa realidade presente. Do velho feudalismo guerreiro, que encheu com o rumor das suas algaras todo o vasto e brilhante ciclo do bandeirismo, nós ainda podemos encontrar muitas analogias explicadoras na observação da sociedade atual dos nossos altos sertões setentrionais, onde ainda remanescem muito daquele humor belicoso, e muita daquela tempera anárquica, que eram tão distintivos dos nossos heroicos conquistadores do sul. Uma viagem aos longínquos sertões do Brasil Central nos porá igualmente diante dos pequenos núcleos de aventureiros que exploram o diamante no Rio das Garças. Ora, senhores, diante dessas pequenas comunidades de “faiscadores”, vendo-as e observando-as hoje, no seu tumulto, na sua anarquia, nos desmandos da sua cobiça, o nosso espírito, recuando duzentos anos, como que reconstitui, nos seus mínimos detalhes, toda a vida e o espírito, e a história dos nossos antigos núcleos mineradores. E os textos dos

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nossos arquivos, à luz desses elementos extraídos da observação, à luz dessas “experiências complementares”, para empregar uma expressão feliz de Davy, adquirirão uma vida nova e uma nova claridade! Como a sociologia e a etnografia, outras ciências de observação, outras ciências experimentais trazem à ciência histórica uma contribuição inestimável. É assim a antropologia, principalmente quando estuda a morfologia étnica das diversas camadas sociais. Ela tem permitido aos historiadores esclarecer certos problemas do passado que à luz exclusiva dos arquivos não conseguiriam iluminar. Certo, a hereditariedade étnica não basta só por si, como pensam Lapouge e os da sua escola, para explicar esse fenômeno extremamente complexo que é a evolução de uma sociedade, mas é também fora de dúvida que é impossível compreender e explicar cientificamente a história de qualquer povo sem levar em conta essa poderosa determinante da conduta humana. Pelo menos não sei como será possível explicar certas particularidades da nossa história colonial, especialmente o movimento bandeirante e o seu alto idealismo, sem fazer intervir o fator etnológico, sem recorrer aos subsídios da análise étnica operada sobre as massas brasileiras da atualidade, sem apelar para os elementos que forçosamente hão de trazer as pesquisas sobre a antropologia das classes sociais no Brasil de hoje. Como vedes, senhores, o conhecimento da realidade atual, da realidade presente, da realidade circunstante, dado pelas ciências da natureza e pelas ciências da sociedade, a biologia, a antropologia, a etnografia, a geografia, a sociologia, é indispensável à compreensão do passado, à reconstituição das sociedades extintas, à síntese histórica em suma. Sem esse conhecimento preliminar, sem as luzes de todas essas ciências das realidades vivas, é impossível a ciência das realidades mortas reveladas pelo testemunho dos arquivos. São essas ciências das realidades atuais que estudam o Solo, o Clima e o Homem, e nos revelam cada dia novos segredos da vida orgânica e superorgânica. São essas ciências que insuflam aos textos paleográficos o hábito de

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uma vida nova e dão aos depoimentos, fixados nas páginas dos nossos arquivos, uma tal vibração e uma sonoridade tal que as lendo é como se estivéssemos a ouvir a voz dos nossos próprios contemporâneos. Essa tão íntima interdependência entre ciência histórica e as demais ciências impõe ao historiador moderno uma profunda identificação com o espírito do seu tempo. Estamos hoje muito longe do velho tipo do historiador, alheio às correntes de cultura e às aspirações da sua época, e resumindo todo o vasto horizonte do mundo no pequeno espaço ocupado pelos pergaminhos e alfarrábios dos seus arquivos. Hoje, ele tem que estar atento a todas as ideias, pronto a acolher as grandes e pequenas verdades que lhe venham dos quatro cantos do horizonte. Os naturalistas e antropólogos nos seus laboratórios, os etnólogos e os geógrafos nas suas viagens, os sociólogos e filósofos nos seus gabinetes: do labor de todos ele se utiliza, da ciência de todos ele se aproveita. E é à luz dessas revelações que ele prepara e realiza o prodígio das suas sínteses e o milagre das suas ressurreições.

III Essa, senhores, a grande ciência da História. Mas a História não é apenas uma grande ciência; é também, e magnificamente, uma grande arte. E essa condição de grande arte ainda torna mais complexo o labor da síntese histórica. Chego aqui a um ponto dos mais delicados da ciência que faz o objetivo das vossas grandes preocupações. Justamente por ser uma grande arte é que muitos espíritos se recusam a ver na História a grande ciência que ela é. De mim confesso, senhores, que ainda não pude perceber bem essa incompatibilidade entre ciência e arte. Porque para isso seria preciso que houvesse incompatibilidade entre a verdade e a beleza. Nesse preconceito eu vejo apenas uma reminiscência do que era a História antes da constituição das ciências sociais. Então o historia-

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dor, sem os subsídios dos dados científicos e dos métodos positivos de investigação, fazia da História, antes de tudo, uma obra artística. Esse é o aspecto que nos parece revestir a História entre os historiadores clássicos. Nas páginas de Xenofonte ou de Tito Lívio, nas páginas de Tucídides ou de Tácito, a História não é senão realmente uma grande arte. Arte da narração, a arte da evocação, a arte da ressurreição para falar como Michelet. Hoje ainda, apesar da severidade dos seus métodos objetivos, ela guarda nas páginas a um só tempo coloridas e eloquentes de um Taine, de um Carlyle, de um Vandal, ou de um Michelet, a lembrança ainda vivaz dessas belas tradições artísticas desses períodos iniciais. E não foi sem grande razão que um inglês paradoxal, Thomas Seccombe, chegou a dizer que nenhum historiador podia considerar-se verdadeiramente grande se não possuísse a capacidade verbal e o talento descritivo de dois ou três grandes romancistas. Essa condição de grande arte parece ser o traço mais distintivo da ciência histórica. O traço que a singulariza no conjunto das demais ciências, mesmo daquelas que são mais estritamente auxiliares, como a antropologia, a geografia, a etnologia, a sociologia. Essas podem dispensar, e em regra dispensam, quando desenvolvem os seus princípios, quando expõe as suas leis, quando formulam as suas conclusões, o auxílio das artes da ficção. Mas a História, não. Essa, pela natureza justamente do seu objetivo, justamente por ser uma ciência da evocação, versando matéria a que falta o encanto das coisas vivas, não pode dispensar o auxílio das artes de ficção. São essas artes que emprestam à obra do historiador esse interesse, essa sedução que suscita a curiosidade de todos os espíritos pelas velhas épocas passadas. Sem o encanto e poesia que elas derramam, o passado interessaria apenas a um círculo limitado de estudiosos. E a História seria, como a Geografia, a Etnologia e a Antropologia, um domínio limitado, um campo circunscrito e privativo, onde somente penetraria certo número de curiosidades especializadas, isto é, os próprios historiadores. O que vemos, porém,

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não é nada disso. É justamente o contrário disso. O que vemos é que a História é um domínio comum procurado por todos os espíritos dos mais variados feitios, das mais variadas tendências, das mais variadas especialidades. Homens de ciência, homens de arte, homens de letras, homens de guerra, homens de Estado, todos encontram nas obras históricas um interesse, uma sedução, um fascínio. Ora, essa curiosidade tão universal pelas obras da História tem a sua razão de ser nesse caráter inevitavelmente artístico de toda ressurreição histórica. Senhores, eu vos peço perdão de estar repetindo, perante mestres tão consumados da grande ciência, esses conceitos sabidos de todos vós. Fazendo-o, porém, o meu intuito é acentuar que, pela própria complexidade de que se reveste hoje a síntese histórica, este Instituto não pode ser indiferente a nenhuma das manifestações da atividade espiritual da vida brasileira: nas letras, nas artes, nas ciências, na legislação ou na política. Daí neste grêmio assentarem-se, desde 1838, cientistas de todas as ciências, letrados de todas as letras, estadistas de todas as escolas. Chamando-os o Instituto se tem mostrado perfeitamente consciente da importância da sua alta finalidade científica e da universalidade da sua missão cultural! Ele é, por isso mesmo, “o centro espiritual da própria nacionalidade”.

IV Um ambiente destes, senhores, saturado de tão alto intelectualismo, e onde as ciências sociais e políticas ocupam um tão grande espaço, era realmente um ambiente extremamente favorável à atividade de um espírito do feitio e da elevação de Aurelino Leal. Trazendo-o para o vosso seio, tivestes o sentimento muito justo do valor que essa aquisição representaria para o êxito e a fecundidade da vossa grande obra cultural. Tendo ingressado nesta ilustre companhia em 1915, não teve tempo de dar ao Instituto tudo o que podíamos esperar da sua poderosa

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inteligência. Os altos cargos políticos e administrativos que exerceu ocuparam a maior parte do seu tempo e da sua atividade. Mas se as nossas letras históricas e jurídicas muito perderam com isso, não o perderam o país, o seu Estado, esta Capital e o meu Estado, onde, nos cargos representativos ou nos cargos de administração, a superioridade da sua inteligência, a superioridade da sua cultura, a superioridade do seu caráter culminaram sempre com relevo inconfundível. Na sua passagem pela alta administração do meu Estado, em momento, aliás, dos mais delicados e graves, posso dar testemunho da sagacidade do seu tato político e das suas robustas capacidades de administrador, como também da serenidade perfeita, da nobreza e da retidão com que se houve no desempenho da sua difícil magistratura. Ele era, para mim, um dos tipos mais fortemente representativos da mentalidade brasileira em geral, mas muito especialmente da mentalidade baiana. Como essa, a sua inteligência tinha essa maleabilidade e extensibilidade; essa rapidez e agilidade que lhe permitiam uma adaptação imediata e instantânea às situações mentais mais variadas, e lhe davam essa faculdade peregrina de mover-se com presteza, com facilidade, com segurança no meio das mais intrincadas dificuldades de ordem prática ou de ordem especulativa. E foi assim que ele pôde ser, sempre brilhantemente, sempre eficientemente e quase simultaneamente, político, administrador, parlamentar, magistrado, jornalista, jurisconsulto e historiador. Das suas aptidões de historiador podem dizer com eloquência não apenas a bela síntese sobre a História do Poder Judiciário no Brasil, obra de rara excelência pelo pensamento, pela erudição e pela forma, mas as páginas mesmas dos vossos anais, onde o seu grande espírito deixou as provas mais luminosas da sua capacidade e cultura, especialmente neste pequeno ensaio sobre o movimento da maioridade e o golpe de Estado de 40. Ensaio que pode ser considerado verdadeiramente modelar. Porque nele encontramos, como em um resumo, todas as fortes qualidades que eram características do seu belo temperamento de historiador.

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Nada mais justo, pois, que um espírito como esse, tão múltiplo nas suas aptidões e tão polimático na sua cultura, tivesse acolhida grada entre vós neste alto centro de intelectualismo e saber que tanto honra a nossa civilização. De mim, senhores, é que não sei como justificar a generosidade da vossa escolha, nem atino como corresponder à magnanimidade dessa distinção (im)merecida. No parecer com que me deste entrada na Casa, nas palavras generosas com que o redigiu o grande jurisconsulto e homem de Estado, que hoje está honrando a nossa cultura na maior assembleia do mundo, depois de tê-la honrado nas mais altas magistraturas da nossa terra; no aplauso que lhe destes, subscrevendo o seu julgamento e aprovando a sua indicação. Em tudo isso, eminentes mestres, eu vejo apenas as expressões carinhosas da vossa magnanimidade com que quisestes encobrir e dissimular a enorme desproporção entre o mesquinho merecimento meu e a incomparável grandeza da distinção conferida. Desvanecido pela honra que me fizestes, exaltando-me em tanta maneira acima da minha natural mediocridade, eu aqui estarei para aprender convosco, nas lições do vosso saber e no vosso exemplo, no amor ao passado e convosco cooperar, nos limites da minha obscuridade, na obra patriótica, que é o supremo objetivo desta sábia e gloriosa corporação. Essa obra que estão há quase um século realizando tão austera e fecundamente é realmente, senhores, uma obra do mais alto valor patriótico. O estudo do passado, a análise do passado, a evocação do passado não têm apenas o valor de uma simples satisfação da nossa curiosidade de conhecer. Comparável à curiosidade das viagens, como querem alguns espíritos levianos. Não tem apenas um mero valor especulativo, como querem outros espíritos demasiadamente filosóficos. Tem, também, um alto valor pragmático. Desculpai-me, senhores, se insisto sobre o valor pragmático da ciência histórica. Mas é justamente ele que me parece dar a razão

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da admirável vitalidade e do incomparável prestígio desta sábia instituição. Lembro-me sempre daquelas palavras de Seeley ao estudar as origens e a evolução do imperialismo britânico, quando o grande mestre de Cambridge recorda e acentua o caráter essencialmente prático de toda síntese histórica. Vale a pena ouvirmos as suas palavras magistrais: “Tenho como uma das minhas máximas favoritas que a História, embora científica nos seus métodos, deve sempre ter em vista a prossecução de um fim prático. Quero dizer, a História não deve restringir-se simplesmente à satisfação da curiosidade dos leitores pelo passado. Deve, também, procurar corrigir a concepção que eles tenham do presente, e o seu modo de considerar o futuro. Ora, se essa máxima é a verdadeira, a História da Inglaterra não pode deixar de terminar com alguma coisa que bem se poderia chamar uma moral. Ela deve chegar a alguma grande conclusão e mostrar a tendência geral dos interesses britânicos, de modo tal que tenhamos uma base segura para julgarmos o futuro e prevermos o destino que nos está reservado. Compreende-se, e é justificável mesmo, que algumas nações, como a Suécia e a Holanda, considerem a sua história como encerrada. Elas já foram grandes, mas as condições da sua grandeza passaram; e agora o lugar que ocupam no mundo é secundário. O interesse que elas têm pelo seu passado é ou de natureza sentimental ou, então, puramente científico. Daí a única lição prática que a sua história lhes pode dar é uma lição de resignação. Mas a Inglaterra, não. O seu desenvolvimento continua, e ela é cada vez maior. É muito maior no século 19 que no século 18; muito maior no 18 que no século 17; muito maior no século 17 que no século 16. Dada a prodigiosa grandeza por ela atingida o problema do seu futuro se torna, por isso mesmo, infinitamente importante e, ao mesmo tempo, mais angustioso. Porque é claro que justamente pela sua grande extensão territorial o Império fica exposto a perigos de que ele estava livre quando ainda limitado à insignificância das suas ilhas. De modo que o interesse que a história inglesa oferece deve se ir se tornando cada vez mais profundo à medida que ela se aproxima do seu fim. E se é o passado que dá origem ao futuro, a história do passado da nacionalidade inglesa nos deve levar a uma profecia concernente ao seu futuro.”

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Essas palavras de tão alta sabedoria do grande historiador contemporâneo como que parecem escritas especialmente para o nosso caso. Também nós, senhores, somos maiores hoje do que éramos no III século; maiores no III século do que éramos no II; maiores no II do que éramos no I século, quando ainda arranhávamos como caranguejos, na frase do nosso primeiro historiador, as ribas do nosso litoral imensurável. Nossa história não é, como a do pequeno Portugal, uma história que terminou. É, ao contrário, uma história em começo, uma história em marcha; o que acentua cada vez mais o seu interesse. Nela não vamos buscar uma lição de resignação, para repetir a frase de Seeley, mas uma lição de entusiasmo e de fé. Um maior sentimento de nós mesmos e do nosso próprio presente. Uma consciência mais iluminada e mais robusta do nosso próprio futuro. Já dizia, neste mesmo recinto, o cidadão eminente por tantos títulos e que tamanho lustre dá à presidência desta Casa: “Aumenta-se a energia nacional quando se dá ao povo o orgulho da sua história”. É essa, senhores, a primeira utilidade prática do estudo do passado, da admiração pelo passado. Ela dilata, ela robustece, ela intensifica, ela esclarece a consciência do patriotismo em cada um de nós. Aumenta em cada um de nós o sentimento do respeito para com os nossos maiores, para com o patrimônio das grandezas morais e materiais que eles nos transmitiram; e que eles formaram, acumularam e defenderam com o esforço do seu braço na lavra dos campos, com o esforço da sua vontade na organização da ordem e da legalidade, com o esforço da sua espada e com a sua bravura nas batalhas dentro e fora das fronteiras para repelir a insolência de invasores audazes, ou fora delas, pela fidelidade aos seus ideais de liberdade e justiça, nas batalhas pela redenção de outros povos. Dizia Michelet que a história é uma ressurreição. Senhores, eu peço licença para acrescentar que muitas vezes para o historiador, sensível às emoções da beleza ou do heroísmo, a História é mais que uma ressurreição. A História é uma reencarnação. O historiador de-

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votado integralmente à sua tarefa, escrevendo com o coração e com o cérebro, como é dever de todos que se votam a uma obra de verdade ou de justiça, ao evocar os episódios heroicos que dramatizam o passado tem qualquer coisa de ator entre os cenários do seu palco. Como esse “vive” os seus heróis, encarna-os, infunda-se da alma de todos eles e partilha, assim, por um momento do frêmito das suas emoções heroicas. Por isso mesmo, senhores, confesso que não sei de nenhum verdadeiro historiador que seja um mau patriota. Este é um dos mais belos aspectos da utilidade pragmática do estudo do passado: ele é uma das mais nobres, senão a mais nobre escola de patriotismo e de dignidade cívica. Há, certo, os que blasonam patriotismo e, ao mesmo tempo, sacodem diante dos nossos olhos espantados o manto teatral do seu desdém pelo passado, da sua guerra ao passado e, mais do que isso, da sua nenhuma relação com o passado. Eu é que não compreendo de que maneira é feito o patriotismo desse gênero de patriotas. Patriotismo implica a ideia da pátria, e a pátria é a terra dos nossos pais, logo, o mundo em que viveram os nossos antepassados. E esse mundo não é apenas o solo na sua materialidade, é também o solo na sua espiritualidade: centro larário da grei com as tradições que criaram, com a civilização que fundaram, com as dores que sofreram, com as alegrias que tiveram, com as glórias e triunfos que alcançaram. Mas, se o novo patriotismo renega o passado, renega tudo isso, logo, renega a pátria. E será preciso forjar, com os materiais da nossa língua, um novo vocábulo para exprimir o patriotismo desses patriotas sem pátria. Senhores, essa admiração pelo passado não significa, nem pode significar, uma ideia de retorno ao passado, nem também nenhum desdém pelo presente, menos ainda nenhuma indiferença pelo futuro. Essa admiração pelo passado, que é a religião desta casa, é apenas gratidão por aqueles que, vindos antes de nós, prepararam as condições da paz, civilização, riqueza e justiça, dentro das quais nós, os de agora,

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estamos vivendo e prosperando, e, por nossa vez, preparando uma grandeza maior para a nossa humanidade futura. Como vedes, senhores, o conhecimento do passado não é apenas uma preocupação do mero interesse paleontológico de que pretende sorrir a fácil ironia dos gideões de avenida. É uma maravilhosa escola de educação cívica. É um fator de eficiência incomparável no desenvolvimento do nosso sentimento patriótico e da nossa própria consciência coletiva. Nesse estudo, encontramos não apenas as melhores emulações do nosso civismo, mas as inspirações mesmas dos nossos grandes problemas nacionais. É justamente o ponto que para Seeley constitui a verdadeira “moral” da História. Realmente, senhores, os grupos sociais são como os indivíduos não porque sejam unidades superorgânicas, à maneira da velha concepção spenceriana; mas porque como os indivíduos eles se desenvolvem segundo certas linhas invariáveis que constituem o que poderíamos chamar, pedindo à tecnologia wesmanniana uma expressão, de os “determinantes” da sua personalidade coletiva. Como as formas que constituem o tipo de uma arvore estão contidas nas virtualidades do seu gérmen, os elementos estruturais de um povo, as condições íntimas do seu viver, as particularidades fundamentais da sua mentalidade, da sua sensibilidade, da sua reatividade específica ao meio ambiente, mostram um quid immutabile. Qualquer coisa de estável e permanente em todas as fases da sua evolução. Desde o obscuro momento das atividades do seu plasma germinativo até o grande momento do seu clímax da maturidade e expansão. Esses “determinantes” de cada povo são invioláveis e irredutíveis. E todas as vezes que legisladores ou estadistas, reformadores políticos ou elaboradores de códigos, os desconhecem, o esforço de todos eles resulta inútil e vão. Como o esforço do indivíduo que quisesse, pela simples magia de alguns esconjuros, regular o ritmo das ondas no oceano ou deter a marcha dos astros no firmamento. O conhecimento

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desses “determinantes” nacionais é, pois, essencial à ação de todos que exercem uma função dirigente na sociedade, principalmente os que têm o encargo da direção política. Há cem anos – já eu o disse alhures –, o idealismo utópico dos nossos legisladores e dos nossos estadistas insiste em desconhecer essas verdades fundamentais. Mas há cem anos também o fracasso das suas constituições, das suas legislações e dos seus programas reformadores tem sido a réplica invariável da nacionalidade aos que não a querem estudar nas leis essenciais da sua formação, e não a querem respeitar nas linhas estruturais do seu caráter. Entre os fatores que determinam a marcha das sociedades, o papel reservado à ação da vontade consciente é modestíssimo. É insignificante mesmo. Para além desse raio limitadíssimo dos nossos esforços, subsiste e palpita todo um vasto mundo de forças organizadas, de tendências, de instintos, de impulsões misteriosas, que formam o sistema das correntes subterrâneas que circulam no subconsciente das nacionalidades. “Na rotina da vida – diz Ribot –, uma massa enorme de hábitos nos conduz como autômatos. Se descontamos o que deve ser levado a cargo do automatismo, do hábito, das paixões e, sobretudo, da imitação, veremos que o número de atos verdadeiramente voluntários é bem pequeno”. Eis, senhores, como o passado exerce sobre nós o seu ascendente sutil e poderoso. Vivemos envolvidos de todos os lados pela atmosfera impalpável e imponderável das suas sugestões, e inconscientes quase sempre da sua influência invisível e profunda. Eis também, senhores, porque o estudo do passado, o conhecimento do passado, a experiência do passado apurada e recolhida pela História, tem para nós um valor precioso e inestimável. Não apenas de natureza sentimental, não apenas de natureza especulativa, mas, também, de natureza pragmática. Desse passado, do seu estudo, da sua crítica, da sua larga e inteligente compreensão, é que poderemos obter a revelação desses “determinantes” da nossa personalidade nacional. Sorte de proprium quid, a cujo

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império não podemos fugir e cujo conhecimento é essencial ao êxito de qualquer movimento renovador. O estudo exclusivo do presente, o estudo isolado da atualidade, não nos poderá trazer essa revelação; só possível pela comparação das diversas etapas da marcha da nacionalidade ao longo dos caminhos da sua história.

V Senhores, o que a observação assinala em todos os povos que entram em fase de revivência patriótica, e que dilatam o seu sentimento nacional no orgulho da própria grandeza presente e na consciência da própria grandeza futura, não é nunca o repúdio do passado, não é nunca o abandono das suas tradições, não é nunca a quebra da cadeia da sua continuidade histórica. O que a observação assinala é precisamente o contrário dessa atitude negativa. Todo grande movimento de revivencia patriótica é assinalado sempre por um retorno ao passado. Toda marcha impetuosa para o futuro busca sempre as razões do seu ritmo na admiração das grandezas ancestrais. Nunca como agora o sentimento nacional dos grandes e pequenos povos se mostrou mais robusto e militante. Mas, nunca como agora o culto do passado, o orgulho do passado, o sentimento do passado se mostrou, também, mais ardente, mais vivaz, mais consciente, mais profundo. Todos os povos como que se voltam sobre si mesmos, procurando nas suas tradições e na sua história o segredo da sua força, o sentimento da sua unidade, a revelação do seu futuro. O Japão, senhores, nos dá o mais belo exemplo dessa fidelidade à sua consciência histórica, da permanência do seu espírito nacional no meio das mais audaciosas transformações. Há pouco ainda – em um livro que pela sua harmoniosa beleza, pela graça, pela pureza, pela luminosidade da sua arte, pela serenidade e força da sua eloquência, é uma das poucas obras-primas da literatura contemporânea –, um

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historiador, um filósofo, um artista sutil e perfeito, Kakuzo Okakura, acentuava essa característica do nacionalismo nipônico como sendo justamente um retorno consciente às velhas tradições milenares, base de todo sentimento nacional e fonte de toda inspiração patriótica: “Conservar-se fiel a si mesmo – diz ele formosamente – apesar da coloração nova que a sua vida de nação moderna o obriga a tomar é, para o Japão, o imperativo categórico que lhe foi inculcado pelos seus antepassados. Nossa missão não consiste apenas em retornar ao nosso velho ideal nacionalista, mas, também, sentir e reanimar da sua vida hibernante a velha unidade asiática. A tarefa atual da Ásia consiste em proteger e restaurar as tradições asiáticas. Mas para isso é preciso que a Ásia se reconheça a si mesma e intensifique a consciência das suas próprias tradições, pois nas sombras do passado estão contidas as promessas do futuro. É ao longo dos antigos caminhos da raça que a grande voz se fará ouvir.”

Essa fidelidade ao passado, senhores, não é o sentimento apenas dos povos tradicionais do Oriente. É o seguinte dominante de todos os grandes povos atuais. É o da Inglaterra, fiel como sempre às suas velhas tradições. É o da França, cada vez mais orgulhosa e consciente das suas glórias antigas. É o da Itália, revivendo esplendidamente as grandes tradições cesaristas. É o de todos os povos conscientes, robustos e progressivos. É o nosso também, senhores. O nacionalismo brasileiro não pode ter outra feição sentimental, não pode buscar outra fonte de inspiração, não pode tomar outra diretriz senão essa que lhe está indicando não só o exemplo dos outros povos, mas a voz mesma da sua própria razão. O seu ponto de partida há de ser o culto do passado não para retornar a ele, porque seria uma aspiração insensata; mas para buscar nele as inspirações do nosso heroísmo e essa pletora de orgulho confiante, que é nos povos como nos indivíduos a condição do próprio êxito. Esse novo surto nacionalista que se esboça em nosso país, senhores, é o vosso Instituto. Direi melhor: é o nosso Instituto, já que me destes

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a honra de partilhar um pouco da sua glória, o órgão mais autorizado para inspirá-lo e conduzi-lo. Na vida quase secular da vossa instituição tendes, senhores, sempre estado à altura dessa missão admirável. Termino agora mesmo de reler com uma emoção de encanto estas belas Páginas de História, tão densas de erudição e saber, com que o ilustre secretário perpétuo, de quem já se disse que era a providência onipresente desta casa, acaba de acrescentar ao patrimônio das suas benemerências mais uma formosa benemerência. E através destas páginas pude conhecer melhor a história desta venerável instituição, e medir melhor a majestosa grandeza da sua obra. Senhores, pela extensão do vosso passado tendes, por assim dizer, crescido com a própria nacionalidade. Convosco conviveram os heróis que haviam feito pela pena, pela palavra, ou pelas armas, a independência nacional. E aqui os tivestes na familiaridade do seu convívio, ainda iluminados do divino entusiasmo do seu triunfo. Ouvistes ainda recentes e vivos os ecos das grandes lutas regenciais, e assististes o seu epílogo glorioso que havia de reintegrar a nação na sua unidade e preparar o advento do reinado de Augusto e a Pax brasílica. Dessa, senhores, partilhastes muito intimamente das suas doçuras e muito intimamente colaborastes na sua grandeza, pois do varão magnânimo que a encarnou e realizou o ambiente desta Casa parece ressoar ainda o rumor delicado dos seus passos e clarear-se ainda das radiações do seu espírito. Nos vossos arquivos guardais a história do Brasil colonial; mas do Brasil autônomo, do Brasil-Império e do Brasil-República, sois a testemunha viva e presencial. Nada vós tendes sido indiferente em nossa história contemporânea. Tendes tido uma sensibilidade de sismógrafo a todos os estremecimentos da nossa consciência coletiva. Todas as vibrações da alma nacional aqui têm encontrado uma ressonância discreta e grave, como convém à feição da vossa austeridade. E aqui se têm refletido todas as grandes

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aspirações da nossa raça. As do passado, as do futuro, as do presente. Nos códices da vossa biblioteca, nos manuscritos dos vossos arquivos, nas páginas da vossa Revista, cada um dos obreiros da nossa história, cada um dos edificadores da nossa nacionalidade, cada um dos seus heróis, anônimos ou gloriosos, escreveu um testemunho, fixou uma memória, preparou uma revelação. De cada um deles uma alma palpita nesta casa, dentro desta cidade de livros; cheia do grande silêncio do mundo, mas rumorosa das grandes vozes do passado. Essa, senhores, a razão do grande e justificado prestígio do vosso Instituto em nosso país e fora dele. Ele não é apenas um dos maiores centros de cultura da nossa terra, e o mais austero e venerável. Ele tem também suscitado, pela estimulação do seu exemplo, a aparição de novos centros de cultura por todo o país; e quase vinte Institutos estaduais crescem e laboram à sua sombra! Em vez de diminuir e apoucar-se, como é tão comum neste país de coisas mutáveis e perecíveis, essa grande instituição, à medida que avança em sua história, cresce, frondeja, expande-se à medida daquela arvore benfeitora da legenda indiana: cada dia que passa cria uma nova fronde para abrigar uma humanidade nova.

VI Quisestes, senhores, chamando-me para o vosso seio dar-me também um pouco do agasalho dessa sombra generosa. Eu vos agradeço certo de que entrando para esta Casa não preciso abdicar das minhas crenças nas grandes virtualidades contidas no nosso futuro. Não tem sido essa a vossa lição. Vejo-vos sempre muito presos à admiração do passado, mas vejo-vos, também, muito atentos a todos os problemas do presente. E vejo-vos muito sensíveis a todos os ideais do futuro. É que tendes muito ampla, senhores, a noção desse contínuo devenir que é a evolução de uma nacionalidade, muito profundo o sentimento

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da solidariedade das gerações, muito viva a consciência da nossa continuidade histórica. O passado e o futuro são ambos, por isso mesmo, sagrados para vós. Ambos formam os polos das vossas afeições. Para saudardes o clarão dos novos tempos, não julgais necessário apedrejar as sombras do nosso passado heroico. Vós, senhores do Instituto, não praticais o absenteísmo em história. E deixai-me que vos diga: todos vós pareceis repetir aquelas palavras memoráveis de Ernest Lavisse quando, nas páginas comovidas dos seus Souvenirs, celebrou uma vez a brevidade do passado: “Descobri que o passado é curto. Fiz esse cálculo. O pai do meu tio-avô, que nasceu em 1764, quando reinava Luiz XV, conheceu, ainda moço, os contemporâneos de Luiz XIV. Os mais velhos desses tinham sido governados pelo cardeal de Richelieu, e não seria preciso uma grande série de homens, não mais do que uns trinta octogenários, para atingir o tempo em que Jesus Cristo veio ao mundo. Essa brevidade do passado deu-me um respeito pelo futuro imenso. Encontrei-me em uma disposição de espírito que mais tarde se fixou em mim. A hora presente não vale para mim senão uma hora. Porque se encontra no correr da minha vida não é razão para que eu julgue de um valor maior do que as passadas e as futuras.”

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ALCIDES BEZERRA Os historiadores do Brasil no século XIX

apresentação Pedro Afonso dos Santos1 Mateus Henrique de Faria Pereira2

O texto de João Alcides Bezerra Cavalcanti (1891-1938), “Os historiadores do Brasil no século XIX”, é uma conferência proferida no dia 5 de agosto de 1926, no Centro de Cultura Brasileira, agremiação fundada no Rio de Janeiro pelo escritor Adelino Magalhães, orientada por um programa nacionalista.3A comunicação saiu publicada como separata do Relatório anual da Diretoria do Arquivo Nacional referente a 1926, órgão que Alcides Bezerra dirigia desde 1922, quando nomeado para a função pelo então presidente da República Epitácio Pessoa. Foi por conta do cargo de diretor do Arquivo Nacional que Alcides Bezerra mudou-se para o Rio de Janeiro, em 1922. Natural da capital da Paraíba (cidade da Paraíba, depois João Pessoa), Bezerra bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Recife em 1911. Ocupou diversos cargos públicos em sua província natal, de procurador da República a inspetor geral do Ensino, entre 1913 e 1922. Viria a falecer, com apenas 46 anos, ainda no cargo de diretor do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Alcides Bezerra transitou também por diversas instituições e grêmios culturais do período, presidindo a Academia Carioca de Letras e a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, e filiando-se aos Institutos Históricos de São Paulo, Pará, Paraíba e Ceará, à Sociedade Brasileira de Geografia, bem como à Sociedade Brasileira de Filosofia 1  Professor do curso de História - América Latina da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).. 2 

Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto.

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Sobre Adelino Magalhães, Cf. BICHUETTE, 2008. Acesso em: 27 set. 2010.

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e à Sociedade Capistrano de Abreu.4 Ocupou, assim, cargos elevados no funcionalismo público, com incursão pela política e inserção no meio intelectual da época. Sua obra inclui uma variedade de estudos que perpassam biografia, história, folclore e ficção, mas foi ao campo da filosofia que parece ter se dedicado com maior vigor. Na realidade, de forma geral, podemos dizer que foi a história do pensamento ou “história das ideias” no e do Brasil o domínio que mais reteve a atenção de Alcides Bezerra, fossem filósofos, historiadores ou sociólogos seu objeto de momento. Sua formação filosófica, para a qual muito teria concorrido seu mestre na Faculdade de Direito do Recife, Laurindo Leão, inclui expoentes da psicologia experimental do período, como o alemão Wilhelm Wundt (1832-1920) e, principalmente, o dinamarquês Harald Höffding (1843-1931), também filósofo e historiador da filosofia, professor na Universidade de Copenhague, cujas ideias Alcides retoma ou expõe em diversos momentos de sua obra. O fenomenismo (conforme a denominação da época) de Immanuel Kant, a filosofia de Spinoza e o evolucionismo de Comte e Spencer também lhe foram caros. A respeito dos autores citados neste parágrafo, Alcides declarou: “Estes são i miei dottóri, os que me conduzem carinhosamente pela mão através dos grandes e dos pequenos círculos do pavoroso inferno da filosofia” (Apud COSTA, 1938).5 Além destes, o evolucionismo de Oswald Spengler, bem como sua noção de morfologia cultural, chamaram a atenção de Bezerra (JAIME,

4  Entre suas obras publicadas, estão: Ensaios de Crítica e Filosofia, Paraíba, 1919; A Confederação do Equador, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1925; Ensaio Biográfico de Marcílio Dias, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1928; A Evolução Científica do Direito, Rio de Janeiro, Ed. Biblos, 1933; A Filosofia na Fase Colonial, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1935; Sílvio Romero, o Pensador e o Sociólogo, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1935; Achegas da História da Filosofia, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1936; Biografia Histórica do I Reinado a Maioridade, Rio de Janeiro, 1936; O Visconde Cairu – Vida e obra, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1937. Informações em:. Acesso em: 07 fev. 2010. 5  Este volume, de iniciativa da Academia Carioca de Letras, reproduz os discursos da sessão especial de 28 de junho de 1938 da Academia, em homenagem a Alcides.

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2000: 102). Para Alcides, a cultura brasileira, como a americana, de forma geral, fazia parte da cultura europeia, uma noção que o vemos apresentar logo no início de “Os historiadores do Brasil no século XIX”. Mais do que isso, pensando nas reflexões de Spengler a respeito da decadência do Ocidente (a partir de sua obra de maior impacto, O Declínio do Ocidente, de 1918), Alcides via no transplante da civilização europeia para a América uma possibilidade de escapar a essa decadência. Realçava a importância do meio na formação da personalidade de um povo, mas a noção fundamental com a qual operava era a de cultura, que definia como “uma capitalização da humanidade na personalidade do indivíduo” (COSTA, 1938: 47).6 Nesta conferência de 1926, que apresentamos, Alcides chega a corrigir Euclides da Cunha, que, n’Os Sertões, pensara em luta de raças, quando de fato, em sua visão, o conflito de Canudos expusera uma luta de culturas. O spencerianismo foi-lhe também marcante, sobrepujando o influxo comteano que, segundo depoimento de Oton Costa, seu colega na Academia Carioca de Letras, cresceu a partir de sua chegada ao Rio de Janeiro (1922), quando de seu “contato com aquele notável grupo de estudiosos de filosofia chefiado superiormente pelo general [José Maria] Moreira Guimarães [1864-1940]” (COSTA, 1938: 45). O contato com esse grupo é detalhado em outro depoimento desta mesma sessão especial da Academia Carioca de Letras, o de Modesto de Abreu, revelador também das conexões entre as instituições das quais Alcides Bezerra fazia parte: “Anos mais tarde, fomos pela primeira vez encontrar-nos na Sociedade de Geografia, onde eu era recebido como sócio. Quase ao mesmo tempo, era-me concedida a honra de ser seu discípulo na Faculdade de Filosofia, que funcionava no edifício daquela Sociedade, uma e outra sob a direção ou presidência do general Moreira Guimarães, um dos maiores nomes das letras filosóficas no Brasil e figura apreciada

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Cf. a dissertação de mestrado de SOUZA, 1981.

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e justamente reverenciada nos meios culturais da França, da Alemanha e do Japão. O general Moreira Guimarães, no seu belo programa de atrair para a Faculdade os nomes mais representativos da Filosofia entre nós, convidara meses antes o autor das Questões Filosóficas e da Paraíba na Confederação do Equador, para ocupar na Faculdade a cadeira de História da Civilização, que foi depois substituída pela de Filosofia da História” (COSTA, 1938: 19-20). Modesto de Abreu também destacou a estreita ligação entre a Academia Carioca de Letras e a Faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro, apontando que alguns “membros desta Academia, antigos estudantes da Faculdade, à Faculdade voltaram para assumir o exercício de algumas de suas cátedras” (COSTA, 1938: 20). Além da cátedra na Faculdade de Filosofia, Alcides Bezerra postularia a cadeira de introdução à ciência do direito, na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, para a qual concorreu com a tese A revelação científica do direito (1933). O primeiro lugar no concurso coube, porém, ao jurista Hermes de Lima, que assumiu a cátedra (JAIME, 2000: 97). Confrontando Alcides Bezerra com o pensamento filosófico e sociológico de seu tempo, chama-nos a atenção sua defesa de correntes de pensamento que, muito propagadas no meio intelectual brasileiro nas últimas décadas do século XIX, começaram a cair em desuso nos primeiros decênios do século XX. Como se permanecesse ligado ao “bando de ideias novas”, na expressão sempre lembrada de Sílvio Romero, que atingiu o país por volta de 1870, Alcides permaneceu partidário de Herbert Spencer ao longo das décadas de 1920 e 1930. Se tomarmos a evolução do pensamento de Capistrano de Abreu (1853-1927), não como paradigma, mas como caso, dentro daquele período, de transformação de pensamento na direção do abandono daquelas ideias, temos que esse autor, nascido mais de uma geração antes de Bezerra, passara, por volta da virada do século, por mudanças que o fizeram abandonar gradualmente as teorias de Comte, Spencer e Stuart Mill, que outrora

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conhecera bem, em prol de visões mais voltadas para a indução, como as da escola histórica de economia política alemã, e mesmo autores também estudados por Bezerra, como Ratzel e Wundt. Alcides manteve a defesa do evolucionismo spenceriano, ao mesmo tempo em que argumentava em favor de posturas de caráter indutivista. Sendo assim, Alcides Bezerra não permaneceu servilmente ligado a nenhuma teoria; antes mostrou, em alguns momentos de sua obra, segundo seus comentadores, originalidade para combiná-las e criticá-las. De modo que, no prefácio da obra Achegas à história da filosofia (1936), afirmou: “Fenomenista, evolucionista, não me deixo prender dentro de nenhum sistema rígido, pois aceito quaisquer correções vindas de onde vierem, desde que sejam indutivamente adquiridas. Reconheço que a realidade é mais rica do que as nossas categorias mentais, daí a necessidade de estarmos sempre alertas em face das teorias exclusivistas e dos sistemas fechados e rígidos” (JAIME, 2000: 108). Nessa linha, segundo Jorge Jaime, Alcides formulou um esquema original de evolução da humanidade que combinava Comte e Wundt (JAIME, 2000: 109-110). No entanto, sua defesa das teorias oitocentistas colocou-lhe em confronto com novas filosofias que então surgiam, no início do século XX, em particular com as correntes espiritualistas, levando Alcides a negar que a filosofia operasse com noções como imaginação e revelação. Um dos autores contemporâneos que mais alvejou foi Raimundo de Farias Brito (1862-1917), um dos principais expoentes desse espiritualismo; procurou refutar também o neotomismo, naquele momento em voga, aferrando-se à defesa do evolucionismo, criticado pelos novos discípulos de São Tomás de Aquino, cuja visão afirmou estar, em 1929, em “moda”.7 Por isso, uma asserção como a de Oton Costa, de que Al-

7  Cf. a conferência “Sylvio Romero. O pensador e o sociologo” (17/10/1929), que Alcides Bezerra proferiu na Sociedade Brasileira de Filosofia. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Arquivo Nacional, 1935. p. 8-9.

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cides Bezerra “foi um filho legítimo do século 19” (COSTA, 1938: 45), não deixa de soar ambígua: considerando que Alcides nasceu em 1891, subjaz a visão de que seu pensamento, embora original e crítico, seria um tanto desconectado de seus contemporâneos. Sua relação com a escrita da história não foi, dentro dessa trajetória, incidental, ou secundária. Alcides Bezerra produziu diversos escritos históricos, muitos publicados pelo Arquivo Nacional, como A Paraíba na Confederação do Equador, que saiu como separata do volume XIII das publicações do Arquivo, a exemplo da conferência que aqui apresentamos. Não pretendemos atribuir a Alcides uma coerência absoluta entre sua produção e suas ideias, mas vale apontar que sua filosofia valorizou a indução, em contraposição à dedução a partir de leis gerais, bem como a pesquisa empírica e o estudo metódico e fenomênico; a busca na história e na geografia do entendimento da cultura e moralidade dos povos. Vimos acima que Bezerra dizia aceitar “quaisquer correções vindas de onde vierem, desde que sejam indutivamente adquiridas” (grifo nosso). Nessa linha, manifestou-se, por vezes, em defesa de uma pesquisa empírica rigorosa nos trabalhos históricos, e sua atuação no Arquivo Nacional foi marcada também por um trabalho diligente na busca e recuperação de manuscritos antigos (JAIME, 2000: 111-112, citando PAIM, 1979). Seu texto “A Filosofia na Fase Colonial”, incluído em Achegas à história da filosofia: conferências 1928-1936 (BEZERRA, 1936),na seção dedicada a Diogo Gomes Carneiro (1681-1676), mostra sua busca, no Arquivo Nacional, por um registro da provedoria da Fazenda que comprovasse afirmação contida em uma entrada biográfica de Chichorro da Gama sobre Carneiro. Alcides conclui que Chichorro deixou-se levar por anotação de Inocêncio Francisco da Silva, autor do famoso Dicionário Bibliográfico, e arremata: “Desço a esses pormenores para mostrar como todos devemos ser rigorosos no cumprimento daquela regra de heurística que manda verificar todas as citações” (BEZERRA, 2012). Sua avaliação dos historiadores oitocentistas brasileiros passará

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pelo rigor metodológico, pela erudição; como também pela tentativa de identificar a filosofia orientadora do pensamento de cada um, além de outros fatores, como dotes de estilo. “Os historiadores do Brasil no século XIX” é, para José Honório Rodrigues, um dos textos precursores da história da historiografia brasileira, ao lado de “Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro” (1878) e da série de três artigos sobre Varnhagen, publicados na Gazeta de Notícias de 21, 22 e 23 de novembro de 1882, de João Capistrano de Abreu, “Os Estudos Históricos no Brasil” (1951), de Astrogildo Rodrigues de Mello, e “O Pensamento Histórico no Brasil nos Últimos Cinqüenta anos" (1951), de Sérgio Buarque de Holanda. Rodrigues pretendeu encontrar as primeiras análises da historiografia brasileira (feitas por brasileiros) descoladas da literatura, pois o que entende por “historiografia brasileira” já havia sido contemplada nas Histórias da Literatura Brasileira, desde o século XIX, como é o caso, por exemplo, das obras de Sílvio Romero (1888) e José Veríssimo (1916), onde a “história” aparecia como um gênero literário. Embora pense a história como disciplina, e mesmo como ciência, indo contra a opinião que encontramos naquele começo de século em Pedro Lessa (LESSA, 1900), para quem a história tinha como função coligir materiais para a sociologia, esta sim uma ciência de fato, Alcides Bezerra a vê indissociável da ciência em geral, e inclui em sua exposição obras que hoje vemos como “sociológicas”, como Os Sertões, de Euclides da Cunha. Ao que parece, cabe considerar, nessa opção, a crescente interface entre o tipo de descrição e análise que encontramos nessas obras, e o tipo que passa a fazer parte da formação de um determinado cânone historiográfico, em função do desenvolvimento dos “estudos históricos”, mas também em razão da necessidade do estabelecimento de fronteiras disciplinares. Como se verá, a palestra pretende tratar dos “historiadores do Brasil” no século XIX em quinze minutos. Nesse sentido, Bezerra optou por

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excluir os historiadores vivos (de modo que Capistrano de Abreu não estará contemplado, entre outros), mas incluir os historiadores estrangeiros que tivessem escrito sobre o Brasil. Isto, pois, considera a ciência brasileira, bem como a história, “subordinadas à ciência e à história da Europa. Nós brasileiros não podemos fazer ciência brasileira, mas colaborar na constituição da ciência da civilização a que pertencemos” (BEZERRA, 1927: 3).8 De partida, temos a história vinculada à ciência (europeia), não à literatura. Percebendo a história como, de forma correlata à ciência em geral, um campo construído coletivamente por uma civilização, e não restrita a um critério nacional, Alcides Bezerra procede à divisão de seu texto entre as “contribuições” das diversas nacionalidades à escrita da história do Brasil. Ao repassar as “contribuições”, Bezerra fará quase uma bibliografia comentada, exaltando os autores que, em seu juízo, contribuíram valorosamente para a escrita da história do Brasil, separando-os dos cronistas, dos historiadores que apenas se valiam dos trabalhos de outros e dos que produziram obras marcadas por inexatidões e falta de profundidade teórica. Definindo os critérios para uma historiografia de valor, Bezerra afirma atributos de uma disciplina, mais que de um gênero literário dentro da prosa, como pensavam Sílvio Romero e José Veríssimo. No entanto, esses critérios, em Alcides Bezerra, são de difícil determinação. Em vários momentos, o autor utiliza juízos de terceiros para descrever os historiadores que analisa, em procedimento que pode denotar o reforço de uma tradição, de uma memória já constituída a respeito dos autores analisados.9

8  Cabe destacar que Manoel Bomfim, por exemplo, escrevendo também nos anos 1920, também pensa a História do Brasil como parte da história da civilização. Cf. GONTIJO, 2003. 9  Para uma analise mais detida do texto “Os historiadores do Brasil no século XIX”. Cf. SANTOS; PEREIRA, 2012: 15-76.

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referências BEZERRA, Alcides. Os historiadores do Brasil no século XIX. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Arquivo Nacional, 1927. ______. Sylvio Romero. O pensador e o sociólogo. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Arquivo Nacional,1935. ______. Achegas à história da filosofia: conferências 1928-1936.Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Arquivo Nacional, 1936. ______. “A Filosofia na Fase Colonial”.Disponível em:. Acesso em: abr. 2012. BICHUETTE, Stela de Castro. “Sebastianópolis, ou o Rio de Janeiro em vários tons”. História em Reflexão. Revista Eletrônica de História, v. 2, n. 4, UFGD, Dourados, jul./dez.2008. COSTA, Afonso et al. Alcides Bezerra(em memória). Rio de Janeiro: Pongetti, 1938. GONTIJO, Rebeca. “Manoel Bomfim, ‘pensador da história’ na Primeira República”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, 2003. JAIME, Jorge. História da filosofia no Brasil. Volume 2. São Paulo/Petrópolis: Unisal/Vozes, 2000. LESSA, Pedro. É uma historia uma sciencia? São Paulo: Typ. da Casa Eclectica, 1900. PAIM, Antônio. O estudo do pensamento filosófico brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979. SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Mutações do conceito moderno de história? Um estudo sobre a constituição da categoria “historiografia brasileira” a partir de quatro notas de rodapé (1878-1951). In: SILVA, Ana Rosa Cloclet da; NICOLAZZI, Fernando F.; PEREIRA, Mateus Henrique de F. Contribuições à história da historiografia luso-brasileira. São Paulo: HUCITEC, 2012. SOUZA, Francisco Martins de. O culturalismo sociológico de Alcides Bezerra. São Paulo: Convívio, 1981.

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os historiadores do brasil no século xix1 Alcides Bezerra

Dizer algo dos historiadores do Brasil no século XIX, no espaço de quinze minutos, tal a honrosa e difícil incumbência que recebi deste Centro de Cultura Brasileira, dirigido pelo acendrado patriotismo de Adelino Magalhães, o prosador elegante que todos admiramos. Enquadrado o assunto nas coordenadas do tempo e do espaço, preliminarmente deliberei só me ocupar dos historiadores já desaparecidos, daqueles que além de outras consagrações têm essa definitiva e dolorosa da morte. Eles que animavam o passado e a história, são agora também passado e história, “coisas idas e vividas”. Feita a exclusão dos vivos, vi não poderia tratar cientificamente o tema, se esquecesse os estrangeiros ilustres que durante o século pretérito se ocuparam da história do nosso país. A ciência é cosmopolítica, embora sofra o influxo dos círculos culturais. Queira ou não queiramos, estamos dentro do centro de cultura europeu-mediterrâneo, e a nossa ciência bem como a nossa história são ligadas e subordinadas à ciência e à história da Europa. Nós brasileiros não podemos fazer ciência brasileira, mas colaborar na constituição da ciência a que pertencemos.

1  Conferência proferida em 5 de agosto de 1926, no Centro de Cultura Brasileira, publicada como separata do Relatório anual da Diretoria do Arquivo Nacional. Edição do texto consultada: BEZERRA, Alcides. Os historiadores do Brasil no século XIX. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Arquivo Nacional, 1927 (N.O.).

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southey e a contribuição inglesa quem primeiro se ocupou da história do Brasil com espírito científico foi o ilustre poeta inglês Roberto Southey, cuja obra trasladada a vernáculo é vantajosamente conhecida. “São preciosíssimos, diz Varnhagen, os três volumes que nos deixou pelas muitas notícias que encerram, e das quais algumas não se encontram senão aí...”. Roberto Southey nasceu em Bristol em 1774, educou-se em Oxford, amou, viajou; homem do seu tempo, entusiasmou-se com o espírito novo que açoitava a Europa na época de sua adolescência, mas também sentiu o prestígio e a fascinação do passado. Morreu em 1843. Fazendo-lhe o elogio fúnebre no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Manoel Araújo Porto Alegre resumiu, com felicidade admirável, num só período, toda a sua biografia: “Aqueles que o viram nascer em Bristol no ano de 1774, que o viram na idade de 13 anos na escola de Westminster, e passar para a de Oxford com o intuito de abraçar o estado eclesiástico e de repente entrar na lista dos sonhadores, pretendendo cinco anos depois realizar na América setentrional uma dessas utopias coloniais, como as que abortaram mais tarde os cérebros Sãosimonianos e Fourrieristas; que o viram entusiasta energúmeno da liberdade, e com a sua imaginação vulcânica cantar à face da Inglaterra em Wat Tyler, a glória das revoltas populares; de certo que não poderiam esperar, vinte anos mais tarde, o encontrá-lo na senda oposta dos sentimentos da ordem, e brindando a sua pátria com essas obras, onde o poeta e o historiador se mostram em toda a sua grandeza.”

Edmundo Gosse, na sua Littérature anglaise, afirma que Southey foi dos primeiros a aceitar o esqueleto da escola romântica. Brandes, estudando-lhe minuciosamente a personalidade no vol. IV do seu livro Die Hauptströmungen des Litteratur des 19. Iahrhunderts, abunda nas mesmas considerações, mostrando ainda que o pendor para os estudos históricos foi um dos característicos do romantismo. Já se vê que foi causa ocasional para levar Southey aos domínios

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da história o fato de ter um tio em Portugal, que possuía muitos documentos sobre o Brasil. Se ele não fosse um apaixonado do passado, um enamorado da civilização hispânica, pouca ou nenhuma importância daria a tais documentos. Southey foi, pois, levado a estudar a nossa história pelo seu temperamento romântico, ávido de sensações novas e exotismo. O mesmo não se poderá dizer de Andrew Grant, seu contemporâneo, que, em 1809, publicava, em Londres, uma History of Brazil, logo depois traduzida para o francês por um M. D. de São Petersburgo, o qual valorizou a tradução com algumas notas e retificações fornecidas por Navarro de Andrade, encarregado de negócios de Portugal, que tinha sido empregado em Lisboa no ministério das colônias e da marinha. Navarro, como frisou o incógnito tradutor russo, procurou adoçar algumas passagens de Grant levado por “cet esprit de tolérance et de modération qui carácterise l’écrivain impartial”.2 Essa edição petersburguiana da obra de Grant, hoje raríssima, é preferível à primeira de Londres. Os portos do Brasil foram abertos ao comércio das nações amigas em 1808. Grant, um ano depois, lançava o seu livro, que era um livro ocasião, cheio de informes sobre as produções naturais, pesos e medidas e conselhos para se preservar a saúde no clima tropical. A abertura dos portos impulsionou vertiginosamente o progresso do Brasil. Dentro do primeiro decênio estava antiquado o livro de Grant. Havia mister de outro guia histórico-geográfico. James Henderson, como bom inglês, farejou o negócio e lançou ao mercado sua volumosa história. (A history of the Brazil. London, 1821.) Nada adiantou do ponto de vista científico. Investigações próprias, nenhuma. James Henderson é mero compilador de Aires do Casal, o frade português, a quem devemos nossa primeira corografia geral.

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“Este espírito de tolerância e de moderação que caracteriza o escritor imparcial” (N.O.).

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A cotribuição inglesa para a constituição de nossa história, iniciada por Southey, conta ainda trabalho notável: a história do Brasil de John Armitage (The History of Brazil, from the arrival of the Bragnza family in 1808 to the abdication of Don Pedro the First in 1831. London, 1836. 2 vols.). João Armitage, de profissão comerciante, por muitos anos negociou aqui, no Rio, e foi levado a estudar o passado brasileiro por interesse do comércio; mas a obra que nos deixou não tem o cunho dos produtos de fancaria. Ambicionava ser a continuação da de Southey, e o foi. Armitage antecede o livro de lúcido prefácio, frisando que eram vastas as relações da Grã-Bretanha com o Império do Brasil e que vivamente sentiu, duramente a sua larga residência, “a carência de quaisquer meios de referência sobre os negócios políticos e financeiros do país”, e por isso empreendeu a história levado pela consideração das vantagens que, do ponto de vista comercial, lhe adviriam do conhecimento perfeito dos fatos históricos. “À medida, porém, (diz ele) que executava sua tarefa, o Autor se sentiu animado por motivos superiores, não só porque lhe era interessante traçar o progresso gradual desde a barbaria até uma relativa civilização, mas ainda porque sentiu com o autor citado à primeira página (Herschel), que a história já não pode ser considerada como ‘mera resenha de tiranias e carnificinas, mas antes como o arquivo das experiências tendentes a mostrar a maneira de assegurar aos governados as vantagens do governo’”. Esse Herschel, que o sr. John Armitage cita, é nada menos do que o célebre astrônomo descobridor do planeta Urano e dos satélites de Saturno, criador da astronomia estelar. O sr. John Armitage, nas horas vagas, gostava das boas leituras... Aparecida em Londres, em 1836, no ano seguinte era trasladada a português, ao que se conjectura por Joaquim Teixeira de Macedo, funcionário público, cavaleiro da Imperial Ordem da Rosa, que na Secretaria dos Negócios Estrangeiros subiu até chefe de seção. Livro bom, tornou-se livro raro. Passados alguns anos, quem falava da história do Brasil de

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Armitage falava de ouvir dizer. Em 1914, o sr. Eugênio Egas, de S. Paulo, tomou a peito vulgarizar Armitage, revendo e completando aquela antiga tradução. Fez mais. Desmanchou a lenda de que John Armitage era pseudônimo de Evarista da Veiga, o célebre jornalista do Primeiro Reinado. Graças ao sr. Eugênio Egas, o “P. C.”, jornal literário de Londres, apurou o que hoje se sabe ao certo de Armitage. Nasceu, em Failsworth, a 27 de setembro de 1807, e, logo depois de completar 21 anos, empregou-se numa casa comercial que o enviou à sua filial no Rio de Janeiro. Na sua estadia aqui escreveu a história. Regressando à Inglaterra, partiu em 1836 para Ceilão, onde foi, além de comerciante, membro do Conselho Legislativo. Por lá foi ficando até 1855, quando retornou definitivamente à mãe pátria, com a saúde estragada. Morreu em 1856, a 17 de abril, em Manchester. É a história de Armitage a melhor que possuímos sobre o primeiro reinado. Armitage não é um grande historiador, como Southey, mas observador consciencioso e desapaixonado e, além disto, testemunha que foi de muitos dos acontecimentos que narrou, deu ao livro o melhor do seu talento e do seu amor à verdade. Objetivo, sincero, bem informado, por vezes elegante no narrar e na pintura dos caracteres, ele se tornou credor da admiração dos contemporâneos e dos agradecimentos da posteridade. Deixou-nos retratos fiéis de Pedro I, dos Andradas, de Bernardo de Vasconcelos, de Feijó, e de Evaristo da Veiga, por quem tinha grande admiração.

a contribuição francesa A contribuição francesa começou com o pequeno e substancioso livro de Ferdinand Denis –“Résumé de l’Histoire du Brésil...” (Paris, 1825). Segue-se a obra volumosa de Alphonse de Beauchamp, a qual é plágio da de Southey, como, em 1844, o provu Varnhagen, na Revista

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do Instituto, tratando aliás do “Compêndio da História do Brasil”, de Abreu e Lima, que o nosso famoso historiador aponta como plagiário de Beauchamp. Depois de mostrar exaustivamente como Beauchamp plagiou Southey, e como Abreu e Lima plagiou Beauchamp, exclama desedificado Varnhagen: “Et voilà comme on écrit l’histoire!” Hoje Varnhagen não precisava recorrer ao prolóquio francês. Bastaria recordar o nosso: “Aí está como se escreve a história do Brasil...”. Entre os franceses, seria injustiça o naturalista Auguste de Saint-Hilaire, em cujos interessantes livros de viagem há vários capítulos de história do Brasil. Fecha a série dos trabalhos históricos franceses, importantes, sobre o nosso país o erudito livro de Paul Gaffarel: “Histoire du Brésil Français au Seizième Siècle” (Paris, 1878).

a contribuição portuguesa Feita em Paris, e obedecendo aos mesmos móveis de Beauchamp, apareceu, em 1839, a história de Francisco Solano Constâncio, o mui conhecido dicionarista português. Até meado do século passado, era bom negócio fazer uma história do Brasil. E relativamente fácil. Apenas copiar Southey. Foi o que também fez Constâncio. Tomarei ao Inocêncio alguns dados biográficos do nosso homem. Nasceu em Lisboa, ao que se julga, pelos anos, de 1772. Doutorou-se em medicina pela Universidade de Edimburgo. Encarregado dos negócios de Portugal nos Estados Unidos em 1822. “Depois de percorrer quase toda a Europa e a América, assentou por fim a sua residência em Paris, onde passado tempo casou com Maria Julia Basillie, e nesta mesma cidade faleceu em 21 de dezembro de 1846”. Eivada de inexatidões e até mesmo de erros gravíssimos, como disse Inocêncio, apoiado aliás em críticos brasileiros da época, a “História do Brasil desde o seu descobrimento por Pedro Álvaro Cabral até a abdicação de Imperador D. Pedro I” (Paris, 1839) pouco ou nada vale.

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Não a salva a declaração do autor no prefácio: “Não consultei a História do Brasil publicada em francês por M.er A. de Beauchamp, porque tudo que encerra de exato é tirado de Southey”. Aqui vem a talho o provérbio antigo: “Fala o roto do esfarrapado, o sujo falando do mal lavado...”. Entre os portugueses, além de Constâncio, só Oliveira Martins ocupou-se da história brasileira. Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894) foi um dos polígrafos mais notáveis de Portugal, no século passado. Economia, finanças, história, crítica religiosa, eis os domínios perlustrados pela vigorosa inteligência desse pensador. Na sua febril produção, os livros de história são os mais bem acabados e originais. Infelizmente, só por acidente se ocupam da nossa. É de 1880 o “Brasil e as colônias portuguesas”, de que há três edições. Oliveira Martins apanhou numa síntese feliz toda a evolução brasileira, fazendo observações interessantíssimas sobre alguns dos problemas pátrios, muitas ainda da maior atualidade.

a contribuição alemã Vejamos agora o que fizeram os alemães. É de suma importância a sua parte. Vieram aos nossos domínios trazidos pelo interesse científico e alguns pela mão da primeira imperatriz, a quem o Brasil deve imensos benefícios. Publicado em München, em 1821, apareceu o trabalho de Spix: Brasilien in seiner Entwicklung seit der Entdeckung bis auf unsere Zeit. O Dr. Joh. Bapt. von Spix nasceu em 9 de fevereiro de 1781, em Höchstädt a. d. Aisch. Percorreu em companhia de Martius quase todo o Brasil. Espírito de elevada cultura, não poderia deixar de fazer observações interessantes sobre o tema que elegeu. Eduard Lebrecht deu-nos, em 1827, sua Geschichte von Bresilien. Dois anos depois, publicava-se, em Dresden, a de Ernst Münch. Menos conhecidos, apesar do seu valor, são os livros de Carl Seidler, que viveu dez anos no Brasil e observou pacientemente a estrutura de

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nossa organização social, ao tempo do primeiro reinado: “Zehn lahre in Brasilien während der Regierung Dom Pedros und nach dessen Entthronung” (1835, 2 vols.); “Brasiliens Krieg-und Revolutions-geschichtes zeit dem lahre 1825 bis auf unsere Zeit” (Leipzig, 1837). Devemos a Carlos von Martius uma memória curiosa sobre “Como se deve escrever a história do Brasil”, enviada de Munique, em 1843, ao Instituto Histórico. Nela o sábio naturalista, revelando grande conhecimento do nosso passado, lançou a divisão das regiões naturais geográficas, que acondicionaram os horizontes históricos brasileiros. Coube a Handelmann realizar o plano de Martius. O professor Dr. Gottfried Heinrich Handelmann, autor da melhor história do Brasil que se conhece, nasceu em Altona, aos 9 de agosto de 1827, e morreu em Kiel, a 26 de abril de 1891. Historiador, arqueólogo e folclorista, em 1866 foi nomeado conservador do Museu de Antiguidades Slesvig Holstein e professor de história da Universidade de Kiel. Após ter escrito histórias gerais dos Estados Unidos e do Brasil, consagrou-se ao estudo da história e das antiguidades de sua província natal. Handelmann planejou, primitivamente, fazer uma “História da colonização e da Independência da América”, tratando, segundo a sua classificação dos “Estados de raça branca e negra” e dos “Estados de raça branca e vermelha”. O Brasil constituía uma transição natural para o segundo grupo, pois possuía “uma raça indígena, cuja importância histórica e política não se pode negar”. Chegou a publicar uma “História dos Estados Unidos – 1 a parte”, “História da Ilha do Haiti” e uma “História do Brasil”, como obra independente. (Geschichte von Bresilien. Berlin, 1860, XXIV + 889 in 4o). Referindo-se à Geschichte von Bresilien, de Handelmann, diz, com sua incontestável autoridade, o Dr. Oliveira Lima: “Merecia muito mais uma tradução do que uma reedição a de Varnhagen. Para aquilatar do seu mérito, é suficiente percorrerlhe o sumário e adquiri-lo na inteligente disposição dos sucessos históricos e na profunda discriminação das correntes morais,

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desde o primitivo feudalismo até o unitarismo imperial; ou então lançar a vista sobre a sua bibliografia e verificar a abundância e variedade das fontes. Com uma tradução da obra de Handelmann, corrigida, num ou noutro pormenor, e comentada com discrição e competência, começará o Brasil a ter o que todos dizem faltarlhe, sem que ninguém se cometa ao empreendimento de traçar a sua verdadeira história.”

Foi ainda um alemão, L. Schneider, quem escreveu a melhor história da Guerra do Paraguai: Der Krieg der Triple-Allianz gegen die Regierung der Republik Paraguay. Três volumes. Os dois primeiros foram traduzidos pelo erudito Manoel Tomás Alves Nogueira, o terceiro pelo marechal José Bernardino Bormann. Rio Branco os enriqueceu de preciosas anotações, que, no tocante ao terceiro volume, estão sendo completadas superiormente pelo tenente-coronel Mário Barreto, chefe da seção de história do Estado Maior do Exército.

os historiadores brasileiros No Brasil, uma meia dúzia de cronistas, no primeiro quartel do século XIX, prepara, com as suas buscas e pesquisas, o advento dos historiadores. Tais são Pizarro de Araújo (1753-1830), José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu (1756-1835), Baltazar Lisboa (1761-1840), o Visconde de S. Leopoldo, José Feliciano Fernandes Pinheiro (1774-1847), Inácio Accioli de Cerqueira e Silva (1808-1865). Com exceção de S. Leopoldo, cujo livro História da Província de S. Pedro é bem arquitetado, não sabem sequer dispor convenientemente o material. As Memórias históricas do Rio de Janeiro, do monsenhor Pizarro, primam pela absoluta falta de método. Constituem mero repositório de notícias, mal redigidas, revelando, todavia, esforço e pertinácia no trabalho. Por isto Pizarro é um benemérito. O cônego Luiz Gonçalves dos Santos, cujas Memórias para servir à história do Reino do Brasil apareceram em 1825, em Lisboa, compraz-se em pintar as festas do tempo de D. João VI. Baltazar Lisboa é um naturalista

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versado em jurisprudência e história, mas os seus Anais de montão de fatos descosidos, desarticulados, mortos porque não os animam as correntes construtoras do pensamento. Daqueles cronistas, o maior foi sem dúvida Cairu. Economista, jurista, pensador político, moralista... Tudo versou a sua inteligência privilegiada. Na febre de produzir, pouco cuidava do plano arquitetural de seus livros. Conta José Veríssimo (História da Literatura Brasileira, p. 183) que MonteAlverne, mais que adversário, inimigo figadal de Cairu, no dia do passamento deste não deu a sua aula de filosofia no Seminário de S. José, alegando que morrera um grande homem, apesar de que a sua cabeça não passava de uma gaveta de sapateiro. Todavia, o mesmo MonteAlverne proclamava que, no Brasil, só dois homens entendiam Kant: ele e o Visconde de Cairu. Deixemos em paz os cronistas, que morreram talvez na ilusão de que tenham feito história. Venhamos aos historiadores. Os principais historiadores brasileiros do século XIX foram, penso eu, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), João Francisco Lisboa (1812-1863), João Manoel Pereira da Silva (1817-1898), Joaquim Caetano da Silva (1810-1873), Norberto Silva (1820-1891), o Barão do Rio Branco (1845-1912), Joaquim Nabuco (1848-1910), Euclides da Cunha (1868-1909), Felisbelo Freire (1858-1916), Joaquim Felício dos Santos (1828-1895) e Sílvio Romero (1851-1914). Excluí propositadamente desta enumeração Alexandre José de Melo Morais, retardatário cronista, cujos serviços à história do Brasil são, todavia, inestimáveis. Varnhagen, que teve do Império, pelos seus serviços às letras, os títulos de barão e visconde de Porto Seguro, nasceu em João de Ipanema, Sorocaba, pelos anos de 1816, filho de um oficial alemão, técnico em metalurgia, contratado para dirigir a fábrica de ferro de Ipanema. Proclamada a independência, retirou-se o pai com a família para Portugal, onde mais tarde o jovem Varnhagen tomou parte nas lutas de

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1834, recebendo de D. Pedro o posto de 2o tenente de artilharia. Depois concluiu o curso na Real Academia de Fortificações. Entrementes se dedicava aos estudos históricos, que lhe abriram as portas da Academia de Ciências. Declarado cidadão brasileiro, em 1841, ingressou a carreira diplomática, servindo em Madri, no Chile, no Peru e em diversos outros postos. Morreu em 1878 estando acreditado junto ao governo da Áustria-Hungria, como enviado extraordinário. A atividade literária de Varnhagen foi formidável e abrangeu desde a literatura medieval dos cancioneiros até a etnografia e linguística americana. A sua obra capital é a “História Geral do Brasil”, feita pacientemente durante vinte anos, em face da mais rica documentação. Segue-se-lhe a “História das Lutas com os Holandeses”, monografia de valor, só em 1921, sobre-excedida pelo livro de Wätjen sobre o mesmo assunto. A educação em Portugal imprimiu-lhe o gosto pela clássica correção da forma. Posto que não seja um estilista, Varnhagen escreve bem. A sua filosofia da história é a filosofia romântica de seu tempo. Entretanto, ele foge a muitos vícios do romantismo: a familiaridade com as fontes documentais dão certo cunho de objetividade à exposição que fez dos acontecimentos. Nota-lhe, com razão, Sílvio Romero, a falta do talento de narrar e pintar os caracteres, arte em que foi mestre João Francisco Lisboa. João Francisco Lisboa iniciou sua vida literária, brilhantemente, no jornalismo liberal entre os anos de 1832 e 1836. Deixou a imprensa por alguns anos, talvez enfastiado da estreiteza do meio. Em 1852, porém, começou a publicar a sua interessante revista, denominada Jornal de Timon, em cujas páginas deu a lume para gáudio dos contemporâneos e dos pósteros a história-político econômica do Maranhão, revelando, a par de grande erudição, belezas de forma lapidar. Autodidata, enveredou por conta própria no estudo do direito e da filosofia, na filologia greco-latina, nas literaturas modernas.

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Deixou-nos, além dos “Apontamentos para a história do Maranhão”, “A vida do Padre Vieira”. Faleceu, em Lisboa, a 26 de abril de 1863, onde se achava desde fins de 1855, em missão do governo para colher documentos sobre a história pátria. Entre os outros historiadores do seu tempo, distinguiu-se João Lisboa pelo estilo elegante e sóbrio. De Pereira da Silva se poderá dizer, com justiça, que fez obra de valor para sua época. Não são tantos os erros e inexatidões que lhe arguem censores rigorosos. Viveu longamente e até nas proximidades de abismar-se na eternidade publicou livros. Foi o último deles as “Memórias do meu tempo”. Na sua produção literária, diversificada nos vários domínios da história, da crítica, da política e da imaginação, sobressaem, no consenso unânime dos críticos, os livros de história. Esses livros abrangem o período de 1808 a 1840 e são os seguintes: “História da fundação do Império”, do qual há duas edições, sendo a segunda de 1877, corrigida e melhorada; “Segundo Período do Reinado de D. Pedro I no Brasil”, cuja primeira edição é de 1871; e a “História do Brasil durante a menoridade de D. Pedro II”, de que há duas edições, uma de 1878, outra de 1879. José Veríssimo (“História da Literatura Brasileira”, p. 226) foi quem julgou Pereira da Silva mais severamente: “Historiador, escreveu história com pouco estudo, com quase nenhuma pesquisa, sem crítica nem escrúpulos de investigação demorada e paciente; crítico, não passa de um elogiador retórico, com vasta mas superficial leitura das literaturas modernas e mal assimilada conquanto extensa informação literária, sem ideias próprias nem alguma originalidade; poeta, é menos que medíocre, e romancista, carece absolutamente de imaginação”. Prefiro o juízo desapaixonado de Nabuco: “O lugar de sua obra histórica na posteridade é um lugar provisório, porque nesse trabalho há antes justaposição que elaboração, não há crítica nem critério certo; mas, nem porque terá de ser substituída, deixa a obra de ter valor

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relativamente à sua época, à nossa época, em que nenhum outro se abalançou a fazer o que ele fez e que era preciso fazer”. A paciência, que faltou a Pereira da Silva de investigar e joeirar as fontes sobrou a Joaquim Caetano da Silva, modelo de erudito e investigador científico. Joaquim Caetano da Silva nasceu no Rio Grande do Sul, em Guarda do Serrito, a 20 de setembro de 1810, fez estudos médicos em Montpellier, onde se doutorou em 1837, regressando ao Brasil. Em 1851, foi enviado à Holanda na qualidade de encarregado de negócios para que estudasse os documentos do tratado de Utrecht, que, como se sabe, muito interessava o Brasil na questão de limites com a Guiana Francesa. Dessas pesquisas resultou o famoso livro L’Oyapock et l’Amazone. Faleceu, a 28 de fevereiro de 1873, ocupando o cargo de diretor do Arquivo Público do Império. D. Pedro II, quando leu aquela monografia, declarou que valia por um exército de duzentos mil homens destacados na fronteira. Referindo-se, incidentemente, ao aludido trabalho, disse Rio Branco, na sua “Esquisse de l’histoire du Brésil”: “Ce livre est un monument d’érudition”.3 Invoco o testemunho de Rio Branco, porque li ou ouvi algures que jamais ele citava Joaquim Caetano, o predecessor dos seus estudos na questão do Amapá. Também várias vezes o cita na primeira e na segunda memória sobre Frontières entre le Brésil et la Guyane Française. Tomo ao volume primeiro da segunda memória esta declaração: “Nous avons peu de chose à redire à propos du voyage de Vincent Pinçon. Cet sujet a été traité avec assez d’ampleur et beaucoup de compétence par Caetano da Silva (§§ 2530 à 2683) et succinctement presenté dans le 1er Mémoire du Brésil”.4 Desta faz parte integrante, em terceira edição, comentada pelo Barão do Rio Branco, o livro de Caetano.

3 

“Este livro é um monumento de erudição” (N.O.).

“Nós temos poucas coisas a redizer sobre a viagem de Vincent Pinçon. Este tema foi tratado com suficiente amplitude e bastante competência por Caetano da Silva e sucintamente apresentado na 1ª Memória do Brasil” (N.O.). 4 

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Joaquim Norberto de Souza Silva nasceu no Rio de Janeiro a 6 de junho de 1820 e faleceu em Niterói a 14 a de maio de 1891. Autor de copiosa obra literária – novelas, poesias, peças de teatro, crítica e história –, foi como historiador que nos deu a melhor prova de sua operosidade. E entre seus trabalhos históricos se destaca a exaustiva monografia “História da Conjuração Mineira”, onde revela grande conhecimento do nosso século XVIII. Embora autodidata, fez história conscienciosamente, consultando as fontes documentais. Ocupou-se também, com proveito, de esclarecer as vidas dos poetas da chamada escola mineira, e suas investigações a respeito serão sempre imprescindíveis a quem se entregar ao estudo da história literária brasileira. Joaquim Felício dos Santos, ao contrário de Norberto Silva, teve uma formação clássica aprimorada, estudou profundamente as ciências jurídicas, abalançando-se, não por audácia, a fazer um “Projeto de Código Civil Brasileiro”. Nasceu a 1º de fevereiro de 1828, na cidade do Serro, em Minas Gerais, e faleceu a 21 de outubro de 1895. Aos 22 anos bacharelou-se na Faculdade de S. Paulo e foi estabelecer banca de advogado em Diamantina. No ano de 1862, encetou no periódico “O Jequitinhonha”, que ali se estampava, sob sua direção, uma série de artigos sobre o distrito diamantino da comarca do Serro Frio, os quais, em 1864, apareceram reunidos em livro, que intitulou “Memórias do Distrito Diamantino”. Só em 1924 foi tirada nova edição dessa monografia, que, pela substância e pela forma, trouxe o seu autor ao grêmio dos historiadores do Brasil no século XIX. Sílvio Romero o compara, aliás com manifesto exagero, a Aug. Thierry. O seu lugar nas letras históricas é mais modesto. É o de um monografista erudito, que escreveu com elegância. O Barão do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos (Rio de Janeiro, 1845-1912), era filho do Visconde do Rio Branco, grande estadista e homem de virtudes raras, cuja memória e nome honrou, a ponto de não se saber quem foi maior: se tal pai, se tal filho.

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Fez preparatórios no Colégio Pedro II e formou-se em direito na Faculdade de S. Paulo. Iniciou a vida pública como professor interino de história e corografia do Brasil naquele colégio e posteriormente exerceu a promotoria pública em Nova Friburgo, comarca da então província do Rio de Janeiro. De 1869 a 1875, durante duas legislaturas, representou Mato Grosso na Câmara dos Deputados. Abandonando a política partidária, foi nomeado cônsul em Liverpool, onde permaneceu de 1876 a 1889. Desta data até 1892 exerceu o lugar de superintendente geral da emigração. Em 1894, foi nomeado ministro plenipotenciário e enviado extraordinário perante o governo dos Estados Unidos da América do Norte para advogar os direitos do Brasil na questão de limites com a República Argentina. Graças à memória exaustiva que apresentou, deu-nos ganho de causa a sentença arbitral do presidente Cleveland. Logo depois incumbido de advogar os direitos do Brasil na questão de limites com a Guiana Francesa, elaborou duas memórias, que são modelo de erudição histórico-geográfica e de cerrada argumentação jurídica, vazadas na mais concisa e elegante forma. É escusado dizer que, pela segunda vez, foi pleno e completo o nosso triunfo, tendo sido árbitro da pendência entre Brasil e França o presidente da Suíça. De 1902 a 1912, ano em que morreu, ocupou a pasta das Relações Exteriores. No Itamaraty, desenvolveu formidável atividade para solucionar outras questões de limites e assegurar ao país um posto de relevo no continente americano. Pelo tratado de Petrópolis (novembro de 1903), obtivemos o domínio do Acre, vasto território, de superfície superior à de vários estados brasileiros. Relembremos, de relance, outras vitórias diplomáticas: criação do cardinalato, realização nesta capital da Terceira Conferência Internacional Americana, a participação na Conferência de Paz em Haia, onde teve a colaboração inestimável de Rui Barbosa, tratados de arbitragem com vários países e o tratado de condomínio na lagoa Mirim e no rio

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Jaguarão com o qual se conquistou a amizade do Uruguai, dando-se ao mundo uma sábia lição de altruísmo. Como historiador, Rio Branco deixou-nos, além das citadas memórias diplomáticas “Episódios da guerra do Prata, 1815-1828”; Biografia do General José de Abreu, Barão do Serro Largo, estampada na Revista do Instituto; Biografia de José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco, publicada na Revista Americana; anotações à obra de L. Schneider “A Guerra da tríplice aliança”; Esquisse de l’histoire du Brésil, monografia inserida na obra Le Brésil en 1889; anotações à obra de Varnhagen – “História da Independência”; “Efemérides Brasileiras”. Tudo que saiu da pena do saudoso brasileiro merece apreço, porque se funda em percuciente exame dos documentos, conforme os preceitos da heurística. Rio Branco, como Varnhagen, só afirmava o que podia provar. Historiador objetivo, Rio Branco, se teve concepção filosófica da história, não a deixou transparecer como seus antecessores românticos. A Esquisse de l’histoire du Brésil é uma síntese perfeita de nossa história, na qual a ciência exata se casa à forma mais sóbria. As “Efemérides Brasileiras” contêm o que, durante os seus longos estudos, apurou de certo sobre o passado nacional. Pena é que não tivesse aproveitado os abundantes materiais colhidos num livro definitivo, pois lhe não faltava a capacidade sintética. Joaquim Nabuco – ou Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo –, filho do conselheiro José Tomás Nabuco de Araújo, estadista do Império natural da Bahia, nasceu a 19 de agosto de 1849, no Recife, e se prende pelo lado materno à aristocracia territorial de Pernambuco, pois a sua mãe, além de sobrinha do marquês do Recife, era aparentada com os Cavalcantis. Nabuco, que era um aristocrata, prezava muito essas boas origens. Faleceu em Washington, como embaixador do Brasil, a 17 de janeiro de 1910. O presidente dos Estados Unidos foi pessoalmente ao edifício da embaixada, para significar da maneira mais solene o pesar do povo americano.

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A vida de Nabuco – a vida mais bela que já viveu um brasileiro – não pode ser resumida em duas palavras. É preciso ser apreciada na sua autobiografia que intitulou “Minha Formação”, ou no livro bem documentado do sr. Henrique Coelho – “Joaquim Nabuco – Esboço biográfico”. Nabuco bacharelou-se em letras no Colégio Pedro II, em direito na Faculdade do Recife, e mais tarde três universidades americanas, a de Wisconsin, a de Columbia e a de Yale, lhe concederam o título de doutor honoris causa. Distinguiu-se na propaganda da abolição da escravatura e representou diversas vezes Pernambuco na Câmara dos Deputados ao tempo da monarquia. Com a mudança do regime passou, galhardo, a se bater na imprensa pela causa monárquica. Decorridos dez anos, a República precisava dos seus serviços na questão de limites entre o Brasil e a Guiana Inglesa. Depois foi enviado como ministro em Londres, donde saiu para Washington na qualidade de embaixador. Da época do seu ostracismo são os opúsculos “O dever dos monarquistas”, “Balmaceda”, “Intervenção estrangeira durante a revolta”, o livro “Minha Formação” e a sua obra capital “Um estadista do Império”, em 3 volumes, minucioso estudo da biografia do seu pai e ao mesmo tempo a história mais completa do segundo reinado. Em “Escritos e Discursos literários”, reuniu trabalhos de várias épocas. Em 1906, publicou Pensées detachées et souvenirs, num francês puríssimo do século XVIII. As memórias, com que defendeu o direito brasileiro, abrangem 17 volumes in-folio. Nelas, trabalhou, em média, 14 horas por dia. Apesar da pressa, a obra saiu de assento e sobremão. Quereis saber como Rui Barbosa a julgou? “Se no litígio da Guiana Inglesa não nos foi dado vencer, ide procurar alhures a culpa, porque o trabalho do nosso advogado foi gigantesco. Eu o percorri todo, e nesse gênero de literatura, não lhe conheço coisa comparável. O nosso direito ali resplandece à luz do meio-dia. Se não logramos convencer o nosso juiz,

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convencemos a opinião científica europeia. Haja vista, na Revista Geral de Direito Internacional Público, os admiráveis estudos, ali exarados, pelos mais sábios internacionalistas que do assunto se ocuparam.”

Euclides da Cunha (Cantagalo, no Estado do Rio, 1868-1909) formou o espírito no estudo das matemáticas e ciências físicas cursando a Escola Militar e depois a Escola Superior da Guerra, onde se diplomou. Quando aluno da Escola Militar, foi excluído por ato de indisciplina, inspirado de paixão política, e só voltou ao Exército depois da proclamação da República. Foi curta a sua vida militar. Abandonou cedo as fileiras para se consagrar à profissão de engenheiro. Como repórter, acompanhou a expedição contra os jagunços chefiados por Antônio Conselheiro, publicando as impressões diretamente recebidas do meio e da gente sertaneja no seu livro Os Sertões, num estilo vibrante e novo, que marca para o estudo da transformação da língua portuguesa em língua brasileira. Esse livro admirável se compõe de duas partes: a primeira estuda o ambiente e o homem sertanejo à luz dos ensinamentos da antropogeografia de Ratzel; a segunda descreve a luta entre os brasileiros do litoral e os brasileiros do sertão, que ele considera uma luta de raças, abebeirado das ideias de Gumplowicz. Mesmo que não tivesse sido uma luta de raças, mas uma luta de culturas, não perde por isto de valor a história feita por aquele narrador de subido quilate. Entre os seus trabalhos menores, destaca-se À margem da história, onde vem a monografia Da Independência à República, bela síntese da história brasileira no século passado. Felisbelo Firmo de Oliveira Freire nasceu a 30 de janeiro de 1858, em Itaporanga, Sergipe, e faleceu, nesta capital, a 7 de maio de 1916, deixando avultosa messe de trabalhos históricos, entre os quais sobressaem a “História de Sergipe” e a “História Constitucional da República dos Estados Unidos do Brasil” (2a ed. 1894-95. 3 vols.). Era doutor em

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Medicina pela Faculdade da Bahia. Fez propaganda da república no jornal Horizonte que se publicava ali. Foi o primeiro governador do seu estado natal, onde organizou o partido republicano, representando aquele mais tarde no Congresso Nacional. As suas obras históricas têm os defeitos comuns das obras dos autodidatas, mas é inegável que revelam acurado esforço e exame das fontes arquivais. Na “História Constitucional”, estudou com profundeza a evolução republicana do Brasil, aplicando as teorias do materialismo histórico, particularmente as de Achilles Loria. Destarte, a sua exposição dos acontecimentos se baseia em causas concretas, na estrutura econômica, cujo determinismo na causalidade social é evidente e por vezes preponderante. É de lamenta que Felisbelo Freire não tenha cuidado e polido o estilo dos seus livros. Sílvio Romero nasceu em Lagarto, Sergipe, aos 21 de abril de 1851, e faleceu nesta cidade a 18 de julho de 1914. Depois de bacharelar-se em direito na Faculdade do Recife, veio para o Rio, onde escreveu em jornais e revistas, e exerceu o professorado secundário e superior. Talento de primeira ordem e trabalhador infatigável, Sílvio Romero conquistou na literatura brasileira, de que foi o mais profundo historiador, lugar do mais elevado destaque. Sectário do evolucionismo spenceriano, tendo mais tarde aceitado em sociologia as teorias de Edmundo Demolins e Henrique de Tourville, os livros de Sílvio Romero se apresentam airosamente integrados em grandes correntes de pensamento de século XX. A sua obra capital é a “História da Literatura brasileira”, dada a lume em 1888. Será por ela que passará à posteridade. Os outros escritos que deixou foram quase todos livros de ocasião, que tiveram a virtude de agitar o meio literário, arejar o ambiente, desfazer preconceitos. Historiador, consultou as fontes e fez pesquisas pessoais, lembrou nomes esquecidos, aplicou à história o método etnográfico e sociológico,

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computando, a exemplo de Taine, as influências do meio, da raça e das correntes espirituais, estrangeiras. Vem de molde, em ligeira síntese, apreciar em conjunto o valor dos historiadores brasileiros no século XIX e mostrar os benefícios extraordinários do estudo da história, ciência que é a base da diplomacia e da política. Varnhagen, Rio Branco, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha e Sílvio Romero ocupam o primeiro plano. No segundo destacam-se João Lisboa, Pereira da Silva, Joaquim Caetano da Silva, Norberto Silva, Felisbelo Freire e Joaquim Felício dos Santos. E quanto aos benefícios das ciências históricas– elas dentro um século saíram, no Brasil, das faixas da infância à plena maturidade–, baste dizer que as vitórias diplomáticas do Brasil, as quais tanto concorreram para a fixação de limites do país, evitando guerras, e criando o sistema generalizado da arbitragem, foram, em grande parte, vitórias da erudição, dos conhecimentos profundos da geografia e da história da América do Sul.

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MANOEL BOMFIM Os que fizeram a história do Brasil

apresentação Rebeca Gontijo1

Manoel José do Bomfim (1868-1832), sergipano, médico por formação, foi um dos primeiros críticos do chamado “racismo científico” no Brasil. Esse conjunto de ideias difusas na virada do século XIX adotava o determinismo biológico como modelo de explicação das desigualdades sociais, estabelecendo uma hierarquia que dividia as raças humanas em superiores e inferiores. Seu livro mais conhecido é A América Latina: males de origem, publicado em 1905, onde apresenta seus principais argumentos contra as teorias raciais e defende a tese do “parasitismo social” como relação estruturante do processo de colonização empreendido pelos países ibéricos. A opção de Bomfim por focalizar as origens da América Latina pode ser lida como um esforço no sentido de romper com a construção identitária das sociedades latino-americanas com moldes europeus sob a égide da história da civilização, que explicava as diferenças entre os povos por meio de teorias raciais e progressistas, justificando a dominação branca europeia. Ao empreender o exame da formação das nacionalidades na América espanhola e portuguesa, o autor apontava outra possibilidade de interpretação. Fazendo uso de uma linguagem biologizante, recusou os paradigmas deterministas, que utilizavam essa mesma linguagem. Divergiu dos intelectuais de sua geração ao adotar uma perspectiva sócio-histórica, recusando a aplicação das teorias acerca da desigualdade das raças na explicação da vida social. Focalizou aspectos da cultura e da psicologia

1 

Professora do Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

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coletiva dos povos ibéricos, procurando compreender as causas dos males que afligiam as sociedades latino-americanas em geral e a brasileira em particular. Afirmou que os problemas do presente estavam relacionados ao processo histórico da colonização. No caso, esse processo teria sido marcado por uma relação de parasitismo da metrópole sobre as colônias, de uma nação sobre a outra e, internamente, de um grupo social sobre outro. Articulado a esse regime de exploração, também considerou a problemática que envolve a produção e a apropriação do valor-trabalho no que tange às relações entre “potências imperialistas” e “países periféricos”, base da discussão que empreendeu nos ensaios sobre a formação do Brasil e a questão da soberania nacional (SUSSEKIND; VENTURA: 1981). O interesse pelo passado tem destaque em sua obra – considerando o foco no processo de colonização –, porém o olhar sobre o presente e suas mazelas também é evidente, visto que dedica especial atenção aos problemas contemporâneos ligados à vida política, à divisão do trabalho e à educação. O tema da formação nacional ocupou muitos intelectuais de sua geração, sobretudo no decorrer da década de 1920, quando redigiu sua trilogia sobre o Brasil, composta por: O Brasil na América: caracterização da formação brasileira (1929), O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política (1930) e O Brasil nação: realidade e soberania brasileira (1931). Sua obra, pouco conhecida, é extensa e variada. No campo da educação, publicou compilações de outros autores, manuais escolares, livros de leitura2 e trabalhos teórico-metodológicos dedicados à formação do professor. Entre seus livros destinados ao uso escolar, o mais famoso é

2  No fim do século XIX e início do XX, a expressão livro de leitura servia para designar as obras destinadas ao aprendizado da língua nacional e à aquisição de conhecimentos e regras de moral considerados úteis à socialização do indivíduo. Fundamentalmente, o livro de leitura dá ênfase à transmissão de valores, ideias e concepções de mundo. Sua leitura deve ser, sobretudo, prazerosa, de modo a despertar na criança o gosto pelo ato de ler. Ao lado dos compêndios dedicados ao ensino dos conteúdos específicos de cada disciplina, constituíam o conjunto da chamada literatura escolar nacional.

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Através do Brasil (1910), escrito em parceria com Olavo Bilac (1864-1934), que teve mais de sessenta edições e foi utilizado nas escolas por cerca de cinquenta anos. Também desenvolveu pesquisas sobre psicologia educacional, com foco no processo de aprendizagem e atuou como professor da Escola Normal do Rio de Janeiro e diretor do Pedagogium, instituição destinada a divulgar informações sobre as condições do ensino no país e a promover cursos de aperfeiçoamento docente. No início do século XX, Bomfim estudou na França com Alfred Binet (1857-1911), pioneiro nos estudos sobre mensuração de “habilidades mentais” ou “testes de inteligência”. As pesquisas de Binet deram continuidade aos trabalhos do filósofo alemão Wilhelm Wundt (1823-1920) -autor também conhecido por Bomfim -, cujos estudos de psicologia experimental contribuíram para o enfrentamento de problemas educativos, tais como a memória, a aprendizagem e a solução de problemas. Para Wundt, a psicologia científica compreendia dois grandes ramos: a psicologia fisiológica, dedicada ao estudo dos fatos elementares da consciência, compreendida como a percepção advinda de uma série de vivências em contínuo movimento (atualismo); e a psicologia dos povos, que trata do estudo dos produtos culturais (linguagem, religião, costumes, arte, moral etc.). Outro autor citado por Bomfim é Gabriel Tarde (1843-1904), em cujas obras encontrou uma reflexão sobre o conceito de imitação, um dos tripés do estudo das coletividades no século XIX, ao lado do contágio e da sugestão. Bomfim utilizou tal conceito em sua reflexão sobre o conservadorismo latino-americano no livro A América Latina (1905). Tais aspectos são úteis à compreensão das concepções de Bomfim a respeito da história e da formação da nacionalidade, indicando que esse autor compreendia o processo histórico e a vida social como algo complexo, sujeito a inúmeros fatores e aberto à transformação. Um dos desdobramentos dessa reflexão é o estudo da solidariedade (ligação entre indivíduos interdependentes), também presente na obra de Bomfim (GONTIJO, 2001; MELLO, 1997; LIMA, 1997; VARGAS, 2000).

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É preciso lembrar que o debate sobre educação no início do século XX não estava circunscrito ao âmbito dos educadores. De um lado, porque a Pedagogia no Brasil encontrava-se em plena fase de consolidação enquanto saber científico, dotado de métodos capazes de promover o aperfeiçoamento efetivo do ensino e da aprendizagem. De outro, porque a questão educacional mobilizava diferentes agentes interessados nos rumos do país e preocupados em identificar e enfrentar as causas do “atraso” brasileiro. Aqueles que se dedicavam aos temas da educação possuíam formação diversificada, assim como seus campos de atuação eram múltiplos. Compartilhavam, contudo, o meio por excelência para divulgação de ideias naquele momento: a imprensa. Nos anos vinte, num contexto marcado pelo pessimismo acerca das possibilidades de uma nação civilizada e moderna nos trópicos, Bomfim reafirmou que os males de origem do Brasil eram de natureza sócio-histórica e não raciais, geográficos e/ou climáticos. A solução para os problemas nacionais consistiria no combate à herança ibérica, com sua influência parasitária na sociedade brasileira do passado ao presente. E nesse sentido, como muitos homens de letras de seu tempo, considerou que a luta mais adequada seria em prol da educação. Como observou André Botelho, “antes de qualquer outra reforma econômica ou mesmo política, caberia formar os portadores sociais para uma nova sociedade brasileira” (BOTELHO, 2002; 2009). Indo do mais geral ao mais específico, aprofundou e retomou as colocações feitas em A América Latina, sendo notável sua avaliação crítica da historiografia que trata da formação nacional brasileira. Em O Brasil na História, lançado pela primeira e única vez em 1930, o autor analisou as razões das deturpações e insuficiências da história do Brasil: a influência da sociologia francesa (com destaque para o positivismo) e a ação de historiadores considerados antinacionalistas. Mais especificamente, a história do Brasil teria sido “deturpada” devido a uma causa externa e a uma série de causas internas. A primeira possuiria o

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efeito negativo de diminuir os valores nacionais e restringir o critério de observação da realidade dos historiadores, sobretudo, devido à influência do positivismo. Quanto às causas internas, teriam pervertido a opinião pública corrente, negando o valor “dos que fizeram o Brasil”, ou seja, daqueles que teriam sido os verdadeiros responsáveis pela afirmação da tradição nacional. Resumidamente, as causas internas seriam: 1) a negação ou camuflagem de interesses; 2) a “perversão” das fontes; 3) a redução da história à enunciação de fatos e à listagem de nomes. Os que fizeram a história do Brasil corresponde ao capítulo três do livro O Brasil na história. Trata-se de um exemplo da crítica historiográfica desenvolvida pelo autor, significativa para a compreensão de sua interpretação sobre o processo histórico brasileiro. Tal crítica apresenta aspectos doutrinários e pedagógicos, pois se dedica a apontar erros na escrita da história e a propor soluções. Nesse capítulo, o autor identifica parte da produção historiográfica brasileira que avalia como ilegítima, responsabilizada pela deturpação da história do país: Rocha Pitta (1760-1838), Alves Nogueira (m. 1913), Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), Pereira da Silva (1817-1897) e Moreira de Azevedo (1832-1903). Também apresenta, de modo sucinto, aqueles que considera como verdadeiros historiadores nacionais: Frei Vicente do Salvador (c.1567-c.1636) e Robert Southey (1774-1843). Também chama atenção para as potencialidades de dois contemporâneos: Capistrano de Abreu (1853-1927) e João Ribeiro (1860-1934). “Historiadores por encomenda” teriam produzido, segundo ele, uma história sem grande preocupação com a crítica e a doutrina nacionalista, atendo-se a pormenores sem importância. Alegou que através da pena desses historiadores a história nacional fora escrita e deturpada, difamando os heroísmos genuinamente nacionais e consagrando aquilo a que esses se opunham: a política imperial. O “coro dos historiadores bragantinos” teria se ocupado em falsificar a história do Brasil, relegando a segundo plano os acontecimentos que

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para ele possuíam significado relevante. Deste modo, a Insurreição Pernambucana teria sido esquecida; a unidade nacional, confirmada como resultado da independência promovida pela monarquia bragantina; e os bandeirantes paulistas, difamados. É assim que Bomfim identifica a construção de um “ortodoxismo histórico” em correspondência com a política imperial (BOMFIM, 1930: 110). Para ele, Varnhagen teria sido, senão o primeiro, pelo menos o principal historiador a dar o Brasil à Casa portuguesa reinante. Teria importância como “escarafunchador de arquivos”, mas esse mesmo valor, ele o teria perdido, ao apossar-se da história de frei Vicente do Salvador sem citá-lo. É o exemplo máximo do mau historiador, sem a “capacidade reconstrutora de Mommsem”, o “poder evocador de Thierry”, “a ciência estilizada de Taine” ou “o tom humano de Michelet e Gibbson” (BOMFIM, 1930: 122). Para Bomfim, a tarefa legítima do historiador seria “depurar” a história nacional, livrando-a do que considerava como entraves ou obstáculos ao pleno desenvolvimento da nacionalidade. O autor escreveu O Brasil na História num momento em que havia a percepção de que a verdadeira história do Brasil estaria por ser escrita. O bom historiador também estaria por surgir e, para tanto, seria preciso critério histórico orientado pela objetividade e pelo “rigor investigativo” na busca da verdade. Além disso, esse historiador ideal deveria possuir imaginação, segurança de conceitos, erudição, lógica e senso crítico, de modo a poder construir uma história afastada de preconceitos. O autor também toca no problema da narrativa ao valorizar a “capacidade reconstrutora” ou o “poder evocador” do historiador, cujo estilo deve ser dotado de arte, elegância e leveza, além de algo que o autor define como um “tom humano”. A produção de Manoel Bomfim foi, até certo ponto, esquecida. Embora seu nome tenha permanecido em sucessivos balanços da história intelectual e das ideias da Primeira República, a maior parte de seus

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livros não foi reeditada e alguns deles só o foram a partir da década de 1990. Como observou Marcos Cezar de Freitas, seus estudos sobre psicologia educacional foram vistos como “vestígio antecedente”, situado como a contraface do momento seguinte, marcado pela difusão da Escola Nova (FREITAS, 2002: 346). Pode-se acrescentar a isso que uma sólida memória acerca da produção intelectual anterior aos anos 1930 foi construída, identificando esse período como uma espécie de hiato, supostamente marcado pela estagnação criativa e imitação de ideias estrangeiras. Assim, a produção intelectual, literária e científica surgida entre as décadas de 1880 e 1910 foi frequentemente considerada “menor”, “pré-moderna”, precursora do que viria depois (CÂNDIDO, 1965; 1971; 1973; BOSI, 1966; 1997a; 1997b; LIMA, 1981). Nesse movimento de invenção das tradições de reflexão sobre o país, muitos autores foram vistos como “menores”, enquanto outros se tornaram “clássicos” do pensamento brasileiro, devido a sua suposta capacidade de compreender e explicar o Brasil. Desse modo, ambos, “clássicos” e “esquecidos”, foram retirados de seu próprio tempo e cristalizados em um lugar atemporal, como interpretação definitiva ou, pelo contrário, como interpretação digna de ser esquecida, respectivamente. Concordando com Maria Stella Bresciani, pode-se dizer que isso não deixa de ser uma traição a tais autores, pois desconsidera as preocupações políticas e sociais que lhes foram contemporâneas, que serviram de norte para seus estudos e ações (BRESCIANI, 2005:16).3

referências BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Garnier, 1905. ______. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1929.

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Bresciani se refere apenas aos clássicos.

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BOMFIM, Manoel. O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930. ______. O Brasil nação: realidade da soberania brasileira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1932. BOSI, Alfredo. “As letras na Primeira República”. In: FAUSTO, Boris (Org.). História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, t. III, v. 9, 1997. ______. “O pré-modernismo”. São Paulo: Cultrix, 1966. ______. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1997. BOTELHO, André. Aprendizado do Brasil: a nação em busca dos seus portadores sociais. Campinas: Unicamp, 2002. ______. Manoel Bomfim: um percurso da cidadania no Brasil. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; BOTELHO, André (Orgs.). Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre intérpretes do Brasil. São Paulo: Unesp, 2005. CÂNDIDO, Antônio. “Literatura e cultura de 1900 a 1945”. In: ______. Literatura e sociedade. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1965. ______. “Literatura e subdesenvolvimento”. In: Argumento, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, 1973. ______. Formação da literatura brasileira, momentos decisivos. São Paulo: Martins Fontes, 1971. FREITAS, Marcos Cezar de. Da ideia de estudar a criança no pensamento social brasileiro: a contraface de um paradigma. In: ______; KUHLMANN JÚNIOR, Moyses (Org.). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002. GONTIJO, Rebeca. A história no Brasil e o Brasil na história. In: ______. Manoel Bomfim e O Brasil na História. Niterói, RJ: UFF, dissertação de mestrado, 2001. História e Historiadores no Brasil: do fim do Império ao alvorecer da República

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LIMA, Luiz Costa. Imitação e contágio. In: ______. Terra ignota: a construção de Os Sertões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. ______. “Da existência precária: o sistema intelectual brasileiro”. In: ______. Dispersa demanda (ensaios sobre literatura e teoria). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. MELLO, Maria Tereza Chaves de. Futuro do passado: uma apologia da América Latina. Rio de Janeiro: PUC/Dep. de História, dissertação de mestrado, 1997. SUSSEKIND, Flora; VENTURA, Roberto. História e Dependência: Cultura e Sociedade em Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Moderna, [1981]. VARGAS, Eduardo Viana. A produção de saberes relativos ao “social”. In: ______. Antes Tarde do que nunca. Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.

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os que fizeram a história do brazil1 Manoel Bomfim

§ 17 história para o trono... O Portugal restaurado pelos inimigos de Castela guardou o domínio de Brasil, e, como já era incapaz de outra cousa, teve de viver exclusivamente do mesmo Brasil. A Índia e o seu famoso comércio sumiram-se através da degradação geral da nação; a África era a simples colheita para os negreiros. Restava a colônia americana, fruto das energias sobrantes de 1500, a fecundar a ingenuidade heroica do gentio tupi. E o Brasil, assim gerado, teve de continuar no seio da Nação portuguesa. Mas, agora, mudou completamente a situação da metrópole para com a colônia, esta, que se apresenta com as suas energias crescentes bem demonstradas – na capacidade de defesa e na produção de riqueza, ao passo que Portugal, decaído, essencialmente degenerado, só é mantido em soberania pelo eufemismo da aliança inglesa. Nestas condições, a questão se resolveu pela nova política adotada para com o Brasil, e que consistiu em destruir tudo que pudesse concorrer para a afirmação da nova nacionalidade, já manifesta, mas que devia morrer. De fato, se o não contrariassem e abatessem tão sistematicamente, como o fizeram, o Brasil teria chegado à completa expressão nacional, rompendo para a soberania; ora, a nação que vivia exclusividade de ser metrópole não podia aceitar a situação de suicídio, e teve de dedicar todos os seus esforços a lutar pela vida na forma da sua capacidade.

1  Publicado originalmente em O Brazil na história, de 1930. Edição do texto consultada: BOMFIM, Manoel. O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930. As notas seguem conforme notação feita pelo autor (N.O.).

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E como a tradição é fator essencial na afirmação da nacionalidade, o esforço se dirigiu explicitamente para aí: Portugal restaurado foi, desde o primeiro momento, o inimigo implacável da tradição brasileira; e a Casa de Bragança, para quem se fez a restauração, foi o principal condutor da deturpação e adulteração da nossa história nacional. O mal teve extensão de verdadeira calamidade porque, tudo conseguindo – até o assenhorear-se da independência do Brasil, os Braganças lhe impuseram a voz dos seus interesses – dinásticos e portugueses, realizando, finalmente, uma história contra a verdadeira tradição brasileira. Em verdade, o Império foi o ouvido sistemático, quando não a difamação dos heroísmos genuinamente nacionais, pela consagração daquilo mesmo que a eles se opunha. Houve, até, um qual ortodoxismo histórico, em correspondência com o ambiente da política imperial, ortodoxismo que consistia, justamente, em dar corpo a tudo que pudesse valer como prestígio para os que exploravam esta pátria, contrariando mesmo, explicitamente, a expressão dos seus legítimos sentimentos, velando as verdadeiras glórias da sua história. Foi assim que a Insurreição Pernambucana deixou de ter significação, no silêncio em que a esqueceram, ao passo que se apuravam os opacos heroísmos no Prata; assim se criou a lenda mentirosa – de que “a unidade do Brasil foi resultado da independência com a monarquia bragantina, e que, autônoma, a nação se desencadeou em desordens e facções, finalmente dominadas pela força orgânica da política monárquica...”. Um trono plantado no Brasil pelos portugueses, com o intuito explícito de desviar a inevitável independência para os interessas portugueses; um trono que era, para todo o mundo, uma monstruosidade –contra a natureza, contra o espírito americano, contra a própria história, irritante às nossas legítimas tradições; um trono assim mal parado precisava justificar-se, e ter aparências de motivos. Surgiu, então, o coro dos historiadores bragantinos, com o

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intuito mal escondido de demonstrar – que a nação devia pertencer à dinastia “que fizera a Independência”. E como esse título, só, não bastasse, entraram os empreiteiros dessa história, a infamar o Brasil, sonegando qualidades essenciais do seu caráter, inventando vícios e crimes por conta da nação, para terem ocasião de apontar serviços e beneméritos do mesmo trono. O primeiro efeito dessa história desnaturante e antibrasileira foi o crime de deixar-se ignorada, para o grande público nacional, a obra em que o Brasil é apresentado ao mundo, pela primeira vez, como nação definitiva, de valor demonstrado – a História do Brasil, de Roberto Southey. Então, sobre ela, mas em oposição à tradição nacional, que nela se patenteia, surgem os historiadores por encomenda, opacos refratores, sem outro maior valor que o da distorção. Um Varnhagen, apenas superado, em capacidade de deturpação, pelo inesquecível escritor da Fundação do Império; comparável em descrição aos Moreira Azevedo e Fernandes Pinheiro. Não havia, para esses, outra orientação histórica, senão os degraus do trono. Foi assim enquanto houve trono... Depois, para que reagir?...

§ 18 some-se a história de frei vicente Varnhagen tem destaque especial, como modelo: é o sistematizador dessa história – para o Império e contra o Brasil. Terá, por isso, parágrafo também especial. Por ora, vejamos nele o homem que, conscientemente, sonega a primeira e genuína história do Brasil, escrita por um brasileiro, a de Frei Vicente do Salvador. E, nesta altura, chegou o momento de contar, do caso, o bastante para dar ideia do que se fazia para abafar o Brasil, desde que ele se revelou numa história sua, mesmo porque tais processos se continuaram no grande historiador do Império. Fr. Vicente, brasileiro da Bahia, escreveu a sua história animado por um português seu amigo, amador de erudições históricas, aparen-

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tado no Brasil, Manoel Severim de Faria2. O trabalho, terminado em dezembro de 1627, foi prefaciado pelo autor em dedicatória ao mesmo Severim, e a ele enviado, para ser publicado. “[...] junto com Vossa Mercê ma querer fazer de tomar a impressão a sua custa”. Fr. Vicente estava certo que o seu prometido Mecenas, por ele comparado a Alexandre, lhe publicaria o trabalho. Finou-se, dez anos depois; fez adições, ainda, a alguns capítulos; mas morreu sem o consolo mínimo de ver o seu livro divulgado, não obstante que o Mecenas-Alexandre continuava rico, amador de histórias... Por que não se publicou o livro?... Porque não tivesse mérito? Não: tanto mérito havia nele que, mesmo não sendo papel oficial, duas cópias foram recolhidas ao grande arquivo de papéis históricos do Estado português – a Torra do Tombo. Quer dizer: os que retinham os destinos do Brasil julgaram o livro de Fr. Vicente coisa especialmente importante, e que devia ser conservada... mas escondida. Tanto tinha valor esse trabalho que, apesar de nunca impresso,

2  Severim de Faria era irmão do Frade Cristóvão de Lucena, da mesma ordem que fr. Vicente, de quem era amigo. Fr. Cristóvão, a quem o nosso historiador chama pelo nome de Faria, serviu muitos anos no Brasil, no Norte. Era pertinaz maldizente, contra Bento Maciel, Barreiros, o jesuíta Luiz Figueira... Tudo faz crer que ele tinha razão; mas os excessos da sua língua não são nada cristãos: “... uns frades que cuidam que tiram de si o que põem nos outros... o capitão desta conquista que anda solicitando as mulheres casadas com publicidade, e ao padre da Companhia (Figueira) andar dando liberdade de consciência a todos para deste modo se fazer bem-quisto... tramas e enredos do padre Luiz Figueira... o piloto como covarde, queria... não vos vades fiando facilmente de relações porque são falsas, principalmente as dos padres da Companhia que têm alguns por granjearia falar bem ou mal segundo o pouco ou muito que correm... a verdade da linha para cá rarissimamente se encontra...”. Com tudo, esse maldizente chama Fr. Vicente de honrado. É na mesma página em que recomenda ao irmão – que obtenha de Fr. Vicente que se refira aos dois, Severim e o próprio Fr. Cristóvão, na sua obra. E o nosso frade assim o fez, se bem que em termos perfeitamente dignos e justos. Severim, historiador de uma História Portuguesa, não cometeria o crime, inútil para ele, de enterrar a obra de Fr. Vicente. É verdade que Severim, tinha alma irmã da do irmão, devia ser jactanciosamente convencido do próprio valor, talvez incapaz de concorrer para a glória de outrem: “... administrei os ofícios que tive com a maior inteireza... de nenhuma coisa fui mais liberal que da vida, lidando em contínuos trabalhos, no que toca os riscos da vida não tem cá sua Magd. Soldado que tantas vezes visse a morte diante dos olhos... nos perigos em que animosamente me pus... fiai-vos só das informações que de cá eu vou mandar porque sou muito cioso do crédito...”. Muito naturalmente, o frade Faria estende à família o alto juízo que faz de si. Diz ao irmão, a propósito da história Portuguesa – “... o vosso livro me pareceu coisa divina, assim pela erudição como pela excelência do estilo...”. Por um motivo qualquer, ou um concurso de motivos, o fato é que, da mão de Severim, o livro de Fr. Vicente passou para a sepultura. (Doc. L. O., pp. 233 a 255).

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rompeu a cova onde o enterraram, e era conhecido, de fama, pelos que posteriormente se ocuparam da história do Brasil. Tanto tinha valor, quanto ainda o tem, hoje, para nós outros, que nele encontramos um testemunho de fé, em depoimento pitoresco e expressivo, insubstituível quanto ao que foi diretamente conhecido pelo autor, eloquente, no que diz da tradição já formada, e que revela e incorpora em preciosos comentários. “Houve alguma força superior que a paralisasse?...” (a publicação do trabalho do frade baiano). Nesta pergunta, o espírito penetrante e ponderado de Capistrano de Abreu deixa patente – admitir que tivessem impedido a publicação... Ninguém conhece melhor essas coisas do que o anotador de Fr. Vicente. Um dos seus primeiros reparos é que o iniciador da nossa história já tenha acentuado a importância da colônia em face da metrópole, tanto que poderá vir a ser o centro e refúgio do governo português. Antes, porém, porque era o que mais se impunha ao sentimento brasileiro de Fr. Vicente, ele havia assinalado males que já atormentavam o Brasil, ao mesmo tempo que dava a responsabilidade deles aos representantes da metrópole e aos outros reinos: “[...] depois da morte de D. João III, não houve outro que dele (o Brasil) curasse, senão para colher as suas rendas e direitos. E deste mesmo modo se hão os povoadores, os quais tudo pretendem levar a Portugal... O que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma piedade... nenhum as faz, ainda que bebam água suja... e tudo isto vem de não tratarem do que há de ficar, senão do que hão de levar para o reino...”. É nesses termos, que o frade baiano apresenta o Brasil, cuja história entra a contar, sem esquecer de notar todas as excelências da terra, ao mesmo tempo que discute a sem razão – dos que dão a zona equinocial como imprópria para a espécie humana. Toda a história é conduzida, acentua Capistrano de Abreu, “com o sentimento de amor à terra natal”. A prova desse amor nós a temos, não tanto no bem que ele diz do Brasil, como na vivacidade com que defende os interesses próprios, da sua pátria, seja contra quem for,

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ostensivamente contra os maus processos da metrópole. Quando a ocasião se oferece, ele mostra um homem da terra prestando serviços... “sem receber mercê alguma, porque os serviços do Brasil raramente se pagam”.3Quase ao findar, quando contempla as condições da colônia, onde só os brasileiros têm coragem de avançar pelos territórios desocupados e incultos, pois que os reinos, já decadentes, não têm outra capacidade além da mercancia nas partes povoadas, Fr. Vicente diz-lhes a verdade: que os portugueses não sabem povoar... Consideremos desde já que o nosso primeiro historiador era um caráter num grande coração. Não hesitou, nunca, em chegar ao termo do seu pensamento, ainda que houvesse motivos para conter-se. Bem o vemos no caso de Anchieta a trucidar Boulez. Exprimiu, sem reservas, o seu sentimento de brasileiro; mas não há no seu livro um grito de reivindicação, como não há laivo de ódio. Foi sempre discreto no censurar, e elegante no condenar: “O que os inimigos haviam deixado, levaram os amigos...” é o seu modo de comentar a deslavada rapinagem da gente de D. Fradique, na Bahia4. E quando os fatos lhe bastam, ele não vai adiante: tal acontece no referir à miserável insídia das autoridades portuguesas para com Zorobabé. No entanto, houve momentos em que os seus conceitos (os já citados) vão até a veemência. Devemos reter, a esses conceitos, porque neles está, certamente, um dos motivos que levaram a gente de Portugal a dar sumiço a sua história. Ela era, já, um vivo protesto do Brasil contra as misérias com que o afligiam. Esconderam-n’a, e, apesar disto, a obra de Fr. Vicente teve um sucesso superior ao de muitos livros impressos, firmados por autores feitos. Foi uma repercussão que se estendeu até os nossos dias. Davam-lhe atenções especiais – porque era perigoso deixá-la ao alcance dos brasileiros, e porque havia nela muita coisa a colher e roubar. Todos que estavam na intimidade dos interesses

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Op. cit., 272.

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Op. cit., p. 598.

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portugueses conheciam-n’a muito bem. Fr. Agostinho de Santa Maria, o do Santuário Mariano, surrupiou dali o melhor dos seus capítulos.5 Ora copiava, ora roubava. E roubava mutilando... Havia, na Torre do Tombo, dois exemplares da História do Brasil de Fr. Vicente, um que, incompleto, foi copiado para o Brasil, e é o vulgarizado como publicação oficial do Governo; um outro completo, anotado e corrigido pelo próprio Fr. Vicente. Este foi lido por Varnhagen, e se sumiu depois... O exemplar finalmente conhecido estava todo podado, faltando-lhe doze capítulos inteiros, fora pequenos trechos esparsos. Saiba-se, agora: a maior parte dos pedaços aproveitados pelo autor do Santuário são desses capítulos desaparecidos, e estão evidentemente deturpados6. Os termos de uma das notas de Capistrano mostram-nos as falsificações que se fizeram nas páginas de Fr. Vicente, e se atendermos aos assuntos truncados, facilmente reconheceremos os motivos que determinaram tais profanações. De tudo isto resultaram maiores males, para o Brasil, do que o imaginavam os próprios perseguidores da nova nacionalidade: a primeira História do Brasil era a revelação de um espírito novo, na novidade de uma tradição nacional própria; tinha em si, por isso mesmo, inspiração para novos modelos no historiar de uma pátria. Capistrano, depois de mostrar, em Fr. Vicente,“... o amor da pátria e certeza do seu futuro, sentimentos raros naquele tempo...”, desenvolve o comentário: “Imaginemos que a História de Fr. Vicente, em vez de ficar enterrada... viesse logo à luz; as consequências podiam ter sido consideráveis: serviria de modelo. Os arquivos estavam completos e teriam sido consultados... As entradas sertanejas teriam atraído a atenção e o conhecimento delas não ficaria e nomes escoteiros; muitas anedotas teriam sido colhidas, quebrando a monotonia pedestre ou 5 

Capistrano de Abreu, Notas a Fr. Vicente.

6  “Faltam os capítulos de 10 a 17... de que podem considerar-se fragmentos os trechos do Santuário Mariano... Este omite qualquer referência a Alexandre de Moura (começam a aparecer os brasileiros) e cala-se quanto ao proceder de Caldeira no Maranhão. Já estaria truncado o exemplar utilizado por Fr. Agostinho de Santa Maria?” Nota de Capistrano ao livro V, p. 428.

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solene com que os Rocha Pittas, os Berredos, os Jaboatões afrontaram a publicidade. Frei Vicente ultimou a sua História em 1627; só um século mais tarde, saiu Rocha Pitta com a sua História da América Portuguesa”.7 Em Capistrano se repete a natural aspiração do espírito brasileiro: se viesse à luz... Não podia vir: seria luz para uma nacionalidade que se anunciava na colônia, e Portugal-metrópole não podia consentir nisso, uma vez que o Brasil devia ser, apenas, um ubre. São coisas incompatíveis ou existências inassimiláveis – nacionalidade e ubre... E, para sufocar essa entidade, cuja existência era anúncio de morte para a metrópole, sepultaram imediatamente a obra de Fr. Vicente. Só podia aparecer, então, aquela história em que até o nome do Brasil se ofuscava, quanto mais a tradição!... Voltemo-nos, agora, para o Sr. Varnhagen, que, em 1750, seria Rocha Pitta... O livro do frade baiano, sumido pelos portugueses, era, para o espírito brasileiro, mais do que, para o mundo geral da inteligência, o Consolatio ou o De Virtutibus... porque, sendo por si mesmo uma obra de valor efetivo, era, ao mesmo tempo, a aurora da mentalidade brasileira e da história nacional... Havia, em quantos se interessavam pelo Brasil, anciã de curiosidade, no irreprimível desejo de conhecê-lo. Seria tarefa a que um historiador realmente brasileiro daria gostosamente a existência: desencavar a história de Fr. Vicente. Pois bem, o grande historiador, que, de tanto valer, acabou titulado em Porto Seguro, esse conheceu, ainda bem moço, o livro tão ardentemente desejado; leu-o, no exemplar completo; explorou-o o mais que pôde, já dissimulando a origem das informações, já fingindo honestidade num esquivo F. V. S. Chegou a publicar um capítulo isolado, e que lhe foi comunicado por João Francisco Lisbôa; mas preferiu não cumprir o dever de brasileiro e de historiador, e não fez conhecido Fr. Vicente. Há mesmo a circunstância de que o exemplar

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Fr. Vicente, prefácio de Capistrano de Abreu, p. XX.

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que esteve em suas mãos desapareceu. Por que procedera assim o Sr. Varnhagen? Ou julgou não dever concorrer para reforçar as legítimas tradições brasileiras, fornecendo mais argumentos contra a metrópole, ou preferiu guardar para si a descoberta, servindo-se, no encoberto inescrupuloso, do trabalho de Fr. Vicente. O mais acertado será admitir a combinação dos dois motivos: o Sr. de Porto Seguro era um meditado, e tinha sempre fortes razões de proceder. Aliás, parece que era vezo, no seu historiar, o esconder documentos de que se servia. Além dessa vez, Capistrano aponta duas outras em que, a respeito de Pedro de Góes e de Cosme Rangel, “[...] Varnhagen encontrou documentos que não especifica e não são reconhecidos...”. E, agora, no interesse da história do Brasil: Que respeito e crédito pode merecer um tal historiador? Que orientação esperar de histórias assim entendidas e realizadas? Finalmente um acaso, num desenvolvimento de dezenas de anos, levou uma cópia do manuscrito do frade à biblioteca Nacional, e a geração dos últimos dias do Império já conheceu a sua esplêndida narração histórica8.

8  Foi um aumentativo de acaso. Uma comissão do Governo Brasileiro andara a fazer copiar documentos na Torre do Tombo, e, sem saber bem o que valia a coisa (cópia de assalariados), trouxera um exemplar da História de Fr. Vicente do Salvador. Agora, começa outro desenvolver de sucessos, onde patenteia – que isto aqui era bem aquele Estado feito na Independência de 22. As cópias foram levadas ao Ministério do Império (Interior), cujo titular, o Marquês de Olinda, sem mais cerimônias, mandou tudo para a casa, como coisa sua. Naqueles tempos, havia absoluta honestidade nos homens públicos, mas entendia-se que a honestidade se referia, apenas, a negócios de dinheiro: não se roubava em espécie... E o Marquês, que ajudara a fazer o Estado de que era ministro, não sabia nada do valor da obra de que se apossara; deixou-a tão desprezada que, com o tempo, nuns restos de inutilidades vendidas a preço ralo, a cópia foi parar num sebo, cujo dono, mais sagaz que o Sr. de Olinda, mais patriota que o Sr. de Porto Seguro, doou o manuscrito à Biblioteca Nacional, em 1882. E ainda foi tempo – para que a obra aparecesse publicada, numa edição miserável, a pior, das más, de que tem segredo a Imprensa Nacional: papel de jornal, colunas de jornal... qualquer coisa a indispor o leitor que não fosse verdadeiramente patriota. Há oito anos, apenas, quase quarenta anos depois de reachado o manuscrito, é que a História de Fr. Vicente teve uma edição razoável, feita por um editor de nome estrangeiro, e que certamente acertou num excelente negócio. Neguem, agora: que a alma de Severim de Faria paira, ainda, por sobre os nossos destinos. Capistrano de Abreu admite que João Francisco Lisbôa sabia bem o que mandara, pois que o prometera ao Sr. Varnhagen; então, este soube da chegada do manuscrito e, ainda assim, deixou que ele ficasse ignorado, enquanto ele, Varnhagen, vinte anos depois, continuava a servir-se do trabalho de Fr. Vicente... Que historiadores e que estadistas!...

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§ 19 coriáceos, nulos, opacos e indigestos... Ao contar a história do achado, o incisivo anotador de Fr. Vicente chama o Marquês de Olinda, ex-regente do Brasil – figura primacial do segundo reinado... Sim, como Varnhagen fora primaz entre os nossos historiadores... Imagine-se – que é que valerão, sem nobreza, nem primazias!... A medida desse valor, nós a temos, no Estado e na história que uns e outros nos fizeram. Os nossos empreiteiros de história criticam, pontificam... mas sem grande preocupação de sucesso na crítica e na doutrina. Para eles, desde a História Geral do Brasil, o verdadeiro mérito está na quantidade de erudição com que encharcam as páginas, uma erudição bem no espírito de Dryasdust, escolhido motejo de Carlyle – para símbolo da nulidade irritante, inane de ideias, mirrada de expressão. Vastas, desenvolvidas em pormenores, essas histórias distendem-se, recheadas de futilidades, desenxabidas, inertes, indigestas, próprias, somente, para abafar, do passado, o que tenha valor, qual acontece na nossa holandesa, quando marcam o dia em que o Batavo deixou partir o secundário Barreto, notado no mesmo valor em que são apresentadas as peripécias Barbalho em retirada... Tentam, com esse esforço erudito, encher o vazio de pensamento e a nulidade de lógica. O mal será constante em todas as histórias, e, por isso, o mesmo Carlyle, falando da história inglesa, chega a veemências de imprecação: “Pesado pedantismo, ocioso diletantismo enfatuado, estupidez tomada de todos os pruridos... feita de trevas e não de luz... O ruído do que sai daí não é uma voz, transmitindo o conhecimento ou a memória de coisas terrestres ou celestes; é um soporífico, inarticulado borborinhar difuso, emanando do lago do Eterno Sono, implorando o esquecimento, a abolição e um honesto silêncio... Confusão amontoada em confusão... obscura, num sinistro crepúsculo como as sombras da Morte... lúgubres por áridas solidões, somente povoadas de Pedantes sonâmbulos, diletantes e dolentes fantasmas, erros e coisas inconcebíveis, pesadelos... avalanches de estupidez humana... Conheci nações sem imprensa e sem meios de erudição, sem outra coisa além dos seus velhos cantos e amontoados de pedra

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como arquivos, e que, no entanto, tinham uma memória mais verdadeira das suas cousas memoráveis do que esta... A escrita é, então, a arte de enterrar no caos os heroísmos passados e os mais altos feitos?... A história da Inglaterra não é mais que um morno e sombrio labirinto, onde o espírito inglês, se é sincero, confessará que, em qualidade de coisas cognoscíveis (pode-se mesmo dizer – concebíveis), interessantes, nada achou, ou o que achou é pouco mais do que nada. Como se nada de bom houvéssemos feito sobre a terra; como se fossem pesadelos, e não homens, que escreveram a nossa história!... Estupidez de linguagem, sem par! Que bom poder fazer, em tal caso, os pobres heroísmos ingleses, se não cair inertes no domínio do pesadelo? Porque, verdadeiramente, a Estupidez é forte, muito forte. Como canta o poeta Schiller: Contra a estupidez, os próprios deuses lutam sem esperança...”

Em queixas tais, grita-se o zelo de quem vive uma tradição dominante como a inglesa: que seriam, então, as queixas de um brasileiro, se elas pudessem ter o vigor das leis de Carlyle?... Pois não é para adoecer – que as legítimas grandezas da nossa história sirvam, apenas, para, em desenvolvimentos mortos, entediar e enfastiar definitivamente a quem as procura, ao passo que as chatices decorrentes do 1808, sejam a trama que, urdida nas repetidas traições, vêm formar as próprias flâmulas das legendas consagradas?... Nem vale, talvez, formular julgamentos para comentar a tristeza da história que desse modo se fez: seriam, finalmente, exclamações de protestos, repugnâncias, cólera, motejo, repulsa... Para o intuito destas páginas, baste-nos destacar aquilo que, nas historiagens de hiatos, acasos, erudições chulas e elogios parvos, se tornou patente como efeitos antinacionais.

§ 20 o da história geral do brasil Tomemos, dos que chegaram a renome de historiador do Brasil soberano, esse mesmo Varnhagen. Foi, se não o primeiro, pelo menos, o principal, em dar o Brasil à casa reinante. Teria valido como escarafunchador de arquivos... Esse mesmo valor, ele o perdeu, no apossar-se

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da história – para torná-la coisa sua, e fazê-la nos interesses da sua fofa ambição. Historiador – grande historiador, não tinha, nem a capacidade reconstrutora de Mommsem, nem o poder evocador de Thierry, ou a ciência estilizada de Taine, ou o tom humano Michelet e Gibson. Hirto, nos desvãos em que se meteu, sem pensamento para suster um passado, foi um panorama de cemitérios: fez obra de secador absorvente, e ressequiu os assuntos, ao mesmo tempo que velava os documentos. Quando chega o momento de dar de si mesmo, quando não podia ser, apenas, inerte e opaco, encontramo-lo – o menos humano dos homens, brasileiro de encomenda sem bondade, num patriotismo de convenção9. Historiador mercenário, todo ele se revela no como trata os patriotas pernambucanos de 1817. Contratado para ser brasileiro, no seu critério, fala somente a política que inspirou as insídias ferozes do Conde dos Arcos, as crueldades covardes de Luiz do Rego, e as torpezas a preço de Teixeira Coutinho. Pouco lhe importa a verdade e a justiça. Dentro da tarefa que aceitou, Varnhagen afirma que a revolução de 6 de Março de 1817 era absolutamente do conflito com que começou. E, para demonstração, volta-se para a consciência do leitor: “... diga – se podia haver razão para um tal movimento?...”. Depois, eleva-se na importância do papel que lhe deram, para zombar torvamente dos vencidos martirizados, incluindo-os nos humildes Luiz das Virgens e o negro Lucas Dantas, a quem infama com o epíteto de facínoras. Conclui em náuseas, a pedir desculpas – “de tratar de assunto tão repugnante... Deixá-lo-ia em silêncio, se, historiador, pudesse desprezá-lo...”.

9  Varnhagen, filho de um alemão a serviço de Portugal, nasceu e criou-se no Brasil, tendo, quase adolescente, assistido a todo o movimento da Independência. Mas, feito o Brasil nação soberana, ele preferiu servir a Portugal, de cujo exército foi oficial até os dias de Pedro II. Então, mandaram buscá-lo, para essa função a que ele dedicou a vida, o pouco talento, e o mau coração – fazer a história do Brasil em favor do bragantismo. Recebia do tesouro, na qualidade de diplomata. Foi brasileiro dessa qualidade até o fim da vida. O filho, herdando dele a espessa indiferença por essas coisas de pátria, preferiu ser chileno. Foi uma excreção de que nos aliviamos.

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Varnhagen tem na História da Independência o seu melhor, ou o seu livro modelar. Tratando-se de um período curto, em fatos precisos, ele pôde documentar-se relativamente bem, e, dada a natureza do assunto, ele se apaixona para largas ao seu maior talento – de deturpador da história do Brasil. Pesadão, deselegante, sem arte10, o seu livro tem vida, no entanto, a própria vida da sua paixão – de reacionário bragantista. Têm vida, as suas páginas, no sentido de que não as podemos ler sem estremecer de indignação e cólera, como quando o vemos qualificar os Pernambucanos de 1824 de – indignos, ambiciosos, covardes... ou taxar os deputados brasileiros, às cortes, os da turma Muniz Tavares, Carneiro da Cunha e Martiniano de Alencar, de insidiosos e moderados... ao mesmo tempo que chama o espião e traidor Mayrink Ferrão de notável pernambucano11, e, em elogios, intenta reabilitar o carrasco Luiz do Rego, na mesma pena com que insinua – ter Barata rejeitado a comenda do Cruzeiro despeitado “ao ver Antonio Carlos feito gran-cruz”. Foi um dos primeiros a afirmar que a unidade da Nação Brasileira resultou da adesão das províncias ao príncipe (187). Colocado entre o lusitanismo antibrasileiro e as aspirações nacionais, o Sr. de Porto Seguro foi desbragadamente, agressivamente, por aquele, com Villela Barbosa, a quem apresenta como exemplo de patriotismo, ao lado de Clemente Pereira, pomposamente recomendado como – belo caráter...

Estilo de Varnhagen: “Foi José Bonifácio nomeado mordomo-mor do Palácio, cargo que já exercera interinamente, em varias solenidades anteriores, contra todos os usos da Corte portuguesa, em que o símbolo da mordomia-mor, que era um bastão tendo no castão a cabeça de uma pretinha, se não conferia, ainda interinamente, senão a um dos grandes, de maior categoria... Mostravam-se por toda parte os brasileiros satisfeitos de terem um imperador, que este se via em sê-lo...” (242). 10 

11  Varnhagen nunca está a curto de erros: Mayrink não era de Pernambuco, e é o próprio a afirmá-lo, a fé de juramento, nos autos da devassa de 6 de março, quando o acusam de haver aderido à revolução, e ser patriota: “Minha pátria não são os penhascos de Villa Rica, que me viram nascer. A minha pátria, eu digo e entendo, é o meu governo, é a constituição da monarquia portuguesa, a que eu pertenço... A este corpo moral é que eu chamo pátria”. O Barão do Rio Branco, apesar de todo o seu bragantismo, e do mais que o levara para o lado do Visconde de Porto Seguro, é obrigado a reconhecer que, no caso de Pernambuco, o famoso historiador guiava-se pelos portugueses, nossos inimigos. (Nota à Historia da Independência do Brazil, p. 403).

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Foi a propósito dos sucessos da Praça do Comércio, sucessos considerados por ele batismo de sangue do liberal brasileiro (José Clemente)... Taxando de inqualificável a pretensão da mesma assembleia, chama de justas as ordens do Príncipe ao mandar dissolvê-la... Daí, as duas diretrizes do seu historiar a crise da Independência: justificar e elogiar a dissolução da Assembleia Constituinte, e atacar implacavelmente os Andradas, apesar de bragantistas. Eram, apesar de tudo, brasileiros, reagiram contra as pretensões do lusitanismo, e Varnhagen não os podia tolerar. Por isso mesmo, muito logicamente foi um apologista do Chalaça, a quem só tratava de Cons. Francisco Gomes da Silva... E justifica o libelo contra os constituintes brasileiros, reproduzindo as próprias palavras de Chalaça, de cuja Memória sobre, o assunto diz: “... fiel narração, ... estilo vigoroso, repassado de sentimentos de convicção...”. Pois bem, o mérito desse estilo vigoroso está em, cotejando lusitanos e nacionais, chamar àqueles de “parte mais útil e mais industriosa da população...”. Quanto aos deputados brasileiros, são “... assassinos furiosos, que ultrapassaram as raias da decência, em lugar de representação nacional...”. Um Muniz Tavares é um filiado aos jesuítas, inteiramente destituído de princípios e de talentos...12 Por isso mesmo, historiador do primeiro Império, Varnhagen achou que era dever não deixar de referir-se à singela irmã de José Bonifacio, para apresentá-la como mal-criada e grosseira, a propósito de um incidente insignificante. E, nessa má vontade para com os Andradas, nem a mentira o detém, como quando afirma: “A proclamação de D. Pedro como imperador... foi obra exclusiva da Maçonaria, José Bonifácio não pensava em tal...”.

12  História da Independência do Brasil, pp. 79, 80, 187, 190, 234, 242, 260, 279, 301, 302, 315, 318, 397, 417. Nos últimos anos da colônia houve um sábio brasileiro de nomeada europeia – Câmara Bittencourt – aproveitado para intendente da mineração de diamantes, e que, nesse posto, aceitou intentar a produção do ferro em alto forno. Obteve resultado, comprovadamente; mas os sucessos da crise política desviaram a atenção do caso. Depois, foi o pai de Varnhagen encarregado da fábrica de ferro de Ipanema; por isso, a famosa História Geral do Brasil incluiu a afirmação de que, apesar de grandes gastos, Câmara Bittencourt não obteve nenhuma fundição de ferro. Felício dos Santos pormenoriza toda essa interesseira inexatidão de Varnhagen. (Memórias do Distrito Diamantino, pp. 298, 299, 300).

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Adiante não hesita em dar o mesmo Andrada como responsável pelo que se publicava no Sentinela. Num certo momento, quando quer justificar a dissolução, levanta, ancho, a opinião de Lisboa, sem atender a que esse jornalista tanto era contra a política de Pedro I que se incorporou aos revolucionários de 24. Noutro momento, muda de opinião a respeito de Cochrane, segundo este se manifesta a favor, ou contra a política do mesmo imperador... Tal foi o homem que fez história para os brasileiros.13

§ 21 os sub-varnaghem Enciumado de um prestígio que assim se faz, o Sr. Pereira da Silva vem exceder o próprio Varnhagen. Para insinuar-se de imparcial, lembra que os revolucionários de 1817 não mereciam, talvez, tanto desprezo, e vitupério, e, supondo-se aceito, repete quanto de malévolo já se tinha dito, e cria outras malevolências: que a revolução não tinha motivos, nem os seus homens tinham raízes na opinião... Domingos Theodoro, o chefe de revolucionários vencedores, e que não pratica uma só crueldade, é atrabiliário, ignorante (oh! Sábio!) e pervertido... A revolução é tresloucada... não encontrava “uma só simpatia... o feito malfadado dos pernambucanos...”. Os revolucionários, simples “ambiciosos vulgares, desordeiros perversos, que não trepidaram em sacrificar a seus interesses particulares e seus instintos revolucionários, a sorte e felicidade da pátria”. E parte a decantar o como eram bem administrados os pernambucanos, quase felizes, traçando um quadro dessa felicidade que assombraria a Koster, que a conheceu de perto, e dela nos deixou o completo inventário...14. Sem nenhum respeito pela 13  O próprio barão do Rio Branco, da escola de Varnhagen, e que, assim, aceita e justifica a dissolução da Constituinte de 23; mesmo este indigna-se das afrontas de Varnhagen – quando ataca os Andradas e nega o valor aos serviços de José Bonifácio. (Notas à História da Independência, p. 191). 14  O autor do Primeiro Reinado, Sr. L. F. da Veiga, que, aliás, aceita todas as histórias do Sr. Pereira da Silva, teve necessidade de, três vezes, apontar citações em falso – pp. 49, 266 e 290. O Cons. Drummond é mais categórico: “...o que escreveu o Sr. Pereira da Silva é um tecido de falsas apreciações, calúnias (Nos Homens Ilustres) ...que só merecem o mais profundo desprezo”. (Anotações, p. 110).

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verdade, ele continua a obra de Varnhagen – tornam condenável e odienta a revolução pernambucana: não tinha raízes... foi o resultado do imprevisto... Mas, chegando aos fatos, o inefável historiador enumera as reuniões de conjurados a preparar o movimento, e, logo adiante, refere que a “província de Pernambuco abraçou em geral com simpatia a revolução persuadida de melhoramentos governativos, e de obter liberdades públicas”. Incapaz, sequer, de ajeitar as coisas para justificar as afirmações que vai deixando, o Sr. Pereira da Silva estende-se em páginas: finanças que se arrebentam, fisco de exações, administradores incapazes, despóticos, corruptos... “O geral deles gente ignorante e déspota, que espalhavam o terror em derredor de si, e que se recolheram ao reino locupletados de riquezas e fortunas extorquidas e roubadas, e acompanhadas das maldições dos povos e que tinham avassalado e martirizado... péssima escolha que o governo da metrópole fazia dos empregados para as repartições do Brasil... Ódio entre europeus (portugueses) e brasileiros, pela exclusão que das pessoas destes faziam aqueles, até mesmo para caixeiros... Parece incrível o como andava atrasado o estado intelectual desta numerosa população da colônia...”. Depois de enumerar tantos e tão justos motivos de revolta, o homem da Fundação condena os heróis de 6 de Março de 17, e o faz em termos que não deixam dúvidas quanto às razões do julgamento – ter ensejo de infamar as vítimas do regime de estúpida opressão, para satisfação dos que só têm significação pelo mesmo regime. A principal figura é Domingos Martins, e ele o xinga baixamente – ambicioso vulgar, “que se serve da posição a que a revolução o alçara para enriquecer-se com desdouro e prejuízo alheio...”. Do padre Pessôa, tanto infeliz quanto venerado e digno, ele sempre achou o meio de tomar-lhe a alma, na própria hora da morte, para taxá-la de misérrima! Não estranhemos a conduta do homem: DEZESSETE é o ânimo brasileiro que protestará em VINTE E QUATRO, para ressurgir em QUARENTA E OITO... Não teria morrido, ainda, nos seus dias; e o

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homem servia para matar, pela infâmia, a tradição de brasileirismo, que ameaçava aquele Império, cuja fundação tivera nele o mais digno historiador, Império que resultou da vitória do bragantismo sobre os brasileiros executados por Luiz do Rego. Quando tem de contar o fim da ignomínia, obrigado a retratar as crueldades covardes em que se faz todo o processo das vítimas, cala o que é realmente grave: que os interessados em esconder tais misérias fizeram desaparecer dos arquivos seus o principal da devassa realizada, e de que resultara novas execuções. Nisto, o Sr. Pereira da Silva vai naturalmente com o Sr. Varnhagen; mas é ele quem mais merece nestas referências, porque tem coragem mesmo contra a verdade manifesta. Diz, impassível, que Antonio Carlos serviu à Revolução com repugnância, e o diz – ainda que sábia das cartas em que esse Andrada anuncia aos seus – o ter, francamente, em toda a liberdade, entrado com os republicanos de Pernambuco.15 Não se alegue que isto só se refere aos tempos anteriores ao estabelecimento da dinastia no Brasil. Não: o homem da Fundação tem vagares – para descrever as ondas de fidalgos pedintes, caudatários do monarca fugido... e dá bem ideia do que valia toda aquela gente, quando pinta a covardia geral e a miséria de ânimo com que abandonaram o velho reino ao caporalismo dos soldados de Napoleão. Aqui estabelecida tal gente, criaram-se serviços, não para o bem do país, mas para dar meios de vida aos mesmos: “Era necessário dar pão a tantos famintos... o que ocupara os cuidados dos governantes fora a urgência de criar repartições para acomodá-los, mais ainda que as necessidades do serviço público... aplicando-se-lhes todos os antigos regimentos de

15  Carlos Maul faz notar–História da Independência –, em justa apreciação, que Domingos Martins tinha que ser vituperiado pelos historiadores da Casa de Bragança. O escritor podia acrescentar – ... e infamaram Pedro Ivo como haviam infamado Vieira de Mello... É de justiça destacar, em louvor, o discurso de Barbosa Lima, no Instituto Histórico, por ocasião do centenário da Revolução de 6 de Março. Correndo as páginas da nossa verdadeira história, ele deu ao culto dos republicanos, e dos brasileiros em geral, os seus legítimos heróis.

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Portugal, posto que extravagantes, obsoletos e atrasados... Deixaram, assim, intactas as instituições coloniais das capitanias. Não lhes modificaram o governo militar que as acabrunhava. Não o cercaram de garantias civis para se conseguir a segurança pessoal e de bens... para se conterem os absolutismos, arbitrariedades e prepotências dos capitães-mores, capitães generais e governadores, que se consideravam superiores às leis... Passou o tesouro público pelas transformações acompanhado do conselho de fazendo piorado ainda com a complicação das vedorias, que mais embaraçavam do que auxiliavam a administração. Recebendo assim o cortejo de erros e de defeitos que o caracterizavam em Portugal, e que o tinham inteiramente desmoralizado na opinião geral da nação, não perdeu nem uma das fórmulas altaneiras, fatais, falaciosas e chicanistas do sistema fiscal português... Se já em conceito desfavorável era tida a administração das rendas públicas, tanto no reino como nas colônias, aumentou-se mais o descrédito com as novas providências... que em vez de melhorarem a ação do fisco, serviram só para coadjuvar poderosamente a impunidade dos funcionários malversares...”

Depois de tudo isto, patenteada, assim, a inadiável necessidade de um movimento que expurgasse o Brasil de tudo que lembrava um tal regime, quando chega a ocasião de referir-se à propaganda dos democratas brasileiros de 1821, no sentido de uma independência radical, a pena do Sr. Pereira da Silva não hesita: “... propaganda esquisita, extravagante... desordem geral de princípios, anarquia inteira de doutrinas...”. Esse termo anarquia voltará frequentemente no lambuzo das suas páginas, como nas dos subsequentes, porque, sem talento para dar ao leitor os motivos de um julgamento histórico, eles substituem os argumentos por epítetos. Era natural que, num tal critério, o brasileirismo de Barata, nos seus candidatos extremos, fosse motivo de enxovalho e calúnia: a Fundação do Império diz que esse patriota, deixando Lisboa nas condições em que o fez, “abandonou o seu assento de deputado na constituinte de Lisboa...”. A lógica intransigência do revolucionário brasileiro, de então, contra os reinos, ele a avilta, levando-a a conta de ódio e despeito, pelos insultos que sofreu dos portugueses, em Lisboa.

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Nem lhe é possível sentir e compreender o que se passa no ânimo de quem, impávido e temível, afronta adversários tais, naquelas condições. Os seus julgamentos por conta própria são todos nesse critério antibrasileiro. Se registra a proclamação de 7 de setembro é para afirmar que só com Pedro I o grande edifício do Império lograria enterrar raízes na terra, e segurar-se vigorosamente. O refalsado tiranete, puro reinol, dissolveu a Constituinte brasileira, e o Sr. Pereira da Silva, na capa de historiador brasileiro, só destaca, daí, “as vastas ondas de povo, que, em ovações e vivas... agradeciam ao Imperador a energia desenvolvida na salvação da pátria... procedendo D. Pedro com a mais cavalheirosa dignidade...”. Com a mesma pena, ao tratar da revolução de 37, na Bahia, ele resume todos os conceitos no taxar os revolucionários de “partido recrutado na mais ínfima classe (o dr. Sabino, lente da Faculdade de Medicina!) ... da plebe ... com os instintos perniciosos da população...”.16 Mas, se tanto vale o homem, porque insistir em repetir-lhe os despropósitos? ... Porque há o peso dos muitos e espessos volumes que ele deixou, e, para a maior parte do público, não há outra medida de valor. Nas suas páginas, justificam-se muitos dos que são incapazes de julgar da história do Brasil por si mesmo. Varnhagen, secundado pelo homem da Fundação, fez escola. Assim se explica que nas nossas histórias saíam infamados heróis como Pedro Ivo e o Dr. Sabino; é assim que os puros iluminados de 24 a 32, frementes no seu brasileirismo, não lhes merecem outros epítetos além de anárquicos, desordeiros. Fernandes Pinheiro, Macedo, Moreira de Azevedo... são, na sua pobreza de espírito, os legítimos continuadores desse historiar, e, com isto, lambusões de elogios rançosos.Não tem outro critério histórico senão o de qualificar de anárquicos, demagogos, facciosos... a todos os republicanos e democratas. Moreira de Azevedo é o próprio que, a propósito das lutas na Bahia (34), vai ao ponto de repetir a calúnia, levantada

16  História da Fundação do Império Brasileiro, t. I, pp. III, 160, 164, 236, 240 e 242; t. II, pp. 135, 140 e 286; t. III, pp. 160, 164, 225 e 267.

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pelos portugueses – de que a morte de um brasileiro tinha sido obra dos mesmos patriotas, no intuito pérfido de lançar a responsabilidade para portugueses. Não é de estranhar que se eleve o filho de Carlota Joaquina como franco, expansivo, generoso, com talento...17

§ 22 história pela república Foi nos esconderijos de tais histórias que desapareceram os grandes mártires e verdadeiros precursores da independência do Brasil, aqueles cuja existência, mesmo com a derrota em que se lhes tirou a vida, tornou impossível a submissão, ou, ainda, a simples união do Brasil a Portugal. E assim se explica que hajam distinguido o pobre homem de S. João Del Rei, para nele consagrar a aurora da nacionalidade. Era preciso, para esconder ao Brasil a glória dos seus verdadeiros libertadores, se, por acaso, alguma liberdade resultou da crise de 22. As histórias oficiais fizeram-se o túmulo infame, onde se soterraram os grandes brasileiros de 17 e 24. E o ingênuo esquartejado foi a pedra com que o fecharam. Em verdade, o afastado e isolado Tiradentes: que mal podia fazer ao bragantismo vicejante sobre o Brasil? Bem diferente era o caso, se a nação fosse levada a conhecer e venerar os próximos heróis de 6 de Março, revolução triunfante, só vencida por ter sido generosa... Depois, a República realizada chega a provocar saudades do bragantismo integral. Nem há o que estranhar, pois toda a nossa educação política se fez no seio de uma nação que, ao dizer-se livre, repudiou os homens de Dezessete. E ela, própria, a República, que nada fez para louvar e venerar os seus feitos?... Não criou o seu culto, nem lhes deu a merecida situação na história brasileira. Se, desde 22, houvessem trazido para o coração dos brasileiros aqueles que, de fato, se tinham sacrificado em amor desta pátria; se os seus méritos reais viessem valer de estímulo nas consciências... É natural que a sonhada democracia não desse nisto em que nos aviltamos...

17 

História Pátria, pp.10 e 52.

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Com a República, o caso se agravou porque, mantido o critério histórico de sempre, como de fato, se manteve, já não se pode esperar correção: os historiadores republicanos, por isso mesmo, impõem-se como imparciais nos seus conceitos a respeito do que toca ao regime anterior. Então, derrama-se a história de um Galanti, jesuiticamente imparcial, para ser eficaz nas opiniões que entende propagar. E vemo-lo contar os sucessos de DEZESSETE numa tal serena imparcialidade que o leitor brasileiro não tem ocasião, nunca, de sentir qualquer aversão pelo regime dos Congominho, Luiz do Rego, Bernardo Teixeira... A revolução de 6 de Março foi entusiasticamente aceita pela população? ...O padre historiador tem, pronta e imparcial, a explicação do caso: “... pois que havia de fazer o povo quando de repente tinha ficado sem o governador e agora via os padres e os frades à testa da revolta cantando Te-Deums e praticando outros atos religiosos para o bom resultado da insurreição?”. O movimento é todo inspirado e conduzido por clérigos, como o Padre Pessoa, o vigário Tenório... isto em nada comove o imparcial historiador. Quando chega à altura de referir a torpe profanação do cadáver santo padre Pessoa, quase pede desculpas – de lastimar o fato, e redime-se perante o bragantismo com o notar que o relata na fé de Monsenhor Tavares... Ora, essa ignomínia teve uma publicidade absoluta. Finalmente, arranja as coisas deforma a insinuar que, segundo a versão do mesmo Monsenhor Tavares, os presos foram tratados com relativa brandura... Leiam-se as páginas do padre pernambucano, e lá está – que até deixavam os presos sem alimento!... De fato, o regime do Conde dos Arcos não poderia encontrar defensor mais hábil. Sem reclames de imparcialidade, mas alçando-se em competências, aí está o Sr. Oliveira Lima, com todo o peso da sua multiplicada produção. Além do livro arranjado em louvor de D. João VI, na sua mal-alinhavada História do Reconhecimento do Império, a Nação Brasileira aparece como obra do Bragança – da sua ousadia... Ora, em 1824, o aulicíssimo e bragantíssimo Sr. Carneiro de Campos, um dos primeiros marqueses do novo

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Império, apesar disto, atesta: “... a proclamação da independência fora efeito da virilidade em se achavam estes povos... a própria consciência das suas faculdades, progresso e recursos motivara a sua emancipação; sem que jamais se deva presumir que a revolução de Portugal, as injustiças das suas Cortes, ou outros quaisquer eventos de condição precária, pudessem ser mais que causa ocasional de aceleração desse natural acontecimento...”. Depois disto, o volumoso historiador vem garantir que, em 1824, com a dissolução da Constituinte, e a deportação das principais figuras da Independência, e prisões a eito, e clamorosas perseguições, e o Norte todo a revoltar-se...; que Pedro I estava em plena popularidade... Com o mesmo critério e a mesma abundância em louvar, ele, que já o tinha destacado, na glória de guerreiro – como o único rei conquistador que o Brasil teve, fez a consagração de liberal para D. João VI: “... quanto à entrada de livros, o seu governo foi perfeitamente liberal...”. O Sr. O. Lima é bem representativo dos contemporâneos historificantes, que, a título de objetivismo, ostentam-se bons-moços, cortejando toda reação. Isto os desobrigado labor preciso para alcançar a verdade histórica, garante-lhes a boa vontade de quantos se acolhem às falsas lendas, e lhes proporciona a consagração dos juízos feitos: Em 22, só era possível a Independência com a monarquia... Foi um bem que a sede da monarquia portuguesa se mudasse para o Rio de Janeiro... D. João VI foi o verdadeiro proclamador da soberania brasileira... Pois não vemos um Euclides da Cunha abusar do seu enorme e justo prestígio literário, para, no pretexto de resumir os antecedentes da República, recapitular o lendário do bragantismo até o ponto de ligar a unidade nacional brasileira à monarquia!? De caminho, porque assim o faz a falsa legenda, ele dá ao príncipe embusteiro – bravura, cavalheirismo... ao mesmo tempo que, em rápidas linhas menosprezantes, recalca a revolução de 6 de Março – sob o grande vulto que faz para o imbecil, desgracioso e apavorado, que foi D. João VI. E como há esse desenvolvido prestígio intelectual em torno do nome de Euclides, é indispensável considerar em especial os seus conceitos a esse respeito.

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Se o Brasil tivera tido uma legítima história; se andassem pelas consciências os nomes e os feitos dos que realmente merecem a gratidão desta pátria, estaríamos por outros destinos, que nunca teríamos saído da legítima tradição da nacionalidade: não haveria lugar para o espaventoso bronze, que Ottoni logo repudiou, que Varella apontou à maldição dos brasileiros; e ele não continuaria ali, fanfarrão de bronze, traidor em todos os gestos, no entanto arvorado para simbolizar a energia com que o Brasil afirma a sua soberania; não se manteria a sua imagem – para cunhar a comemoração centenária da independência da nação, cujos chefes mais não aspiram do que impar ao lado de reis... Se tivéramos história realmente brasileira, Pedro I só poderia ser evocado, em consagração da nacionalidade, como fator da reação nacional que lhe abriu as portas de saída; como o drástico benefício num organismo intoxicado. Assim o entenderam os bons brasileiros do tempo em que reclamava: constitucional quer dizer brasileiro, ligando-se, propiciamente, o amor da liberdade ao sentimento nacional. Uma longa noite, outros embustes, para mais extensa deturpação, como que diminuiu o espírito da nação; tudo aquilo em que ela se afirmava foi abandonado, e vemos uma República que, no tocante à história e ao zelo das verdadeiras tradições brasileiras, lá vai trôpega, a consagrar definitivamente, com a sua aceitação, todos os crimes anteriores contra essa mesma tradição brasileira. É uma República que, mesmo nas consagrações de significação histórica, só tem lugar para os potentados da hora, em motivos de pura vaidade. Os bronzes de vivos, as estátuas mentirosas, aí estão ridicularizando o culto nacional, e não há um retalho de mármore, nem um recanto de rua que lembre aos brasileiros os nomes dos dois grandes criadores da história nacional – Frei Vicente e Southey. Perdoa-se-lhes, aos mesquinhos detentores do Brasil, mais essa miséria de ânimo, porque isto mais se explica por incapacidade, estupidez e ignorância, do que por propósito de maldade. Quantos, entre os milhares que vivem de ser governantes; quantos compreendem a importância

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que tem, para um povo, a verdade no culto das suas tradições? Quantos buscaram as páginas de Fr. Vicente – para contemplação desse passado, em que a consciência nacional se ilumina? Quantos saberão dizer – a importância que houve, para o Brasil, nestes muitos anos que o filósofo poeta dedicou a esta nação, fazendo-lhe a história, para realce dos seus legítimos valores? Quantos terão lido, sequer, as páginas de Southey?... Não estranhemos: eles são os puros representantes desse Brasil de D. João VI, de tradições desnaturadas, esquecidas, contrariadas, e que, por deixá-las assim desnaturadas, se descaracteriza, até desaparecer informe nesse conjunto sem realidade – a América Latina, como agregado disparate de povos indolentes, turbulentos e desorganizados. São eles os verdadeiros difamadores do Brasil.18 18  Dentre os historiadores consagrados, são exceções Capistrano de Abreu e João Ribeiro. Não se confundem na mentalidade dos clássicos deturpadores. O primeiro, grande pensamento votado à história do Brasil, superior a doutrinas e a consagrações, timbra em ser, apenas, um lúcido e incansável pesquisador, a organizar bom material para a verdadeira história do Brasil. Podia ter aceitado ser o autor dela; mas incoercível modéstia tem-no afastado sempre da grande tarefa, para a qual todos o apontam. Não é que lhe falte horizonte de ideias, nem capacidade de generalização e segurança de conceitos, ou senso crítico, para estender o pensamento por toda a realidade do Brasil – tempo e espaço, sem síntese vivida e fecunda. Para demonstrá-lo, bastariam as páginas em que resumiu a evolução do Brasil-Império (O Jornal, de dezembro de 1925), ou o Prefácio à História da Colônia do Sacramento, de Pereira de Sá, onde se sucedem os julgamentos lapidares, na moldura de boa erudição: “Foi o inglês que nos obrigou a abrir mão da Cisplatina”. No entanto, quem tenha tratado com esse puro espécime de homem de ciência – a sua ciência, guarda a convicção de que ele jamais se atirará a uma obra de conjunto, que tanta vez exige – afirmar por simples dedução, ou compor em imaginação, a projetar conceitos sem outro sustentáculo além da pura lógica. Pesquisador intransigente, prendeu-se ao regime mental do rigoroso objetivismo. Eis a significação da sua obra. João Ribeiro, historiador por direito de magistério, historiador por direito, principalmente, de muito saber, na lucidez de um descortino seguro; este preferiu limitar-se ao didatismo – uma série de manuais. No entanto, mesmo aí, a sua obra tem sido de boa orientação, lineada com coragem e precisão. O volume destinado ao curso superior abre-se com esta apreciação que vale por uma profissão de fé: a história nacional tem sido “escrita com a pompa e o grande estilo da história europeia; perdeu-se de vista o Brasil interno”. Inteligência ávida, perenemente incorporada à atividade do pensamento moderno, João Ribeiro, sob a máscara de displicência ou de impassibilidade, tem como característica mental o gosto pelas generalizações e o pendor pelas doutrinas. Destarte, rara será a conjuntura histórica em que ele não engaste uma teoria, muitas vezes original, ou, pelo menos, um julgamento pessoal, penetrante, apesar de quanto convencione possa haver em contrário. “Não se pode sustentar (o que aliás tem sido feito) que o regime das capitanias fosse um desastre”, proposição de grande verdade, e que bate o preconceito corrente. Foi um dos primeiros a destacar o papel histórico e a obra, de valor capital, realizados no movimento dos rebanhos com que os criadores se apossaram dos sertões. E não só acentuou o fato, como deu a justa explicação do silêncio em que o mantinham as histórias correntes: “A criação

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não produzia o imposto, por isso deixa de interessar à coroa; nem sequer é mencionada nas histórias das administrações...”. Não haverá nele amor especial pelos brasileiros que brotam com o Brasil novo – as gentes misturadas, como não há preocupação de justificar intuitos revolucionários; mas, chegado o momento, ele consigna a verdade: “Os mamelucos, desde o século XVIII, almejavam a república, o federalismo, a abolição...”. Mais de uma vez, com toda a justiça, condena as intervenções do Império no Prata, e tem conceitos generosos a respeito da guerra do Paraguai, em contrário à estreiteza patriótica, que entende justificar, em tudo, aquela desumana guerra de extermínio. E, com tudo isto, na rapidez de páginas exíguas, as generalizações e as doutrinas lhe dão um caráter esquemático, que, algumas vezes, aproveita a preconceitos em que se amparam os que deturparam a história nacional: “... mesmo hoje, se não fora a monarquia, a Independência seria um problema inssolúvel”. A tese será justificável; mas, concisa, isolada de maior demonstração, ela provoca repulsa. Ou esta outra: “... sem os exaltados, é impossível fazer revoluções, e, com eles, é impossível governar”. E a Inglaterra de 1645? A França de 1789? A Rússia atual?...

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AFONSO TAUNAY A propósito do curso de História da Civilização Brasileira

apresentação Karina Anhezini 1

A propósito do curso de História da Civilização Brasileira na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras é um texto de Afonso de Escragnolle Taunay (1876-1958) produzido em 1934 e publicado no primeiro Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. “Texto-roteiro” das atividades acadêmicas da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras, esse Anuário traz a marca da novidade da institucionalização universitária em terras brasileiras. A diretoria solicitou para esse número de estreia que cada professor fizesse, após um ano de curso, um “parecer sincero, não só sobre as deficiências encontradas na organização da Faculdade e no preparo dos alunos, como também sobre os rumos a dar ao ensino nela ministrado” (TAUNAY, 1937: 7). A resposta de Afonso de Taunay a esse pedido de avaliação e prognóstico solicitado pela Direção da Faculdade é o texto que apresento ao leitor. Com ele, Taunay inaugurava a Cátedra de História da Civilização Brasileira no curso de História e Geografia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. É assim que nasce o curso de História criado em 1934 em São Paulo; a separação entre História e Geografia somente ocorreria em 1956 e o regime de cátedras somente seria extinto em 1968. Assim, as cátedras da Faculdade estavam divididas nas sessões de Filosofia, Ciências e Letras, e

1  Professora do Departamento de História da UNESP – Campus de Franca. Parte desse texto pode ser encontrada no livro em que busco compreender a escrita da história de Taunay. ANHEZINI, 2011. Agradeço ao meu orientando Thiago Modesto Rudi pela precisa transcrição do texto de Taunay.

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o curso de História e Geografia situava-se na sessão de Ciências ao lado das Ciências Matemáticas, Químicas, Físicas, Naturais e Sociais e Políticas. O curso foi distribuído nos setores de Geografia, Etnografia e História e nas cátedras de Geografia, de Etnografia Brasileira e Língua Tupi-Guarani e de História da Civilização, História da Civilização Americana e História da Civilização Brasileira.2 Enquanto as cátedras de História da Civilização e História da Civilização Americana ficaram sob a responsabilidade dos professores estrangeiros Fernand Paul Braudel e Paul Vanorden Schaw, coube a Afonso de Taunay definir os rumos do ensino de História da Civilização Brasileira. Sócio dos Institutos Históricos de São Paulo e do Rio de Janeiro (o Brasileiro) desde 1911, diretor do Museu Paulista desde 1917 e imortal da Academia Brasileira de Letras desde 1929, Taunay desfrutava em 1934 da experiência que o levou a ser nomeado para essa cátedra. Não era novidade para ele anunciar de que maneira se deveria escrever a História a jovens alunos dos cursos superiores nascentes no Brasil. Ele já havia produzido um texto com a mesma finalidade em 1911 quando apresentou Os princípios gerais da moderna crítica histórica (TAUNAY, 1914)3,na inauguração do curso de História Universal da Faculdade Livre de Filosofia e Letras de São Paulo, no Mosteiro de São Bento. Contudo, diferentemente de 1911, quando ele ainda se considerava e era um iniciante, em 1934 ele se afirmava como um “oficial do ofício” capaz de avaliar as dificuldades enfrentadas pelos autores reunidos no texto.

2  “5ª Subseção [da seção de Ciências] – Geografia e História. Seriação: 1º ano – Geografia, História da Civilização; Etnografia brasileira e noções de tupi-guarani; 2º ano – Geografia, História da Civilização, Tupi-Guarani, História da Civilização Americana (inclusive pré-história); 3º ano – Geografia, História da Civilização Brasileira, História da Civilização e Tupi-Guarani”. Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1934-1935. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1937. p. 280. A disciplina de História da Civilização Brasileira também era ministrada no segundo ano do curso de Ciências Sociais e Políticas. 3  Nesse texto, Taunay apresentou as principais ideias do livro Introdução aos estudos históricos de Langlois e Seignobos publicado na França em 1898 e traduzido para o português em 1944.

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Com uma atitude tipicamente moderna, Taunay narra, nesse texto, a relatividade da historiografia amparada, sobretudo, pela descoberta de novas fontes e reúne, em uma espécie de balanço bibliográfico, as novidades da historiografia nacional que deveriam nortear a escrita da história universitária no Brasil. O texto inicia com uma demarcação clara da história que se queria ver produzida no momento: a história da civilização ou dos costumes. Taunay afirmou que a historiografia brasileira contava com uma vasta produção; no entanto, os temas explorados sob a perspectiva da “história batalha” dedicada à história militar e administrativa não interessavam mais aos autores e ao público da década de 1930. Para tanto, o autor asseverou que a “história da civilização” sob os moldes que ele apresentaria no texto havia surgido “no século XIX quando a centúria já ia adiantada”, o que explicaria, portanto, porque no Brasil somente nas primeiras décadas do século XX essa história se avolumava. Nem mesmo Varnhagen se dedicara a explorar essa história, segundo Taunay, fazendo com que até bem pouco tempo os “capítulos essenciais como os do povoamento do hinterland brasileiro” fossem quase desconhecidos. Assim, Taunay demarcou a ruptura historiográfica operada por João Capistrano de Abreu inserindo-se nessa tradição de estudos que se dedicou a pesquisar os temas “da história econômica e da religiosa, os da história literária, artística e científica e, sobretudo os da história dos costumes”. E em uma clara referência às orientações de Capistrano, Taunay ressaltou que, com essa perspectiva, um grande campo de estudos se abriu à escrita da história de um “monografista consciencioso”4 dedicado a “perscrutar este ou aquele aspecto”. Considerando-se um dos principais monografistas inseridos nessa corrente nova de estudos do passado brasileiro, Taunay apresentou como

4  “Agora o que se precisa é de monografias conscienciosas”, afirmou Capistrano de Abreu em 1882 no texto em que avaliou a obra de Varnhagen (ABREU, 1975: 139).

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prognóstico para o curso de História da Civilização Brasileira outras obras que, em sua avaliação, se guiaram pelo objetivo de “ventilar os aspectos inéditos” da história do Brasil. O balanço iniciou-se com a apresentação dos esforços de Pedro Calmon e a justificativa dessa introdução referia-se ao curso de “extensão universitária” de História da Civilização Brasileira que este historiador e político baiano,pesquisador do Museu Histórico Nacional, ministrou nessa instituição em 1932. A essa cátedra Calmon também se dedicou em 1935 na Universidade do Distrito Federal. O seu primeiro livro foi História da Civilização Brasileira. Esta obra não se inseria no rol das “monografias conscienciosas” a que se referiu Capistrano de Abreu. Era uma obra de História Geral que se apresentava no prefácio à primeira edição (1932) como “uma nova síntese da História do Brasil: história social, econômica, administrativa e política” (CALMON, 1933), destinada aos estudantes dos cursos superiores. No entanto, apesar de ser obra geral, Taunay continuou indicando o livro de Calmon para os alunos até o último ano em que ministrou o curso na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Se Taunay fez uma apresentação com críticas à História da Civilização Brasileira de Calmon, reservou os elogios a O Espírito da Sociedade Colonial (CALMON, 2002).Neste primeiro volume de sua História Social do Brasil, Calmon partiu do cotidiano do homem colonial para compreender as questões que considerou mais relevantes naquela sociedade, ou seja, por meio dos hábitos de higiene, da mesa, da cama, da casa, da instrução, dos crimes, buscou entender a formação do povo, a miscigenação, a organização administrativa e, assim, o espírito da época. Críticas também não faltaram para Populações meridionais do Brasil de Oliveira Vianna (VIANNA, 1987). As ressalvas contemplavam a opinião emitida pelo mestre Capistrano quando da leitura do livro, pois considerava que Oliveira Vianna desconhecesse a diferença entre “economia doméstica e economia urbana”, e, diante dessa confusão, a

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obra dele lhe parecia repleta de afirmações com fundamentos duvidosos. “Muitas vezes estacou indeciso: escreveu ele tal coisa porque os documentos o autorizam? ou apenas porque as doutrinas de Le Play lhe sopram?”5, indaga em carta enviada a Taunay. No entanto, concordar com o mestre Capistrano não evitou que Taunay se apoiasse nas formulações de Oliveira Vianna nos três primeiros volumes de sua Historia Geral das Bandeiras Paulistas (TAUNAY, 1924-1950, 11 v.), o que lhe garantiu duras, talvez as mais duras, críticas vindas de Edgar Roquette-Pintono discurso de recepção de Taunay na Academia Brasileira de Letras (ROQUETTE-PINTO, 1937). Ao continuar a sua lista de indicações, Taunay destacou um dos autores com quem colaborou na correção da obra: José de Alcântara Machado de Oliveira6. Este jurista que elaborou o primeiro projeto para o Código Criminal Brasileiro de 1940 ficou conhecido nos meios historiográficos pela publicação de Vida e morte do bandeirante (MACHADO, 1930), obra que lhe conferiu a cadeira ocupada por seu falecido pai, Brasílio Machado, na Academia Brasileira de Letras em 1931. O entusiasmo de Taunay voltou-se para o destaque da longa pesquisa nos vinte e sete tomos dos Inventários e Testamentos quinhentistas e seiscentistas de São Paulo que garantiu a construção de “belo mosaico”. No entanto, Taunay considerou que o autor se dedicou a pesquisar apenas alguns aspectos do “largo painel da vida colonial paulista” e que, portanto, deveria prosseguir explorando as fontes. As considerações de Taunay a respeito das pesquisas tratam muito mais, como é de se esperar, das suas expectativas e da forma como escreveu as próprias obras do que dos livros por ele analisados. Por um lado, quando afirmou que Oliveira Vianna confiou exageradamente

5 

Carta de Capistrano de Abreu a Afonso de Taunay, Rio, 16 de maio de 1921. (ABREU, 1956: 78).

Carta de Afonso de Taunay a Alcântara Machado, São Paulo, 11 de novembro de 1925, APMP/ FMP (1ª entrada), pasta 125; Carta de Afonso de Taunay a Alcântara Machado, São Paulo, 2 de janeiro de 1929, APMP/FMP (1ª entrada), pasta 135. 6 

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nos cronistas, lançou mão de um dos princípios da “dúvida metódica” que tanto defendeu e que tentou imprimir em seus trabalhos e, por outro lado, em sua insistência para que Alcântara Machado continuasse a pesquisa, Taunay parece falar de si e da sua incapacidade de parar. Ele sempre afirmou que todos os assuntos pesquisados estavam incompletos, eram “achegas”, “aspectos”, “apontamentos”; sempre aproximações do passado. A crença no método histórico utilizado para a descoberta das verdades escondidas nos documentos guiava o empreendimento historiográfico de Taunay e, por consequência, suas avaliações. Para Taunay, já que o passado poderia ser apreendido por meio dos procedimentos utilizados para interpretar o documento, diante da impossibilidade de pesquisar todos os documentos de uma só vez e, portanto, de escrever uma História Geral do Brasil, o historiador tinha que escrever infinitas “monografias conscienciosas” na esperança de um dia alcançar a tão sonhada síntese. Taunay ainda tratou de indicar e divulgar as obras de outros três jovens autores de monografias identificadas com a perspectiva de uma história econômica e dos costumes: Gilberto Freyre, Félix Contreiras Rodrigues e Roberto Simonsen. O destaque coube àquele que fartamente citou suas obras e as reconheceu como “notáveis estudos sobre a vida colonial em São Paulo” (FREYRE, 2002: 58). O entusiasmo de Taunay pelos temas e, especialmente, pela abordagem apresentados em Casa-grande & senzala é evidente. Taunay queria ver a interpretação de Freyre voltar-se também para a região cafeeira. Ainda na década de 30, Taunay e Freyre encontraram-se no Museu Paulista para as “reconstituições de velhos sobrados da cidade de São Paulo” que ajudaram a compor Sobrados e mucambos, publicado em 1936 (FREYRE, 2003: 38). Para encerrar o balanço bibliográfico, Taunay também indicou outra obra vinculada aos seus interesses de pesquisa: À margem da profissão (SIMONSEN, 1932), de Roberto Simonsen. No final da década de 20,

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Taunay participou da comemoração do bicentenário da introdução do café no Brasil promovida pelo Departamento Nacional do Café e foi solicitado pelo então diretor do Departamento, Armando Vidal, para escrever a História do Café no Brasil. Como primeiro resultado dessa pesquisa, Taunay publicou, em 1934, uma síntese intitulada A propagação da cultura cafeeira e, prosseguindo nesse trabalho, ele publicaria, entre 1939 e 1943, os quinze volumes da História do Café no Brasil (TAUNAY, 1939-1943, 15 v.). Essa experiência de pesquisa foi citada por Taunay no texto, pois o estudante de História da Civilização Brasileira deveria se preparar para encontrar uma documentação imensa e espalhada e poucos estudos para lhe amparar. Se quanto às fontes textuais foram empreendidos muitos esforços durante o século XIX e, especialmente, nas primeiras décadas do século XX para a localização, cópia e publicação de documentos, quanto à iconografia a situação se apresentava em pior estado. Taunay se queixava da ausência de apego dos portugueses pelas artes gráficas e do interesse ainda escasso dos historiadores por esse tipo de fonte. Para enfatizar em suas aulas de História da Civilização Brasileira os assuntos voltados para a história econômica, social, literária e artística, Taunay recorria às fontes iconográficas que tanto se empenhava em localizar e inventariar como diretor do Museu Paulista.7 O caminho traçado na apresentação das diretrizes do curso de História da Civilização Brasileira seguia o roteiro das suas pesquisas no Museu Paulista: diante das dificuldades em se trabalhar com a iconografia no Brasil, ele buscava as descrições dos viajantes estrangeiros que passaram pelo país em diferentes períodos, a documentação judicial, sobretudo “os testamentos e inventários, os autos cíveis e criminais, os livros de tabelião, os inquéritos religiosos e policiais” que

7  Esse relato pode ser encontrado no Anuário de 1937-1938. Cf. Cadeira de História da Civilização Brasileira. Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1937-1938. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1939.

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“trazem muita informação de polpa”, como salientou pela primeira vez Capistrano de Abreu. Portanto, era possível, a partir das descrições encontradas nas fontes, apreender as “pinturas dos costumes”, mesmo que elas não estivessem representadas graficamente. Para isso era preciso saber utilizar essas descrições. Neste ponto do texto, Taunay retoma alguns procedimentos úteis para a audição das testemunhas apresentados na conferência de 1911 e adverte que o historiador deveria, por exemplo, quando contar com “a contribuição dos viajantes estrangeiros, estar atento às diferenças fundamentais de mentalidade” causadas pela origem desses autores. Para finalizar sua reflexão a respeito dos caminhos da pesquisa histórica no Brasil, Taunay destaca a importância de se conjugar todos estes tipos de documentos para “ensaiar a reconstituição de aspectos da vida de outrora” e oferece como exemplo dessa tentativa de reunir fontes de origem nacional e estrangeira a obra de Luís Edmundo O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis (EDMUNDO, 2000).Reafirma o tipo de história que queria ver se avolumar na bibliografia brasileira, pois, assim como os seus livros a respeito de São Paulo publicados ainda nos anos 20 (TAUNAY, 2003), a obra de Luís Edmundo tratou das ruas, do transporte, das festas, da moda, da mesa, da justiça, destacando o pitoresco, tal como uma crônica histórica que apresentava um rol de fontes bastante atuais. Taunay deixou a cátedra de História da Civilização Brasileira devido ao impedimento, criado pela Constituição de 10 de novembro de 1937, de acumulação de cargos públicos. No caso de Taunay, a direção do Museu Paulista e a docência na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da Universidade de São Paulo. Texto inaugural da História do Brasil na universidade paulista, A propósito do curso de História da Civilização Brasileira na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras carrega os traços da produção da moderna historiografia das primeiras décadas do século XX preocupada com

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a descoberta de documentos, com a crítica documental, com a abertura para novos temas e novas tipologias de fontes aliada aos aportes teóricos das Ciências Sociais nascentes que forneciam instrumentos para as interpretações de Brasil construídas naquele período. O texto representa uma boa amostra do tipo de história que, ao lado das contribuições da “missão francesa”, constituiu a “escola uspiana de história” (CAPELATO; GLEZER; & FERLINI, 1994).

referências ABREU, Capistrano de. Correspondência de Capistrano de Abreu, volume 3. Edição organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1956. ______. Sobre o Visconde de Porto Seguro. Ensaios e Estudos (Crítica e História). 1ª série. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975. ANHEZINI, Karina. Um metódico à brasileira: a história da historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939). São Paulo: Editora Unesp, 2011. Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1934-1935. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1937. Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1937-1938. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1939. CALMON, Pedro. História da civilização brasileira. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935. ______. História Social do Brasil: espírito da Sociedade Colonial. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Volume 1). CAPELATO, M. H. R.; GLEZER, R.; FERLINI, V. L. A. “Escola uspiana de história”. In: Revista Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 22, 1994. ROQUETTE-PINTO, Edgard. Discursos Acadêmicos (1927-1932), v. VII, 1937. EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis. Brasília: Senado Federal: Conselho Editorial, 2000.

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FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 46ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. ______. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 14. ed. revista. São Paulo: Global, 2003. MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. 2. ed. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1930. SIMONSEN, Roberto. À margem da profissão. São Paulo: São Paulo Editora, 1932. TAUNAY, Afonso de E. “A propósito do curso de História da Civilização Brasileira na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras”. In: Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1934-1935. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1937. TAUNAY, Afonso de E. História do Café no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café, 1939/1943. ______. História geral das bandeiras paulistas: escrita à vista de avultada documentação inédita dos arquivos brasileiros, espanhóis e portugueses. São Paulo: Tipografia Ideal; H. L. Canton & Imprensa Oficial do Estado, 1924-1950. ______. “Os princípios gerais da moderna crítica histórica”. In: RIHGSP, v. XVI, p. 323-344, 1914. ______. São Paulo nos primeiros anos: ensaio de reconstituição social; São Paulo no século XVI: história da Vila Piratiningana. São Paulo: Paz e Terra, 2003. VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização, psicologia. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.

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a propósito do curso de história da civilização brasileira1 Afonso Taunay

Um curso de História da Civilização Brasileira, como este que instituiu a Universidade de São Paulo, é novidade no meio paulista. Já no Rio de Janeiro houve, porém, uma série de preleções sobre tal assunto, realizadas no Museu Histórico Nacional. Delas se incumbiu a bela e culta inteligência de Pedro Calmon. Têm os nossos fastos sido largamente explorados, mas, em geral, sob os aspectos daquilo que se chama hoje a história batalha. A narrativa dos episódios da descoberta, da exploração e do apossamento do litoral, as lutas contra os invasores estrangeiros, os movimentos nacionalistas primevos como que empolgaram por completo a atenção dos nossos cronistas e historiadores até quase os dias de ontem. E, fato com efeito singular, tão completamente se interessaram os escritores por essa história parcial do país que de lado deixaram, sobremodo mal estudados, capítulos essenciais como os do povoamento do hinterland brasileiro. Fez-se a história litorânea e não a do interior. Esta só principiou a ser tratada, com certo cuidado, de Capistrano de Abreu para cá. Foi o

1  Publicado originalmente publicado no Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1934. Edição de texto consultada: TAUNAY, Afonso de E. “A propósito do curso de História da Civilização Brasileira na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras”. In: Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1934-1935. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1937 (N.O.).

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mestre cearense quem chamou a atenção dos nossos escritores para esta seção importantíssima dos anais pátrios. Até mesmo o ilustre Varnhagen bem pouco concedera, das volumosas páginas de sua História Geral, ao episódio das bandeiras que muito perfunctoriamente explorou. Com o século XX imenso se avolumou entre nós, e no exterior, a perscrutação do nosso passado. Mas a História da Civilização Brasileira ainda assim deixou de ser o alvo do trabalho dos estudiosos, até bem recentemente. Tal fenômeno, aliás, não é puramente brasileiro, e sim universal. A história da civilização sob os moldes contemporâneos surgiu, por assim dizer, no século XIX, quando a centúria já ia adiantada. Como reflexo apareceu no Brasil, com notável defasagem porém, não contando ainda muitos lustros. A primeira manifestação séria digna de acatamento pela extensão e a valia de suas páginas reside nos Capítulos de História Colonial de Capistrano de Abreu, livro publicado no limiar de nosso século, por ocasião das festas comemorativas da passagem do quarto centenário da aportada cabralina a Porto seguro. À luz das ideias e teorias modernas, estudou o grande sabedor os fenômenos do crescimento brasileiro, atribuindo como acima lembramos exato valor aos fatos da conquista e da apropriação do hinterland. Com a enorme diferenciação da cultura que em nossos dias se processa, tem aparecido regular número de monografias eruditas, ventilando os aspectos inéditos da nossa evolução civilizadora. Já não são a história militar e a administrativa as únicas que interessam aos autores e ao público. Incumbem-se os monografistas de apresentar entre aqueles assuntos os da história econômica e da religiosa, os da história literária, artística e científica e sobretudo os da história dos costumes.

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É o campo enorme e muito mal amanhado ainda. Nele imenso há o que descobri e o que explanar. E tal se evidencia, do modo mais frisante, desde que um monografista consciencioso se ponha a perscrutar este ou aquele aspecto. A descoordenação ainda é o característico do estado em que se acha a bibliografia relativa a estas especializações. Num país em que tudo, por assim dizer, está a ser feito, não poderiam achar-se organizadas as bibliografias relativa a este e aquele assunto. E já é imenso que o estudioso encontre o trabalho realizado pelos beneméritos organizadores do catálogo da Exposição da História Nacional em 1881, os estudos de Sacramento Blake, José Carlos Rodrigues, Felix Pacheco etc. A organização de boas bibliografias é assunto que se impõe para que os estudos brasileiros possam tomar o incremento desejável. De 1900 para cá, muito se avolumaram os elementos de que podemos lançar mão para esboçar um panorama da civilização brasileira através dos séculos. Em primeiro lugar, dispomos hoje de documentação incomparavelmente maior, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, documentação já começada a ser posta em relevo por monografistas de valor. Ainda não é das mais extensas a resenha a se fazer de tal seção de nossa bibliografia geral, mas o computo das obras que a compõem apresenta-se variado e valioso. Muito per summa capita relembremos algumas das mais conhecidas. Como autor de obra geral, cabe a Pedro Calmon a primazia, com a sua História da Civilização Brasileira, de que conhecemos a primeira edição. Tem esplendidas páginas, mas ainda é manual incompleto. Nela figuram alguns capítulos, a nosso ver, deslocados. E outros lhe deverão ser incorporados, ainda dela ausentes. Em todo o caso, este primeiro ensaio didático, de compêndio, a ser posto às mãos dos discentes, é tentativa digna de todos os encômios.

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De quanto se acha o autor em condições de fazer obra de largo tomo, e dilatados quadros, deu-nos a mais eloquente prova, em segundo livro verdadeiramente notável, O espírito da Sociedade colonial, uma das mais belas obras ultimamente publicadas no Brasil. As Populações meridionais de Oliveira Viana apresentam páginas magníficas soberbamente pensadas e escritas. Mas o seu ilustre autor confiou um pouco demais, talvez, em nossos velhos cronistas, que tanto se deixaram levar pela imaginação e o pouco cuidado na consulta às fontes. Em todo o caso encerra o belo livro, tão justamente conhecido e admirado, capítulos da mais vigorosa maestria. A vida e a morte do bandeirante de Alcântara Machado resume o produto de pesquisa longa e aturada nos vinte e sete tomos da documentação impressa dos Inventários e testamentos quinhentistas e seiscentista de São Paulo. Representa belo mosaico muito trabalhado, largamente meditado para sua realização. Compendia, porém, um certo número, apenas, de aspectos do largo e vário painel da vida colonial paulista dos primeiros séculos. E é de desejar que o seu autor prossiga na faina encetada explorando outros facies, onde muita novidade está a ser iluminada, sobretudo se alargar a área de explanação do forte material documentário existente e ainda inédito. A Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre representa um trabalho da mais larga erudição, um dos ensaios mais sólidos efetuados entre nós, redigido por pensador que sabe ver com singular agudez e expõe com notável brilho o que a bela e culta inteligência apreendeu das visões contempladas. É um ensaio de primeira ordem. Falta-lhe talvez a ampliação, para o campo da civilização cafeeira a que o escritor pernambucano não conhece em sua intimidade. Moço como é Gilberto Freyre, trabalhador infatigável, ledor de todos os instantes e apaixonado das cousas nacionais, poderá, em nova edição de seu magnífico livro, por-lhe apenso que o completará, distribuindo o material riquíssimo que compendiou, de modo mais homogêneo.

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Outro bom livro de publicação muito recente vem a ser a obra de Felix Contreiras Rodrigues, precioso sobretudo como quadro do Rio Grande do Sul: Traços da economia social e política do Brasil colonial. Obra de autor jovem e de erudito a quem o estudo supre le nombre des années, do alexandrino clássico, resultou do estudo e da meditação de larga base informativa. No presente ano deu o Dr. Roberto Simonsen a lume uma série de ensaios excelentes, deduzindo em capítulos fortemente documentados e argutamente apresentados, conclusões originais e abundantes sobre a história econômica do Brasil, matéria até hoje muito pouco ventilada em seu conjunto quando no entanto tem a importância imensa, capital, que todos lhe reconhecem modernamente. Só um oficial do ofício pode avaliar o que representa em matéria de dificuldades a vencer um tentâmen no gênero destes que os ilustres autores citados realizaram. A imensa e espalhada documentação, a fragmentariedade desta, a ausência de estudos anteriores, representam enormes óbices a vencer. E depois muitos destes veios de informação acham-se frequentemente desconexos, sobretudo em matéria econômica. Contradizem-se os autores do modo mais veemente, as fontes ainda estão por se descobrir, perdidas num mare magnum de papéis sem catalogação ainda. Não pode haver confiança nas informações deste ou daquele porque a cada passo é flagrante a sua disparidade. De tal nos certificamos, do modo mais veemente, ao tentar esboçar o histórico da propagação da cultura cafeeira no Brasil colonial. Assim um curso de história da civilização brasileira é cousa que obriga o seu discente a trabalhar intenso e dispersivo. Os elementos de que poderá lançar mão multiplicam-se pelas páginas de vultosa bibliografia. E a eles não acompanham estes adminículos subsidiários, da mais alta relevância, que a iconografia e outros ramos da heurística dos países antigos e cultos oferece.

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A nossa iconografia é a mais lacunosa e a mais pobre, no que diz respeito aos séculos coloniais, até mesmo ao período imediatamente anterior à descoberta da fotografia. Pouco amor tinham os portugueses às artes gráficas; o que nos deixaram resume-se por assim dizer ao traçado de cartas geográficas, em geral. Nestas ocorrem, aqui e acolá, e nem sempre aliás, os perfis dos lugares localizados sobre os mapas. Prova mais evidente do que avançamos é a ausência absoluta de retratos dos homens mais notáveis do Brasil nos nossos primeiros séculos. Se a coleção das efígies portuguesas vem a ser pobre, a brasileira tem de se qualificar por um superlativo do mesmo adjetivo. Com efeito de quais dos nossos personagens notáveis, coloniais, se conhecem as efígies? De menos de uma dúzia talvez. De Antônio Vieira, Matias de Albuquerque, Salvador Correia de Sá, João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros e bem poucos mais no século XVII, apenas, talvez. No século seguinte prossegue a mesma indigência. Nem sequer nos ficaram os traços fisionômicos autênticos de homens de excepcional valor como Bartolomeu e Alexandre de Gusmão. Deste último corre retrato segundo o busto mandado fazer pelo Barão do Rio Branco. Mas há fortes suspeitas de que tal escultura corresponde a uma imagem supositícia. E, no entanto, o grande negociador do Tratado de Madrid foi ministro de Estado! De Claudio Manuel da Costa se desconhece a fisionomia e há suspeitas muito fundadas de que o retrato de José Basílio da Gama que por aí corre seja tão autêntico quanto o do infeliz apaixonado de Marília de Dirceu. De nem um dos bandeirantes de São Paulo existe efígie. Dos traços dos maiores e dos menores sertanistas, nada se conservou. Nem daqueles que enchem as idades brasileiras com os seus nomes como Fernão Dias Pais, o Anhanguera, Pascoal Moreira Cabral, Antonio Raposo Tavares etc. De sua indumentária guerreira escapou um único documento, este mesmo póstumo em relação à era do bandeirantismo se é possível

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assim dizer-se, o desenho providencialmente executado por Debret ao avistar, no Rio de Janeiro de 1820, milicianos de Mogi das Cruzes, caçadores de índios especializados, revestidos dos famosos gibões de armas de seus maiores, devassadores de nossa selva. Retrato de paulistas coloniais salvaram-se, um ou dois de civis, uns dois ou três de eclesiásticos e isto mesmo porque os retratados estiveram ocasionalmente em Portugal. Cenas da vida comum, nenhuma fixou-a o lápis de artistas, nem mesmo sob os alinhavos dos esboços. E assim, causa-nos surpresa que nos surja uma ou outra estampa como a que Almeida Prado descobriu, relativa à inauguração do Passeio Público do Rio de Janeiro, e a existência do famoso caderninho do Instituto Histórico Brasileiro em que se reproduziram os aspectos dos carros do préstito alegórico ocorrente em certos festejos fluminenses de fins de século XVIII, etc. Que subsídios riquíssimos para a ilustração dos nossos cursos de História da Civilização Brasileira poderia trazer-nos uma iconografia abundante? Haja vista este parêntese aberto na miséria de tal deficiência pela opulentíssima contribuição holandesa seiscentista. É em Barleus e em Post, seu ilustrador, que vamos surpreender os primeiros flagrantes de nossas paisagens antigas, das nossas instalações agrícolas, seiscentistas, a rudimentariedade de nossa vida civilizada, de então, os facies de nossos vilarejos incipientes e os tipos de nossos autóctonos. À agrafia desenhística lusitana nada aproveitou o exemplo magnífico do grande príncipe germânico, governador do Brasil holandês, delegado da Civilização e da Cultura às terras americanas. O que nos dá esperanças, ainda, de que o inventário iconográfico brasileiro se avolume vem a ser os indícios da existência de muitas e excelentes peças imersas no profundo mistério dos acervos documentais portugueses, ainda não catalogados. Portugueses e extraportugueses, mas sobretudo portugueses, como era de esperar.

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De tal temos tido ultimamente algumas provas as mais auspiciosas. Assim por exemplo na opulentíssima brasiliana que Felix Pacheco tão carinhosa quão inteligentemente constituiu existem estampas inéditas de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, as mais saborosas, de origem portuguesa e da primeira metade do século XVIII. Mostrou-m’as o amigo, e morto ilustre de ontem, com aquele sorriso entre misterioso e malicioso que lhe iluminava as feições quando apresentava alguma peça de excepcional valor de seu acervo maravilhoso. Assim também, mas em outro campo: aí estão os resultados da coleta realizada por Jerônimo Figueira de Melo, há pouco anos, em matéria de figurinos dos uniformes de nossas tropas coloniais. A muito custo haviam Gustavo Barroso e Wasth Rodrigues reunido regular cópia de padrões, revistando, do modo mais zeloso, os recursos de nossos acervos tradicionais, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o Arquivo Nacional e os arquivos estaduais. Pois bem, sua coleção, aliás, assaz avultada, pode hoje ser triplicada com as descobertas de Figueira de Melo, em dois anos de pesquisas em Portugal. E não só se enriqueceu com os resultados da busca do ilustre diplomata nos arquivos públicos lusitanos. Obteve o Ministro Figueira de Melo de coleções particulares, eventualmente dispersas, estampas numerosas, e das mais notáveis, como certo álbum de aquarelas, com perto de duzentos figurinos de fardas do Norte do Brasil, absolutamente desconhecidas. Adquiriu-o e, com a maior generosidade, ofereceu-o ao Museu Histórico Nacional. Assim esperemos que ainda muita e muita cousa nos dê a massa colonial de autos relativos ao Brasil, existente na Biblioteca Nacional de Lisboa, no antigo Arquivo da Marinha Ultramar e acervo a ser catalogado. Não pensamos porém que tal contribuição possa ter as dimensões de outras do mesmo gênero, ilustradoras da existência de outrora dos povos europeus, mais bem dotados do que o português, em matéria de inclinações para o debuxo.

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O que nos faz temer esta circunstância é a pequenez dos elementos trabalhosamente angariados pelos autores que da vida portuguesa de antanho quiseram dar-nos uma ideia por meio da ilustração, como por exemplo Alberto Sousa e Roque Gameiro. Pouco lhes rendeu em geral a pertinaz caçada realizada, recorrendo a quanta fonte subsidiária puderam, examinando margens de manuscritos, painéis religiosos, quadros de azulejos etc. etc. A pobreza dos elementos se traduz pelo mínimo por assim dizer dos retratos. Se ninguém pode afirmar que o de Camões seja autêntico, se nos faltam as efígies de Cabral, de Fernão de Magalhães e até de numerosíssimos príncipes da Casa Real, de muitos ministros de Estado, dos mais salientes, dos guerreiros, navegadores, escritores muitos deles ilustres, dos séculos XVI e XVII, que pensar do que poderia ir pelo Brasil bárbaro e deserto? O confronto se torna o mais frisante quando contrapomos o caso português ao francês, ao inglês, italiano, alemão, flamengo ou holandês. A iconografia de que dispõem estes povos é simplesmente enorme. Não há quase personagem, de alguma importância, destas mesmas centúrias cujos traços não hajam sido reproduzidos frequentes vezes mais ou menos ingenuamente, mas, em todo o caso, de modo a fornecer documentação aos pósteros. A história dos costumes conta ainda poucos cultores entre nós. E a sua bibliografia bem pouco extensa. A contribuição portuguesa para tal fim não se apresenta volumosa. O caudal mais importante provém dos depoimentos xenobibliográficos. Não são estes volumosos ainda, porém. Imenso há que traduzir destas fontes informativas. O que se verteu para o português vem a ser mínimo se considerarmos a massa do que existe. E muitos relatos de viajantes, e de observadores estrangeiros, nem sequer estão traduzidos para idiomas mais acessíveis aos brasileiros, como, por exemplo, o francês. A contribuição alemã, tão extensa quan-

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to valiosa, ainda se acha inacessível à imensa maioria dos brasileiros, compreendendo, no entanto, obras do maior vulto como as de Spix e Martius, Pohl, Natterer, Eschwege, etc. entre os mais antigos, Tschudi, o príncipe Adalberto da Prússia, etc. entre os modernos. Pouco bisbilhoteiros como eram os portugueses, no sentido de confiarem ao papel as impressões oriundas da observação da vida comum, os relatos xenobibliográficos assumem capital importância para a apreensão das nossas pinturas de costumes. O lado lusitano devemos surpreendê-lo na documentação judicial, sobretudo nos testamentos e inventários, nos autos cíveis e criminais, nos livros de tabelião, nos inquéritos religiosos e policiais, etc. etc. A correspondência epistolar de antanho constitui em geral insignificante fonte e limita-se, quase sempre, a registrar, apenas, transações comerciais. Os inquéritos religiosos trazem-nos muita informação de polpa. Haja vista o manancial que representam as Visitações do Santo Ofício pela primeira vez apontadas ao público por Capistrano de Abreu. Mas a contribuição dos viajantes estrangeiros, apesar da sua desvantagem de origem, causada pelas diferenças fundamentais de mentalidade, representa elemento da maior valia e nada supre o seu conhecimento. Sobretudo quando é possível lançar mão de informantes probidosos e inteligentes como muitos do século XIX, cuja palavra inspira a maior confiança como sejam Tollenare, Saint Hilaire e Koster, Debret e Kidder, Gardner e Burton, entre tantos outros. Graças a estes elementos conjugados de procedência nacional e de origem alienígena será possível ensaiar a reconstituição de aspectos da vida de outrora, a exemplo da tentativa de Luís Edmundo no seu O Rio de Janeiro no tempo dos Vice Reis. Tentâmen de valor, sob muitos aspectos, de muito agradável leitura, compendiando grande massa de dados, peca algum tanto pela extremada lusofobia que frequentemente nos parece descabida. Os aspectos urbanos de outras agremiações

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coloniais não portuguesas seriam mais favoráveis do que as do Rio de Janeiro, naquelas eras de muito anteriores ao nascimento da higiene? E não será excessiva severidade verberar-se o atraso dos costumes naquele tão longínquo Rio de Janeiro, distante meses de viagem dos grandes centros civilizados do Ocidente? Vizinho longínquo e a que distância de uma metrópole tão atrasada como ainda era Lisboa de fins do século XVIII! Soberbo campo de estudos se antolha aos pesquisadores de boa vontade no conjunto da enorme documentação virgem oferecida aos estudiosos da história da civilização brasileira. Assim atraía ele a maior cópia destes interpretadores de documentos, para que o avolumamento de tal bibliografia permita dentro em breve apanhados, por enquanto assaz falhos, por deficiência de indispensáveis pontos de apoio dos elementos exigidos para a construção das sínteses.

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SÉRIE MONUMENTA Monumenta franqueia ao leitor brasileiro – ao estudante, ao diletante, ao especialista – um conjunto representativo dos maiores monumentos literários da historiografia da época moderna: clássicos que balizaram o pensamento histórico, político e toda a cultura ocidental, em traduções anotadas por nossos grandes especialistas. leandro pereira gonçalves coordenador

SÉRIE MONUMENTA 01. MONTESQUIEU. Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência. Apresentação, tradução e notas de Renato Moscateli. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010. 02. MICHELET, Jules. As mulheres da revolução. Tradução de Daniela Kern. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014. 03. VARELLA, Flávia; OLIVEIRA, Maria da Glória de; GONTIJO, Rebeca. História e historiadores no Brasil: da América Portuguesa ao Império do Brasil – c. 1730-1860. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2015.

tipografia número de páginas ano

Gandhi Serif 420 2015

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