NIETZSCHE E O HORIZONTE DE UMA NOVA ÉTICA - PAULO SABINO (Monografia)

May 20, 2017 | Autor: P. Cesar Jakimiu ... | Categoria: Philosophy, Ethics, Friedrich Nietzsche, Dionysus, Nietzsche’s evaluation on Men of Ressentiment
Share Embed


Descrição do Produto

0

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ Campus de União da Vitória COLEGIADO DE FILOSOFIA

PAULO CESAR JAKIMIU SABINO

NIETZSCHE E O HORIZONTE DE UMA NOVA ÉTICA

UNIÃO DA VITÓRIA 2014

1

PAULO CESAR JAKIMIU SABINO

NIETZSCHE E O HORIZONTE DE UMA NOVA ÉTICA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Filosofia da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) Campus de União da Vitória em Filosofia como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciado em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Samon Noyama

UNIÃO DA VITÓRIA 2014

2

Dedico a minha mãe, meu irmão e minha avó. E também a meu pai e a meu avô in memoriam.

3

AGRADECIMENTOS Vários são os que me permitiram chegar até aqui. Sendo assim, agradeço: Ao meu orientador, Samon Noyama, pelas incontáveis horas de conversas sobre a pesquisa. Pelas leituras e críticas que propiciaram a realização de um bom trabalho. Também agradeço por todo auxilio e incentivo durante a minha formação acadêmica. Aos meus professores, Renata Tavares, Charles Santiago, Claudio Cavalcante, Armindo Longhi, Everton Grein e Erickson dos Santos, pela convivência acadêmica e pelos bate papos seja nos corredores ou na sala de aula. Meus sinceros agradecimentos por tudo o que me ensinaram. À minha família, em especial minha mãe e meu irmão, sem os quais não teria sido possível concluir com vigor minha formação. Aos meus colegas de graduação, Pâmela, Bruna, Alan e Marcos, pelas conversas e risadas durante esses quatro anos. Ao pessoal da “mapoteca” pelo ambiente agradável. À Unespar campus de União da Vitória pelo apoio e todos os seus funcionários e também ao programa de iniciação científica do campus e a Fundação Araucária pela bolsa concedida que me possibilitou dedicar muito de meu tempo aos meus estudos. Por todos os laços de amizades. A todos que de mim duvidaram.

4

É verdade: amamos a vida não por estarmos habituados à vida, mas ao amor. / Há sempre alguma loucura no amor. Mas também há sempre alguma razão na loucura. (NIEZSCHE, Assim falou Zaratustra, “Do ler e do escrever”).

Restabelecimento significa em mim uma longa, demasiado longa sucessão de anos – significa também, infelizmente, recaída, decaída, periodicidade de uma espécie de décadence. Necessito dizer, após tudo isso, que sou experimentado em questões de décadence? Conheço-a de trás para frente. (NIETZSCHE, Ecce Homo. “Por que sou tão sábio?” §1).

5

RESUMO Ao longo deste trabalho buscamos explicitar sobre alguns pontos da filosofia de Friedrich Wilhelm Nietzsche, principalmente no que diz respeito à ética. Para realizar tal tarefa, estabelecemos três pontos: a) a análise dos valores morais e o método de Nietzsche para a investigação dos mesmos, ou seja, a genealogia; b) questões relativas à linguagem, por exemplo, a concepção de verdade e; c) a vida afirmativa, uma vida que preza pelas singularidades dos indivíduos devido à pluralidade de tipos existentes no mundo. Frisamos também que isso não nos remete a um individualismo radical, mas que pelo contrário, pode nos proporcionar uma vida saudável e, consequentemente, a criação de valores afirmativos.

6

ABSTRACT Throughout this work we try to explain some questions about the philosophy of Friedrich Wilhelm Nietzsche, mainly with regards to ethics. To accomplish this task we established three points: a) the analysis of moral values and Nietzsche’s method to do it, that is the genealogy; b) issues about language, for example, the conception of the truth, and; c) the affirmative life that look on individual singularities, because we have a lot of different types of individuals in the world. We emphasize that is not a reason to lead us for a radical individualism, on the contrary, it could give us a healthy life and therefore, the creation of affirmative values.

7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 08 CAPÍTULO I: SOBRE A ANÁLISE DA MORAL........................................................ .... 11 1.1. O ethos: uma breve distinção entre ética e moral............................................................ 11 1.2. A questão do método na filosofia..................................................................................... 14 1.3. A iconoclastia de Nietzsche: a genealogia como destruidora dos ídolos........................ 18 1.4. Nietzsche niilista?............................................................................................................. 24 CAPÍTULO II: LINGUAGEM E VERDADE OU COMO SOBREVIVE A MORAL 27 2.1. Uma ou duas considerações sobre a questão da verdade na história da filosofia.......... 27 2.2. A concepção metafórica da verdade em Nietzsche.......................................................... 29 2.3. Supondo que a verdade seja uma mulher........................................................................ 32 2.4. A linguagem no processo civilizatório............................................................................. 36 2.5. Linguagem no gregarismo: Seria a religião antinomia da vontade de potência?........... 37 CAPÍTULO III: VIVAS A DIONÍSIO!.............................................................................. 43 3.1. O corpo como elemento primordial................................................................................. 43 3.2. Dionisíaco ou Sim a vida: por uma ética não normativa................................................. 47 CONCLUSÃO....................................................................................................................... 51 REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 53

8

INTRODUÇÃO Talvez não o problema mais antigo, mas sem dúvida um dos mais refletidos na história e que certamente gera mais incômodo não apenas para os que se propõem a pensar sobre o assunto, mas também para aqueles que são atingidos por ela: a moral; sempre foi peculiar e estranha a nós, pois mesmo estando tão presente em nossa vida, não conseguimos lidar com ela de uma maneira adequada. Para alguns um problema – o termo moralista, por vezes, é utilizado no sentido negativo – e para outros algo necessário. O mundo sempre esteve repleto desses tipos de preconceito, alguns são muito claros e repugnantes, outros por vezes parecem querer se esconder e não conseguimos observar seus sintomas. Sim, sintomas, pois foi de tal maneira que ela fora entendida – como algo a ser diagnosticada – pelo autor que aqui estamos lidando: Nietzsche – que inclusive se denominara um “médico da civilização” ou da “cultura”. Seus ataques possuem diversos alvos: a moral cristã, a moral moderna – essa como continuidade ou conectado à primeira. E outros pontos, como: a figura da mulher – que inclusive gera inúmeras discussões acerca do real pensamento do filósofo por elas –, a verdade e mesmo o tipo de vida que encontramos na humanidade tal como a enxergamos nos dias passados e atuais. Antes de começar, porém, precisamos esclarecer: em seus textos não há uma proposta de ética bem estabelecida através de um sistema consistentemente estruturado – para alguns, o problema de Nietzsche sempre foi a moral e a ética nem seria objeto de seu pensamento. Contudo, através de seus alvos, seus ataques e elogios, enfim, através das linhas de seus textos buscamos encontrar quais tipos de pensamentos poderiam ser extraídos dali e como eles podem favorecer uma ruptura com as propostas éticas constituídas até então e, principalmente, demonstrar que seu objeto não seria meramente a moral. Para tanto, buscamos apresentar nossas arguições de modo que pudesse ficar mais claro aos olhos do leitor. Não seguimos uma ordem cronológica de seu pensamento, na verdade, isso não foi considerado como extremamente necessário, por essa razão expomos primeiro pensamentos contidos na obra Genealogia da moral, tal como o método apresentado por Nietzsche para avaliar os valores, e, os mais atentos na leitura nietzschiana, sabem que tal obra pertence ao período final de sua produtividade intelectual, que começa com Assim falou Zaratustra, sendo que, no segundo capítulo, para tratar do problema da verdade, trazemos a luz um texto anterior, Sobre a verdade e a mentira no sentido extra moral – mas admitimos que o grande foco foram nas obras do período final, já que as noções mais pertinentes a ética, como a de valor, seriam ali apresentadas. Contudo, não nos obstemos de recorrer a uma obra fora de tal

9

período, claro que tomamos os cuidados necessários, mas a cronologia foi elemento secundário. Pois bem. O primeiro capítulo inicia fazendo um breve esboço sobre os termos moral e ética, para tanto, recorremos às transições e compreensões dos termos êthos e éthos no período antigo. Isso apenas para demonstrar que certa individualidade não é estranha a uma postura ética, algo que seria interligado com o que expomos no final de nosso trabalho. Analisamos alguns breves aspectos sobre os métodos investigativos introduzidos por alguns filósofos para a busca de conhecimento e de desvelar as obscuridades da realidade, para que assim possamos apresentar o método de Nietzsche. Irão perceber que durante nossa exposição de argumentos, algumas vezes, buscamos esclarecer acerca de certos mal entendidos em relação ao filósofo – foi a maneira que encontramos para não obscurecer nossas interpretações acerca do mesmo e fazer também uma defesa daquilo que pensamos ser uma forma inovadora de interpretar o mundo. Na segunda parte introduzimos dois pontos extremamente complexos, mas que não poderiam passar em branco para a melhor compreensão do conteúdo: trata-se do problema da linguagem e a concepção de verdade para o autor. Iniciamos pela verdade – um dos temas mais estimados pela tradição filosófica foi criticada de maneira visceral, não apenas a concepção de verdade, mas também essa busca – que resultava em um martírio – por ela. No pensamento de Nietzsche ela ocupa uma posição diferente daquela mais comum na maioria dos filósofos. Claro que ela não foi desvalorizada como tema, na verdade o oposto disso, em seus textos ela aparece em diversos momentos; como algo que deveria ser entendido como preconceito moral, como algo inventado e não essencial. Não se trata de dizer, meramente, que não há verdades absolutas, mas sim que existem, sobre a verdade, diversas interpretações e, até então, todos a consideraram como superior – não apenas epistemologicamente, a verdade entra na filosofia nietzschiana como problema moral, sua crítica é também a respeito de seu valor. Também abordamos a “verdade como metáfora”, ou seja, algo que apenas possui um sentido dentro de determinado contexto – a originalidade de nosso filósofo nesse aspecto é sem dúvida algo genuinamente incrível e geradora de diversas reflexões. Dando conta, mesmo que brevemente, desse ponto, adentramos para o mundo da linguagem. Ora, se a verdade foi criada, inventada e não algo como uma essência, se os valores precisavam ser destruídos para abrir espaço para a criação, não poderíamos deixar de lado esse tópico, pois ela é o principal instrumento para tal tarefa. Objetamos também que seu valor não reside em sua utilidade gregária – para simplificar ou tornar comum o que nos seria estranho. Quando um pensador faz o uso dela, entendo-a como criadora e não como algo que explica ou desvela, então

10

podemos compreender de que forma ela seria utilizada por Nietzsche. Dentro do contexto civilizatório, por exemplo, a linguagem adentra, e, dessa maneira, conseguimos observar o porquê de nos tornamos criaturas mais dóceis, mais confiáveis – vivemos em bando, como ovelhas, nossa vontade de potência é diminuída, precisávamos então analisar ao menos uma característica que proporcionou esse enfraquecimento no mundo atual, e esse foi a religião, particularmente, o cristianismo. O capítulo que faz o desfecho de nossas investigações e análises traz então a figura de Dionísio, a divindade grega que foi por muitas vezes representada por Nietzsche com entusiasmo. Buscamos entender o que ela significava em seu tempo, qual a razão da escolha dessa divindade aparecer tantas vezes, que interpretações poderíamos tirar a partir dele. Esse deus da Grécia antiga foi explanado em nosso trabalho demonstrando que, ele por si próprio já representava a terra, a carne – o sagrado para ele era o vinho, a dança e o teatro; tão diferente do deus cristão que, de alguma maneira, apenas nos representa o espírito e desfavorece os prazeres terrenos. Sendo assim, se a ética proposta por Nietzsche parece propor uma concepção de vida afirmativa, então tal figura se demonstra de vital importância. Ele representa também os instintos, e, devido esse aspecto natural de nossa condição de animais, então como poderíamos ser livres? Tentamos então demonstrar que liberdade e necessidade – que diz respeito ao aspecto natural que citamos – não se contrapõem, e, dessa maneira, era possível uma postura de ética distinta do que conhecíamos. A genealogia permite avaliar os valores, que, não sendo tomados como verdadeiros em si – pois a verdade é uma metáfora – podem ser descontruídos, transformados e criados. Para isso, a linguagem se demonstra a mais bela ferramenta, contanto que não seja gregária. Dessa maneira, abre-se espaço para uma vida afirmativa que preza os instintos, o pathos – uma vida afirmativa que aparece, em nosso entender, através do pensamento do eterno retorno. Esse foi o caminho que trilhamos, e esperamos que a leitura possa ser significativa e esclarecer alguns pontos sobre a possibilidade de pensar a ética de maneira distinta. Deve-se aqui ainda ser deixada uma confissão: ler Nietzsche é prazeroso, mas causanos também um mal estar, nos tira o ar dos pulmões, altera nosso pathos. Nunca alguém escreveu tanto, em tão poucas linhas. Foi, sem dúvida, um filósofo poeta, mas não apenas pela beleza de suas palavras, mas sim porque pensou em verso e não em prosa. Provocativo, assim foi o filósofo das marteladas, e com isso nos permite olhar para horizontes diferentes, novos e antes nunca explorados. Por essas e outras razões, em momento algum buscamos explicar a filosofia nietzschiana de modo definitivo – como se isso fosse possível. Dogmatizar Nietzsche, isso jamais!

11

CAPÍTULO I: SOBRE A ANÁLISE DA MORAL 1.1. O ethos: uma breve distinção entre ética e moral “Destroçai, ó homens do conhecimento, destroçai as velhas tábuas!” (NIETZSCHE, 2011a, p.191)

Compreender em sua plenitude e complexidade o termo, ética, é deveras complicado – interpretações sobre existem aos montes. Porém, uma análise etimológica a esse respeito permite que todo o restante do trabalho torne-se mais compreensível. É importante perceber, por exemplo, que a ética não pode ser sempre considerada como um conjunto de valores que buscam o bem viver coletivo, ela possui também aspecto individual que preza pela constituição de caráter humano que mede suas ações a partir de si e não do outro. Essas características do termo podem ser notadas principalmente no embrião da filosofia: a Grécia antiga – um período do qual Nietzsche sempre fora muito íntimo, embora não prezasse tanto pelos filósofos, mas sim pelos poetas: justamente esses que cunharam o termo. Miguel Spinelli (2009) elucida com clareza a respeito do termo ethos, ao começar por distinguir duas grafias distintas: o éthos com epsílon, que remonta a Ésquilo e o êthos, grafado com eta está ligado a Homero. Continua a explicitar os diversos significados que os pensadores e poetas gregos atribuíram, onde o éthos, por exemplo, passa a designar o costumeiro ou habitual e o êthos assume uma característica de capacitação para o modo de ser – que pode ser aperfeiçoado. Embora, como poderemos perceber as palavras ainda estejam ligadas a uma concepção do exercício da razão para o aprimoramento da ética, demonstra-se que os gregos, no que diz respeito aos poetas, principalmente, parecem dar valor ao indivíduo, a um reger a vida por si só, de maneira autônoma. Após citar um trecho de um famoso poeta de Sófocles, Spinelli ainda diz que o poeta: [...] faz referência a um êthos noético, a um modo de pensar, mais exatamente, a um domínio (organizado em termos de pensamento e discurso) e em dependência do qual um indivíduo vem a ser capaz de reger a sua vida sem se sujeitar a qualquer outro governo (dos humanos ou dos deuses) que não o seu (2009, p.12, grifo do autor).

A partir dessa perspectiva é possível entender que relacionar a ética a algumas doutrinas, ou qualquer forma de coletividade, como ética cristã, por exemplo, não faz o menor sentido. O significado acima faz oposição ao nosso pensar contemporâneo a respeito do assunto, tal pensamento poderia ser traduzido por uma aclamada obra dos dias atuais: Ética Prática de Peter Singer, onde o autor, ao dar uma possível explicação do que é a ética, trabalha com possibilidades que desmerecem o indivíduo quando contraposto ao coletivo: Para serem eticamente defensáveis, é preciso demonstrar que os atos com base no interesse pessoal são compatíveis com princípios éticos de bases mais amplas, pois a

12

noção de ética traz consigo a ideia de alguma coisa maior que o individual. Se vou defender a minha conduta em bases éticas, não posso mostrar apenas os benefícios que ela me traz. Devo reportar-me ao público maior. (1998, p.18).

Em contraste com os gregos, é possível entender como o intuito da ética não é necessariamente o apontado acima pelo autor, como algo que traria consigo uma ideia maior que o individual. Olhar para aquele período dos gregos com uma perspectiva contemporânea – isto é, referindo-se à nossa cultura ocidental, uma perspectiva afetada pelo cristianismo – também acaba por influenciar e atrapalhar nossa compreensão: o cristianismo, uma religião, preza pelo coletivo, o individualismo acaba não sendo bem aceito em uma doutrina que busca unir as pessoas. E segundo, porque é incomum, para nós, seres do século XXI, pensar que é algo bem aceito desafiar o divino, seriamos imputados de culpa, aquele que realizasse tal ação tornar-se-ia um pecador. Contudo, as tragédias gregas deixam claro que não há heróis ou vilões1, não existe a noção de que os deuses são bons e puros – podem ser mais perfeitos que os mortais, mas isso não implica bondade –, caso a dificuldade que nos referimos aqui diz respeito ao fato de que, nessa cultura grega, a dualidade bem e mal não é tão “delimitada” como nos dias de hoje, onde fazemos questão de procurar por tais valores. Também é errado pressupor que a individualidade presente aqui é apenas negativa. Ela, ao contrário, demonstra como se busca capacitar o homem, acarreta em responsabilidades maiores. Mas a concepção que faz a ética relacionar-se ao coletivo não se dá por acaso, ou por mera deturpação do decorrer histórico. Os termos são riquíssimos e se desdobram de diversas maneiras. É por esse motivo que o êthos pode estar vinculado a três outros elementos, a saber: gnômas, daímôn e moîra. Spinelli (2009) explicita ainda esses três termos e desfaz algumas possíveis confusões; fazendo menção a Heráclito, por exemplo, a gnômas está ligada a uma espécie de saber que apenas a divindade detém – que diz respeito não a um deus, mas sim ao Kósmos que está envolvido por uma sabedoria interna da qual deriva o modo de ser e agir. Ora, sendo assim, a própria filosofia é uma tarefa que busca nos aproximar desse divino, isto é, buscar os saberes que envolvem o universo – o mesmo diz respeito ao pensar a ética. O vínculo com seguinte é mais denso: “Daímon é tomado como expressão de uma força ou de um poder [...], designa apenas o destino, a própria sorte” (Ibidem, 2009, p.18). O daímon chega a ser ainda mais claro o vinculo do homem para consigo mesmo e não com os deuses, pois “é no interior e não de fora (dentro de nós e não em outro) que encontramos o caminho e os meios para nos decifrar” (Ibidem, p.20). Não cabe voltar nossas ações para o outro, antes

1

A noção que existe nas tragédias gregas é a de herói trágico, contudo, a diferença entre aquele que representa o bem (o herói) e o mal (vilão) não se aparece nas tragédias gregas.

13

do outro existe o agente – voltar a ação exclusivamente para o outro é pautar-se em algo que possa abranger o melhor para ambos, porém, essa base acaba em função dos valores que regem a determinada cultura ou época. Contudo, é inegável que embora exista uma aproximação para com a filosofia de Nietzsche, há também um afastamento, pois o daímon refere-se aqui a um conhecer intelectual, racional, e principalmente, porque não é uma entidade física, relacionando-se ao theîon é algo que pertence a um plano etéreo (Cf. Ibidem, p.21) – e a filosofia nietzschiana, como ainda será demonstrado, não busca se fundamentar em bases metafísicas. E por fim, a moîra ou destino, ligada a uma potência diretiva – da vontade do indivíduo ou das leis do Estado –, um autoconhecimento, pois o destino é constituído e para todos; a diferença é que os homens são capazes de deliberar – que necessita da inspeção de si – para tal constituição, não acontece naturalmente como na phýsis (Cf. Ibidem, p.22-23). É perceptível que o ethos, apenas pelo fato de possuir duas grafias, é demasiado rico em detalhes e significados, não é estranho pensar o porquê a ética começou a estar vinculado ao coletivo, já que algumas vezes – como é o caso da moîra quando ocorre por leis do Estado – ela se coloca desse modo, mas os gregos, porém, parecem não forçar para esse lado, principalmente os poetas. Claro que o termo, na medida em que designa pensamento racional em vista da deliberação, hábito, costume, etc. pode ter em mente o bem da pólis, mas acreditamos que essa generalização do termo, que passa a designar o coletivo como um bem maior, ocorre dentro da apropriação dos latinos pelo termo, ao ser transcrito para o latim assume significados que se distanciam dos gregos: O éthos (com epsílon), eles [os latinos] o traduziram por suetus, termo que resultou em português no nosso consueto (no que é tido como costumeiro, usual, corriqueiro); já o êthos com era (certamente por influência de Aristóteles) verteramno em mos, moris: termo que deu origem ao que, no tempo deles, digamos, Lucrécio e de Cícero, veio a ser denominado de moral [...]. Por moral (mores) em sentido amplo, os latinos entendiam o cultivo do caráter, (cultivo das “boas” qualidades cívico-patrícias), e, não, a rigor, uma disposição ética no sentido de promover princípios racionais e orientadores da conduta de excelência. (Ibidem, p.28-29).

Não é estranha a confusão que se faz ao pensar a ética e a moral, sendo do modo como tentamos distinguir ambas, ou mesmo fazendo o contrário, não diferenciando. Devido à quantidade de significados e usos dos gregos para o ethos, as interpretações foram diversas – podendo ter sido consequência do modo de vida ou cultural da época, bem como de suas necessidades sociais. É assim que gostaríamos de evidenciar aqui justamente a principal distinção entre a ética (enquanto ethos nos gregos) e a moral (a mores dos latinos) foi a perda da qualidade individual que se atribuía ao ser humano, onde a autoridade caberia ao homem. Com Lucrécio, como irá explicar Miguel Spinelli, irá fazer uso da mores como um mores

14

generatim, onde os costumes seriam passados de geração para geração – os filhos imitavam os pais – e assim constituía um uso dos costumes próprio de vida patenta, sendo assim, uma preservação dos costumes (Cf. Ibidem, p.30)2. Podemos com isso concluir dois aspectos importantes a respeito da moral: primeiro o fato dela se dar como forma de preservação da tradição, da conservação dos costumes – o que pode ser danoso, pois as pessoas estão inseridas dentro do tempo e espaço, isto é, a cultura muda, nós, seres humanos, mudamos. Logo, a mera tentativa de preservar os bons costumes pode se tornar danosa. Nietzsche, porém, irá explicitar diversos tipos de moral e nem sempre a condena por completo, entende que é possível encontrar uma moral que esteja de acordo com um aspecto afirmativo – a Grécia dos tempos homéricos é exemplo disso – e com isso resta-nos, no decorrer da pesquisa, buscar entender de que modo a moral, mesmo quando conserva, aparece como algo benéfico à saúde. Segundo, a moral acaba sempre servindo ao coletivo. Ela limita assim as capacidades intelectivas e sensitivas do indivíduo. Acreditamos existir em Nietzsche uma exaltação da possibilidade do homem superar, isso devido sua crítica ao gregarismo. Esse ponto pode ajudar a esclarecer o paradoxo da crítica à moral, bem como o fato dele tomar partido de alguns tipos que apareceram na história.

1.2. A questão do método na filosofia

Ecoa pelos séculos a pergunta: o que é filosofia? Para essa pergunta não existe uma resposta, mas sim respostas. É difícil defini-la exatamente, ou mesmo uma definição satisfatória a todos, inclusive, se algo assim acontecesse, poderia se supor que não se falava de filosofia. Porém, existe um ponto que podemos concordar na questão da filosofia: ela preza por um método de análise rigoroso. O homem é produtor de conhecimento, o mundo é sua matéria prima – o resultado final será consequência desse método de análise. O comportamento humano não é um assunto que foi exclusividade de Nietzsche. Cada filósofo realizou tal tarefa a sua maneira – isto é, seu método. O modo como o pensador interatua com a realidade produz resultados que afetam nossa visão sobre ela, de maneira que é uma das preocupações centrais e primordiais para o filósofo a maneira mais adequada de investigar. Cada novo método de investigação, surge uma nova interpretação que pode vir a romper com

2

Sejamos justos, como foi dito na citação de Spinelli, não se pode negar a influência de Aristóteles no mundo latino. Logo, em diversas obras, como na Ética a Nicômaco, Aristóteles (1973), defende que a ética pode ser constituída por um habito, que diversas vezes praticado pode ser internalizado, onde a experiência diversas vezes repetidas pode formar o habito.

15

a visão precedente. Isso se evidencia se recorrermos brevemente aos acontecimentos históricos a esse respeito na filosofia. O método origina-se quando o pensamento crítico-racional rompia com o mito3. O logos confronta o mito buscando agora não organizar as condições sociais do homem através de narrativas sustentadas pela crença sem fundamento lógico – pois “ao se propor explicar a complexidade do real o mito só poder ser ilógico, irracional” (BRANDÃO, 2010, p.38) – mas através de investigações racionais e críticas. Muito embora os pré-socráticos já buscassem explicar a natureza sem recorrer aos mitos (usando de elementos como agua, fogo, movimento), um método que fosse mais firme de fato surge apenas na filosofia socráticoplatônica – de maior interesse para nós. A pluralidade mítica não era o suficiente, buscava-se servir-se do logos com uma finalidade: a busca pela essência. Em Platão “o logos passa a não ser mais moral, provindo do divino, mas é aquilo que se faz dele, tendo caráter neutro, isto é, pode ser verdadeiro ou falso” (ROUGUE, 2005, p.19)4. A linguagem não seria utilizada como mera ferramenta comunicativa – que expressaria as tradições através das gerações – ou mesmo um uso dos signos que apenas visassem convencer, sua função era séria e austera: expressar a verdade. Para isso torna-se necessário um método pelo qual se possa chegar a esta essência das coisas: a dialética5. Termo que em primeiro momento pode-se muito bem compreender como diálogo. E sobre a palavra falada se fundamenta o método socrático-platônico de conhecimento – compreender a crítica de Platão à escrita é fundamental para a compreensão de sua obra. A crítica platônica à linguagem merece então a devida atenção. Primeiro, porque ela parece destruir a escrita e não considerar nenhum ponto benéfico nela e, segundo, devido a intima ligação que a crítica platônica contida no Fedro tem para com a linguagem. Jacques 3

Que não se entenda aqui mito por fantasia ou lenda, “mas como era entendido nas sociedades arcaicas, como expressão de uma história verdadeira ocorrida em um tempo primordial” (BRANDÃO, 2010, p.19). Os mitos regiam os costumes de uma época. 4 É preciso fazer uma ressalva quanto a esta citação. De fato o logos em Platão não e mais moral, contudo, isso não significa dizer que antes de dele, com os pré-socráticos o logos assim fosse, pois a filosofia grega antiga é muito rica e Parmênides, Heráclito, entre outros se preocupavam já em dizer que o logos deve expressar a alêtheia. Porém, a citação do autor se deve, talvez, pelo fato de que com Platão isso fora mais consistentemente consolidado e não consiste necessariamente em um erro – o que pode dar a consistência ao pensamento de Platão seja sua refutação ao pré-socrático Parmênides, pois este acreditava que ser e pensar constituíam a mesma coisa e, assim sendo, o discurso não poderia ser falso, algo refutado por Platão no Sofista (Cf. PLATÃO, 1991, p.190), embora seja inegável a divida que Platão possui para com o eleata, pois a fundamentação do ser dele servira para a teoria do mundo das ideias platônico, apenas é interessante perceber que o problema em dizer a verdade (alêtheia) já nasce com a filosofia pré-socrática (Cf. SPINELLI, 2006, p.226-236). 5 Este dado já pode ser constatado no Fédon, quando Sócrates diz a Glauco – criticando os sofistas – que o verdadeiro filósofo não visa apenas sustentar sua tese, se alguém a confrontasse deveria utilizar de nova tese e assim até chegar a um resultado satisfatório, demonstrando que o discurso deve ter como objetivo chegar ao verdadeiro. (Cf. PLATÃO, 1991, p.108).

16

Derrida na obra A Farmácia de Platão expõe uma exímia análise dessa questão. Ele demonstra que a escrita aparece como um phármakon e o termo por si só é ambíguo podendo representar um remédio ou um veneno – aliás na interpretação de Derrida o phármakon jamais assume caráter único: “Não há remédio inofensivo. O phármakon não pode jamais ser simplesmente benéfico (2005, p.46, grifo do autor). Do mesmo modo o logos como foi dito assumindo caráter neutro pode ter dois lados: nocivo e benéfico – entenda-se por logos então o discurso. A preocupação de Platão é para com o caráter e as vantagens de determinados Se no mito de Theut a escrita aparece como benéfico como remédio para memória, é logo desmascarada como veneno pelo rei: Não descobriste o remédio para a memória, mas apenas a lembrança. O que ofereces aos que estudam é simples aparência do saber, não a própria realidade. Depois de ouvirem um mundo de coisas, sem nada terem aprendido, considerar-se-ão ultrasábios, quando na grande maioria, não passam de ignorantões, pseudo-sábios, simplesmente, não sábios de verdade (PLATÃO, 2007, p.112).

É de tal modo que a escrita em primeiro momento no mito é totalmente desvalorizada, mas terá depois seus méritos reconhecidos, justamente porque Theut é o deus da morte6, a escrita aparece ligada a morte – a dialética dá vida a um organismo vivo, a um logos vivo que provém de um pai –, e por estar intimamente ligada à morte, a escrita é o phármakon que pode dar conta disto como esclarece Derrida: “Mesmo que esteja morto, só um phármakon pode deter um tal poder sobre a morte, sem dúvida, mas também em conluio com ela. O phármakon e a escritura são, pois, sempre uma questão de vida ou de morte” (2005, p.52). A beleza da escrita consiste na questão de apenas ela poder ressuscitar o autor, ou mantê-lo em pensamento. Já as falhas da escrita consistem, por exemplo, na incapacidade de se defender e dizer sempre o mesmo, bem como no auxiliar danosa a memória – como visto acima. As preocupações de Platão consistem na forma do uso do logos, de manipular o phármakon. Nisso se justifica nossa atenção a esse texto em si, no que diz respeito à linguagem, é perceptível que ela pode ser extremamente sedutora. É preciso frisar e deixar claro que, então, no pensamento platônico deve-se conhecer a verdade do que se fala ou escreve para “definir cada uma por si mesma, e, depois de definida dividi-la em espécies até atingir o indivisível” (PLATÃO, 2007, p.115). A dialética é, pois, um método de divisão – o cuidado com o phármakon consiste em fazer com que o método não perca seu rumo.

6

É impossível tratar da riqueza do texto em poucas linhas. O mito de Theut utilizado por Platão, por exemplo, sem dúvida mereceria a devida atenção que não pode ser trabalhada aqui já que o foco é outro. No entanto, recomenda-se Cf. DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. São Paulo: Illuminuras, 2005. Principalmente o capítulo três que trata do mito em si.

17

Definir o objeto significa chegar ao que é irrefutável: aquilo que é. Platão basicamente institui a característica fundamental da filosofia ocidental: a busca por um ideal verdadeiro, um porto seguro. A essência era atingida produzindo o conhecimento através de um processo de extração, tarefa que Sócrates procura realizar nos diálogos platônicos 7. Ela está no plano do suprassensível – são as formas. O que marca de fato o pensamento não é o método em si que se utiliza, mas a interpretação que nos é oferecida: suas “sequelas”. De modo que “filósofo das ideias” marca a humanidade profundamente em dois sentidos: primeiro; legitima a dualidade sensível e suprassensível8 – que mais tarde seriam incorporadas pela doutrina cristã – e por fim, a império que ele atribui à razão/logos, tornando-se, de certa forma, servo dela. Exaltava-se a razão de modo que se acreditava poder chegar ao conhecimento absoluto das coisas – idealizadas pelo próprio filósofo. Séculos mais tarde, o filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), considerado um dos precursores da ciência moderna, isto porque, ao lado de Descartes foi quem de fato começou a pensar e dar ênfase à questão do método. O que se tinha até então proveniente dos antigos eram demonstrações sem um rigor “cientifico”, o erro dos intelectuais da época era aceitar os saberes derivados pela tradição ou pela autoridade das doutrinas filosóficas – e principalmente exaltar a razão. Em seu Novum Organum propunha uma via distinta de interpretação da natureza que se tinha até então. O valor do método indutivo de Bacon consiste nos apontamento que ele realiza para as falhas e limitações do intelecto humano, demonstrando que a razão pode ser afetada por diversos fatores que atrapalham o conhecimento. Sem o método correto o “intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e as corrompe” (BACON, 1999, p.40). A razão é subordinada à experiência e ambas guiadas pela indução, pois apenas assim evitar-se-iam tais falhas. Expõe então uma “Teoria dos Ídolos”. As falsas noções que impedem o acesso à verdade. São eles: os ídolos da Tribo, que se apoderam da natureza humana, nossas superstições, emoções, sentimentos. Os da Caverna não diz respeito à raça humana, mas ao homem individualmente. Interpretamos a natureza a partir de nossa própria condição e suposições. Os do Foro são os que invadem o intelecto pelas palavras, pois estas possuem inúmeros significativos e podem nos levar até discussões vazias e viciosas. Por fim, 7

A técnica socrática é a maiêutica que visava extrair o conhecimento do interlocutor: “A relação do interlocutor de Sócrates com a verdade é uma situação de parto” (ROUGUE, 2005, p.52). Outro “pecado” da escrita, sendo estática; o mestre não interage com o discípulo. 8 Legitima porque essa dualidade platônica é oriunda de uma cultura órfica onde a alma do ser humano é divina, mas presa a um corpo mortal por certo período.

18

os ídolos do Teatro. São os sistemas filosóficos ou os axiomas aceitos por uma tradição ou autoridade. Aquilo que parece ser verdade e não se deseja refutar por estarmos habituados a eles. “O intelecto humano, quando assente em uma convicção (ou por bem aceita e acreditada ou porque o agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo” (Ibidem, p.42). A interpretação obtida pela razão é falha, sendo na verdade uma antecipação. Bacon estabelece nova ruptura, sua importância está no fato de expor as limitações deste instrumento cognitivo. É limitado recorrer com ênfase apenas aos dois filósofos, Platão e Bacon, que apresentam suas formas de investigação. Contudo, eles expõem algo recorrente na filosofia: a criação de “novas tábuas”. Porém, se entendermos as críticas nietzschianas, tais tábuas de valores parecem não terem se diferenciado significativamente ao longo dos séculos. Houve sempre uma concordância: a busca pela verdade; ela é posta como superior a mentira – essência superior à aparência. Isso nos serve para entender melhor a análise de Nietzsche, pois seu método, sua crítica aos valores gira em torno de sua crítica à verdade. Existem correlações que não poderiam deixar de serem ignoradas, estas, por sua vez, podem ser percebidas pelas duas correntes que a história da filosofia nos apresenta: racionalismo e empirismo. Embora Nietzsche se aproxime mais desta última, não se pode negar que ambas na visão do filósofo irão falhar como meio de proceder na investigação. Isso porquê, segundo Scarlett Marton: “racionalistas e empiristas, porém, acreditam que o sujeito tenta apreender o objeto tal como ele é. E Nietzsche dedica-se, justamente, a criticar a concepção de verdade como adequação” (MARTON, 2010a, p.209). A verdade é então um ideal forjado pela mente humana? Como se tornou um ídolo tão impetuoso que perdurou por séculos na filosofia ocidental? É no século XIX que a razão e a verdade sofreram ataques impetuosos – as marteladas de Nietzsche.

1.3. A iconoclastia de Nietzsche: a genealogia como destruidora dos ídolos

Não foram poucos os que buscaram eliminar Nietzsche do panteão filosófico. Acusações não faltaram: irracional, antissistemático, poeta enlouquecido, nazista, misógino, entre outros repúdios9. Uma primeira leitura descuidada de sua obra nos faz ser levado a concluir que Nietzsche apenas era mero destruidor dos costumes ocidentais, que pouco inovou – afinal criticar é parte da filosofia –, defendia algo como “a verdade de cada um”. Mas demonstrou ser um minucioso investigador da cultura. Longe de ser impreciso, adentrou profundamente 9

Esses preconceitos sobre Nietzsche, contudo, foram objetos de estudo e análise de Scarlett Marton. Cf. MARTON, Scarlett. Nietzsche filósofo da suspeita. São Paulo: Casa da Palavra, 2010b.

19

no pensamento ocidental. É essencial na medida em que se explica seu método de investigação, esclarecer alguns preconceitos. É nítida a veemência com qual o mesmo ataca nossos valores, se considerava dinamite justamente pelo fato de destruir tudo aquilo que foi santificado: Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo – de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido. Eu não sou homem, sou dinamite. (NIETZSCHE, 2008, p.102)

Neste ponto, Raúl Gabás Pallás explica que “Nietzsche é um herdeiro de um movimento iconoclasta na filosofia, nomes como Feuerbach, Max Stirner, Schopenhauer aparecem” e aponta ainda para uma duplicidade contraditória, pois “é iconoclasta na medida em que ataca os valores e ídolos da sociedade, a moral e o homem massa, por exemplo, e é um escritor fantástico devido a criação de imagens” (2012, p.28). Não é pelo fator iconoclasta que é original. Para Pallás temos “a tendência de ver na sua filosofia algo novo, que rompe com toda a anterior” (Ibidem, p.28). Ele menciona, por exemplo, que anterior a Nietzsche autores como Schiller já recorriam a divindades gregas10. E adicionamos também outro conceito em voga no continente europeu que apareceu no pensador em questão como SuperHomem ou Além do Homem. Em Crime e Castigo, Dostoiévski (2002) já apresenta essa tese como Homem Extraordinário. A característica original da genealogia – que consiste justamente no seu método ou procedimento de investigação – consiste no modo de analisar a cultura, derrubando ídolos onde muitos não acreditavam existir, onde muitos enxergaram o objetivo final, o cume da investigação, ele viu a mais antiga ilusão da humanidade: a verdade. A genealogia de Nietzsche reflete sua filosofia, nela não se pode encontrar qualquer imutabilidade ou eternidade. De modo que o método genealógico é um modo de evidenciar que os valores são criações humanas que se encaixam dentro de um contexto histórico e cultural, permitindo uma meticulosa análise do seu objeto: a moral. Sobre crivo genealógico ela perde sua autoridade de se impor ao homem como um conjunto de regras prontas e, ainda mais, passa a ser percebida para filósofo não do modo tradicional, isto é, normativa, mas antes de tudo uma moral valorativa ou, mais precisamente, os valores presentes na perspectiva que a engendrou. Derrubar um ídolo é precisamente questionar o valor dos valores – que “autoriza” o julgamento por parte dos homens. Safranski explica que para Nietzsche, “na moral se luta pelo pode de definir: quem se deixa julgar por quem” (SAFRANSKI, 2005, p.276).

10

O que Pállas aponta aqui é a nostalgia na Alemanha pela Grécia antiga que se inicia com Winckelmann.

20

Mas o que é criticar o valor dos valores? Nietzsche explicita essa questão na obra Genealogia da Moral – essa é, pois, a obra onde realiza tal tarefa e expõe seu método: Necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão – para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (moral como consequência, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa, medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado (NIETZSCHE, 2010a, p.12, grifo do autor).

A moral pode apresentar diversas facetas. Busca-se então entender de que forma ela se constitui, o que oferece, do que é sintoma. Para isso, porém, é preciso entender que tal metodologia não se estabelece como uma área separada do saber, ela é um instrumento que é constituído por diversas áreas do saber. Que se leia o trecho abaixo para tal compreensão: Alguma educação histórica, filológica, juntamente com um inato senso seletivo em questões psicológicas, em breve transformou meu problema em outro: sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau” e que valor têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São indício de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revelase neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro? (Ibidem p.08).

Elucida-se nesse ponto que o método se constitui de três grandes áreas do saber principalmente: a história, a psicologia e a filologia11. Com elas é possível chegar a um diagnóstico, por assim dizer, da cultura ou da civilização12, isto é, das consequências dos valores morais – o que já demonstra que nem toda moral será, necessariamente, degenerativa. Muitos que buscaram entender a moral pecaram por falharem com tais áreas. É o caso, por

11

Aqui vale a pena esclarecer e pontuar a interpretação de Michel Foucault para fornecer uma melhor compreensão da genealogia faz uma análise filológica dos textos nietzschianos, tanto que a genealogia marca uma das fases do pensador – mas neste caso não confundir com arqueologia, para isso Cf. YAZBEK, 2012, p.91, marcada por uma análise do poder. Em um primeiro caso temos a distinção presente em A Verdade e as Formas Jurídicas, entre invenção (erfindung) e origem (ursprung). Segundo o pensador “Quando [Nietzsche] diz invenção é para não dizer origem; quando diz Erfindung é para não dizer Ursprung” (FOUCAULT, 2005, p.14). O que foi inventando estabelece uma relação de poder na interpretação do francês. Já em outro texto intitulado Nietzsche, a genealogia e a história, ele irá distinguir origem de termos como proveniência (herkunft) e emergência (entestehung). Ele dirá que a “genealogia não é a busca de algo pronto e puro, que possui uma identidade preservada, o que se realiza é uma incessante investigação pelas descontinuidades e alterações históricas” (Idem, 2011, p.19). A “emergência determina o lugar onde as forças presentes no corpo entram em conflito, e que ocorre não em um campo fechado – como entendemos a primeira vista – mas em um não lugar, no interstício entre os dois lados que tentam dominar uns aos outros” (Ibidem, p.19). Ou seja, o conflito ocorre no próprio indivíduo decorrente das valorações morais da cultura. A tentativa de dominação não é um contra o outro, como uma guerra no sentido estrito da palavra, mas é o indivíduo contra si mesmo. Entrando em conflito com o que lhe é imposto. Os valores que são criados, que provêm ou emergem fazem parte deste confronto. São criações provenientes de diferentes culturas. “Foucault aplica à pesquisa histórica concreta ao princípio genealógico de Nietzsche, segundo o qual os fundamentos da Razão não são racionais e os fundamentos da moral não são morais” (SAFRANSKI, 2005, p.317). A genealogia remete então a filiações de tipos, não uma origem. Observação que só é possível ao olhar para todos os aspectos do método nietzschiano, tal como Foucault faz. 12 É válido lembrar que Nietzsche, inclusive em fragmentos do período de 1873, chega a sugerir que a tarefa do filósofo é justamente a de um “médico da civilização”, cuja tarefa é justamente ser um instrumento para analisar, daí o uso do termo diagnóstico.

21

exemplo, dos psicólogos ingleses, acusados de não possuírem o espírito histórico (Cf. Ibidem, p.16). A compreensão da genealogia exige a compreensão do modo como Nietzsche faz uso das áreas supracitadas, pois o mesmo tem suas maneiras peculiares de intervenção – lembrando que nenhuma trabalha isoladamente. Ao começar pela psicologia, à qual atribui vital importância. Scarlett Marton (2010a) explicita que a psicologia começa a ser tratada como disciplina específica com Christian Wolff, porém, ele o fundamentou na metafísica – na noção de alma, entendo que era possível revelar, por meio da experiência, o que existia a priori na alma. Isso fazia com que existisse uma essência ou imutabilidade. Nietzsche, por sua vez, influenciados pelos franceses – que ele entende como serem de fato os psicólogos – La Rochefoucauld, por exemplo, relaciona a psicologia não com a metafísica, mas com a história, inserindo os valores morais em um tempo e espaço – os valores morais podem surgir, modificar-se e até desaparecer. Como se origina dentro de uma história, os valores estão ligados aos tipos de indivíduos, à organização social, fazendo com que não haja um princípio transcendente à conduta do homem. Marton continua a esclarecer e pontua que enquanto a psicologia é a ciência que estuda a origem e a história dos sentimentos morais, a história, por sua vez, pode aparecer de várias maneiras, mas: Em matéria de moral, o trabalho do historiador auxiliaria a explicar as “condições de existência” de determinados povos, apontando os motivos que os levaram a concebê-las de tal modo; ajudaria a esclarecer os costumes de grupos sociais diversos, assinalando imóveis que fizeram instituíssem; permitiria elucidas os sentimentos morais de indivíduos em diferentes épocas e lugares, mostrando as razões de emergirem e se conservarem [...] Contribuiria para denunciar as normas de conduta que se apresentam como absolutamente necessárias, apontando o momento de produção; concorreria para atacar os juízos que se pretendem universalmente válidos, mostrando as circunstâncias de seu aparecimento; colaboraria enfim, para desmascarar as generalizações indevidas, ressaltando a especificidade de cada caso (Ibidem, p.93).

História e psicologia trabalhando juntos conseguem obter características da cultura e dos indivíduos que criaram tais valores. Extinguindo a metafísica do âmbito moral, inverte as posições: não há nada essencialmente acima do homem, algo que possa ser sustentado pela promessa de uma vida melhor, além desta, qualquer coisa eterna, não é o homem a criatura, ele é o criador. É interessante perceber – inclusive para fazer justiça à originalidade do autor – que Nietzsche não faz mera distinção entre diferenças culturais, mas tenta entender as condições psicológicas e fisiológicas da cultura – ou dos indivíduos – que criaram determinada moral. O valor é sempre consequência, resultado de tais condições; os sintomas de um povo estão sempre ligados às valorações por eles criadas. É por isso que, como salienta Marton, não há, em Nietzsche, uma distinção fundamental entre o físico e o psíquico – não há

22

diferença, então, entre psicologia e fisiologia (Cf. Ibidem, p.105). A análise do genealogista é sempre da condição psicofisiológica do indivíduo. Já a filologia é outro aspecto importante. Ela oferece a genealogia formas de entender de que forma eram utilizados ou como foram apropriados certos termos. O próprio filósofo elabora um exame da linguagem ao buscar entender do ponto de vista etimológico as designações para “bom” – que estava ligado à nobreza de espírito – e também como ocorre a designação de “ruim”, tanto que a própria língua alemã serviu para evidenciar que o ruim – schlecht – está ligado ao simples – schlicht (Cf. NIETZSCHE, 2010a, p.18). Mas no que diz respeito às questões linguísticas iremos nos ater no capítulo II. Como dito: o bom está ligado aos nobres, ou seja, é uma consequência do indivíduo que a criou. Nietzsche escrevera: “[...] eu descobri que todos os juízos supremos de valor, todos os que dominam a humanidade, pelo menos a humanidade domesticada, podem ser reduzidos a juízos de homens esgotados” (NIETZSCHE 1888 apud MACHADO, 2002, p. 89). Todavia, se existem juízos de homens esgotados, não se podem exigir que os mesmos servissem para tipos distintos de homens – os fortes. A avaliação é sempre uma questão e perspectiva. Como fica claro na passagem das aves de rapina e dos cordeiros 13. As aves são fortes e imponentes e ameaçam as pobres ovelhas indefesas: surgindo a contraposição Bom e Mau x Bom e Ruim. O nobre, o forte, é bom por si só e não necessita de alguém para afirmar isso: suas ações são boas a partir dele e ruim é todo o resto: pois suas ações resultam de afirmações. Já o fraco – as ovelhas – atribuem para os fortes a noção de mau – já que são incapazes de serem fortes – e somente depois, fazendo oposição ao mau elas se definem como bom. O tipo fraco não se define por si, mas pelo outro, suas ações são reações. Isso relata o caráter perspectivo dos valores: “Da perspectiva do cordeiro [...], mau é o forte e bom o fraco. Da perspectiva da ave de rapina [...], bom é o forte e ruim é o fraco”. (MARTON, 1993, p.52). Ilustra-se assim dois tipos de moral: a de escravos e a de senhores. O indivíduo passa a interiorizar os valores, passando do campo político para o espiritual. Expõe-se aqui não a superioridade de um ou outra, mas o processo conflituoso onde se constitui a cultura: o bom da aristocracia, passado ao campo espiritual passa a significar pobre, fraco. Podemos até arguir que o argumento nietzschiano é, atualmente, óbvio ou “comum”. No entanto ainda estamos presos a Platão, isto é, buscamos sustentar um valor em bases metafísicas – mas apenas enganamo-nos quanto a isso. Sustenta-lo pela razão ou ciência, não pela fé ou crença é ainda idealizar: não estaríamos ainda no plano metafísico platônico? –

13

Essa fábula aparece na primeira dissertação, §13 da Genealogia da Moral.

23

queremos a verdade. Se sim, isso sugere que podemos conhecer algo em si ou que se pode estabelecer algo a partir de uma única perspectiva. Porém “conhecer não é explicar, mas interpretar”, como elucida Roberto Machado, “não existe interpretação única do mundo, mas várias e assim se dá a filosofia de Nietzsche, onde a vida é um processo de infinitas interpretações” (2002, p.94). Vida é um processo interpretativo de atribuir diversos significados à nossa “parca existência”. Conhecimento é um processo de criação que se serve da linguagem. É irrisório concebe-lo como algo neutro ou puro, toda e qualquer interpretação está relacionado ao intérprete – suas condições físicas e mentais. Nietzsche opõe-se assim à Spinoza. Como explica Foucault (2005, p.20): “Spinoza dizia que para compreender as coisas em sua essência é necessário apaziguá-las as paixões em relação a elas. Para Nietzsche isso não apenas não é verdade, como o que acontece é exatamente o contrário”. É impossível fundamentar um valor sobre o cunho de índole “pura”. Os ídolos da moral estão ligados aos nossos conhecimentos. Nossas interpretações são inerentes às nossas paixões, afetos, instintos: provêm de nossos aspectos fisiológicos, isto é, do corpo. Este pode ser entendido como a morada dos impulsos e instintos, reprimir sua energia vital é fatal ao ser humano, sendo que não é preciso muito esforço neste caso para compreender as críticas que o filósofo remete ao cristianismo. Não é incomum se deparar com valorações depreciativas ao corpo: Digo porém: Andai em Espírito e não cumprireis a concupiscência da carne. Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro; para que não façais o que quereis. E os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências (GÁLATAS,5,16.17.24).

Este trecho é demonstração clara da dicotomia estabelecida pelo cristianismo: corpo x espírito – ressaltamos, no entanto, que dualidade não é característica exclusiva do pensar cristão. Varias são as doutrinas que dilaceram o homem. Crucificar o corpo pelo beneficio da alma modifica a noção de ser e de pensar o ser. Deste modo “uma moral, cultura ou qualquer produção humana expressa seu estado fisiológico de impulsos. Se estes estivem bem hierarquizados será benéfica e capaz de criar, mas se, pelo contrário, estiverem desagregados, há doença e servem apenas para conservação” (FREZZATTI JUNIOR, 2006, p.24). Desse modo, já podemos entender que se for possível encontrar uma ética na obra de Nietzsche, ela é desvinculada de qualquer fundamento metafísico. Ela parte da hierarquia de impulsos e instintos do ser humano, sendo uma relação fisiológica. E a genealogia prioriza uma análise que possa determinar de que modo os valores morais são degenerativos ou revigorar a vida. Diferente do que se poderia pensar, não consiste em saber qual a melhor ou a

24

boa perspectiva – a do nobre ou a dos fracos – mas passa-los por esse critério vida através de várias perspectivas, pois apenas uma visão ampla pode fornecer um melhor diagnóstico.

1.4. Nietzsche niilista? Se há algo injusto nas considerações ao filósofo é considera-lo niilista. É bem verdade, o método genealógico é terminantemente “destrutivo”. Mas o que esperar do filósofo? Uma concepção ideal de mundo? Nisso consiste a injustiça: A última coisa que eu prometeria seria “melhorar” a humanidade. Eu não construo novos ídolos; os velhos que aprendam o que significa ter pés de barro. Derrubar ídolos (minha palavra para ‘ideais’) – isto sim é meu ofício. (NIETZSCHE, 2008, p.15)

A genealogia aparece como ferramenta utilizada para destruir os ideais e valores vigentes na cultura moderna e que envenenavam o ser humano, estes sim, niilistas14. A mais alta máxima do niilismo aparece na Gaia Ciência: “Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos” (Idem, 2011b, p. 148). Frase onde constantemente se deve atenuar para as más interpretações. Principalmente, não é uma provocação direcionada a religião, pode estar relacionada, mas não é a chave da questão. Ora, a pergunta pela morte de deus remete a outra: o que significa crer ainda na verdade? O pensamento ocidental entra em xeque. É bem verdade que uma morte epistemológica de deus já havia ocorrido muito tempo antes15. Mas o que deve ser considerado é que no aforismo 125 da Gaia Ciência o anúncio não remete ao fato de sua morte, mas das consequências que se dão quando o homem finalmente compreender que Ele morreu, sendo assim, Nietzsche não mata deus. Apontara para tudo que se dará com o fim da metafísica, com o fim da estrutura dualística do pensamento ocidental. Não apenas deus não será mais uma força a ser considerada, mas também tudo aquilo que transcende o sensível – dando espaço para uma nova visão de mundo. Embora o pensamento socrático platônico tenha acarretado nesta dualidade, já que aquela dialética consistia em buscar a essência fora do sensível, nos acostumamos aos ideais – eis nossa herança platônica, segundo Nietzsche: “[...] todas essas aspirações ao Além, ao que é contrário aos sentidos, aos instintos, à natureza, ao animal, em suma, os ideais até agora 14

“Precisamente nisso enxerguei o grande perigo para a humanidade, sua mais sublime sedução e tentação – a quê? Ao nada?” (NIETZSCHE, 2010a, p.11). 15 Lefranc já aponta que não faz sentido entender Nietzsche como o “assassino” de deus, para isso refere-se às considerações de Schopenhauer que escreve: “Desde Kant a prova cosmológica, a verborreia do Absoluto não veste mais do que um fantasma, uma criatura ministerial de espécie filosófica” (SCHOPENHAUER 1847 apud LEFRANC, 2005, p.199). Nietzsche já compreendera tal fato, seria estranho pressupor o contrário de um leitor atento de Schopenhauer como Nietzsche. É a partir dessa interpretação que baseamos as considerações presentes no trabalho.

25

vigentes, tornado hostis à vida, difamadores do mundo, devem ser irmanados à má consciência” (2010a, p.78). A grande crítica não é estritamente direcionada a Platão, mais amplamente, é ao modo de pensamento criado pela filosofia ao longo da história. Nietzsche viveu em uns períodos onde ideais como progresso e igualdade de classes resultavam desse modo de pensar, inquietava-se os intelectuais. Mas assim como religiões que prometiam “outro mundo”, estes constituíam no mesmo erro basicamente: propõem algo novo, mas transcendem o sensível, desprezando-o quase que por completo. E isso era fadar-se ao fracasso e decadência – não pelo fato de ansiar por algo novo, mas por desprezar as energias vitais do corpo para tal concretização. De modo que apenas uma interpretação deturbada entende o filósofo como niilista, sendo seu objetivo totalmente o oposto: supera-lo. Mas é bem verdade que ele não o nega totalmente. O professor Lawrence Hatab esclarece isso: “Para Nietzsche, o niilismo é benéfico somente como estágio transicional que supera a tradição e abre espaço para algo novo [...]” (2010, p. 121). Percebe-se que em um sentido ativo o niilismo é estagio transitório, quando o homem supera os valores decadentes em prol de outros saudáveis – algo que o homem deve realizar por si. É desse modo que sua filosofia de início não parece agradável: joga-nos meio ao vazio e ao abismo, mas é justamente por não fornecer ao seu leitor uma base onde se manter que ele consegue realizar a tarefa de fazer o homem pensar por si e não como ele. Seu estilo de escrita é o melhor exemplo disso16. Deste a genealogia se mostra como ferramenta que vai desmascarar a “veracidade” dos valores e seu absolutismo, destruindo os pilares que os sustentam. A filosofia de Nietzsche “possui duas vertentes, uma destrutiva onde se encaixa a noção de valor e a genealogia e outra construtiva, onde entram conceitos como vontade de potência e eterno retorno” (MARTON, 2010b, p.89). A noção de eterno retorno, por exemplo, iremos tratar na parte final de nosso trabalho, onde fica mais claro que para o autor não se trata de destruir, não se trata de dar respostas. Contudo, a desconstrução de ideais edificados e de valores supra plantados sob a terra se faz necessário para dar lugar a algo novo. O humano é um ser capaz de criar, mas tal habilidade vem sendo obscurecida na medida em que buscamos a segurança de um terreno plano e seguro, onde tudo está pronto. Caminhar por esse terreno é tarefa fácil, mas não devemos nos enganar, a filosofia nietzschiana abre espaço

16

Nos referimos ao aforismo, muito utilizado pelo filósofo: “o que é o aforismo – modo de expressão privilegiada por Nietzsche – senão a possibilidade de perseguir uma ideia partindo de diferentes perspectivas?” (MARTON, 1993, p. 47)

26

não para caminhar num chão seguro, mas o de dançar sobre pedras pontiagudas a fim de aprendermos a voar.

27

CAPÍTULO II: LINGUAGEM E VERDADE OU COMO SOBREVIVE A MORAL 2.1. Uma ou duas considerações sobre a questão da verdade na história da filosofia Mesmo que tentássemos, seria impossível fornecer uma resposta absoluta para a questão o que é a verdade? A complexidade do termo não se limita apenas às questões semânticas, mas se deve à importância dela para muitos pensadores – para muitos é o eixo central da filosofia. A importância é tanta que quando abrange o âmbito ético e moral se torna uma base para fundamentar, sustentar um determinado valor. O tempo que um valor perdura é relativo ao tempo em que os indivíduos atribuem a ele um grau de veracidade – “esse valor é bom e isso é verdadeiro”, dizemos. Algumas questões são importantes para a compreensão e desenvolvimento do trabalho, e embora seja impossível abordar o tema completamente, buscaremos nos ater a essas questões. Primeiramente deve-se pensar em algumas questões sobre a verdade: ela deve ser descoberta ou produzida? Está nas coisas ou fora delas? Pertence à terra ou é algo divinizado em um plano metafísico? E, principalmente, qual é o critério de verdade que se busca na filosofia? Como dissemos anteriormente o pensamento filosófico rompe com o mito justamente por esse ser pautado na crença: mas o que sustenta então uma verdade? Ora, claro que na crença também, a diferença é que esta passa antes por uma verificação. Assim, de inicio temos dois caminhos fundamentais a serem percorridos pela filosofia: o da razão e da empiria. A primeira grande concepção de verdade é a de adequação ou correspondência das coisas à mente, exemplo desta é o pensamento socrático-platônico. Uma das melhores definições de verdade e o meio de atingi-la encontra-se na célebre alegoria da caverna de Platão (Cf. PLATÃO, 1940, p.245-247). O individuo acorrentado na caverna apenas vê a sombra das coisas de fora refletidas na parede. Ele julga que aquilo é real, pois é apenas com isso que teve contato. Ao se desprender e sair da caverna pode contemplar a essência, vislumbrar o sol, de inicio apenas refletido, pois leva tempo para acostumar a visão. Buscar a verdade é um caminho árduo e não se encontra no plano daqueles que se contentam com as coisas pelo que elas não são – meras mimeses dos objetos reais. Apenas quem segue o caminho da filosofia poderá atingir a verdade. Em Platão a verdade está fora do indivíduo em um plano metafísico, as coisas existem em si, isto é, se algo é belo ou justo, é porque é uma imitação do belo e do justo em si. Cabe ao verdadeiro filósofo buscar atingir esta essência. Esse brilhante grego divide o mundo em dois planos: sensível e inteligível. No inteligível é onde habitam as ideias – que são as essências. Dos dois processos cognitivos para atingir a

28

verdade o filósofo até admite “certo valor aos sentidos quando se trata percepções comuns que não incitam contradição, mas aquelas que oferecem contradição apenas podem ser analisadas pela razão” (Cf. Ibidem, 1940, p.256-257). O diálogo Fédon relata os últimos momentos de Sócrates antes de tomar o veneno que o matara. O ponto interessante deste diálogo é que mesmo perto da morte ele se demonstra tranquilo, isto porque viveu a vida digna – a da filosofia – e agora poderia alcançar o objeto de desejo de todos os filósofos. Argumenta sobre a imortalidade da alma e que esta já existe antes do corpo, devido a isto ela pode chegar ao plano onde se encontra as coisas em si e de volta ao corpo o homem instrui-se lembrando17. Aqui é o ponto crucial da filosofia platônica: apenas se libertando do corpo o homem podem atingir a verdade, o corpo é a morada do sensível, das paixões e atrapalha o processo cognitivo: “durante too o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos!” (Idem, 1991, p.67). A verdade de Platão é aquela que existe no plano metafísico. Já Aristóteles segue com a concepção de verdade como correspondência18, mas discorda em diversos pontos de seu mestre. O pensamento aristotélico sobre a verdade é mais flexível. Para o estagirita a verdade consiste na concordância entre o enunciado e o objeto: dizer o que a coisa é tal como ela é. Concorda com Platão em um ponto, a razão é superior aos sentidos: “o falso e o verdadeiro não estão nas coisas, mas no pensamento” (ARISTÓTELES Apud STIRN, 2006, p.25, grifo do autor). Porém não despreza as percepções. Para adequar o predicado as coisas é necessário uma ligação entre o exercício do intelecto e o dos sentidos. Para dizer o que o ser é ele elabora dez tipos de categorias19 cuja quais correspondem a uma característica das coisas, mas algumas dessas apenas dizem respeito sobre aspectos acidentais do objeto, assim na coisa existe a essência que a define. Mas ele não admite um conhecimento absoluto anterior ao conhecimento construído tal como na reminiscência20. Pelo contrário ele é atingido pela demonstração, pela indução ele observa os fatos e através da dedução chega à verdade – ou seja, verdade é o particular, de modo que François Stirn é pontual quando afirma: “Pelo lugar que ele atribui à demonstração (toda ciência é silogística), Aristóteles é racionalista. Já pelo papel que reconhece à indução, é empirista” (2006, p.34). Temos na Grécia o cerne das linhas de pensamento para a definição

17

Algo que Platão chamará de Teoria da reminiscência. “Aprender, diz ele, não é outra coisa senão recordar” (PLATÃO, 1991, p.76). 18 Correspondência ou então adequação. Esse é um dos critérios para a verdade. 19 As categorias são: Substância, Quantidade, Qualidade, Lugar, Tempo, Relação, Posse, Ação, Paixão e Posição. 20 “Para Platão o branco existe e por isso existe a brancura das coisas. Aristóteles pensa o contrário, a brancura das coisas exista e por isso existe o que chamamos de branco” (Cf. BARNES, 2001, p.77).

29

da verdade na filosofia. Embora muito do que foi estabelecido é superado, admitido ou ignorando em alguns aspectos pelos que os procedem, a herança desses dois filósofos perdura. No período moderno o conflito do conhecimento é entre razão e experiência. Um dos grandes defensores da razão, e que com destreza formula a noção de sujeito pensante – um Eu que governa –, é Descartes. O filósofo racionalista busca atingir ideias claras e distintas, algo precisaria ser evidente para ser verdadeiro. Formula uma Regra Geral de Verdade e com estruturas puramente racionais sustenta essa regra com a afirmação da existência de deus, como explica Raul Landim Filho: “a prova da existência e da perfeição de deus é essencial para que a Regra Geral de Verdade seja validada” (1992, p.117). Sendo assim, o próprio autor ainda explica que a questão central do cartesianismo é o problema da certeza e não o da verdade, pois a verdade é para Descartes aquilo de que não se pode duvidar (Cf. Ibidem, p.118). Ele se pauta em bases metafísicas e faz uso – como outros filósofos – da correspondência de seu enunciado com a coisa. E é sobretudo nesses liames que se pauta a crítica de Nietzsche: na verdade como correspondência.

2.2. A concepção metafórica da verdade em Nietzsche Poder-se-ia dizer que Nietzsche é um filósofo que foge da tradição ocidental sem nenhum problema. Contudo, um dos motivos que nos permite fazer isso seria compreender sua relação, seu procedimento investigativo e como os elementos se entrelaçam em sua filosofia de maneira distinta. A ligação para com a verdade acaba por ser a base dessa sua característica. Ele, diferente de outros, não estabelece a verdade como superior, pelo contrário, questiona justamente essa hierarquia estabelecida, partindo disso, ao questionar o valor da verdade, realiza algo notório. Enquanto muitos pensadores fundamentam uma lógica, ontologia, metafísica ou mesmo uma epistemologia para que se possa enfim chegar a uma ética (que lida com o campo da moral), Nietzsche, por sua vez, entra na contramão dessa regra. A moral ou ética não poderia ser estabelecida posteriormente, pois a própria verdade já seria um preconceito moral na medida em que se entenderia ela como superior. Dessa maneira seria possível estabelecer outras concepções de verdade que não fossem, ou melhor, não possuísse a pretensão de ser imutáveis – nesse sentido, a linguagem desempenha um papel fundamental para tais perspectivas. A concepção nietzschiana da verdade acaba por derrubar o caráter sacro desta palavra. Poderíamos levantar a seguinte questão: está a humanidade inclinada à verdade? No cerne dessa discussão se encontra a linguagem, que estabelece vínculos entre os homens e a

30

realidade. Em Nietzsche a linguagem não aparece como mero instrumento de lógica, mas acima de tudo é também estético na medida em que é criadora, manipuladora e sedutora. Ele denuncia o tratamento atemporal; os signos e significados são constituídos historicamente. O desprezo pelo devir da linguagem resulta em uma perspectiva “sem vida” sobre as coisas, isto é, dá-se valor ao que é frio e de significação simples, pois nisso consiste a função linguística associada à consciência: simplificar a realidade. A desqualificação da linguagem nos leva a crer em signos petrificados e a ignorar suas nuances. E nessas nuances consiste a crença da possibilidade de “verdade” – que para o filósofo ocorreria devido nossos hábitos gramaticais. Logo só faz sentido em falar de verdades – no plural – sendo que ela aparece como uma metáfora – passível de interpretação, concepção que adota em um de seus primeiros textos: O que é, pois, a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas que se tornaram desgastadas e sem força sensível, moedas que perderam seu troquel e agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais como moedas (NIETZSCHE, 2011c, p36).

É preciso cuidado com essa passagem para não interpreta-la de modo objetivo e definitivo, como se a definição de verdade para Nietzsche fosse simplesmente essa, uma metáfora. Por este motivo, acatamos ao alerta de Rogério Antônio Lopes: [...] tal passagem não deve ser lida de maneira literal. Ela não é apresentada com o intuito de servir como uma definição da verdade, mas como a expressão de uma atitude irônica de Nietzsche em relação ao que ocorre em grande parte das nossas trocas linguísticas, nas quais a maioria das pessoas estão psicologicamente seguras de estar de posso da verdade, quando de fato estão dando prosseguimento a um jogo de cartas marcadas. (2006, p.82)

Não há uma definição de verdade, mas um esclarecimento sobre nossos processos mentais na sua construção. A capacidade criativa do homem cria para si uma metáfora que assume dois sentidos: a de metáfora propriamente dita, e outra onde ela torna-se realidade ou o desejo de que seja aquilo que queremos – apresentando-se como vontade de verdade: “Por natureza, o homem não existe para o conhecimento – a veracidade (e a metáfora) produziu a propensão para a verdade. Assim um fenómeno moral, esteticamente generalizado, dá o instinto intelectual” (NIETZSCHE, p.64). Quando a metáfora é tida como realidade? Quanto torna-se conceito, isto é, quando elimina-se as diferenças: Todo conceito surge pela igualação do não-igual. Tão certo como uma folha nunca é totalmente igual a uma outra, é certo ainda que o conceito de folha é formado por meio de uma arbitraria abstração dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do diferenciável, despertando então a representação, como se na natureza, além das folhas, houvesse algo que fosse “folha”, tal como uma forma primordial de acordo

31

com a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, contornadas, coloridas, encrespadas e pintadas, mas por mão ineptas, de sorte que nenhum exemplar resultasse correto e confiável conforme uma cópia autêntica da forma primordial (Idem, 2011c, p.35).

A partir das características essenciais do primeiro, definimos o segundo, pois acreditamos em um padrão predefinido. Apenas sou capaz de dizer a grama é verde porque já tenho a noção de grama e de verde, assim busca um adjetivo para o substantivo. Parece absurdo querer negar essa frase, mas a proposta nietzschiana não se restringe nessa superficialidade. Ele busca compreender a relação do sujeito e do objeto no cerne linguístico, entendo como a metáfora surge quando tentamos definir ou modelar algo. Ao falar sobre tons, formas e matérias acreditaram saber ou poder dizer algo sobre as essencialidades da coisa. Devido ela nunca ser específica, consiste em dois aspectos: ela dá sentido a algo que parece não ter nenhum, e faz isso a partir das semelhanças entre as duas coisas absolutamente sem ligação. De modo que ela é apenas validade dentro de um contexto, não podendo ser generalizada. Ao dizer “essa mulher é uma flor” – os traços físicos de uma mulher em nada se assemelham as formas da flor, mas é fácil perceber o significado, pois certa noção de beleza faz a junção entre os dois objetos. Mas o sentido só existe onde esta metáfora é conhecida e aceita. E se as palavras tem valor histórico, o mesmo vale para as metáforas, não se pode esquecer-se do contexto por trás dela21. A linguagem, desse modo, não pode ser vista dentro de perspectivas lógicas e científicas. Mas como sendo, talvez, a mais antiga “obra de arte” da humanidade – os tipos vulgares a conceberam como adornamento e ferramenta de utilidade. Queremos exaltar o perigo da ótica frígida, pois se dentro dos campos artísticos, como a música, a poesia ou o teatro a “flor” pode significar mais que uma flor, no rigoroso sistema racional do pensamento ocidental – que é este olhar frígido por excelência – ela significa apenas uma flor – a palavra é enrijecida, como dissemos antes, tornada conceito. E é deste modo que se constitui a realidade, ou a moral. É fato levar essa ótica aos campos mais “abstratos”, isto é, onde não temos apenas a matéria, como a ética, por exemplo. Para Nietzsche, seguimos o mesmo habito gramatical: “denominamos um homem honesto; perguntamos então: por que motivo ele agiu

21

Uma célebre música de Caetano Veloso e Gilberto Gil intitulada Desde que o Samba é Samba possui um trecho bastante conhecido no “meio metafórico” – quase um clichê para o exemplo, mas que nos é valioso – que pode ilustrar essa questão: “O samba é o pai do prazer, O samba é o filho da dor”. O uso figurativo das palavras (um gênero musical receber o adjetivo de pai) e o significado das palavras só fazem sentido dentro do contexto da metáfora: O samba é visto como um movimento de continuidade e afirmação dos valores culturais negros (Cf. NAPOLITANO & WASSERMAN, 2000, p.180), logo sua origem é determinada por um povo que sofreu, no entanto proporciona alegria aos ouvintes, dessa forma a metáfora ganha todo o sentido e significado: neste ponto de vista, pois a beleza da metáfora consiste em despertar - e possibilitar – as mais diversas interpretações.

32

hoje tão honesto? Nossa resposta costuma ser a seguinte: em função de sua honestidade” (Ibidem, 2011c, p.35). E sobre isso não vigora uma causalidade, mas uma relação estética. Gostaríamos então de levantar uma questão provocativa: superamos Nietzsche? A crítica à verdade deixa claro que ele acusa para além das diferenças e contradições de um valor dependendo da cultura ou sociedade – tal como tratamos ingenuamente a ética atualmente –, mas a forma como pensamos na formulação dos mesmos. Na concepção do filósofo, escondemos algo atrás de arbustos e voltamos a procurar no mesmo local, é possível vangloria-se desse “achado”? Critica as raízes platônicas da filosofia, na dialética, por exemplo, o indivíduo parece encontrar algo que o próprio criou, sendo assim, todos os valores nada mais são do que ideais, a ética permanece em demasia no campo do inteligível. Formulase um padrão onde enquadrar o justo, o honesto, o bom, etc. E esse padrão é, como demonstrado na genealogia, estabelecido pelas relações de conflito entre os tipos de homens. Não superamos Nietzsche, não superamos nem mesmo Platão! A relação da verdade como metáfora nos permite enxergar que ela só existe na vida gregária: A própria relação de um estímulo nervoso com a imagem gerada não é, em si, algo necessário; mas, quando justamente a mesma imagem foi gerada milhões de vezes e herdada por muitas gerações de homens, até que, por fim, aparece junto à humanidade inteira sempre na mesma sequência da mesma ocasião, então ela termina por adquirir, ao fim e ao cabo, o mesmo significado para o homem, como se fosse a imagem exclusivamente necessária e como se aquela relação do estímulo nervoso original com a imagem gerada constituísse uma firme relação causal[...]. Mas o enrijecimento e a petrificação de uma metáfora não asseguram coisa alguma à sua necessidade e justificação exclusiva. (Ibidem, 2011c, p.42)

O ser humano é dono da incrível capacidade de relacionar seus estímulos nervosos com a imagem, e através da repetição e memória ocorre uma mumificação 22. A verdade não existe como uma unidade eterna, mas consiste em um devir, eis a metáfora: o contexto facilita a compreensão do seu significado, mas está longe de ser algo que pode interpretar-se de maneira singular, uma verdade é criada; não descoberta como se já estivesse lá – localizado em algum canto sagrado da humanidade.

2.3. Supondo que a verdade seja uma mulher

22

“Vocês me perguntam o que é idiossincrasia nos filósofos?... Por exemplo, sua falta de sentido histórico, seu ódio a noção mesma do vir-a-ser, seu egipcismo. Eles acreditam fazer uma honra a uma coisa quando a deshistoricizam, sub specie aeterni [sob a perspectiva da eternidade] – quando fazem dela uma múmia” (NIETZSCHE, 2010b, p.25, grifo do autor)

33

Já é nítido que desenvolver de modo satisfatório a noção de verdade para Nietzsche é difícil, por esse motivo, o uso de todos os elementos para interpretar a questão é o essencial. Assim gostaríamos de chamar a atenção para o trecho inicial da obra Além do Bem e do Mal: “Supondo que a verdade seja uma mulher – não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres?” (Idem, 2000, p.07). O filósofo relaciona a verdade e mulher, e isso proporciona possibilidades de se adentrar a fundo nessa questão. É preciso deixar claro: a visão da mulher nas obras do autor são pontos para intermináveis debates, pois há quem o acuse de misoginia, enquanto outros fazem sua defesa. É nítido que em algumas vezes nosso autor parece se dirigir as mulheres de forma insultante, contudo, esse ponto é interessante e precisa ser tratado com cuidado. Lidamos com um raro estilo em filosofia. Uma das principais características nietzschianas é o uso de figuras e imagens para representar um tipo. Dessa maneira defendese, por exemplo, que ao falar em mulher não se limita as questões de gênero, mas sim ao arquétipo que representa o feminino. Sem mencionar o tom irônico e provocativo que usa em seus textos. Em alguns de seus textos propõe-se a criticar ideias que dizem respeito à questão de gênero, como, por exemplo, a emancipação da mulher. Porém não se deve deixar enganar, não é algo contra a mulher em particular, mas contra a ideia de igualdade – da mesma perspectiva criticou a democracia. Todos esses elementos exigem um cuidado especial para lidar com um tema tão tênue. Nossa intenção aqui é, brevemente, fazer algumas considerações que podem auxiliar a compreensão das linhas subsequentes de nosso trabalho. Em Assim Falava Zaratustra, na parte intitulada Das velhas e novas mulherzinhas, o autor expõem certas considerações que a princípio deixariam qualquer mulher desgostosa. Ela é posta como um “brinquedo para o guerreiro”. Um brinquedo, mas um brinquedo perigoso, pois a mulher é acima de tudo um enigma. Em diversos momentos Zaratustra diz que deve-se temer a mulher. É assim que podemos notar certas características desta figura, teme-la é, antes de qualquer coisa, ter cautela na medida em que o homem quer a mulher, pois precisaria domá-la: “’Vais ter com as mulheres? Não esqueças o chicote!’”(Idem, p.65). Essa domação, contudo, não é estabelecer uma hierarquia machista do tipo: homem acima da mulher, mas entender que a segundo, ao contrário do primeiro, está próximo do que é da natureza, do sensível, do instintivo – características que Nietzsche sempre prezou. Eis a crítica ao feminismo como crítica à igualdade, até mesmo à democracia23. Querer a igualdade é abdicar

23

Scarlett Marton esclarece que sua crítica ocorre na medida em que a ideia de igualdade é um nivelamento dos homens e, que essa própria ideia parece ser antinatural ao homem, pois se existe um direito é porque não há igualdade, há um não-direito. Também não se pode exigir um mesmo comportamento de todos, isso é

34

de características próprias que nos distanciam do nivelamento – estar próximo da natureza é uma característica da mulher24. São dadas essas características que o autor assemelha a sua imagem da mulher com a verdade. Nossa relação do querer conhecer algo verdadeiramente é um conflito buscando domínio – nunca aniquilamento. Sugerir então a verdade como mulher é fazer uma provocação, pois as duas se contrapõem: “Mas não quer a verdade: que interessa à mulher a verdade! Desde o início nada é mais alheio, mais avesso, mais hostil à mulher que a verdade – sua grande arte é a mentira, seu maior interesse, a aparência e a beleza” (NIETZSCHE, 2000, p.140, grifo do autor). A relação entre conhecimento e mulher é essa de domínio, buscar o controle, isso significa obter a verdade sobre algo e, como bem sabemos, a verdade é para Nietzsche criação, não existindo uma, mas inúmeras verdades, onde o domínio se tornaria impossível – o conflito é eterno. O dogmático é mais iludido no caminho da filosofia, sua crença é a mais absurda: a de acessar a verdade tal como ela é, como se não houvesse disfarce e para isso apenas faz uso de sua imaginação, Marton (2010c, p.177) assinala bem isso ao escrever: “Ao recusar o perspectivismo, os filósofos dogmáticos ignoram que o pudor é a virtude feminina por excelência. Incautos, eles querem tudo ver. Sem constrangimento, contam despir a mulher com os olhos; sem embaraço, esperam desnudar por completo a verdade”. Não há verdade nua – tentar algo assim é como violentar uma dama, é agir de modo patético com os mais sutis flertes sistematizados dos “homens cultos”. Não há um método ideal para adquirir domínio sobre aquilo que é instintivo, a natureza sempre quer prevalecer. É difícil compreender a figura da mulher ou do feminino desvinculado da questão de gênero. Talvez – e isso são meras considerações e devaneios, suposições de uma intepretação de um ser contemporâneo/moderno que se distancia de modo brutal do período clássico grego, aquele de Homero, mas também de Safo – o que se poderia considerar seja: quando na antiguidade clássica era possível a todos contemplar e viver as pluralidades do divino – pois o politeísmo permite essa característica – o cristianismo delimita muito bem. O cristianismo é machista ao reduzir a imagem da mulher, do feminino, a apenas uma figura. Em O anticristo declara:

gregarismo. Para a autora o filósofo preza essas liberdades individuais (Cf. MARTON, 2010b, p.72-80). Isso nos leva a pensar Nietzsche aqui como defensor de características próprias, sendo que querer a igualdade é abdicar delas, o que seria danoso, não necessariamente aceitar a submissão, mas querer entrar na esfera que pertence ao homem/masculino, levando em conta que Nietzsche é um crítico dessa esfera, julgando-a ser racional demais. 24 Vale mencionar aqui que os elementos da natureza, na mitologia grega, eram remetidos a deusa Gaia – uma figura feminina.

35

Deus tem de ser jovem. Para o fervor das mulheres coloca-se em primeiro plano um santo bonito, para o dos homens, uma Maria. Isso com o pressuposto de que o cristianismo quer predominar num terreno onde cultos de Afrodite ou Adônis já determinaram o conceito de culto (Idem, 2007, p.28).

Uma Maria para os homens. Não há como ser mais claro: a imagem da mulher, no cristianismo, foi produzida para os homens, não para as mulheres. Uma Maria, um ser imaculado. Porque não dizer que essa criação não foi apenas feita para homens, mas por homens. Pela masculinidade – domar na tentativa de aniquilar, e não de conflito, buscou-se aniquilar todas as características do feminino... Por que Maria a santa e não Maria a meretriz? Quer predominar em terrenos de Afrodite e Adônis – mulher e homem, mas ambos representam a vida na medida em que representam a sexualidade – e o sexo, para o cristianismo, é impuro, é a macular – Maria é virgem. Sexualidade é preciso para se ter vida, e vida é morte, não são contrários, como se poderiam pensar; dialética aqui não funciona, morte não nasce da vida, mas ambas se coadunam. Já dizia uma bela canção: a gente nasce e começa a morrer. A sexualidade gera diversas vidas. A verdade apenas pode ser mulher, pois suporta em si e gera diversas pluralidades – assim da à luz a vida. Se a verdade for imutável e eterna, significa que não possui vida, pois vida é morte, deve, um dia, desaparecer, eis sua graça, seu gozo. O cristianismo, além disso, possuindo como herança o socratismo, talvez, é mediocremente dialético: tudo nasce do seu contrário. A mulher nasceu de Adão, do homem, do ideal de deus. Mas uma cópia imperfeita – ela peca, ela é fraca. Ela representa o oposto do homem. Era melhor ficar com a perfeição. Diminui-se o papel do feminino. A verdade era homem, era “perfeita”. O homem, contudo, não gera vida, ou seja, não cria nada que possa morrer. Era o arquétipo perfeito para a verdade, pois como salientado acima, esse tipo de verdade era o que os filósofos procuraram. Se não há vida, apenas pode existir como representação mental – daí não desaparece, mas não se pode toca-la, e mesmo assim tentam. A verdade-homem é aquela que existe como representação mental, e assim pode ser pura e eterna: o ser que é – essência. A verdade-mulher, por sua vez, existe como instintivo, como natureza, como algo que vive e perece, não como o tipo, mas tipos, gera diversas formas, é constante, é um vir-a-ser, é aparência. Na verdade, a proposta soa interessante. Pela antropofagia podemos devorar os tipos, resultando em ser tipos distintos, de maneira constante. Infelizmente, hoje, parece que não nos permitimos essa pluralidade: a mulher e o homem devoraram apenas o tipo masculino, o feminino se perdeu. Nietzsche falava na masculinização da Europa – que a tornaria séria e

36

racional –, mas o mundo vem sendo cada vez mais masculinizado. Estaria ele alertando que precisaríamos, também, do feminino? 2.4. A linguagem e o pathos no processo civilizatório Se há um fator a ser considerado no âmbito linguístico é a capacidade que as palavras tem para organizar um coletivo de indivíduos. A linguagem se destaca por não ser uma ferramenta única, mas plural, isto é, pode servir de um lado para potencializar a vida, e de outro pode apenas organizar, evitar o espanto: Como salienta Rosana Suarez: “Nietzsche frisa que as palavras são abreviações úteis ao gregarismo. O prisma gregário evitaria o raro e promoveria o comum (Gemein), para uma interação cada vez mais eficaz” (2011, p.139). Mas na medida em que faz isso, alerta a autora, pode-se entender que o mundo em que vivemos é criado pela mesma ferramenta, demonstrando sua força: “No geral, o sentido do texto é que nós vemos o mundo com ‘licença poética’ (‘somos mais artistas do que pensamos’) e que nos enganamos, principalmente ao julgar que ‘encontramos’ (finden) o mundo que, entretanto, ‘inventamos’ (erfinden), ficcionamos, poetizamos” (Ibidem, p.152, grifo do autor). Mas de que modo isso influencia na criação da civilização? Ora, tal pergunta pode ser respondida apenas com um breve olhar histórico: nossa cultura, costumes, crenças ou mesmo valores são passados durante as gerações apenas porque o ser humano é dotado de linguagem – a obviedade disso, no entanto, não pode obscurecer os liames importantes para a compreensão do processo. A dificuldade que encontramos na investigação aqui presente se coloca diante de nós devido as inúmeras interpretações e significados que podem ser atribuídos ao termo “civilização”, logo, seria errôneo se contentar com uma definição única, sendo que o próprio Nietzsche se utilizara dos termos de um modo distinto. Entretanto, existem algumas concordâncias e similaridades que podem ser percebidas entre a concepção nietzschiana e outras mais gerais. Um dos exemplos que podemos oferecer é que o autor não confunde cultura e civilização, sendo que a diferença entre ambas é algo determinante. Wilson Frezzatti Junior esclarece em seu livro A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia esses aspectos acerca dos termos, o primeiro capitulo ele dedica para demonstrar o modo como Nietzsche entende cada uma, e em um segundo momento esforça-se para distinguir justamente a civilização de uma cultura elevada25. A civilização entendida no 25

Alem de Frezzatti podemos utilizar aqui outro famoso autor, Norbert Elias, o mesmo compreende a civilização de um modo, digamos, nietzschiano – entendo os devidos cuidados na semelhança – isto porque compreende a civilização como apaziguadora dos afetos. E também distingue os termos da seguinte maneira: enquanto a ‘Civilização’ é um processo ou resultado deste, algo em movimento que diz respeito às generalizações do ser humano e quebra as diferenças nacionais, o conceito alemão de Kultur, que seria o de cultura, diz respeito às

37

século XIX – e podemos dizer que tomamos o termo do mesmo modo ainda hoje – como progresso, elevação do homem era para nosso filósofo uma mentira: “é contra a perspectiva da civilização como melhoramento do homem que a analise nietzschiana vai lançar suas suspeitas. Esse melhoramento (Verbesserung) é, para o filosofo alemão, um ideal, uma ‘mentira educativa’ [...]” diz Frezzatti, e segue elucidando que “[...] o processo civilizatório é aquele que enfraquece os impulsos ou os instintos próprios da espécie humana” (2006, p.901). A cultura superior, diferente de um enfraquecimento, se mostra como algo benéfico. Atendo-se ao processo civilizatório, a linguagem oferece um caráter significativo na medida em que lida com as paixões – o pathos – do indivíduo. O modo de se comportar, o que dizer, como agir, e uma infinidade de normas são inseridas através de uma “desonestidade”. A mudança não ocorre por uma processo lógico, mas afetivo 26, logo, ao proferir um discurso, mais do que palavras, se disfere emoções, sentimentos, esses que podem causar uma mudança. A raça humana prefere o “bom”, e o “bom” é reprimir o instinto animal no ser humano, ser civilizado, logo se através de uma doutrina repleta de valores é imputado ao indivíduo agir assim porque isso seria o melhor, ele o faz – ele adentra ao coletivo, ele evita o raro. Diversos são os modos de civilizar o homem, de torna-lo menos bicho e mais “humano”. Como não podemos discorrer sobre todos eles, escolhemos um que é mais próximo de nosso tema.

2.5. Linguagem no gregarismo: Seria a religião antinomia da vontade de potência?

Um ponto importante ao falar de linguagem é de sua utilidade ao gregarismo. Possuímos a necessidade dela para uma vida social que não está apenas no simples comunicar, isto é, como se comunicássemos apenas ideias. Nietzsche sempre tratou a linguagem de um modo particular. Rogério Lopes elucida que para Nietzsche “a manipulação das potencialidades materiais da linguagem não tem como objetivo comunicar ideias [...], mas expressar um ou vários estados corporais” (2006, p.115). É desse modo que um determinado discurso, por exemplo, somente iria se instaurar em uma determinada cultura, a um determinado tipo de seres humanos. Um discurso, um texto, expressa determinados valores, particularidades de um povo, um grupo, mais voltado a própria consciência de si, delimitando os traços e características de um povo” (Cf. ELIAS, 2011, p.24-25). Esclarecendo que, de certo modo, a civilização aparece com uma forma de igualização do ser humano. 26 Nada indica que a condição afetiva, o grau de sensibilidade, sejam mudados pelo que descrevemos como ‘evidentemente racionais’, isto é, pela compreensão demonstrável de dadas conexões causais” (ELIAS, 2011, p.123).

38

princípios que aqueles tipos podem ou não adotar e consequentemente serem moldados. Como a linguagem possui uma característica instintiva, nenhum texto seria imparcial – seja filosófico ou de qualquer outra espécie. É por esse motivo que é interessante pensar em um dos fatores que podem mais determinar uma cultura ou até mesmo a civilização, ou então, pelo menos no nosso caso, pensar no fator que influenciou nosso modo de vida: referimo-nos a religião e, em especial, a religião cristã. Quando um texto – nesse caso considerado sagrado – consegue servir de base para determinar valores e comportamentos, ele pode muito bem influenciar nosso estado emocional, isto é, a linguagem aparece como apaziguadora das individualidades de cada um e passamos, então, a agir em determinadas situações sempre da mesma maneira – até nossos próprios sentimentos são afetados27 - atua, desse modo, como uma simplificadora das coisas, do real e até mesmo do humano. Embora a religião seja um aspecto de nossa racionalidade, isto é, de nossa capacidade de pensar em coisas, seres, objetos, ela não perdura por esse fator, muito menos por um rigor científico – embora hoje a religião queira se sustentar sempre buscando evidenciar suas verdades, o posicionamento de Nietzsche é contrário e aponta que a causa da morte das religiões é sempre essa, seu excesso de razão, sua busca em demasia da verdade e com isso quer ter fundamento histórico, e isso vêm desde seu texto inicial O Nascimento da Tragédia: Pois é o destino de todo mito arrastar-se pouco a pouco na estreiteza de uma suposta realidade histórica e ser tratado por alguma época ulterior como um fato único com pretensões históricas [...] Pois essa é a maneira de como as religiões costumam morrer: quando os pressupostos míticos de uma religião passam a ser sistematizados, sob os olhos severos e racionais de um dogmatismo ortodoxo, como uma suma acabado de eventos históricos [...] o sentimento para com o mito morre e em seu lugar entra a pretensão da religião em ter fundamentos históricos (NIETZSCHE, 2005, p.71).

Embora trate-se de um texto de um período inicial, e entende-se que o autor muda suas perspectivas ao longo dos anos, a interpretação nietzschiana sempre fora diferente de uma concepção epistemológica, se atentando principalmente aos valores. Não é estranho pensar, nessa perspectiva, que a religião não teria se sustentado até aqui por fatores não racionais, mas sim relacionados ao pathos. Foi pelos discursos, repleto de signos que carregam consigo valores, que se imputaram determinados modos de agir, sentir e pensar; consequentemente causaram-se danos a certos tipos que apresentaram sintomas como: culpa, remissão dos pecados, degeneração dos instintos. O tipo que aceitou a religião cristã, que foi

27

Sobre esse aspecto iremos nos ocupar no capítulo III, por hora, devemos focar em como a religião é exercida.

39

moldado por ela, que ainda hoje a aceita é aquele que busca o que se oferece, não por mera lógica, mas sim devido ao seu estado fisiológico. Ao oferecer a vida eterna, eles não o fazem apenas por um discurso racional, mas busca-se afetar as paixões, a condição emocional do indivíduo. Em O Anticristo Nietzsche escreve: “Nem a moral nem a religião, no cristianismo, têm algum ponto de contato com a realidade”, o cristão sofre com a realidade e anseia uma fuga da mesma: “Mas sofrer com a realidade significa ser uma realidade fracassada” (Idem, 2007, p.20-21, grifo do autor). Essa realidade fracassada é que aceita as noções oferecidas pelo cristão: imortalidade da alma ou paraíso28. Quando contraposto, por exemplo, o cristianismo e a religiosidade da antiga Grécia, podemos perceber como existem comportamentos distintos: os gregos enxergam nos deuses um ideal para se potencializarem; não se colocam como criaturas inferiores ao criador, mas se põe diante de uma posição de nobreza (Cf. Idem, 2004, p.94). Nós, ao contrário, enxergamos em nosso deus um senhor onipotente e onipresente que cuida de nós. Ele pode ser reflexo de um ideal do homem, isto é, ele é bom e todo poderoso, coisa que o ser humano jamais pode ser, contudo, ao invés de incitar à elevação, se coloca em uma postura inferior e de submissão. Age-se e reage de maneiras distintas. Mas falemos mais de como um texto pode influenciar o modo de vida. Para isso queremos tomar como exemplo um dos mais populares: a Bíblia Sagrada. Para perceber esse fator da linguagem, de interpretar e usar um texto, de fazê-lo falar pela boca dos profetas, é preciso inseri-lo dentro de um pensamento central na filosofia de Nietzsche: a vontade de potência29. Para o filósofo a vida é vontade de potência, isso porque se expressa em uma multiplicidade de forças agonistas que querem dominar – esse conflito é eterno e não há como controlar, digamos, querer parar ou expressar, a vontade de potência simplesmente acontece, é algo natural. Nesse ponto de vista, todo fato histórico, todo acontecimento de nossas vidas pode ser interpretado e perceber ali que valores dominaram e de que forma se buscar dominar a vida. Os fortes, para Nietzsche, sempre buscam mais potência. Ela ocorre em todos os

28

É preciso aqui esclarecer um ponto. Poderia parecer estranho que Nietzsche critique a religião – afinal é um crítico da metafísica – por não ter contato com o real e ao mesmo tempo faça uso das divindades gregas Dionísio e Apolo. Nietzsche trabalha com a religiosidade de forma peculiar, e tais divindades gregas não existem para enunciar um algo no além, mas são elementos estéticos. A diferença é que enquanto o cristianismo oferece tais noções irreais, negando essa vida, os elementos oferecidos por Nietzsche dizem respeito à arte, que, ao contrário, explora o real – embora não todas, mas possivelmente seria possível estabelecer como referência artística as tragédias gregas. É impossível chegar a experimentar a vida eterna ou o conceito de alma do cristianismo, contudo, é possível estar ligado, por exemplo, as emoções que suscitam em nós a tragédia de Édipo. 29 A noção de vontade de potência para Nietzsche é muito vasto, é até um crime limita-lo a concepção políticas e sociais apenas, porém, tendo em vista o andamento do trabalho, foi melhor não explorá-lo afundo e nos limitar em algumas características que se encaixam no nosso tema, como, por exemplo, as características ligadas à linguagem, que é o caso da interpretação como se vê algumas linhas a frente.

40

aspectos da vida, existenciais, políticos, culturais, etc. Aqui, contudo, será preciso que nos limitemos à organização social, por isso ela terá um contexto mais político. Christopher Hill (2003) no seu livro A Bíblia Inglesa e as revolução do século XVII demonstra como a capacidade de interpretar – que pode ser tida como uma parte do que chamamos vontade de potência – consegue fazer imperar uma perspectiva e fazer com que isso assuma um papel de regência na vida social. Sua obra demonstra com clareza dentro de um período e lugar restrito a influência que o texto bíblico exerceu na vida social, política, econômica e em todos os aspectos da cultura. O autor demonstra que a própria Bíblia era interpretada de diferentes maneiras pelas doutrinas religiosas que se contrapuseram: os católicos, a igreja anglicana, entre outras. Cada uma tentava fazer uso da força que o texto sagrado possuía para imprimir na sociedade um modo de vivência: dar ou não dar dinheiro aos mendigos, por exemplo, ou então para sustentar uma lei que previa o julgamento. Mas qual seria a relevância disso para os dias atuais: sabemos que a Igreja sempre exerceu forte influência na vida das pessoas. Qual o significado disso? Hill, quando fala de uma cultura bíblica esclarece que se ela exerce um poder tão grande tem um motivo muito “simples”: “a influência nesse século se dá porque os homens e mulheres da época acreditavam nas verdades contidas na Bíblia” (Cf. Ibidem, p.466)30. Mas a afirmação de Hill é estranha. Ora, que tipo de verdade precisa que alguém acredite nela? Se for uma crença, talvez seja porque o que continha na Bíblia não fosse verdadeiro, mas tomado desse modo. Para a vontade de potência isso é determinante. Bem sabemos que hoje o poder bíblico está fragilizado, mas como já vimos ele ainda se sustenta pelo caráter do pathos que carrega consigo. Sendo que não diferente do século retratado por Hill, ainda hoje buscamos sustentar e pautar normas baseados em leituras bíblicas em discussões de diversos temas, alguns, inclusive que afetam o Estado e consequentemente a vida de qualquer pessoa que nele habita31. É notável que contraposições aos argumentos bíblicos existam aos montes e, tomados de diferentes perspectivas, o que pode ter fragilizado os textos sagrados, a própria Igreja hoje possui um poder descentralizado, isto é, fragmentados em diferentes áreas da vida social, o que não necessariamente faz seu pode de controle diminuir, apenas ser manifestado de modo diferente – talvez nem tanto – 30

Devemos fazer uma ressalva em consideração a citação de Hill. O autor estabelece que se acreditavam nas verdades, contudo, em nosso entendimento uma verdade não é simplesmente acreditar, acredita-se quando se busca ela, de outro modo, a verdade apenas existe sem a necessidade de crença. O que evidencia que quando maior o esforço para se fazer acreditar, mais frágil é a verdade implantada. A verdade que o Hill utiliza não é o mesmo daquele de Nietzsche. 31 Poderíamos citar diversos exemplos, mas a legalização do aborto, questões ligadas à eutanásia, por exemplo, são discussões em voga nos dias de hoje.

41

daquele retratado por Hill. O poder religioso precisou adaptar-se ao “Estado laico” que vivemos, entre outros fatores. Contudo, é nítido que posturas religiosas ainda acabam por influenciar politicamente e economicamente a esfera social – é deste conflito que se trata nosso exemplo. O que temos é, por exemplo, Igreja x Estado, e assim tratamos exclusivamente do poder de veracidade de um valor e porque acreditamos em determinadas verdades – de modo que, ao se inserir no Estado, a Igreja insere-se na vida social de todos e não apenas daqueles que sustentam a fé nela, é um modo, por exemplo, de querer ampliação. Como explica Wolfgang Muller-Lauter (2011), o querer a verdade é uma condição de fraqueza do ser humano, ele precisa adquirir segurança para sua vivência e crê que o que é determinado é melhor para si, no entanto, o fraco – ou o ressentido – não conseguiria criar os valores, ele apenas reage fazendo com que sua vontade de potência – pois até os ressentidos a possuem – seja na verdade vontade de moral: A moral do ressentimento é expressão de uma vontade de potência, embora ela se volte com indignação contra todo querer-potência, ao censurá-lo como imoral. A vontade de moral mesma é uma vontade de potência disfarçada. [...] A vontade de moral, contudo, oculta a efetividade. Ela engana na medida em que pretende ser o antagonismo a todo querer potência. Ela se serve da vontade de verdade para poder ocultar e enganar (MULLER-LAUTER, 2011, p.167-168, grifo do autor).

Querer a verdade é interpretar o mundo a partir de uma moral. A veracidade dos valores em nada condiz com uma vida orgânica de fato, pelo contrário, ela não é apenas danosa a si mesma, quando sustentam as verdades de modo absoluto ela acaba por querer impedir a potência do ser humano. E como bem sabemos, se algo é verdade é porque há uma concordância, o próprio Muller-Lauter explana isso com eficácia. Acontece que a linguagem como ferramenta útil ao gregarismo não possibilita apenas o interpretar, mas também o petrificar, o fazer permanecer um valor. Uma das principais críticas de Nietzsche às religiões – ele não as condena por completo, entende inclusive que o filósofo poderia fazer uso delas32 – o problema é querer reinar em absoluto – querer ser verdadeira. É inegável que uma perspectiva religiosa cristã se assemelha à vontade de potência, mas ela se torna vontade de moral quando busca imperar de modo absoluto explorando a 32

No aforismo 61 de Além do Bem e do Mal no capítulo intitulado A natureza religiosa, Nietzsche escreve: “O filósofo tal como nós entendemos, nós, espíritos livres – como o homem da responsabilidade mais ampla, que se preocupa com a evolução total do homem, esse filósofo se utilizará das religiões para a sua obra de educação e cultivo, do mesmo modo que se utilizará das condições políticas e econômicas do momento. A influência cultivadora da religião, seletiva, isto é, tanto destrutiva quanto criadora e modeladora, que se pode exercer com ajuda das religiões, é sempre múltipla e diversa, conforme o tipo de homens colocados sob seu domínio e proteção” (2000, p.63). Outro fator que evidencia o uso dos filósofos pelas religiões e o uso da divindade grega Dionísio. A figura dessa divindade elucida as práticas religiosas – os cultos – como uma forma distinta da cristã, como por exemplo, a exuberância das paixões, exalta-se o corpo, o vinho, etc.

42

necessidade de verdade do ser humano. Assim ela se torna uma antinomia. Claro que uma vontade nunca irá desejar que outra tome seu lugar e por isso entenderá sua adversária como falsa, pois é isso que constitui a vida orgânica como discutimos, o conflito por mais potência, é por isso que “o perspectivismo é necessário: ele é ‘a condição fundamental de toda a vida’. Assim, a vida se constrói através da oposição das vontades de potência que se afirmam de diferentes perspectivas” (Ibidem, p.171). Mas o conflito não busca aniquilar, precisamos sempre que algo se oponha. Tentar instituir uma lei ou norma que impede o próprio homem de ir contra é um atentado à vida humana. A questão da religiosidade cristã é justamente ela se colocar contra a vontade de potência. Não em questões meramente políticas ou sociais, a vontade de potência presente em todo organismo, sendo a vida, sempre quer se manifestar, uma religiosidade poderia ser consequência dessa vontade de se manifestas, mas quando impede o crescimento individual torna-se degenerativa. O cristianismo torna o homem rebanho e quer que ele se junte aos outros, perca suas potencialidades – trata-se então de uma questão mais existencial do que propriamente política nesse caso. No cristianismo não se age contra outras forças, apenas se reage, o que evidencia a moral cristã como a inversão dos valores apresentada na primeira dissertação da Genealogia da Moral. Os ingênuos cristãos acreditam que suas interpretações não são apenas interpretações. Linguagem e verdade se interligam, pois na medida em que a linguagem serve ao gregarismo, ela torna-se útil, como já colocado, e dentro do coletivo, ganha força. Contudo, a linguagem pode tornar-se extremamente poderosa e bela nas mãos do filósofo, não apenas para simplificar o mundo. A linguagem seria uma maneira não de explicar o mundo, mas sim de dar-lhe formas – nas palavras de Rosa Dias: “Interpretar o mundo não é conhecê-lo, mas cria-lo” (2011, p.16).

43

CAPÍTULO III: VIVAS A DIONÍSIO! 3.1. O corpo como elemento primordial “Para quem está fora do sofrimento é fácil aconselhar e incitar o sofredor” (ÉSQUILO, 1980, p.21)

Chegamos ao ponto principal de nosso trabalho. O que já fora explicitado deve ser levado em consideração para a compreensão de nossa interpretação acerca de um novo horizonte para a ética. Devemos, então, trazer para a discussão um elemento central na filosofia de Nietzsche ao qual ainda não conferimos a devida atenção: Dionísio. A divindade grega aparece em toda obra de Nietzsche e parece sofrer mutações 33, mas jamais deixa de ser uma característica marcante na mesma. Tendo em mente tais mutações, a figura que aparece em obras anteriores e posteriores ao Zaratustra, e essa última obra nos é fundamental – foi nesse período que se insere a noção de valor para o filósofo e no que diz respeito à ética, essa noção se mostra necessária. Indagar sobre os motivos que levaram Nietzsche a apreciar essa divindade a ponto de torna-la referência para seu pensamento, seria, sem dúvida, uma bela maneira de iniciar. Dionísio é conhecido como o deus do vinho e do teatro. É difícil compreendê-lo em toda sua plenitude, mas alguns pontos são convergentes em diversos estudiosos como Mircea Eliade (1978) – que atribui a essa divindade um caráter excêntrico cujos rituais acabam fugindo aos padrões morais da cultura da Grécia clássica – e a interpretação do helenista Jean-Pierre Vernant que assim o define34: Plenitude do êxtase, do entusiasmo, da possessão, é certo, mas também felicidade do vinho, da festa, do teatro, prazeres de amor, exaltação da vida no que ela comporta de impetuoso e de imprevisto, alegria das máscaras e do travestismo, felicidade do cotidiano. Dionísio pode trazer tudo isso, se os homens e cidade aceitarem reconhecê-lo. Mas em nenhum caso vem anunciar uma sorte melhor no além. Ele não preconiza a fuga para fora do mundo, não prega a renúncia nem pretende proporcionar às almas, por um tipo de vida ascético, o acesso à imortalidade. Ele atua para fazer surgirem, desde esta vida e neste mundo, em torno de nós e em nós, as múltiplas figuras do Outro. Ele nos abre, nesta terra e no próprio âmbito da cidade, o caminho de uma evasão para uma desconcertante estranheza. Dionísio nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o contrário daquilo que somos comumente (2006, p.80). 33

Um artigo de Gerard Lebrun é extremamente esclarecedor sobre isso. Cf. LEBRUN, Gerard. Quem era Dionísio? In: A Filosofia e sua História. São Paulo: Cosac e Naify, 2006. Onde o autor sustenta que há uma mudança de gosto e de orientação entre o Dionísio do Nascimento da Tragédia e aquele que apareceria em obras posteriores – principalmente pós Zaratustra, como, por exemplo, Crepúsculo dos Ídolos. 34 Apresentemos aqui a interpretação de Vernant com o intuito de explicitar as características mais gerais acerca de Dioniso. Temos em mente que o próprio autor – além de outros helenistas – não aceitam de bom grado a tese de Nietzsche sobre a tragédia que ele expõe em seu primeiro livro. Isso, contudo, não impede-nos de demonstrar que algumas marcas do deus grego tal como a importância confere a vida mesmo e não uma além-vida ou então o êxtase de seus ritos. A discordância de Vernant acerca da tese do Nascimento da tragédia não se mostra, por esse motivo, um empecilho.

44

Com isso podemos sustentar que esses ritos dionisíacos prezam em seus cultos o êxtase, e, do mesmo modo, também aquilo que pode proporcionar esses prazeres e paixões: o corpo. Dionísio nos remete a essa morada que, mesmo tão próxima a nós, a tradição ocidental – aquela que se fundamenta basicamente na cultura cristã – teima em tornar insólita. Na aceitação de bom grado do corpo, o devir vêm à tona e o mesmo não pode ser negado – mas julgamos que isso pode ser possível. Então, em prol da bonança do ser negamos as tempestades do vir-a-ser. Deixando de navegar nas águas seguras, aceita-se que não podemos então conduzir-nos para qualquer direção a bel-prazer, apenas pela doce ilusão do livre arbítrio. O corpo alerta para nossa natureza e da “necessidade” que se faz presente em cada indivíduo. O termo necessidade fora colocado em aspas já que requer certo cuidado ao ser tratado no nosso filósofo em questão. É de conhecimento de muitos que Nietzsche não se limitou, em seus estudos, a filologia ou mesmo a filosofia apenas. Para embasar seu pensamento, recorre aos estudos de física, química e biologia. Inclusive, participa das discussões em voga na época 35. Contudo, não se deixa levar por todas as doutrinas, e, quando falamos em necessidade, não podemos ter em mente qualquer tipo de biodeterminismo tal como seria desenvolvido no século XX, principalmente devido às teorias de Herbert Spencer e o que ficaria conhecido como “darwinismo social”. Esses estudos de ciências naturalistas parecem ter levado a compreensão de que a necessidade, da qual devemos ter em mente para compreender o corpo como lugar das paixões, é tocante aos tipos de cuidados com nossa condição fisiológica. Corpo e razão são comumente entendidos como elementos que não podem trabalhar em harmonia, isto é, um acaba influenciado sobre o outro, mesmo que negativamente36. Isso também levando em conta que uma determinada hierarquia existiria e definiria quem deveria obedecer a quem. Queremos explanar que a razão foi entendida muitas vezes como superior ao corpo e, inclusive, como algo que poderia comanda-lo. Essa separação – muitas vezes visceral – que se estabelece é enojada por Nietzsche. Esse nojo não nos leva –e nem levou

35

Um exemplo que poderia ser mencionado aqui é a polêmica em torno de Darwin. Sobre os estudos das áreas da ciência, Scarlett Marton (2011, p.115) explica que ele é instigado não só pela biologia, mas também volta à universidade – em Viena e em Paris – para estudar matemática e física. 36 Temos em mente que em algumas posturas filosóficas, como o empirismo, não há um desprezo pela experiência a ponto de rebaixa-la a algo incerto, mas não se trata aqui nossa argumentação. Acerca do problema da verdade, nos atemos no capitulo II. Podemos, claro, frisar, como argumenta Scarlett Marton, que há uma semelhança entre racionalistas e empiristas, eles “[...] acreditam que o sujeito tenta apreender o objeto tal como ele é. E Nietzsche dedica-se justamente a criticar a concepção de verdade como adequação” (2010, p.209). Mas a questão hierárquica aqui não se atém ao plano epistemológico. Para Nietzsche, o grande problema foi que pela razão o homem seria capaz do arbítrio, ou seja, da livre ação onde poderia ser responsabilizado pela mesma. Nessa compreensão a razão dominaria os afetos e instintos. Algo que, na visão de Nietzsche, trata-se de um equivoco.

45

nosso autor – a um irracionalismo, ou seja, negar em todas as instâncias a razão, o filósofo se pauta em atacar tal hierarquia que crê na superioridade da razão para controlar o corpo. Sendo assim, a necessidade não se contrapõe à liberdade37, pelo contrario, ambas atuam juntas contra a noção de arbítrio instituído posteriormente. No seu livro Nietzsche e a liberdade, Miguel Angel de Barrenechea defende justamente essa posição. O comentador escreve que em uma perspectiva normativa da liberdade “[...] o homem é considerado livre para ser responsabilizado e culpado pelo cumprimento, ou não, das ordens impostas, a liberdade nada tem a ver com normas e castigos, consistindo na aceitação da necessidade, na adequação às forças terrestres” (BARRENECHEA, 2008, p.11). Uma interpretação cristã, por exemplo, carrega junto da ideia de ser livre a noção de pecado, ou seja, o homem seria livre para poder pecar e depois ser responsabilizado por isso – mas Nietzsche contradiz essa postura, justamente pelo motivo que fora explicitado – o cristão é um dos que acreditam no domínio da razão sobre o corpo. Na verdade, essa petulância sempre esteve presente no humano, essa petulância de querer dominar o mundo, sim, pois dizer a verdade, querer explicar 38 o mesmo seria uma forma de dominação, de não aceitação. Inclusive, essa parece ser uma definição competente daquilo que compreendemos como ética. Em um fragmente póstumo Nietzsche escreve: “Ética ou ‘filosofia da desejabilidade’. ‘Deveria ser diferente’, deverá ser diferente: a insatisfação seria, portanto, o germe da ética [...]. Talvez esse ‘assim deveria ser’ seja o nosso desejo-de-dominar-o-mundo” (NIETZSCHE, 2002, p.120-1, grifo do autor)”. Com esse “assim deveria ser”, o homem buscou homogeneizar os desejos, pensa nessa possibilidade, mas não leva em conta que o corpo é um locus repleto de multiplicidade e pluralidade de impulsos. Qualquer tentativa de reprimi-los poderia ser negativa e degenerativa. A proposta nietzschiana nesse sentido acaba por ser muito distinta – se é multiplicidade, não devemos, através da razão, tentar buscar uma padronização por um ideal; corpo e razão podem estar em harmonia. Devido a isso, pode sim pensar em ética na filosofia de Nietzsche, mas precisamos compreender que liberdade e necessidade não significam contraposição, pois o corpo como multiplicidade de impulsos é afetado pelo tipo de vida que levamos. Daí então as críticas a 37

Mesmo porque para Nietzsche o conceito moderno de liberdade seria um sintoma de décadance (Cf. NIETZSCHE, 2010b, p.92). 38 Os indivíduos tentam isso a partir da linguagem, como explicado no final do capítulo II. Inclusive cita-se o livro de Rosa Dias, Nietzsche, vida como obra de arte, apresenta-nos de maneira formidável a tese de que a tentativa de buscar a verdade seria esse tipo de dominação que nega as nossas condições inerentes, isto é, naturais, tal como os instintos, os afetos, paixões e desejos. A vida, como já implícito no titulo, se cria, se forma, se transforma, não se explica, por isso a sua condição poética, ou melhor, sua condição de arte, como aquilo que seria resultado de um processo criador.

46

moral conservadora que busca manter os mesmos valores sem questiona-los. Um corpo degenerado e doente reflete na moral, pois os próprios valores, resultados da criação humana, são consequências de nossa condição psíquica e fisiológica. Por esse motivo Nietzsche recusa aquela dicotomia entre aparência x essência, ou mesmo a postura do cogito de Descartes, onde a separação estabelecida é a do Eu como a razão, pensamento, alma – a res cogitans. Em um dos discursos de Assim falou Zaratustra, para ser mais especifico em “dos desprezadores do corpo”, Nietzsche assim coloca: “alma é apenas uma palavra para um algo no corpo” e continua: “Por trás dos teus pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio desconhecido – ele se chama Simesmo. Em teu corpo habita ele, teu corpo é ele” (NIETZSCHE, 2011a, p.35). Nesse “Simesmo” não encontramos a separação entre corpo e razão ou pensamento, nem mesmo a formulação do Eu a partir da res cogitans – sendo assim, deve-se eliminar a concepção de algo essencial e indubitável no mundo que possa ser apreendido de uma ou de outra maneira. A dicotomia apenas fora um resultado de uma visão mórbida do mundo apresentada por esses desprezadores. No discurso anterior – “Dos transmundanos” – lemos mais uma passagem de Nietzsche condenando essa postura: “Foram os doentes e moribundos que desprezaram o corpo e terra e inventara as coisas celestiais e as gotas de sangue redentoras: mas também esses doces, sombrios venenos tiraram eles do corpo e da terra!” (Ibidem, p.33). Era preciso de uma visão sadia que aproveitasse o júbilo da vida. Voltamos a Dionísio, que é trazido por Nietzsche como aquela divindade que remete uma nova postura – a dionisíaca. A figura desse deus nos mostra um mundo que, embora repleto de dores e sofrimentos, nos permite a vida alegre – contemplação do vinho, da dança, do teatro e da mortalidade, isto é, daquilo que perece, pois Dionísio é fruto de uma moral com a divindade; sua ligação com a terra não pode jamais ser apagada. Precisamos de um tipo de vida diferentes, que não nega o indivíduo como ser singular – isto é, suas multiplicidades e o que pode oferecer –, que não o insere no rebanho, pois nesse rebanho apaziguamos nossos afetos. Ao invés de buscar a civilização e a ordem, Nietzsche é o filósofo do caos – pois apenas no caos há liberdade para o criar que nega a tarefa dos moralistas: o “assim deve ser” – postura que tenta apenas dar conta da bagunça na natureza humana. Podemos enfatizar nas palavras do próprio: Consideremos ainda, por fim, que ingenuidade é dizer “assim e assim deveria ser o homem!”. A realidade nos mostra uma fascinante riqueza de tipos, a opulência de um pródigo jogo e alternância de formas: e algum pobre e vadio moralista vem e diz: “Não! o ser humano deveria ser outro!”[...]. O indivíduo é, de cima a baixo, uma parcela de fatum [fado, destino], uma lei mais, uma necessidade mais para tudo

47

o que virá e será. Dizer-lhe “mude!” significa exigir que tudo mude, até mesmo o que ficou para trás...” (NIETZSCHE, 2010b, p.37, grifo do autor).

Essa multiplicidade de tipos apenas realça aos olhos aquilo que tentamos encobrir: de que uma homogeneização não pode ser adequada, mas mesmo assim tentamos, de diversas maneiras, estabelecer um padrão a partir de determinada moral e com isso conserva-lo39. Contudo, como já colocado anteriormente, há uma possibilidade distinta, um estilo diverso e para isso chamamos a atenção. Para o tipo de vida dionisíaca que nos leva a aceitar a vida: a dizer Sim!

3.2. Dionisíaco ou Sim à vida: por uma ética não normativa

Para nos fazer compreender nossa interpretação sobre esse tipo de vida afirmativa gostaríamos de relacionar a noção de indivíduo fora do rebanho e, consequentemente, demonstrar que quando não se encontra enfraquecido por esse instinto gregário o ser humano seria levado a dizer sim a vida, mas longe de oferecer um método para tanto, um caminho, Nietzsche nos provoca, adentro fundo em nossas paixões, incitando-nos não a pensar apenas, mas a sentir. Deixaremos essa provocação para a conclusão. Nietzsche dedicou muito esforço e atenção para os aspectos da relação entre indivíduo e coletivo, ou melhor, ao indivíduo inserido dentro desse coletivo. Em nossa sociedade atual que prega o coletivismo, a união das pessoas e uma ordenação de ajuda ou compaixão para com o próximo, os pensamentos de Nietzsche parecem, em um primeiro momento, estranhos e desagradáveis, pois muitos possuem uma impressão que poderíamos dizer, é equivocada: a de uma filosofia individualista. Duas coisas precisam ser claras: sua filosofia não se volta para o individualismo, mas para a hierarquia, como o próprio deixa claro em uma anotação de um fragmento póstumo: Minha filosofia está voltada para a hierarquia: não para uma moral individualista. O espírito de rebanho deve dominar no rebanho – mas não ir além dele: os condutores de rebanho precisam de uma avaliação completamente diversa de suas próprias ações, assim como os independentes, ou os “animais de rapina” etc. [...] Pensando em larga escala: como se poderia sacrificar o desenvolvimento da humanidade para ajudar a fazer existir uma espécie mais elevada do que essa que é o ser humano? (NIETZSCHE, 2002, p.117-8, grifo do autor). 39

Nesse aspecto podemos mencionar um dos aforismos de Crepúsculo dos Ídolos intitulado “Sussurrando no ouvido dos conservadores”, onde para se contrapor a essa moral conservadora e homogeneizadora, Nietzsche atribui importância aos fisiólogos – que também chamamos a devida atenção também em nossa discussão – e define a moral como “leito de Procusto” (Cf. NIETZSCHE, 2010b, p.92-3). Procusto é um personagem da mitologia grega que dava leito aqueles que passavam pela floresta, mas se o convidado não coubesse na cama ele cortava os membros, e se fosse muito pequeno para ela, ele esticaria, ou seja, buscava adequar o convidado ao leito, fazendo alusão ao que fora proposto pelos moralistas de diversas épocas e que, podemos dizer, continuam tentando realizar a mesma tarefa.

48

Tal citação apenas reforça o que podemos encontrar na leitura de seus textos: pensamentos como o além do homem – super-homem – ou um pensar para além do bem e do mal de certa maneira investiga e avalia que tipo de indivíduo existe, ou de cultura, e em que condições nasceram os valores e por quem foram criados – dai a genealogia tratada no primeiro capítulo. Não se trata de simplesmente “ser livre”, pois como já vimos liberdade aqui não pode ser compreendida como antagônica a necessidade. Esse individualismo, que pode existir em certo grau na filosofia nietzschiana, mas não de maneira radical, sem conhecer a hierarquia, apenas poderia ser visto como algo negativo para aqueles que não compreendem de certa maneira o que o autor denomina de “instinto de rebanho” ou “instinto gregário”. Estar dentro de casa, não se importar com os problemas alheios, apenas desempenhar sua função social, etc. restrito a si mesmo e ao seu campo não parece individualismo, mas sim um gregarismo – se desempenho a função a mim designada dentro da sociedade, sou um membro dela, se não me importo com o outro, apenas sigo um tipo de pensamento, estou condicionado, se estou condicionado a algo, sigo alguém ou algum valor, para tornar curto: não sou individualista, como se reconhecesse minhas singularidades, na verdade sou apenas mais um do rebanho. O individualismo ao qual parece ser encontrado na filosofia de Nietzsche auxilia na construção de um tipo forte, pois consegue compreender que existe uma pluralidade de tipos – por esse motivo a homogeneização dos sentimentos seja um dos principais fatores que deveríamos enfrentar: ninguém poderia me dizer como ser – devo ser e deixar de ser, e me reinventar por diversas vezes – apenas o indivíduo é dono de sua dor. Dentro desse conflito entre indivíduo e coletivo, chamamos a atenção para um texto significativo de Sigmund Freud, que aborda o tema com bastante propriedade e de uma maneira que podemos relacionar com o pensamento do filósofo e com nossa discussão. O texto é intitulado Psicologia das massas e análise do eu, foi publicado em 1921 e aborda a relação entre psicologia individual e psicologia social, onde Freud defende que não podemos separar uma da outra, tratar do indivíduo exige também tratar da sociedade – entenda-se aqui o que denominamos de coletivo. Freud sugere que em muitas áreas, devido a uma ligação afetiva, por exemplo, acabamos seguindo um líder, uma referência e com isso acabamos sendo reduzidos a indivíduos de massa. No capítulo IX intitulado “o impulso gregário” 40, esse 40

É preciso esclarecer aqui o uso das palavras “impulso” e “instinto”. Nietzsche por vezes faz uso das duas palavras Trieb e Instinkt. Na obra Além do bem e do mal podemos notar que para falar de instinto gregário utiliza Heerden-Instinki, enquanto Freud faz uso de Heerdentrieb. Contudo, utilizamos as traduções presentes nas edições dos livros consultados. O termo instinto, contudo, parece ser empregado por Freud apenas para aquilo que representa algo natural, como próximo a vida animal, enquanto o impulso aquilo que agiria imperiosamente sobre a pessoa. Essa distinção de termos é demasiado complexa, mas vale ressaltar que não buscamos reduzir o pensamento de um ao outro e, mesmo que isso seja uma possível discrepância, através da maneira como

49

tema é elucidado de maneira incisiva. Vamos a um trecho que nos parece de suma importância: Estamos autorizados a dizer a nós mesmos que as abundantes ligações afetivas que reconhecemos na massa bastam plenamente para explicar uma de suas características, a falta de independência e de iniciativa do indivíduo, a uniformidade de sua reação com a de todos os outros, seu rebaixamento à categoria de indivíduo de massa, por assim dizer. Mas a massa mostra algo mais se a consideramos como um todo; os traços de debilitamento da capacidade intelectual, de afetividade desenfreada, a incapacidade de moderação e de adiamento, a tendência a ultrapassar todos os limites na manifestação das emoções e descarrega-las completamente na ação – esses e todos os outros traços semelhantes, que Le Bom descreve de maneira tão impressionante, resultam num quadro inequívoco de regressão da atividade psíquica a um nível anterior, como não nos admiramos de encontrar nos selvagens ou nas crianças [...]. Assim, temos a impressão de um estado em que os sentimentos isolados e os atos intelectuais pessoais do indivíduo são fracos demais para se fazer valer por conta própria e têm de aguardar pelo reforço mediante a repetição uniforme por parte dos outros (FREUD, 2013, p.119-120).

Dentro do gregarismo nossas singularidades são reprimidas. Para que tal tipo de vida fosse possível, fora necessário a homogeneização não apenas de pensamentos, ou de ideais, mas também e sentimentos, ou seja, as tipologias coloridas presentes no mundo são drasticamente reduzidas através de um conjunto de valores ou culturas. Pensamos e sentimentos do mesmo modo, desejamos as mesmas coisas, feitos cada vez mais mera peça a ser encaixada dentro de um quebra cabeça, e não podemos sair dela. Esse tipo de estrutura social seria justamente o que pode ser extremamente danoso: nossa degeneração fisiológica. Desrespeitamos o corpo e acreditamos que isso de fato seja possível – que não possa vir a ter um preço a ser cobrado, mas Dionísio sempre cobra. Eurípides (2010), na peça As bacantes, parece demonstrar que os gregos antigos já tinham conhecimento da força da natureza do humano, ou seja, do lado instintivo: o filho Teseu, que queria pregar os bons valores e expulsar a divindades acabou sendo destruído por alguém que nem poderíamos sequer considerar, a sua mãe. O preço de reprimir os instintos pode ser algo que não possamos – e nem queremos – pagar. Mas Dionísio não representa a crueldade do homem, apenas que ele pode ser cruel caso não admita sua condição natural: a de ser um corpo, que perece, que apodrece, que sente, que deseja, que sabe o que é sofrer e a alegrar-se – isso que molda nossa realidade não se dá pela alma, mas pelo corpo. Com isso não podemos acreditar que uma ética que despreze esse tipo de vir-a-ser seja benéfica. É preciso aceitar o devir, e consequentemente, que o indivíduo não pode ser reduzido ao gregarismo – esse tipo de vida apenas nos fornece uma espécie de segurança contra esse caos do mundo, o homem se fortalece através disso, ou melhor, pensa se Nietzsche emprega o termo instinto podemos associar as considerações de Freud quando utiliza o termo impulso; ambos os autores, por sua vez, relacionam esse gregarismo a uma força psicológica e biológica.

50

fortalecer, mas um animal domesticado nem sempre é o mais confiável, nem sempre é o mais sadio.

51

CONCLUSÃO

Por fim, após as considerações de nosso trabalho, podemos dizer que a proposta nietzschiana não é a de uma ética normativa, mesmo porque, em seus textos, jamais encontramos um sistema moral pronto e acabado. Nietzsche, como já mencionamos, ao invés de nos oferecer uma solução, ou qualquer resposta definitiva, prefere nos confrontar com pensamentos, provocações. Para que possamos compreender o que seria essa vida afirmativa – desse homem que acolhe seus instintos, que promove sua multiplicidade de forças e deixa gozar de suas singularidades, que aproveita o êxtase –, escolhemos um aforismo – o 341 – que está presente na obra A Gaia Ciência, intitulado o maior dos pesos. Em síntese o aforismo relata que um demônio, um dia, apareceria e diria que a vida, tal como vivemos hoje, se repetiria, não uma, mas incontáveis vezes, cada dor e cada prazer, tudo retornará. Então nos indaga: qual seria nossa postura perante o demônio? Iriamos amaldiçoa-lo ou estaríamos tão bem conosco e com a vida que não desejaríamos mais nada além dela? (Cf. NIETZSCHE, 2011b, p.230-231). Nesse aforismo é o que ele nos expõe um de seus mais belos pensamentos: o do eterno retorno41. Em apenas algumas linhas o filósofo nos oferece inúmeras questões a serem refletidas. Primeiro, se tudo retorna, e apenas existisse essa vida, qualquer além-vida seria descartado – seja qual for o paraíso prometido, o dos cristãos ou qualquer outro. Segundo, o maior dos pesos seria colocado em nossos ombros, pois a cada decisão de nossa vida, tomaríamos sabendo que ela iria retornar, e que a vivenciaríamos novamente, o peso de cada decisão aumenta, apenas quem estaria bem consigo mesmo poderia viver levemente. Terceiro, e não menos importante, como viés ético, o eterno retorno do mesmo não parece possível, mas seria apenas uma provocação, e esse é o ponto dramático. Cada momento, por mais doce ou amargo que fosse, a gota de chuva que caísse sob a face tocada por um raio de sol, e aquele prazer que nos encheria de energia, que nos faria dizer: Sim, obrigado vida! Esse momento jamais retornaria, sendo assim, a dor da perda ou o mais delicioso dos beijos poderia ser aproveitado apenas uma única vez. Contudo, o desejo de que aquilo retornasse, isso já seria uma forma de afirmação. Mas o desejo deve ser total, é querer a vida com seus sabores e dessabores – é o amor fati. Esse tipo de vida nos mostra que mascarar o mundo ou projetar um ideal como forma de fuga não é a postura correta. Aquele que estivesse tão bem, tão

41

No que concerne ao eterno retorno, temos duas possíveis interpretações: através da cosmologia, que surgiria que as forças estão nesse eterno circulo, ou então pelo viés ético. Aqui, adotamos a interpretação pelo caminho da ética.

52

saudável, este seria capaz de criar valores afirmativos, pois eles são consequências fisiológicas. Nietzsche é o filósofo da aparência e da mentira. Mas assume que a vida é um criar, e por isso, é aparência, pois não há o verdadeiro para se contrapor a ela. Se o ocidente mascarou a vida projetando um ideal, Nietzsche derrubou tais ídolos, e, por esse motivo, deu lugar ao novo. Lembramos a concepção de ética e moral exposta no início do trabalho – moral quer conservar, e quando o faz, nega a vida. Não há nortes verdadeiros para guiar nossa vida. Precisamos enxergar a moral como essa máscara que busca fantasiar o mundo dizendo seja assim e assim. Mas nunca nos diz: seja quem realmente são. Nietzsche lembra em um fragmento: “os valores morais como valores aparentes se comparados com os fisiológicos” (NIETZSCHE, 2002, p.127, grifo do autor). A ética que encontramos nos pensamentos oferecidos não trata de moldar a vida humana. Ela apenas proporciona orgulhar-se sua capacidade individual, de sua força criativa. Como já vimos no início, os próprios gregos a tratavam assim, precisamos recuperar o aspecto trágico da vida e, dessa maneira, reconhecer que precisamos criar valores que não busquem iludir, mas nos fortalecer. O horizonte que podemos avistar não oferece segurança, na verdade, nos oferece um nada, ou seja, um espaço grande o suficiente para plantar coisas novas. Ora, há tantos tipos, o corpo oferece-nos tanta força, alguém que deseja que sejamos de determinada maneira apenas poderia ser irônico ou mal intencionado. Ainda podemos clamar por uma vida dionisíaca, que ao fim nos permite dizer: “uma vez mais”. Amamos a vida? Isso é possível? Em um mundo onde viver parece ser sinônimo de coisas tão parcas e medíocres? Deixamos, para reflexão, as palavras do próprio Nietzsche: “É verdade: amamos a vida não por estarmos habituados à vida, mas ao amor. Há sempre alguma loucura no amor. Mas também há sempre alguma razão na loucura” (NIETZSCHE, 2011a, p.41). Viva Dionísio! Viva Nietzsche! Um filósofo que para muitos ofereceu pouco, mas em nossa perspectiva, ofereceu “apenas” a visão de que é possível, ainda, amar a vida!

53

REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerard Borhein. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Coleção Os Pensadores). BACON, Francis. Novum Organum. Tradução de José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Nova Cultura, 1999 (Coleção Os Pensadores). BARNES, Jonathan. Aristóteles. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2001 (Coleção Mestres do Pensar). BARRENECHEA, Miguel Angel de. Nietzsche e a Liberdade. 2ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. BRANDÃO, Junito de Souza. 22ª edição. Mitologia Grega Vol.1. Rio de Janeiro: Vozes, 2010. CAVALCANTI, A. H. Introdução In: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Wagner em Bayreuth. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. Tradução de Rogério da Costa. 3ª edição rev. São Paulo: Illuminuras, 2005. DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011 (Coleção contemporânea: Filosofia, literatura e artes). DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Crime e Castigo. Tradução de Paulo Bezerra. 4ª edição. São Paulo: 34, 2002. ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda. Tomo I: Da idade da pedra aos mistérios de Elêusis. Vol. II: Dos Vedas a Dionísio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978. ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol. I: Uma história dos costumes. Tradução de Ruy Jungmann. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. EURÍPIDES. As Bacantes. Tradução de Eudouro de Souza. São Paulo: Hedra, 2010. FILHO, Raul Ladim. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Loyola, 1992 (Coleção Filosofia). FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Tradução de Roberto Machado e Eduardo Jardim Morais . Rio de Janeiro: Nau, 2005. _____. “Nietzsche, a genealogia e a história” In: _____. Microfísica do Poder. 25ª edição. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2011. FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: LP&M, 2013 (Coleção LP&M Pocket).

54

FREZZATTI JR, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: A superação da dualidade cultura/biologia. Ijuí: Unijuí, 2006 (Coleção Nietzsche em Perspectiva). HATAB, Lawrence. Genealogia da Moral de Nietzsche: Uma Introdução. Tradução de Nancy Juozapavicius. São Paulo: Madras, 2010. HILL, Christopher. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. Tradução de Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. LEBRUN, Gerard. Quem era Dionísio? Tradução de Maria Heloisa Noronha Barros. In: A Filosofia e sua História. São Paulo: Cosac e Naify, 2006. LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. Tradução Lúcia M. Endlich Orth. São Paulo: Vozes, 2005 (Série Compreender). LOPES, Rogério Antônio. Elementos de Retórica em Nietzsche. São Paulo: Loyola, 2006 (Coleção Filosofia). MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 2ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 2002. MARTON, Scarlett. Da Biologia à Física: Vontade de Potência e Eterno Retorno do Mesmo. Nietzsche e as Ciências da Natureza. In: BARRANECHEA, Miguel Angel [et al.] (Org.). Nietzsche e as Ciências. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. _____. Da realidade ao sonho: Nietzsche e as imagens da mulher. Estudos Nietzsche, Curitiba, v.1, n.1, p.161-179, 2010c. _____. Nietzsche A Transvaloração de Todos os Valores. São Paulo: Moderna, 1993 (Coleção Logos). _____. Nietzsche filósofo da suspeita. São Paulo: Casa da Palavra, 2010b. _____. Nietzsche: Das forças cósmicas aos valores humanos. 3ª edição. Belo Horizonte: UFMG, 2010a. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche: A filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia. Tradução de Claudemir Araldi. São Paulo: Unifesp, 2011. NAPOLITANO, Marcos; WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o samba é samba: a questão das origens no debate historiográfico sobre a música brasileira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.20, n.39, p.167-189, 2000. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do Bem e do Mal. Tradução de Paulo Cesar de Souza. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. _____. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011a. _____. Crepúsculo dos Ídolos. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010b.

55

_____. Fragmentos Finais. Tradução e seleção de Flávio Kothe. Brasília: UnB, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. _____. Genealogia da Moral. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010a. _____. Humano Demasiado Humano. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. _____. O Anticristo. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 2007. _____. O Nascimento da tragédia. Tradução de Jacob Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. _____. O Livro do Filósofo. Tradução de Ana Lobo. Porto: Rés, [s/d]. _____. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral. Tradução de Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2011c (Estudos Libertários). _____. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011b. _____. Ecce Homo. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008. PALLÁS, Raúl Gabás. Los Ídolos de Nietzsche. Ítaca, Rio de Janeiro, n.21, p.26-53, 2012. PLATÃO. A República. Tradução de Albertino Pinheiro. 3ª edição. São Paulo: Atena, 1940. _____. Fédon. Tradução de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 5ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1991 (Coleção os Pensadores). _____. Fedro. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 2ª edição ver. Belém: Editora Universitária UFPA, 2007. _____. Sofista. Tradução de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 5ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1991 (Coleção os Pensadores). ROUGUE, Christophe. Compreender Platão. Tradução de Jaime A. Clasen. Rio de Janeiro: Vozes, 2005 (Série Compreender). SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche, Biografia de Uma Tragédia. Tradução de Lya Luft. São Paulo: Geração editorial, 2005. SINGER, Peter. Ética Prática. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998. SPINELLI, Miguel. Questões fundamentais da filosofia grega. São Paulo: Loyola, 2006 (Coleção Filosofia).

56

_____. Sobre as diferenças entre Éthos com Epsílon e Êthos com Eta. Revista Trans/Form/Ação, São Paulo, 32 (2): p.9-44, 2009. STIRN, François. Compreender Aristóteles. Tradução de Ephraim F. Alves. Rio de Janeiro: Vozes, 2006 (Série Compreender). VELOSO, Caetano, GIL, Gilberto. Desde que o samba é samba. In: _____. Nova Iorque: Wea, 1993. 1 CD. Faixa 12 (5 min 11 s). VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Tradução de Joana Angélica D’Avila Melo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. YAZBEK, André Constantino. 10 Lições sobre Foucault. Rio de Janeiro: Vozes, 2012 (Coleção 10 Lições).

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.