Nietzsche, escrita, educação: aproximações a um problema de pesquisa [TCC]

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, COMUNICAÇÃO, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

NIETZSCHE, ESCRITA, EDUCAÇÃO: APROXIMAÇÕES A UM PROBLEMA DE PESQUISA

GUILHERME MAGALHÃES VALE DE SOUZA OLIVEIRA

SÃO PAULO 2011

GUILHERME MAGALHÃES VALE DE SOUZA OLIVEIRA

NIETZSCHE, ESCRITA, EDUCAÇÃO: APROXIMAÇÕES A UM PROBLEMA DE PESQUISA

Dissertação

apresentada à

Faculdade

de

Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito parcial para obtenção do título de Licenciado em Filosofia. Orientador(a): Yolanda Gloria Gamboa Muñoz

SÃO PAULO 2011

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à todos aqueles que ainda acreditam, mas não sabem bem em que

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AGRADECIMENTOS

Qualquer manifestação de agradecimento aqui é apenas uma menção à minha profunda gratidão às pessoas que fizeram possível este trabalho.

Agradeço principalmente à minha família que, literal e amorosamente, bancou e suportou minha vontade de empreender esta viagem até aqui.

À PUC-SP e ao Corpo Docente do Departamento de Filosofia, pela abertura de caminhos, entre belíssimos encontros com documentos e seres humanos, nos estudos científico-filosóficos.

Aos meus companheiros de disciplinas que com graça e instigação compartilharam comigo a amizade pelo saber, a deriva de destinos.

À professora Yolanda Glória Gamboa Muñoz, sábia aventureira, que com ânimo, alegria e coragem me acolheu no fim desta longa jornada.

Ao professor Julio Groppa Aquino, que insuflou novos ares para a continuação desta e de outras viagens.

A todos aqueles, próximos e distantes, que me acompanharam e me acompanham nesta errância: pois sem eles, senão impossível, nenhuma morada ou caminho seria suportável. A isso chamo amizade. Aos outros, sempre porvir – pois creio serem a esses desconhecidos encontros, para além e aquém de si mesmo, que se destina qualquer ação: principalmente, aquela a que costumamos chamar de educação. A isso também poderíamos chamar de amizade...

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Justamente a precaução exige, como o faz com tanta frequência, o risco da vida. (…) Também aquela saída não me salva, como provavelmente ela não me salva em caso algum, antes me arruína, entretanto é uma esperança e eu não posso viver sem ela. (Franz Kafka, A Construção)

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RESUMO

Tendo em vista o cenário e as problematizações contemporâneas sobre as práticas pedagógicas e acadêmicas com o foco nos modos de escrita, nosso trabalho partiu da seguinte pergunta: para um homem que a maior parte de sua vida passou escrevendo, ofício que para ele mesmo era uma “espécie de loucura”, haveria explicita ou implicitamente, no que Nietzsche escreveu sobre a escrita, uma doutrina teórica e técnica ou mesmo uma pedagogia do exercício escritural? – Antes, quais seriam as relações entre escrita e educação na obra do filósofo alemão? Propusemo-nos, então, a realizar uma revisão temático-bibliográfica sobre o problema da escrita no interior da obra nietzscheana entre os fecundos anos de 1878 e 1886. De par dessa revisão, outras passagens nos foram úteis para compreender a relação da escrita com a educação, como por exemplo, as sobre práticas ascéticas e a investigação histórico-genealógica, duas frentes de trabalho que poderiam compor, a nosso ver, o que Nietzsche entendeu por auto-educação [Selbst-Erziehung]. O trabalho realizado figura, desta feita, como um esforço para vislumbrar, no que o filósofo fez com e sobre a escrita, seu contributo crítico às perspectivas educacionais de sua época, ao mesmo tempo em que permite entrever, para o leitor, a possibilidade da escrita como plataforma pragmática pela qual se operam diferentes relações entre o sujeito e a escrita, entre sujeito e verdade ou, nos termos foucaultianos, entre subjetivação e veridicção.

Palavras-chave: Nietzsche; escrita; educação; Foucault.

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ABSTRACT

Having in mind the contemporary context and the questioning of pedagogical and academic practices focusing on modes of writing, the present work has come to being from the following interrogation: for a man who spent most of his life writing – occupation which consists, as Nietzsche himself admitted, in a “kind of madness” – would there be in what he wrote, explicitly or implicitly, a technical and theoretical doctrine, or maybe a pedagogy of scriptural exercise? In other words, what would be the connections between writing and educating according to the philosopher’s works? Having said that, we aim at carrying forward a thematic-bibliographical revision on the issue of writing, as thought of by Nietzsche, between the fertile years of 1878 and 1886. Along with this perspective, some other passages have been useful to us in order to comprehend the link between writing and education, i.e., ascetic practices as well as the historical-genealogical inquiry, two distinct approaches suggested by Nietzsche that could as well form, as we see it, what the philosopher has understood in terms of a selfeducation. Thus, the present work makes an effort to understand, within that which Nietzsche wrote with regard to the subject of writing, what his critical contributions concerning the educational perspectives of his time were, at the same time as providing the reader with the opportunity to possibly conceive writing as a pragmatic platform through which several subject-writing, subject-truth or, in Foucault’s perspective, subject-veridiction relations would take place.

Key-words: Nietzsche, writing, education, Foucault.

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ..................................................................................................... 4 RESUMO ......................................................................................................................... 6 SUMÁRIO ........................................................................................................................ 8 APRESENTAÇÃO ........................................................................................................... 9 I. INTRODUÇÃO: APROXIMAÇÕES A UM PROBLEMA DE PESQUISA ............. 15 I. 1. Nietzsche, filosofia, vida: uma abordagem via educação .................................... 20 I. 2. Uma problemática educacional na filosofia alemã dos séculos XVIII-XIX: entre Erziehung e Bildung.................................................................................................... 29 I. 3. Educação para a maioridade: o problema da tutelagem na Aufklärung kantiana 31 I. 4. Uma concernência ética: o uso racional de si mesmo ......................................... 33 I. 5. Da filosofia antiga à filosofia moderna: a questão da prática parrésica como crivo analítico ....................................................................................................................... 34 I. 6. Pedagogia e governamentalidade: descrição de uma realidade educativa .......... 36 I. 7. Porque Nietzsche? ............................................................................................... 38 II. NIETZSCHE E EDUCAÇÃO ................................................................................... 40 II. 1. Educação: viagem ou errância? .......................................................................... 44 II. 2. 1886, revisão de um programa escritural ético-farmacopaico ........................... 46 II. 3. Educação e dessubjetivação: da vida escolar à auto-educação .......................... 49 II. 4. Algumas notas sobre as concepções e as críticas de Nietzsche sobre o processo constitutivo/educacional do sujeito ............................................................................. 52 II. 5. Passagens sobre educação nas obras selecionadas de Friedrich Nietzsche ....... 57 III. NIETZSCHE E A ESCRITA ................................................................................... 75 III. 1. Modernidade, ciência experimental e escrita .................................................... 78 III. 2. Leonardo, escritor e inventor de si? .................................................................. 79 III. 3. Ler e escrever no Zaratustra .............................................................................. 80 III. 4. Passagens sobre escrita nas obras selecionadas de Friedrich Nietzsche .......... 83 IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 100 V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 111

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APRESENTAÇÃO

Após tamanhos debates, tantos discursos, resta algo a dizer? – Com esse ímpeto, muitas vezes cambaleante, nos lançamos à busca de um tema para a investigação filosófica; para só depois pensar num problema, no que haveria de problemático aqui e agora que lá onde se vai buscar perguntas e respostas pudesse iluminar para as trevas do presente. Nosso temor, ou nossa preguiça, quiçá, venha pelo peso dos vastos idealismos heroico-acadêmicos que um autor, que uma linha de pensamento ou uma obra, quase que inevitavelmente carrega ao longo da história, fazendo-nos cair em lisonjas e vícios analíticos, invencionices de linguagem e convicção precatória, tornando-nos servos ideológicos de uma distopia melhorada; ou talvez venha mesmo pelo fato de acabarmos como escrivães-marqueteiros dos empoleirados sábios-comentaristas, de discussões insípidas e insidiosas. Mas mesmo assolados pelo gasto e pelo sem gosto, procuramos alimentar um apetite, arquitetar um interesse, elaborar um problema que nos sobressalte, tomar um saber ou uma prática cotidiana como objeto de obsessão e de volição, uma tradição como plataforma de crítica e invenção. Lançamo-nos em alguma pergunta que, para nós, ainda não estaria bem respondida, ou antes, não estaríamos convencidos e satisfeitos com suas respostas. Após um percurso de leitura e escrita de trabalhos, filmes assistidos, diálogos empreendidos, mais leitura, anotações esporádicas ou metódicas, leituras e escritas fragmentárias... Cabeça cheia fica-nos ainda a questão: o que vale a pena ser falado, nesse mundo de interpretações, visões, perspectivas, ideais, signos, essa imensidão de significados e sentidos? O que cada trabalho de conclusão de curso de cada aluno de filosofia de todos os anos ainda pode falar ou ensinar, deve falar?: – Por que tudo isso? Ou – para quê tudo isso? O que é tudo isto? Ainda, um problema da “episteme”, do conhecimento. Um problema do excesso, do desmedido. Mas também, um problema da escrita, do escrever. E, quem sabe, enfim, um problema da experiência e da expressão, de um despertar, de um criar, de uma educação. Entendemos, pois, que após muitos pensarmos sobre um pouco de tudo isto, chegou a hora de deixar para trás ou simplesmente de lado. Quiçá, enfim, por hora, superados.

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Acercando-se desse tudo isto a partir de um filósofo e um recorte temático, sigamos, então, o conselho de Peter Sloterdijk (SLOTERDIJK, 2004) e deixemos um pouco de lado os comentários, demasiados e infinitos, e concentremo-nos numa releitura – também ela, demasiada e infinita – da obra e filosofia de Friedrich Nietzsche. Como este quis, na medida do possível, concentrarmo-nos numa lenta leitura de pelo menos alguns de seus fragmentos que tratem, especificamente, da escrita e das relações possíveis que a envolvem. Uma leitura quiçá arbitrária, mas também respeitosa, de certa maneira fria, cautelosa, sem ser rodeada de muitas apresentações e paixões. Atentemo-nos, pois, a esse exercício um tanto datado, um tanto também excessivo em Nietzsche. Mas, quem sabe, para nós, será atentar para uma primeira leitura sua, par excellence, a partir do como e do que ele escreve sobre o escrever. Não pretendemos trazer nenhuma tese inovadora ou mesmo uma proposta de conclusão, de definição do que seja o objeto “escrita” em ou para Nietzsche. Para nós, mais do que um trabalho inovador, ele se prestou antes como uma prova de fôlego do que de criatividade. Dar conta dessas passagens sobre a escrita nas obras do filósofo alemão nos parecia uma expressão de vontade e interesse em investigar e deixar falar – de “pôr na mesa” – o que Nietzsche tinha a dizer sobre aquilo que ele mais fez ao longo da sua vida: escrever. Não intentamos, contudo, trazer todas as passagens as quais Nietzsche se refere à escrita, mas antes, arbitrariamente, dar uma visão de conjunto, tentando conjugar as passagens transcritas por meio de indicações temáticas, nem que seja para mostrar uma miríade bricolada do tema da escrita, com suas incongruências, seus deslocamentos, suas contradições, suas instabilidades enquanto prática de constituição de uma obra – e de si mesmo. Talvez, poderíamos dizer que pretendemos elaborar uma espécie de ensinamento kafkiano sobre a construção – ou a educação – ética de si mesmo: de nossa morada, de nosso refúgio, de nossa vida. Talvez, nossa única esperança para suportar o inevitável, o imponderável.

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Esse trabalho é a realização de uma revisão temático-bibliográfica em algumas obras de Friedrich Nietzsche, que se compreendem no período histórico de 1878 a 1886, sobre o tema e o problema da escrita. Essa revisão consistiu em cartografar, nas obras do período destacado, as principais aparições dos termos escrita e escrever. Outros termos como escritura, palavra/s, escritor/es, poeta/s, literato/s, pensador/es, professor/es, livro/s, ler e educação foram também incluídos nessa cartografia, abarcados a medida que foram aparecendo na nossa leitura. Esses outros termos, a nosso ver, são o pano de fundo sobre o qual Nietzsche faz uso de e diz sobre a questão da escrita – sua arte, sua prática, sua ética. Nosso problema se destaca, então, desses usos e ditos sobre a escrita: o que Nietzsche diz, escreve sobre a escrita? Qual é a importância dessa prática para sua vida e sua obra? Ele propõe ou prescreve algo com relação a esse exercício? Quais são suas funções, quais são suas técnicas? Será uma teoria sistemática do como se diz e se escreve algo? Será uma pedagogia do ensino da leitura e da escrita? Será uma literatura de formação? Será uma doutrina artística ou ascética, para o cultivo de si mesmo? Em última instância, para quem passou boa parte da vida escrevendo, o que para esse filósofo alemão seria uma “espécie de loucura”, qual é a relação entre a perspectiva nietzscheana da educação e sua própria (e a alheia) prática escritural? Nossas questões se transformaram, por sua vez, em hipóteses: a partir dos diversos usos que fez da escrita, das funções a ela atribuídas, dos deslocamentos e dos estilos que o filósofo alemão escolheu e praticou com e sobre ela, diferentemente de um projeto formativo e mesmo de uma literatura de formação, é talvez possível vislumbrar uma ética da escrita nietzscheana atrelada a um exercício ético de constituição do sujeito? Entendendo ética como o campo do possível tanto para a liberdade quanto para o poder, e exercício como “prática ascética”, mais do que conceber uma doutrina teórica e técnica, total e estática, ou mesmo um projeto pedagógico-formativo único e definitivo, tal ética da escrita operaria reconfigurações das hierarquias tradicionais das práticas pedagógicas modernas, operando múltiplos deslocamentos nas relações e funções desempenhadas, por exemplo, na relação entre mestre e discípulo. Dessa maneira, a título meramente de esquema, nosso trabalho se divide em três partes. Uma primeira, situando a problemática da escrita e da educação em Nietzsche numa problemática histórica mais ampla, a do governo de si e dos outros na modernidade. Problemática que Michel Foucault, muito devido aos estudos

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nietzscheanos, estabelece como uma tensão, filosófica e ontológica, entre verdade e subjetividade. O problema do governo de si e dos outros, o problema da governamentalidade propriamente dita (FOUCAULT, 2008c), aborda, como queremos entender, outros temas um tanto mais específicos, não tão menores quanto mais escorregadios, problemáticos no sentido de serem alvo e objetos constantes de diversas “ciências” nos últimos tempos. Logo, quais seriam esses temas escorregadios, familiares e ao mesmo tempo incômodos para nosso século, nossa época? A nosso ver, talvez, temas como o da autoeducação ou “educação por si próprio”; da autoformação ou de uma educação para a emancipação e para o esclarecimento [Aufklärung]. Temas muito valorizados pela Teoria Crítica alemã do século XX (ADORNO, 1995); temas também muito recorrentes nas ideologias político-econômicas como o fascismo e o socialismo1. Tema também muito valorizado nas perspectivas educacionais modernas, principalmente a partir de meados do século XX (construtivistas, teologias da libertação, etc.), fundamentadas, sobretudo, pelas ciências neuropsicológicas e psiquiátricas, valendo-se de seus termos e usando suas prerrogativas para estruturar suas práticas pedagógicas. A educação passa, então, quiçá, a ser entendida como essa ciência e essa arte que mais evidencia a correlação constitutiva entre verdade e subjetividade. Passa-se a demandar da pedagogia uma ciência da educação, dando cabo de compreender não só a natureza humana, como uma arte e estratégia legítima em termos lógico-racionais para se governar a si mesmo e o outro. Constituem-se verdades sobre o ser do homem; estabelece-se regras, práticas, hábitos de conduta para esse homem ideal. Uma história da educação e uma filosofia da educação talvez deveriam dar conta, de maneira árdua e tão somente, de esquadrinhar e de desenredar as tramas culturais e dos costumes, que ao longo da história, entre acaso, desejo e necessidade, 1

As perspectivas educacionais do fascismo, do socialismo e das ideologias liberais, todas oriundas do efervescente período do início do século XX, apesar de uma aparente distância entre seus valores morais ou fins políticos, possuíam um projeto formativo em comum, um ideal formativo em comum: parecido em procedimentos e fins práticos, todos por meio do dispositivo escolar, crendo numa verdade única sobre a realidade e na formação total de um ser humano a partir da mesma, na parte física e moral, ideologicamente constituído e “desalienado” dos “erros” provenientes de outras perspectivas ideológicas. Cf. SOARES, Rosemary Dore. “A concepção socialista da educação e os atuais paradigmas da qualificação para o trabalho: Notas introdutórias”. In Educação & Sociedade, ano XVIII, nº 58, julho/97; HORTA, José Silvério Baia. “A educação na Itália Fascista: a reforma Gentile (1922-1923)”. Comunicação no site da Sociedade Brasileira de História da Educação, , acesso em 18/12/11; e o célebre estudo de MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial: O Homem Unidimensional. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, talvez aponte diretamente a esta questão: a formação de um ser humano dito, considerado “livre” seria uma formação única, definitiva, absoluta?

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foram determinando as relações entre verdade e subjetividade, constituindo configurações ético-políticos de se governar uma vida. Relações e configurações essas que, para Foucault, se acentuam segundo uma arte de governar através da verdade ao longo da modernidade. Ápice, talvez, que ocorre com as ciências humanas a partir do séc. XIX, segundo a perspectiva de uma verdade ontológica e antropológica definitiva sobre a natureza, a essência, o ser do ser humano. Sob esse corte da governamentalidade e da pedagogia, mas especificamente situada no século XIX, gostar-se-ia de trazer a baila de que maneira Nietzsche poderia tomar parte dessa discussão. Entender-se-á que a questão da educação para Nietzsche, longe de estar resolvida ou longe de ser uma resposta definitiva ao problema educacional, passará a dialogar com esse contexto muito mais amplo, a ver, o de uma educação em termos universais e humanistas, perspectiva própria da Europa como um todo nos séculos XVIII-XIX e tema muito discutido por uma filosofia alemã dessa mesma época. Uma segunda parte prestará a função de elucidar algumas passagens das obras nietzscheanas em questão para talvez constatar que Nietzsche toma parte dessa discussão de maneira muito controversa. De uma primeira abordagem a favor de uma educação para a arte e para a cultura, na crença de uma educação que nos tornasse eruditos, emancipados, Nietzsche passará sistematicamente à desconstrução de uma instituição e de uma ideia de educação, de condução do outro, para uma ideia de cultivo, de autoformação de si, a partir de certas técnicas e práticas tanto ascéticas quanto investigativas e científicas. Assim, a educação para Nietzsche, mais do que estar a par de um projeto formativo que determinaria o destino do homem, que asseguraria a este ser humano sua formação necessária e universal, educação que o salvaria, essa educação nietzscheana estaria mais para um processo errante do que destinatário, mais para um processo de superação de si mesmo do que de formação de si mesmo. Nesse sentido, a idéia de “andarilho” comporia a metáfora para tal processo. Numa terceira parte, enfim, exporemos algumas passagens, compreendidas principalmente entre o período de 1878-1886, sobre os usos de Nietzsche para a escrita ao longo de sua vida. A exposição dessas passagens consistirá em constatar a polivalência e a mutabilidade que a função da escrita tem em Nietzsche, desvinculando seu exercício de uma teoria sistemática e fechada dessa prática. Mostrando também a relação dessa prática com outras, como a leitura e o andar, a escrita poderá se mostrar como uma plataforma pragmática e útil para desenvolver não só investigações histórico-

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científicas como para intervir nos processos de constituição ético-moral do sujeito, intervindo e desarticulando as relações entre verdade e subjetividade vigentes. Com efeito, compartilhando de uma instigante hipótese foucaultiana (FOUCAULT, 2010), quisermos pôr a prova de que modo Nietzsche realocou uma série de preceitos e práticas da antiguidade filosófica em sua própria filosofia. Tentar-se-á amparar a ideia de que, ao final, diferentemente de uma doutrina técnica ou artística ou de uma pedagogia, o exercício escritural em Nietzsche estaria vinculado mais a um jogo ético instável, arriscado e sem uma hierarquia de valores fixos, sem metas formativas muito explícitas ou definitivas. Diversamente de uma viagem com um destino prédeterminado e imutável, a escrita estaria disposta no cerne do complexo e errante processo de constituição de si mesmo, considerado como uma “educação por si próprio”, como uma atividade para o exercício ético de superação de si mesmo ou do tornar-se o que se é.

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I. INTRODUÇÃO: APROXIMAÇÕES A UM PROBLEMA DE PESQUISA

O pensamento pensa sua própria história (passado), mas para se libertar do que ele pensa (presente) e poder, enfim, ‘pensar de outra forma’ (futuro). Gilles Deleuze, Foucault.

Não são poucos os trabalhos sobre Friedrich Nietzsche e educação. O que ele disse, o que foi dito sobre, como ele foi apropriado por outros, são temas recorrentes em pesquisas acadêmicas. Pode-se dizer até que, por mais impreciso que seja, nas últimas décadas, as perspectivas filosóficas nietzscheanas se espraiaram na academia, muito pela retomada francesa desse autor nos anos 60, o que culminou também no uso dessas perspectivas como plataformas analíticas no campo da pesquisa educacional. Podemos dizer, a título de esquema, que ocorrem dois tipos de apropriação de Nietzsche na academia. Um uso mais estritamente temático, conceitual-explicativo, pedagógico-escolar, de formatação, transmissão e comentário de sua filosofia. Apropriação necessária, muito instrutiva, rica em questionamentos e desenvolvimentos de problemáticas. Sob a condição de um círculo de leitura e crítica compartilhada, rotativa, tal arsenal crítico dura gerações e resulta numa ampla bibliografia para consulta. Mas há outro tipo de apropriação, digamos não tão ausente no primeiro, mas mais concentrada num aspecto metodológico do que temático das obras de Nietzsche. Essa apropriação por um viés metodológico, procedimental, estratégico, é um uso que procura se valer de seus escritos como plataformas analíticas de outros temas e conteúdos, como disparadores de novas pesquisas histórico-morais, como orientações de leituras e conexões/inversões inesperadas, diálogos improváveis entre conceitos, ideais, problemas heterogêneos. Esse viés compartilha da visão de um Nietzsche como arquivo histórico, mas também de um Nietzsche como acontecimento, enquanto um sintoma e controversamente um deslocamento de uma passagem histórica. Assim, é então possível vislumbrá-lo também como um paradigma do pensamento moderno, das

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tarefas e limites do pensar e das ciências ditas humanas (MUÑOZ, 2002). Encarar Nietzsche menos como um erudito do que um criador, menos um filósofo do que um pensador, menos um poeta do que um escritor é tê-lo como um companheiro da viagem investigativa, como um operador metodológico dos nossos problemas. Valer-se de suas práticas investigativas e genealógicas, do teor de suas investidas teórico-científicas sobre a história, as ciências humanas e a constituição cultural, moral e ética de sociedades em diferentes épocas, traça a possibilidade de desenredar o pensamento dos valores e das hierarquias morais, das lógicas e dos hábitos culturais em vigor que o ordenam. O uso dessa reflexão metodológica que Nietzsche nos legou, permite-nos olhar com outros olhos o presente. O uso metodológico também toma Nietzsche, então, como um arquivo histórico. É entender que ele toma parte de uma problemática histórica, com suas contingências e acasos, com suas condições de possibilidade, com suas regras, com suas exceções. E que nem ele, nem a sua obra, dizem respeito a uma resposta definitiva a esses problemas. Período histórico de efervescência das investigações científicas, da elaboração de perspectivas e métodos científicos, Nietzsche aparece como aquele que refletiu e historiou sobre os modos de fazer ciência, de dizer o conhecimento, mostrando seus limites e suas arbitrariedades. Ao pôr em questão a relação entre homem e conhecimento, entre conhecimento e realidade, ao atribuir ao conhecimento uma origem não-religiosa e um fim não transcendental, o filósofo alemão realoca os acontecimentos humanos de novo na ordem do devir histórico, de uma teleologia, senão inexistente, desconhecida, caótica:

[...] a teleologia se baseia no fato de se tratar o homem dos últimos quatro milênios como um ser eterno, para o qual se dirigem naturalmente todas as coisas do mundo, desde o seu início. Mas tudo veio a ser; não existem fatos eternos: assim como não existem verdades absolutas. – Portanto, o filosofar histórico é doravante necessário [...] (NIETZSCHE, 2006b: 2)

Por meio dessa noção de um movimento histórico, desse sentido histórico [historische Sinn], nas palavras do autor, problematizam-se então as condições de emergência e proveniência das verdades, dos conceitos, das ideias, dos valores, a fim de avaliá-los de acordo com a pluralidade das culturas, da história e dos acontecimentos.

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Deste modo, Nietzsche, também pode ser encarado, por esse viés metodológico, como um acontecimento e como um paradigma, como aquele que pôs em questão o “valor dos valores”: em que medida uma valoração – um juízo – favorece isso e não aquilo? Porque aquela “verdade” foi deixada de lado? Como isso se tornou “bom” e aquilo passou a ser “mau”? São estes tipos de questionamentos que põe em cheque a universalidade e a necessidade de certos valores morais e de conduta, de certos juízos, de certas verdades. Essa abordagem nietzscheana de tratar o conhecimento como criação e não como natureza, permite-nos abordar a problemática da verdade, do que é tido como verdade e do que tem efeito de verdade, em relação as suas variadas formas ao longo da história. Paradigma da filosofia moderna e das ciências humanas porque acontecimento, histórico e cultural, que deslocou e ainda desloca, revolta, continuamente reorganiza e re-hierarquiza a investigação filosófica e as possibilidades e os limiares do pensamento ocidental moderno com respeito a si mesmo, ao mundo e ao ser humano que o habita. Por meio desse legado teórico-metodológico nietzscheano, dessas apropriações, desses vieses problematizadores catapultados de sua obra, pensamos ser possível efetuar o que o filósofo francês Michel Foucault (2008a) afirmou como sendo a tarefa da filosofia: um diagnóstico do presente pela investigação histórico-genealógica e científica. A partir dessa investigação, por fontes e documentos heterogêneos – tratados, jornais, cartas, poesias, legislações, manuais –, elabora-se um diálogo, uma confrontação de “realidades”, um desnudamento da “natureza imóvel” de um juízo, de um julgamento, de um conhecimento, de um modo de vida, que constituiria os fundamentos de uma “realidade primeira e última”. Dessa confrontação, passamos a discernir e a caracterizar minuciosamente as constituições e as origens dessas realidades arbitrárias: suas apropriações, suas origens não tão gloriosas, suas contradições e oposições. Essa confrontação por meio de um recorte do que foi pensado, quisto e desprezado outrora, pode nos evidenciar uma diferença última (VEYNE, 2009), um corte, um desvio no rumo num impulso vigente – habitual, cultural, psicológico –, exibindo os variados desníveis de um determinado campo do conhecimento ou da prática social ao longo da história. Evidencia-nos, quiçá, a transitoriedade do conhecimento, das práticas sociais, das maneiras como vemos e vivemos isto que se chama de “realidade” e “verdade”. Como Foucault (2005) nos lembrou, tal diagnóstico nos permite esmiuçar as formações do conhecimento como o resultado de um processo fisiológico em prol da

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sobrevivência, entendendo o impulso “natural” de conhecer como antinatural, isto é, como da ordem da estratégia, do artifício, da produção humana frente à necessidade de sobreviver. Em outras palavras, o conhecimento é essa força antinatural de contenção e organização de impulsos, analítica e não orgânica, mas também tirânica, que abre caminhos para a dominação e a obediência, ao poder e à potência. Por isso mesmo, necessária: mais do que manter uma relação de semelhança com a realidade, o conhecimento é uma simplificação ou uma falsificação, um erro, um engano, uma ilusão [Täuschung]. Ilusão que estabelece um tipo de relação com o real, com as coisas, com a vida. Ilusão, não obstante, mais do que útil, necessária à vida: esta a quer, vive de ilusão (NIETZSCHE, 2006b: Prólogo, 1; 2006c: 24)2. Conhecimento, ilusão, moral: “entenda-se como a teoria das relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno ‘vida’” (NIETZSCHE, 2006c: 19). Moral e pensamento, moral e corpo, moral e cultura. Entrelaçamento entre pensamento e corpo, entre filosofia e fisiologia. Modos de vida codificados e disciplinados por certos gostos, juízos e crenças ao longo de um processo histórico em transformação. Modos de vida codificados e disciplinados por uma hierarquia de valores que muitas vezes são assumidas como regra inquestionável, intransponível (NIETZSCHE, 2006b: 1). O diagnóstico do presente por meio de uma investigação histórico-genealógica é desentrelaçar

essas

arbitrariedades

tidas

como

“universais”,

“infinitas”,

“transcendentais”, “sagradas” ou simplesmente “boas”, afim de que elas apareçam, senão tal como elas aconteceram, ao menos evidenciadas suas tramas menores, suas contenções de fluxos, seus interesses contraditórios, sua estranha composição que lhes deu a “vida” – seu sentido histórico:

O sentido histórico é muito mais próximo da medicina do que da filosofia. [...] A história tem mais a fazer do que ser a serva da filosofia e narrar o nascimento necessário da verdade e do valor; ela deve ser o conhecimento diferencial das energias e dos desfalecimentos, das alturas e das profundezas, dos venenos e dos antídotos. Ela deve ser a ciência dos remédios. (FOUCAULT, 2008a, p.274)

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A citação de passagens das obras de Nietzsche será realizada ora referindo-se ao número do aforismo antecedido pela data da edição e o símbolo de dois pontos; ora referindo-se à página onde consta tal passagem. Ambas visam facilitar a identificação dessas passagens na maioria das obras, quando, por exemplo, essas passagens não se encontram em aforismos.

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A história, essa produção de signos, memória viva, farmacopeia da criação cultural humana, palco dos problemas e das respostas a esses problemas; a história é essa “ciência dos remédios”: mais essa atividade de se debruçar sobre o movimento, sobre o devir histórico, sobre seus rastros sem traços, suas incongruências produtivas, do que projetar um fim último desse movimento, sua evolução linear, seu progresso. A história como pesquisa do que foi, em ruínas, deixado para nós, é tomar os fragmentos do que o ser humano fez e se transformou para recompô-los na infinita miríade de cultura e conhecimento, destituindo-os de sua autoridade metafísica e indagando-nos sobre a possibilidade de se inserir no pensamento presente uma diferença, um pensar diferente. Uma ciência, um saber, uma filosofia histórica, de cunho genealógico3, debruçada sobre os acontecimentos, não procurando sua origem, mas sua eterna e movente composição lida com aquilo que venceu e foi vencido, com os venenos e com os antídotos, pensamento científico que é uma longa depuração dos efeitos nefastos que podem ter os impulsos, mesmo os de verdade, para o conhecimento e para a sobrevivência do ser humano. Processos alquímicos, intensivos, purificadores, amálgamas de impulsos e juízos, sob contínuas apropriações, disciplinando umas as outras, perdendo-se em muitas formas até aprender a coexistência organizadora dessa multiplicidade que compõe o pensamento, o corpo, a vida (NIETZSCHE, 2006b: 1; 2007: 113).

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Leitor assíduo e quiçá o herdeiro que mais honrou a tarefa do filósofo alemão, Foucault “usaria Nietzsche como operador” (MUÑOZ, 2002, p.36). Nessa leitura, instiga-se a possibilidade de operar a união do pensamento científico com as forças artísticas e a sabedoria prática da vida (NIETZSCHE, 2007: 113); encruzilhada entre filosofia, ciências, artes e práticas do cotidiano: ler a realidade, produzi-la, vive-la. Recorte teórico nietzscheano-foucaultiano que evidencia a tarefa de um pensador: a de interpelar perpetuamente a atividade e o produto do conhecer, “[...] questionar o objetosujeito das próprias ciências humanas; vias que, ao mesmo tempo, não poderiam ser 3

Segundo GIACOIA (2000), “de acordo com esse método [genealógico], a explicação de um fenômeno qualquer depende sempre da reconstituição dos momentos constitutivos de seu vir-a-ser, de tal maneira que o sentido atual desse fenômeno não pode ser obtido sem o conhecimento da série histórica de suas transformações e deslocamentos".

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afastadas das diretrizes constituídas pela ‘problematização constante’ e pelo ‘diagnóstico dos perigos’.” (MUÑOZ, 2002). Problematização constante e diagnóstico dos perigos. Problematização dos conceitos, dos procedimentos, dos hábitos, dos modos de vida. Análise dos riscos e perigos que rondam qualquer modo de vida: de se tornar fraco, obsoleto, de causar dano a si mesmo, de diminuir a potência de vida, de mata-lo. Esse uso operador das artes e dos saberes humanos, esse uso artístico das ciências, essa prática experimental da filosofia, essa re-apropriação da produção cultural numa história sem fim de criações e interpretações humanas: “interpretar: el infinito: el mundo. ¿El mundo? ¿Un texto?” (BLANCHOT, 1973)4. Aqui, história, filosofia e ciências como invenção da vida: esta entendida não como um substantivo próprio, incólume, mas na medida em que pode ser produzida sua vivacidade. Na transversalidade do uso desses procedimentos, poderíamos nos aproximar do que Oswald de Andrade quis com a antropofagia, pois parte-se, em última instância, de uma apropriação imoral do “homem” para fundar outros homens, outras morais, outros valores; movimento estritamente histórico-farmacopoético-antropofágico como uma “prática pública da vida”5, em favor da mesma. Lemos o que foi escrito. Vemos o que foi produzido. Mas não revivemos o que foi vivido. A partir desse contato com o túmulo do que foi cultivado – o signo –, trazemos à tona tão somente a eterna vivacidade (NIETZSCHE, 2008a: 408) das forças que alimentam as inúmeras vidas que viveram e que poderão viver ainda:

Se considerarmos que toda ação de um homem, não apenas um livro, de alguma maneira vai ocasionar outras ações, decisões e pensamentos, que tudo o que ocorre se liga indissoluvelmente ao que vai ocorrer, perceberemos a verdadeira imortalidade, que é a do movimento [...] (NIETZSCHE, 2008a: 208.)

I. 1. Nietzsche, filosofia, vida: uma abordagem via educação Pode-se apreender na obra nietzscheana uma relação intrínseca entre filosofia e

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Algo como próximo do pensamento do “eterno retorno”? Daí sua implicação ética e científica? Cf. O círculo vicioso de Pierre Klossowski. 5 Cf. Manifesto antropofágico de Oswald de Andrade.

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vida, entre essa atividade do pensamento sobre si mesmo (FOUCAULT, 2006a) e a relação e a intervenção que essa atividade produz na constituição de um modo de viver. Poderíamos dizer ainda que, nesse sentido, a relação entre filosofia e vida é uma relação de crítica e criação: uma relação intrincada entre educação, formação e transformação constantes. Poderíamos, então, dizer de uma filosofia da educação nietzscheana? Não tão apressadamente. Se a própria denominação de sua filosofia já pode nos parecer difícil, intricada, pois até mesmo este teve que revisar o que “era” filosofia e filósofo para então poder se distinguir deles, imaginemos, então, uma filosofia da educação. Para entender melhor essa relação entre filosofia, educação e vida, é preciso evitar algumas interpretações que podem relativizar ou mesmo enfraquecer o potencial crítico-criativo de sua prática filosófico-historiadora. Toda essa retomada de Nietzsche como um paradigma da modernidade (MUÑOZ, 2002) gerou muitas pesquisas sobre suas perspectivas, da sua concepção de fisiologia humana a uma dinâmica das intensidades, etc., que contribuem para a compreensão sempre problemática da dimensão educacional de suas obras. Cremos que, apesar de o autor ter se ocupado diretamente dessa dimensão ao longo de suas obras, ele mesmo mudou diversas vezes de perspectiva e de opinião com relação a um processo ou a um procedimento de formação do ser humano. Essa característica de mutabilidade do pensamento e da argumentação, arrogada muitas vezes como um aspecto contraditório em suas obras, de incoerência, de inconsequência ou apenas de relatividade, em nossas leituras, esse aspecto comprovou-se muito mais fértil e inexplicável do que inconsistente, o que contribuiu para refletirmos sobre a ação e a função do pensamento, do saber e de certas práticas no conjunto de processos que se chamaria “educação”. Segundo Maurice Blanchot (1973), talvez mais do que incoerência ou desrazão, o pensamento nietzscheano, ao se constituir por afirmações que logo são retomadas em outros escritos sobre a influência de outros pensadores e ideias, aplicadas de forma que criticam, negam ou superam sua afirmação anterior, seria composto não por oposições, mas por justaposições. Suas afirmações não se anulam diretamente, mas se ligam umas as outras num jogo de forças, sempre a compor novas associações, direções, problemas, perspectivas. É essa lógica da justaposição que lhe permitiu desenvolver sua filosofia a partir das forças e da análise dos sistemas de valores por uma perspectiva históricogenealógica, a fim de entrever a constituição, a partir da medida da fraqueza da força e não da falta ou do dever, do devir constante da cultura e da história humanas, da transitoriedade das hierarquias de valores e sentidos que orientam os desejos e o rumo

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das vidas humanas. Para também explicitar a originalidade – ou a herança – do teor dos escritos de Nietzsche, outro importante entusiasta e intérprete francês de suas obras e método, Gilles Deleuze (1976), contribui como opções de abordagem a essa produção de si mesmo em meio ao um jogo caótico de forças, com três conceitos: mais noções do que conceitos, mais operadores do que princípios, que se complementam para o entendimento do que Nietzsche pensou e fez com a filosofia e a educação. Um primeiro conceito-noção é o de forças: energia, potência [Kraft, Gewalt, Macht, entre outros]. Com esses diferentes termos para tentar descrever tão vasta, abstrata, ao mesmo tempo fundamental dimensão para a compreensão dos acontecimentos e do próprio ser humano, Nietzsche se aproxima de uma leitura de mundo e de vida mais próxima da física do que da metafísica, mais naturalista e interligada do que transcendental e hierárquica. Isto reflete os efeitos dos estudos à sua época para compreender a complexa relação entre fenômenos e processos de composição da natureza. Para o filósofo alemão, uma força só é em relação a uma outra força. Postas em relação, em confronto, elas produzem movimento. Essa contínua e cambiável relação entre forças é que constitui os seres, a vida. Vida como um encontro entre forças em perpétua e mútua afecção. Segundo Nietzsche, então, a filosofia deveria conceber-se não como uma ontologia ou uma teleologia do ser ou da vida, como busca de sua origem ou de seu fim último. A prática filosófica deveria ser concebida, antes, como uma semiótica dos afetos, efetuando-se também como uma sintomatologia dos sentidos desses afetos6, visando interpretar as afecções segundo uma analítica genealógica da composição das forças, dos valores que dão intensidade e sentido a essas forças – estudo que ao mesmo tempo busca “valor da origem” e “origem dos valores” (DELEUZE, 1976, p.4). Essa atividade filosófico-genealógica consistiria, então, no observar e analisar, ao longo das transformações históricas, de que maneira uma força se sobrepõe a outra, qual é aquela que domina e a que é dominada, ao passo que também pergunta por qual é o valor que regula, qual é a medida vitoriosa, averiguando assim as configurações costumeiramente aceitas, ditas verdadeiras. Um segundo conceito-noção é o de eterno retorno. Nele, reside a concepção de um movimento geral das forças ininterrupto Designa um movimento produtor e transformador, sem origem e sem fim, sem parar. O ser nunca é, sempre está em devir. 6

Cf. NIETZSCHE, 2006c, aforismo 187. Também cf. a nota 99 da edição utilizada.

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O ser humano, assim como todos os outros seres, está num constante movimento de tornar-se, de vir-a-ser. Portanto, esta perspectiva culmina na impossibilidade de se propor algo como um programa ou um projeto definitivo de formação, uma idealidade fixa da medida da ação humana; nem mesmo haveria um ideal de homem. Em tais circunstâncias postas por Nietzsche, um ser humano “ideal”, virtuoso, de virtú, seria aquele capaz de constantemente estar se experimentando, ora se adaptando, ora combatendo, atuando não como uma força passiva, mas como aquela que melhor se encontra com outras, bem ao modo de uma ética spinozista. Nesse caso, Nietzsche atribui à atividade do ser humano como aquele que deve se interessar não por sua salvação através de um modo de vida cujo regime de valores é fixo e estável, como por exemplo, “idealismos” de religiões e ideologias. Antes, nesse ocupar-se consigo deveria interessar a questão da sua alimentação: “como você deve alimentar-se para alcançar seu máximo de força, de virtú no estilo da Renascença, de virtude livre de moralina?” (NIETZSCHE, 2003, p. 36). Entendido como uma ideia, uma hipótese ou um delírio quase demoníaco e divino (NIETZSCHE, 2007: 285, 341), o eterno retorno compreende a necessidade de afirmar a vida frente à tragédia da mesma: afirma-la, frente ao seu fim, sua degeneração, seu sofrimento. É por meio dessa afirmação que se tem a necessidade de fazer escolhas e correr seus riscos para além de qualquer sistema fixo e fechado de valores, gostos, ideais ou praticas, para além de qualquer ressentimento, culpa ou vergonha, pois o que está em jogo é a própria vida. Logo, é a partir da noção de eterno retorno que se pensa uma ética da alimentação, uma educação para a saúde. Um terceiro conceito-noção, não menos importante, é o de vontade de potência [Wille zur Macht]. Força, vontade, desejo, impulso: termos conciliáveis que efetuam-se como intensidades, direções, violências que não são da ordem do pessoal, do individual. Tudo é vontade, querer. Vontade de potência, nesse sentido, não seria uma vontade de dominar a força ou qualquer outra coisa, de conquista-la, mas sim uma vontade de afirmar a própria vontade, alimentar aquilo que nela quer, potência sendo aquilo mesmo que quer na vontade. A vontade de potência tem em si mesma sua finalidade: a de se sustentar, cultivar-se, diferenciar-se enquanto força da vida, de ser. Segue-se, então, uma lógica quase irracional do apetite, da nutrição, do cultivo, da produção. Frente a essas noções de força, eterno retorno e vontade de potência há, então, toda uma problemática filosófica e ético-pedagógica: qual o valor, o juízo ou a medida que deve orientar a ação dos seres humanos? Quais são esses valores que designam o

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que ele é e como deve ser sua formação? Observamos, dessa maneira, como o problema filosófico da educação em Nietzsche não é apenas o que é adequado, certo ou bom pensar ou fazer, mas é em vista do como se pode pensar e fazer, de como pode articular e modificar seu pensamento, decompondo e reestruturando a ordem de suas ideias, de modo a melhor intervir na lógica do próprio pensamento, intervindo também nos seus hábitos, gostos, escolhas, ações. Talvez seja no seu livro autobiográfico que Nietzsche (2003) melhor reflete sobre sua trajetória e apresenta uma série de relações entre filosofia, educação e vida. A filosofia é então, afirma ele, entendida e praticada como uma atividade vital, strictu sensu – uma vontade de saúde [Willen zur Gesundheit], uma vontade de vida [Willen zum Leben] (NIETZSCHE, 2003, p.25 e p.36). Uma filosofia como vontade de saúde é fazer do pensamento e ação um trabalho sobre vontades, sobre forças, sobre essa multiplicidade de impulsos que tutelam a vida (p.49): é lavrar o instinto de autorestabelecimento [Instinkt der Selbst-Wiederherstellung] (p.25), instinto de autodefesa, de modo a apurá-lo como um princípio seletivo [auswählendes Princip], um apetite escrutinador, como um gosto refinado para as forças que alimentam – as experiências que devemos nos submeter, os tipos de pensamento que devemos efetuar, a maneira como elaboramos as afeções –, a fim de não nos tornarmos fracos, pobres de espírito, esvaídos de força7. Em última instância, a atividade filosófica pode ser enfrentada como uma arte da preservação de si mesmo [Kunst der Selbsterhaltung] (p.48), arte que cultiva a vontade de saúde que constantemente se adquire e deve-se adquirir (p.84). Arte ou prática que lida com a as forças e a hierarquia de valores as quais o indivíduo esta submetido, de modo a elaborá-las como esse princípio seletivo que de “tudo o que vê, ouve e vive forma instintivamente sua soma” (p.25-26): um indivíduo que prova, escolhe, determina sua alimentação, dá a dose de sua ação. Arte ou prática produtora de vida, de vitalidade, de vivacidade, cuja produção ou obra, enfim, é tornar o indivíduo aquilo que ele é. Mas como alguém se torna o que é? – enigmático e ambivalente questionamento que atesta também uma tarefa, a tarefa; cujo destino é “desconhecido, incognoscível” (NIETZSCHE, 2008c: 267): não se suspeita “sequer remotamente o que é” (2003, p.48). Como Nietzsche atesta, não basta seguir a fórmula do “nosce te ipsum”, o conhece-te a ti mesmo apolínio, o que seria antes para ele uma “fórmula da destruição”. Nessa tarefa 7

Para mais detalhes sobre o princípio seletivo e o “tornar-se”, referido logo adiante, cf. RICCI, 2007.

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de tornar-se, deve-se optar por uma outra prática ético-moral: mais ambivalente, desinteressada [selbstlos], que transita de um cuidado de si [Selbstigkeit8] à ausência de si [Selbstlosigkeit9], de um cultivo de si [Selbstzucht10] a um amor a si [Selbstsucht], onde “esquecer-se, mal entender-se, empequenecer, estreitar, mediocrizar-se torna-se a própria sensatez” (p.48). Moral cujo destino, o projeto e o fim são menos importantes do que o próprio percurso, do que as experiências, as tentativas, os acasos e as inevitabilidades que surgem ao longo de um processo de formação. Os erros, os desvios, as vias secundárias, tudo aquilo que é considerado imoral ou doentio, são a própria busca de saúde, o fortalecimento de seu caminho, a constituição de sua razão e de sua verdade – “Foi a doença que me trouxe a razão” (p.40), já que “preferimos mesmo, para alcançar a verdade, os caminhos tortuosos” (p.49). Daí, talvez, advenha o título do capítulo de Ecce Homo, explicitando qual seria essa espécie de inteligência moral:

Não gostaria de abandonar uma ação após tê-la cometido, preferiria deixar o mau resultado, as consequências, radicalmente fora da questão do valor. Quando as coisas resultam mal, perde-se muito facilmente o olho bom para o que se fez: um remorso parece-me uma espécie de olho ruim. Honrar mais ainda dentro de si o que dá errado, porque deu errado – isto sim está de acordo com minha moral. (2003, p.35) Desse ponto de vista possuem sentido e valor próprios até os desacertos da vida, os momentâneos desvios e vias secundárias, os adiamentos, as ‘modéstias’, a seriedade desperdiçada em tarefas que ficam além d’a tarefa. (2003, p.48).

Percebemos como os desígnios dessa tarefa, a composição dessa obra que é o tornar-se, alimentam-se constantemente das antíteses de seu processo, construindo e fortalecendo, uma após a outra, o instinto e o princípio que coexistem em um indivíduo para sobreviver11. Assim, quase como um provérbio: “o que não o mata, o fortalece” (NIETZSCHE, 2003, p.25)12. Desse modo, o processo de tornar-se, tal como o entendemos, não apresenta uma finalidade formal, uma forma final a ser alcançada. Tornar-se implicaria, antes, 8

Literalmente, egoísmo. Literalmente, altruísmo. 10 Literalmente, autodisciplina. 11 Cf. NIETZSCHE, 2006b, aforismo 224. 12 Resumir-se-ia a prática ético-moral dessa tarefa numa espécie de conceito infelizmente pouco elaborado por Nietzsche, mas que ele mesmo o considerava como sua grande contribuição para o campo da formação humana: a tresvaloração dos valores. Cf. NIETZSCHE, 2003, Prefácio. Cf. também MARTON, 2006. 9

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num processo de resistência. A finalidade é: resistir, persistir. Mas para persistir, é preciso assumir constantemente uma forma, escolhê-la, afirmá-la. Mas se o fim de uma forma é exatamente a possibilidade de resistir de um corpo ou ser que a incorpora, tal forma só é “valida”, só é “útil” a medida que possibilita o ser insistir em ser, continuar sendo. Toda “forma” é também vontade de potência: apresenta a mesma característica de querer ser, de continuar sendo. Com isso, há toda uma dinâmica, há toda uma modulação entre a insistência da forma e a insistência do ser, entre a insistência de uma forma frente às outras. Uma dinâmica não de luta, não de empenho, fim ou desejo essencial, mas feito de virtudes e vícios, de costumes, contenções e excessos, de metas e desvios, acertos e erros. A filosofia, tida com essa espécie de prática sobre a vida, por meio da qual se elabora para si mesmo seus próprios remédios, suas próprias doses, ocorre nesse jogo incessante que é a constituição dos seres. Esse si mesmo, sobretudo, entendamos no sentido da elaboração de uma força, ou antes, de uma contra-força, composição de uma vontade e uma medida oriunda de um processo volitivo-racional caótico, mas que imprime, em meio a toda complexidade, imperfeição e erros, uma certa direção, um certo sentido (NIETZSCHE, 2006b: 19). Desarrolhada pelo desinteresse e o amor a si, a filosofia seria entendida, assim, como um modo de vida pelo qual se toma a si mesmo em mãos e ocupa-se consigo à medida que se participa ativamente de sua própria formação fisiológica e moral, não pressupondo-se o que se é, mas devotado à atividade pela qual se cuida, altera-se, cura-se – movimento de tornar-se o que se é. Parece-nos, então, que esse incessante, instável e complexo jogo entre forças para a constituição dos seres e constituição de si mesmo enquanto uma composição de pulsões, forças, entre comandos e obediências, tal jogo comporta tanto a questão da escolha quanto o risco de cada modo de vida constituído. Esse jogo traz a possibilidade de uma constante transformação do modo de pensar e viver, do modo como um indivíduo se relaciona com as coisas, consigo mesmo e com os outros, ao sabor das investidas científicas e dos exercícios sobre si mesmo; mas ao refletir e interferir nesse jogo, impondo-se seleções, restrições, etc., põe-se a si mesmo em risco, pondo em cheque o próprio modo de vida escolhido, aquilo que lhe garante sua sobrevivência – seus hábitos, sua hierarquia de ideias e ideais, sentimentos, memórias e desejos. Todas essas categorias filosóficas da subjetividade são parte de um jogo criativo e arriscado de subjetivação, de constituição do sujeito, pela sua formação através dos outros e de certo cultivo de si mesmo. Parece-nos, também, que todas essas categorias são postas em

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operação no pensamento de Nietzsche sobre educação.

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A questão do tornar-se, a nosso ver, é fundamental para abordar uma possível perspectiva filosófica nietzschiana em relação à educação. Talvez sejam pelas inúmeras problemáticas suscitadas por essa noção, bem como pelo olhar severo sobre as prática de seus contemporâneos, que Nietzsche destoe em meio a seu tempo. Cremos se depositar nessa vaga e nebulosa imagem de um processo de formação instável, cujo procedimento não é infalível e cuja meta não se determina previamente, mas se vive enquanto desvio ao seu caminho, o objeto de uma concepção de educação desenvolvida por Nietsche desde os meados de sua maturidade, por volta de 1878 e 1879, até sua trajetória filosófica final, por volta de 1890. Essa concepção de educação, pensada sem uma teleologia formal, sem um fim último moral, sem uma meta valorativa pré-determinada, encerrada num movimento constante de formação e transformação, intercedido por uma prática ascética flexível e versado numa ética mais estoica do que cristã, mais cínica do que spinozista, o filósofo alemão em algumas passagens denominará como auto-educação [Selbst-Erziehung]13. Nas aparições dessa auto-educação, Nietzsche se distinguirá, de uma maneira ou de outra, de uma educação em seus termos comuns [Erziehung] ou de uma cultura geral [Kultur] e, posteriormente, até de uma formação abrangente e artística, [Bildung] por toda a vida, já que, para ele, será através de práticas com resultados um tanto incertos que se alcança a educação necessária para a vida. Por vezes metódicas e ao mesmo tempo empreendidas de forma descomedida e desvairada, essas práticas em Nietzsche consistiram, basicamente, em leitura, escrita e caminhada, as quais este se dedicou por 13

Literalmente, auto-educação, entendida como educação de si por si mesmo. Auto-educação será a nossa escolha para facilitar a leitura do termo Selbst-Erziehung ao longo de nosso texto, embora não queremos nos filiar as noções correntes de autonomia ou mesmo automático, procurando-nos afastar do entendimento de um processo que ocorre sem a participação da vontade ou do outro, ou mesmo sem o conflito de componentes do acaso que constituem a vontade de um ser (Cf. NIETZSCHE, 2006c, 19.). Com isso, queremos compartilhar da ideia de selbst, em relação mesma com o sentido reflexivo de self, em inglês, e de si mesmo, em português, entendendo uma auto-educação como uma “educação por si próprio”, tal como Paulo César de Souza traduz. Porém, uma educação, uma criação e condução de si por si mesmo em relação a uma possibilidade autopoética, de composição das vontades, de constituição de ilusões e de vitalidades, na organização dos sofrimentos e afetos, ideais e projetos, em relação ao acaso e o caos. Uma possibilidade de uma autopoese, de produção vital de si por meio de sua alteridade, mas não necessariamente uma capacidade de racionalidade autônoma, evoluindo progressivamente, edificante, eficaz e suficiente de se dar doses, juízos, medidas, leis pré-determinadas, racionalmente formuladas, a fim de “governar-se” segundo uma norma definitiva, alheia ao caos e a vontade. Quiçá, aqui também, toda uma problemática entre “si mesmo” e “o outro” na educação a ser burilada mais adiante.

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quase toda sua vida de uma maneira muito singular e as advertiu a si e a seus leitores, bem ao seu modo paradidático e irônico, como técnicas dirigidas por um princípio seletivo, de valoração perspectivada pela história, para manter certas relações analíticas consigo e com os outros. Esse termo, auto-educação, não é de nenhuma maneira bem definido e esclarecido categoricamente por Nietzsche. Veremos que, ao longo das passagens recolhidas, o termo auto-educação só aparece algumas vezes, referindo-se a aquele que se auto-educou, o auto-educado [Selbst-Erzogenen]. Contudo, apesar de ser relacionado e comparado a outros conceitos, como a própria formação [Bildung], a disciplina [Zucht] e o cultivo [Züchtung], esse termo presta-se para talvez sumarizar um conjunto de práticas, de atitudes, de atenções e de exercícios aos quais Nietzsche vincula àquele que quer se tornar o que é: espírito-livre, ou antes, aquele cujo destino, cujo devir, se traça por uma meta de forma determinada por si mesmo, mas ainda a ser alcançada e sempre alcançada14. A auto-educação articulada por Nietzsche não consistirá em uma adequação à cultura vigente, nem ao acúmulo erudito de conhecimentos e informações. Não será propriamente dita uma prática para a formação de um gênio que, pelo sacrifício do povo para que aquele se eduque, a arte genial salve seu tempo e dê a beleza e a justeza necessárias para a vida em comunidade. No que Nietzsche escreveu em relação a esse processo de auto-educação, quiçá, queremos surpreender as simetrias e as dissonâncias das assimilações e apropriações das artes de existência greco-romanas pela educação para a cidadania e a autonomia do cosmopolitismo emergente do século XIX. Com efeito, é interessante perceber que esse tema da auto-educação e de destino do homem não é um tema atemporal. Porém, sendo um tema caro tanto aos ascetismos religiosos que dominaram moralmente a Europa por dois milênios quanto caro também a uma Europa secular do século XIX, esses processos pelos quais um sujeito obedece e comanda a si mesmo poderiam ser entendidos na chave de uma realocação das práticas de governo de si e dos outros ao longo da história. Num XIX em meio à miscigenação de culturas e a preocupação com as sociedades emergentes, as principais perguntas culturais, políticas e filosóficas giravam em torno de quais seriam as bases, os fundamentos e os princípios que iriam orientar as práticas culturais, científicas, educativas, cívicas e morais de nações inteiras. Quais instituições, práticas e saberes de articulação e contenção povoariam as cidades com o 14

NIETZSCHE, 2006c: Prólogo.

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fim de formar um povo para viver sob um novo mundo.

I. 2. Uma problemática educacional na filosofia alemã dos séculos XVIIIXIX: entre Erziehung e Bildung Considerado pelo historiador Franco Cambi (1999) como o “Século da Pedagogia”, o século XIX, período de pós-revoluções, de indecisão e de intensa fermentação cultural, se viu confrontado, entre tantas outras questões, com o problema da educação – da formação de um ser humano cujos princípios ontológicos, epistemológicos, morais e políticos haviam sido abalados. Se pudermos mais ou menos dizer que um pensamento educacional ou um projeto pedagógico é baseado na ideia de homem, numa dada época ou cultura, a própria mudança dessa ideia de homem ao longo da modernidade forçou a revisão, a discussão, a reelaboração dos contornos filosóficos, lógicos, metafísicos e religiosos para a formação do que se chamaria de “homem”. Contornos estes que fundamentariam e orientariam os procedimentos que um homem poderia exercer sobre si mesmo e sobre os outros, numa determinada relação pedagógico-social. Pensando no que seria esse homem e sua educação, o que estava em jogo era: quais as formas e os conteúdos que norteariam os projetos formativos? Aqui todo um problema da definição da natureza do homem – como é possível defini-la, medi-la, sobre quais parâmetros –, toda uma filosofia da ontologia do homem ou mesmo uma antropologia. Mas também, todo um problema das racionalidades das práticas, dos processos, dos métodos e atividades as quais possuíam uma pragmática e uma teleologia bem específicas, baseadas nessas concepções de homem e de um saber sobre o homem – que passaram da metafísica à biologia até psicologia. O interessante texto de Fabiano de Lemos Britto, Sobre o conceito de educação (Bildung) na filosofia moderna alemã (BRITTO, 2002), nos traz algumas referências e caminhos para pensar a etimologia e a trajetória histórica dos termos envolvidos com o pensamento educacional alemão. O conceito de Bildung, segundo Britto, com seus deslocamentos e apropriações, com seus usos e diferenças para com outros conceitos, foi decisivo para o desenvolvimento de uma filosofia alemã voltada para a educação. Podemos dizer que, de Herder à Kant, tendo Goethe e Humboldt como seus maiores representantes na área da literatura e da filosofia pedagógica, respectivamente,

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essa formação se viu problematizada entre dois termos: Erziehung, considerado como educação geral ou formação cultural-escolar técnica ou erudita, e Bildung, considerado como formação pessoal, voltada para um processo de cultivo, de disciplina e progresso moral. No início do seu curso A hermenêutica do sujeito, Michel Foucault (2006b) já apontava para certo “desnível”, notadamente discernido entre práticas adotadas em certas culturas ao longo da história, entre “aprender” e “ocupar-se consigo”, entre uma pedagogia compreendida como aprendizagem e uma outra forma de cultura, de Paidéia, que giraria “em torno do que se poderia chamar de cultura de si, formação de si, Selbstbildung” (p.58). Nesse desnível, Foucault enxergava a precipitação de certos problemas que tangenciariam, segundo ele, a relação entre filosofia e espiritualidade: entre as regras que legislam o verdadeiro e o falso, o certo e o errado em uma dada cultura ou teoria moral e as práticas às quais os indivíduos se submetem e cultivam-se para aderir a essas regras e juízos (p.19-20). Talvez seja nesse desnível que vai se realocar a discussão na filosofia, na literatura e na pedagogia alemã dos séculos XVIII e XIX, sobre o problema de uma educação para a emancipação ou maioridade. Entretanto, apesar desse desnível nos parecer um crivo interessante para permear nossa pesquisa e discernir aí toda uma série de deslocamentos e apropriações das características de um termo ao outro e as variações atribuídas por cada autor a esses termos – a problemática dos conceitos, dos procedimentos e da teleologia das ciências pedagógicas no século XIX é muito mais complexa e menos palatável do que esse esquema dicotômico. Tanto os conceitos de Erziehung, de Kultur, de Zucht e de Bildung, entre outros, foram desenvolvidos nas discussões entre os pensadores com respeito à melhor forma de educar o indivíduo, constituir o ideal de sujeito. Porém, talvez seja no conceito de Bildung que se enraizaram mais profundamente as metas e os ideais de uma educação que surgia frente às problemáticas da religião e da razão capitaneadas pelo ideal de Aufklärung. Para começar, segundo Britto, o próprio conceito de Bildung tem uma dupla origem, aparentemente contraditória, que definirá o destino de algumas concepções pedagógicas ao longo desse período histórico. Por um lado, uma raiz desse conceito era oriunda do pensamento religioso (Bildungsreligion), o que transformava esse processo de formação numa relação entre uma forma, uma imagem subjetiva interior normativa e um processo cuja teleologia era transcendental, isto é, a formação só se dava após a completude dessa forma que, em ultima instância, não se realizava em vida. Por outro

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lado, outra raiz desse conceito era oriunda das ciências naturais, mais precisamente biológicas, em que se considerava um impulso formativo, natural, como motor ou força do desenvolvimento das espécies da natureza. Essa dupla origem de uma educação da natureza juntamente com essa imagem interna como medida, como modelo para a formação do homem, permearam as discussões sobre a pedagogia na Alemanha dos Oitocentos aos Novecentos. Para não retomarmos toda a discussão e pesquisa de Britto, tentaremos nos ater tão somente a dois pontos que talvez elucidem um pouco como Nietzsche tomou parte dessa discussão: a da educação para além da tutela e a de uma problemática ética gerada pelo fim dessa tutela.

I. 3. Educação para a maioridade: o problema da tutelagem na Aufklärung kantiana O problema da educação na Aufklärung não foi colocado apenas por um só autor. Tanto Immannuel Kant quanto Moses Mendelssohn, entre outros pensadores, partilharam desse tema em algumas publicações, importando-se com a possibilidade de uma nova ordem político-social e moral para a época (BRITTO, 2002; FOUCAULT, 2010). Consolidava-se nesse cenário europeu do XIX, uma educação, pública e compulsória, de cunho humanista, mais ou menos estruturada por um ideal de homem e um projeto para moldar este homem. Encontrando na pedagogia kantiana a exemplificação de seu modelo, de sua melhor elaboração de uma formação que passa a ser entendida como processo através do qual um indivíduo torna-se sujeito, reconhecido filosófica e politicamente de acordo com uma concepção de “humanidade” e de “destinação” da mesma (BRITTO, 2002, p.4-5), o pensamento pedagógico da época consistia em uma ideia, uma “verdade” sobre a natureza humana e, por derivação imaginária e arbitrária, sobre seu destino. Sei o que é – logo, sei para onde vai seguir, deve seguir; o que vai se tornar, deve se tornar. Educar o homem é educá-lo segundo essas “verdades”: o que é o homem, qual o rumo que deve seguir. Contudo, esse processo é entendido num viés de progresso histórico, onde a formação implicaria num movimento de formatação, de alcance a essas ideias de natureza e destino. O processo de formação em si seria estático, devido a

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estarmos sempre em direção a esta meta cientificamente definida. A ideia de “cidadão do mundo” permeia as dimensões dessa natureza bem como dessa destinação, atribuindo à forma, a qual o indivíduo deve chegar, um modelo moral universal e necessário. Em sua Pedagogia (1996), Kant normalmente usa o termo Erziehung, no sentido de formação dos indivíduos, tendo em vista o horizonte da cultura onde estão inseridos (BRITTO, 2002, p.6). A cultura na qual Kant se insere é a do Iluminismo, a das Luzes, a da Aufklärung. É no texto O que é o esclarecimento? (2005), por sua vez, que ele descreve essa cultura caracterizada por uma certa atividade humana: o uso adequado da razão. Para o filósofo de Königsberg, esse uso adequado da razão é o que coloca o ser humano no caminho de sua destinação, considerando-o como um ser racional e autônomo. O conceito de autonomia caracteriza bem essa condição a qual o homem alcança quando esclarecido: saindo da sua minoridade para a maioridade, esse movimento consiste na emancipação do indivíduo de sua tutelagem – tutela dos livros, dos pedagogos, dos médicos. Autonomia como um uso adequado de sua própria razão, para além da tutela e da obediência. A minoridade, por sinal, não é um estado do homem por natureza ou por pressão social, mas se mantém pela própria atitude do mesmo: atitude de preguiça ou de medo. Vemos se desenhar então, um primeiro problema: o problema da tutela, o problema da educação para a maioridade. Se a minoridade é um estado no qual o indivíduo se mantém pela sua preguiça e covardia no uso de sua própria razão, ou antes, pela sua obediência à tutela racional dos outros, como se daria a passagem para a maioridade? Quem ou como se efetuaria tal passagem? Problema que, segundo Foucault (2010, p.32-33), mantém-se incerto em Kant. Pois, se são as tutelas que não deixam um indivíduo fazer uso de sua razão, o movimento ou o procedimento que um educador efetuaria no indivíduo para que este fizesse a passagem conferiria a esta relação também a característica de tutela. Kant, no mesmo texto, explora ora a impossibilidade de um indivíduo, pelos seus próprios esforços, alcançar sua emancipação; ora, explora sua possibilidade. Mas não descreve esse processo e não afirma também se haveria aí um educador ou outrem para tal tarefa. Segundo Foucault (2010, p.34-38), Kant dá duas soluções, ainda assim obscuras: a primeira, que tal passagem da minoridade para a maioridade se daria por um processo progressivo de evolução histórica; outra solução se daria pelo governo de um governante o qual fosse, também ele, um esclarecido, e cujas leis seriam para a formação de homens esclarecidos. Uma solução histórica e outra

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política, mas ambas obscuras, indefinidas, mal resolvidas. Com efeito, o problema da educação e da tutela, problema de quem é que efetua o gesto, quem é que educa o indivíduo para sua maioridade, abre-se então para um outro problema, a ver, a da relação ética que um indivíduo estabelece consigo mesmo. Se não é um educador que o efetua e se há aí, toda uma questão de que é a atitude do indivíduo que o mantém sobre a tutelagem alheia, bem, parece-nos se configurar algo da ordem não só da necessidade de uma educação pública, mas da ordem de um incutir uma relação específica de si consigo mesmo.

I. 4. Uma concernência ética: o uso racional de si mesmo Se é através de sua atitude que o indivíduo se mantém sob a tutela de outrem, há algo aí, nessa atitude, nessa relação de si consigo, de problemático para Kant. Essa dimensão da relação de si consigo mesmo, a qual chamaremos de dimensão ética, pode se tornar alvo de questionamentos e investigações filosóficas a fim de que se estabeleça que tipo de atitude ou relação ética, que tipo de conduta um indivíduo deve manter consigo mesmo. A essa questão, cremos, a filosofia alemã se debruçou para pensar não somente a vertente de uma educação escolar, disciplinar, instrutiva, mas, sobretudo, para pensar essa dimensão ética do indivíduo e sua formação pessoal. Podemos entender essa dimensão ética como um foco analítico o qual passou muito tempo despercebido das investigações históricas e que, talvez, Foucault, por meio de Nietzsche, Max Weber e outros, traz novamente à tona dos debates históricos. Se a atitude ética, a conduta do indivíduo não é homogênea aos ditames morais e culturais de uma cultura ou sociedade, se a atitude que alguém mantém consigo é o que possibilita a ele aceitar, questionar ou refutar certos valores e modos de vida, há aí todo um campo de investigação que põe em questão a conduta do sujeito em relação aos processos de subjetivação. Processos estes que significam a adesão de um sujeito a uma norma ou modo de vida e que o transforma, o subjetiva de acordo com essa norma a partir de uma série de práticas culturais, médicas, políticas, éticas.

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I. 5. Da filosofia antiga à filosofia moderna: a questão da prática parrésica como crivo analítico Tendo em vista tal dimensão ética, em seu penúltimo curso no College de France, de 1983, Michel Foucault (2010) expõe algumas conclusões preliminares sobre suas investigações histórico-filosóficas dos últimos anos. Na primeira hora de sua última aula desse curso, Foucault estabelece uma diferença entre a dita filosofia antiga, aproximadamente do século V a.C. ao II d.C., e a dita filosofia moderna, aproximadamente do XVI até os séc. XIX e XX (p.314). A filosofia moderna, "apresentada atualmente como objeto escolar e universitário", "como um sistema de verdades num domínio determinado" tem pouco em comum e "não deve ser de modo algum" compreendida como uma filosofia da "prática parresiástica" – ou parrésica –, característica da antiga. Segundo Foucault, essa prática parrésica caracteriza a filosofia antiga sob três aspectos entrelaçados um ao outro: a atividade filosófica é uma forma de vida, é uma relação com o poder e é uma interpelação perpétua (p.311-313). Com esta primeira distinção, em termos de um movimento histórico do pensamento filosófico, entenderíamos a modernidade como uma ruptura com a antiguidade. Entretanto, poucas páginas depois, Foucault retorce a questão e apresenta a seguinte hipótese: "não se poderia encarar a filosofia moderna, pelo menos a que reaparece a partir do século XVI, como sendo a realocação das funções principais da parresía dentro da filosofia e o resgate da parresía, que havia sido institucionalizada, organizada, que havia desempenhado de forma múltipla, rica, densa, interessante aliás, na pastoral cristã?" (p.316). Com essa pergunta, Foucault nos propõe, então, outro entendimento desse movimento histórico: talvez, mais do que pensar em termos de ruptura ou continuidade, poderia se fazer uma "história da filosofia", como uma "série de episódios e formas", de recorrências e transformações, da "veridicção" (p.318). História de uma filosofia encarada, portanto, não como um sistema de pensamento com conceitos e teorias fechadas, grades fixas de inteligibilidade sobre um domínio específico, mas uma filosofia encarada segundo sua força ilocutória, força de performar por meio de um discurso uma ação: a do dizer-a-verdade. Foucault, assim, propõe-nos uma outra história da filosofia, “que não se alinhasse a nenhum dos dois esquemas que atualmente prevalecem com tanta frequência”, a ver, a de uma história que busca a origem radical de algo ou ainda uma

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história da filosofia como progresso ou avatar do desenvolvimento de uma racionalidade (p.318). Por esse afastamento das perspectivas históricas ditas tradicionais ou canônicas, sobretudo se a filosofia moderna não pode ser confundida com a filosofia antiga, o que esses modos de filosofar em diferentes momentos na história teriam em comum? Quais são as possibilidades do primeiro ser uma “retomada do ser” desse último? E qual é a relevância dessa constatação para nossos interesses educacionais, principalmente concernentes a uma reflexão sobre os problemas suscitados pela Aufklärung e pela auto-educação tomadas no presente? Embora pouco pareça com os tipos de observações aos quais Foucault chegou com seus estudos anteriores – mais analíticos do que hipotéticos –, esse imbróglio, essa quase contradição acerca dessa interpretação dos deslocamentos históricos, nos possibilita fazer alguns questionamentos: se a filosofia moderna é uma retomada da antiga, como é que se faz essa retomada? Como se investiga essa retomada? Logo, adentramos em duas problemáticas educacionais: a da investigação histórica sobre as ciências da educação e a das próprias práticas e racionalidades pedagógicas na modernidade. Para compreender melhor no que essa hipótese foucaultiana pode nos ajudar a entender sobre essas problemáticas, ele mesmo nos traz exemplos sobre essa retomada histórica da antiguidade pela modernidade. Com as Meditações cartesianas e a crítica da Aufklärung kantiana (p.317), a filosofia moderna presta contas com os três aspectos principais da prática parrésica da filosofia antiga. Descartes ao empreender um discurso científico da verdade, interpelando a si mesmo e aos conhecimentos vigentes, ele busca afirmar essa verdade quando diz “eu”, sustentando-a em relação às instituições eclesiásticas, científicas e políticas de sua época. Kant, na sua crítica ao estado de menoridade tutelado pelos experts e pela ciência, investe numa temática da autonomia e do autogoverno como crivos conceituais para caracterizar tanto a constituição do sujeito como a análise da história e de suas transformações. Por esse approach histórico-filosófico e o crivo analítico da parrésia, Foucault traz a baila dois temas relacionados entre si e caros a modernidade pedagógica: a educação do sujeito a partir de sua relação consigo mesmo e com o outro; e um saber ou verdade reguladora, normativa, mediadora dessas relações. Nesse sentido, o processo pedagógico, ao longo do século XIX, vai se tornar uma espécie de pedra de toque da cultura moderna européia, processo este compreendido como um duplo movimento normatizador, de teores disciplinares e governamentais (AQUINO; RIBEIRO, 2009).

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Disciplina entendida como um conjunto de práticas/saberes que exercem, pelo acosso repetitivo, sistemático e espraiado, uma pressão individual e analítica no sujeito; governamentalidade como um modo de entender o conjunto de tecnologias biopolíticas que ensejam a adesão do sujeito a estas normas para um gerenciamento pessoal, um autogoverno de si em relação a essas normas, para que se governe a vida em termos tanto quantitativos e populacionais e quanto em qualitativos e individuais. Acompanhados de Jorge Ramos do Ó (2003), esse duplo movimento poderia se sumarizar no operador conceitual de governo de si mesmo.

I. 6. Pedagogia e governamentalidade: descrição de uma realidade educativa Para o autor português, o “plano objectivo da realidade educativa” na modernidade se configura por essa espécie de imperativo moral, operador conceitual ao mesmo tempo em que é um mote e um problema para um modelo de conduta: o governo de si mesmo, um modelo de conduta articulado pelo princípio de “autodomínio a partir da confissão” da verdade sobre si. A tecnologia confessional, alastrada pelo pastorado religioso e adotada na modernidade como prática pedagógica comum, permite ao sujeito manter consigo mesmo uma relação de observador, de examinador, a fim de que suas experiências psicológicas e sociais se regulem com a norma de conduta vigente. Nesse princípio desenvolve-se boa parte das investidas da educação tornada ciência pedagógica entre o XVIII e o XIX, cujas práticas eram apoiadas pelas intrincadas explicações sobre a essência e a fisiologia do ser humano. Definida como livre e autônoma por boa dos cientistas da educação, o problema conferido a essa ciência por filósofos como que preocupados – de Kant à Piaget – não só em estabelecer um projeto conciso e eficaz para o ser humano, mas também em estabelecer um tipo de conduta moral perfeita, uma relação ética consigo mesmo a fim de que essa capacidade de se dar as próprias leis convergisse para o imperativo moral da época. Segundo Ramos do Ó, “desde finais de Oitocentos”, as instituições escolares passaram “a constituir mais um local em que toda a racionalidade punitiva foi desaparecendo para dar lugar a um tipo de sujeito que deveria fazer valer sua liberdade de escolha e colocar no centro da sua relação com os outros e consigo a matéria ética”

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(Ó, 2003, p.716). O espaço escolar, bem como a racionalidade pedagógica, entaleçamse na constituição de um “espaço de condução da conduta individual”. Parece-nos que todas essas problemáticas educacionais em torno do mestre, da ética de si e do projeto formativo para o homem dito moderno, vistas pela chave da governamentalidade15 como investigação e reflexão histórica sobre as artes e racionalidades da condução da conduta individual, flertam com essa retomada da filosofia antiga pela moderna. Se a primeira foi caracterizada como parrésica, como um modo de efetuar um discurso no próprio âmbito da vida, como uma forma de vida cuja afirmação estaria em relação direta com o poder enquanto um questionamento infinito dos modos de vida vigentes, por esse viés governamental, as práticas escolares não seriam evidencias dessa retomada? Ou antes, essa apropriação, essa realocação da ideia de governo de si mesmo e de autodomínio, característica da filosofia antiga e que se institucionaliza mais intensamente no século XIX, figuraria entre outras ocorridas nessa mesma época? Esse recorte histórico do século XIX nos interessa exatamente para problematizar essa hipótese foucaultiana da retomada, mais precisamente com relação ao tema do governo e do autogoverno ou de uma educação em vista de uma racionalidade de governar a si mesmo. Nesse tipo de abordagem educacional, como descreveu Ramos do Ó, a alma se torna preocupação central, não só dos especialistas pedagógicos, como do próprio sujeito da educação, sendo, mormente, constituído enquanto capaz de se “corrigir, purificar e salvar”. Essa dimensão ética, constitutiva do sujeito, pela qual ele se dá as regras morais de seu proceder ético, toca diretamente no que concerne aos procedimentos de autoformação ou auto-educação desenvolvidos ao longo desse século. A auto-educação seria, então, um processo pelo qual se poderia retornar àquelas duas primeiras problemáticas: a da educação para a emancipação e a da importância da dimensão ética para a educação.

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“Gostaria de fazer uma história da organização do saber tanto no que concerne à dominação quanto no que concerne ao si. Por exemplo, estudei a loucura não em função dos critérios das ciências formais, mas a fim de mostrar qual tipo de gestão dos indivíduos no interior e no exterior dos manicômios esse estranho discurso tornou possível. Chamo ‘governamentalidade’ ao encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si.” (FOUCAULT, 1994) Tradução por Wanderson Flor do Nascimento e Karla Neves.

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I. 7. Porque Nietzsche? A partir desse recorte do cenário educacional no século XIX, principalmente do diz respeito à auto-educação e a dimensão ética do sujeito na pedagogia, visto sob a problemática da governamentalidade foucaultiana, queremos entender que Friedrich Nietzsche seja um valioso arquivo histórico para se pensar essa questão do governo e da auto-educação em vias dos limites do saber e da prática educacionais e sob a perspectiva da investigação histórica. Ao longo de suas obras, Nietzsche não só tocou e desenvolveu essas duas problemáticas, como se tornou, de fato, um paradigma para se pensar nos modos como o “mundo ocidental nos fez a todos transformar num certo tipo de pessoa” (Ó, 2003, p. 717). Nossa proposta de trabalho procedeu-se, então, como uma aproximação à temática da auto-educação em Nietzsche a partir de uma proposição nossa com respeito a uma plataforma pragmático-analítica: a escrita. Ao passar boa parte de sua vida escrevendo, Nietzsche fez diversos usos e experimentou procedimentos de leitura e escrita através dos quais pôde desenvolver uma filosofia singular, cujas abordagens teórico-analíticas se desdobraram principalmente sobre as práticas pelas quais o sujeito se constitui – a ver, procedimentos ascéticos, de autodomínio e auto-educação – e sobre a necessidade mesma de, nesse processo ascético de auto-educação, um certo tipo de investigação histórico-moral fosse empreendida. O trabalho da academia, o trabalho da escola, o trabalho docente e discente, os atores e os operários da educação. Trabalhos que comumente são pensados como edificantes do homem, trabalhos que garantem ao homem sua existência. De fato, assim o é. Mas é curioso ainda ver uma série de instituições pedagógicas se proliferarem sob a sombra de crenças arbitrárias, definitivas, de uma esperança última de que alguma educação possa garantir nosso “sucesso” na vida, nossa “felicidade”, nossa “liberdade” – até mesmo nossa “salvação”. De par da leitura das obras de Friedrich Nietzsche, fica ainda mais curioso atentar para a construção dessas crenças pedagógicas sem levar em conta um olhar crítico sobre o imaginário no qual elas se formam, sobre a proliferação de discursos, o estabelecimento de hábitos, a invenção de juízos e práticas para a intervenção na vida dos homens sob a justificativa de serem fundados por saberes e pensamentos estudados, analisados, articulados, enfim, verdadeiros. O que perguntar, então, para nosso presente pedagógico, nosso presente escolar?

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Sobre sua arbitrariedade, sobre sua violência? Sobre sua tentativa de universalização, de unidimensionalização? Conceitos talvez demasiado complexos e vagos. Nossa questão não é versar sobre qual é o projeto pedagógico ideal para se formar um “determinado” sujeito. Nossa questão também não será perguntar se haveria aí, nesse contexto do XIX, outras alternativas para um projeto libertário para a educação do ser humano. O próprio conceito de um projeto pedagógico, de uma articulação imaginária e racional de projetar o devir do homem ou da humanidade, de conduzir o homem a seu fim último e necessário, já não se basearia numa crença e numa esperança, numa construção arbitrária e histórica, num conflito de interesses, perpetuado pela e na visão histórica e cultural de um vencedor? Não haveria, então, outros modos de se pensar o gesto educacional? Mas a questão, como se disse, não é essa. A condição de arbitrariedade é sempre tomada de antemão. É por essa noção de que toda ideia cria um arbítrio e, exatamente porque é livre, nela se dá um juízo, um valor, um gosto; e é por ela que se começa a pensar. É por ser arbitrária é que pode ser alterável, modificável. Tanto a história dessa perspectiva quanto seu devir mesmo podem ser descarrilados por outra perspectiva e, novamente, reintroduzidos na volição do acaso. Por meio das lentes nietzscheanas, vislumbrar a produção das rupturas e continuidades de uma cultura vigente ao longo da história – sua herança e seu porvir –, ao mesmo tempo em que se vasculha, por meio dessa investigação histórica, a emergência de certas saberes e práticas sobre o sujeito na contemporaneidade, apresenta-se como um método interessante para se traçar as condições de possibilidade do surgimento de vertentes educacionais, bem como traçar os possíveis limites com os quais definimos o que é a educação do ser humano, hoje. Procura-se, com isso, fazer jus à tradição crítica e criativa da Aufklärung, mais dialogando com ela do que a evitando, na elaboração de um trabalho que aponta a uma indeterminada liberdade:

Não sei se é preciso dizer hoje que o trabalho crítico também implica a fé nas Luzes; ele sempre implica, penso, o trabalho sobre nossos limites, ou seja, um trabalho paciente que dá forma à impaciência da liberdade. (FOUCAULT, 2008b, p.351).

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II. NIETZSCHE E EDUCAÇÃO

Quem chegou, ainda que apenas em certa medida, à liberdade da razão, não pode sentir-se sobre a Terra se não como andarilho – embora não como viajante em direção a um alvo último: pois este não há. Nietzsche, Humano, demasiado humano, 638.

Sabemos da relação que Nietzsche manteve com Platão: de admiração, de crítica, de simpatia e de ruptura. Relação conturbada, mas fértil. Nietzsche deu seu ultimato no Crepúsculo dos ídolos sobre o “problema de Sócrates” como um primeiro décadent e estipulou como prerrogativa de sua tarefa a luta contra o dogmatismo das antigas filosofias, principalmente o platonismo. A sua postura para com eles foi, de fato, a de um imoralista com relação ao moralismo dogmático. Em resumo, seu problema foi inserir um perspectivismo na história das criações e das verdades humanas, das culturas e dos juízos. Nisto, consistia entrever os juízos como uma criação humana, como um acontecimento, com sua proveniência e com sua emergência em um determinado período e configuração de forças, numa tensão entre acaso e necessidade. Para ele, “juízos de valor acerca da vida, contra ou a favor, nunca podem ser verdadeiros, afinal; eles têm valor apenas como sintomas, são considerados apenas enquanto sintomas – em si, tais juízos são bobagens.” (NIETZSCHE, 2006a: II, 2). Essa perspectiva permitiria ao historiador, ao filósofo ou ao pensador, diagnosticar na transversal de seus pensamentos, seus ideais, seus valores, seus juízos, vislumbrando as suas aparições ao longo da história e a pluralidade dos mesmos. Não há apenas uma única perspectiva sobre a “realidade”. Isso não implica num relativismo, pois não é a mesma “realidade” para todos. Quiçá implique que a “realidade” talvez não seja composta por todas as perspectivas reunidas, como talvez pensasse Heidegger com respeito a história da totalidade da verdade. Mas a pluralidade de perspectivas, explicações, imagens e práticas sobre e pela “realidade”, implica, sim, que há algo de incognoscível nisso que chamamos de “realidade”. Ou antes, a “realidade” é uma fábula inventada por muitos. O acontecimento, aquilo sobre o que

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dizemos e pensamos, então, talvez nos seja eternamente desconhecido, afinal. Talvez, para Nietzsche, o conhecimento, a moral, o juízo, exatamente por serem uma invenção, uma ilusão sobre a realidade, sua relação para com ela não seja a de identidade, mas de uma outra ordem. A incognoscibilidade da realidade para o homem, se não é atestada completamente por Nietzsche, ao menos, ele a cogita na sua desconfia às ciências, ao dizer da incompletude do conhecimento humano com relação à totalidade dos acontecimentos. Há potências “escondidas e proibidas” que, longe de afastarem o homem do conhecimento, a exploração, a experimentação dessas potências tidas como vis, ardilosas, falaciosas – na criação, na promessa, na miragem, na sede, na fome – são condições de possibilidade, um prelúdio para toda ciência e entendimento16:

[...] o que é intelligere, em última instância, senão a forma na qual justamente aquelas três coisas tornam-se de uma só vez sensíveis para nós [...] um resultado dos diferentes e contraditórios impulsos de querer zombar, lamentar, maldizer? (NIETZSCHE, 2007: 333)

A possibilidade de entendimento e de conhecimento, se compreendidos como algo da ordem da identidade com a realidade, como a consciência de algo tornado evidente, ignorando tudo aquilo que inconsciente ou imperceptível acontece, é um tipo de pensamento “menos vigoroso (...) suave e tranquilo” (2007: 333): ele pode se enganar mais vezes com respeito a natureza do próprio conhecer, pois não percebe a incompletude, a distorção do entendido e do conhecido com relação ao acontecimento. Essa incompletude, além do mais, não designa apenas o nosso conhecimento com relação à natureza e ao mundo, mas com relação a nós mesmos: “Por mais longe que alguém leve seu autoconhecimento, nada pode ser mais incompleto do que sua imagem da totalidade dos impulsos que constituem seu ser.” (NIETZSCHE, 2008a: 119)17. Pode ser, contudo, que nessa relação de incompletude e de alteridade entre conhecimento e acontecimento, entre conhecimento e ser, algo aconteça. A constituição do conhecimento humano, os saberes que sustentam modos de vida e concepções de mundo, mais do que inatos e estáticos, produzem-se por relações de mútua alteridade entre os impulsos que o constituem e o jogo de organização, de apropriação de outros

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Sobre a questão da ciência e do conhecimento, cf., por exemplo, NIETZSCHE, 2007, aforismos 12, 300, 333. 17 Cf. NIETZSCHE, 2088d, Cap. I.

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conhecimentos, errando e reelaborando sensações, simultaneamente sendo selecionados e constituindo tal princípio seletivo como um gosto. Saber e sabor. O saber como a composição de um gosto pelas coisas, para aquilo que nutre a vida, que faz bem a vida, muitas vezes, apesar do “gosto” vigente, saboreando os contrários e desvios (NIETZSCHE, 2008c: 100). Saber como sabor enquanto esse conjunto de artifícios e estratégias sobre a vida, sendo constituído exatamente por uma percepção que seleciona, por uma constante elaboração dos afetos e pela seleção dos acontecimentos a fim de garantir sua saúde. Vemos Nietzsche levar, por diversas imagens e transposições de termos, essa relação entre conhecimento e fisiologia, entre educação e farmacologia, num processo análogo entre constituição do espírito e do corpo, como processos de um mesmo enredamento inventivo: o da vida. Pois, afinal de contas, “o que são, então, nossas vivências? São muito mais aquilo que nelas pomos do que o que nelas se acha! Ou deveríamos até dizer que nelas não se acha nada? Que viver é inventar?” (NIETZSCHE, 2008a: 119). A questão da invenção ou da novidade não é tanto o ineditismo, mas a da diferença, por menor que seja. É esse o efeito do perspectivismo nietzscheano numa investigação histórica. Não é tanto utilizar antigos modos de vida para retificá-los na atualidade, mas simplesmente poder pensar que algo já foi diferente. Inserir o conhecimento humano no seu devir histórico, enfim, implica que não há um valor absoluto da vida em si mesma – “o valor da vida não pode ser estimado” (NIETZSCHE, 2006a: II, 2). A querela com relação ao status do conhecimento na ordem das coisas, dos limites do conhecimento e sua função para o homem é antiga. A questão da identidade e da alteridade do conhecimento com relação ao mundo, aos homens, às coisas, dependendo de sua formulação, configura toda uma hierarquia moral de valores para se estudar e pensar os modos de vida humanos, para se problematizar e praticar formas de vida. Pensar o “valor dos valores”: esse perspectivismo, essa reflexão histórica que visa os deslocamentos pelos quais o ser humano altera e reinventa a si mesmo e o status do conhecimento, talvez pudesse ser justificada antes mesmo de Nietzsche:

Não é, afinal, o que se passa com cada ser vivo, a quem reconhecemos, enquanto vive, uma existência e uma identidade próprias? Sim, nós dizemos que é o mesmo indivíduo desde a infância até a velhice, e contudo jamais retém as mesmas características, seja nos cabelos, na carne, nos ossos, no sangue, em todo seu corpo: ora

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nasce continuamente para umas, ora morre para outras... Mas além do corpo, também a alma é afectada: estados de espírito, hábitos, opiniões, desejos, prazeres, alegrias, receios – nenhuma destas coisas permanece em cada indivíduo; umas nascem, outras desaparecem... e ainda o mais extraordinário é o que se passa com os nossos conhecimentos: assim surgem, assim se vão, de tal sorte que nunca somos os mesmos no que respeita aos nossos conhecimentos, pois cada um deles, considerado em si, está sujeito a idêntica mudança. (PLATÃO, 2006: 207d-e)

Talvez aqui, nessa eterna “mudança” do corpo, da alma e do conhecimento, também residisse essa possibilidade de pensar sob tal “liberdade da razão”, que, independente de sua identidade para com a natureza, pudesse pensá-la diferentemente. E é por essa liberdade da razão que Nietzsche vai refletir, quiçá, sobre o itinerário da formação do ser humano. Apesar da problemática educacional alemã no XIX girar em torno da formação (Bildung), da forma (Bild), disso que poderia ser a concepção do homem ideal e de um projeto formativo, que versa para o ser humano um itinerário rígido e ao mesmo tempo abrangente para se chegar a esta forma, a este “homem”, Nietzsche, mesmo após ter tomado partido dessa perspectiva, tendo ele mesmo seu ideal de homem e de formação, rompe com a possibilidade de uma ciência objetiva do homem e com a racionalidade projetista de um método único e específico para alguém se tornar o que é. Há muita coisa aí. Na imagem do andarilho, do escrever andando, do escrever e do pensar dançando; do mover-se leve, dos hábitos breves, dos destinos temporários – enfim, nessa imagem, que não é um fim último, tampouco um projeto de percurso, diz muito sobre o que é essa vida em formação ou a formação da vida para o filósofo alemão. Há algo aí, talvez, como uma ética da educação do andarilho18: alguns procedimentos, alguns princípios, por mais que transitórios, desse que se desloca, que não pode deixar de se deslocar, por mais que pare e descanse de tempos em tempos. Ele precisa sempre se pôr a caminho de, em “peregrinação ao estrangeiro” (NIETZSCHE, 2008c: Prólogo, 5), mas não para pregar alguma palavra, caminho ou moral, tal como 18

Com respeito a isso, é curioso ler as Confissões, bem como seus últimos escritos de vida, Os devaneios do caminhante solitário de Jean Jacques Rousseau como documentos dessa arte de governar a si mesmo, na aplicação dessa técnica da confissão por meio da escrita como governo de sua própria conduta. Valores, conceitos e verdades, de ciências e hábitos mais ou menos vigentes, operam não só na instância da maneira como se narra a si próprio e sua subjetividade, como operam também enquanto crivos de avaliação de si mesmo, de quão distante um sujeito está desses modelos culturais de sujeitos, quão distante e para onde deve rumar sua formação. Traçar as relações entre esse andarilho rousseauniano e o andarilho nietzscheano, os valores, os hábitos e as práticas pelas quais eles se conduzem, poderá nos trazer interessantes questões e clivagens dos pensamentos ético-educativos entre os séculos XVIII e XIX.

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um homem religioso. Ele quer ver outras paisagens, ele quer encontrar outras pessoas, outros costumes, sente-se sozinho nesse mundo que inventa para si próprio e quer interpelar o outro, como um desconhecido, um cínico, um errante, a favor daquilo que têm em comum ou da diferença que os aproxima: o cultivo de um modo de vida; tão somente, talvez, para não parar e continuar andando, aprendendo a andar. Voar com os próprios pés.

II. 1. Educação: viagem ou errância?

(...) uma curiosidade por toda espécie de alheio... Seguiu-se um longo vagar, buscar, trocar, uma aversão a todo fixar-se, a todo rude afirmar e negar; e igualmente uma dietética e disciplina que pretendeu tornar o mais fácil possível, para o espírito, correr longe, voar alto, sobretudo prosseguir voando. Nietzsche, Humano, Demasiado Humano II, Prólogo, 5.

Um importante autor e ator da educação contemporânea nos traz, talvez, o disparador dessa problemática educacional que procuraremos elucidar, a partir de Nietzsche, com respeito às possíveis imagens, às possíveis racionalidades de um processo de educação. Numa palestra, intitulada Pedagogia: a terceira margem do rio19, Antônio Nóvoa, reitor da Universidade de Lisboa, proferiu um exuberante discurso sobre o porvir filosófico e pragmático da educação, procurando, também ele, sair das vias dicotômicas de análise, interpretação e crítica das instituições e práticas educativas. Seu argumento era de que a educação, não sendo nem uma margem, nem outra, é o próprio rio, produz-se em seu próprio movimento – deve-se fazer nas confluências de seu próprio curso. Na terceira e última parte de sua fala, Nóvoa frisou ser importante para a ciência e a prática pedagógica compreenderem esse movimento – o processo pedagógico – como uma viagem. A educação como uma viagem e com uma destinação. Uma viagem 19

Palestra realizada no Auditório da Escola de Aplicação, Faculdade de Educação da USP, no dia 20/05/11. Por ventura, voltaremos a nos referir a ela no nosso texto como NÓVOA, 2011.

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que partiria de uma ideia de futuro (utópica: civilizada, emancipada, etc.) e uma concepção dos seres (natureza: racionais, livres, etc.) que vivem hoje e que deverão viver esse amanhã. Uma viagem com a esperança da chegada, uma viagem com a certeza do ancoradouro. Do fim. Antônio Nóvoa deu como personagens dessa viagem não só o aluno, aquele que aprende, mas também aquele que ensina, o professor/a escola. Nóvoa parte do problema da “hiper-responsabilização” do ator-espaço escolar, da inflação do professor/escola – de suas tarefas, obrigações, objetivos. Com isso, procura chegar ao desembaraço desse problema por meio da promoção da diversidade dos percursos educativos, pela diminuição das responsabilidades escolares, promovendo, assim, uma espécie de variedade institucional e curricular, com diferentes percursos, valores e técnicas, para que teçam uma espécie de rede sócio-pedagógica. Nesse contexto, contudo, a viagem, o processo formativo do indivíduo com uma destinação, estaria garantido: o destino de sua natureza livre seria a própria diversificação de uma viagem formativa rumo à liberdade social. Apesar de ser uma apresentação breve de um discurso primoroso, percebemos (bem ou mal) a sedução desta conjectura desenhada pelo notável conferencista português. Delineando a educação como uma viagem, o destino possível para ela seria a liberação curricular e des-uniformização das instituições, estipulando à liberdade humana como paradigma de seu porvir o tão em vogue conceito de pluri ou multiculturalidade. Não obstante, vemos com certa desconfiança este discurso. Não muito pelo seu conteúdo ou pelas suas propostas pragmáticas. Mas uma desconfiança fruto do modo não só do discurso posto, mas do modo como o saber opera convicções acerca da natureza humana e dos limites do conhecimento. Como já sabemos, tais operações constituem, formam subjetividades, determinam regras e valores ético-morais. Tal desconfiança é fruto dos próprios valores, já considerados “neutros”, naturalizados, indispensáveis ao pensamento pedagógico. A ver, ao pensar uma natureza livre, o ser humano já projeta inúmeros processos formativos pelos quais ele deve se tornar livre (... custe o que custar?). Nesse jogo do conhecimento, nessa tensão entre modos de vida passados, presentes e futuros, a dimensão ética do desejo é obliterada. Temos, então, um regime de inteligibilidade (de saber) de definição-projeção fundamentada por uma crença acerca de um conhecimento-ação. Este regime de inteligibilidade, regime que produz nossa forma de perceber e compreender as coisas opera, muito embora, sobre a

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crença de que ao conhecermos algo, somos capazes de realizá-lo (um objeto pela técnica, uma ação por uma regra moral)20. A novo título de hipótese, tal regime e crença seriam perpetuados pelas noções de sujeito em formação e pelos processos os quais ele deve passar para se tornar um. A escola foi e é uma grande reprodutora e difusora desse regime: por um lado, fazendo-nos crer que o conhecimento é capaz de, senão salvarnos, conformar a realidade à nossa imagem e semelhança21; por outro, fazendo-nos governar a nós mesmos por meio de uma tecnologia pedagógica da verdade e da adequação ética à essa verdade. É nesse sentido – imaginando uma educação enquanto uma viagem, uma escola como algum lugar que nos leva ao conhecimento, não obstante, sempre em movimento, mas sempre, como porto salvador – que pensamos os perigos mesmos de um projeto formativo salvacionista racional. Ao invés de investir nossos esforços críticos sobre o próprio conhecimento, sobre os próprios discursos verdadeiros, analisando sua força de verdade e coerção, não percebemos que a própria constituição do conhecimento é uma senda de erros, um combate entre forças, interpretações, verdades e ilusões, talvez, sem fim: O mundo tornou-se novamente “infinito” para nós: na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações. (NIETZSCHE, 2007: 374).

II. 2. 1886, revisão de um programa escritural ético-farmacopaico

Eu espero ainda que um médico filosófico, no sentido excepcional do termo – alguém que persiga o problema da saúde geral de um povo, uma época, de uma raça, da humanidade –, tenha futuramente a coragem de levar ao cúmulo a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmação: em todo o filosofar, até o momento, a questão não foi absolutamente a “verdade”, mas algo diferente, como saúde, futuro, poder, crescimento, vida... Nietzsche, A gaia ciência, Prólogo, 2. 20

Pretendemos elaborar melhor a especificidade operacional desse regime de inteligibilidade (nem tão) moderno enquanto um “sistema de crenças”, tal como posto acima, assim como nos fez pensar Nietzsche (2008a: 116). 21 Apesar de difícil confirmação, vale lembrar que a raiz da palavra Bildung é o termo Bild, que quer dizer, geralmente, figura ou imagem; a substantivação deste termo indicaria um processo, uma ação pelo qual o indivíduo torna-se à imagem e semelhança do que se projetou para si.

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O ano de 1886 deve ter sido para o autor alemão como o atestado pelo qual se compreende que não se sai impune do que se viveu – de suas escolhas, de suas experiências, de seus pensamentos. Talvez não seja fácil calcular quanto sofrimento, a que custo Nietzsche pode ter tido acesso ao seu modo de vida, acesso aos seus remédios, às suas ilusões – a sua verdade. Não deve ter sido fácil de calculá-lo para ele mesmo, tamanho o investimento de si mesmo na vida e na obra. Talvez acontecimentos biográficos e passagens escritas digam muito pouco para designar as coincidências e sinais, as penúrias, os alentos e os revezes, entre o caos e a vontade, que se sucederam para Nietzsche acumular sofrimentos, paixões, forças, entendimentos, ilusões, desilusões, revigorando, a seu próprio custo, sua disposição de pensamento, necessária para continuar impingindo uma conduta singular de pensamento e de vida (NIETZSCHE, 2003, p.12). Não é uma questão de tornar esse ano 1886, esse período da vida de Nietzsche como algo emblemático, previsível ou enigmático. Tampouco diríamos que foi como um momento de reviravolta, como algum ponto de inflexão, ponto de ruptura ou de superação de sua obra ou um dos tantos ao longo de sua obra. Por mais que pudéssemos fazer interessantes conexões entre todos os acontecimentos desse período, em termos de violência e importância para sua obra, para seu estranho ensinamento e saúde, partindo de cada um desses predicados, talvez formular as razões dessa educação empreendida a marteladas seja contrário mesmo ao que Nietzsche propôs fazer consigo e com sua filosofia. 1886 é o ano que, passando boa parte dos últimos dois anos viajando, ora como solitário, ora em companhia de poucos amigos, tendo escrito boa parte de seus mais importantes livros e tendo vivido intensas paixões, para ele mesmo, estava tão somente se recuperando das enfermidades corporais, éticas e psíquicas que o acometiam há alguns anos. Em meados de 1885, vivendo somente para escrever (HOLLINGDALE, 1999, p.172), terminava de redigir as últimas partes de seu Zaratustra, esboçando aquilo que chamou de Grande Saúde, consumando seu percurso de “cura espiritual” (NIETZSCHE, 2008b-c: Prólogo, 2) que já durava mais de oito anos. Cura espiritual que começara exatamente nos anos de 1878 a 1880, período das duas partes do Humano, demasiado humano. Serão para os livros que escrevera até então, a partir desse último, que em 1886 ele redigirá novos prólogos para os mesmos, numa maneira

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de reafirmar e constatar aquilo que tinha constituído para si mesmo: um modo de conduta, um método de pensamento e uma investigação científica – uma cura para os idealismos, romantismos e niilismos segundo a perspectiva da história genealógica. Pode-se ler nesses livros de 1878 a 1886 (a par da Genealogia da moral e do Zaratustra apesar da importância dessas duas obras) o testemunho dessa espécie de guinada filosófica, dessa superação de si mesmo, daquilo que pensava e via sobre o mundo, a qual reverberará na sua concepção de educação. A arte e a filosofia, entendidas antes como redentoras do ser humano, como aquelas que garantiriam, de uma vez por todas, um modo de vida nobre e suportável, passam a ser vistas com suspeita e ironia. Poderíamos arriscar dizer – e não é à toa que Nietzsche retoma isso no prólogo tardio do Humano – que nesses anos, já a partir de 1878, cultivava-se um ensejo de escrutinar e talhar, de olhar com mais frieza e malicia para as valorações e as produções culturais de sua época; olhar cortante sobre os modos mesmos pelos quais o ser humano era avaliado e talhado a ferro e fogo, a letras e disciplinas. Olhar sobre como a vida precisa de “ilusão” e, se precisa, como é que se fabula, se a fabrica, se a aplica. Nietzsche entendeu que se era preciso toda uma outra fundamentação não só dos modos como o ser humano entendia a sua cultura e suas crenças, seria preciso remodelar as próprias práticas científicas e seus ideais, incluindo desde as ciências naturais às humanas, culminando no problema de uma educação. Nisso consistiu a abundância da temática não só da educação como da história, dos campos problemáticos a serem revistos, questionando suas metodologias, seus efeitos de verdade e de poder. Será nos dois volumes do Humano, Demasiado humano, mais precisamente no seu segundo volume, consistindo de duas partes denominadas Opiniões e sentenças diversas (1879) e O andarilho e sua sombra (1880), que Nietzsche passará a se deter com mais ênfase sobre os procedimentos de escrita (escrita da história, escrita do romance, a função da escrita para si e para o outro) voltados para a educação de si e dos outros. São nessas duas últimas obras também, por exemplo, que ele primeiramente fará uso de termos como Selbst-Erziehung ou Selbst-Erzogenen (2008b: 223; 2008c: 180, 267). Àquela altura, tornara-se um problema as questões acerca da maneira como se constituía o conhecimento, a ciência, a educação; como se constituíam as próprias regras e a lógica da concatenação e enunciação do que era certo, instrutivo, verdadeiro, regras baseadas muitas vezes em crenças metafísicas ou em modos irrefletidos do

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pensamento científico e escrito. Foi também o momento das primeiras reflexões acerca da necessidade de um filosofar histórico, tornado posteriormente numa metodologia genealógica e a na noção de escrever com sangue, procurando fazer frente aos modos arbitrários e ingênuos, perigosos para a vida, pelos quais os cientistas, os eruditos e os formadores de cultura escreviam a história, a literatura, as leis, a fim de constituir um corpus moral e epistemológico aceito e adequado do conhecimento e da formação de suas nações e indivíduos. Em seguida, iremos nos deter sobre alguns processos e concepções de educação que Nietzsche explora ao longo de sua vida, envolvendo questões acerca da filosofia, da ciência e da história. Ao mesmo tempo, Nietzsche passa a meditar mais profundamente sobre as práticas ascéticas, na história e na sua própria experimentação, como atividades essenciais para a formação de um pensador livre. No próximo capítulo, focaremos a questão especificamente da escrita, a qual nos parece ser um dos temas centrais destes prólogos e, porque não, dessas obras. Escrita entendida como um procedimento que, nele mesmo, convergiria essas atividades: a da ciência, da história e da filosofia, reunidas numa possível ética da prática de si mesmo. Atividades essas que, ao nosso ver, encerrariam boa parte do que Nietzsche entende como auto-educação ou uma “educação por si próprio”.

II. 3. Educação e dessubjetivação: da vida escolar à auto-educação

Precisa-se de educadores que sejam eles próprios educados, (...) provados a cada momento, provados pela palavra e pelo silêncio, de culturas maduras, tornadas doces (...) Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos, VIII, 5.

Com a idade de 6 anos, já tendo aprendido a ler e a escrever com sua mãe, Nietzsche ingressa na sua primeira escola em Naumburg, cidade onde mora até o início da juventude. Destaca-se pelas suas habilidades intelectuais e poéticas, escrevendo desde muito cedo, o que lhe rendou algumas bolsas de estudos ao longo de sua formação escolar e acadêmica (HOLLINGDALE, 1999). Apesar de ter uma criação

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intimamente religiosa, vindo de uma família cujo patriarca era um pastor protestante e cuja infância passou brincando no jardim da igreja de seu pai, Nietzsche já se interessa pelos estudos, pelas letras e pela história antiga, tendo conseguido suas primeiras certificações em grego e latim antes mesmo dos 10 anos. Aos 14 anos, ingressa na tradicional e rígida escola de Pforta, onde passa seus próximos quatro anos. É com essa idade que escreve alguns dos seus primeiros textos, incluindo uma primeira reflexão sobre experiências do que vivera até então22. Na escola, sob uma doutrina “espartana” de conduta e estudos, aprofunda seu gosto pela pesquisa, leitura e escrita e chega a organizar uma “sociedade cultural”, um grupo de estudos literários e musicais com seus amigos, grupo que dura até a sua saída da escola. É ao longo desses anos em Pforta que Nietzsche começa a cultivar seu interesse pela crítica acadêmico-científica. Sua formação até então religiosa, com leituras de textos sagrados e míticos sob um olhar ingênuo, começa a sofrer a influência de seus estudos históricos e culturais, acentuando seu olhar cético sobre os dogmatismos da religião e do conhecimento. Apesar de certa aptidão para os estudos, ele não foi nenhum aluno prodígio, tendo falhado em disciplinas como matemática e gramática. Sinais de desobediência apareciam até em seus escritos, com os quais mantinha uma intensa relação, mantendo desde cedo uma prática escritural, com diários e ensaios, escrevendo trabalhos escolares e trocando diversas cartas entre amigos com comentários e sugestões de estudos. Nesse período escolar, Hollingdale (1999, p.20) afirma que Nietzsche passa pela primeira de uma série de mudanças comportamentais, principalmente, com relação a sua formação e aos seus estudos. Longe de ter sido fruto de algum acontecimento religioso ou místico, esse processo de transformação e maturação de seu caráter e de seus interesses, de sua própria formação, se dá exatamente pela sua vivência educacional. Vivência compreendida pelos esforços na pesquisa, na leitura, na escrita. Esforços que, escreve em 1859, se traduzem num desejo de conhecimento em relação à cultura e à formação cultural em geral [Bildung], muito despertado por Wilhelm Humboldt (HOLLINGDALE, 1999, p.22). Também no ano de 1859, Nietzsche escreve um curioso e interessante poema que talvez nos dê pistas sobre o que já pensava com relação a um processo de formação e à importância que dava a liberdade de pensamento. Intitulado Ohne Heimat, 22

Trataremos desses escritos de infância, Aus meinem Leben, “Sobre minha vida”, no capítulo III que corresponde à escrita.

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literalmente, “sem casa”, o poema faz ligações entre a ideia da ausência de moradia e a possibilidade de deslocar-se livremente, de vagar. O final do poema é um testemunho desse sentimento errante que Nietzsche já cultivava e, por ventura, antecipava para um homem moderno, um “cidadão do mundo”:

(...) Niemand darf es wagen, Mich danach zu fragen, Wo mein Heimat sei: Ich bin wohl nie gebunden An Raum und flüchtge Stunden, Bin wie der Aar so frei!...23 O cenário inicial dessa sua vida escolar talvez nos ajude a mostrar como o processo educacional para Nietzsche tem sido, desde cedo, um procedimento, uma estratégia importante de construção e desconstrução de seu caráter e pensamento. Talvez nem seja tão estranho pensar que esse disparador, esse bocejo de despertar de um sonho dogmático, possa ter se dado na escola, sob a tutela disciplinar e acadêmica de mestres e regras. Sua educação deve ter sido prova da necessidade dessa tensão criativa, encontrada entre a dureza da conduta e do pensamento acadêmico-científico e a doçura e tranquilidade de uma criação maternal e religiosa, para possibilitar o confronto com pontos de vista, para cultivar a vontade como possibilidade de tomar uma outra perspectiva. Tensão deveras necessária para cultivar exatamente “o julgamento rigoroso, o julgamento prudente, o raciocínio coerente”, procurando fazer da “Ciência e Razão, suprema força do homem” (2006b: 265). Tensão entre conhecimento e vontade, disciplina e impertinência gerando força: um tema também recorrente nos escritos posteriores, pois através do arco tenso de seu pensamento disparam-se flechas, suas próprias flechas, para metas cada vez mais distantes. Pensar essa tensão, esse confronto de estudos, valores, perspectivas, será para Nietzsche uma espécie de ocupar-se de sua própria formação e destino. Logo, por mais que a ideia de formação [Bildung] se constituiu como base de seu pensamento sobre a educação, ela já carregava consigo certas dissonâncias com o pensamento dos outros pensadores da Bildung alemã, podendo Nietzsche ser tomado como uma espécie de contraponto, de “paradigma” mesmo, com relação a outras 23

Ninguém ousa / Me perguntar / Onde é meu lar: / Quiçá nunca fui ligado / às horas voando ou ao espaço / Sou tão livre como a águia a voar [tradução nossa]. Cf. HOLLINGDALE, 1999, p. 22.

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filosofias da educação, divergindo desde sua ideia de homem à concepção dinâmica e conceitual do processo de formação desse homem. Entretanto, esse processo já vivido – e talvez conjeturado antes de sua fase dita madura – como algo que pertenceria à liberdade de investigação e interpretação, da crítica do pensamento por ele mesmo, de uma suspeita para com a crença ou a verdade, da incerteza da morada, da instabilidade do caminho, das errâncias de um destino, tal processo iniciado longinquamente, enfim, poderia ou não desembocar no que Nietzsche vai pensar mais tarde sobre educação e auto-educação. Mas é interessante perceber como o filósofo alemão vai desenvolvendo tal problema da educação: da escola como o lugar dessa tensão criativa, essa tensão como a própria tarefa da escola (NIETZSCHE, 2006b: 265), ele transita para uma intensa crítica das instituições educacionais de sua época, culminando na expectativa de novas instituições surgirem triunfantes24. Não obstante, passados os anos entre 1872 e 1878, no seu duplo livro de 1879 (2008b-c), Nietzsche vai abrir mão dessas instituições de ensino, desse espaço próprio para esse jogo de tensão e vai instalá-lo no próprio âmbito da relação do sujeito consigo mesmo e com o outro, bem como na relação do sujeito com a história e o conhecimento. Jogo que vai ser principalmente realizado por meio dos procedimentos de investigação, estudo, leitura e escrita: tensão que irá emergir através dos confrontos de perspectivas culturais e dos modos como se abordam tais tradições culturais, tratados filosóficos, documentos históricos, obras artísticas que serão sinais de uma espécie de modo de vida e de valoração. Instalado nesse âmbito entre o público e o privado, entre o ético e o político, entre o moral e o educativo, entre as práticas de si e as normas, valores e regras estabelecidas para uma cultura, esse jogo de tensão aproxima-se muito ao que entendemos do processo de formação e de constituição de si esquematizado por Nietzsche.

II. 4. Algumas notas sobre as concepções e as críticas de Nietzsche sobre o processo constitutivo/educacional do sujeito

Mas como nos reencontrarmos a nós mesmos? Como o homem 24

Cf. As cinco conferências de 1872 (NIETZSCHE, 2000).

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pode se conhecer? É algo obscuro e velado. Nietzsche, Schopenhauer educador, I.

É recorrente nas obras nietzscheanas a noção de um processo de constituição constante do modo de ser do indivíduo – processo desconhecido, nos sentidos mais gerais das palavras25, de formação e deformação, de crítica e crise, de reafirmação perene. Essa noção irregular, não progressiva, pela qual o homem literalmente sofre para se tornar esse ser que está sempre em devir, dá mais vazão à ideia de errância do percurso do que à ideia de destino da formação, de um destino previamente formado e último. Com efeito, embora a noção de processo possa ser útil para entender a dinâmica de transformações pelas quais o sujeito passa na constituição psicofísica, é difícil nos valermos unicamente da noção de formação para compreendermos esse processo. Não querendo nos aprofundar demasiadamente na discussão das concepções e os deslocamentos que Nietzsche realizou com respeito à educação, nos deteremos sobre passagens mais desconhecidas, dispersas em seus livros, que tratam muitas vezes dos modos pelos quais se dão as relações pedagógicas ou como se deveria portar com respeito aos estudos e à sua conduta. Talvez, suas reflexões acerca da educação sejam uma de suas contribuições mais interessantes à educação moderna – principalmente, se fizermos releituras pausadas de seus aforismos, tentando visitar as correlações, as justaposições, os declives e re-apropriações dos movimentos de seu pensamento na constituição de sua visão de mundo e de si mesmo e procurando mostrar a importância não só da disciplina e da investigação, como de uma conduta do perder-se, do desconhecer-se, de um ser em formação tomado tanto mais por Dionísio do que por Apolo. Relativamente a essa dimensão da educação em Nietzsche, vale a pena a leitura de determinados trabalhos na língua portuguesa. Destaco dois, os quais, creio, fazem um belíssimo trabalho de recolhimento de passagens e interessantes interpretações e questionamentos dessas perspectivas educacionais nietzscheanas. Um primeiro, do José Fernandes Weber (2008), ocupa-se de investigar exatamente esses deslocamentos de concepções educacionais em Nietzsche, seus diferentes processos e ideais, tocando nas 25

A ideia de processo poderia ser colocada em questão: ampliada, distorcida, redesenhada, nas suas várias acepções ao longo dos usos e desusos, como curso, método, proceder, movimento para frente, acontecimento, êxito, aparecer, nascer; exatamente nesses sentidos, faz-se frente à ideia de do processo judicial, baseado numa lei externa, jurisprudente... pedagógico?

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questões relativas às transformações do modo de educar o outro e a si mesmo e à conduta que se deve manter consigo mesmo na possibilidade de se assegurar a liberdade de pensamento e formação. Outro, do filósofo espanhol Jorge Larrosa (2009), propõenos leituras de determinadas passagens de Nietzsche a partir de problematizações dos ideais da educação dita iluminista, como “destino”, “formação (Bildung)”, “liberdade”, e de certas práticas utilizadas pela pedagogia escolar, como a leitura e a escrita. Temas disparadores que nos fariam rever, de certo modo, toda essa problemática da educação em torno da autonomia ou da emancipação, no século XIX. O trabalho de Larrosa problematiza, mais uma vez, a questão da emancipação e da liberdade (LARROSA, 2009, p.69-74). Para Nietzsche, o problema da liberdade estava um pouco mais além do que encontrá-la, defini-la, justificá-la, crendo-se livre tão somente na segurança de uma verdade absoluta reconhecida sobre o ser e seu devir. Para Larrosa, é mostrar que tal conhecimento não tem uma relação de identidade com o ser, que uma verdade nada mais é do que uma perspectiva, um olhar, uma aproximação e um uso da realidade segundo critérios muito singulares e arbitrários e que com a força e o tempo, com o hábito e o costume, seriam assim naturalizados, acreditados e quistos como o bem e o certo. Logo, a relação que um filósofo, que um pensador tem com o seu presente, com o conhecimento, a cultura e a “verdade” de sua época, quando emancipado, ou tão somente tornado espírito-livre, é uma relação de um adulto tornado criança (LARROSA, 2009, p.93-95). Com Nietzsche, a “maturidade do homem significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar” (2006c: 94) – de modo jovial e enfático; sincero e alheado; de um autoconhecimento ingênuo, mas sem pudor, o pensador é aquele sempre muito próximo e muito distante daquilo que fazem dele para, constantemente, mergulhar na possibilidade do que pode ser. A concepção de Nietzsche sobre a liberdade talvez estivesse um pouco aquém quanto além de sua época. Pode-se assinalar como cultura vigente na Europa o movimento romântico que se exprimia sob o sentimento e a filosofia moral de um humanismo redentor, da cultura humana como progresso e salvação. Segundo Nietzsche, afastando-se de suas próprias teorias da juventude, nem a educação nem a arte poderiam realmente tornar os homens livres, salvá-los, enfim, do acaso e da necessidade. A liberdade em Nietzsche estaria aquém porque, de fato, há uma relação sempre problemática na sua filosofia acerca das metas, dos ideais de homem, de suas capacidades: para Nietzsche, tudo isso é muito arbitrário e fanaticamente sustentado por

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práticas sociais, questão que deve sempre se suspeitar ao tratar das melhores formar de conduzir a si mesmo ou o outro. Por exemplo, a sua crítica do “livre-arbítrio” cristão e da “vontade-livre” schopenhaueriana resume-se nas devidas implicações que há entre liberdade e necessidade, pensamento que ele mesmo cunhou como “pessimismo dionisíaco” (NIETZSCHE, 2007: 370). Por sua vez, a liberdade também estaria além, pois o que restaria ao homem, nesse sentido, é fazer parte do combate eterno entre forças, entre o comando e a obediência, entre o instinto e o conhecimento, entre o impulso e a razão. A importância de um livre-pensar, então, entendida como tarefa do indivíduo, é produção da divergência: mais do que estabelecer metas, seria afirmar o “poder oposto”, sempre recordando “que não há uma moral única determinando o que é moral”, e mostrando “que toda moralidade que afirma exclusivamente a si própria mata muitas forças boas e vem a sair muito cara para a humanidade” (NIETZSCHE, 2008a: 164). Como vimos, não é uma questão relativismo ou rabugice, mas de perceber que há tantas auroras que não brilharam ainda (NIETZSCHE, 2008a, p.8). É na proeminência dessas divergências, desses combates, como parte do processo educacional, compreendido no âmbito de uma ética em sua relação com a política, com a sociedade, com o poder, que também pensamos a respeito da hipótese foucaultiana sobre a incerta retomada da filosofia antiga pela moderna. Nessa realocação dos problemas da verdade e do governo de si e dos outros pela verdade, Nietzsche tomaria parte nesse problema de maneira singular. A seguir, apresentaremos a seleção e a transcrição de algumas passagens que nos pareceram relevantes para entender, a nosso ver, as práticas pelas quais o sujeito vai se constituir enquanto tal, em relação a uma cultura, mas podendo, em meio a ela, dessubjetivar-se dos processos de subjetivação vigentes. Como mote para um futuro estudo mais aprofundado, estabelecemos alguns temas, afim de que aflorem, pela leitura dos aforismos, as duas dimensões que nos parecem importantes para se pensar o processo de educação em Nietzsche, ou mais precisamente, de auto-educação. Por um lado, procuramos evidenciar a importância da dimensão da conduta, da disciplina, do autodomínio – mesmo que esses sejam sempre vistos em perspectiva, com certa distância para com os valores que permeiam as práticas de conduta. Por outro lado, procuramos evidenciar a dimensão da investigação científica, histórico-filosófica, sob a ideia do perspectivismo e do sentido histórico. Tal investigação, que mais tarde Nietzsche definirá como genealógica, da busca dos

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deslocamentos dos valores e das práticas, mais do que sua origem triunfal, será de suma importância para a possibilidade de valorar, avaliar, ajuizar diferentemente. Será o historiador, ou melhor, aquele que se valer da história, que poderá conhecer novos horizontes através de confrontos e conexões entre os modos de pensar e viver passados, vividos e sonhados, e assim, buscar sua própria felicidade: “um homem no qual não só o espírito se transformou ao estudar a história, mas também o coração, e que, ao contrário dos metafísicos, está feliz em não abrigar em si ‘uma alma imortal’, mas muitas almas mortais” (NIETZSCHE, 2008b, 17.) Será a história, ou melhor, o sentido histórico, o olhar sobre o devir histórico das “coisas humanas”, que permitirá o auto-educado elaborar sua experiência dando-lhe a possibilidade de sua própria felicidade, sua própria valoração, a invenção de sua conduta. É a história também que possibilitará um encontro com a alteridade, com o “haver sido” tornado outro, não obstante, encontro necessário para a saúde daqueles que querem se auto-educar. Mais do que educador ou historiador, o pensador, já livre, seria este que encarnaria tal condição de elaboração de si e de um conhecimento comunicável, compreensível, mas sempre suspeito. Daí, toda a problemática acerca de um saber educativo, de uma prática pedagógica, pautados sobre a essência e o conhecimento absoluto, sobre a crença desse conhecimento sobre a totalidade do ser humano e sobre a eterna teleologia de uma forma que “salva”. A nosso ver, essas dimensões, das práticas de si e da história, esquematizadas dessa maneira apenas para facilitar talvez a variedade de suas apropriações, bem como a complementaridade de seus resultados para a constituição educacional do sujeito, reúnem aquilo pelo qual Nietzsche não apenas retoma os antigos, mas aquilo em que ele se diferencia deles e de seu próprio presente. Há de se destacar, ainda, entre essas duas dimensões, a importância da solidão para a educação. Solidão que, para Nietzsche, talvez seja premissa dessas práticas de conduta e de ciência. Solidão, “selvagem mãe das paixões” (2006b: Prólogo, 3), mas também momento propício para conhecimento e perdição de si, para o enfrentamento e, quiçá, o desinteresse para consigo; condição que nos ameaça, mas que sempre nos lança em outra direção. Por tudo isso, suportar a solidão seria a postura, à medida que seria o próprio exercício e a afirmação, da errância do auto-educado.

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II. 5. Passagens sobre educação nas obras selecionadas de Friedrich Nietzsche A seguir, destacaremos algumas passagens sobre o tema da educação na obra de Nietzsche – compreendidas entre os anos 1878 à 1886, nas suas principais obras lançadas nesse período: Humano, demasiado humano, volume I (1878) e o volume II (Opiniões e sentenças diversas, 1879 e O andarilho e sua sombra, 1880), Aurora (1881), A gaia ciência (1882) e Além do bem e do mal (1886). Nossa seleção foi esquematizada da seguinte forma: 1.Educação e práticas ascéticas – onde aparecem os aforismos sobre autodomínio, disciplina e práticas de governo, incluindo passagens sobre os hábitos e costumes (item 1a); 2.Educação e história – os principais aforismos sobre sentido histórico e a relação filosofia-medicina, incluindo passagens sobre a filosofia histórica de cunho genealógico como uma farmacologia (item 2a); 3.Educação e relação mestre-discípulo – alguns aforismos sobre o papel do professor, do educador e suas diferentes concepções de mestria; 4.Educação e autoeducação – aforismos que tratam especificamente do pensador como o auto-educado; 5.Educação, errância, solidão – onde personagens como o andarilho e o eremita encarnam a ética do pensador e da autoeducação. A essa seleção, poderíamos perguntar: quais são as práticas, os hábitos, como se deve cultivar a si próprio? Como se deve estudar e olhar para a história e os conhecimentos que fundam modos de vida humanos? De que modo devemos encarar nossa formação, como nos encaminhamos em direção ao nosso destino? Tal seleção dos aforismos, seguindo o critério de uma leitura aleatória aliada ao recolhimento dos termos “educação”, “educador”, “auto-educado”, “pensador” no índice remissivo contido na edição das obras em português, pretende servir de base para uma leitura não separada da abrangência dos temas que Nietzsche alcança com esses termos, mas permitindo dar maior importância a certas correlações que passam as vezes desapercebidas na miríade de seus escritos fragmentários. A ordem dos aforismos seguirá uma sequência intuitiva, tentando nutrir um encadeamento entre suas principais ideias, arriscando expor, por esse encadeamento, algumas evidências desse processo de constituição, de formação, de maturação do sujeito, mas evitando estabelecer qualquer forma única ou definitiva desse processo. Nossa intenção será a de criar, sobretudo, uma leitura fluída desses aforismos por meio de uma contiguidade artificial mediada pela semelhança dos temas abarcados.

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Está claro que os temas que Nietzsche aborda em seus aforismos, bem como suas possíveis reverberações problemáticas, extrapolam em muito os temas aqui selecionados neste trabalho. Os títulos que encabeçam estes aforismos, bem como no próximo capítulo, procurarão tão somente trazer indicações de ideias e problemas que nos interessavam no momento. Eles não eliminam, mas tão somente alardeiam as tantas outras conexões que se poderia fazer por esses aforismos, ainda no tocante aos temas da educação, da história ou da escrita ou outros. Utilizamos as traduções de Paulo César de Souza para esta seleção de aforismos, excetuando duas referências em espanhol, de German Cano (NIETZSCHE, 2010) e Andrés Sánchez Pascual (NIETZSCHE, 2009). Os aforismos serão antecedidos pelas suas respectivas numerações junto às abreviações empregadas para referência às obras, que são as seguintes:

[MA] Menschliches, Allzumenschliches (Humano, demasiado humano I) [VM] Vermischte Meinungen und Sprüche (Opiniões e sentenças diversas) [WS] Der Wanderer und sein Schatten (O andarilho e sua sombra) [M] Morgenröthe (Aurora) [FW] Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência) [FWS] «Scherz, List und Rache» (“Brincadeira, astúcia e vingança”, contido no FW) [JGB] Jenseits von Gut und Böse (Além do bem e do mal) [Za] Also sprach Zarathustra (Assim falou Zaratustra)

Após cada aforismo, a medida do possível, tentou-se estabelecer a relação com outros aforismos que o respondem, que o complementam ou que o contradizem. Apesar da desordenação, facilita-se uma leitura circular de uma ordem singular entre os aforismos.

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1. Educação e práticas ascéticas: autodomínio, disciplina, governo M 181. Governar. – Uns governam por prazer em governar; outros, para

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não serem governados: – para estes, é apenas o menor de dois males. WS 305. A ginástica mais necessária. – Devido à ausência de autocontrole nas pequenas coisas, esfarela-se a capacidade para o grande autocontrole. Cada dia em que, ao menos uma vez, não nos privamos de algo pequeno, é mal aproveitado e um perigo para o dia seguinte: essa ginástica é indispensável, quando se quer manter a alegria de ser senhor de si. FW 305. Autodomínio. – Esses mestres da moral que acima e antes de tudo recomendam ao ser humano que tenha poder sobre si mesmo, acarretam-lhe assim uma doença peculiar: uma constante irritabilidade para com todas as emoções e inclinações naturais e uma espécie de comichão. Não importa o que venha a empurrar, puxar, atrair, impelir esse homem irritável, partindo de dentro ou de fora –, sempre lhe parece então que o seu autodomínio corre perigo: ele não pode mais confiar-se a nenhum instinto, a nenhum bater de asas, e fica permanentemente em atitude de defesa, armado contra si, de olhar agudo e desconfiado, perene guardião do castelo em que se transformou. Sim, ele pode tornar-se grande desse modo! Mas como ficou insuportável para os outros, difícil para si mesmo, empobrecido e afastado das mais belas casualidades da alma! E também de toda nova instrução! Pois é preciso saber ocasionalmente perder-se, quando queremos aprender algo das coisas que nós próprios não somos. [cf. MA 257, FW 306] M 251. Estoicamente. – Há uma jovialidade peculiar ao estóico, quando se sente limitado pelo cerimonial que ele mesmo estabeleceu para sua conduta; então ele frui a si mesmo como dominador. JGB 158. Ao nosso impulso mais forte, o tirano em nós, submete-se não apenas nossa razão, mas também nossa consciência. MA 395. Ensinando a mandar. – Por meio da educação deve-se ensinar as crianças de famílias modestas a mandar, e as outras crianças a obedecer. VM 191. Pró e contra necessários. – Quem não compreendeu que todo grande homem deve ser não somente apoiado, mas também, para benefício geral, combatido, certamente é ainda uma grande criança – ou também um grande homem. WS 318. Indícios de liberdade e não-liberdade. – Satisfazer suas necessidades tanto quanto possível sozinho, embora imperfeitamente, eis a orientação para a liberdade do espírito e da pessoa. Deixar que muitas necessidades suas sejam satisfeitas, também as supérfluas, e tão perfeitamente quanto for possível – isso educa para a não-liberdade. O sofista Hípias, o qual tudo o que carregava, por dentro e por fora, havia adquirido ou feito ele próprio, corresponde assim à orientação para o máximo de liberdade do espírito e da pessoa. Pouco importa que não seja tudo perfeitamente trabalhado: o orgulho remenda as partes defeituosas. M 397. Educação. – A educação é um prosseguimento da geração e, com freqüência, uma espécie de embelezamento posterior da mesma.

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JGB 188. Toda moral é, em contraposição ao laisser aller [“deixar ir”], um pouco de tirania contra a “natureza”, e também contra a “razão”: mas isso ainda não constitui objeção a ela, caso contrário se teria de proibir sempre, a partir de alguma moral, toda espécie de tirania e desrazão. O essencial e inestimável em toda moral é o fato de ela ser uma demorada coerção: para compreender o estoicismo ou Port-Royal, ou o puritanismo, recorde-se sob que coerção toda língua obteve até hoje vigor e liberdade – a coerção métrica, a tirania da rima e do ritmo. Quanto trabalho se deram os poetas e oradores de cada nação! – sem excetuar alguns prosadores de hoje, um cujo ouvido mora uma consciência implacável – “por uma tolice”, como dizem os broncos utilitários, acreditando-se espertos –, “em submissão a leis arbitrárias”, como dizem os anarquistas, julgando-se “livres”, e até mesmo de espírito-livre. Mas o fato curioso é que tudo o que há e houve de liberdade, finura, dança, arrojo e segurança magistral sobre a Terra, seja no próprio pensar, seja no governar, ou no falar e convencer, tanto nas artes como nos costumes, desenvolveu-se apenas graças à “tirania de tais leis arbitrárias”; e, com toda a seriedade, não é pequena a probabilidade de que justamente isso seja “natureza” e “natural” – e não aquele laisser aller! Todo artista sabe quão longe do sentimento de deixar-se levar se acha o seu estado “mais natural”, o seu livre ordenar, pôr, dispor, criar nos momentos de “inspiração” – e com que rigor e sutileza ele obedece então às mil leis que troçam de toda formulação por conceitos, devido justamente à sua natureza e precisão (comparado a elas, mesmo o conceito mais firme tem algo de frouxo, múltiplo, equívoco –). O essencial, “no céu como na terra”, ao que parece, é, repito, que se obedeça por muito tempo e numa direção: daí surge com o tempo, e sempre surgiu, alguma coisa pela qual vale a pena viver na terra, como virtude, arte, música, dança, razão, espiritualidade – alguma coisa transfiguradora, refinada, louca e divina. A prolongada sujeição do espírito, a desconfiada coerção na comunicação dos pensamentos, a disciplina que se impôs o pensador, a fim de pensar sob uma diretriz eclesiástica ou cortesã ou com pressupostos aristotélicos, a duradoura vontade espiritual de interpretar todo acontecimento segundo um esquema cristão, e redescobrir e justificar o Deus cristão em todo e qualquer acaso – tudo o que há de violento, arbitrário, duro, terrível e anti-racional nisso revelou-se como o meio através do qual o espírito europeu viu disciplinada a sua força, sua inexorável curiosidade e sutil mobilidade: mesmo reconhecendo a quantidade insubstituível de força e espírito que aí teve de ser sufocada, suprimida e estragada (pois nisso, como em tudo, a natureza se mostra como é, em toda a sua magnificência pródiga e indiferente, que nos revolta, mas que é nobre). O fato de que por milênios os pensadores europeus pensaram tão-somente a fim de provar algo – hoje, bem ao contrário, para nós é suspeito todo pensador que quer “provar algo” –, o fato de que sempre estiveram certos do que deveria resultar de suas mais rigorosas reflexões, como outrora ocorria na astrologia asiática, ou ainda hoje na inócua interpretação cristão-moralista que relaciona os eventos pessoais à “glória de Deus” e “salvação da alma” – essa tirania, esse arbítrio, essa extrema e grandiosa estupidez educou o espírito; ao que parece, a escravidão é, no sentido mais grosseiro ou no mais sutil, o meio indispensável também para a disciplina e cultivo [Zucht und Züchtung]

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espiritual. Considere-se toda moral sob esse aspecto: a “natureza” nela é que ensina a odiar o laisser aller, a liberdade excessiva, e que implanta a necessidade de horizontes limitados, de tarefas mais imediatas – que ensina o estreitamento das perspectivas, e em determinado sentido também a estupidez, como condição de vida e crescimento. “Deves obedecer seja a quem for, e por muito tempo: senão perecerás, e perderás a derradeira estima por ti mesmo” – esse me parece ser o imperativo categórico da natureza, o qual certamente não é “categórico”, como dele exige o velho Kant (daí o”senão” –), nem se dirige ao indivíduo (que importa a ela o indivíduo!), mas sim a povos, raças, eras, classes, mas sobretudo ao inteiro bicho “homem”, a o homem. M 48. “Conhece-te a ti mesmo” é toda a ciência. – Apenas no final do conhecimento de todas as coisas o homem terá conhecido a si mesmo. Pois as coisas são apenas as fronteiras do homem. [cf. VM 223] 1.a. Hábitos e costumes: “o corpo é a Grande Razão”26 MA 427. Felicidade no casamento. – Tudo o que é habitual tece à nossa volta uma rede de teias de aranha cada vez mais firme; e logo percebemos que os fios se tornaram cordas e que nós nos achamos no meio, como uma aranha que ali ficou presa e tem de se alimentar do próprio sangue. Eis por que o espírito livre odeia todos os hábitos e regras, tudo o que é duradouro e definitivo, eis por que sempre torna a romper, dolorosamente, a rede em torno de si; embora sofra, em conseqüência disso, feridas inúmeras, pequenas e grandes - pois esses fios ele tem que arrancar de si mesmo, de seu corpo, de sua alma. Ele tem que aprender a amar, ali onde até então odiava, e inversamente. Nada deve ser impossível para ele, nem mesmo semear dentes de dragão no campo em que fizera transbordar as cornucópias de sua bondade (...). FW 295. Hábitos breves. – Eu amo os hábitos breves e os considero o meio inestimável de vir a conhecer muitas coisas e estados, até ao fundo do que têm de doce e de amargo; minha natureza é inteiramente predisposta para hábitos breves, mesmo quanto às necessidades de sua saúde física e de modo geral, até onde posso ver: do mais baixo ao mais elevado. Acredito sempre que tal coisa me satisfará permanentemente – também o hábito breve tem essa crença da paixão, a crença na eternidade –, e é de invejar que eu tenha achado e reconhecido: – então ela me nutre pela manhã e à tarde e espalha um profundo contentamento [Genügsamkeit], ao seu redor e dentro 26

Cf. NIETZSCHE, 2009, Primeira Parte, “De los despreciadores del cuerpo”. E é assim que Foucault escreve sobre a questão de uma medicina do corpo por meio da história através do devir – “O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto a linguagem os marcam e as ideias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (ao qual ele tenta atribuir a ilusão de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização. A genealogia, como análise da proveniência, está, portanto, na articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado pela história, e a história arruinando o corpo” (FOUCAULT, 2008a, p. 265.)

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de mim, de forma que eu nada mais desejo, sem que tenha de comparar, desprezar ou odiar. – E um dia o seu tempo acabou: a coisa boa separa-se de mim, não como algo que me repugna – mas pacificamente e de mim saciada tal como eu dela, e como se nos devêssemos gratidão mútua, estendendonos a mão em despedida. E algo novo já espera na porta, e igualmente a minha crença – a indestrutível tola e sábia! – de que esse algo novo será o certo, o certo e o derradeiro. Assim é com alimentos, pessoas, idéias, cidades, poemas, peças musicais, doutrinas, programa do dia, modo de vida. – Por outro lado, ódio os hábitos duradouros, penso que um tirano se me avizinha e que meu ar fica espesso, quando os eventos se configuram de maneira tal que hábitos duradouros parecem necessariamente resultar deles: por exemplo, devido a um emprego, ao trato constante com as mesmas pessoas, a uma morada fixa, uma saúde única. Sim, no mais fundo de minha alma sinto-me grato a toda a minha doença e desgraça e a tudo imperfeito em mim, pois tais coisas me deixam muitas portas para escapar aos hábitos duradouros. – O mais insuportável, sem dúvida, o verdadeiramente terrível, seria uma vida sem hábito algum, uma vida que solicitasse continuamente a improvisação: – isto seria meu degredo e minha Sibéria. [cf. MA 427] M 573. Mudar de pele. – A serpente que não pode mudar de pele perece. Assim também os espíritos aos quais se impede que mudem de opinião; eles deixam de ser espíritos. JGB 264. Não se pode extinguir da alma de um homem o que seus ancestrais fizeram com o maior prazer e a maior constância: se eram, por exemplo, assíduos poupadores e criaturas de escrivaninha e caixa-forte, modestos e burgueses nos desejos, modestos também nas virtudes; ou se viveram habituados a dar ordens da manhã à noite, afeiçoados a divertimentos rudes e a responsabilidades e deveres mais rudes ainda; ou se, enfim, algumas vez sacrificaram velhos privilégios de nascimento e de posse, para dedicar-se integralmente à sua fé – a seus “Deus” –, como seres de consciência delicada e inexorável, que se ruborizam perante qualquer compromisso. Não é possível que um homem não tenha no corpo as características e predileções de seus pais e ancestrais: mesmo que as evidências afirmem o contrário. Este é o problema da raça [Rasse]. Supondo que se conheça algo dos pais, é permitida uma conclusão a respeito do filho: alguma intemperança repulsiva, alguma inveja mesquinha, uma maneira rude de sempre dar-se razão – as três coisas juntas constituíram sempre o autêntico tipo plebeu –, têm de passar para o filho, tão seguramente como sangue corrompido; e com ajuda da melhor educação e cultura não se consegue mais que enganar a respeito dessa herança. – E outra coisa não desejam hoje a educação e a cultura! Em nossa época tão popular, ou melhor, plebéia, “educação” e “cultura” têm de ser, essencialmente, arte de enganar – enganar quanto à origem, quanto à plebe herdada no corpo e na alma. Um educador que hoje em dia pregasse a veracidade acima de tudo, gritando continuamente a seus discípulos: “Sejam verazes! Sejam Naturais! Mostrem-se como são!” – mesmo um tal ingênuo e virtuoso asno aprenderia, após algum tempo, a tomar daquela furca [forcado] de Horácio, para naturam expellere [expulsar a natureza]: com que resultado? “Plebe” usque recurret [volta sempre]. [cf. MA 228]

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2. Educação e história: sentido histórico, relação filosofia-medicina27 VM 17. Felicidade do historiador. – “Quando ouvimos os engenhosos metafísicos e transmundanos falarem, sentimos, é verdade, que somos os ‘pobres de espírito’, mas também que nosso é o reino celeste da mudança, com outono e primavera, inverno e verão, e deles é o mundo de trás, com suas cinzentas, gélidas, infinitas névoas e sombras.” – Assim falou consigo um homem, num passeio ao sol da manhã: um homem no qual não só o espírito se transformou ao estudar a história, mas também o coração, e que, ao contrário dos metafísicos, está feliz em não abrigar em si “uma alma imortal”, mas muitas almas mortais. MA 274. Um segmento de nosso Eu como objeto artístico. – É um indício de cultura superior reter conscientemente certas fases do desenvolvimento, que os homens menores vivenciam quase sem pensar e depois apagam da lousa de sua alma, e fazer delas um desenho fiel: este é o gênero mais elevado da arte pictórica, que poucos entendem. Para isto é necessário isolar essas fases artificialmente. Os estudos históricos cultivam a qualificação para essa pintura, pois sempre nos desafiam, ante um trecho da história, a vida de um povo – ou de um homem –, a imaginar um horizonte bem definido de pensamentos, uma força definida de sentimentos, o predomínio de uns, a retirada de outros. O senso histórico [historische Sinn] consiste em poder reconstruir rapidamente, nas ocasiões que se oferecem, tais sistemas de pensamento e sentimento, assim como obtemos a visão de um templo a partir de colunas e restos de paredes que ficaram de pé. Seu primeiro resultado é compreendermos nossos semelhantes como tais sistemas e representantes bem definidos de culturas diversas, isto é, como necessários, mas alteráveis. E, inversamente, que podemos destacar trechos de nosso próprio desenvolvimento e estabelecê-los como autônomos. FW 337. A futura “humanidade”. – Se contemplo a era presente com os olhos de uma era longínqua, não vejo no homem atual coisa mais digna de nota do que sua característica virtude [Tugend] e doença [Krankheit], denominada “sentido histórico” [historische Sinn]. É o começo de algo inteiramente novo e estranho na história: dando-se a este gérmen alguns séculos e até mais, dele poderia surgir uma planta maravilhosa, com um odor igualmente maravilhoso, que tornasse a nossa velha Terra uma habitação mais agradável do que foi até o momento. Nós, os homens de agora, começamos justamente a formar, elo e elo, a cadeira de um futuro sentimento bastante poderoso – nós mal sabemos o que estamos a fazer. Quase temos a impressão de que não se trata de um novo sentimento, mas do decréscimo de todos os antigos sentimentos: – o sentido histórico é ainda algo muito pobre e frio, e muitos são dele acometidos como de uma geada, tornando-se ainda mais pobres e frios. A outros ele parece um indício da 27

Aqui apenas tentou-se recuperar e ilustrar com algumas passagens as reflexões que Michel Foucault apresenta em seu famoso e importante texto Nietzsche, a genealogia, a história (2008a).

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idade que se avizinha sorrateira, e nosso planeta é por eles visto como um doente melancólico, que escreve a história de sua juventude para esquecer o presente. De fato, esta é uma das cores desse novo sentimento: quem é capaz de sentir o conjunto da história humana como sua própria história sente, numa colossal generalização, toda a mágoa [Gram] do doente que pensa na saúde, do ancião que lembra o sonho da juventude, do amante a quem roubaram a amada, do mártir cujo ideal foi destruído, do herói após a batalha que nada decidiu e lhe causou ferimentos e a morte do amigo –; mas carregar, poder carregar essa enorme soma de mágoas de toda espécie e ainda ser o herói que, no romper do segundo dia de batalha, saúda a aurora e a sua fortuna, como o ser que tem um horizonte de milênios à sua frente e atrás de si, como o herdeiro de toda a nobreza do espírito passado, herdeiro com obrigações, o mais aristocrático de todos os velhos nobres e também o primogênito de uma nova aristocracia, cujos pares ainda nenhuma época viu ou sonhou: tudo isso acolher em sua alma, as coisas mais antigas e mais novas, perdas, esperanças, conquistas, vitórias da humanidade: tudo isso, afinal, ter numa só alma e reunir num só sentimento: – isso teria de resultar numa felicidade que até agora o ser humano não conheceu – a felicidade de um deus pleno de poder e amor, cheio de lágrimas e risos, uma felicidade que, tal como o sol no princípio da noite, continuamente se desfaz de sua inesgotável riqueza e a derrama no mar, e que, tal como ele, só vem a se sentir verdadeiramente rica quando até o mais pobre pescador pode remar com remos de ouro! Esse divino sentimento se chamaria então – humanidade [Menschlichkeit]. JGB 224. O sentido histórico [historische Sinn] (ou a capacidade de perceber rapidamente a hierarquia de valorações segundo as quais um povo, uma sociedade, um homem viveu, o “instinto divinatório” para as relações entre essas valorações, para o relacionamento da autoridade dos valores com a autoridade das forças atuantes): esse sentido histórico, que nós, europeus, reivindicamos como nossa particularidade, nos foi trazido na esteira louca e fascinante semibarbárie [Halbbarbarei] em que a mistura de classes e raças [Stände und Rassen] mergulhou a Europa – apenas o século XIX conhece esse sentido, enquanto seu sexto sentido. O passado de toda forma e todo modo de vida, de culturas que então coexistiam e se superpunham, graças a essa mistura precipita-se em nós, “almas modernas”, em toda parte nossos instintos correm para trás, nós mesmos somos uma espécie de caos [Art Chaos] –: afinal, como foi dito, “o espírito” [der Geist] divisa a sua vantagem nisso. Mediante nossa semibarbárie de corpo e desejo temos trânsito secreto por toda parte, sobretudo acessos ao labirinto das culturas incompletas e a toda semibarbárie que jamais existiu na Terra, e na medida em que a parte mais considerável da cultura humana foi sempre semibarbárie, “sentido histórico” significa quase que sentido e instinto para tudo, gosto e língua para tudo: no que logo se revela o seu caráter nãonobre. Apreciamos novamente Homero, por exemplo: é talvez nosso avanço mais feliz o fato de sabermos desfrutar Homero, do qual os homens de uma cultura nobre (os franceses do século XVII, tal como Saint-Evremond, digamos, que lhe censurou o esprit vaste [espírito vasto], e mesmo o último eco dessa cultura, Voltaire) não souberam nem sabem se apropriar – e que não se permitiram apreciar. O tão definido Sim e Não do seu palato

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[Gaumens], seu pronto desgosto, sua hesitante reserva face a tudo que lhes for estranho, seu horror à falta de gosto que há na curiosidade viva, e sobretudo aquela má vontade que toda cultura nobre e autossuficiente demonstra em admitir uma nova cobiça, uma insatisfação com o que é seu e uma admiração do que é outro: tudo isso os predispõe negativamente até em face das melhores coisas do mundo, que não são sua propriedade e não poderiam se tornar sua presa – e nenhum sentido é mais incompreensível para esses homens do que justamente o sentido histórico, com sua servil curiosidade plebéia. Não é diferente com Shakesperae, essa estupenda síntese hispano-mouro-saxã do gosto [Geschmacks], que faria um antigo ateniense das relações de Ésquilo morrer de riso e de raiva: mas nós – nós aceitamos, com secreta familiaridade e afeto, essa selvagem policromia, essa miscelânea do que é mais delicado, mais grosseiro e artificial, nós o fruímos como um refinamento da arte reservado justamente para nós, e nos sentimos tão pouco incomodados pelos repugnantes miasmas e a promiscuidade da ralé inglesa, em que vivem a arte e o gosto de Shakespeare, quanto estaríamos ao andar na Chiaia de Nápoles, por exemplo: onde seguimos nosso caminho encantados e dispostos, com todos os sentidos alertas, embora as cloacas populares tomem conta do ar. Nós, homens do “sentido histórico”: como tais temos nossas virtudes, não se pode negar – somos despretensiosos, desinteressados, modestos, bravos, plenos de auto-superação, de dedicação, muito gratos, muito pacientes e acolhedores – e com tudo isso não somos talvez “de muito bom gosto”. Vamos admitir finalmente: o que para nós, homens do “sentido histórico”, é mais difícil captar, sentir, saborear, amar, o que no fundo nos encontra prevenidos e quase hostis, é justamente o perfeito e definitivamente maduro em toda cultura e arte, o genuinamente nobres nos homens e obras, o seu momento de mar liso e de alciônica satisfação consigo, o quê de áureo e frio que têm as coisas que se completaram. Talvez nossa grande virtude do sentido histórico esteja necessariamente em oposição ao bom gosto, pelo menos ao melhor gosto, e apenas de modo precário, hesitante, constrangido, sejamos capazes de reproduzir em nós as pequenas, breves, excelsas felicidades e transfigurações da vida humana, tal como aqui e ali resplandecem: aqueles momentos e prodígios em que uma grande força deteve-se voluntariamente ante o ilimitado [Unbegrenzten] e desmedido [Masslosen] –, em que desfrutamos uma abundância de sutil prazer na repentina contenção e petrificação, no permanecer e firmar-se num chão que ainda treme. A medida [Mass] nos é estranha, confessemos a nós mesmos; a comichão que sentimos é a do infinito [Unendlichen], imensurado [Ungemessenen]. Como um ginete sobre o corcel em disparada, deixamos cair as rédeas ante o infinito, nós, homens modernos, semibárbaros; e temos a nossa bem-aventurança ali onde mais estamos – em perigo [Gefahr]. VM 223. Para onde é preciso viajar. – A direta observação de si próprio não basta para se conhecer: necessitamos da história [Geschichte], pois o passado continua a fluir em mil ondas dentro de nós; e nós mesmos não somos senão o que a cada instante percebemos desse fluir. Também aí, quando queremos descer ao rio do que aparentemente é mais nosso e mais pessoal, vale a afirmação de Heráclito: não se entra duas vezes no mesmo rio. – Esta é uma sabedoria já bastante repisada, sem dúvida, mas que

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permanece robusta e substancial como sempre: assim como a de que, para entender a história, deve-se procurar os resíduos vivos das épocas históricas – de que se deve, como fez o patriarca Heródoto, viajar pelas nações – que são apenas estágios culturais mais antigos que se fixaram, em que podemos nos situar –, sobretudo entre os povos denominados selvagens ou semiselvagens, ali onde o ser humano despiu ou ainda não vestiu a roupagem da Europa. Mas existem igualmente uma arte e uma intenção de viagem mais sutis, que nem sempre requerem transportar-se de um lugar a outro por milhares de milhas. Muito provavelmente, os últimos três séculos continuam vivendo também em nossa vizinhança, com todas as suas colorações e refrações culturais: eles pedem apenas que sejam descobertos. Em não poucas famílias, e mesmo indivíduos, as camadas ainda se acham claramente superpostas: em outros casos pode haver falhas na rocha, mais difíceis de compreender. Certamente que em regiões afastadas, em vales montanhosos pouco visitados, em comunidades mais fechadas, uma amostra venerável de sensibilidade mais antiga pôde se conservar mais facilmente e deve ser rastreada: enquanto é muito pouco provável que se façam tais descobertas em Berlim, por exemplo, onde o ser humano chega ao mundo lixiviado e escaldado. Quem, após um longo treino nessa arte da viagem, torna-se um Argos de cem olhos, acompanhará sua Io – seu ego, quero dizer – por toda parte, afinal, e em Egito e Grécia, Bizâncio e Roma, França e Alemanha, no tempo dos povos nômades ou dos sedentários, no Renascimento e na Reforma, na pátria ou no estrangeiro, em oceano, floresta, vegetação e montanha, novamente descobrirá as aventuras desse ego transformado e em devir. – Assim o autoconhecimento [SelbstErkenntnis] se torna oniconhecimento [All-Erkenntnis] no tocante a tudo que passou: tal como, numa outra cadeia de raciocínio, aqui apenas aludida, a autodeterminação [Selbst-Bestimmung] e autoeducação [Selbst-Erziehung] dos espíritos mais livres e longividentes poderia tornar-se onideterminação [All-Bestimmung], no tocante a toda a humanidade futura. [cf. M 48] M 49. O novo sentimento fundamental: nossa definitiva transitoriedade. – Antigamente buscava-se chegar ao sentimento da grandeza do homem apontando para a sua procedência divina: isso agora é um caminho interditado, pois à sua porta se acha o macaco, juntamente com outros animais terríveis, e arreganha sabidamente os dentes, como que a dizer: “Não prossigam nesta direção!”. Então se experimenta agora a direção oposta: o caminho para onde vai a humanidade deve servir para provar sua grandeza e afinidade com Deus. Oh, tampouco isso resulta em algo! No final desse caminho se encontra a urna funerária do último homem e coveiro (com a inscrição: “nihil humani a me alienum puto” [nada de humano me é estranho]). Não importa o quanto a humanidade possa ter evoluído – e talvez ela esteja, no fim, ainda mais baixa do que no começo! – para ela não há transição para uma ordem mais alta, assim como a formiga e a lacrainha não podem, no final de sua “trajetória terrestre”, alcançar o parentesco divino e a eternidade. O tornar-se [Werden] arrasta atrás de si o haver sido [Gewesensein]: por que haveria uma exceção a esse eterno espetáculo, uma exceção para um pequeno astro e uma pequena espécie que o habita? Fora com tais sentimentalismos!

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M 52. Onde estão os novos médicos da alma? – Foi através dos meios de consolo que a vida recebeu o fundamental caráter sofredor em que hoje se crê; a maior doença dos homens surgiu do combate a suas doenças, e os aparentes remédios produziram, a longo prazo, algo pior do que aquilo que deveriam eliminar. Por desconhecimento, os recursos momentaneamente eficazes, anestesiantes e inebriantes, chamados de “consolações”, foram tidos como os verdadeiros remédios, e nem mesmo se notou que o preço pago por esses alívios imediatos era frequentemente uma piora geral e profunda do mal-estar, que os doentes iriam sofrer as conseqüências da embriaguez e, depois, a privação da embriaguez, e, depois ainda, uma oprimente sensação geral de inquietude, agitação nervosa e indisposição. Atingido um certo grau de doença, não havia mais recuperação – disso cuidavam os médicos da alma, por todos reconhecidos e adorados. – Diz-se de Schopenhauer, com razão, que ele enfim levou novamente a sério os sofrimentos da humanidade: onde está aquele que enfim também levará a sério os antídotos para tais sofrimentos e porá no pelourinho o inacreditável charlatanismo com que, sob os mais belos nomes, a humanidade habituou-se a tratar suas doenças da alma? 2.a. Genealogia e farmacopoética histórica: “teoria dos venenos”, “ciência dos remédios” MA 1. Química dos conceitos e sentimentos. – Em quase todos os pontos, os problemas filosóficos são novamente formulados tal como dois mil anos atrás: como pode algo se originar do seu oposto, por exemplo, o racional do irracional, o sensível do morto, o lógico do ilógico, a contemplação desinteressada do desejo cobiçoso, a vida para o próximo do egoísmo, a verdade dos erros? Até o momento, a filosofia metafísica [metaphysische Philosophie] superou essa dificuldade negando a gênese de um a partir do outro, e supondo para as coisas de mais alto valor uma origem miraculosa, diretamente do âmago e da essência da “coisa em si”. Já a filosofia histórica [historische Philosophie], que não se pode mais conceber como distinta da ciência natural, o mais novo dos métodos filosóficos, constatou, em certos casos (e provavelmente chegará ao mesmo resultado em todos eles), que não há opostos, salvo no exagero habitual da concepção popular ou metafísica, e que na base dessa contraposição está um erro da razão: conforme sua explicação, a rigor não existe ação altruísta nem contemplação totalmente desinteressada; ambas são apenas sublimações, em que o elemento básico parece ter se volatilizado e somente se revela à observação mais aguda. – Tudo o que necessitamos, e que somente agora nos pode ser dado, graças, ao nível atual de cada ciência, é uma química das representações e sentimentos morais, religiosos e estéticos, assim como de todas as emoções que experimentamos nas grandes e pequenas relações da cultura e da sociedade, e mesmo na solidão: e se essa química levasse à conclusão de que também nesse domínio as cores mais magníficas são obtidas de matérias vis e mesmo desprezadas? Haveria muita gente disposta a prosseguir com essas pesquisas? A humanidade gosta de afastar da mente as questões acerca da origem e dos primórdios: não é preciso estar quase desumanizado, para sentir dentro de si a tendência contrária?

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WS 188. O transplante espiritual e físico como remédio. – As diferentes culturas são diferentes climas espirituais, cada um dos quais é particularmente danoso ou salutar para esse ou aquele organismo. A história em seu conjunto, enquanto saber sobre as diferentes culturas, é a farmacologia, mas não a ciência médica mesma. É necessário antes o médico, que se utilize dessa farmacologia para enviar cada qual ao clima que lhe for proveitoso – temporariamente ou para sempre. Viver no presente, no interior de uma única cultura, não basta como prescrição geral, aí pereceriam muitas espécies de homens extremamente úteis, que nela não podem respirar de modo saudável. Com a história devemos lhes fornecer ar e procurar mantê-las; também os homens das culturas que ficaram para trás têm seu valor. – Ao lado desse tratamento dos espíritos, a humanidade deve procurar, no tocante ao corpo, mediante uma geografia médica, descobrir quais degenerações e enfermidades cada região da Terra ocasiona e, inversamente, quais fatores curativos oferece; então, gradualmente, povos, famílias e indivíduos devem ser transplantados, de forma demorada e contínua, até que sejam dominadas as doenças físicas hereditárias. A Terra inteira será, enfim, um conjunto de estações de saúde. FW 113. A teoria dos venenos. – Tantas coisas têm de se reunir, para que surja um pensamento científico; e cada uma destas forças necessárias tem de ser isoladamente inventada, treinada, cultivada! Mas no isolamento elas produziam efeito bem diverso do que passam a ter no interior do pensamento científico, no qual se restringem e disciplinam mutuamente: – elas atuavam como venenos, por exemplo, o impulso de duvidar, o impulso de negar, o de aguardar, o de juntar, de dissolver. Muitas hecatombes humanas ocorreram, até esses impulsos chegarem a apreender sua coexistência e a sentir que eram todos funções de uma força organizadora dentro de um ser humano! E como ainda está longe o tempo em que as forças artísticas e a sabedoria prática da vida se juntarão ao pensamento científico, em que se formará um sistema orgânico mais elevado, em relação ao qual o erudito, o médico, o artista e o legislador, tal como agora os conhecemos, pareceriam pobres antiguidades! [cf. VM 224, FW 300, 326, 382] M 571. Enfermaria de campo da alma. – Qual o remédio mais eficaz? – A vitória. [cf. VM 152, 166]

3. Educação e relação mestre-discípulo: professor, educador, mestria VM 181. Educação distorção. – A extraordinária incerteza de todo o sistema de ensino, em virtude da qual todo adulto tem agora a sensação de que seu único educador [Erzieher] foi o acaso, o caráter volúvel dos métodos e intenções pedagógicas se explica pelo fato de que agora as mais antigas e as mais novas forças culturais são, como numa confusa assembléia popular, mais ouvidas do que entendidas, e a todo custo querem demonstrar,

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com sua voz, seu berreiro, que ainda existem ou que já existem. Nessa absurda algazarra os pobres mestres e educadores ficaram primeiramente atordoados, depois calados e enfim embotados, tudo suportando e agora deixando que seus alunos tudo suportem. Eles mesmos não são educados: como poderiam educar? Eles mesmos não são troncos que cresceram retos, vigorosos e plenos de seiva: quem a eles se ligar, terá de se torcer e se curvar, e afinal se mostrar contorcido e deformado. JGB 63. Quem é professor [Lehrer] nato considera cada coisa apenas em relação aos seus alunos – inclusive a si mesmo. WS 70. O mais inepto educador. – Nesse, todas as suas reais virtudes se acham plantadas no solo do seu espírito de contradição; naquele, em sua incapacidade de dizer “não”, em seu espírito de concordância; um terceiro desenvolveu toda a sua moralidade a partir de seu orgulho solitário, um quarto, de seu forte instinto de sociabilidade. Supondo agora que nesses quatro, devido a educadores ineptos e ao acaso, as sementes das virtudes não tivessem sido espalhadas no solo de sua natureza com a terra mais rica e fecunda: então eles seriam criaturas sem moralidade, débeis e desagradáveis. E quem teria sido justamente o mais inepto dos educadores e o mau destino desses quatro indivíduos? O fanático moral, que acredita que o bem só pode nascer do bem e crescer no bem. WS 282. O professor, um mal necessário. – O menor número possível de pessoas entre os espíritos produtivos e os espíritos famintos e receptivos! Pois os mediadores falseiam quase automaticamente a nutrição que transmitem: e querem, como pagamento por sua intermediação, muita coisa para si, que então é tirada dos espíritos originais, produtivos: a saber, interesse, admiração, tempo, dinheiro, etc. – Portanto: veja-se o professor como um mal necessário, exatamente igual ao comerciante: como um mal que devemos tornar menor possível! – Se a miséria das condições alemãs atuais talvez tenha sua principal razão no fato de muitos quererem viver – e viver bem – do comércio (ou seja, de procurarem diminuir ao máximo os preços do produtos e subir ao máximo os preços para o consumidor, beneficiando-se da máxima desvantagem de ambos): então podemos ver no grande número de professores uma das principais razões da miséria intelectual: por causa disso aprende-se tão pouco e tão mal. [cf. VM 181, 223, WS 180, 267] M 447. Mestres [Meister] e alunos. – Faz parte da humanidade de um mestre advertir seus alunos contra ele mesmo. M 495. Nossos mestres [Lehrer]. – Quando jovens, tomamos nossos mestres e orientadores do tempo em que vivemos e dos círculos que deparamos: temos a irrefletida confiança de que o presente terá mestres que valem mais para nós do que para qualquer outro, e de que os acharemos sem muito procurar. Por essa infantilidade temos de pagar caro depois: temos de expiar nossos mestres em nós. Então iremos buscar os orientadores certos pelo mundo inteiro, inclusive o mundo do passado – mas talvez seja tarde demais. E, no pior dos casos, descobrimos que eles viveram na época de

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nossa juventude – e que então nos equivocamos. VM 125. O círculo deve ser concluído. – Quem acompanhou uma filosofia ou uma arte até o final de sua rota e fez a volta no final, compreende por vivência íntima por que os mestres e professores que vieram depois se afastaram dela, muitas vezes com expressão desdenhosa, em direção a uma nova rota. O círculo tem de ser circunscrito – mas o indivíduo, seja ele o maior de todos, fica solidamente no seu ponto da periferia, com implacável expressão de tenacidade, como se o círculo não pudesse jamais ser fechado. M 537. Mestria – A mestria é alcançada quando, na realização, não se erra nem se hesita. WS 267. Não há educadores [Erzieher]. – Como pensador [Denker], só se deveria falar de educação por si próprio [Selbst-Erziehung]. A educação da juventude por outros é ou um experimento realizado em alguém desconhecido, incognoscível, ou uma nivelação por princípio, para adequar o novo ser, seja qual for, aos hábitos e costumes vigentes: nos dois casos, portanto, algo indigno do pensador, obra de pais e professores, que um desses audazes honestos chamou de nos ennemis naturels [nossos inimigos naturais]. – Um dia, quando há muito tempo estamos educados, segundo a opinião do mundo, descobrimos a nós mesmos [entdeckt man sich selber]: começa então a tarefa do pensador, é tempo de solicitar-lhe ajuda – não como um educador, mas como um auto-educado [Selbst-Erzogenen] que tem experiência [Erfahrung]. [cf. VM 181, 223, WS 180, 282]

4. Educação e auto-educação: pensador, auto-educado FW 189. O pensador [Denker]. – Ele é um pensador: isto é, ele sabe como ver as coisas de modo mais simples do que são. M 446. Hierarquia. – Existem, em primeiro lugar, pensadores superficiais, em segundo, pensadores profundos – aqueles que vão ao fundo de algo –, em terceiro, pensadores radicais, que vão à raiz de algo – o que tem muito mais valor do que ir apenas ao seu fundo! –, e, por fim, aqueles que enfiam a cabeça no pântano: o que não deveria ser sinal de profundidade nem de radicalidade! Estes são os nossos caros do subsolo! JGB 290. Todo pensador profundo tem mais receio de ser compreendido de que ser mal compreendido. Neste caso talvez sofra sua vaidade; mas naquele sofrerá seu coração, sua simpatia, que sempre diz: “Oh, por que desejam passar também por essas coisas?” M 504. Os práticos. – Somos nós, pensadores, que temos de primeiramente constatar e, se necessário, decretar o gosto agradável de todas as coisas. As pessoas práticas terminam por adotá-lo de nós, a sua dependência em relação a nós é inacreditavelmente grande, o mais ridículo espetáculo do

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mundo, por mais que o desconheçam e orgulhosamente nos ignorem, a nós, os não-práticos: eles até menosprezariam sua vida prática, se quiséssemos menosprezá-la: – algo a que poderia nos incitar, de vez em quando, um pequeno desejo de vingança. WS 241. Como o pensador utiliza uma conversa. – Ainda sem ser um espreitador, pode-se ouvir muita coisa, quando se sabe ver bem, mas perdendo-se de vista por instantes. As pessoas não sabem utilizar uma conversa, no entanto; aplicam demasiada atenção ao que querem dizer e responder, enquanto o verdadeiro ouvinte se contenta, muitas vezes, em responder de modo provisório e dizer alguma coisa como paga de cortesia, enquanto, com sua fina memória, guarda tudo o que o outro falou, juntamente com o tom e os gestos de como ele falou. – Na conversa habitual, cada um acredita ser aquele que a conduz, como dois navios que andam um ao lado do outro e aqui e ali se tocam, ambos na crença de que o outro navio o segue ou até mesmo é rebocado. M 530. Digressões do pensador. – Em alguns, a marcha do conjunto de seu pensamento é rigorosa e inexoravelmente ousada, às vezes cruel consigo mesma, mas no detalhe são brandos e flexíveis; giram dez vezes em torno de algo, com benévola hesitação, mas acabam por seguir seu rigoroso caminho. São rios de muitos meandros e afastados eremitérios; há locais, em seu curso, em que a corrente brinca de esconder consigo mesma e faz para si um breve idílio, com ilhas, árvores, grutas e cascatas: e depois prossegue, passando por rochedos e forçando caminho pela mais dura pedra. WS 342. Estorvos do pensador. – O pensador deve olhar calmamente para tudo que o interrompe (estorva, como se diz) em seus pensamentos, como um novo modelo que se oferece ao artista para posar. As interrupções são os corvos que trazem alimento ao solitário. FW 228. Contra os mediadores. – Quem quer mediar entre dois pensadores decididos mostra que é medíocre: não tem olho para o que é único; enxergar semelhanças e fabricar igualdades é característica de olhos fracos. WS 246. O silêncio do asco. – Alguém sofre, como pensador e ser humano, uma profunda e dolorosa transformação, e dá testemunho público disso. Mas os ouvintes nada percebem! Ainda acham que é exatamente o mesmo! – Essa experiência habitual já produziu asco em não poucos escritores: eles haviam estimado exageradamente a intelectualidade humana e, ao se dar conta do erro, juraram a si mesmos guardar silêncio.

5. Educação, errância, solidão: o andarilho e o eremita28 JGB 278. – Andarilho, quem é você? Vejo-o que anda por sua estrada, sem desdém, sem amor, com olhar inescrutável; úmido e triste, como uma sonda 28

Cf. NIETZSCHE, 2009, “El caminante”.

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que da profundeza volta insaciada para a luz – que a buscava lá embaixo? –, com um peito que não suspira, com um lábio que esconde seu nojo, com uma mão que apreende apenas devagar: quem é você? que fez você? Descanse aqui: este lugar é hospitaleiro para com todos – recupere-se! E quem quer que seja: que coisa lhe apetece agora? o que pode lhe servir de conforto? Apenas diga; o que eu tiver, lhe ofereço! – “Conforto? Conforto? Ó curioso, o que diz você! Mas, por favor, me dê – – O quê? O quê? Fale! – “Mais uma máscara! Uma segunda máscara!” FW 282. O andar. – Há maneiras do espírito que levam mesmo grandes espíritos a trair sua origem plebéia ou semiplebéia: – é o andar e o passo dos seus pensamentos que os trai; eles não sabem andar. Assim, também Napoleão não soube, para profundo desgosto seu, andar de modo principesco e “legítimo” em ocasiões que verdadeiramente o requeriam, tais como grandiosas procissões de coroação: mesmo então ele era apenas o líder de uma coluna – orgulhoso e apressado a um só tempo, e muito cônscio disso. – Temos do que rir, ao ver esses autores que fazem rumorejar ao seu redor as vestes pregueadas das frases: assim eles pretendem ocultar os pés. FW 364. Fala o eremita. – A arte de andar com pessoas reside essencialmente na habilidade (que pressupõe um longo treino) de admitir, ingerir uma refeição em cujo preparo não temos confiança. Desde que cheguemos à mesa com uma fome de lobo, tudo corre facilmente (“a pior companhia te faz sentir –”, como diz Mefistófeles); mas esta fome de lobo, não a tema quando dela precisamos! Ah, como os semelhantes são difíceis de digerir! Primeiro princípio: tal como num infortúnio, reunir toda a sua coragem, pôr valentemente mãos à obra, admirar a si mesmo por isso, serrar os dentes a aversão, engolir a náusea. Segundo princípio: “melhorar” o semelhante com um elogio, por exemplo, de modo que ele comece a transpirar a felicidade consigo mesmo; ou agarrar uma ponta de suas características boas ou “interessantes” e puxá-la, até que toda a virtude esteja de fora e possamos ocultar o semelhante em suas obras. Terceiro princípio: auto-hipnotização. Fixar os olhos no objeto de relacionamento como se ele fosse um botão de vidro, até que paramos de sentir prazer e desprazer e adormecemos imperceptivelmente, ficamos hirtos, adquirimos postura: um remédio caseiro que vem do matrimônio e da amizade, amplamente testado, tido como indispensável, mas ainda não formulado cientificamente. Seu nome popular é – paciência. FW 365. O eremita fala novamente. – Também nós andamos com “pessoas”, também nós vestimos modestamente a roupa com a qual (como a qual) nos conhecem, nos estimam, nos procuram, e assim comparecemos em sociedade, isto é, entre pessoas disfarçadas que não querem ser tidas como tais; também nós fazemos como todas as máscaras prudentes, desembaraçando-nos polidamente de toda curiosidade que não diga respeito a nossa “roupa”. Mas existem outras formas e artimanhas de “nadar” com e entre as pessoas: como fantasma, por exemplo – algo bastante aconselhável, se queremos logo nos livrar delas e assustá-las. Faça-se a prova: alguém ergue a mão para nos tocar e nada encontra. Isto assusta. Ou entramos por

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uma porta fechada. Ou quando as luzes foram apagadas. Ou depois que já morremos. Esse último é o artifício dos homens póstumos par excellence. (“Que acham vocês?”, aconteceu de um deles perguntar impacientemente, “teríamos ânimo para agüentar essa estranheza e frieza, essa quietude sepulcral à nossa volta, toda essa oculta, subterrânea, indescoberta e muda solidão, que entre nós se chama vida e bem poderia chamar-se morte, se não soubéssemos o que de nós será – e que somente após a morte chegaremos a nossa vida e ficaremos vivos, ah, muito vivos! Nós, seres póstumos!” –). [cf. JGB 289] FW 179. Pensamentos. – Pensamentos são as sombras dos nossos sentimentos – sempre mais obscuros, mais vazios, mais simples do que estes. FW 287. Alegria na cegueira. – “Meus pensamentos”, disse o andarilho a sua sombra, “devem me anunciar onde estou; não devem me revelar para onde vou. Eu amo a ignorância a respeito do futuro e não quero perecer de impaciência e do antegozo de coisas prometidas.” M 249. Quem está só? – O temeroso não sabe o que é estar só: atrás de sua cadeira há sempre um inimigo. – Oh, quem poderia nos contar a história do fino sentimento que se chama solidão! FW 182. Na solidão. – Quando se vive só, não se fala muito alto, também não se escreve muito alto: pois teme-se a ressonância vazia – a crítica da ninfa Eco. – E todas as vozes soam diferentes na solidão! M 569. Aos solitários. – Se, nas suas conversas consigo mesmo, alguém não poupa a honra de outras pessoas como faz em público, não é uma pessoa decente. FWS 33. O solitário [Der Einsame] Para mim é odioso seguir e também guiar, Obedecer? Não! E tampouco – governar! Quem não é terrível para si, a ninguém inspira terror: E somente quem inspira terror é capaz de governar. Gosto, como os animais da floresta e do mar, De por algum tempo me perder [verlieren], De permanecer num amável recanto a cismar, E enfim me chamar pela distância, Seduzindo-me para – voltar a mim. WS 319. Crer em si mesmo. – Em nossa época, desconfia-se de todo aquele que acredita em si mesmo; outrora, isso bastava para fazer acreditar em si. A receita para agora ser acreditado é: “Não poupe a si mesmo! Se quiser colocar sua opinião numa luz digna de crédito, incendeie primeiramente sua própria casa!” WS 306. Perder a si mesmo [Sich selber verlieren]. – Uma vez tendo se

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encontrado, é preciso perder-se de vez em quando – e depois novamente se encontrar: contanto que se seja um pensador. Pois para este é prejudicial estar sempre ligado a uma só pessoa. FW 27. O andarilho [Der Wanderer] “Mais nenhum caminho! Apenas o abismo e silêncio!” – Assim você quis! Sua vontade deixou o caminho! Agora ande, andarilho! Tenha o olhar frio e claro! Perdido [Verloren] estará, se acreditar no perigo [Gefahr]. M 443. Sobre a educação [Zur Erziehung]. – Paulatinamente esclareceu-se, para mim, a mais comum deficiência de nosso tipo de formação e educação: ninguém aprende, ninguém aspira, ninguém ensina – a suportar a solidão [Einsamkeit].

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III. NIETZSCHE E A ESCRITA

Uma coisa sou eu, outra são meus escritos. Nietzsche, Ecce Homo, “Porque escrevo tão bons livros”.

Com essa frase, Nietzsche inicia o capítulo sobre a escrita em seu Ecce Homo. Nela, podemos perceber a derradeira distância da escrita nietzschiana com respeito à função comumente aceita da escrita como um processo de confissão, de identidade com o escritor, muito utilizada pelas vertentes pedagógicas. Frente a esse uso, o filósofo procura trabalhar com a escrita sobre a ambivalência entre biografia e educação, entre o viver e o ensinar (NIETZSCHE, 2003, p. 52). Entre biografia e educação, entre vida e conhecimento, podemos distinguir três características da escrita nietzscheana, segundo ele mesmo o faz no Ecce Homo: alcançar um certo cinismo, atitude própria de contestação dos idealismos; comunicar “um estado, uma tensão interna, por meio de signos”; fazer as vezes de um psicólogo, não a fim de prescrever, mas tão somente de diagnosticar erros, tolices, paixões, ideais. Numa

possível

abordagem

dessa

ambivalência,

principalmente

pelos

testemunhos dessa obra, fica claro que essas características da escrita são empregadas como uma experimentação, uma alteridade e uma superação de si mesmo: invenção de vida. A partir desse estilo de escrita, estabelece-se uma relação de si sobre si mesmo, sobre o que se é e o que se pensou, do que se é feito: não com o fim de confessar a outro sobre a verdade de si mesmo, nem adequar-se a uma moral fixa ou a uma tábua de formas e valores. Escreve-se para conhecer-se e perder-se; perceber quem se é e deixar de acreditar que se é apenas um – “o ego não passa de um ‘embuste superior’” (NIETZSCHE, 2003, p.58). Escreve-se para alcançar as mais intensas forças espirituais a fim de desgarrá-las de seu rincão: deixar de ser a si mesmo – fazer rir seus valores, dançar com os deuses (NIETZSCHE, 2009, p.73-75). Numa outra abordagem, a escrita também é o modo que talvez Nietzsche tenha se apoiado para relacionar educacionalmente consigo e com os outros. Nesse jogo

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mesmo de governança entre forças, o gesto educativo, se assim ainda o poderíamos chamar, gesto exercido por um livre-pensador, por um auto-educado, se faria por um duplo movimento, por uma dupla prática: no ocupar-se consigo, investigando o si mesmo – as ilusões inventivas de toda a humanidade – na história; e comunicando exatamente essa tensão interna de constituição (NIETZSCHE, 2003, p.57), esse estado vitorioso – “a valentia e liberdade de sentimento ante um inimigo poderoso, ante uma sublime adversidade, ante um problema que suscita horror” – o pensador, o educador, o psicólogo, o artista, “habituado ao sofrimento, aquele que busca o sofrimento”, exaltaria a sua existência com a tragédia, oferecendo-nos a dulcíssima crueldade (2006a: IX, 24) do conhecimento sobre a vida. A fim de explicitar tais características, ao passo que procuramos mostrar as variações, deslocamentos e posturas de Nietzsche com respeito a escrita, dividimos os aforismos selecionados da seguinte forma: 1.Escrita, exame, memórias – no qual se apresenta uma passagem de um dos primeiros escritos de Nietzsche, ainda criança, uma espécie de escrito retrospectivo, de memórias; 2.Escrita e autodidatismo – onde se explora o ler e o escrever, como práticas de educação por si próprio; 3.Escrita e seus atores – considerações críticas sobre o papel e a atividade dos autores, poetas, leitores, explorando também as relações entre leitor-escritor e o que podem os livros; 4.Escrita e seus modos – passagens sobre a arte e ensino da leitura e da escrita (entre metafísica e genealogia, retórica e parrésia, etc.) ou para uma ética da escrita, explorando tanto as questões do excesso e da prudência (item 4a) e as considerações sobre a moral dos escritos eruditos, religiosos e pedagógicos (item 4b); por último, 5.Escrita, experimentação, alteridade – contendo passagens sobre a superação de si mesmo e a vitória (em oposição à identidade e à confissão). A partir dessas 5 sendas cartográficas, procuraremos dar visão, no campo do pensamento educacional, as relações entre o exercício da escrita em Nietzsche e esse possível procedimento de formação que, grosso modo, abarcaria um complexo jogo de forças entre o sujeito tomado tanto como sujeito da ação como sujeito de sua própria ação. Complexidade de um jogo ético político de subjetivação-objetivação de si por si mesmo: gesto crítico fundador da ética, jogo político, senão anterior, simultâneo à ação pedagógica da sociedade. Um jogo que se manifesta, quiçá, no próprio uso exaustivo do dispositivo da escrita que desprende movimentos de totalização, de maximização do pensamento e da possibilidade de ação à fragmentação mesma das hierarquias teóricas e

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morais que ordenam as ações, os hábitos, os conhecimentos de um indivíduo humano (BLANCHOT, 1973). Entrever esse movimento, prático e teórico, para além da formação, de um processo em direção a uma forma, tal movimento pode nos fazer pensar, quiçá, ao final deste nosso percurso de pesquisa, o movimento educacional de um indivíduo, de sua subjetivação, por uma auto-objetivação, uma autopoiética: não como um processo de formação cuja teleologia possuiria uma forma última, mas indagando a respeito da lógica da formação institucional como uma viagem. A viagem, com sua saída, sua chegada, sua volta à origem, cujo percurso atribulado, mas quase sempre tirunfante, prometer-nos-ia a recompensa do conhecimento, segurança ou felicidade – promessas de uma concepção um tanto insuspeita (NÓVOA, 2011). Dessas mudanças pelas quais o indivíduo opera em si mesmo, dessas práticas de si, queremos burilá-las através da escrita nietzscheana, dita e inscrita por e nela mesma. Manifestado na construção teórico-formal de seus aforismos, nas retóricas e figuras de linguagem empregadas, das tensões e temas propostos ou calados pelo seu pensamento em sua vasta obra escrita, esse procedimento de formação, ou antes, de transformação, de transvaloração, de superação, empreende resgatar uma moral dinâmica de formação como um exercício ético de constituição de um sujeito de ação. É para além e aquém das formas do artista, do gênio; é além-do-homem: formação, constituição constante, prática cujo fim é sempre em devir, cuja forma é multívaga. Diríamos dessa formação enquanto uma autopoética do sujeito ético? Pela escrita possibilitar-se-ia um processo de autoformação e transvaloração? Vemos que no Ecce homo, Nietzsche afasta qualquer possibilidade de se pensar numa identidade entre o que escreve e o que é. Talvez, como ele mesmo afirmou dez anos antes, a relação da escrita seja de total alteridade, de superação de si mesmo. Processo que talvez não tenha um fim último, um si último. Ele se faz por metas, medidas, doses, mas não tende a encontrar uma forma última, um modo derradeiro de vida ou uma moral absoluta: “quem alcança seu ideal, vai além dele” (NIETZSCHE, 2006c: 73). Esse movimento de autoformação e de conduzir a si mesmo, mais do que uma viagem, se pretende como uma caminhada constante, um deambulismo estilizado, uma errância. Em vista desses deslocamentos e operações, nossa primeira inquietação poderia se voltar para esta hipótese: não seria esse dispositivo escritural uma das condições de possibilidade para uma auto-educação [Selbst-Erziehung] – para a crítica e cultivo da vontade de poder, de Grande Saúde, de experimentação e transvaloração dos valores, de

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superação de si mesmo, todos processos fulcrais expostos nas obras nietzscheanas? Em Nietzsche, certos usos da atividade escritural não estariam no cerne de um método ético de autoformação, de etopoiésis, de subjetivação e dessubjetivação por si mesmo? – E de que modo isso ocorreria?

III. 1. Modernidade, ciência experimental e escrita Para trazermos a baila uma perspectiva contemporânea sobre a prática escritural como um procedimento de formação e experimentação de si, evidenciando seu lastro histórico ao longo da modernidade, o poeta e pensador Octávio Paz (1969)29, num texto da década de 60, escreve sobre as relações entre ciência e poesia modernas. Para o autor, ambas são um método de trabalho e uma “atitude ante o objeto” (PAZ, 1969, p.79). Por um lado, para o poeta e para o cientista investigador, o labor poético e científico são experimentos, provas de laboratório; conduzem-se na maioria das vezes em ambientes isolados, aproveitando as propriedades da matéria em estudo na realização de hipóteses, conexões, produções. Por outro lado, para ambos, é preciso possuir uma atitude empírica ante o objeto: as palavras e as ideias ou os elementos e coisas são manipuladas sem se saber “exatamente o que é que vai ocorrer”. Ambos não pretendem confirmar uma verdade revelada como o crente; não querem definir ou afirmar nada de antemão; possuem certa propensão à resignação, pois não experimentam por causa de suas teorias, mas o inverso. Assim, tampouco são doutrinários. Aquilo que, distintamente, buscam, o poema ou a verdade científica, precisa passar pelo “ácido da prova” e o “fogo da crítica”. Contudo, ainda segundo Paz, todas essas semelhanças não nos deve fazer esquecer de uma “diferença decisiva”: o sujeito da experiência (p.80). De modo geral, o cientista é um espectador e não participa dos resultados da experiência. O objeto da experiência na ciência é geralmente outra coisa que não o próprio sujeito. No caso da poesia moderna, o sujeito e o objeto da experiência se confundem: é o próprio poeta. Ela se observa e se experimenta a pôr a prova suas ideias, seus pensamentos, suas sensações: “seu corpo e sua psique, seu ser inteiro, são o campo aonde se opera toda 29

A tradução das passagens é feita livremente por nós, as quais muitas serão incorporadas à nossa narrativa.

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sorte de transformações”. Para Paz, a poesia moderna pode ser considerada como um conhecimento experimental acerca do sujeito mesmo que conhece. Se seguirmos algumas pistas de Octávio Paz, poderíamos entender a escrita poética – aquela que faz de si mesmo uma obra em experimento – como a prática de um saber experimental de si mesmo.

III. 2. Leonardo, escritor e inventor de si? Leonardo da Vinci, artista e pensador de dispensável apresentação, filho ilegítimo e protegido real ao final de sua vida, um dos predecessores do que ficou conhecido como “ciência moderna” – inventor de tantas engenhocas assim como realizador de façanhas pictóricas –, muito desenhou, escreveu, anotou – e quase nada publicou em vida. A par da circulação de seus escritos nos meios científicos e místicos da época, e até mesmo a par da indiferença com que muitas de suas invenções foram recebidas pelos intelectuais e instituições renascentistas, poderíamos alegar que sua impopularidade no seu tempo se deu pela ausência de um “mercado” para o que ele “produzia”. Espécie de mestre, no sentido estrito, da Renascença, inventor multifacetado e um dos maiores e mais completos homens de nossa recente história ocidental, podemos observar, no entanto, que para Da Vinci a questão talvez não fosse ser “grande”, não fosse produzir em demasia, ser reconhecido e publicado. Isso pode ser constatado pelo fato que pouquíssimas pinturas – um das artes que mais o consagrou – restaram para nossa época. Talvez a questão mesma residisse na resiliência de seu espírito inventor que, através de suas numerosas experiências e experimentos com a arte e o pensamento, de todos os seus fracassos, esboços, delírios e presságios, ele se conduziu como um experimentador nato. A tese da validade de sua obra para a posteridade não se colocará em questão. A sua contribuição para o advento da ciência também não. O que gostaríamos de vislumbrar na pessoa de Da Vinci é que, como artista, como cientista, como pensador, ele ocupa-se consigo como uma atitude de educação e experimentação de si mesmo. Sobretudo, ele elabora uma ciência ou um saber experimental de si mesmo e da natureza das coisas a partir da observação de si mesmo e das anotações de suas impressões,

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leituras e estudos em geral. É a partir de seus inúmeros cadernos deixados que podemos repensar a importância da escrita e da anotação como uma espécie de cuidado, tanto de si como da produção de sua obra – ele e ela se confundindo, enquanto o vigor de um leva a outra para além de si mesmo.30 Tão importantes como a Mona Lisa, A Última Ceia ou o Homem Vetruvianu, o que talvez de mais valioso tenha restado para nós são seus cadernos de anotação. Longe de ser um diário ou um simples depositário dos ofícios de seu dia-a-dia, ou mesmo diferentemente de seus tratados sobre a pintura ou sobre o voo dos pássaros e animais alados, os Cadernos de Da Vinci (2006) são testemunhas fáticas do incansável exercício a que ele se propunha diariamente, ao longo de toda sua vida, para investigar a si mesmo e o mundo. Investigação essa que, poderíamos supor, não tinha talvez intenção de projeto pedagógico ou fama cultural, de se tornar cânone ou mesmo de postular as futuras leis da física, da biologia, da geografia, das humanidades. Não obstante, essas foram algumas das perspectivas que permearam suas investigações. Talvez Leonardo seja um dos primeiros modernos andarilhos, ocupados consigo mesmos – e com os outros. Um dos primeiros pensadores livres. Cerca de vinte anos após a morte de Leonardo da Vinci, o rei Francisco teria falado, segundo o escultor Benvenuto Cellini: "Nunca nasceu no mundo outro homem que soubesse tanto quanto Leonardo, nem tanto [por seus conhecimentos] de pintura, escultura e arquitetura, mas por ele ter sido um grande filósofo.”31

III. 3. Ler e escrever no Zaratustra Quais seriam as práticas, as condutas, os exercícios necessários para um espíritolivre? E de que maneira o espírito é também o corpo, e o corpo é uma confluência de almas, de forças, que constituem a própria vontade de um corpo, tal como um espírito? É assim que Nietzsche inicia identificando o sangue com o espírito, ao dizer que escrevendo com sangue verás que dele é feito o espírito. Sangue e espírito, linguagem e

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Aqui, sem dúvida, uma referência direta aos estudos de Foucault (2006a) acerca da “escrita de si” na antiguidade. Referência essa que fica incompleta pela ausência desse estudo foucaultiano no nosso trabalho, mas cujo conteúdo e pertinência foram basilares para nossa proposta de estudo. 31 Cf. LUCERTINI, Mario; GASCA, Ana Millan; NICOLO, Fernando. Technological Concepts and Mathematical Models in the Evolution of Modern Engineering Systems. Birkhauser, 2004.

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corpo. É nessas ambivalências que circulam as práticas de si – exatamente como um exercício ético-poético, fazedor de seu modo de viver. Escrever com sangue é escrever com forças: é escrever com riscos, com perigos, com excrementos, nervos, com vísceras, com fluídos. É escrever com palavras assim como com fluxos, de modo a se fazer um enorme e curto esforço de expressá-los, tal como um gesto, um ato. É esse o tipo de escrita ético-poética de Nietzsche, isto é, é esse seu jeito de inscrever-se no mundo pelo cultivo de hábitos breves e impulsos imperiosos. Mas é esse também seu estilo de escrita poético-literária, aforística, sentencial, fragmentária. Assim como Zaratustra, quer assumir e afirmar seus atos sem que nada o faça querer voltar atrás; assim é também com seus escritos, os quais ele quer que se aprendam por memória, pelo espírito. Ele quer provocar mudanças radicais quando precisar. Tão somente ler é acreditar na sua superioridade pela erudição, sendo que esta é exatamente o processo reativo das forças, voltando-se contra si próprias, num processo decadente. Mas Zaratustra quer inscrever-se nas alturas, quer “volver pensable todo lo que existe”32. Quer poder pensar o impossível, escrever o impensável. São nestas regiões onde as idéias e o ar são “rápidos e puros” e o perigo é eminente, que o espírito se enche de uma “alegre malícia”33. Nesse ar, os pensamentos ganham velocidade e periculosidade, conseguem, ao superar o gelo das alturas, adentrar a estranhas visões e criar para si outras ilusões, agora “duendes” que afugentam os fantasmas, “os ideais ressentidos”, fracassos sedimentados que cobram uma dívida. São os duendes que nos fazem rir dos fantasmas, pois num ar puro e rarefeito, a claridade é outra, são as novas ilusões, são valores superiores, pois superaram propriamente o sofrimento causado pelas vontades dos antigos. Não se ressente, não pesam os valores que possuiu uma vez e desiludiu-se com, descartando-os. Neste ponto, por sua vez, opera-se uma transvaloração dos valores: Zaratustra se vê livre do “mais pesado dos pesos”, ele não teme escolher o que deseja novamente diferente e ri do negrume e do carregamento, dos arrependimentos e das culpas que é essa nuvem que assola os homens – nuvem tempestuosa da história, dos valores, da moral, uma virtualidade condenada, enclausurada. Agora ele ri “de todas las tragedias, de las del teatro y de las de la vida” como sintoma de uma ousada leveza para com a 32

NIETZSCHE, 2009, “De la superación de si mesmo”. “Una alegre maldad”. A partir de agora, quando não informado o contrário, as citações são do "Del leer y el escribir", que colocarei na tradução espanhola de Andrés Sánchez Pascual e, quando conveniente, traduzirei alguns fragmentos ou palavras para o português. 33

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vida, que não é uma falta de seriedade, mas uma despreocupação, uma ironia, uma violência para com ela: “así nos quiere la sabiduría” – alcança a gravidade pela qual é impelido a, como guerreiros que sabem lutar por, elaboram e dominam modos de viver, levando-os a uma excelência singular e inominável, mas não se apegando definitivamente a nada. Seu único comprometimento é superar-se. Quando não mais precisar dos velhos hábitos e modos, quando estes falharem e ele precisar mudar, nada pesará ao abandoná-los34. O método de Zaratustra, contra o fanatismo e atravessando sempre o foço do niilismo, não deixa de acreditar na possibilidade de um devir melhor – apenas por ser diferente, diria Deleuze35. Para Zaratustra reclamar da vida não é digno de quem a ama. Por mais que soframos, isto não é desculpa para não saber amá-la. Pois amamos a vida não porque estamos habituados a viver, mas a amar. Amar, aqui, é como uma configuração afirmativa e criadora, que quer ir além de si, alterar-se por, pois “siempre hay algo de demencia en el amor. Pero siempre hay también algo de razón en la demencia”. O amor tem esta potência louca, de ir além de uma ordenação lógica, da moral, das ações, dos acontecimentos. Amor pode ser também essa vontade de superar-se e dilacerar-se, destituir-se de sua própria forma, uma vontade que se eleva à força e rompe com o corpo, alteração radical, vontade de morte: “Amar y hundirse en su ocaso: estas cosas van juntas desde la eternidad. Voluntad de amor: esto es aceptar de buen grado incluso la muerte. ¡Esto es lo que yo os digo, cobardes!”36. Mas a loucura, este desgoverno volitivo tem suas razões de ser. É esta loucura que propicia o próprio movimento do eterno retorno. E assim, é um corpo-espírito que está livre – de seu próprio fardo e

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É possível encontrar uma instigante relação prática entre a obra de Nietzsche e a do escritor Carlos Castañeda, nas suas configurações até mesmo socráticas-fabulatórias-aforísticas, bem como nas configurações éticas e conceituais dos pensamentos-ensinamentos de cada autor. A ver, neste ponto sobre uma ética que transvalora e afirma, Castañeda escreve em Uma estranha realidade: “Eu tinha deixado de pensar na dureza da minha vida antes de começar a ver.” Sem me alongar muito neste ponto, o “trabalho de ver”, no livro de Castañeda, consistiria em aprender a realidade de uma maneira amoral, como que de certa maneira destreinando o olhar para perceber e ver outras as forças e formas agindo e com isso, ser interferido e tendo o poder de interferir nelas. Em outra passagem, Dom Juan, o mestre de Castañeda, lhe diz: “um homem desprendido, que sabe que não tem possibilidade de evitar sua morte, só tem uma coisa em que se apoiar: o poder de suas decisões (...) sua opção é sua responsabilidade, e uma vez feita, não há mais tempo para remorsos ou recriminações. Suas decisões são finais, simplesmente porque sua morte não lhe permite tempo para se agarrar a nada”. É um trabalho do ver, do olhar, que Nietzsche muitas vezes estipula para se lançar criativa e criticamente sobre a realidade, o conhecimento, sobre si mesmo. 35 Aqui, cabe outra menção à obra de Castañeda. Em Uma estranha realidade, poder-se-ia entender esse exercício para a grande saúde como o termo “loucura controlada”: “É possível insistir, insistir realmente, mesmo sabendo que o que se está fazendo é inútil – disse ele, sorrindo. – Mas primeiro temos de saber que nossos atos são inúteis, e, no entanto, temos de proceder como se não soubéssemos [já que é a única coisa que temos]. É esta a loucura controlada de um feiticeiro [aprendiz das práticas xamãnicas]”. 36 NIETZSCHE, 2009, “Del inmaculado conocimiento”.

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segue sua própria sombra, esconde-se e revela-se nas suas próprias voracidades37. Uma configuração de “almitas ligeras, locas, encantadoras, volubles” que fazem o corpoespírito correr, voar, e fazem Zaratustra chorar e cantar. E logo afirma: "yo no creería más que en un Díos que supiese bailar". Um deus – uma meta, um ideal, uma ilusão, um além –, um mais que necessariamente haveria de dançar e alterar-se conforme a música do confrontamento entre fluxos. Nada mais profano que uma educação de si que está além da formação para algo.

III. 4. Passagens sobre escrita nas obras selecionadas de Friedrich Nietzsche A maneira do capítulo anterior (Capítulo II), dentro do período das obras nietzscheanas já delimitado por nós38, fizemos aqui uma cartografia dos termos “escrita”, “escrever”, “escritor/es” e seus correlatos, como “livro/s”, “literatura”, “ler”, bem como “autor/es”, “poeta/s” e “criador/es”. Os temas em destaque, bem como a ordem dos aforismos, tentam respeitar exatamente a mesma intenção da primeira cartografia sobre a educação: uma conexão entre temas similares pela qual se possa vislumbrar a noção de um processo em movimento. Essas duas cartografias, separadas esquematicamente, como dissemos, pela praticidade da exposição, não excluem de maneira alguma a mútua correlação entre os temas da prática ascética, da investigação histórico-científica e da escrita. Desta feita, a partir dessa seleção de aforismos, tentaremos burilar acerca da hipótese comumente atribuída ao professor Oswaldo Giacoia Jr., sobre a maneira como a filosofia nietzscheana possuiria no exercício escritural seu alicerce.

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1. Escrita, exame, memórias: diário e confissão

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A morte do "espírito do pesadelo", da “pesadez”. Com exceção do primeiro tema, “Diário”, que é anterior a 1878. Cf. NIETZSCHE, 2010, p.3.

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De mi vida. “Los años de niñez”, 18 de agosto a 1 de setembro de 1858. Cuando somos adultos solemos acordarnos únicamente de los momentos más sobresalientes de nuestra primera infancia. Aunque todavía no soy adulto y apenas sí he dejado atrás los años de infancia y pubertad, he olvidado ya muchas cosas de aquel tiempo, y lo poco que sé, probablemente sólo lo retengo porque lo he oído contar. Las hileras de años pasan volando ante mi vista como si se tratase de un confuso sueño. Por eso me resulta del todo imposible remitirme a alguna fecha concreta de los diez primeros años de mi vida. Con todo, aún poseo algo claro y vivo en mi alma, y eso es cuanto desearía, uniendo luces y sombras, plasmar en un cuadro. Pues ¡qué instructivo es poder observar lo diverso del desarrollo de la inteligencia y el corazón y la omnipotencia de la Providencia Divina que los guía!

2. Escrita e autodidatismo: o ler e o escrever (e suas consequências) WS 324. Tornar-se pensador. – Como pode alguém se tornar um pensador, se não passar ao menos um terço de cada dia sem paixões, pessoas e livros? WS 180. Os mestres na época dos livros. – Como o autodidatismo e a educação em grupo se generalizam, o mestre, em sua forma costumeira, deve se tornar praticamente supérfluo. Amigos sequiosos de aprender, que querem juntos apropriar-se de um saber, encontram, em nossa época dos livros, uma via mais curta e mais natural do que a da “escola” e do “professor”. MA 206. Livros que ensinam a dançar. – Há escritores que, por apresentarem o impossível como possível e falarem do moral e do genial como se ambos fossem apenas um capricho, um gosto, provocam um sentimento de liberdade exuberante, como se o homem se colocasse na ponta dos pés e tivesse absolutamente que dançar por prazer interior. FW 248. Livros. – De que vale um livro que não nos transporte além dos livros?

3. Escrita e seus atores: autor, poeta, leitor; relações leitor-escritor; livros MA 180. Espírito coletivo. – Um bom escritor não tem apenas o seu próprio espírito, mas também o espírito de seus amigos. MA 186. Espirituosidade. – Os autores mais espirituosos provocam o sorriso mais imperceptível. MA 192. O melhor autor. – O melhor autor será aquele que tem vergonha de se tornar escritor.

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MA 185. Paradoxos do autor. – Os chamados paradoxos do autor, aos quais o leitor faz objeção, frequentemente não estão no livro do autor, mas na cabeça do leitor. VM 140. Calando a boca. – O autor tem de calar a boca, quando sua obra fala. WS 101. Autores espírito-de-vinho. – Muitos escritores não são espírito nem vinho, mas espírito de vinho: podem se inflamar, e então oferecem calor. WS 108. Festa rara. – Concisão medular, tranqüilidade e madureza – onde você achar essas características num autor, pare e celebre uma demorada festa em meio ao deserto: passará muito tempo até sentir-se tão bem novamente. VM 153. “Livro bom pede tempo”. – Todo livro bom tem gosto acre quando surge: tem o defeito da novidade. Além disso, é prejudicado pelo autor vivo, se ele for conhecido e muito se falar dele: pois existe o hábito de se confundir o autor com sua obra. O que nesta houve de espírito, brilho e doçura tem que se desenvolver com os anos, aos cuidados da veneração crescente, depois antiga, e por fim tradicional. Muitas horas terão de passar sobre ela, muitas aranhas terão de nela tecer sua teia. Bons leitores tornam um livro cada vez melhor, e bons adversários o depuram. VM 142. Livros frios. – O bom pensador tem expectativa de leitores que sintam como ele a felicidade que há em pensar bem; de modo que um livro de ar frio e sóbrio, visto com os olhos certos, pode aparecer rodeado do sol da serenidade espiritual e como um verdadeiro consolo para a alma. [cf. MA 185, 190, 193, 206, VM 137] WS 92. Livros proibidos. – Nunca ler algo do que escrevem os arrogantes sabichões e confusos que têm o mais abominável costume, o do paradoxo lógico: eles empregam as formas lógicas justamente ali onde tudo, no fundo, é insolentemente improvisado e construído no ar. (“Portanto” deve significar, com eles, “leitor imbecil, para você não há ‘portanto’ – mas para mim, sim” – e a resposta a isso é: “autor imbecil, para que escreve você então?”.) VM 145. Valor dos livros sinceros. – Livros sinceros tornam o leitor sincero, ao menos enquanto o fazem mostrar seu ódio e sua aversão, que, de outro lado, a ladina prudência sabe ocultar bem. Mas com um livro nós nos deixamos levar, por mais que nos contenhamos com as pessoas. MA 208. O livro quase tornado gente. – Para todo escritor é sempre uma surpresa o fato de que o livro tenha uma vida própria, quando se desprende dele; é como se parte de um inseto se destacasse e tomasse um caminho próprio. Talvez ele se esqueça do livro quase totalmente, talvez se eleve acima das opiniões que nele registrou, talvez até não o compreenda mais, e

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tenha perdido as asas em que voava ao concebê-lo: enquanto isso o livro busca seus leitores, inflama vidas, alegra, assusta, engendra novas obras, torna-se a alma de projetos e ações – em suma: vive como um ser dotado de espírito e alma, e contudo não é humano. – A sorte maior será a do autor que, na velhice, puder dizer que tudo o que nele eram pensamentos e sentimentos fecundantes, animadores, edificantes, esclarecedores, continua a viver em seus escritos, e que ele próprio já não representa senão a cinza, enquanto o fogo se salvou e em toda parte é levado adiante. – Se considerarmos que toda ação de um homem, não apenas um livro, de alguma maneira vai ocasionar outras ações, decisões e pensamentos, que tudo o que ocorre se liga indissoluvelmente ao que vai ocorrer, perceberemos a verdadeira imortalidade, que é a do movimento: o que uma vez se moveu está encerrado e eternizado na cadeia total do que existe, como um inseto no âmbar. VM 158. Pouco e sem amor. – Todo bom livro é escrito para um determinado leitor e os de sua espécie, e, justamente por isso, não é visto de modo favorável por todos os demais leitores, a grande maioria: motivo pelo qual sua reputação se fundamenta numa base estreita e apenas lentamente pode ser construída. O livro medíocre e ruim o é justamente porque busca agradar e agrada a muitos. MA 181. Duas espécies de conhecimento. – O infortúnio dos escritores agudos e claros é que os consideramos rasos, e por isso não lhes dispensamos maior esforço; e a sorte dos escritores obscuros é que o leitor se ocupa bastante deles e lhes credita o prazer que tem com sua própria diligência. MA 190. O pecado contra o espírito do leitor. – Quando o autor nega seu talento para se equiparar ao leitor, comete o único pecado mortal que este jamais lhe perdoa; caso o perceba, naturalmente. Pode-se dizer tudo quanto é ruim de um homem; mas na maneira de dizê-lo devemos saber restaurar sua vaidade. [cf. VM 137, 142] MA 202. Perto demais e longe demais. – É freqüente o leitor e o autor não se entenderem porque o autor conhece bem demais o seu tema e o acha quase enfadonho, dispensando os exemplos que conhece às dúzias; mas o leitor é estranho à matéria, e a considerada mal fundamentada se os exemplos lhe são negados. MA 197. Os escritos de nossos conhecidos e seus leitores. – Lemos de maneira dupla o que escrevem os conhecidos (amigos e inimigos), na medida em que nosso conhecimento nos sussurra permanentemente: “Isso é dele, é uma marca de sua natureza interior, de suas vivências, de seu talento”, enquanto uma outra espécie de conhecimento busca verificar que proveito tem essa obra, que estima ela merece independentemente do autor, que enriquecimento traz para o saber. Essas duas espécies de leitura e de consideração se chocam, está claro. Mesmo a conversa com um amigo só produzirá bons frutos de conhecimento quando ambos pensarem apenas na questão e esquecerem que são amigos.

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MA 193. Lei draconiana para os escritores. – Deveríamos considerar o escritor como um malfeitor que apenas em raríssimos casos merece a absolvição ou a graça: isto seria um remédio contra a proliferação de livros VM 308. Escritores de partido. – As batidas de tambor, em que se comprazem os jovens escritores a serviço de um partido, soam como estrondo de cadeias para quem não é do partido, e suscitam antes compaixão do que admiração. MA 201. Necessidade de maus escritores. – Sempre deverão existir maus escritores, pois eles atendem ao gosto das faixas de idade não desenvolvidas, imaturas; estas têm suas necessidades, tanto como as maduras. Se a vida humana fosse mais longa, o número de indivíduos amadurecidos seria maior ou, no mínimo, tão grande quanto o de imaturos; ocorre que a imensa maioria morre cedo demais, isto é, há sempre bem mais intelectos não desenvolvidos e com mau gosto. Além disso, eles desejam, com a enorme veemência da juventude, a satisfação daquilo de que necessitam, e forçam o surgimento de maus autores. VM 137. Os piores leitores. – Os piores leitores são os que agem como soldados saqueadores: retiram alguma coisa de que podem necessitar, sujam e desarranjam o resto e difamam todo o conjunto. WS 104. Leitores indesejados. – Como atormentam o autor esses honrados leitores com alma pesada e canhestra, que sempre, ao se bater em algo, caem e se ferem. FWS 54. Ao meu leitor Bons dentes e bom estômago – Eis o que lhe desejo! Se der conta de meu livro, Certamente se dará comigo!

4. Escrita e seus modos: arte e ensino da leitura e da escrita (entre metafísica e genealogia, retórica e parrésia, etc.) ou para uma ética da escrita VM 19. O quadro da vida. – A tarefa de pintar o quadro da vida, por mais que tenha sido proposta pelos escritores e filósofos, é absurda: mesmo pelas mãos dos maiores pintores-pensadores sempre surgiram apenas quadros e miniaturas de uma vida, isto é, de sua vida – e outra coisa também não seria possível. Naquilo que está em devir, um ser em devir não pode se refletir como algo firme e duradouro, como um “o”. FW 244. Pensamentos e palavras. – Também os próprios pensamentos [a nós] não se podem reproduzir inteiramente em palavras.

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WS 55. Perigo da linguagem para a liberdade espiritual. – Toda palavra é um pré-conceito [Vorurteil]. M 47. As palavras estão em nosso caminho! – Onde os antigos homens colocavam uma palavra, acreditavam ter feito uma descoberta. Como era diferente, na verdade! – eles haviam tocado num problema e, supondo tê-lo resolvido, haviam criado um obstáculo para a solução. Agora, a cada conhecimento tropeçamos em palavras eternizadas, duras como pedras, e é mais fácil quebrarmos uma perna do que uma palavra. WS 119. O cheiro das palavras. – Cada palavra tem seu cheiro: há uma harmonia e uma desarmonia dos cheiros e, portanto, das palavras. JGB 289. Nos escritos de um eremita se ouve também um quê do eco do deserto, um quê do sussurro e do tímido olhar em torno que é próprio da solidão; em suas mais fortes palavras, em seu grito mesmo ainda ressoa uma espécie nova e mais perigosa de silêncio e mudez. Quem através dos anos e a cada dia se entrevistou com a sua alma, num íntimo diálogo e disputa, quem em sua caverna – que pode ser um labirinto, mas também uma mina de ouro – tornou-se urso, caçador de tesouros ou guardião e dragão: suas idéias acabam adquirindo elas mesmas um tom crepuscular, um odor tanto de profundeza como de mofo, algo incomunicável e repugnante, cujo sopro frio atinge quem passa. Um eremita não crê que um filósofo – supondo que todo filósofo tenha sido antes um eremita – alguma vez tenha expresso num livro suas opiniões genuínas e últimas: não se escrevem livros para esconder precisamente, o que se traz dentro de si? – ele duvidará inclusive que um filósofo possa ter opiniões “verdadeiras e últimas”, e que nele não haja, não tenha de haver, uma caverna ainda mais profunda por trás de cada caverna – um mundo mais amplo, mais rico, mais estranho além da superfície, um abismo atrás de cada chão, cada razão, por baixo de toda “fundamentação”. Toda filosofia é uma filosofia-de-fachada – eis um juízo-de-eremita: “Existe algo de arbitrário no fato de ele se deter aqui, de olhar para trás e em volta, de não cavar mais fundo aqui e pôr de lado a pá – há também algo de suspeito nisso”. Toda filosofia também esconde uma filosofia, toda opinião é também um esconderijo, toda palavra também uma máscara. [cf. M, Prólogo, 1] WS 87. Aprender a escrever bem. – O tempo do falar bem passou, porque o tempo das culturas citadinas passou. O limite extremo que Aristóteles permitiu à grande cidade – toda a comunidade reunida devia poder ainda escutar o arauto –, esse limite nos interessa tão pouco quanto as comunidades citadinas mesmas, a nós, que queremos ser entendidos além dos povos inclusive. É por isso que, agora, todo aquele que pensar como um bom europeu terá de aprender a escrever bem e cada vez melhor: não há jeito, ainda que ele tenha nascido na Alemanha, onde escrever mal é tido como privilégio nacional. Mas escrever melhor significa também pensar melhor; encontrar sempre coisas mais dignas de serem transmitidas e realmente poder transmiti-las; tornar-se traduzível para os idiomas dos vizinhos; fazer-se acessível à compreensão dos estrangeiros que aprendem

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nosso idioma; cuidar para que tudo de bom se torne bem comum e tudo esteja à livre disposição de quem é livre; por fim, preparar aquele estado de coisas, ainda tão distante, em que os bons europeus recebam nas mãos a sua grande tarefa: a direção e supervisão de toda a cultura terrestre. – Quem prega o contrário, não se interessar por escrever bem e ler bem – as duas virtudes crescem juntas e decrescem juntas –, esse realmente indica aos povos o caminho de tornar-se cada vez mais nacionais: agrava a doença deste século e é inimigo dos bons europeus, inimigo dos espíritos livres. MA 188. Pensadores como estilistas. – A maioria dos pensadores escreve mal, porque nos comunica não apenas seus pensamentos, mas também o pensar dos pensamentos. WS 110. Estilo escrito e estilo falado. – A arte de escrever exige, principalmente, substitutos para as formas de expressão que apenas quem fala tem; ou seja, para gestos, acentos, tons, olhares. Por isso o estilo escrito é muito diferente do estilo falado, e algo bem mais difícil: – quer-se fazer entender tanto quanto este, mas com menos meios. Demóstenes proferia seus discursos de modo diferente de como os lemos; ele os reelaborou para serem lidos. – Os discursos de Cícero deveriam ser “demostenizados” para o mesmo fim: há muito mais fórum romano neles do que o leitor pode agüentar. [cf. FW 364, 365] VM 144. O estilo barroco. – Quem, como pensador e escritor, sabe não haver nascido nem ter se educado para a dialética e o desenvolvimento das idéias, recorrerá involuntariamente à retórica e à dramaticidade: pois lhe interessa, enfim, fazer-se compreendido e assim ganhar força, não importando se atrai o sentimento por uma trilha plana ou se inadvertidamente cai sobre ele – se age como pastor ou como salteador. Isso vale também nas artes plásticas e poéticas; onde o sentimento de falta de dialética ou de insuficiência na expressão e na narrativa, combinado com um instinto da forma bastante rico e premente, produz esse gênero de estilo chamado barroco. – Apenas os mal informados e presunçosos, aliás, sentirão essa palavra como depreciativa. O estilo barroco surge no desflorescer de toda grande arte, quando as exigências se tornam grandes demais na arte da expressão clássica, como um evento natural que se presencia com tristeza – porque prenuncia a noite –, mas também com admiração pelos sucedâneos artísticos que lhe são próprios, na expressão e na narrativa. Entre eles está a escolha de materiais e temas de elevada tensão dramática, com os quais mesmo sem arte o coração treme, já que céu e inferno do sentimento se acham muito próximos; depois a eloqüência dos afetos e gestos fortes, do feio-sublime, das grandes massas, da quantidade mesma em si – tal como já se anuncia em Michelangelo, o pai ou avô dos artistas barrocos italianos –: as luzes de crepúsculo, de transfiguração ou de incêndio em formas tão acentuadas; e sempre novas ousadias nos meios e intenções, vigorosamente sublinhadas para os artistas pelo artista, enquanto o leigo não pode senão imaginar que enxerga o contínuo e involuntário transbordar das cornucópias de uma primordial arte da natureza: essas características todas, que constituem a grandeza desse estilo, não são

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possíveis, não são toleradas nas épocas anteriores, pré-clássicas e clássicas, de uma modalidade artística; tais delícias ficam por um longo tempo na árvore, como frutos proibidos. – Justamente agora, quando a música entra nessa última fase, podemos tomar conhecimento do fenômeno do estilo barroco em particular esplendor e aprender muito sobre o passado mediante a comparação: pois desde a época dos gregos houve frequentemente um estilo barroco, na poesia, na eloqüência, na prosa, na escultura e, como bem se sabe, na arquitetura – e esse estilo, embora carecendo da última nobreza, de uma inocente, inconsciente, vitoriosa perfeição, sempre beneficiou muitos dos melhores e mais sérios de seu tempo: – motivo pelo qual, como disse, é presunçoso logo julgá-lo depreciativamente, embora possa considerar-se feliz aquele cuja sensibilidade não foi por ele embotada para o estilo mais puro e maior. MA 203. Uma preparação para a arte que desapareceu. – De tudo o que se fazia no ginásio, o mais valioso era a prática do estilo latino: pois ela era um exercício de arte, enquanto as demais ocupações tinham apenas o saber por objetivo. Dar primazia à composição alemã é barbarismo, pois não temos estilo alemão exemplar, que se tenha nutrido da eloqüência pública; mas, se quisermos promover o exercício do pensamento através da composição alemã, será sem dúvida melhor ignorar momentaneamente o estilo, ou seja, distinguir entre o exercício do pensamento e o da exposição. Este último deveria se aplicar às várias formulações de um dado conteúdo, e não à invenção independente de um conteúdo. A simples exposição de um dado conteúdo era a tarefa do estilo latino, para o qual os velhos mestres possuíam uma finura de ouvido que há muito se perdeu. Quem antes aprendia a escrever bem numa língua moderna, devia tal habilidade a esse exercício (hoje temos que obrigatoriamente freqüentar os antigos franceses); mais ainda: esse alguém obtinha noção da majestade e dificuldade da forma, e preparava-se para a arte pela única via correta – a prática. MA 200. Cautela no escrever e no ensinar. – Quem já escreveu, e sente em si a paixão de escrever, quase só aprende, de tudo o que faz e vive, aquilo que é literariamente comunicável. Já não pensa em si, mas no escritor e seu público; ele quer compreender, mas não para uso próprio. Quem é professor, geralmente é incapaz de ainda fazer algo para o próprio bem, está sempre pensando no bem de seus alunos, e cada conhecimento só o alegra na medida em que pode ensiná-lo. Acaba por considerar-se uma via de passagem para o saber, um simples meio, de modo que perde a seriedade para consigo. MA 270. A arte de ler. – Toda orientação forte é unilateral; assemelha-se à direção da linha reta e é exclusiva como esta, ou seja, não toca em muitas outras direções, como fazem os partidos e naturezas fracas em seu ir-e-vir ondulatório: portanto, também aos filólogos devemos perdoar que sejam unilaterais. O estabelecimento e a preservação dos textos, ao lado de sua exegese, realizados numa corporação durante séculos, fizeram com que agora se chegasse enfim aos métodos corretos: toda a Idade Média foi incapaz de uma exegese estritamente filológica, isto é, de simplesmente querer entender o que diz o autor – não foi pouco encontrar esses métodos,

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não subestimemos esse fato! A ciência inteira ganhou continuidade e estabilidade apenas quando a arte da boa leitura, isto é, a filologia, atingiu seu apogeu. MA 344. Lendo em voz alta. – Quem lê criações dramáticas em voz alta faz descobertas sobre o seu próprio caráter: para certos momentos e estados de espírito, para o que for patético ou burlesco, digamos, acha sua voz mais natural do que para outros, enquanto na vida cotidiana talvez só não tenha tido oportunidade de mostrar pathos ou comicidade. MA 198. Sacrifício do ritmo. – Bons escritores mudam o ritmo de alguns períodos, apenas por não reconhecerem no leitor comum a capacidade de apreender a cadência do período na sua primeira versão: por isso facilitam as coisas para ele, dando preferência a ritmos mais conhecidos. – Essa consideração pela incapacidade rítmica dos leitores atuais já arrancou alguns suspiros, pois muito já lhe foi sacrificado. Não acontece algo semelhante com os bons músicos? WS 97. Desviando. – Não sabemos onde se acha, nos espíritos notáveis, o refinamento da expressão, da locução, até que possamos dizer a que palavra chegaria inevitavelmente um escritor mediano, para expressar a mesma coisa. Todo grande artista mostra tendência, na condução do seu veículo, a desviar, a sair da pista – mas não a virar. WS 128. Os autores tristes e os sérios. – Quem coloca no papel o que sofre, torna-se um autor triste: mas um autor sério, quando nos diz o que sofreu e por que agora descansa na alegria. MA 191. O limite da honestidade. – Também o escritor mais honesto deixa escapar uma palavra a mais, quando quer arredondar um período. VM 138. Características do bom escritor. – Os bons escritores têm duas coisas em comum: preferem ser compreendidos a ser admirados, e não escrevem para os leitores mordazes e muito agudos. WS 106. Escrevam de modo simples e útil. – Transições, desenvolvimentos, matizes do afeto – de todas essas coisas dispensamos o autor, porque as trazemos conosco e com elas beneficiamos seu livro, caso ele mesmo nos beneficie em algo. FWS 52. Escrevendo com o pé Não escreve somente com a mão: O pé também dá sua contribuição. Firme, livre e valente ele vai Pelos campos e pela página. WS 131. Melhorar o pensamento. – Melhorar o estilo – significa melhorar o pensamento, e nada senão isso! – Quem não o admite imediatamente, também jamais se convencerá disso.

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FW 376. Nossos tempos lentos. – Assim sentem todos os artistas e seres de “obras”, o tipo materno de ser humano: sempre crêem, a cada período de sua vida – que é fechado por uma obra –, ter alcançado o objetivo dela, sempre encarariam pacientemente a morte, com o sentimento que diz: “Estamos maduros para isso.” Isto não é expressão de cansaço – mas antes de uma certa luminosidade e brandura outonal, que a obra mesma, o fato de ela haver amadurecido, deixa no seu autor. Então fica mais lento o andamento da vida, torna-se espesso como o mel – e chega a longas fermatas, à crença na longa fermata... JGB 290. Todo pensador profundo tem mais receio de ser compreendido de que ser mal compreendido. Neste caso talvez sofra sua vaidade; mas naquele sofrerá seu coração, sua simpatia, que sempre diz: “Oh, por que desejam passar também por essas coisas?” FW 381. A questão da compreensibilidade. – Não queremos apenar ser compreendidos ao escrever, mas igualmente não ser compreendidos. De forma nenhuma constitui objeção a um livro o fato de uma pessoa achá-lo incompreensível: talvez isso estivesse justamente na intenção do autor – ele não queria ser compreendido por “uma pessoa”. Todo espírito e gosto mais nobre, quando deseja comunicar-se, escolhe também os seus ouvintes; ao escolhê-los, traça de igual modo a sua barreira contra “os outros”. Todas as mais sutis leis de um estilo têm aí sua procedência: elas afastam, criam distância, proíbem “a entrada”, a compreensão, como disse – enquanto abrem os ouvidos àqueles que nos são aparentados pelo ouvido. E, falando cá entre nós, sobre o meu próprio caso – não desejo que minha ignorância e a vivacidade de meu temperamento impeçam que eu lhes seja compreensível, meus amigos: não a vivacidade, por mais que ela me obrigue a lidar velozmente com algo, se chego a lidar com ele. Pois encaro os problemas profundos como um banho frio – entrando rapidamente e saindo rapidamente. Que assim não possamos chegar à profundidade, descer o suficiente, é uma superstição dos que temem a água, dos inimigos da água fria; eles falam sem experiência. Oh! o frio intenso torna veloz! – E pergunto de passagem: uma coisa permanece de fato incompreendida e não conhecida por ser apenas em vôo tocada, avistada, relampejada? É preciso absolutamente ficar sobre ela? chocá-la como a um ovo? Diu noctuque incubando [incubando-a dia e noite], como falou Newton a si mesmo? Pelo menos existem verdades de particular timidez e melindre, que não podem ser apanhadas senão de repente – que é preciso surpreender ou deixar de lado... Por fim, minha brevidade tem ainda outro valor: dadas as questões que me ocupam, tenho de dizer muita coisa brevemente, para que seja ainda mais brevemente ouvida. Pois, sendo imoralista, deve-se prevenir a corrupção da inocência, quero dizer, dos asnos e solteironas de ambos os sexos, que nada têm da vida senão a própria inocência; mais até, meus escritos devem arrebatá-los, elevá-los, encorajá-los a serem virtuosos. Eu não saberia de nada mais jocoso neste mundo do que ver arrebatados velhos asnos e solteironas, quando agitados pelos doces sentimentos da virtude: e “isto eu vi” – assim falou Zaratustra. Isso quanto à brevidade; a coisa é pior no que toca à minha ignorância, da qual a mim mesmo não faço segredo. Há

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momentos em que dela me envergonho; é certo que também há momentos em que me envergonho dessa vergonha. Talvez todos nós, filósofos, estejamos atualmente mal colocados em relação ao saber: a ciência cresce, os mais eruditos entre nós estão quase a descobrir que sabem muito pouco. Mas seria ainda pior se fosse diferente – se soubéssemos demais; nossa tarefa é e continua sendo, antes de tudo, não nos confundirmos com outros. Nós somos algo diferente de eruditos: embora seja inevitável que, entre outras coisas, também sejamos eruditos. Temos outras necessidades, outro crescimento, outra digestão: precisamos de mais, também precisamos de menos. Não existe fórmula para o quanto um espírito necessita para a sua nutrição; mas, se tem o gosto orientado para a independência, para o rápido ir e vir, para andanças, talvez para aventuras, de que somente os mais velozes são capazes, então prefere viver livre e com pouco alimento, do que preso e empanturrado. Não é gordura, mas maior flexibilidade e força, aquilo que um bom dançarino requer da alimentação – e eu não saberia o que o espírito de um filósofo mais poderia desejar ser, senão um bom dançarino. Pois a dança é o seu ideal, também a sua arte, e afinal sua única devoção também, seu “culto divino”... [cf. MA 206] FWS 59. A pena rabisca A pena rabisca: que inferno! Estarei condenado a garatujar? – Então recorro audacioso ao tinteiro E escrevo sinuosos rios de tinta. Como tudo flui, tão largo e tão pleno! Como me sai bem tudo o que faço! É verdade que a escrita não é legível – Que importa? Quem lê o que escrevo, enfim? 4a. Ainda para uma ética da escrita: questões de excesso e prudência MA 195. Tal como os gregos. – Nos dias de hoje é um grande obstáculo para o conhecimento o fato de, graças a uma exacerbação do sentimento que já dura um século, as palavras terem se tornado vaporosas e infladas. O grau superior da cultura, que se coloca sob o domínio (se não sob a tirania) do conhecimento, tem necessidade de uma grande sobriedade do sentimento e forte concentração de palavras; nisso os gregos da época de Demóstenes nos precederam. O exagero caracteriza os textos modernos; e mesmo quando são escritos de maneira simples, as palavras que contêm são sentidas muito excentricamente. Reflexão severa, concisão, frieza, simplicidade deliberadamente levada ao extremo; em suma, restrição do sentimento e laconismo – só isso pode ajudar. – Aliás, esse modo frio de escrever e sentir é agora, por contraste, muito sedutor: e aí está um novo perigo, certamente. Pois o frio agudo é um estimulante tão bom quanto o calor elevado. [cf. MA 204, 343, VM 141, WS 106, 148]

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WS 148. O estilo grandioso e o que é superior. – Aprende-se mais rapidamente a escrever de modo grandioso do que a escrever de maneira leve e simples. As razões para isso se perdem no âmbito moral. WS 120. O estilo rebuscado. – O estilo bem achado é uma ofensa para o amigo do estilo rebuscado. VM 141. Marca de distinção. – Todos os poetas e escritores apaixonados pelo superlativo querem mais do que podem. MA 204. O escuro e o muito claro bem próximos. – Escritores que em geral não sabem dar clareza a suas idéias preferirão, em casos particulares, os termos e superlativos mais fortes, mais exagerados: o que produz um efeito semelhante à luz de archotes em emaranhados caminhos da floresta. FW 97. A loquacidade dos escritores. – Existe uma loquacidade da ira – freqüente em Lutero, assim como em Schopenhauer. Uma loquacidade devida a uma provisão demasiado grande de fórmulas conceituais, como sucede em Kant. Uma loquacidade pelo prazer em facetamentos sempre novos da mesma coisa: encontrada em Montaigne. Uma loquacidade de naturezas pérfidas: quem lê escritos atuais se lembrará de dois escritores desse tipo. Uma loquacidade por prazer com palavras e formas de linguagem boas: não é rara na prosa de Goethe. Uma loquacidade por íntimo deleite com o ruído e desordem das emoções: em Carlyle, por exemplo. MA 194. Os bufões da cultura moderna. – Os bufões das cortes medievais correspondem aos nossos folhetinistas; é o mesmo tipo de homens, semiracionais, espirituosos, exagerados, tolos, às vezes presentes tão-só para amenizar o pathos de um estado de espírito através de repentes e de tagarelice, e para abafar com seu alarido o toque de sino pesado e solene dos grandes eventos; outrora a serviço de príncipes e nobres, agora a serviço dos partidos (tanto que no espírito e na disciplina do partido sobrevive hoje uma boa parte da antiga submissão do povo no relacionamento com o príncipe). Mas toda a classe dos literatos modernos está muito próxima dos folhetinistas, são os “bufões da cultura moderna”, que julgamos mais suavemente, ao não tomá-los como inteiramente responsáveis. Tomar a atividade de escrever como uma profissão da vida inteira deveria razoavelmente ser considerado uma espécie de loucura. VM 114. A realidade seleta. – Assim como o bom prosador usa apenas palavras da linguagem corrente, mas de maneira nenhuma todas as palavras dela – é justamente assim que nasce o estilo seleto –, o bom escritor do futuro apresentará somente coisas reais, prescindindo totalmente dos assuntos fantásticos, supersticiosos, quase honestos, desbotados, nos quais os escritores de antes mostravam a sua força. Apenas realidade, mas de maneira nenhuma toda realidade! – e sim uma realidade seleta! WS 127. Contra os inovadores da linguagem. – Inovar ou arcaizar na linguagem, dar preferência ao raro e estranho, buscar a riqueza do vocabulário, em vez da restrição, é sempre um indício de gosto imaturo ou

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estragado. Uma nobre pobreza, mas uma liberdade magistral no interior da propriedade singela é o que distingue os artistas gregos do discurso: eles querem ter menos que o povo – pois esse é o mais rico, no antigo e no novo –, mas querem ter esse menos melhor. Podemos rapidamente enumerar seus arcaísmo e estranhezas, mas não tem fim a nossa admiração, quando sabemos enxergar a forma delicada e ligeira do seu trato com o que há de cotidiano e aparentemente gasto nas palavras e locuções. 4b. Escrita, moral, história: sobre literatura erudita, religiosa e de formação (Bildungsromans) WS 114. Literatura e moralidade explicando uma a outra. – Pode-se mostrar, com a literatura grega, que forças fizeram o espírito grego se desenvolver, como ele encetou caminhos diversos e o que o enfraqueceu. Tudo isso produz um quadro do que, no fundo, sucedeu também à moralidade grega e sucederá a toda moralidade: como primeiro foi coação, primeiro mostrou dureza, depois gradualmente se tornou branda, como finalmente houve prazer com determinadas ações, determinadas formas e convenções, e a partir disso uma tendência à prática e à posse delas exclusivamente: como o caminho se enche e transborda de competidores, como sobrevém a saciedade, novos objetos de luta e de ambição são buscados e objetos envelhecidos são chamados à vida, como o espetáculo se repete e os espectadores se cansam de olhar, pois então o círculo todo parece percorrido – e vem um repouso, uma última respiração: os riachos se perdem na areia. É o fim, ao menos um fim. FW 92. Prosa e poesia. – Observe-se que os grandes mestres da prosa foram quase sempre poetas também, seja publicamente ou apenas em segredo e “para íntimos”; e, de fato, apenas em vista da poesia se escreve boa prosa! Pois esta é uma ininterrupta e amável guerra com a poesia: todo o seu charme consiste em que a poesia é sempre evitada e contrariada; toda abstração quer ser expressa com voz zombeteira, digamos, como esperteza em relação a esta; toda secura e frieza deve impelir a suave deusa a um suave desespero; com freqüência há aproximações, conciliações do momento, e logo um súbito recuo e gargalhada; com freqüência é levantada a cortina e deixa-se entrar a luz crua, no preciso instante em que a deusa está fruindo a penumbra e as cores baças; com freqüência lhe é tirada a palavra da boca e cantada numa melodia que a faz cobrir os delicados ouvidos com as delicadas mãos – e assim há muitos e muitos prazeres nesta guerra, incluindo as derrotas, das quais os homens não poéticos, os chamados homens prosaicos, nada entendem: - eles escrevem e falam somente prosa ruim! A guerra é a mãe de todas as coisas boas, ela é também a mãe da boa prosa! – Houve, neste século, quatros homens bastante singulares e verdadeiramente poéticos que alcançaram mestria na prosa, para a qual o século não foi feito, aliás – por falta de poesia, como indiquei. Não considerando Goethe, justamente reivindicado pelo século que o produziu, vejo apenas Giacomo Leopardi, Prosper Mérimée, Ralph Waldo Emerson e Walter Savage Landor, o autor das Imaginary conversations, como dignos de serem chamados mestres da prosa.

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FW 366. Diante de um livro erudito. – Não somos daqueles que só em meio aos livros, estimulados por livros, vêm a ter pensamentos – é nosso hábito pensar ao ar livre, andando, saltando, subindo, dançando, preferivelmente em montes solitários ou próximo ao mar, onde mesmo as trilhas se tornam pensativas. Nossas primeiras perguntas, quanto ao valor de um livro, uma pessoa, uma composição musical, são: “É capaz de andar? Mais ainda, é capaz de dançar?”... Nós lemos pouco, mas por isso não lemos pior – oh, como rapidamente adivinhamos de que modo alguém chegou a seus pensamentos, se o fez sentado em frente ao tinteiro, com o estômago apertado, a cabeça curvada sobre o papel: oh, como também rapidamente acabamos seu livro! As vísceras contraídas se revelam, pode-se apostar, e igualmente o ar abafado, o teto do quarto, a estreiteza do quarto. – Estes foram agora meus sentimentos, quando fechei um honesto livro erudito, grato, muito grato, mas também aliviado... No livro de um erudito há quase sempre algo opressivo, oprimido: em algum lugar, vem à luz o “especialista”, seu zelo, sua gravidade, sua ira, sua sobrestimação do canto no qual fica e tece, sua corcunda – todo especialista tem sua corcunda. Um livro erudito sempre espelha igualmente uma alma entortada: todo ofício entorta. Veja-se novamente os amigos que se teve na juventude, depois que tomaram posse de sua ciência: ah, como sempre ocorre também o oposto! Ah, como eles mesmos ficam sempre tomados e possuídos por ela! Arraigados em seu canto, irreconhecíveis, de tão enrugados, sem liberdade, privados de seu equilíbrio, emagrecidos e em toda parte angulosos, apenas num ponto completamente redondos – ficamos impressionados e silenciosos, ao reencontrá-los assim. Todo ofício, mesmo tendo uma base de ouro, tem também sobre si um teto de chumbo, que pressiona e comprime a alma até que ela fique estranha e torta. Nada se pode fazer quanto a isso. Não se pense que é possível contornar esta deformação com alguma arte da educação. Toda espécie de mestria tem um alto preço neste mundo, onde tudo talvez saia muito caro; quem é senhor do seu mister paga o preço de ser também sua vítima. Mas vocês querem que isto seja diferente – “mais justo” [billiger], sobretudo mais cômodo – não é verdade, caros contemporâneos? Muito bem! Mas então vocês logo obtêm outra coisa, ou seja, em vez do artesão e mestre o literato, o hábil e “polidestro” literato, que certamente não tem corcunda – salvo aquela que ele faz antes vocês, como balconista do espírito e “portador” da cultura –, o literato que nada é propriamente, mas “representa” quase tudo, que faz o papel do conhecedor e o “substitui”, que em toda a modéstia também cuida de fazer-se pago, respeitado e festejado no lugar daquele. – Não, meus eruditos amigos! Eu os abençôo até mesmo por sua corcunda! E por desprezarem, como eu, os literatos e parasitas da cultura! E por não saberem mercadejar com o espírito! E terem opiniões que não se expressam em valor monetário! E por não representarem o que não são! Pelo fato de que sua única vontade é ser mestre de seu ofício, com respeito por toda espécie de mestria e competência e implacável rejeição de tudo o que é aparente, semigenuíno, enfeitado, virtuosístico, demagógico e histriônico in litteir er artibus [nas letras e artes] – de tudo aquilo que não possa apresentar-se ante vocês com absoluta probidade de disciplina e aprendizado! (Mesmo o gênio não leva a compensar tal deficiência, por mais que saiba induzir a ignorá-la: isso

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compreendemos ao observar de perto os nossos mais talentosos pintores e compositores – que, quase sem exceção, com astuciosa engenhosidade de maneiras, de expedientes, mesmo de princípios, sabem adquirir depois, artificialmente, a aparência desta probidade, desta solidez de educação e cultura, por certo que sem enganar a si mesmo, sem calar permanentemente sua própria má consciência. Pois, vocês sabem, todos os grandes artistas modernos sofrem de má consciência...) MA 196. Bons narradores, maus explicadores. – Nos bons narradores há frequentemente uma segurança e coerência psicológica admirável, na medida em que ela se mostra nos atos de seus personagens, num contraste francamente ridículo com a ineptidão do seu pensamento psicológico: de modo que sua cultura parece, num dado instante, excelente e elevada, e lamentavelmente baixa no instante seguinte. Acontece com muita freqüência que eles expliquem seus heróis e as ações destes de maneira visivelmente errada – quanto a isso não há dúvida, embora pareça improvável. Talvez o maior dos pianistas tenha refletido pouco sobre as condições técnicas e a especial virtude, falha, utilidade e educabilidade de cada dedo (ética dactílica), cometendo erros grosseiros ao falar dessas coisas. MA 343. O narrador. – Quem narra alguma coisa, logo deixa perceber se narra porque o fato lhe interessa ou por querer despertar o interesse mediante a narrativa. Neste caso ele exagera, usa superlativos e faz outras coisas assim. Então ele geralmente não narra tão bem, porque pensa mais em si do que no assunto. [cf. sessão anterior, “Questão do excesso e da prudência”] VM 32. A suposta “realidade real”. – Ao retratar as diferentes profissões – por exemplo, as de general, tecelão, marinheiro –, o escritor faz como se conhecesse profundamente essas coisas e fosse alguém que sabe, mais ainda, na exposição dos atos e destinos humanos ele age como se tivesse presenciado o tecer da trama do mundo: nisso ele é um enganador. Engana aqueles que não sabem – por isso tem êxito: esses lhe elogiam o autêntico e profundo saber, e enfim o induzem à ilusão de que realmente sabe as coisas tão bem quanto aqueles que as conhecem e fazem, até mesmo como a grande aranha tecedora do mundo. Por fim, o enganador se torna sincero e acredita na sua veracidade. Sim, os homens sensíveis chegam a lhe dizer claramente que ele tem a superior verdade e veracidade – pois estão momentaneamente cansados da realidade e tomam o sonho poético como uma benéfica distração e noite para a cabeça e o coração. O que este sonho lhes mostra parece ter mais valor então, porque, como dissemos, eles o sentem como algo mais benéfico: e os homens sempre acharam que o que parece mais valioso é o mais verdadeiro, o mais real. Os escritores, que são cônscios desse poder, procuram intencionalmente difamar o que habitualmente se chama realidade e convertê-la no incerto, aparente, inautêntico, pleno de pecado, engano e sofrimento; utilizam todas as dúvidas quanto aos limites do conhecimento, todos os exageros do ceticismo, para estender sobre as coisas os pregueados véus da incerteza: para que então, após esse escurecimento, seus sortilégios e a magia que

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exercem sejam entendidos, muito irrefletidamente, como caminho para a “verdadeira verdade”, para a “realidade real”. VM 250. Motivo de aversão. – Tornamo-nos hostis a vários artistas e escritores, não porque finalmente notamos que eles nos enganaram, mas porque não julgaram necessário usar meios mais sutis para nos prender. WS 79. Palavras e escritos dos religiosos. – Quando o estilo e a expressão geral do sacerdote, falando e escrevendo, não anunciam já o homem religioso, então nem é preciso levar a sério suas opiniões sobre religião e em favor dela. Elas se tornaram sem força para o possuidor mesmo, quando ele, como revela seu estilo, tem ironia, presunção, malícia, ódio e todas as reviravoltas do ânimo, exatamente como o mais irreligioso dos homens; – e tanto menos fortes serão elas para seus ouvintes e leitores! Em suma, ele contribuirá para torná-los menos religiosos. WS 100. Poder saborear também o contrário. – Para fruir uma obra do passado como seus contemporâneos a percebiam, é preciso ter no paladar o gosto então vigente, em relação ao qual ela se destacou.

5. Escrita, experimentação, alteridade: superação de si mesmo, vitória (em oposição à identidade e à confissão)39 VM 163. Todo começo é um perigo. – O poeta tem a escolha: ou fazer subir o sentimento de um degrau ao outro, finalmente erguendo-o bastante alto, ou experimentar um ataque de surpresa, puxando já de início com toda a força a corda do sino. As duas opções têm seus perigos: no primeiro caso, o tédio talvez afugente o espectador: no segundo, o medo. JGB 161. Os poetas não têm pudor em relação às próprias experiências: eles as exploram. VM 166. Querer vencer. – Um artista que, em tudo o que empreende, vai além de suas forças, acaba por arrastar a multidão, com o espetáculo da poderosa luta que proporciona: pois nem sempre o êxito se acha apenas na vitória; às vezes já está no querer vencer. VM 152. Escrever e querer vencer. – Escrever deveria sempre indicar uma vitória, uma superação de si mesmo, que deve ser comunicada para benefício dos outros; mas há autores dispépticos, que escrevem apenas quando não conseguem digerir algo, e mesmo quando esse algo lhes ficou nos dentes: involuntariamente procuram aborrecer também o leitor com seu desgosto, e assim exercer algum poder sobre ele, isto é: também eles querem triunfar, mas sobre os outros.

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Cf. NIETZSCHE, 2009, “De la superación de si mismo”.

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WS 344. Como é preciso vencer. - Não se deve querer vencer, quando se tem somente a perspectiva de superar o adversário por um fio de cabelo. A boa vitória precisa deixar o vencido com disposição alegre, ela precisa ter algo de divino, que evita a humilhação. FW 93. Mas por que você escreve? – A: Eu não sou daqueles que pensam tendo na mão a pena molhada; tampouco daqueles que diante do tinteiro aberto se abandonam as suas paixões, sentados na cadeira e olhando fixamente para o papel. Eu me irrito ou me envergonho do ato de escrever; escrever é para mim uma necessidade imperiosa – falar disso, mesmo por imagens, é algo que me desgosta. B: Mas por que você escreve então? A: Cá entre nós, meu caro, eu não descobri ainda outra maneira de me livrar de meus pensamentos. B: E por que você quer se livrar deles? A: Por que eu quero? E eu quero? Eu preciso. – B: Basta! Basta!

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IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente a liberdade. Passar dos fantasmas da fé para os espectros da razão é somente ser mudado de cela. A arte, se nos liberta dos manipansos assentes e abstratos, também nos liberta das ideias generosas e das preocupações sociais – manipansos também. Encontrar a personalidade na perda dela a mesma fé abona esse sentido de destino. Fernando Pessoa, Livro do desassossego, 34.

Nosso trabalho, como se procurou entendê-lo e apresentá-lo, se deu a tarefa de reintroduzir alguns temas nietzscheanos no seu contexto histórico-filosófico, trazendo novas possibilidades de leituras sobre a própria obra do filósofo alemão, principalmente no que concerne a alguns temas do pensamento educacional contemporâneo. Essa tarefa, por ora, se traduziu na cartografia de alguns aforismos e passagens que, muito embora ainda desorganizadas e sem uma minuciosa interpretação, cumprem com seu papel: esboçar uma espécie de ética da auto-educação ou educação por si próprio – e para aí, então, perguntar: no que a escrita contribuiria para a educação, ou mesmo, para a auto-educação em Nietzsche? Pergunta que talvez sempre tenha estado sob a espreita de outra: é possível uma educação para a emancipação, para a autonomia, para a liberdade? De qual liberdade está se falando? Muitos trabalhos talvez já tenham se desdobrado sobre o problema da educação e da liberdade – em diferentes tempos, por diferentes ideologias, com diferentes abordagens. Contudo, o tema está longe de ser definido e, acima de tudo, cremos ainda que esse é um problema e ser posto e reposto continuamente. Por que, o que mais corresponderia a liberdade do que essa inquietação mesma com respeito aos nossos ideias, nossos valores, nossas práticas, enfim, nossa própria educação? Tal questionamento não só põe em questão o “ideal” de sujeito como questiona se também haveria a possibilidade de que nos tornemos a imagem que fazemos de nós mesmos.

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Iniciamos estas breves notas a partir de uma questão que, de antemão, não pretendíamos responder. Nossas perguntas nos serviram como uma provocação, como uma profanação do que hoje entendemos como educação. Não pretendemos, todavia, fazer de nossas abordagens um motivo de engajamento e militância, ou mesmo um estandarte ideológico. Essas interrogações, tais como as usufruímos, talvez pairassem ora insinuante ora forçosamente constrangedoras, como uma ameaça e uma certeza, da impotência e da exigência da educação para a sobrevivência. É a partir desta questão que tentamos aproximar-nos das diferentes práticas e iniciativas, dos projetos e discursos que versam acerca da educação contemporânea. De fato, não nos detivemos, minuciosamente, sobre os aforismos selecionados. Uma primeira razão para isso se deve à necessidade de traçar e observar um panorama o mais amplo e em perspectiva possível de um só furo da agulha na história: Nietzsche, a escrita e a educação. Um primeiro contato com o objeto. Se pudermos dizer, ainda, para nós, intacto. Nosso trabalho se apresentou como uma aproximação a um problema de pesquisa que surgiria no contato com essa fonte, esses documentos, com os recortes e com a construção especulativa de suas relações e contextos histórico filosóficos que emergissem da leitura e anotação. Uma outra razão pode ser a simples questão metodológico de fazer seu caminho de pesquisa em partes, com seu devido tempo de fruição e análise. Contudo, algumas considerações podem ser retiradas deste nosso primeiro empreendimento. Desta feita, diferentemente de uma doutrina teórica e técnica ou mesmo uma pedagogia do exercício escritural, a partir dos diversos usos que fez da escrita, das funções a ela atribuídas, dos deslocamentos e dos estilos que praticou com e sobre ela, opondo-se mesmo a um projeto formativo ou uma literatura para a formação, queremos crer que nos foi possível vislumbrar, de modo geral, uma ética da escrita na obra nietzschiana. A escrita em Nietzsche estaria vinculada mais a um jogo ético instável, arriscado e sem uma hierarquia de valores fixos, sem metas formativas muito explícitas ou definitivas. Diversamente de uma viagem com um destino pré-determinado e até mesmo esperado, imutável, a escrita estaria disposta no cerne de um complexo e errante processo de constituição ética de si mesmo. Entendendo ética como o campo do possível tanto para a liberdade quanto para o poder, bem como um exercício de si sobre si (Foucault, 2006a), tal ética da escrita em Nietzsche reconfigurou as hierarquias tradicionais das práticas pedagógicas modernas,

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operando múltiplos deslocamentos nas relações e funções desempenhadas, por exemplo, na relação entre mestre e discípulo ou na relação entre sujeito, escrita e verdade. Com efeito, compartilhando da hipótese foucaultiana, cremos que Nietzsche de fato realocou uma série de preceitos e práticas da antiguidade filosófica em sua própria filosofia – por exemplo, o incessante exercício escritural e sua vida errante permeada por caminhadas. Não obstante, Nietzsche também abriu novos horizontes ao processo de formação e autogoverno da antiguidade, ao introduzir entre suas práticas a investigação histórico-genealógica que, segundo ele, concedia ao investigador uma felicidade de “não abrigar em si ‘uma alma imortal’, mas muitas almas mortais” (Nietzsche, 2008b, p.22). É nesse sentido também que o filósofo alemão dialoga e destoa de seus contemporâneos, não só destituindo a credibilidade da função de educador como salvador, mas indicando, ao invés de um projeto pedagógico definitivo, um processo errático de formação. Partindo de um instinto que nele quer a vida e por isso conhece, tal tarefa de tornar-se inclui exatamente todos os desvios que lhe são possíveis apresentar. Da soma desses desvios e fragmentos, os remédios para seus estados de fraqueza e sofrimento. Processo de educação por si mesmo ou de autoeducação pelo qual não se buscaria uma identidade previamente determinada, um poder e controle total sobre si e seu devir – mas, sim, um exercício contínuo de alteridade, propiciada pela genealogia e pelo ascetismo, principalmente escritural, cujo fim talvez fosse o cultivo de uma vitalidade, de uma vontade de saúde e de vida, processo de superar a si mesmo, ir além do homem, tornar-se o que se pode ser. A partir dessas primeiras conclusões, nosso problema de pesquisa poderia se concentrar em quais são as práticas pelas quais um tipo de exercício de pensamento se faz predominante – a ver, o exercício de pensamento das racionalidades pedagógicas. Tais racionalidades de cunho pedagógico, no seu complexo enredo ético-moral, procuram estabelecer uma norma de conduta para o indivíduo, por uma série de pressuposições científicas e de senso comum (das aspirações a uma vida melhor por qualquer que seja o meio às bases neuroquímicas do cérebro), ao mesmo tempo em que exploram, nessa conduta, o valor da autoeducação como salvação – estar continuamente atento a si mesmo, conhecendo-se, aprimorando-se, empreendendo em si mesmo todas as práticas que nos são oferecidas como o único meio de alcançar uma vida “descente” e “feliz” (termos tão universais quanto vagos).

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Procuraremos, a seguir, como um posfácio ao nosso trabalho, fazer algumas elucubrações sobre essa racionalidade pedagógica – e apontar certas suspeitas, cuidados e perdições que deveremos encarar.

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A contemporaneidade pedagógica, tal como a apreendemos em seus discursos e práticas, defende, quase em uníssono, uma neutralidade a-ideológica das práticas educacionais. Essas, por sua vez, são entendidas como um processo evolutivo que se estende por toda a vida. No entanto, pressente-se e até se assume uma finalidade muito clara nos valores explícitos e implícitos dos diferentes discursos científico-pedagógicos: uma educação para a formação de um ser humano – formação esta para liberdade, para a emancipação do ser humano. Nessa ideia de formação, como procuraremos ver, datada de um idealismo/romantismo alemão, atribui-se um caráter formativo à experiência humana, através de um movimento em direção a uma meta, uma forma. Forma esta determinada por um conhecimento sobre a natureza humana. Forma esta desenhada, projetada e praticada conforme a crença na excelência moral dessa natureza humana. Por meio de uma esperada capacidade de conhecimento e de uma insolente virtude de determinação de uma condição, idealiza-se um modo de vida. Cremos que nesse esboço de um modo de pensamento pedagógico, dessa caricatura de uma visão da pedagogia iluminista e romântica, Kant mesmo teria se anteposto diante dessas pretensões e teria esclarecido que a posição crítica de todo pensamento é determinar até onde o conhecimento é capaz de conhecer40 e a devida coragem para se delimitar isso. Posto isso, a pergunta a qual propomos poderia, enfim, se escrever desta maneira: há – é possível – uma educação para emancipação do ser humano? – O que se diz quando se diz “educação para a emancipação”? O que se faz em nome de? Do que o ser humano se emancipa? – Estas perguntas, demasiado gerais, porém, expõem questionamentos pertinentes às práticas educativas atuais. Expõem, de fato, um questionamento “intrometido” a um dos conceitos mais caros à moderna civilização ocidental – o conceito de liberdade. 40

Cf. KANT, I. O que é o esclarecimento?. Sobre este assunto, demasiado complexo e pouco conveniente para ser tratado aqui, também cf. FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Crítica e Aufklärung. (Conferência proferida em 27 de maio de 1978). “Qu'est-ce que la critique?” Critique et Aufklärung. Bulletin de la Société française de philosophie, Vol. 82, nº 2, pp. 35 - 63, avr/juin 1990.

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Após estas advertências, deixamos que esta primeira pergunta nos derive a outras41: o que pode ser uma educação – enquanto uma preparação, enquanto um cuidado – que não visaria nem uma origem ou um destino, que não visaria nem mesmo uma salvação (um homem de natureza livre, uma vida liberta)? Como pensar e quiçá praticar uma educação, uma preparação, um cuidado que, em última instância, não partindo de um princípio a priori, e prescindindo de um projeto formativo, se voltaria para o que, se fundamentaria em que? Esses questionamentos não nos ensejam uma projeção racional de como realmente pode ser uma educação dessas. Contudo, através desses questionamentos, queremos analisar como racionalidades e práticas educativas escolhem, constroem e projetam, arbitraria e negligentemente, noções de homem pelas quais produzem processos formativos, enquadram populações em instituições formativas, determinam fins políticos e morais para a vida. Apesar de parecerem questões respondidas anteriormente por diversos especialistas e vieses ideológicos, o que nos interessaria nessa pergunta sobre a educação como emancipação é sua força para abalar um apelo teleológico pedagógico. Com isso, queremos designar uma espécie de pulsão, uma espécie de exigência da educação a qual, abalada no seu pressuposto teleológico, não estaria subordinada, a priori, a nada. Não estaria subordinada a um deus, uma transcendentalidade, conceito/pulsão desde há muito questionado, problematizado. Não estaria subordinada a uma definição de homem, à ideia de uma vida humana social e biologicamente entendida, forma esta cooptada pelo humanismo o qual, ao longo de uma história recente, alimentou práticas deveras antilibertárias42. Uma exigência da educação que 41

Menos radicais e mais pontuais, certamente, outras perguntas pertinentes poderiam ser as de Amélie Oksenberg Rorty (1998), em seu ensaio intitulado The Ruling History of Education: “Discussões fecundas e responsáveis da política educativa remetem inevitavelmente para questões filosóficas mais amplas, que as sugerem e enquadram: essas questões são articuladas e examinadas de maneira mais precisa na teoria moral e política, na epistemologia e na filosofia da mente. Quais são as finalidades próprias da educação? (Preservar a harmonia da vida cívica? Salvação individual? Criatividade artística? Progresso científico? Capacitar indivíduos para que façam escolhas sábias? Preparar cidadãos para entrar numa força de trabalho produtiva?). Quem deve deter a responsabilidade primordial de formular a política educativa? (Filósofos, autoridades religiosas, governantes, uma elite científica, psicólogos, pais ou autarquias locais?). Quem deve ser educado? (Todos por igual? Cada um segundo o seu potencial? Cada um segundo as suas necessidades?). Como é que a estrutura do conhecimento afecta a estruturação e a sucessão das aprendizagens? (Será que é a experiência prática, ou a matemática, ou a história, que deve fornecer o modelo de aprendizagem?). Que interesses devem guiar a escolha de um currículo? (A obtenção de uma vantagem competitiva no mercado econômico internacional? A representatividade religiosa, política ou étnica? A formação de uma sensibilidade cosmopolita?). Como devem as dimensões intelectual, espiritual, cívica, moral, artística, psicológica e técnica da educação estarem relacionadas entre si?” (p. 2) 42 Sobre este assunto, podemos recorrer às recentes investidas ocidentais “para libertar povos” sob ditaduras, ao passo que eram antes, estas mesmas nações ocidentais, que promoviam e financiavam estes governos totalitários. Não obstante, num viés contrário, na defesa de uma violência com um fim racional,

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não estaria fundamentada nem na necessidade de uma razão e finalidade únicas (homem racional ocidental, liberdade do indivíduo, etc.), nem numa técnica perfeita (disciplinadora, construtivista, autoformadora, etc.), nem na crença em um estado, numa amanhã, enfim, “livre”. Todavia, como não cair num relativismo educacional? Como não cair num niilismo pedagógico?

*** (...) Mas bem que ele quer ver e ter os olhos abertos para tudo o que propriamente se passa no mundo; por isso não pode prender seu coração com demasiada firmeza a nada de singular; tem de haver nele próprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudança e na transitoriedade. (...) Nietzsche, Humano, demasiado humano, 638. (...) [a] atitude crítica não impede (...) que a crítica ponha também (...) essa questão: o que o uso da razão, qual uso da razão pode trazer efeitos quanto aos abusos do exercício de poder e, por conseqüência, ao destino concreto da liberdade? Michel Foucault, O que é crítica?

Destarte, tampouco nos interessou a perspectiva marxista ou a perspectiva neoliberalista como paradigmas de uma situação geral da educação. A nosso ver, ambas as tendências político-econômicas ensejam as mesmas ambições pedagógicas: educar o ser humano segundo uma definição de sua natureza, formando-o para um tipo específico de sociedade, de “futuro”. Como disse Rorty, todos os filósofos, todas as filosofias, mesmo nãointencionalmente, se pretenderam pedagógicas, aspiraram “corrigir” o ser humano. Este tipo de pensamento acerca da educação, de uma racionalidade pedagógica que nos torne algo melhor do que somos, essa projeção de um outro homem segundo a imagem de um homem ideal, diferente do que a autora afirma ser uma tradição filosófica de

o filósofo Maurice Merleau-Ponty (1968) faz uma contundente afirmação em seu livro Humanismo e Terror: “A revolução assume e dirige uma violência que a sociedade burguesa tolera no desemprego e na guerra e disfarça sob o nome da fatalidade. Mas todas as revoluções reunidas não derramaram mais sangue que os impérios. Só há violências e a violência revolucionária deve ser preferida porque ela tem um futuro de humanismo”.

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governantes43, essa “nova” tradição filosófica, tradição essencialmente iluminista, cremos ser oriunda de toda essa problemática em torno da Bildung, da formação geral, formação universal, ao mesmo tempo de uma formação individual, uma formação pessoal, não obstante, uniforme, apoiada na idéia de um homem essencialmente livre, de escolha e com uma capacidade, uma aptidão, um conhecimento racional capaz de organizar, projetar, calcular e deliberar os melhores valores morais, as melhores ações políticas. A noção de formação da Bildung é de que a vida transcorre num processo evolutivo e progressista, na alcunha da melhora da vida do indivíduo. Intrigantemente, cremos que é desta verve pedagógica que ambas as di ou tricotomias discursivas – capitalista, marxista, totalitária – alimentam suas ambições de formação social para a autonomia do indivíduo, para seu engajamento de maneira voluntária a uma forma de vida, uma concepção de homem e de mundo, a fim de que seja possível o governo de si e dos outros por discursos e práticas sociais constituídas dentro de um regime de verdade, dentro de um sistema de valores aceito por um modo de vida vigente, num dispositivo técnico-cultural dentro de um grupo político-social ou mesmo uma nação. Nesse sentido, nossos primeiros questionamentos sobre as práticas e saberes pedagógicos que emergiam no século XVIII e XIX, sobre a possibilidade e a finalidade de uma educação para a autonomia e a emancipação, nos foram – e serão ainda – úteis para pensar de que forma também é possível, longe de qualquer acosso civilizatório ou evolucionista, longe de qualquer projeto completo ou por se fazer, evitando qualquer essência idealista, pensar e praticar uma educação a partir de uma ética, quiçá, da liberdade. Porquanto, digamos então que foi esta hipotética ausência de finalidades últimas para a educação que talvez nos aguilhoou o pensamento e nos fez estranhar e pensar as práticas educativas coevas. Vislumbrar a aceitação da educação nos moldes disciplinares modernos desde o ocidente ao oriente, por fascistas e capitalistas, comunistas e religiosos é estranhar essa aceitação – talvez permissiva – de algo tão arbitrário quanto necessário. A educação, entendida desde o século XVIII por Kant como algo indispensável, não necessariamente precisaria ser pensada e fundamentada por ciências absolutas do conhecimento sobre o homem e aplicada por meio de projetos tecnocráticos de uma eficácia delirante. 43

“(...) daqueles que se presume preservarem e transmitirem — ou redirecionarem e transformarem — a cultura da sociedade, o seu conhecimento e os seus valores” (RORTY, 1998, p. 1), com o intuito de que fosse o governante o único instruído para perpetuar e regular uma cultura ou um modo de vida.

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Com esse pensamento estrangeiro, errante, procuramos trazer outro olhar, talvez ainda incerto, mas vital, acerca de possíveis rumos para a investigação e a prática educativas contemporâneas.

***

Bem pode ser que [tudo] isso aconteça às vezes ao andarilho; mas então vêm, como recompensa, as deliciosas manhãs de outras regiões e dias, em que já no alvorecer da luz ele vê, na névoa da montanha, os enxames das musas passarem dançando perto de si, em que mais tarde, quando ele tranqüilo, no equilíbrio da alma de antes do meio-dia, passeia entre árvores, lhe são atiradas de suas frondes e dos recessos da folhagem somente coisas boas e claras, os presentes de todos aqueles espíritos livres, que na montanha, floresta e solidão estão em casa e que, iguais a ele, em sua maneira ora gaiata, ora meditativa, são andarilhos e filósofos. Nietzsche, Humano, demasiado humano, 638.

Assim, lançamo-nos novamente à pergunta: será possível – existe a possibilidade de uma educação para a liberdade, para a emancipação? Emancipação de que? De algum estado de consciência? De alguma manipulação governamental ou econômica? Não se vê que a sociedade que se produz é fruto de nossos processos educativos? Se somos livres, como nos tornamos livres? Livres para fazer o que? Contradições inveteradas. Alastremos, então, a pergunta nietzscheana, que escancara a dimensão ética do conhecimento e da verdade: até que ponto a verdade suporta sua incorporação? (NIETZSCHE, 2007: 110) 44. Ao assumirmos, ao incorporarmos uma verdade, o que ela

44

Cf. NIETZSCHE, 2007, aforismo 110: “(...) Pouco a pouco encheu-se o cérebro humano de tais juízos e convicções, surgiu nesse emaranhado fermentação, combate e apetite de potência. Não somente utilidade e prazer, mas toda espécie de impulsos tomava seu partido no combate pelas ‘verdades’; o combate intelectual tornou-se ocupação, estímulo, vocação, dever, dignidade –: o conhecer e o esforço em direção ao verdadeiro acabaram por entrar, como uma necessidade, na ordem das outras necessidades. Desde então não somente a crença e a convicção, mas também o exame, a negação, a desconfiança, a contradição, eram uma potência, todos os ‘maus’ instintos foram subordinados ao conhecimento e postos a seu serviço e adquiriram o esplendor do permitido, honrado, útil e, por último, o olho e a inocência do bom. O conhecimento tornou-se, pois, um pedaço da própria vida e como vida uma potência em constante crescimento; até que, enfim, o conhecimento e aqueles antiqüíssimos erros fundamentais entraram em choque, ambos como vida, ambos como potência, ambos no mesmo homem. O pensador: este é agora o ser em que o impulso à verdade e aqueles erros conservadores da vida combatem seu primeiro combate, depois que o impulso à verdade se demonstrou como uma potência conservadora da vida. Em proporção com a importância desse combate, tudo o mais é indiferente: a pergunta última pela condição da vida é

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nos faz fazer e dizer? Ao que ou a quem servimos quando de algo fazemos nossa verdade? Será que ao incorporarmos a verdade, ela mesma não se vê na contradição ou na sua impossibilidade entre seus desígnios e sua prática? A verdade da liberdade resistirá a sua incorporação? Será possível “sermos” livres? A questão talvez não seja chutar cachorro morto, mas nos livrar-nos de vez de certos hábitos do pensamento e da ação. Talvez a evidência e o esclarecimento não sejam mais do que névoa, musas e folhagens de outras regiões e dias. E a filosofia, a prática filosófica de uma ética da liberdade, mais do que ensinar e aprender, mais do que corrigir a miopia do passado e do instante, abdicando da performatividade do futuro e da clareza, do “meio-dia” da convicção e do fascínio, se faça sem destino, meditando os acontecimentos e ocupandose com sua loucura de inventar caminhos e mundos. Errando meticulosamente.

***

Ingênua e quiçá corajosamente, fizemo-nos pensar, com a força de outra imagem, o movimento da educação ao longo de sua história, cheia de caminhos e desvios, ao longo não tão de seus fracassos, como de suas errâncias. Com este sentido de um processo educativo, buscamos passar por fora do regime de inteligibilidade da razão projetista, do conhecimento sob a crença de uma eficácia pragmática e universal. Usando desse recurso de imagem em movimento – demasiado retórico, admitamos –, a errância nos permitiu destituir-nos do desejo de pensarmos num projeto ideal, definitivo, com um destino talvez ainda mais glorioso, ainda mais semelhante à nossa imaginação desse futuro. A errância como um gesto, uma disposição – diferente de uma forma, uma tékhné – de transtornar a viagem, de transtornar o processo pedagógico. Assumir os desvios, coincidências e delírios como artifício de um método caótico e volitivo. Errar não significa estar à deriva, como um estulto, a mercê dos ventos e das marés. Não significa improviso; tampouco recorrer a um currículo pré-definido, estático. Errar, nesse sentido, não é tão somente estar em contínua formação, formação por toda a vida, uma etapa após a outra, num constructo ad infinitum evolutivo. Não é como maneira de

feita aqui, e aqui é feito o primeiro ensaio, com o experimento de responder a essa pergunta. Até que ponto a verdade suporta sua incorporação? – eis a pergunta, eis o experimento”.

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se vincular indefinidamente a uma viagem sem fim nem começo, mas de exatamente transtornar o fim e o começo. Errar é reinventar sua chegada, acolher reinícios. Em última instância, não há evolução, mas justaposições, transvalorações. É pensar para além de um processo formativo racionalmente encadeado, desapegar-se da lógica inevitável de uma forma projetada ou mesmo desligar-se da associação da vida humana – de seus desejos, de seus pensamentos – a uma explicação, a uma forma. Esta, se tal como um sonho delirante, uma ilusão verdadeira que alimenta demo-nos como uma medida insensata, oportunamente prudente para o instante, porém convicta de seu nonsense (ou melhor, de sua insignificância), pode permitir-nos, para além de uma força de verdade e aquém de uma renúncia de si, entreolharmos, com frieza e curiosidade, a proliferação volitiva de numerosas formas de vida humana: fonte pedagógica vital para a sobrevivência da própria humanidade. Porquanto, encontrar aquilo que nos vitaliza não é questão de especialidade, de competência ou diploma, até porque as questões quando o são, são vitais e, porque o são, pervertem a sensibilidade escolar que nos quer a todos participantes “de uma sociedade-escola em que o governo não é mais do que a autoridade dos melhores da turma”45. Isto, em qualquer discursividade racional moderna. Os “melhores da turma” constituem, então, uma moral redentora, uma moral apologética de um método ou processo formativo eficaz, através do saber e da técnica, para tornar o ser humano livre. E, consequentemente, constituem também uma moral – um medo, um embaraço – frente à experimentação e à errância pedagógicas46. Cheguemos a pensar, enfim, com Kafka, que talvez toda precaução, todo cuidado para com a construção de si mesmo, exige precisamente um risco de vida. Para conhecer-se talvez seja preciso perder-se. Para formar-se talvez seja preciso errar, sem um fim último – a não ser, tornar-se o que se é. E, apesar de não nos salvarmos nunca, talvez não seja possível viver sem uma tal meta, uma tal esperança. – Mas o que importa tudo isto?

O que importa, então? O que pode ensinar-nos a obra de arte acerca das relações humanas em geral? Que espécie de exigência nela se anuncia, de modo que não possa ser captada por nenhuma das formas morais em curso, sem tornar culpado quem a ignora, nem inocente 45

Cf. GODOY, 2011. Nascidos dos segredos da manhã, [andarilhos e filósofos] meditam sobre como pode o dia, entre a décima e décima segunda badalada, ter um rosto tão puro, translúcido, transfiguradamente sereno: – buscam a filosofia de antes do meio-dia. (NIETZSCHE, 2006b, 638.) 46

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quem pensa realizá-la, livrando-nos de todas as injunções do “Eu devo”, de todas as pretensões do “Eu quero”, para nos deixar livres? Entretanto, nem livres, nem privados de liberdade, como se ela nos atraísse a um ponto onde, esgotado o ar do possível, oferece-se a relação nua que não é um poder, que precede até mesmo a toda possibilidade de relação. (BLANCHOT, 2005)

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