Nietzsche, Foucault e o sentido da genealogia

June 3, 2017 | Autor: Thiago Mota | Categoria: Archaeology, Genealogy, Friedrich Nietzsche, Michel Foucault, Interpretation
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NIETZSCHE, FOUCAULT E O SENTIDO DA GENEALOGIA Thiago Mota A associação entre os “personagens conceituais” em questão é conhecida em todos os idiomas falados na academia moderna em todo o mundo. Foucault declarava filiação a Nietzsche – aliás, recusando a ascendência de Heidegger1. Scarlett Marton dizia que Foucault chegava a constituir uma espécie de modelo de leitura de Nietzsche2, o da “caixa de ferramentas”, criticando Foucault, como ocorrera na França, por sua apropriação pouco “rigorosa”, pouco “exegética” de Nietzsche. A verdade é que nas mãos de Foucault o martelo de Nietzsche parece funcionar muito bem, se sofisticar, adquirir instrumentos mais completos, mais complexos. Há certa atmosfera nietzschiana por toda parte em Foucault, como se ele precisasse do “pai Nietzsche” como de um profeta do próprio foucaldismo. Nietzschiano sim, exegeta não. Eu não gostaria, portanto, de entrar na discussão acerca do “acerto” da leitura foucaldiana de Nietzsche, de se Foucault leu Nietzsche acertadamente ou não, mas gostaria de insistir em determinado Nietzsche que vem à tona em alguns textos de que Foucault. Se este seria este o “Nietzsche certo”, também isso não me importa. O que me parece mais interessante é que o que Focault diz de Nietzsche, para dele se apropriar em vários momentos, em diferentes usos, diz-nos muito hoje em dia ainda acerca do que é fazer filosofia, ou simplesmente pensar – esta tarefa que a maioria de nós se julga capaz de realizar ao ingressar em uma formação filosófica – pensar acerca

do

modo como,

enquanto “filósofos profissionais”,

nos engajamos

inevitavelmente naquilo mesmo que fazemos e no mundo em que vivemos. Procedimento reflexivo, pensar a questão do engajamento a partir de Nietzsche e 

Trabalho apresentado na mesa redonda “Genealogia, desconstrução e poder”, realizada no II Encontro Nietzsche-Schopenhauer: Gênese e Significado da Genealogia, promovido pelo Apoena – Grupo de Estudos Nietzsche-Schopenahuer, pela UFC e pela UECE, na Livraria Cultura. Fortaleza; 2010. Artigo publicado in: ARRUDA, José; CARVALHO, Ruy de; COSTA, Gustavo (orgs.). Nietzsche Schopenhauer: Gênese e significado da genealogia. Fortaleza: Ed. UECE, 2012, p. 115-136.  Doutorando em Filosofia pela UFC. E-mail: [email protected]. 1 Quanto a isso, Veyne, numa nota de rodapé, dá a boa chave de leitura: “Foucault disse o quanto Heidegger contou para ele e evocou as suas leituras do autor em DE, IV, p. 703; mas, na minha modesta opinião, de Heidegger não terá lido nada além de Vom Wesen der Wahrheit e o grande livro sobre Nietzsche – que importou para ele, já que esse livro teve como efeito paradoxal torná-lo nietzschiano e não heideggeriano.”. VEYNE, Paul. Foucault: o pensamento, a pessoa. Trad. L. Lima. Lisboa: Texto & Grafia, 2009, p. 9. 2 Cf. MARTON, Scarlett. A terceira margem da interpretação. In: Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 3.ed. São Paulo: Discurso Editorial, Ijuí: Editora Unijuí, 2009.

2 Foucault: isso daria um tema de tese. Sem grandes pretensões, vou reconstruir um pouco do Nietzsche que Foucault nos oferece e isso para chegar a certa idéia do intelectual, engajado, queira ou não, nas práticas sociais. Tentarei, portanto, tomar consciência de algo que está implicado no fato de que nos engajamos, nós mesmos, hoje, enquanto agentes nômades, desestabilizados, multifacetados que somos, queiramos ou não. O percurso da exposição é o seguinte: (1) Interpretação, poder e perspectivas, que trata de Nietzsche e Marx como instauradores do que Foucault chama de hermenêutica moderna, na medida em que para eles interpretar é uma tarefa constitutivamente infinita; (2) A suposição de base arqueológica da genealogia, em que se defende a tese de que não há ruptura, mas continuidade entre o Foucault arqueólogo e o Foucault genealogista, pois o ponto crucial da arqueologia está na inclusão do poder entre as condições efetivas do conhecimento; e, finalmente, (3) Caracterização da genealogia, onde tento uma caracterização geral do que Foucault, partindo de Nietzsche, entende por método genealógico, que como veremos é mais que uma metodologia, uma tática de ação social e de intervenção política.

Interpretação, poder e perspectivas: Nietzsche e Marx

As entradas são múltiplas. Foucault já falava de Nietzsche na História da loucura. Uma coisa de Nietzsche permite distinguir o louco do gênio: a obra. A verdade da desrazão que se exprime na poesia, na filosofia de Nietzsche é verdadeira. O louco volta a ser levado a sério, como o fora na Idade clássica. O papel dessa seriedade na leitura do louco filósofo genial alemão que se lia às escondidas na França do pós-guerra é devido em muito a Foucault, que editou e prefaciou Nietzsche. Era o momento de uma “desnazificação” de Nietzsche na França, da redescoberta da Wille zur Macht (vontade de poder) como volonté de puissance, puissance que já não tinha nada a ver com poder. Para se desligar do engodo nazista, Macht não era concebido como pouvoir (poder). Era entendido como puissance (potência). Nietzsche era, então, o filósofo da “vontade de potência”. Creio que essa pequena confusão acabou acarretando uma estetização pasteurizante de Nietzsche: Nietzsche era tratado como um autor apolítico. Sem entrar no mérito da discussão sobre a noção de “potência”, parece-me que para Foucault essa não é a boa leitura, pois, para ele, a questão de Nietzsche sempre foi a do poder. Indo direto ao ponto, em uma entrevista sobre a prisão à Magazine

3 Littéraire, Foucault responde o que é feito hoje (em meados dos anos 1970) de Nietzsche: Hoje fico mudo quando se trata de Nietzsche. No tempo em que era professor, dei freqüentemente cursos sobre ele, mas não mais o faria hoje. Se fosse pretensioso, daria como título geral ao que faço "genealogia da moral". Nietzsche é aquele que ofereceu como alvo essencial, digamos ao discurso filosófico, a relação de poder. Enquanto que para Marx era a relação de produção. Nietzsche é o filósofo do poder, mas que chegou a pensar o poder sem se fechar no interior de uma teoria política. A presença de Nietzsche é cada vez mais importante. Mas me cansa a atenção que lhe é dada para fazer sobre ele os mesmos comentários que se fez ou que se fará sobre Hegel ou Mallarmé. Quanto a mim, os autores que gosto, eu os utilizo. O único sinal de reconhecimento que se pode ter para com um pensamento como o de Nietzsche, é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar. Que os comentadores digam se se é ou não fiel, isto não tem o menor interesse 3.

Insistindo na relação entre Marx e Nietzsche, entre relações de produção e relações de poder, pode-se dizer que hoje em dia na França vê-se construir toda uma leitura “marxista” de Foucault, uma entrada se não anti-nietzschiana, em todo caso nãonietzschiana, que enfatizaria o Foucault crítico do capitalismo. Grande parte do novo fôlego que a recherche sobre Foucault atualmente recebe se deve se deve a uma reabertura do debate sobre Marx no interior sobre Foucault4. Com efeito, ler Foucault pelo prisma de Marx ao invés de lê-lo de acordo com o cânone nietzschiano seria uma opção para fugir do foucaldismo. Digo “foucaldismo” no sentido de um discurso que tende a se tornar uma ideologia hegemônica na academia e fora dela, de maneira transversal, da área de saúde mental ou à de criminologia, da educação à ciência das mídias, um discurso que é disseminado de forma acrítica em manuais de leitura “facilitada”. Falar em Foucault não é hoje uma excentricidade, um academicismo. Longe disso, Foucault se tornou malgré lui, um argumento de autoridade, um daqueles que pode ser mobilizado para decidir, ou abreviar uma discussão. Há, com efeito, um déficit de crítica na apropriação que se faz do discurso de Foucault hoje em dia, o que autoriza falar em “foucaldismo” como uma ideologia. Entretanto, mais interessante que colocar Nietzsche entre parênteses, seria colocar Nietzsche e Marx em relação, fazer deles uma máquina de desconstrução das relações de poder e de produção, de relações de produção de poder ao mesmo tempo. Digo isso, me interrogando o que seria uma crítica foucaldiana do capitalismo, senão uma crítica marxista e nietzschiana do capitalismo. A passagem citada sugere uma 3

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. R. Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 81. 4 Ver a esse respeito o trabalho do Group de recherche matérialistes (GRM): http://www.europhilosophie.eu/recherche/spip.php?rubrique182, ou o livro de LEGRAND, Stéphane. Les normes chez Foucault. Paris: PUF, 2007.

4 dicotomia entre poder e produção, Nietzsche e Marx, que certamente não era o que Foucault tinha em mente. Fazer ranger Nietzsche lendo-o com Marx, fazer ranger Marx lendo-o com Nietzsche, não aceitar a facilidade da ideologia, do discurso quando se torna ideologia e pára de refletir: não seria este o bom caminho para fugir do “foucaldismo”? Mais do que isso, não seria esta uma forma de fazer genealogia, entendida como tática de combate, muito mais do que como epistemologia, de uma política da resistência? Genealogia não seria, com Nietzsche e com Marx, uma análise fina das relações de poder e produção tendo em vista compreender o sistema para criar bloqueios locais mais de efeitos globais? Uma das entradas, um dos Nietzsches de Foucault, é certamente o que se encontra em um texto que surge relativamente cedo, o da mesa redonda Nietzsche, Freud, Marx no Colloque de Royaumont de julho de 19645. O texto é, na verdade, “prégenealógico”, da época em que Foucault ainda escrevia As palavras e as coisas (1966). Não se trata ali, entretanto, de genealogia, mas de interpretação. Gostaria de retomar um pouco essa discussão, fugindo do enfrentamento imediato com a temática do nosso encontro, que é a genealogia para tomar, na verdade, um atalho. Foucault afirma que Nietzsche e Marx são, ao lado de Freud, os fundadores da “hermenêutica moderna”, os “mestres da suspeita”, que teriam, segundo Foucault, operado feridas narcísicas no homem moderno ainda mais profundas que aquelas que Freud elenca (Copérnico, Darwin e, ele mesmo, Freud). Junto a Nietzsche e Marx, Freud teria, para Foucault, operado a verdadeira ruptura entre o clássico e o moderno no que diz respeito à interpretação, definindo o horizonte em que nós mesmos atualmente, ainda modernos, sempre modernos, interpretamos. Eles teriam modificado radicalmente o espaço da significação ou, como diz Foucault, “o espaço de repartição no qual os signos podem ser signos” (Dits et écrits I, p. 596). Em que medida? Foucault nos faz ver Nietzsche, Freud e Marx como – a palavra não é de Foucault, mas cabe – “perspectivistas”. Há algo que distingue radicalmente o modo como interpretamos hoje daquele que se fazia na Renascença, é o fato de que interpretar tornou-se, embora já o fosse inconscientemente entre os clássicos, uma tarefa infinita, constitutivamente inacabada. Em uma palavra, a infinitude da interpretação é o que define o horizonte hermenêutico moderno. Isso porque, diz Foucault, “simplesmente não há nada a interpretar. Não há nada de absolutamente primeiro a interpretar, pois no fundo, tudo já é interpretação,

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FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I. Paris : Gallimard, 2001, pp. 592-607.

5 cada signo é nele mesmo não a coisa que se oferece à interpretação, mas interpretação de outros signos”6. Raramente encontramos um Foucault mais claramente perspectivista. Não há que distinguir entre um interpretandum e um interpretans, ou seja, entre a “coisa” a ser interpretada e a própria interpretação, tudo se põe na superfície do discurso: eis a suposição de base anti-fundacionista das pesquisas arqueológicas. O arqueólogo sabe que, por mais que ele cave, ele nunca vai chegar ao “centro da terra”, que não tem o menor interesse em ir tão rápido assim ao fundo, que é preciso ficar no palimpsesto. Foucault retoma as críticas de Nietzsche à “profundidade”, mostrando que o mais profundo é sempre apenas uma “dobra”, uma “ruga” (pli) da superfície. Penso que é claro que estamos falando aqui nos mesmos termos em que Nietzsche falava de perspectivismo7. Estamos também no terreno do que Deleuze e Guattari chamaram de rizomático, da escrita a “n-1”, do princípio da supressão do princípio, de uma necessária “repluralização” de tudo aqui que chega a ser monolítico8. É desnecessário fazer a defesa da idéia de que Nietzsche seja perspectivista. O que curioso é a sugestão de que Marx também o seja. A Crítica da economia política, o Capital, a Ideologia alemã são de fato perspectivistas na medida em que se trata sempre, na história das relações de produção, para Marx, não da natureza enquanto tal, mas de certa interpretação. Trata-se da crítica do discurso burguês que se serve de um mecanismo ideológico quando naturaliza o que é histórico, reificando relações de produção que são constitutivamente interpretáveis ao infinito. É bem verdade que esse ponto não é bastante desenvolvido na fala de Foucault e que ele é discutível, tanto que retorna na questão posta por Vattimo no debate (Dits et écrtis I, p. 605): até que ponto não haveria em Marx um ponto de chegada, uma infraestrutura, uma instância de determinação última – justamente a esfera das relações de produção, da economia. O que vem ao debate é uma crítica que já Weber fazia ao que chamava de “princípio da carruagem” em Marx 9: o processo de desmascaramento da ideologia, num certo sentido, sua denúncia pela crítica, cessa no momento em que se deixa de fazer ideologia e se passa a fazer ciência. Marx não critica a si mesmo como 6

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I. Paris : Gallimard, 2001, pp. 599. MOTA, Thiago. Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo. Cadernos Nietzsche. São Paulo, n. 27, 2010, pp. 213-237. 8 Cf. DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. A. Guerra e C. Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 14: “Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.” 9 Cf. LÖWY, Michel. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 7.ed. São Paulo: Cortez, 2000, p. 97 e ss. 7

6 critica as ideologias. O socialismo científico se opõe ao utópico em Marx e Engels, assim como o discurso proletário se opõe ao discurso burguês: como o verdadeiro e o falso, a ciência e a ideologia. Nós sabemos o quanto saber e poder estão por toda parte atrelados para crer que possamos opor ideologia e ciência de modo tão simples. Nós sabemos também que entre as condições de produção de nossos saberes estão o inacabamento e a infinitude da tarefa da interpretação, que, portanto, jamais estaremos em posse de verdades não-interpretativas, que num certo sentido é tudo ideologia, ou se preferirmos, interpretação, perspectiva. O stalinismo, o leninismo-marxismo enquanto ideologia oficial do Estado totalitário, nos ensinou a ver como ciência se torna ideologia facilmente, e quão potentes são tais ideologias. Creio que é precisamente neste ponto que é possível e preciso fazer ranger Marx, mobilizando-o no âmbito de uma crítica micropolítica das ideologias. Não é preciso, em todo caso, que a ortodoxia marxista aceite que Marx é perspectivista, para que nós o utilizemos. E Foucault parece tê-lo utilizado nesse preciso sentido.

A suposição de base arqueológica da genealogia

Isso posto, gostaria de tentar encarar mais de frente a questão do colóquio, que é a da “gênese e significação da genealogia”. Gostaria, entretanto, de evitar a entrada digamos mais óbvia, que seria falar de Nietzsche, a genealogia, a história. Vou falar de outro texto. Mas antes disso é preciso retomar a questão da passagem da arqueologia à genealogia em Foucault. Vontade de poder se iguala a vontade de saber, poder e saber se tornam um binômio, passamos a falar de poder-saber. Isso vai se evidenciando cada vez mais em Foucault. Não se trata nunca de abandonar o saber como objeto, mas de compreender como saber e poder sempre caminham juntos, se trata, portanto, de enfatizar o poder sem perder de vista, ao contrário, para compreender o saber. Por aí se efetua o que se convencionou chamar, na literatura sobre Foucault, uma “virada”, a passagem das pesquisas arqueológicas (sobre o saber) para as pesquisas genealógicas (sobre o poder). Com isso, a referência a Nietzsche, que se encontrava no mais das vezes implícita, torna-se cada vez mais explícita. Se quiséssemos falar em um “marco”, o momento em que Foucault se torna genealógico, talvez pudéssemos situá-lo na Ordem do discurso (1973). Esse é um objeto de discussão favorito do foucaldismo, tornou-se

7 um “lugar comum”. E, precisamente por isso, diria que se trata do modo errado de colocar a questão, ou ao menos de um modo que não é o mais interessante. Para sair um pouco da superfície, para mostrar mais uma “dobra”, mais uma “ruga” da questão da genealogia, vou voltar à primeira conferência sobre A verdade e as formas jurídicas, pronunciada na PUC-Rio em maio de 1973, texto que repõe a metodologia em questão, ainda que no âmbito de uma investigação que já é genealógica, a discussão metodológica que se apresenta aí recorrendo justamente a Nietzsche. Avancemos ainda que esse texto é extremamente favorável para ver mais de perto a crítica de Foucault ao capitalismo, às relações de poder imbricadas nos modos de produção, portanto, a uma vinculação entre Marx e Nietzsche em Foucault. A verdade e as formas jurídicas se situa na suposta viragem, de que falávamos, do Foucault arqueólogo para o Foucault genealógico. A pesquisa arqueológica não estava errada, mas se mantinha aferrada a um “epistemologismo” que ora cabia justamente destruir. Não que os epistemólogos devam perder seus empregos, mas chega um momento em que se tem de “aplicar o método”. Deixar de fazer arqueologia para fazer genealogia significa que Foucault não tem mais contas a prestar com os kantianos. Isso está certo, entretanto é importante não fazer disso uma dicotomia. Que a suposta dicotomia em que arqueologia e genealogia se opõem seja uma falácia, é algo que se precisa repetir. Veremos que o Nietzsche que Foucault põe em jogo nessa conferência estava implícito na Arqueologia do saber, ainda que este texto soe mais como o Discurso do método do que como a Genealogia da moral. Se na Arqueologia o poder surge como traço apriorístico histórico da produção dos discursos, na Ordem do discurso a centralidade do poder se coloca de modo curto e grosso: “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.”10 A associação entre discurso e poder, discurso enquanto poder, vontade de poder enquanto vontade de saber: eis a suposição de base de uma análise arqueológica. E Foucault nos adverte que não se trata, como As palavras e as coisas poderia deixar a entender, de um “historicismo transcendental”. Dentre as condições de possibilidade do conhecimento, no plano transcendental portanto, encontra-se o poder, mas isso não quer dizer que o poder seja “transcendental”. Podemos colocar as coisas dessa forma: não que o poder se transcendentalize, mas que o transcendental deixa de ser transcendental

10

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. L. Sampaio. 5.ed. São Paulo: Loyola, 1999, p. 10.

8 sem que deixe de haver um condicionamento necessário à produção do saber. Esse condicionamento inclui relações de poder, luta, dominação, apoderamento. Nesta interpretação, o tema do a priori histórico torna-se mais nietzschiano do que kantiano, é já genealógico, no sentido de que a questão deixa de ser a da validação, para ser a da gênese do saber. Questão genética portanto, ou, se vocês preferirem, genealógica. Dever-se-ia falar, então, se este não fosse um nome muito feio, de arqueogenealogia, que significa simplesmente deixar de se auto-espelhar numa obsessão fundacional, para ver como são produzidos os resultados, como, queríamos ou não, interferimos neles. Nenhuma contradição, nenhuma auto-refutação, mas, sobretudo, nenhuma mudança de opinião ou de caminho. Quando se compreende que o cerne da Arqueologia é responder à questão transcendental das condições de possibilidade do saber com a articulação de certo conceito de poder, então Nietzsche é muito mais importante para o arqueólogo do que Kant. O arqueólogo não se transforma em genealogista, ele se descobre enquanto tal, ele é na verdade um arqueogenealogista.

Caracterização da genealogia

A partir dessa suposição de base arqueológica, segundo a qual o poder se inclui entre as condições de possibilidade efetivas do discurso, o método genealógico é definido por Foucault, em A verdade e as formas jurídicas, como uma história política do conhecimento e do sujeito do conhecimento, como análise histórica da política da verdade. É o que Foucault chama “modelo de Nietzsche”, cuja caracterização nos permite entender porque a metodologia que ele passa a empregar deve ser entendida como genealogia. Com efeito, Foucault diz que do ponto de vista metodológico seria mais justo citar apenas um nome: o de Nietzsche. Nietzsche representa uma dupla ruptura com a tradição da filosofia ocidental, na medida em que ele assume uma crítica radical de todo fundacionismo, rompendo seja com a idéia de Deus como fundamento (morte de Deus), seja com a idéia de sujeito como fundamento (morte do homem). Em seu Foucault, Deleuze já afirmava que o mais importante em Nietzsche não era a morte de Deus, mas a morte do homem, a crítica noção de homem enquanto duplo empírico-transcendental. Foucault lê em Nietzsche uma reformulação da teoria do sujeito que dispensa a unidade do sujeito humano e admite que há sujeitos, ou que não há o sujeito. Dizer que o homem está morto significa dizer que o sujeito já não pode ser entendido como o

9 fundamento, a camada última da realidade, pois não há o sujeito no singular e sim sujeitos no plural. A esse respeito, para mencionar Nietzsche, a genealogia, a história, pode-se dizer que a transparência, a lisura, do sujeito é re-pluralizada, re-estratificada, segundo o procedimento rizomático que Foucault atribui à genealogia, e é substituída por um baile de máscaras. A subjetividade se constitui de várias máscaras e não há máscara derradeira. Tudo é jogo de máscaras. Ali onde parecia haver unidade e continuidade, do ponto de vista genealógico há heterogeneidade e fragmentação. Nesses termos, a genealogia se torna uma análise histórica do sujeito, do processo pelo qual os sujeitos são fundados e refundados pela história, de processo de assujeitamento ou de sujeição que não admite a preexistência do sujeito do conhecimento. Foucault entende que na concepção de Nietzsche, o sujeito epistêmico não preexiste à história, em primeiro lugar, porque o conhecimento não tem propriamente uma “origem”, Ursprung, mas é produto de uma “invenção”, Erfindung. No mesmo sentido, aliás, menciona Foucault, Nietzsche considera, contra Schopenhauer, que a religião não possui sua origem num sentimento metafísico universalmente compartilhado, mas ela foi inventada em função ou em meio a relações de poder. Ora, se o conhecimento é uma invenção, então também o sujeito do conhecimento, ou ainda os sujeitos do conhecimento foram inventados, têm uma história, respondem ao regime de verdade de uma dada época. Em segundo lugar, o conhecimento deriva de um conflito ou do que podemos chamar de uma agonística pulsional, ou seja, o jogo, o afrontamento, a junção, a luta e o compromisso entre as pulsões ou os afetos. Foucault colhe da Gaia ciência o exemplo que o permite esclarecer essa agonística pulsional. No aforismo 333 desta obra, lemos um texto que retoma Spinoza para polemizar. Spinoza opõe intelligere, compreender, a ridere, rir, lugere, deplorar, e detestari, detestar, afirmando que só se compreende as coisas quando essas paixões, essas pulsões, esses afetos, o rir, o deplorar e o detestar estão apaziguadas. Nietzsche entende que as coisas não se dão dessa maneira, mas que é justamente o contrário que se passa, ou seja, compreender é o resultado de certo jogo, de certa luta, de uma agonística entre o rir, o deplorar e o detestar. Na luta, essas afetos chegam a um estado de equilíbrio, a um compromisso precário – jamais a um consenso – a certa correlação de forças, donde resulta a compreensão. Nada de apaziguamento pulsional como queria Spinoza, mas antes um estado de guerra, de estabilização

10 momentânea, em que o conhecimento surge, na bela metáfora proposta por Foucault, como “uma centelha entre duas espadas”.11 Em terceiro lugar, não é apenas entre as pulsões, digamos, no plano da interioridade, que se estabelecem relações de força. Também a relação entre o homem, enquanto sujeito epistêmico, e o mundo, enquanto objeto cognitivo, é uma relação de poder. Não é a essência das coisas que vem a lume no processo do conhecimento. Este é antes definido como luta, como dominação, como violência, como apropriação de determinada porção da realidade para, sobre ela, exercer poder. A agonística, portanto, se passa tanto no plano da interioridade, onde ela assume a forma de um conflito entre os afetos, quanto no plano da exterioridade, em que o conhecimento se define como uma relação de poder entre o homem e o mundo. Diga-se de passagem, que essa leitura de Foucault deixa ressoar, ainda que eu creia que Foucault não os tinha em mente como precursores, uma tese de Adorno e Horkheimer, que, na Dialética do esclarecimento, estabelecem uma analogia o sujeito e o ditador, entre os objetos e os súditos. Com relação ao conhecimento enquanto pesquisa de essências, como podemos ler em Nietzsche, a genealogia, a história, que a genealogia se caracteriza como anti-essencialista, diz Foucault: se o genealogista toma o cuidado de ouvir a história em vez de crer na metafísica, o que é que ele aprende? Que por trás das coisas há algo completamente diferente: de forma alguma seu segredo essencial e sem data, mas o segredo de que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe era estranhas12.

Em suma, a genealogia se caracteriza como método anti-fundacionista, que não admite um fundamento último, quer seja Deus, quer seja o sujeito; anti-essencialista, que não admite a existência de essências supra-históricas, mas que considera que as essências são invenções; e agonístico, que compreende que o conhecimento é produto de relações de força, seja entre as pulsões, seja entre o homem e o mundo. A essas características, Foucault acrescenta algo muito importante para o percurso que vimos fazendo, pois nos habilita a tratar da questão do engajamento. É que o conhecimento tem, segundo Foucault, um “caráter perspectivo” 13, no sentido de que o olhar que o homem do conhecimento lança ao mundo é sempre um olhar parcial, inacabado, interpretativo, pois o conhecimento é sempre certa relação estratégica na qual nos encontramos. Ora, o caráter perspectivo do conhecimento decorre justamente FOUCAULT, Michel. Dits et écrits II. Paris : Gallimard, 2001, p. 1417 : “une éticinelle entre deux épées”. 12 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits II. Paris : Gallimard, 2001, p. 1006. 13 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits II. Paris : Gallimard, 2001, p. 1419. 11

11 de seu caráter agonístico, do fato de que há luta e de que o conhecimento é o resultado dessa luta. É exatamente esse último aspecto, o caráter perspectivo do conhecimento, que o marxismo e a crítica das ideologias em geral não chegam a reconhecer. O marxismo, e este é o ponto crucial da crítica de Foucault, se mantém atrelado à noção de um sujeito epistêmico que seria capaz de conhecer de maneira não-perspectiva, não-estratégica, consciência não-alienada que abriria caminho direto para a verdade ao fazer a crítica das ideologias e das condições político-econômicas das quais elas procedem. Foucault entende que as condições econômicas, políticas, que as ideologias, enfim, não são um obstáculo para a compreensão do que se passa no plano cognitivo. Pelo contrario, elas são, em certo sentido, as condições de possibilidade efetivas, o solo no qual se formam os sujeitos, os domínios do conhecimento e os regimes de verdade. É por essa razão que a genealogia deixa de trabalhar com a noção de ideologia e passa a analisar, do ponto de vista estratégico, as práticas discursivas, o discurso. A finalidade de tal tipo de pesquisa, entretanto, não deve ser entendida apenas como a demonstração do modo como se dão, a partir dos discursos, os processos de assujeitamento que constituem as subjetividades que povoam a história e os regimes de verdade vigentes em cada época, mas também, e sobretudo, como pode-se praticar uma política da resistência que tem em vista promover bloqueios no sistema para reverter relações de poder. Nesse sentido, a genealogia não é apenas uma metodologia, mas uma tática de intervenção política. A partir do que foi dito, vou retomar, para concluir, meu ponto de partida, formulando uma questão aos foucaldianos. A questão é a seguinte: a política da resistência, o bloqueio como forma de intervenção social, é suficiente para uma crítica do capitalismo em tempos de “guerra cambial”? Vimos que mais do simplesmente denunciar a injustiça das relações de poder ali mesmo onde elas são mais inaparentes, mais escondidas, mais escamoteadas, por exemplo, no processo cognitivo, a genealogia tem a finalidade de promover bloqueios no sistema. A política da resistência é uma forma de política do bloqueio, cujo melhor exemplo histórico são ainda as barricadas armadas pelos estudantes em Paris no maio de 68. A questão é: os bloqueios, a resistência, são suficientes? É o bastante bloquear o sistema para que espontaneamente as relações de poder se revertam e processos de subjetivação assumam o lugar dos processos de assujeitamento? Creio que está aí a grande ingenuidade da política da resistência e do foucaldismo enquanto ideologia acrítica.

12 Para superar a tarefa da desconstrução, é preciso pensar os meios da construção possível, é preciso passar do bloqueio à transformação. A história nos mostra que tal passagem não se dá espontaneamente após um surto anárquico da sociedade. A transformação real das condições político-econômicas em que se estabelecem as relações de poder e de produção em uma dada sociedade, em uma dada época, pressupõe que micro-revoluções sejam seguidas de experimentos micro-institucionais. E estes estão em vias de aflorar em cada uma das fraturas de que se constitui a vida social. Mesmo os estudantes no maio de 68, que se diziam realistas por quererem o impossível, desenvolveram formas de organização que os permitia agir coletivamente. Foucault parece cego a um dos aspectos da genealogia que talvez possa ser remetido a Nietzsche, precisamente aquele segundo o qual a genealogia é o estudo das condições de gênese da ação. É por aí que não só se supera o niilismo, mas que este adquire sentido: não era Nietzsche quem dizia que a destruição é criativa exatamente na medida em que ela cria as condições, abre o terreno, para que uma nova construção se erga? Está claro que a questão que se formula aqui é a do engajamento, da forma de intervenção do intelectual no mundo em que ele vive. É verdade que esta questão encontra poucas respostas em Foucault, que praticamente não chegou a teorizar acerca das condições de gênese da ação e das micro-instituições. É, entretanto, interessante notar como Foucault, devido ao papel de militância que exerceu ao longo de sua vida, chegou a participar de experimentos micro-institucionais, exemplo patente disto foi sua participação na criação do GIP (Groupe d’informations sur les prisons). Portanto, vou apenas sugerir uma pista de pesquisa. A idéia seria fazer o estudo do arquivo do GIP, seus manifestos, estatutos, entrevistas de seus participantes na imprensa, os instrumentos de enquete que eles construíram juntamente com os presos, enfim de suas iniciativas de ação coletiva. É possível em princípio, ainda que o estudo tenha de ser feito, encontrar nesses documentos o registro de uma ação coletiva concreta que visava, mais do que simplesmente denunciar as condições de maus-tratos em que os presos se encontravam, a transformação dessas condições. Nesses termos, creio, a genealogia poderia ser entendida e praticada também como análise histórica das condições de gênese da ação.

13 Referências

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. A. Guerra e C. Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. L. Sampaio. 5.ed. São Paulo: Loyola, 1999. __________. Dits et écrits. Paris : Gallimard, 2001. __________. Microfísica do poder. Trad. R. Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. LEGRAND, Stéphane. Les normes chez Foucault. Paris: PUF, 2007. LÖWY, Michel. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 7.ed. São Paulo: Cortez, 2000. MARTON, Scarlett. A terceira margem da interpretação. In: Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 3.ed. São Paulo: Discurso Editorial, Ijuí: Editora Unijuí, 2009. MOTA, Thiago. Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo. Cadernos Nietzsche. São Paulo, n. 27, 2010, pp. 213-237. VEYNE, Paul. Foucault: o pensamento, a pessoa. Trad. L. Lima. Lisboa: Texto & Grafia, 2009.

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