\"Nietzsche\'s Commentary on Anaximander in \'Philosophy in the Tragic Age of the Greeks\'\" / \"O comentário de Nietzsche a Anaximandro em \'A filosofia na era trágica dos gregos\'\".

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O COMENTÁRIO DE NIETZSCHE A ANAXIMANDRO, EM A FILOSOFIA NA ERA TRÁGICA DOS GREGOS Nietzsche’s comment on Anaximander, within Philosophy in the tragic age of the Greeks

Federico Testa* Resumo: O presente artigo apresenta o comentário de Friedrich Nietzsche à “sentença de Anaximandro”, tal como aparece no livro A filosofia na era trágica dos gregos. Para isso, é estabelecido um corte hermenêutico na obra do filósofo, salientando a importância do pensamento de Schopenhauer, bem como a da problemática da “tragédia”. O lugar do comentário de Nietzsche é contextualizado no livro, de modo que são retomados também alguns passos de suas reflexões sobre Tales de Mileto e o nascimento da filosofia. O comentário de Nietzsche é, então, apresentado em seus aspectos ontológicos e ético-morais, em relação com dois outros textos: O nascimento da tragédia e os cursos do jovem filólogo sobre o conceito de “trágico”, agrupados na Introdução à tragédia de Sófocles. Palavras-chave: Nietzsche, Anaximandro, tragédia, ontologia, eterno retorno, devir.

Abstract: This paper presents Friedrich Nietzsche’s comment on the fragment of Anaximander, as it appears in the book Philosophy in the Tragic Age of the Greeks. A hermeneutic typology is established regarding Nietzsche’s work, stressing the role of the thought of Schopenhauer, as well as the importance of the question of “tragedy”. Nietzsche’s comment on Anaximander is contextualized within the book, through a brief explanation of his reflections about Tales of Miletus and the birth of Philosophy. Nietzsche’s commentary is, then, presented on its ontological, ethical and moral aspects, relating these aspects to two other texts: The birth of tragedy, and the courses that the young philologist taught in Basel, focusing the concept of “tragic” and approaching the tragedy of Sophocles. Keywords: Nietzsche, Anaximander, tragedy, ontology, eternal return, becoming.

Para uma melhor compreensão do comentário nietzschiano a Anaximandro no livro de 1873, A filosofia na era trágica dos gregos, talvez seja útil estabelecer um corte hermenêutico na obra de Nietzsche em dois momentos distintos e, assim, contextualizar o referido texto de acordo com essa distinção interpretativa e metodológica. Apesar de todo o caráter * Mestre em Filosofia (PUCRS) e Artes Visuais (UFRGS). Professor no curso de graduação em Filosofia da Faculdade IDC, Porto Alegre.

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antissistemático da obra do filósofo alemão, acredito na possibilidade de individuar, com coerência, dois grandes momentos hermenêuticos: um, por assim dizer, “metafísico” e um propriamente “iconoclasta”. Com a denominação vaga de “metafísico”, procuro indicar um momento inicial de adesão à filosofia schopenhaueriana de O mundo como vontade e representação, marcado por ideias como a da necessidade de um retorno à Vontade, ao Uno primordial, ou a da dissolução do indivíduo na unidade que a tudo permeia e origina. Deixarei entre parênteses, nesse momento de juventude de Nietzsche, a fundamental importância do pensamento e da arte de Richard Wagner para o filósofo. Enfatizarei, principalmente, as repercussões schopenhauerianas, que aparecem também nas concepções nietzschianas sobre a arte, sob o signo do pessimismo e do tragicismo. O trágico será, por excelência, o terreno de investigação do jovem Nietzsche. Este primeiro momento tem em O nascimento da tragédia um de seus maiores índices. Nessa obra, o jovem Nietzsche segue um caminho aberto pela filosofia de Schopenhauer, remetendo aos conceitos schopenhauerianos os elementos estruturantes da experiência da tragédia ática. Os conceitos propriamente nietzschianos, os polos estruturantes da tragédia, o “apolíneo” e o “dionisíaco”, são explicados a partir de uma relação com a conceitualidade schopenhaueriana. Desse modo, mesmo quando Nietzsche aponta questões próprias, o faz, em grande medida, através do recurso aos termos metafísicos schopenhauerianos. No entanto, essa referência aos conceitos e ao vocabulário do autor de O mundo como vontade e representação não pode fazer com que esqueçamos que existe aí uma “descoberta” que é propriamente nietzschiana: Dionísio – a deidade, transmutada em princípio estético e filosófico, vinculada à arte mais metafísica, a música, símbolo da embriaguez e do autoesquecimento, da dissolução do princípio de individuação e da quebra da soberania do sujeito, que, em claro contraste agonístico com Apolo, deus da forma, do sonho, da clareza e da medida, está nos primórdios da tragédia ática. Nesse primeiro momento, que aqui nomeio vagamente como “metafísico”, Dionísio não se apresenta claramente como o contrário dos valores cristãos (como, por exemplo, na oposição com o “crucificado”, que aparecerá nos últimos escritos e cartas de Nietzsche), mas sim como aquele que encontra num Apolo correlato a sua condição de existência, segundo o modelo helênico da luta agonística1. Mesmo antes do Nascimento da tragédia, 1 Tal modelo agonístico é muito importante para Nietzsche, e é expresso, por exemplo, na explicação a respeito de Heráclito que o jovem filósofo traz em A filosofia na era trágica dos gregos. Segundo o

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Nietzsche recorre a Dionísio para expressar algumas das características da arte e da cultura gregas, explicadas a partir de ideias schopenhauerianas. É o caso das anotações para os cursos sobre Sófocles e a história da tragédia na Universidade de Basileia, agrupadas sob o título Introdução à tragédia de Sófocles2. Na seção “A tragédia antiga e a moderna por meio da consideração de sua origem” (§I), Nietzsche apresenta o par “apolíneo” e “dionisíaco” como tipologia capaz de elucidar o tipo de “poesia lírica a partir da qual a tragédia grega se desenvolveu”, a saber, “a dionisíaca, não a apolínea”3. Segundo Chaves, é nessa seção que o jovem Nietzsche criticará o conceito de trágico “que reúne destino e caráter, culpa e punição”, buscando redefinir o lugar dos conceitos de sofrimento e prazer em uma nova teoria da tragédia4. Conforme o autor, é nesse texto que, “pela primeira vez, o par apolíneodionisíaco é enunciado”5. O dionisíaco, porém, é caracterizado por algumas ideias de matriz schopenhaueriana: Esquecimento da individualidade, aparentado da auto-renúncia através da dor e do pavor. A natureza em sua força prodigiosa ata os indivíduos firmemente e os faz sentir-se como um, de tal modo que o princípio de individuação aparece (...) como um permanente estado de fraqueza da natureza. Quanto mais arruinada a natureza, mais tudo se esfacela em indivíduos isolados6.

Segundo Nietzsche explica, o “drama era encenado sem espectadores, porque todos participavam dele. Rompia-se o principium individuationis...”7. Ainda que não apareça em uma formulação definitiva na Introdução à tragédia de Sófocles, o principium individuationis, conceito

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filósofo: “Todo vir-a-ser surge da guerra dos opostos: as qualidades determinadas (...) exprimem tão-só a prevalência momentânea de um dos combatentes, mas, com isso, a guerra não chega a seu termo, porém a luta segue (...). Tudo dá-se de acordo com esse conflito (...), trata-se da boa Éris de Hesíodo transfigurada em princípio cosmológico, o pensamento de disputa do grego individual, bem como do estado grego, transposto dos ginásios e das palestras, dos agonoi artísticos, das pelejas dos partidos políticos e das cidades entre si, para aquilo que há de mais universal, de sorte que, agora, a engrenagem do cosmo move-se nele”. NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, São Paulo: Hedra, 2008, p.60. NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles, p.46. CHAVES in NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles, p.20. NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles, p.20. NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles, p.46-47. NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles, p. 48.

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trazido de Schopenhauer8, aparece no Nascimento da tragédia, como nota própria do apolíneo9. Segundo Nietzsche: In fact, we might say of Apollo, that in him the unshaken faith in this principium and the calm repose of the man wrapped therein receive their sublimest expression; and we might consider Apollo himself as the glorious divine image of the principium individuationis, whose gestures and expression tell us the joy and wisdom of “appearance”, together with its beauty10

Uma das dimensões do trágico, definido pelo jovem professor de filologia na Introdução à tragédia de Sófocles, é a do êxtase e da embriaguez, que lança o indivíduo “fora de si”11, o ata aos outros, e suspende aquilo que o separa de uma unidade mais fundamental12. Segundo Nietzsche, “A ideia trágica é a do culto dionisíaco: a dissolução da individuação em uma outra ordem cósmica”13. Vemos assim alguns dos traços que delineiam esse primeiro momento hermenêutico aqui proposto: a leitura “criativa” e a apropriação nietzschiana de Schopenhauer, a definição do “dionisíaco”

8 No Nascimento da tragédia, a introdução do conceito de principium individuationis é feita – diferentemente da Introdução à tragédia de Sófocles, a partir de uma citação de Schopenhauer: “And so, in one sense, we might apply to Apollo the words of Schopenhauer when he speaks of the man wrapped in the veil of Mâyâ: Welt als Wille und Vorstellung, I, p.416: ‘Just as in a stormy sea, unbounded in every direction, rising and falling with howling mountaineous waves, a sailor sits in a boat and trusts in his frail barque: so in the midst of a world of sorrows the individual sits quietly, supported by and trusting in his principium individuationis’”. NIETZSCHE, F. The birth of tragedy. New York: Dover Thrift, 1995, p.3. 9 Esse traço próprio ao apolíneo serve também, por contraste, para caracterizar o dionisíaco: “If we add to this awe blissful ecstasy which rises from the innermost depths of man, aye, of nature, at this very collapse of the principium individuationis, we shall gain an insight into the nature of the Dionysian…”. NIETZSCHE, F. The birth of tragedy, p.3. 10 NIETZSCHE, F. The birth of tragedy, p.3. 11 NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles, p.48. 12 Nesse sentido, o Nietzsche da Introdução aponta na tragédia um elemento significativo de igualdade: “todas as relações sociais e políticas eram rompidas. Uma grande festa de liberdade e igualdade, na qual as classes servis recebem de volta seu direito original” (p.50). Assim, o vetor dionisíaco da tragédia, conforme apresentado na Introdução, marcado pela festa, pelo orgiástico, pela embriaguez, ao romper com as relações e determinações que caracterizam a descontinuidade do indivíduo, coloca em suspenso também as relações sociais que o determinam e o colocam em uma relação mais fundamental de unidade e igualdade. Ainda, relativamente a um elemento de igualdade, afirma Nietzsche quanto a seu caráter popular e até mesmo democrático: “O ditirambo é um canto popular e, na verdade, principalmente das camadas inferiores. A tragédia sempre conservou um caráter puramente democrático, pois ela surgiu do povo”. NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles, p.56. 13 NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles, p.49.

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e do “trágico”. Tais traços serão de importância fundamental na leitura do comentário de Nietzsche a Anaximandro. O segundo momento, que aqui nomeio vagamente de momento “iconoclasta”, é o momento do martelo, do “espírito livre” e do “torna-se a si mesmo” – “tornar-se aquilo que se é”. Biograficamente está assinalado pelo abandono da carreira universitária e pelas viagens constantes. Nesse momento, Nietzsche se torna um clínico, cuidadoso e perscrutador ao som daquilo que martela com sua perspicácia psicológica, que busca os rumores dos ocos artifícios humanos e que constata, no subsolo da modernidade, o niilismo. O iconoclasta deve avaliar e mesmo quebrar os eidola da modernidade, transmutar valores, tornar-se o primeiro niilista completo, consumado, capaz de transmutação. Surge o filósofo que pretende “falar por raios” e “viver em sua própria morada”, surge um Nietzsche nietzschiano: aquele que nega a mentira da metafísica e da transcendência – como fica claro nos fragmentos póstumos agrupados, entre nós, sob o título de Sobre o niilismo e o eterno retorno14 – em nome da vida, da afirmação alegre do eterno retorno e da imanência. Ora, certamente o Nietzsche que comenta Anaximandro em A filosofia na época trágica dos gregos se situa no primeiro momento, tanto cronológica como filosoficamente. Minha intenção é deixar isso mais claro através de uma explicação do comentário de Nietzsche, buscando mostrar de que forma, ou em que termos o autor expõe e recria o pensamento de Anaximandro. Um segundo ponto, que poderá ser tratado indiretamente – devido às impossibilidades de extensão do presente texto e da elaboração mais cuidadosa de um cruzamento do comentário a Anaximandro com a primeira parte de O nascimento da tragédia –, diz respeito à questão “por que Anaximandro pode ser considerado um pensador trágico?”. A passagem sobre Anaximandro, na Filosofia na era trágica dos gregos (§IV), aparece após o comentário tecido a Tales de Mileto, no qual Nietzsche caracteriza a singularidade da empreitada filosófica, especulativa e ontológica, tentando delinear a figura de Tales, bem como as características da nascente filosofia. Para Nietzsche, a filosofia grega começa com uma “ideia inconsistente”, a sentença de que “a água é a origem e como que o útero materno de todas as coisas”15. E essa sentença é inaugural para a filosofia por três motivos fundamentais. Segundo Nietzsche: 1) “porque a sentença enuncia algo sobre a origem das coisas”; 2) “porque ela o faz sem imagem e 14 NIETZSCHE, F. Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 15 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.43.

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fabulação”; 3) “porque nela está contido (...) o pensamento” de que “tudo é um”16. A pergunta sobre a origem das coisas poderia ser tomada como uma ideia religiosa, não fosse o segundo motivo enunciado acima (evitar a imagem mítica e a fabulação), que apresenta Tales como “investigador da natureza”. Entretanto, é em função do terceiro motivo que, para Nietzsche, Tales é o primeiro filósofo grego. A intuição mística, e de alguma maneira não demonstrável (dado seu distanciamento de uma formulação de hipóteses de ordem meramente empírica), de que “tudo é um” é realizada por Tales de maneira não mítica e nem alegórica. Ela passa a ser vista como axioma e postulado metafísico. E há aí, para Nietzsche, algo de realmente singular e surpreendente, uma vez que os gregos eram os antípodas de todos os realistas, na medida em que acreditavam, em rigor, apenas na realidade dos homens e dos deuses, concebendo a natureza como um disfarce, mascaramento e metamorfose de tais homens-deuses. Para eles, o homem era como que a verdade e o coração das coisas, sendo todo resto o tão-só aparência e jogo enganoso17.

Exatamente diferente dessa visão da natureza como teatro e mascaramento de homens e deuses, é a ideia trazida por Tales da “unidade de tudo o que existe”. Tales apreende tal unidade e a exprime através da imagem da água – uma vez dado o descompasso entre a contemplação, o salto da criação e da imaginação filosóficas e a expressão e comunicação como “transposição metafórica cabalmente enganadora para uma esfera e língua distintas”18. Tal apreensão tem toda a forma de uma unidade de ordem abstrata e conceitual. E essa dimensão abstrata e conceitual do pensamento de Tales é o que define sua singularidade no contexto grego. Por terem uma visão antropomórfica da natureza e do cosmos, era “incrivelmente árduo” para os gregos “apreender o conceito como conceito (...); neles, o que havia de mais abstrato recaía sempre numa pessoa”19. Segundo explica Nietzsche, Tales, afirmando que “não o homem, mas a água” é a realidade de todas as coisas, coloca a natureza no centro da explicação cosmológica e filosófica. Isso define Tales como “um mestre mais criativo”, que não recorre às formas tradicionais do mito e da epopeia, não busca estabelecer as origens do mundo 16 17 18 19

NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.46. NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.46. NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.49. NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.46.

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a partir de uma teogonia, e que filosofa “sem recorrer a fabulações fantásticas, começa a olhar para a natureza em suas profundezas”20. Nesse sentido, Tales expressa aquilo que Werner Jaeger21 define como um traço fundamental dos fisiólogos pré-socráticos, a ideia de cosmos e phýsis, que definem a natureza como todo orgânico e integrado, que é regulado por leis e explicado por princípios. Apresentemos, então, em contraste com Tales, os principais traços que Nietzsche vislumbra no pensamento de Anaximandro – já na conclusão de seu comentário –, para, então, analisarmos com mais vagar esses traços. Tentaremos, assim, partir dessa “conclusão” e trilhar o caminho da problematização de Nietzsche. É nesse questionamento não antropomórfico sobre a unidade e a origem do que existe e vem a ser, sobre a unidade que subjaz à multiplicidade que se manifesta e que percebemos, que Anaximandro prolonga a empreitada de Tales. Entretanto, o salto filosófico e conceitual, em Anaximandro – evitando também ele a imagem alegórica, o mito e a fabulação –, não recai, por seu turno, em uma imagem empírica, da ordem do concreto e do determinado, como é a água. Trata-se de levar mais longe a aposta conceitual (mas também lógica, ontológica e moral), e levar a pergunta pela natureza e pelo cosmos para termos, segundo Nietzsche, não exclusivamente físicos (ou, ao menos, não para a pergunta pela procedência do mundo a partir da localização de uma determinada matéria originária)22. Explica o filósofo: Tales mostra a necessidade de simplificar o âmbito da multiplicidade e de reduzi-lo a um mero desdobramento ou dissimulação de uma única qualidade existente, a saber, a água. Anaximandro ultrapassa-o mediante dois passos. Primeiramente, ele se pergunta: se há, de fato, uma unidade eterna, como é então possível aquela multiplicidade? E obtém a resposta a 20 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.47. 21 JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes,

2001.

22 Afirma Nietzsche: “Por certo, aquele que for capaz de discutir com outros a propósito do que teria sido, em rigor, uma tal matéria primordial, se se tratava, por assim dizer, de algo intermediário entre o ar e a água ou, talvez, entre o ar e o fogo, não entendeu nem de longe o nosso filósofo: o mesmo deve ser dito àqueles que seriamente se perguntaram se Anaximandro teria pensando sua matéria primordial como mistura de todas as matérias existentes. Temos de voltar nosso olhar (...), justamente para lá, onde possamos apreender que Anaximandro já não mais tratava pela procedência deste mundo em termos exclusivamente físicos...”. NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.52.

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partir do caráter contraditório, autocorrosivo e negador de tal multiplicidade23.

A maneira de explicar esse caráter autocorrosivo e autodestrutivo da multiplicidade no reino do vir-a-ser será, como veremos, a transformação da existência em fenômeno moral, concebido a partir de uma espécie de ruptura com um estado de justiça e unidade, para um de injustiça e multiplicidade. Desse modo, a multiplicidade e o caráter autodestrutivo – que marca a finitude e a dor de tudo que nela existe – passam a ser vistos como expiação contínua por meio do declínio, da corrupção e da morte. Entretanto, se tudo o que existe é transitório e está condenado a desaparecer, como, então, tudo ainda não sucumbiu? Como tudo ainda não declinou e findou, dado que se passou “uma eternidade de tempo”? Ou seja, por que o vir-a-ser não cessa em uma corrupção final e derradeira do existente, por que ele permanece em seu fluxo e não reduz tudo o que flui, de uma vez por todas, ao nada? Ou ainda: “De onde vem o rio sempre restaurado do vir-a-ser? Ele consegue salvar-se dessa pergunta somente por meio de possibilidades místicas: o eterno vir-aser só pode ter sua origem no ser eterno”24. É possível perceber um deslocamento de perspectiva de Tales para Anaximandro. Se o primeiro havia conseguido fazer transitar o pensamento do homem para a natureza, das forças antropomórficas para o cosmológico pensado conceitual e abstratamente, o segundo prolonga sua empreitada, ao enfatizar a dimensão cosmológica, ontológica e conceitual. Entretanto, ao explicar o vir-a-ser que não cessa, a referência ontológica a um ser eterno parece responder formal e logicamente, mas não completamente, pois deixa em aberto o problema da passagem e do declínio do indeterminado para o determinado, do eterno para o temporal e transitório, do justo para o injusto, do uno para o múltiplo. O que explica esse declínio? Além disso – e aqui está o aspecto trágico do pensamento de Anaximandro –, o problema do vir-a-ser será visto como um problema moral associado ao problema da fatalidade da dor, do sofrimento e da morte associados ao caráter contraditório e transitório de tudo o que existe sob o vir-a-ser. Por que algo que está condenado a morrer e desaparecer vem a ser? Anaximandro levará o problema cosmológico e filosófico a uma dimensão ética e moral. Entretanto, se o mundo é marcado pela injustiça, pelo dilaceramento e pela morte, Nietzsche indica que Anaximandro não se furtou a tomar parte 23 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.54. 24 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.54.

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dele25, como “se essa existência fosse uma tragédia na qual nasceu como herói para dela participar”26. O pensamento de Anaximandro é visto por Nietzsche através de um prisma schopenhaueriano. A exposição de Nietzsche começa com a transcrição do fragmento de Anaximandro: “Lá onde as coisas têm seu surgimento, para lá também devem ir ao fundo, segundo a necessidade; pois têm de pagar expiação e ser justiçadas, conforme a ordem do tempo”27. E continua, logo após, com a citação dos Parerga que servirá de base para sua interpretação: O critério acertado para julgar todo homem consiste em considerá-lo justamente como um ser que não deveria de modo algum existir, mas que expia sua existência por meio de toda sorte de sofrimento e da morte: o que esperar de tal ser? Não somos todos, afinal de contas, pecadores condenados à morte? Expiamos nosso nascimento, primeiramente por meio da vida e, depois, por meio da morte28.

A citação de Schopenhauer aparece logo após a pergunta que se segue à sentença de Anaximandro – “como interpretá-la?”29, o que parece indicar o caminho interpretativo escolhido por Nietzsche. Nesse cruzamento, o pensamento de Anaximandro será caracterizado não unicamente como uma 25 Uma das ideias presentes na definição do trágico é a afirmação da vida em sua integralidade, mesmo naquilo que possui de terrível e fatal. É interessante, nas notas de aula do jovem Nietzsche, o contraste que ele opera para pensar o trágico através do uso do símile do “caracol”. Criticando a tragédia moderna, que teria se moralizado, estabelecendo o sentido de uma punição “merecida” a partir da culpa constatada de um agente moral determinado, que colocaria o espectador frente à conclusão de que “ele [o personagem, o herói] mereceu”, e que “esconde um certo deleite: por um lado, ter nas próprias mãos, pelo menos uma vez, a balança da culpa e da punição, tornando-se executor da lei moral e, por outro lado, ver-se belo e puro, contra um fundo obscuro”. Assim, o sentimento do espectador seria o do “triunfo do homem justo, moderado impassível (...). Mas esta certamente não é a fonte do mais sublime gênero artístico (...); trata-se do sentimento de segurança do caracol, que, instalado em sua casa, carrega-a por toda parte; a musa trágica exclui o cotidiano e a tranquilidade do caracol”. Segundo Ernani Chaves, “Nietzsche considera como manifestação de uma vida baixa aquela que se aproxima da do caracol, que se enterra no próprio casco, limitando ao mínimo suas trocas orgânicas. Ou seja, o organismo se fecha completamente aos estímulos dolorosos que vêm do exterior, diminuindo assim sua capacidade de assimilá-los, condição prévia do trabalho ativo da interpretação reparadora”. NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p.40-41. 26 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.54. 27 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.50. 28 SCHOPENHAUER apud NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.50. 29 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.50.

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busca física pela origem do mundo (uma origem física única sob o disfarce da pluralidade), como seria possível supor na continuidade da filosofia de Tales, mas sim como um verdadeiro julgamento trágico do existir, e uma busca pelo sentido e pelo sustentáculo – não só ontológico, como também moral­ – do vir-a-ser. Essa visão trágica e moral ganha traços mais nítidos quando aproximada à máxima de Schopenhauer, segundo a qual o homem é um ser que não deveria existir e está eternamente condenado a sucumbir, máxima muito próxima àquela de Sileno, que aparece no Nascimento da tragédia: There is an ancient story that King Midas hunted in the forest a long time for the wise Silenus, the companion of Dionysus, without capturing him. When Silenus at last fell into his hands, the king asked what was the best and the most desirable of all things for man. Fixed and immovable, the demigod said not a word; till at last, urged by the king, he gave a shrill laugh and broke out into these words: “Oh, wretched ephemeral race, children of chance and misery, why do ye compel me to tell you what it were most expedient for you not to hear? What is best of all is beyond your reach forever: not to be born, not to be, to be nothing. But the second best for you – is quickly to die”30.

Para Schopenhauer, “penitenciamo-nos de nosso nascimento, em primeiro lugar, pelo viver, e, em segundo lugar, pelo morrer”31. Ora, Nietzsche toma essa afirmação – que, segundo o autor, coloca a o problema pelo “valor moral da existência” – como guia hermenêutico, uma espécie de “metáfora antropomórfica”, que, na leitura de Anaximandro, será retirada “dos limites da vida humana” e estendida à universalidade e à integralidade da existência. O que Schopenhauer (e o Sileno de Nietzsche) concebia para o homem, Anaximandro concebe, a partir de uma abrangência cósmica, para todas as coisas particulares sob o vir-a-ser. Isto é, tudo o que é engendrado deve, pela força férrea da necessidade, ir ao fundo, pois deve pagar penitência por sua injustiça, eternamente. Cabe refletir melhor sobre tal afirmação e tentar compreender o significado trágico dessa injustiça. Para isso, é importante ter em mente as afirmações da Introdução à tragédia de Sófocles, trazidas acima, segundo as quais Nietzsche concebe a individuação como “fraqueza 30 NIETZSCHE, F. The birth of tragedy, p.8. 31 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.50.

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da natureza”, a separação individualizante como ruptura e ruína da natureza, frente à qual a tragédia e o êxtase dionisíaco colocavam-se como restauração da unidade desfeita, de retorno ao “contínuo”32 de um uno primordial. Essa visão de Nietzsche, em certo sentido valorativa, sobre a relação entre unidade e multiplicidade de indivíduos, reaparecerá expressa por Anaximandro em relação à totalidade do devir, adquirindo feição ontológica e cosmológica. Segundo a exposição nietzschiana, as coisas nascem de uma fonte primeira, inesgotável e indeterminada – o ápeiron (ἄπειρον) de Anaximandro – e nela voltam a sucumbir. Tudo o que se engendra, conforme afirma Nietzsche, vem a ser por emancipação de uma unidade primeira, do “ser eterno”33. Essa emancipação, aparentemente sem sentido – ou a individuação, ainda na trilha de Schopenhauer –, é a marca da ruptura de um estado de unidade e justiça. Ela é, portanto, “algo injusto”, digno de “punição” e que “deve ser expiado com o declínio”34. Do ponto de vista ontológico, é um processo de determinação de propriedades que devêm, e que dá origem à pluralidade das coisas finitas e determinadas. Se retomarmos o texto anterior de Nietzsche da Introdução à tragédia de Sófocles, lembraremos que a individuação aparece como “fraqueza da natureza” – “quanto mais arruinada a natureza, mais tudo se esfacela em indivíduos isolados” –, e que a tragédia coloca a possibilidade dissolução da individualidade e da determinação numa outra ordem cósmica35. O nascimento da tragédia situa a individuação como hostilidade, estranhamento e barreira do homem em relação aos outros homens, à Natureza, à Unidade Primordial36. Estes outros lugares textuais podem servir de parâmetro para compreender a “injustiça” que circunda a separação de uma coisa do indeterminado e do ilimitado, unidade primeira da qual a multiplicidade das coisas particulares vem a ser ou se desprende a partir da individuação e da determinação. 32 Para designar esse estado não individual, utilizo aqui um termo de Bataille, “contínuo” – contraposto ao “descontínuo”, que indica o estado de separação individualizante. Cf. BATAILLE, G. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987. 33 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.51. 34 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.51. 35 Nesse sentido, o dionisíaco poderia ser visto como vetor de uma restauração – através do êxtase, da embriaguez, da ruptura da soberania do indivíduo e do princípio de individuação – da força, pujança e potência da Natureza, em sua imanência e unidade fundamental. Por oposição, é possível pensar que uma natureza não “esfacelada” e não arruinada seria aquela em que não se dá a fragmentação em indivíduos isolados. Para expressar tal estado, cabe usar uma imagem de Bataille, da natureza como “água na água”. 36 NIETZSCHE, F. The birth of tragedy, p.4.

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Há, então, nessa pluralidade, uma soma de injustiças a ser expiada. Há, na existência desse incansável devir da pluralidade, “aquela contorção de dor (...), o infindável lamento de todo o reino do existir”37. Afinal, há no vir-a-ser o caráter trágico de um mundo necessariamente injusto (que faz, através de uma contradição irreconciliável, existir o que não deveria e faz sucumbir o que tem direito de existir), caracterizado pelo necessário “inexorável” “declínio da unidade originária das coisas”. Assim, todas as coisas são julgadas, pelo tempo e pelo acaso, pela injustiça de seu nascerindividuar, e penitenciam no existir (para o pessimista schopenhaueriano, existir e sofrer estão em uma relação de injunção), e todas as coisas são castigadas pelo emancipar-se do indeterminado no sucumbir. Isso ocorre de tal modo que, sempre onde é possível encontrar propriedades determinadas, será possível também prever o declínio de tais propriedades. Assim, “tudo o que alguma vez veio a ser também perece outra vez”38. Como é o possível perceber, na interpretação que Nietzsche empreende a respeito do pensamento de Anaximandro, é possível localizar a discussão relativa ao conceito de trágico. Uma das formas modernas do trágico que Nietzsche descaracterizará39 em Introdução à tragédia de Sófocles pode auxiliar na aproximação à noção grega, que pode ser localizada no comentário a Anaximandro. Trata-se da ideia de “justiça poética”, segundo a qual “toda infelicidade é punição” e “o sentimento enquanto se assiste à tragédia aparenta-se ao de um tribunal”40. Segundo Chaves, nessa visão, então examinada criticamente por Nietzsche, o elemento moral é de grande importância. Entretanto, “o verdadeiro sentido da tragédia não é a expiação 37 “Tudo o que já veio a ser se perderá uma vez mais”. NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.51. 38 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.51. 39 “A estúpida doutrina da justiça poética é intrínseca ao drama familiar burguês, como reflexo da existência do filisteu: ela é a morte da tragédia”. Segundo explica Chaves, a ideia da “justiça poética” associa-se ao tema da “culpa trágica”, que seria o mesmo que a “culpa moral” (p.38), daí a exigência de uma “justiça especial, a do poeta”, de tal modo que a elevação moral e a exemplaridade serão construídas sobre a punição pela falta individual do herói trágico enquanto agente moral. “O herói trágico, ao contrário da concepção do mundo grego, existe agora para dar o exemplo do que acontece com aquele que se deixa levar pela paixão exacerbada”. A “justiça poética”, com a ênfase cristã no pecado individual do herói, perde de vista a “culpa da existência ela própria”, sentido da tragédia, consequência, segundo Nietzsche, “de determinações anteriores, de predisposições espirituais e corporais, de disposições herdadas (...), de astros funestos”. A punição, na tragédia grega, integra um processo no qual não a elevação moral providencial da “justiça poética”, mas a transmutação de dor, sofrimento e temor em alegria, através do êxtase dionisíaco, se produz. NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles, p.38. 40 NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles, p.37.

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dos pecados individuais do herói, mas do pecado original, comum a todos, isto é ‘a culpa da existência própria’”41. Diferentemente de um apaziguamento moral produzido na justiça poética através da adequação proporcional de punição e culpa de um determinado agente moral, a concepção que Nietzsche advoga do trágico é marcada pela desproporção, pela dor, pelo imerecido. E parece ser essa a concepção que faz do pensamento de Anaximandro um pensamento trágico no sentido nietzschiano. Além disso, um dos elementos da visão criticada aparece como parte do horizonte interpretativo de Nietzsche: o “pecado original” da “existência própria” e a necessidade de sua expiação – e não da culpa por um pecado individual e uma punição “merecida”. É exatamente a existência própria, determinada, individuada sob o reino autocorrosivo do devir que será expiada pelo sofrimento e pela morte. Voltando ao aspecto ontológico da sentença de Anaximandro, o vir-a-ser da emancipação em relação à unidade – ou seja, o processo de determinação pelo qual uma coisa singular passa a existir separadamente da unidade primeira, ilimitada e indeterminada – é marcado pelo surgimento de propriedades determinadas (e contrárias, antinômicas, conflitantes). Dessas propriedades – uma vez que caracterizam a existência das coisas limitadas, separadas, determinadas e finitas –, podemos sempre profetizar o sucumbir. O individuar-se é, portanto, simultaneamente um passar a existir enquanto coisa determinada e finita, e um oferecer-se inexorável à necessidade de sucumbir, de “ir ao fundo”. Assim, “um ser que possui propriedades determinadas e nelas consiste jamais poderá ser origem e princípio das coisas”42. Pois, se assim fosse, “se o que existe verdadeiramente tivesse propriedades determinadas”, então, “teria surgido e teria” – também – “que declinar”43, e não seria, consequentemente, fundamento. O que, então, sustenta o vir-a-ser dessas propriedades e o próprio vir-a-ser enquanto tal? Qual é o fundamento, a arché, a unidade que subjaz toda multiplicidade? Trata-se do ser eterno, conforme AnaximandroNietzsche, pois, como já vimos, um ser que possui propriedades e consiste nelas não pode ser origem e princípio das coisas. Pois, para Anaximandro, “o que é verdadeiramente não pode possuir propriedades determinadas”, do contrário teria nascido como todas as outras coisas – “e teria de ir ao fundo”,

41 NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles, p.38. 42 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.51. 43 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.51.

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não havendo então nada sob o fluxo do devir e capaz de sustentá-lo, de tal modo que o próprio devir cessaria44. Desse modo, para que o devir não cesse, o ser originário tem de ser indeterminado, não individuável enquanto tal, em termos schopenhauerianos – o que aproxima sua noção de Vontade da noção de ápeiron. Para Nietzsche, a imortalidade e eternidade do ser originário, da arché, desse “uno primordial” que a tudo origina e no qual tudo se dissolve necessariamente, não estão na sua infinitude ou inexauribilidade, mas sim no fato de ele ser destituído de determinações, de “propriedades determinadas que levam a sucumbir”45. Desse modo, o indeterminado (que é matriz de todas as coisas enquanto ser originário) está, no pensamento de Anaximandro, acima de todo o vir-a-ser dos fenômenos, garantindo a eternidade e o “curso ininterrupto” do devir46. Esse indeterminado, por assim ser, só pode ser “designado negativamente pelo homem como algo a que não pode ser dado nenhum predicado do vira-ser que aí está”47, afinal toda designação positiva de atributos de uma coisa, todas as propriedades predicáveis somente o são no registro da finitude e do devir são elas mesmas determinações, não podendo ter relação positiva com o ápeiron. O ser verdadeiro só pode, então, ser designado negativamente e, considerando que a predicação é feita a partir das categorias relativas ao mundo do devir, da determinação, da pluralidade, poder falar positivamente dele seria dizer que é determinado e, assim, que devém e que sucumbirá. Por isso, por escapar à determinação fenomênica – e ainda por sustentar o dar-se-a-ver dos fenômenos, é que Nietzsche aproxima o ápeiron da “coisa em si kantiana”. Novamente aqui aparece a influência de Schopenhauer, que, ao apresentar seus conceitos de “Vontade” e “representação”, se utiliza de uma analogia com os conceitos kantianos de “coisa em si” e “fenômeno” (O mundo como vontade e representação, III parte). E aqui Nietzsche deixa transparecer a conceitualidade schopenhaueriana na matriz de sua compreensão sobre o trágico. Ora, a Vontade, esse indeterminado primeiro, o ser originário de Anaximandro, sustenta todo o vir-a-ser, pois não vem-aser. Acontece, porém, que o vir-a-ser para sucumbir é uma fatalidade trágica e aparece como uma face de sofrimento e angústia de um “eterno retorno”

44 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.51. 45 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.52. 46 Segundo Nietzsche, “eleva-se sobre o vir-a-ser” e “assegura a eternidade e o constante curso do vir-a-ser”. NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.52. 47 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.52.

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de inconstância e de uma injustiça primeira daquilo que Schopenhauer chamaria “principium individuationis”48. Ainda que não claramente formulada ou explicitada, há aqui uma visão daquilo a que Nietzsche dará estatuto conceitual posteriormente – em obras como Gaia Ciência, Zaratustra e fragmentos póstumos agrupados na Vontade de potência –, o “eterno retorno”. Se há uma perspectiva sobre o eterno retorno, ela é adequada à visão trágica de Anaximandro sobre o vir-a-ser, isto é, trata-se do retorno trágico da dor e da injustiça definidoras da existência de tudo o que deve sucumbir. Trata-se do eterno retorno do vir a existir e do deixar de existir, de uma existência sem finalidade, no qual uma dimensão ontológico-cosmológica49 se junta a um problema éticomoral. Trata-se da pergunta “como pode perecer algo que possui o direito de existir?” e do questionamento “de onde vem esse mar de sofrimento” e “a expressão de dolorida contorção sobre a face da natureza, de onde surge o interminável lamento de morte em todos os âmbitos da existência?”50. Essa confluência do cosmológico e do ético nessa primeira visão do eterno retorno é expressa da seguinte forma pelo filósofo: [Anaximandro dirige a] pergunta a todos os seres: o que vale vossa existência? E, se ela de nada vale, por que estais aí? Por vossa culpa, pelo que observo permaneceis nessa existência. Tereis de expiála com a morte. Vede como vossa terra se empalidece; os mares diminuem e secam, sendo que a concha sobre a montanha vos dá indícios de quanto já secaram; o fogo destrói vosso mundo, que, por fim, terminará por se absorver em vapor e fumaça. Mas, de novo, tal mundo da transitoriedade sempre tornará a reconstituirse: quem poderia redimir-vos da maldição do vir-a-ser?51

Importante é notar que essa visão do eterno retorno como pena difere do “não querer viver nada diferentemente” – ou melhor, do ser capaz de afirmar, de querer eternamente o que se vive –, que é mais um critério para o agir, ou do eterno retorno “seletivo”, tal como descreve Deleuze, do 48 NIETZSCHE, F. The birth of tragedy, p.3. 49 Para uma abordagem do contexto do debate cosmológico no qual Nietzsche constitui sua visão do eterno retorno, Cf. D’IORIO in MARTON, Scarlett (Org). Nietzsche pensador mediterrâneo: a recepção italiana. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Unijuí, 2007, p.254. D’Iorio reconstrói um panorama sobre discussão cosmológica, bem como as posições dos principais interlocutores de Nietzsche. 50 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.53. 51 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.53.

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“viver sempre somente de modo a querer viver (algo) eternamente”, que pode ser encontrado na Gaia ciência. Não, é um eterno retorno da determinação e de finitude, que se emancipa do indeterminado e do ilimitado e deve a ele retornar. É assim um eterno retorno da transitoriedade de tudo o que vem a ser, e do sofrimento expiatório que acompanha a existência: tudo que surge e nasce desaparecerá, toda existência, sentimento, ser individual, tudo tornará a sofrer seu declínio e desaparecerá. A tudo que é dada a existência, isso ocorre como uma injustiça, e, assim, ela (a existência) será violentamente solapada. Desse modo, a questão de “por que, então, as coisas vêm a ser se estão destinadas a sofrer e desaparecer?” se recoloca. Assim, se é possível que utilizemos de maneira talvez anacrônica a ideia posterior de “eterno retorno”, devemos compreendê-la no registro de um eterno retorno da ferida schopenhaueriana da individuação, que leva ao declínio e à morte – nas palavras de Nietzsche: “mas sempre e de novo, voltará a edificar-se um tal mundo de inconstância”. E “quem seria capaz de livrar-se da maldição do vir-a-ser?”. Maldição, porque fatalidade intransponível da injustiça, do imerecido, da condenação, da penitência. Essa “maldição” e esse círculo podem ser caracterizadas como retorno, pois a direção do decaimento do ser eterno no vir-a-ser é sempre a mesma, e não se pode esperar que a injustiça cesse: O eterno vir-a-ser só pode ter sua origem no ser eterno, sendo que as condições de decaimento de tal ser em direção a um vir-a-ser na injustiça são sempre as mesmas, a constelação das coisas é criada de tal modo que já não se pode prever nenhum fim para aquele retirar-se do ser individual para fora do âmago do “indeterminado”52.

Como vimos, a condenação que subjaz o vir-a-ser não é a condenação de um agente moral específico, que, proporcionalmente, será punido de acordo com sua culpa moral, advinda de uma vontade livre. Trata-se do próprio fato da existência individual, determinada e finita que lança tudo o que existe de maneira determinada no registro do vir-a-ser em sofrimento e penitência. Nessa condenação, não há qualquer panaceia moral, mas sim uma “antinomia entre destino absoluto e culpa” que “permanece sem solução”. A existência e o devir são vistos como grande dilaceração e como a “dor do mundo”, que são desproporcionais a qualquer ação isolada. “Maldição”, porque Anaximandro vê a pluralidade em sua dimensão contraditória, insustentável, no seu consumir-se e negar-se a si. 52 NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.54.

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Há, então, uma unidade eterna (indeterminado) e um engendrarsucumbir de uma pluralidade contraditória (determinação) condenada, sob jugo da necessidade, ao eternizar do “sair” dos seres isolados do seio do indeterminado. Daí surge a questão de um Anaximandro personagem conceitual de Nietzsche – por que tudo o que veio a ser “já não foi ao fundo há muito tempo, uma vez que já transcorreu uma eternidade de tempo? De onde vem o fluxo sempre renovado do vir-a-ser?”; Nietzsche encontra na resposta de Anaximandro uma solução mística: “o vir-a-ser eterno só pode ter origem no ser eterno” e as condições trágicas para o declínio necessário do ser-uno-justo na injustiça “são sempre as mesmas”53, e tragicamente ele decai. O decaído penitencia-se e sucumbe eternamente. Entretanto, como e por que o declínio acontece? Como e por que se dá essa passagem do indeterminado ao determinado, do justo ao injusto, do eterno ao tempo? Para Nietzsche, essas questões permanecem em aberto, e quanto mais intensamente Anaximandro as colocou, “tanto maior se tornou a noite”54. Será preciso esperar por Heráclito para que o vir-a-ser injustificado se justifique e se torne índice de uma justiça concebida na luta (§V). Nietzsche nos apresenta um Anaximandro herói trágico. Anaximandro não só realiza um salto filosófico em relação ao especular físico de Tales, como também introduz questões que chegam a definir até mesmo a própria filosofia, e os rumos dos filósofos posteriores a ele: “Seu pensamento também partiu e fundou colônias: em Éfeso e Eleia não se podia livrar-se dele...”55. Enfim, para finalizar e relembrar as palavras de Nietzsche, Anaximandro, em seu julgamento filosófico do mundo, toma parte desse “estar-aí” como “se fosse uma tragédia em que se deve tomar parte”56. REFERÊNCIAS BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976. JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MARTON, Scarlett (Org). Nietzsche pensador mediterrâneo: a recepção italiana. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Unijuí, 2007. 53 54 55 56

NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.54. NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.55. NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.54. NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos, p.53-54.

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NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1983. ____________. Opere (1870/1881). Roma: Newton Compton Editori, 1993. ____________. The birth of tragedy. New York: Dover Thrift, 1995. ____________. Ecce homo: como a gente se torna o que a gente é. Porto Alegre: L&PM, 2003. __________. Introdução à tragédia de Sófocles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. __________. A filosofia na era trágica dos gregos. São Paulo: Hedra, 2008 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, III parte; Crítica da filosofia kantiana; Parerga e paralipomena, cap.V, VIII, XII, XIV. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

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