Nikiti Rap City - Disputas na cena rap brasileira: a experiência niteroiense no limiar do século XXI.

June 15, 2017 | Autor: G. Moreno da Silva | Categoria: Cultural History, Contemporary History, Urban Culture, Hip-Hop/Rap, Niterói
Share Embed


Descrição do Produto

Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências Humanas e Filosofia - Departamento de História

Nikiti Rap City Disputas na cena rap brasileira: a experiência niteroiense no limiar do século XXI.

Gabriel Moreno da Silva

Monografia apresentada junto ao curso de graduação em História da Universidade Federal Fluminense como parte das exigências para obtenção do título de Bacharelado.

Orientadora: Prof.a Dr.a Juniele Rabêlo de Almeida

Niterói, RJ, 2015.

S586

Silva, Gabriel Moreno da. Nikiti Rap City - Disputas na cena rap brasileira: a experiência niteroiense no limiar do século XXI / Gabriel Moreno da Silva. – 2015. 59 f. Orientadora: Juniele Rabêlo de Almeida. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Departamento de História, 2015. Bibliografia: 57-59. 1. Rap (Música). 2. Niterói, RJ. 3. Cultura popular. 4. Cultura de massa. I. Almeida, Juniele Rabêlo de. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. III. Título.

Verso, em Niterói fumando na escuridão Que nem no som de Celso Blues Boy na canção, então Homenageio gente que eu admiro: Chico Buarque, Van Gogh, Robert De Niro, Francisco França, Mauro Mateus Nobres e plebeus que foram ao encontro de Deus A eles que eu me refiro, acidente estúpido ou tiro Me tiraram os amigos, neles me inspiro Desencanto repentino Caminhos do destino, caminhos do divino Se liga no relato, mulato, Não queimo mais a casa para me livrar do rato Nem de nenhum cretino Tipo de gente que se aproxima Pela fama da batida e da rima Taças para o alto, mãos para cima Meninas e meninos, é ferimento leve para firma, eu afirmo A cara do diabo em contato imediato Com a sola do meu sapato quando eu rimo (Black Alien - Caminhos do Destino)

Agradeço a minha família que sempre me apoiou na minha trajetória, tornou possível a minha formação acadêmica e muito contribuiu para a minha visão de mundo, em especial a dona Célia, minha mãe, e senhor Roberto, meu avô. Sem vocês eu nada seria. Agradeço aos amigos que me apresentaram o rap e escutavam comigo na internet depois das aulas do colégio, ou que relacionavam as nossas andanças adolescentes pela cidade as rimas afiadas de nossos conterrâneos. Agradeço aos bons professores que tive na faculdade, me iluminaram e me fizeram persistir nesse caminho que possui muitas partes sombrias. Em especial a minha orientadora Juniele Rabêlo que muito contribuiu para que esse trabalho se tornasse realidade, e a professora Livia de Tommasi que me escutou, auxiliou e aconselhou durante esses anos de graduação e me fez acreditar que a academia pode ser um bom lugar para se estar. Agradeço a todas as pessoas que fizeram e fazem essa cultura do rap viva e pulsante, um salve aos meus conterrâneos niteroienses, é pra vocês que dedico esse trabalho.

Resumo Essa monografia investiga a cena do rap surgida na cidade de Niterói, estado do Rio de Janeiro, Brasil. Buscamos entender a experiência niteroiense no limiar do século XXI a partir das análise das letras do rap como discursos. Realizamos a comparação da cena de rap de Niterói com a cena do rap de São Paulo dos anos 90 e de Nova York dos anos 80 e começo dos anos 90. Problematizamos quais são as possíveis aproximações e diferenças e de que forma se mantém a ideia de coesão dessas diferentes expressões dentro de um mesmo movimento. Utilizaremos para essa análise: letras de rap, material audiovisual, entrevistas e notícias de jornais. Notamos diferenças entre essas cenas que se fazem marcadas, e são reafirmadas nos discursos dos próprios cantores do rap, no que tange ao conteúdo e a temática das letras. Partindo da observação da cena niteroiense sugerimos a ideia de que o movimento do Rap emerge em diferentes cenas ao redor do mundo, todas essas cenas baseadas em discursos de afirmação e empoderamento da juventude local. Palavras-chave: Rap; Niterói; Cultura de Rua; História Cultural; História Contemporânea.

Abstract This work means to explore the rap scene that emerges in Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, in threshold of the 21st century. Analysing rap lyrics, movies, videoclips, interviews and newspaper articles. This work tries to explore this scene from Niterói and compare it to other rap scenes in the world, such as the 80’s and early 90’s New York rap scene, and the 90’s São Paulo rap scene. We try to investigate how the specific rap scene from Niterói are associated to the construction of an youth indentity in this city. And based on that assumption, we can sustain the idea that Rap culture creates different scenes arround the world, all in affimation and enpowering the the local group.

Sumário Introdução......................................................................................................................8 Capítulo I: Nikiti City – Cidades, Ruas e Identidade..................................................15 Capítulo II: Mr. Niterói – Uma trajetória no rap niteroiense......................................30 Capítulo III: Outsiders – Cultura do Desvio................................................................43 Conclusão....................................................................................................................53 Musicografia................................................................................................................56 Discografia...................................................................................................................57 Filmografia..................................................................................................................57 Referências Bibliográficas...........................................................................................57

Sugiro que você leia esse trabalho, escutando as músicas citadas e vendo os clipes e vídeos que usamos de referencia. Esse trabalho foi escrito com o browser de internet aberto e os fones de ouvido plugados. Provavelmente, essa reflexão fará mais sentido seguindo as mesmas coordenadas. Use e abuse do google e do youtube. Nós não somos responsáveis e nem possuímos os direitos sobre nenhum dos links aqui citados. Apenas compartilhamos informação disponível na internet.

> Para começar larga o play em: https://www.youtube.com/watch?v=oISRoovZ_Vo

Introdução Este trabalho monográfico nasce da ideia de se investigar a cena cultural da cidade de Niterói e a construção da identidade do povo niteroiense. Motivado por essa temática, primeiramente busquei fazer algo que explorasse os espaços culturais da cidade de Niterói, Rio de Janeiro. Em especial o espaço da antiga estação de barcas da Cantareira. Espaço esse que na década de 90 funcionou como lona cultural, servindo de palco para o lançamento de vários artistas. Paralelo ao movimento das rádios: Maldita FM, a rádio Fluminense1, e a rádio Pop Goiaba. Contribuiu para a formação de um movimento musico-cultural que uniu ritmos como rock, reggae e hip-hop e deixou marcas na imagem cultural do Brasil dos Anos 90. Por aqui passaram bandas como: Planet Hemp, Nação Zumbi, O Rappa, Farofa Carioca, Cidade Negra, Black Alien e Speed, entre outras. Meu interesse nessa temática, se relaciona a minha atuação no campo da produção cultural da cidade. Ao longo dos anos, fui reparando na recorrência de falas presentes nos discursos de agentes culturais da cidade, que reclamavam da atual situação da cena cultural da cidade, se referenciando em um suposto passado de ouro cultural. Para as pessoas que eu me relacionei eram mais vívidas as impressões da geração anterior (anos 90). Eu, então, como estudante de História, busquei nas minhas pesquisas compreender e remontar esse “momento de ouro” da cena cultural niteroiense que brilhava os olhos dos agentes culturais mais velhos. Contagiado, também sonhava em acordar nessa Niterói culturalmente pulsante que me narravam. Investigar o espaço cultural da cantareira e a cena cultural dos anos 90 se mostrou complicado, principalmente pela falta de documentação material. Encontrei depoimentos e acervos pessoais, dos próprios músicos e produtores da época. Me senti motivado a realizar um trabalho de construção e análise de um acervo de História Oral, em cima das experiências e dos acervos 1

Ver : SILVA, Heitor da Luz. Rock & rádio FM: Fluminense Maldita, Cidade Rock e o circuito musical. 1. ed. Itajaí: Editora da Univali, Niterói: EdUFF, 2013. 206 p. ISBN 9788576961024 (EdUFF).

8

pessoais que encontrei. Mas infelizmente não tive nem o tempo, nem os recursos para realizar esse tipo de trabalho. Fui, portanto, obrigado a modificar minha forma e meu tema de pesquisa. Apesar de não encontrar muita coisa sobre a suposta “idade de ouro cultural”, ou momento de efervescência, que os meus interlocutores se referiam. Acabei me deparando com documentação de memorialistas da cidade e percebi que o discurso da existência de uma idade de ouro cultural passada é lugar recorrente na construção da imagem da cidade. Se os meus interlocutores falavam da Cantareira e das bandas dos anos 90, outros memorialistas falavam sobre os sarais de poesia e serestas do Gragoatá dos anos 30, ou do Café Paris do começo do Século XX, ou de como a cidade promovia encontros culturais privilegiados e foi (embora essa seja uma imagem que vai se reforçar muitas vezes na história, como vamos ver no capítulo I) um grande celeiro de artistas, que vão sair de Niterói para desbravar o mundo. Este trabalho, então passou a ter o objetivo de abordar o surgimento do movimento do Rap na cidade de Niterói. Utilizando como fonte de pesquisa a analise das letras das músicas que constituem esse movimento, notícias de jornais, entrevistas e material audiovisual. Como a maior parte das letras de música que utilizo é veiculada pela internet (de maneira autônoma por fãs ou pelos próprios artistas, podem conter erros e alterações 2), não sendo lançada de maneira formal em discos, e quando lançada saindo de maneira independente do formato das gravadoras. Utilizarei as referências a partir de sites de letras da internet (quando possível, caso não seja, vou transcrever as letras do áudios presentes na internet para o texto). Queria agradecer em especial a Ton Gadioli, e a equipe que trabalho no filme: “Mr. Niterói: A lírica bereta” que foi a principal fonte do capítulo II e de central importância para a constituição desse trabalho monográfico. Escolhi o rap pela minha trajetória pessoal. Algum tempo depois de ter escutado pela primeira vez as crônicas frenéticas, organizadas em rimas por Gustavo Black Alien, passei a exercer o trabalho de DJ e produtor de eventos. Atividades onde me dediquei a pesquisa musical que entre outras temáticas teve o Rap como referencia. Como produtor tive a oportunidade, de trabalhar e conhecer parte dos artistas da cena do Rap e estar em contato com o público, códigos e imaginário 2

A problemática da utilização do material da internet como fonte foi apontada no parecer dessa monografia. Optamos aqui, a utilização das letras de sites da internet, assim como a citação de material disponível online, como tentativa de aproximar o leitor das plataformas que são centrais tanto para o desenvolvimento dessa pesquisa, quanto para a cena cultural que investigamos. Essas plataformas não possuem homogeneidade de registros, podem ser alteradas por qualquer pessoa, assim como pode ser compartilhada e acessada por qualquer pessoa. Evidentemente é diferente fazer pesquisa em arquivo em songbooks homologados pelos artistas e fazer pesquisa online em sites de letras de música e utilizando o youtube. Buscamos aqui reunir informações como o ano de lançamento da música e o site de onde retiramos as informações citadas. Pedimos desculpas para quaisquer eventuais equívocos e nos colocamos a disposição de alteração de qualquer informação que por ventura esteja errada. Por outro lado creio profícuo o trabalho com fontes não tão formais, não poderia ser diferente frente ao nosso objeto de estudo.

9

desse mundo bem particular. Além de participar por bastante tempo dos shows, batalhas de rima, rodas de rima e eventos do rap como fã. Onde reside o poder do rap? Por que essa expressão cultural é apropriada por indivíduos e grupos de várias partes do mundo, nos mais diversos contextos, utilizando o rap para empoderamento do seu próprio grupo? Para responder a pergunta deveríamos começar investigando o surgimento do rap na periferia de Nova York nos anos 70/80. Tricia Rose em sua obra “Black Noise” faz um extraordinário trabalho em investigar o surgimento desse movimento e as questões sócio-culturais daquele grupo. A obra de Rose nos serviu como principal referencia na metodologia de análise do objeto. A partir da obra comecei a pensar na possibilidade de se investigar as letras de rap como discurso. Permitindo, portanto, a partir dessa investigação acessar algo sobre a construção da identidade presente nesses discursos. “A música “Can Truss It” do grupo Public Enemy, começa com o rapper Flavor Flav cantando a palavra “Confusão!” em cima de um pesada e explosiva linha de baixo. O verso subsequente sugere que Flavor Flav está fazendo referencia a trajetória do outro rapper do grupo: Chuck D e sua relação com o legado da escravidão, que gerou bastante confusão cultural. Ele poderia estar facilmente descrevendo a própria história do rap. A música Rap é um confuso e barulhento elemento da cultura popular contemporânea da América, elemento que continua chamando bastante atenção. Por um lado, críticos musicais e culturais ovacionam o rap em seu papel como ferramenta educacional, apontam que as mulheres negras são raros exemplos de letristas agressivas pró-mulheres na musica popular, e defendem as histórias do guetos narradas no rap como reflexos da vida real que deveriam chamar a atenção para os gritantes problemas do racismo e da opressão econômica, muito mais do que o conteúdo obsceno das letras. Por outro lado, a mídia jornalística dirige sua atenção principalmente para as questões de violência dentro dos eventos de rap, para o uso ilegal de samples pelos produtores do rap, para as letras de gangsta rap e suas macabras fantasias sobre assassinar policiais e desmembrar figuras femininas, e para as letras de rap de conteúdo negro nacionalista que sugerem que o homem branco é discípulo do demônio. Esses aspectos celebrativo e inflamatórios do rap e a cobertura midiática sobre o assunto trazem à tona longos e antigos debates sobre musica e cultura popular. Algumas das mais controversas disputas se dão em volta das questões: podem imagens violentas incitar a prática da violência? Pode a música criar o cenário para as manifestações políticas? As letras de conteúdo sexual explicito corroboram para a quebra moral da sociedade? E finalmente, seria isso realmente música ?” ( ROSE, Tricia. Black Noise. p. 1. Wesleyan University Press. *tradução livre)

O pequeno trecho do trabalho de Tricia Rose nos revelam as características que são apontadas por ela como as principais desse movimento do rap que estava surgindo nas periferias dos EUA : movimento de gueto, jovens negros se empoderando, músicas de protesto e crítica social a uma realidade desigual. O próprio título do seu trabalho “Black Noise” revela a centralidade do conflito racial dentro de sua análise. Rose defende o rap, dentro de um contexto de continuação de movimentos culturais da diáspora africana, dentro de uma tradição oral negra da cultura popular dos

10

EUA. Essas questões centrais são temas de alguns outros trabalhos 3, dessa vez, sobre a realidade do movimento do Rap surgido nas periferias de São Paulo e Brasília. E algumas vezes esses termos centrais foram utilizados para descrever a cena rap ao qual estudo, mesmo que uma análise cuidadosa nos revele uma diferença significativa entre a cena do rap da classe média do Rio de Janeiro e as das periferias de São Paulo ou Brasília. Parece, que não só nos EUA, a história do rap causa confusão e atordoa aqueles que tentam compreende-la. Eu nas minha reflexões, me indagava: até que ponto esses elementos apontados por Rose faziam sentido no movimento do rap que havia se constituído no Rio de Janeiro. É claro que falar em movimento do rap no Rio de Janeiro é complicado, pois participaram e participam deste movimento cultural diversos agentes bem diferentes entre si. As vezes é difícil colocar em um mesmo lugar grupos como: Don Negrone e 3 pretos (provenientes de São Gonçalo e Baixada Fluminense) e Cone Crew Diretoria (provenientes do Recreio dos Bandeirantes). Apesar de até existir uma identificação mútua entre os grupos como “fazedores” de rap. Por outro lado, os grupos possuem discursos e ocupam lugares sociais bem diferentes. Exatamente por esse motivo que escolhi realizar um trabalho sobre o Rap realizado na cidade de Niterói, que mesmo esse recorte também possuindo suas próprias divergências e contradições, neste caso específico é mais coerente se traçar uma reunião de características comuns entre os grupos e MCs4. Dentro do Rio de Janeiro, lugar marcado pela desigualdade social, o lugar de onde se fala diz muito sobre com o que você se identifica. Atualmente o movimento do rap no RJ, tanto seus perfomers quantos seus seguidores, se organizam em bondes de diferentes bairros ou localidades. No dia 31/11/14, por exemplo, aconteceu na Lapa um evento reunindo as rodas de Rima que compõem o CCRP (Circuito Carioca de Ritmo e Poesia)5. No palco deste evento se apresentaram diversos grupos de Rap, que foram divididos pela localidade da onde provinham ou se identificavam. Cada um desses grupos era chamado de “bonde". O bonde de Niterói por exemplo: reunia os grupos SSM (Sociedade Secreta dos Magrinhos), Dois por Dois e Caixa Baixa. O bonde de Niterói assim como todos os outros presentes (Baixada, Zona Norte, Laranjeiras, Botafogo, Gávea, Jacarépagua,...) começavam convocando as galeras da sua região, gritando frases como: 3

Ver: BUZO, Alessandro. 2010; LEAL, Sérgio José de Machado. 2007.;MACEDO, Márcio. Artigo; PIMENTEL, Spensy., 1997. 4 Do inglês Master of Cerimony, uma tradução literal seria a de “Mestre de Cerimonia”, no entanto assume menos o contexto do apresentador das cerimonias do rap e passa a ser associada no vocabulário do rap a quem canta rap ou faz rima, principalmente nos eventos de improviso ou freestyle. 5 Sobre CCRP, ver: ALVES, Rôssi. Rio de Rimas. Tramas Urbanas. 2013.

11

“Alô Niterói” “Só pra quem é de Niterói. Faz Barulho!” . Movimento muito similar ao que acontecia nos bailes funks no começo dos anos 90 6. Pensando nas questões sociais que compõem esse movimento cultural retomo as memórias do meus primeiros contatos com o rap. Os caras do meu bairro, se juntavam aos domingos para realizar Rodas de Rima, na marina negra, na orla do saco de São Francisco, e as vezes juntavam o bonde de Niterói para ir aos eventos do CIC (espaço do antigo Centro Integrado de Cultura do Circo Voador) na Lapa nos anos 2000 e poucos. Esse movimento tinha alguma coisa a ver com aquela imagem do rap dos EUA ou de São Paulo, mas ao mesmo tempo era muito diferente. Primeiramente, porque a maioria daqueles caras não eram negros, ao menos não na ideia racial pré concebida que compõe o senso comum brasileiro, que apesar de país miscigenado ainda assume ideias de destacamentos raciais de alguma forma homogêneos. Eu nunca os perguntei, mas não creio que muitos deles se auto declarariam negros se questionados. Em segundo lugar, porque a maioria daqueles caras também não viviam em periferias ou favelas. A maioria ocupava os bairros de classe média niteroienses, lugares nada homogêneos, podendo variar padrões de moradia entre um apartamento “kit-net" dividido por várias pessoas de uma mesma família ou uma casa com jardim, piscina e muitos cômodos. Em terceiro lugar, porque as letras que aqueles caras cantavam pareciam muito distantes daquelas do rap paulista dos anos 90,(Racionais MC’s, Sabotage, Facção Central, RZO, são bons exemplos de ícones do rap de São Paulo ao qual me refiro). Então, seriam aqueles improvisos realizados pelos caras de camisa larga, calça caindo e que ficavam fumando maconha no meu bairro, integrantes do mesmo movimento cultural que fala Tricia Rose ou que integra o Racionais MCs? Bem, aqueles caras quando cantavam não pareciam hesitar ao classificar a música que faziam e fazem como Rap. Para entender um pouco do que é esse mundo imaginado do Rap na cidade de Niterói: vamos no primeiro capítulo investigar um pouco sobre a cultura da cidade e como as categorias recorrentes nas letras de rap se relacionam a construção da identidade de um tipo niteroiense. É essencial entender esse grupo de pessoas como proveniente dessa cada vez mais falada: classe média brasileira. A classe média está no meio do caminho per se. Sem uma identidade de classe muito bem definida. A separação clássica entre burguesia e proletariado parece fazer pouco sentido para o objeto que estudamos. A cidade de Niterói é conhecida como terra de bacharéis e funcionários públicos, a economia niteroiense está centrada no setor terciário. O acesso a bens como 6

Sobre Baile Funk dos anos 90, ver: HERSCHMANN, Michael. Abalando os Anos 90: funk e hip-hop : globalização, violência e estilo cultural. Rocco, 1997.

12

automóveis e eletrodomésticos, colocam um destacamento muito grande de pessoas nesse mesmo lugar da classe média. Abrindo espaços para distintas formações ideológicas e identitárias. Para entender a formação desse estilo de vida que vamos estudar precisamos entender esse local do meio, muito pobre para ser rico e muito rico para ser pobre. No segundo capítulo, vamos analisar a trajetória do artista pioneiro e principal referencia desse segmento do Rap niteroiense: Gustavo Ribeiro, ou Black Alien, ou ainda Mr. Niterói. Antenado as tendências da música global e articulado com a cena cultural alternativa brasileira, Gustavo conseguiu marcar a cena do rap do Brasil e consolidar uma carreira musical, mesmo lançando o seu primeiro disco 20 após ingressar na carreira músical. A trajetória de Gustavo nos remete a vários elementos confusos desse nicho cultural do rap niteroiense. O grande sucesso do rap niteroiense nos dias atuais (por exemplo o grupo Oriente possui um dos clipes com mais visualizações no Youtube de toda cena do rap no Brasil, acumulando 23 milhões de visualizações, e uma agenda de shows que percorre o território nacional) mesmo com pouco destaque nos grandes veículos de comunicação e massa. Quase sem tocar nos rádios e com raras aparições na TV, os grupos exploraram primeiro redes alternativas de uma cena underground (no caso de Black Alien), depois a internet para alcançar o público (no caso de Oriente). No terceiro capítulo vamos estender algumas considerações sobre as reflexões presentes nos outros capítulos. Buscando entender como a ideia de autenticidade no processo de produção musical e distribuição fora das gravadoras permitiram a constituição e legitimação dessa expressão cultural. Buscaremos entender a formação da representação narrativa e imagética (presentes nos clipes e perfomances no dia-a-dia dos locais do meio do rap) de um estilo de vida de um certo tipo de indivíduo niteroiense. Esse indivíduo vai passar a ser narrado, e de certa forma construído, nas musicas de rap, não só de Black Alien mas de diversos grupos e MCs de rap da cidade de Niterói. Alguns grupos e MCs da cidade são: Quinto Andar, De Leve, Marechal, Subsolo, Fluxo, Oriente, Medella, Chakras, Dois por Dois, Caixa Baixa, Sem Miséria, entre tantos outros. Creio na possibilidade de traçarmos um paralelo com símbolos de um estilo de vida presentes nas narrativas de diversos grupos e MCs de rap no Rio de Janeiro e de todo o Brasil que também estariam mais perto dessa identificação com a chamada classe média. Bastaria ouvirmos grupos como: Marcelo D2, ConeCrewDiretoria, Filipe Ret, Haikaiss, Projota, Pentágono, 3030, Start, Cacife Clandestino, entre muitos outros exemplos, sob a pena de citar alguns grupos e deixar outros de fora, mas nosso

13

objetivo aqui não é fazer um levantamento dos grupos, que dialogam com o estilo de vida que estudamos, pelo Brasil. Tentar radiografar as disputas de representação presentes dentro de um movimento cultural nos levam a várias possibilidades de abordagem. Encontrei trabalhos acadêmicos ou textos em blogs, redes sociais e/ou sites sobre Rap que buscam influenciar abertamente nessa disputa. É comum uma abordagem onde se adota um discurso de desvio da trajetória do rap, ou abandono da essência por parte dessas narrativas mais contemporâneas, e de um certo segmento que se afasta daquele ideal do que deveria ser o rap. Apesar de eu considerar válidas as análises críticas, em certos espaços inclusive bastantes necessárias, eu busco explorar esse segmento cultural sob uma análise que parte de uma metodologia científica. Portanto, me esforço para evitar juízos de valores sobre o segmento do rap que estudo. Afinal, não creio que caiba a mim qualificar ou moralizar os discursos aqui presentes. O que me interessa é entender algo do que está por traz do seu poder. Por que os grupos mais recentes desse segmento do Rap, no momento que escrevo, conseguem armazenar dezenas de milhões de visualizações nos seus vídeos do Youtube? Por que conseguem realizar turnês pelo país, onde é claro nem todos os grupos sociais são incluídos, com shows lotados? Enfim, por que, a final, essas músicas, símbolos, e estilos de vida, são tão populares e tão consumidos? Esse é o tipo de trabalho que busca se embrenhar nas frestas entre os limites dos espaços construídos na academia. Buscando referenciais dentro dos campos: da História Cultural, da Sociologia e da Antropologia. Acreditando que esse diálogo interdisciplinar não só é possível, como proveitoso. Chegando inclusive a conclusão, de que ao cruzarmos autores de diferentes campos, podemos ver que as vezes, esses diferentes autores são colocados em distanciamento mais por uma divisão acadêmico-estrutural, como estando em distantes prateleiras de uma mesma biblioteca, do que por um afastamento de linhas teóricas incompatíveis. A ideia desse trabalho, é explicitar que para além das superfícies aparentemente homogêneas os movimentos culturais são extremamente complexos e para serem compreendidos necessitam ser observados com calma e com uma visão atenta aos detalhes. A observação desse detalhes muitas vezes nos surpreende e derrubam sensos comuns e ideias pré-concebidas. Esse trabalho de se observar com atenção é menos realizado do que poderia ser, principalmente quando falamos nos grandes veículos de massa (mas poderíamos estender a crítica a certas produções acadêmicas), que priorizam a venda de reportagens e produção de conteúdo para consumo. Muitas vezes acaba se produzindo materiais equivocados e desconectados daqueles movimentos que se referem. 14

Capítulo I: Nikiti City: Cidade, Ruas e Identidade.

> Larga o play em: https://www.youtube.com/watch?v=JsqoxsrshMs e https://www.youtube.com/watch?v=3u7Nr-gr9Hw !

A cidade de Niterói, atualmente com seus 487 mil habitantes e 134 km2 (dados do IBGE,

acesso 02/07/15), é um município que integra atualmente o estado do Rio de Janeiro, ou que integra a região metropolitana do Rio de Janeiro ou Grande Rio (a partir da lei complementar no 20. de fusão do estado do Rio de Janeiro e da Guanabara de 1974), tem um processo histórico marcado por várias rupturas e alterações quanto ao seu status e representações. A cidade abrigou a capital da província e depois do Estado do Rio de Janeiro, no período de 1835 até 1975, com uma interrupção entre 1894 e 1903. A identidade da cidade de Niterói foi se constituindo em meio a conflitos de representação7 e de dependência com o "outro lado da poça”, ou a irmã bela da gata borralheira fluminense, a cidade do Rio de Janeiro. Vale destacar que o nome Niterói, que passa a designar a antiga região da Vila Real da Praia Grande em 18358, era o termo utilizado pelos nativos tamoios9 para designar toda a região da Baía da Guanabara (ou toda a região das águas escondidas, significado da palavra Niterói) até 1o de Janeiro de 1502 quando a expedição de Américo Vespúcio desembarca na Baía e passa a chama-la de Rio de Janeiro. Niterói se torna Vila Real da Praia Grande em 1819, nomeada pelo então rei Dom João VI, que costumava passar temporadas de férias em uma de suas residências no bairro de São Domingos. Começa então um processo de arruamento da cidade e plano urbanização em forma de “tabuleiro de xadrez" que, segundo a câmara municipal, foi o primeiro plano de urbanização de uma cidade brasileira. "A identidade de uma cidade pode ser construída com o auxílio de sinais diacríticos e fatos de memória. Niterói não possui a diversidade cultural de uma cidade cosmopolita. Niterói nunca ditou moda, criou estilos musicais próprios, nem possui pratos típicos, como o Rio de Janeiro. Tradicionalmente, sua população é oriunda do Norte Fluminense, que vinha em busca das benesses da capital do estado, sobretudo o acesso à faculdade. Lá, aqueles rapazes e moças da cidade pequena encontravam o ambiente de liberdade ansiado, sem correr, no entanto, os riscos de uma cidade grande como o Rio de Janeiro. Essa reunião de bacharéis acabou por criar na Niterói das primeiras décadas do século XX uma ambiência 7 8 9

Sobre conflitos de visões e representações sobre a cidade de Niterói ver : FERREIRA, Marieta. A cidade como centro político. Niterói, 1997. SOUZA, José Antonio Soares de. Da vila Real da Praia Grande à imperial Cidade de Niterói. Niterói, 1993. STADEN, H. Duas viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. Tradução de Angel Bojadsen. Porto Alegre, RS. L&PM. 2010. p. 101.

15

intelectual e artística própria, mesmo que essa ambiência não se extrapolasse em manifestações culturais específicas, como as cariocas. Mas não apenas isso, ao longo dos anos a cidade abrigou academias literárias, institutos históricos, grupos de poetas, de artistas, concursos literários, exposições, numa quantidade impressionante para suas reduzidas dimensões populacionais. Niterói é uma cidade bastante pulsante em atividades intelectuais/artísticas, o que lhe valeu o título de "Celeiro de Artistas", de inegável "vocação cultural" e a certeza de que lá se produzia uma ambiência cultural muito própria, que de forma alguma poderia ser considerada um reflexo do que ocorria/ocorre no Rio de Janeiro.”(LUZ, Margareth. 2009)

A maior parte das fontes sobre a memória cultural da cidade de Niterói é de caráter memorialista. São diversos os autores que se dedicam a escrever seus relatos apaixonados, deixando para as gerações futuras as suas memórias10 de uma Niterói bastante colorida. Onde passeiam poetas, músicos, ilustres boêmios e políticos. A partir de 1989, com o início da gestão Jorge Roberto Silveira, vai se construindo uma imagem da cidade de Niterói associada a ideia de cidade cultural. A cultura é acionada pelos gestores e apresentada como justificativa à resistência de Niterói em se tornar subúrbio do Rio após a fusão do estado da Guanabara. Vão se construindo campanhas de orgulho municipal, através da divulgação de dados que colocam a cidade em altos rankings em censos sobre qualidade de vida, moradia, desenvolvimento social e taxa de renda. Se constrói uma campanha política baseada na tríade: "cidadania cultural", "desenvolver o turismo" e lutar conta as tendências culturais “englobantes da cidade vizinha”11 (Rio de Janeiro). O que se efetiva por exemplo na criação do Departamento de Proteção e Reabilitação do Patrimônio Cultural (Depac), da Niterói Livros, da Niterói Discos, da Niterói Artes, entre outras fundações. Após essa brevíssima contextualização, retomando a citação do niteroiense Roberto Damatta, como podemos entender para além desse conjunto de fatos históricos e dados objetivos: o que faz niterói, Niterói? "Assim, o ponto de partida deste ensaio é o seguinte: tanto os homens como as sociedades se definem por seus estilos, seus modo; de fazer as coisas. Se a condição humana determina que todos os homens devem comer, dormir, trabalhar, reproduzir-se e rezar, essa determinação não chega ao ponto de especificar também que comida ingerir, de que modo produzir, com que mulher (ou homem) acasalar-se e para quantos deuses ou espíritos rezar. É precisamente aqui, nessa espécie de zona indeterminada, mas necessária, que nascem as diferenças e, nelas, os estilos, os modos de ser e estar, os “jeitos” de cada qual. Porque cada grupo humano, cada coletividade concreta, só pode pôr em prática algumas dessas possibilidades de atualizar o que a condição humana apresenta como universal. As restantes ficam como 10

Ver por exemplo: ALMEIDA, L. de. Lili Leitão, o Café Paris e a vida boêmia de Niterói & Niterói, poesia e saudade. Niterói: Niterói Livros, 1996.; NOBREGA, Orlando. Os boêmios da cultura de Niterói: a memória da cidade através dos bares, restaurantes, livrarias, esquinas e serestas. Niterói: Niterói Livros, 1994. 11 LUZ, Margareth. 2009.

16

uma espécie de fantasma a nos recriminar pelo fato de as termos deixado nos bastidores, como figuras banidas de nosso palco, embora estejam de algum modo presentes na peça e no teatro. (…) Cada sociedade (e cada ser humano) apenas se utiliza de um número limitado de “coisas” (e de experiências) para construir-se como algo único, maravilhoso, divino e “legal”...” ( DAMATTA, p.10-12, RJ, 1986)

Ou seja, onde se encontra a passagem do ser humano genérico para o cidadão niteroiense? Lançando mão da ideia de Damatta vamos tentar alcançar uma pequena faceta desses "dados qualitativos e sensíveis” através da observação do movimento cultural do rap niteroiense. Entendo cultura como: “precisamente um estilo, um modo e um jeito, repito, de fazer coisas.” (Damatta. p.12, 1986. op cit.). Vamos buscar entender então o que é esse jeito niteroiense de fazer rap.

"Black Alien em Niterói nascido e criado” (Black Alien, É, 1999, Disponível em: http://letras.mus.br/ black-alien/ 1754012/) "Isso aqui é Itacoa, isso aqui é Niterói Isso é rio de janeiro, aqui não tem super herói (eu tô no jogo, eu tô na vida, eu tô no beat, Tô na batida, tô em nikiti eu tô no mundo, Tô trabalhando o dia inteiro pra honrar os vagabundo)”(Oriente, Isso aqui é Itacoa, 2011, Disponível em: http://www.vagalume.com.br/oriente/isso-aqui-e-itaoca.html) "Niterói o lugar ideal que a ti tudo serve, como eu também De Leve!! De Leve!!”(De Leve, 2003, Eu Bolo, Disponível em: http://letras.mus.br/de-leve/237249/) "Niterói tamo ai, represento a minha cidade Só me resta a saudade dos que não estão mais aqui Não sei se te convenci, se não gostou então esquece Os amigo que fortalece não pensa que eu esqueci” (Caixa Baixa, Pode Acreditar, 2013, Disponível em: http://letras.mus.br/caixa-baixa/pode-acreditar/)

O que significa ser de Niterói para o MCs do rap? A identidade nesse caso se relaciona intrinsicamente a um estilo de vida12 . Se dizer de Niterói é se colocar no mundo, se identificar com o lugar que nasceu e que portanto defende, se identificar como pertencente a uma comunidade imaginada13, muitas vezes inclusive essa afirmação de pertencimento é colocada como se dizer-se de Niterói tivesse sentido próprio, ou não demandasse explicações. A final, o discurso se constrói como se todo niteroiense soubesse o que é ser de Niterói, portanto dizer-se de Niterói já evoca uma 12

BOURDIEU, Pierre. 'Gostos de classe e estilos de vida'. in: Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. 13 ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. Ed. Ática, 1989.

17

cultura, no sentido de Damatta, como um jeito de fazer as coisas, específica e automaticamente identificada. É comum também estarem presentes nas letras: a descrição de lugares, situações e pessoas que promovem identificação no público niteroiense. O vínculo identitário com a cidade que vai se construindo nas letras dos grupos de rap niteroienses, não narram a totalidade de experiências possíveis de serem vividas com, e, na cidade. Apesar de se colocarem as vezes como afirmativas absolutas, o "ser de Niterói" para o MC é distinto do “ser de Niterói” para diversos outros agentes. No entanto, algumas características da cidade são possíveis de provocar identificação mesmo em diferentes tipos de pessoas, que cultivem diferentes tipos de relação com a cidade, por exemplo: a dinâmica relação com a cidade vizinha do Rio de Janeiro e suas dificuldades e prazeres; ou, a relação com as praias da cidade (que embora não seja homogênea é um signo de identidade reconhecido por muitos cidadãos). Ao mesmo tempo que a experiência com a cidade é colocada como absoluta nos discursos do rap, outras vezes também é colocada como distintiva e autentica. O estilo de vida e a comunidade imaginada aqui evocados se circunscreve a um determinado tipo de niteroiense, que está relacionado a um determinado tipo de indivíduo: usualmente jovem, similar a um tipo de indivíduo presente em outras cidades urbanizadas. Em suma, para o rapper o estilo de vida que ele vive é o estilo de vida da rua. Não seria possível entender esse movimento cultural sem entendê-lo como uma cultura de rua. E o que isso representa para os MCs de Niterói e para o público do rap. A rua é o lugar central da identidade14 do rapper ou MC. É na rua que ele constrói suas experiências mais significantes, é na rua que ele encontra seus colegas do rap, da maconha, do xarpi (pixação) ou do skate. Os discursos do rap niteroiense revelam uma relação constante e intrínseca com o espaço das ruas da cidade. A rua, nas letras do Rap desse segmento, é o espaço que significa o falante. Pode também assumir caráter de entidade como em: “A rua sabe”. Rua, se refere não a qualquer espaço fora de casa, como uma rodovia ou uma avenida. Mas, mais que um espaço é um lugar15 . A rua pode ser uma praça, pode ser um bar, pode ser o calçadão da praia … A questão é que na rua se passa a “vida real” para nossos narradores. A rua é o espaço que a cidade pulsa e diferentes agentes se encontram. Normalmente a rua é associada a lugares onde é presente vida boêmia e noturna. A rua no caso que veremos no capítulo seguinte pode ser associada ao espaço do Campo de São Bento destacado por 14 15

Ver debate sobre identidade: HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós Modernidade. Lamparina, 2014. Ver: AUGÉ, Marc. 1994.

18

Speed e DJ Rodriguez como espaço de sociabilidade, onde se conheceram. As letras de Black Alien começam a trabalhar essa categoria que vai se tornando cada vez mais central para os grupos e MCs de rap que vem em seguida. "A rua sabe, a rua vê, rua é nóiz não vai esquecer" ( Marechal, A Rua sabe, disponível em: http://www.vagalume.com.br/mc-marechal/a-rua-sabe.html)

A rua é ao mesmo tempo espaço de conflito e de expressão democrática. A rua expressa a ideia de democracia por ser “livre” e gratuita, é um espaço aberto a todos, por onde passam, se encontram e convivem muitas pessoas distintas, espaço comum. Esse convívio muitas vezes é permeado por conflitos entre os diversos agentes que habitam aquele local. Seja o conflito entre o poder público e pessoas que estão performando uma expressão artística (uma roda cultural por exemplo); seja o conflito entre o poder público e pessoas que estão consumindo alguma substância ilícita; seja o conflito entre o poder público e os ambulantes vendedores de bebidas normalmente consumidas pelos jovens; seja pela ocorrência de conflitos entre as próprias pessoas que estão ali se encontrando no mesmo local. Por esses motivos, a rua também é narrada muitas vezes como o espaço do perigo e da adrenalina. “A noite é hora dos doidão, porradão As minas ficam soltas os mano galudão, gastação (2x) Traz cuba libre preu beber Pros meus problemas esquecer Quero ver mina entorpecer Madruga é hora do lazer Nissin e mamute free na canta Canta, bebe e fuma planta” (Oriente, A Noite, 2012, disponível em: http://www.vagalume.com.br/oriente/a-noite.html#ixzz3pgLKfWHc)

O discurso das rimas do rap vai além na relação identitária com o território da rua e assume em certos momentos a rua como adjetivo. Não só se está na rua mas se é a rua. “Ser rua” é saber lidar com as mais diversas pessoas e situações que envolvem esse lugar. É saber se adaptar aquele espaço, conhecer as pessoas que normalmente frequentam aquele espaço, ser considerado por essas pessoas. É também saber não se envolver ou não se prejudicar com conflitos entre as pessoas nesse espaço, como a máxima popular “bom malandro não deixa furo".

19

O "ser rua" se associa diretamente a imagem do malandro16, aquele que sabe burlar regras sem se prejudicar, aquele que sabe se sair bem nas situações. Ser rua, observemos, não diz respeito portanto a uma distinção de classe, nem racial. Ser rua, não é morar na rua no sentido dos moradores em situação de rua que vivem em estado de miséria. Ser rua tem a ver com escolher frequentar assiduamente aquele espaço da rua, de uma forma onde se esteja adaptado as dinâmicas que ali se sucedem. A ponto daquele espaço ser significante na construção de identidade do sujeito. A pessoa que é rua normalmente também pode ser definido por uma pessoa que opta por um estilo de vida boêmio.

"Nem sei o frankenstein de raças vira-lata à mercê das traças máfia que mata a nata da sociedade brasileira rata só faço show de Graça se for em ação de graças adeus ao ser humano, por favor, sem palhaçada; na minha área, na minha praça!”(Black Alien e Speed, Nikiti City, 2000, Disponível em: http:// www.vagalume.com.br/black-alien/nikiti-city.html#ixzz3hCzNonuk)

No caso específico de Niterói a rua aparece como um espaço possível de ser comparado ao lugar que ocupa simbolicamente nas letras de Rap: a Periferia (No rap de São Paulo e Brasilia dos anos 90) ou o Gueto (No rap dos EUA dos anos 80 e 90). Isso porque a rua aqui aparece como espaço do sujeito, significado por ele e significante a ele. As ruas de Niterói no discurso das rimas dos raps é a área de quem canta. Então, um espaço de conflito e identidade que deve ser defendido pelos sujeitos. Portanto, a relação identitária com Periferia ou com o Gueto para outros falantes de outras localidades é similar ao que representa a Rua para o rapper niteroiense. Há nesse caso uma diferença destacável na relação com os territórios: enquanto na Periferia e no Gueto os agentes narradores habitam todos os dias aquele espaço, por opção ou não. Na rua a relação, mesmo quando se constrói um vínculo afetivo, é mais distante. Ou seja, não só é possível abandonar o espaço da rua momentaneamente ou “tirar férias” das ruas por um tempo. Como a maior parte dos sujeitos o fazem cotidianamente quando retornam para o espaço que habitam, que muitas vezes são espaços que resguardam os confortos e seguranças da classe média. 16

Ver: COELHO, Frederico. “Suingue e agitação: apontamentos sobre a música carioca contemporânea”. In: GIUMBELLI, E; DINIZ, J.; NAVES, S. (orgs) Leituras sobre música popular – Refl exões sobre sonoridades e cultura. Rio de Janeiro: 7 letras, UFRJ, PUC-Rio, 2008.; e, DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia dos dilemas brasileiros. Rio de Janeiro: Rocco, 1978.

20

O fato da rua assumir esse local de identidade tão central sintetiza bem esse paradigma da classe média. A rua como local público é o local do encontro. Ali, não se importa se se é “rico” ou “pobre”. As distinções entre os sujeitos são construídas em função do mais e do menos adaptado aos códigos sociais daquele território. Veja bem, portanto, que nossos agentes evitam a ideia de uma divisão de classes. As divisões sociais são encaradas muito mais na direção de diferentes estilos de vida. Diferentes modos de viver a cidade. Podem dividir os indivíduos entre: os “vagabundos” e os “caretas”; quem “vira a noite” e quem dorme cedo; quem “dá calote no busão” e quem vai de taxi. Não que essas diferenças sejam bem definidas em dicotomias A e B. É comum, por exemplo, se fazer ironia em batalhas de rima com o fato do adversário ser “playboy”, ser “falso vagabundo”, ser “filhinho de papai”, etc..

“Se é rico ou se é pobre, aqui cola todos brother Até tem uns "mother fucker", tão melhor prestatenção Porque não pode dar mole, no meio de vários goles Hoje à noite te engole é a hora dos doidão!” (Oriente, A Noite, 2012, Disponível 0 em: http://www.vagalume.com.br/oriente/a-noite.html#ixzz3pgLKfWHc)

O termo cultura de rua é referencia recorrente em todas as cidades urbanas e aparece no rap desde os anos 90, entretanto nos anos 2000 acontece um marco para a cena do Rio de Janeiro, pois o Rap e a Rua realizam um casamento simbólico com o surgimento das rodas culturais e batalhas de Rap.17 Se formam portanto diversas rodas e batalhas no Brasil (exemplos: Batalha do Real (RJ), Liga dos MCs (RJ), Rinha dos MCs (SP), Batalha da Ponte (ES), Batalha do Coreto (MG),…). Lembrando, que essas Rodas de Rima e Rodas Culturais representam a corporificação de movimentos de reunião de indivíduos para fazer improvisos nas ruas. No começo dos ano 2000 vão então se multiplicando esse movimentos, assumindo periodicidade em determinadas localidades, se homologando regras e formatos para as batalhas de improviso.18 No estado do Rio de Janeiro há, no momento em que escrevo, um circuito onde se incluem cerca de uma centena de rodas culturais realizadas semanalmente. Portanto a Rua agora não é só

17

Para mais informações sobre Rodas de Rima e Cultura do Improviso ver: ALVES, Rôssi. Rio de Rimas. Tramas Urbanas. 2013. 18 Sobre a cena do improviso no Rio de Janeiro no começo dos anos 2000 ver: De Repente: poetas de rua. Diretor: Arthur Moura. Rio de Janeiro, 2009.

21

frequentada esporadicamente, agora a cultura do Rap tem semanalmente em cada localidade um dia de celebração nesses espaços (muitas vezes os jovens circulam pelas rodas e batalhas podendo se preencher um calendário quase diário de atividades). As letras de Rap gravado em Niterói e no Rio de Janeiro se assemelham, progressivamente a partir dos anos 2000, com o formato das rimas improvisadas no freestyle19 , onde muitas vezes se acelera a levada, ou se dobra o tempo dos versos realizando uma flipada. A forma estética das rimas é tão/ou mais importante que o conteúdo. Esse formato de rap que vamos chamar de: cultura de rua, está hoje presente por todo Brasil, e os rappers que compõem esse segmento, em sua maioria, são responsáveis, ou começaram sua trajetória, dentro de rodas e batalhas de rima. Essa cultura do rap que classificamos como cultura de rua, em distinção a uma cultura de periferia e a uma cultura do gueto, também pode ser classificada como cultura do rap de improviso20. Vejamos por exemplo dois exemplos: um do grupo ConeCrew Diretoria do Rio de Janeiro, outro do de um verso de Rashid em uma música compartilhada por ele, Projota e Emicida, ambos de São Paulo. “Eu vou pra Lapa, bebo cerva com a galera neguin, já era 30g de erva o freestyle acelera os louco rima a vera Eu fico só naquela observo a panela Os MCinderela, a vida não é novela Seu Zé Ruela o cara vem diz que faz rima, mas da rima nem sabe se fazer dela Quem me dera paciência mera para aturar aquela, Pala, de comédia que saiu da rédea Na Lapa foi fazer média, mano que tragédia! Já vê que mente Trava no repente De repente gente o aparentemente a frente Pelo vulgo cujo atende 50 o entristeCENT, o MCinexperiente Não tava dentro do CIC na batalha chapa quente, mas tá dentre essa gente que é a maior psicologia Tem o bonde dos amigos e a banca da xenofobia, Na Lapa tem os que é de família, Na Lapa tem os que é safado, 19

Improviso de rimas, seguindo uma ordem rítmica. Essas distinções entre: Cultura de Rua, Gueto e Periferia, fazem sentido para o nosso recorte. Investigar esse movimento como nacional necessitaria observar suas particulares em cada canto do país. Alguns Mc’s de São Paulo hoje, por exemplo, fazem parte dessa Cultura do Improviso, mas não abandonam as características da Cultura da Periferia, misturando as duas categorias que aqui colocamos como distintas. 20

22

Na Lapa tem os que são puro e os que te vê com mal olhado”.(ConeCrewDiretoria, Lá pa Lapa, 2008, Disponível 0 em: http://www.vagalume.com.br/conecrewdiretoria/la-pa-lapa.html#ixzz3pgSZb8AZ)

“Freestyle é tipo oração, só se faz, não pensa 40 segundos e uma missão extensa Corpo, alma e coração em um, sentimento em comum Dando vazão pra tal celebração. Razão pra MC's Com pensamento de que hoje é dia de fazer o melhor rap que eu já fiz. Um brinde a nóiz, família a rua é nóiz Que brilha o olhar em reconhecimento aos heróis Da nova geração. Um momento capital espírito, arrepio faz parte da tradição. Tive disposição e quis sair do zero. Eu não quero fazer o que eu posso, eu posso fazer o que eu quero. Porque a vida me deu improviso na veia, E não periga de ter prejuízo na ceia. Só rima verdadeira. Cada uma como se fosse a última e cada sessão com o calor da primeira.”(Rashid, Ainda Ontem, 2009, Disponível 0 em: http://www.vagalume.com.br/projota/ainda-ontem.html)

Entender a categoria rua é central para entendermos o desenvolvimento desse estilo de vida, desse tipo niteroiense específico, que é afirmado e celebrado pelo rap. Hoje mais de 30 anos depois do surgimento da cena do rap niteroiense, podemos perceber como o discurso presente nas rimas, também traçou um percurso de influencia na construção das características associadas a esse tipo de indivíduo niteroiense e que vão ser utilizadas e acionadas por diferentes indivíduos. Ou seja o jovem não só se identifica com as rimas, mas busca também se aproximar dos modos de vida narrados pelo rap. A centralidade do discurso dessa forma de rap está centrada na afirmação de um certo estilo de vida. Essa forma de fazer rap niteroiense busca se distinguir de uma outra forma do que vamos chamar aqui de rap de periferia presente: em São Paulo, Brasilia e em outras localidades (inclusive no próprio Rio de Janeiro). Para esse formato rap de periferia, a temática está referenciada: nas questão sociais da localidade onde moram, na denúncia as condições de vida da periferia, na denúncia dos abusos policiais e na afirmação e empoderamento da população negra. É verdade que no rap niteroiense também estão presente formas de crítica social. No entanto, o tom da maior parte dos discursos do rap é da necessidade de se falar de coisas boas. O discurso da forma de rap niteroiense, num formato muito parecido com o presente nas rimas das 23

batalhas de improviso, está mais preocupado em afirmar o lugar de quem canta no mundo, do que em reclamar, denunciar a situação quem se encontra e reivindicar a alteração dela. Quando se buscam as críticas sociais, elas se dão em um formato que aposta na ironia, no chiste, na brincadeira. O estilo de vida normalmente presente nas rimas se associa a um modo de vida de classe média em distinção aos valores de ostentação da classe alta. Os discursos forma de rap niteroiense, portanto, se diferenciam dos do funk ostentação da baixada santista e de outras expressões culturais que compartilham estética com algumas semelhanças, mas que se referenciam na ostentação de bens de consumo. Embora, os grupos mais contemporâneos de Niterói tenham mais proximidade com a cena ostentação e seus representantes. Ainda assim, os bens materiais como carros, jóias, casas, não figuram tanta importância no formato do rap niteroiense, podem até estar presente nas vidas pessoais dos MCs mas não são ovacionados nas suas letras, soa até incompatível com o discurso de desprendimento material que é característica marcante ao estilo vagabundo como vamos ver um pouco mais a frente. A relação com o consumo normalmente destacada pelas narrativas desses grupos de rap é referente ao consumo drogas de qualidade (mais recorrente: álcool e maconha), consumo em abundância de substâncias entorpecentes em festas (festas regadas). Em suma, a exaltação de uma vida hedonista, mas não essencialmente materialista, mas essa relação pode em alguns momentos ser ambígua. Pouco se fala na pobreza como uma situação de opressão, e quando se fala é de uma ótica de quem já vivenciou a situação e por isso se solidariza com quem a vive. O status de classe média permite essa identidade mais elástica, pautada muito mais em valores e ideais, como se fossem questões de escolhas subjetivas, do que na sua percepção como condições estruturais. Assim como boa parte das estruturas familiares são formadas por indivíduos que compartilham experiências de vida de diferentes níveis de acesso a bens e facilidades do capital. O indivíduo de classe média niteroiense é mais provável de circular entre as diferentes casas do “tio pobre” e do “tio rico”, somando-se na composição de uma realidade familiar. Nesse grupo que estudamos, é valorizado uma postura desviante a margem do habitus status quo, comportamento normal por escolha própria. O que pode ser expresso pelo indivíduo de várias formas. Por exemplo: no vestuário “largado”; No orgulho de frequentar lugares da cidade que seriam evitados pela maioria, como favelas, bairros pobres, entendidos pelos status quo como lugares de perigo; no consumo recreacional da maconha; numa relação hedonista com a vida.

24

Para entendermos melhor a construção da representação desse estilo de vida nas letras de rap, vamos observar algumas categorias recorrentes nas letras de diversos grupos. Essas categorias ajudam a ilustrar esse estilo de vida: Vagabundo: A categoria vagabundo se associa a imagem da malandragem. E é ressignificada a partir do meio dos anos 2000, antes disso vemos letras onde o termo é usado de forma ambiguamente pejorativa.

"Cérebros de férias, vários vagabundos festejando o fim do mundo Enquanto isso, o cidadão comum se sente ridículo” ( Black Alien, From Hell do Céu, 2004, Disponível 0 em: http://letras.mus.br/black-alien/145043/)

Mais tarde, o termo vai caminhando para uma categoria que passa a identificar o grupo21 . Ser vagabundo se torna motivo de orgulho. O termo não se associa exatamente a imagem de quem não trabalha. Na verdade os valores do trabalho no rap são muitas vezes ovacionados no discurso. Mas a relação do trabalho que é ovacionada, é a do self made man, empreendedor de si mesmo, aquela pessoa que consegue se disciplinar para atingir seus objetivos. A imagem do trabalhador formal é rechaçada. O vagabundo assumiria portanto uma postura marginal ao modelo do cidadão urbano comum, ou seja, vive de noite, pode acordar tarde, trabalha para si, leva uma vida boêmia e sai bem das situações que poderia prejudicar seu estilo de vida. “Essa é pros amigos/ que tão junto comigo/ aqui/ com ou sem dinheiro já que é de graça comer caqui/ não preciso de tênis,/ não tenho o maior pênis,/ nem quero com fama eu também como a Luciana Gimenez/ não uso Nike no pé/ na camisa ou no boné/ sem Calvin Klein na cueca, nego me acha mané/ sem meia d'Adidas, sem camisa da Tommy/ sem bermuda da Champion, as interesseiras somem/ sem som do Timbaland no fone,/ sem Timberland, sem telefone/ celular, só as de celulite dizem qual seu nome/ sem carro, só de long/ só de totó e ping-pong/ nego do rap me acha play e cresce igual King Kong/ odeio marca/ e trânsito, ando de barca/ zuar clichê dá certo, marca/ a maioria embarca/ não sei pra quê ser ricão/ e ter que ficar com bicão/ mais três negão/ igual a Xuxa pra ter proteção/ já eu não/ to de sandália/ só o meio fio atrapalha/ e o diskman quando o fio escangalha/ no Rio encalha/ quem tenta fazer som maneiro/ ainda mais eu que pouco bebo/ e se elas pedem nunca tenho isqueiro/ é assim que funciona/ quando se relaciona/ dando dinheiro/ de volta pra casa ela exige e pressiona/ tanto que vira costume igual/ eu com o comentário sobre o som que ouço e o volume dizem que arde igual/ pedra ume na afta/ dizem que é desigual/ igual nafta/ mas nem é quando o sentido real/ se capta/ roupa não te faz melhor, cê só se adapta/

21

Ver: “Dama e o Vagabundo”, Oriente, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JLtBi--FJL8 ; Ouvir: “Vagabundo”, Quinto Andar, disponível em : https://www.youtube.com/watch?v=t-8yVX1M9yc.

25

lendo 1 livro por mês sua inteligência ninguém rapta/ mas ninguém tá afim, cansa/ é melhor ligar a tv/ faz igual a mim, descansa/ seu futuro dá pra prever/ sábado a noite no quarto pá vê cine privê/ pavê na mão/ classificado no chão, como michê” (De leve, Essa é pros amigos, 2003,Disponível em: http://www.vagalume.com.br/de-leve/essa-e-pros-amigos.html)

Largado: é a expressão do estilo vagabundo no vestuário. Marcada por um estilo "relaxado" com a aparência, o que nem sempre se associa a uma falta de vaidade. A preferência se dá pelo uso de roupas largas com influências do vestuário presente nos clipes e filmes sobre a cultura do hiphop americano (Boné aba reta, muitas vezes bonés de equipes de baseball, camisas de basketball, camisas de marcas associadas a cultura do Hip-Hop estadunidense) e nos estilos de vestimenta da cultura do surf e do skate. O uso de chinelos também é uma marca forte. O andar largado é um discurso que prega o não se preocupar com o vestir-se, mas uma análise mais cuidado mostra que essa categoria remete a uma forma estética, que passa ela também por códigos e preparações para a construção da aparência. Se vestir largado é oposto de "se vestir playboy”, arrumado. "cê anda de chinelo toda hora, sua namorada quase chora porque não queria que cê fosse tão... LARGADO!! cê fica até sem graça, mas não muda porque não é de graça que se deixa de ficar... LARGADO!!!”( De Leve, Largado, 2003, Disponível 0 em :http://letras.mus.br/quinto-andar/72212/)

Existe um fenômeno forte, de muitos grupos de rap terem suas próprias marcas de roupas, contendo frases de músicas, imagens associadas ao mundo do graffiti e logomarcas dos grupos22. É uma das principais formas de captação de recursos dos grupos de rap atuais. Os grupo acabam se transformando em pequenas empresas. Possuindo sites, montando bancas de vendas de produtos em shows e até lojas físicas. Outra marca do estilo de vida é uma relação com a cidade a partir da rua como um lugar marginal. O que pode significar, transitar por diversos espaços da cidade de forma alternativa. Ou a ideia de conseguir acessar os submundos da cidade. Inclusive transitar e frequentar lugares da cidade associados a imagem do perigo e da violência. Mesmo que a relação, de por exemplo: se frequentar uma favela seja motivada por uma relação de consumo com o espaço, seja de substâncias

22

Pode encontrar exemplos dessas marcas nos sites : http://loja.vvar.com.br , http://www.laboratoriofantasma.com/loja/, http://bocadooriente.com., http://www.lojaconecrew.com.br

26

psicoativas ilícitas ou de um evento cultural como um baile funk. Esse tipo de relação cria um campo simbólico de significação para os atores. Onde, eles não passam a pertencer àquele lugares, mas os lugares associados ao perigo passam a compor a constelação identitária do vagabundo. Também se se coloca a questão de transitar pela cidade por meios de transporte alternativo ou burlando as regras do transporte público (num sentido ao mesmo tempo contestatório e afirmativo de uma postura malandra).

"mas eu pego o camelim e sem camisa de linho eu ando Niterói todinho e o Rio pelo cantinho” (De Leve, Rolé de Camelim, 2005, Disponível em: http:// letras.mus.br/de-leve/569961/) "Bolso vazio, a mente cheia, cheguei a uma conclusão Que a melhor solução, calote na condução. Se o cobrador fala não, vai chegar a uma contusão. Tava indo pra nikity city e me deparei com uma roleta Vôo ou mergulho, você escolhe a treta” (Quinto Andar, Rap do Calote, 2005, Disponível em : http://letras.mus.br/quinto-andar/242317/ )

O consumo recreativo da maconha é uma outra prática que marca esse estilo de vida. As referências associadas ao símbolo da maconha, no discurso do rap, se associam tanto: as letras e as manifestações públicas dos rappers do segmento gangsta rap estadunidense (como: Snoop Dogg, Wu Tang Clam, DR. Dre); quanto a símbolos da cultura do reggae jamaicano e o rastafarianismo; quanto a associação do consumo de cannabis a cultura da prática do surf e do skateboard. E a referências do próprio campo simbólico da chamada cultura canábica23 como: o horário 4:20 e os filmes de comédia da dupla Cheech e Chong. A banda Planet Hemp, foi pioneira nas letras de discurso ativista pró-maconha, a banda também é vista como referência para o circuito do rap por mesclar o estilo a vários outros segmentos musicais como o hardcore e o samba. Após o Planet Hemp os seus vocalistas seguiram todos carreiras na música ligados a cultura do rap: Marcelo D2, B-Negão e Black Alien.

23

Sobre Cultura Canábica: BARBOSA, Antonio Rafael. RENOLDI, Brígida. VERISSIMO, Marcos.(orgs). (I)legal : etnografias em uma fronteira difusa. Niterói, Ed UFF, 2013.; LABATE, Beatriz Caiuby et al (Org.). Drogas e Cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2008.

27

Além disso, nos últimos anos vemos a presença de MCs nas manifestações pela legalização da maconha, realizando vídeo chamadas utilizando improviso sobre o tema e realizando shows em eventos associados as marchas da maconha. "Digo foda-se as leis e todas regras Eu não me agrego a nenhuma delas Me chamam de marginal só por fumar minha erva Porque isso tanto os interessa. (…) Legalize já, legalize já Porque uma erva natural não pode te prejudicar” ( Planet Hemp, Legalize Já,1995, Disponível 0 em: http://letras.mus.br/planet-hemp/48151/ )

"Iiih, eu fui de Ingá a Icarai Rodriguez é o DJ No beat, no beat Raggamufinn rap break grafite Você anda de skate Não escorrega em qualquer tapete Quer uma rima com surf? Eu fumo o verde e fico azul igual o Papai Smurf Ah muleque! Sessão da meia noite da uff Optalidon, Roupinol, Bentyl, Artame Muleque briga na rua Homem briga no tatame” (Black Alien, Universo Paralelo, 2006, Disponível em: http://letras.mus.br/ black-alien/universo-paralelo/)

O estilo de vida das narrativas do rap se consolidam em oposição a categoria de playboy. Essa categoria serve como elemento que unifica a comunidade imaginada do rap por oposição. Ser playboy é oposto direto a ser vagabundo, ou marginal, ou rua, ou qualquer categoria que poderia ser vinculada ao tipo ideal do rap. O playboy seria o indivíduo que vive uma vida ligada aos valores dos exageros da elite. A categoria playboy embora possa ser associada a uma condição de classe não é exatamente definida por uma situação ou consciência de classe. Pode-se por exemplo morar em um bairro rico e ter uma família com acesso a facilidades do capital e ainda assim viver o estilo vagabundo. Assim como pode-se ocupar bairros de classe média de menos ascenção econômica e viver a vida como playboy. A categoria se define pelo habitus do estilo de vida, locais que

28

frequenta, gostos e modo de vestir. Ser playboy também pode significar não possuir malandragem, ou não saber se virar na rua. Essa categoria serve para a negação do outro em batalhas de rima ou em letras de rap dessa cultura do improviso niteoiense. "Quando cê me ligou Eu não tava em casa tão bem assim Eu nem te falei mas tava sem um finim E tava precisando Aliviar toda dor que eu tive Ate liguei prumas amiga, (e ai gatinha?) Ninguém ofereceu nada, é 'incrivi' E eu não sou um playboy Vim de Niterói, mas não sou playboy Eu tenho que ralar pra comprar Ligar pro amigo e barganhar Ficar devendo ou rachar Pra poder ficar feliz Voando pelo céu Mas com u.p.p., nego Encareceu pra dedéu To bolado com essa porra Não aguento mais arrêgo Os policia pegam a grana e levam preso” (De Leve, Amônia Dub, 2014, Disponível em : http://letras.mus.br/de-leve/melo-da-amonia/) "Eu sou de Niterói, onde playboy quer ser bandido Bandido quer ser playboy” (Oriente, Eu sou de Niterói, 2010, Disponível em : http://letras.mus.br/oriente/1662419/

Para continuarmos a investigação sobre a cultura do Rap de Niterói e a construção dos discursos de identidade, vamos debruçar sobre a trajetória de Gustavo Ribeiro, também conhecido como Black Alien ou Mr. Niterói. Gustavo foi um dos pioneiros dessa forma de se fazer rap e segue como uma das principais referencias para os desdobramentos da cultura de rap na cidade, influenciando inclusive a cultura do rap brasileiro para muito além da cidade de Niterói.

29

Capítulo II: Mr. Niterói - Uma trajetória no rap niteroiense: > Dê play: https://www.youtube.com/watch?v=2mQDf9zvXlw “Pô, Gustavo é basicamente o cara mais influente depois do Mano Brown no Brasil, sacou? Mais influente no rap é ele. Pode ter certeza absoluta. Eu vejo várias paradas no Brasil, eu vejo, pô, influência do Gustavo, influência do Gustavo. Geral, sacou? Muito assim, muito. E isso que o cara não 'boom'. É só a galera que sabe mermo então.” B-Negão. (Extraído do filme: Mr. Niterói24) “Eu acho que tem uma grande influência sobre muita gente que está rimando hoje em dia (2008) porquê, sei la, eu acho que o rap aqui no Brasil depois do início ficou meio estereotipado por esse lance de periferia, de rap, sacou? Falando de muita coisa negativa. Na verdade é a realidade de muita gente que fala. Mas eu acho que um cara como ele diferenciou pelo fato dele falar vário assuntos dentro de uma letra, abordar vários temas, entendeu? Sócio-Político. Várias coisas desse tipo assim.” MC Beleza pentacampeão batalha freestyle. (Extraído do filme: Mr. Niterói) “'Hoje eu tava bolado do jeito que minha vida ia, jeito que minha vida estava, jeito que minha vida ia acabar./ Krishna, Buda, Jesus ou Alá.'. Bagulho que a gente aqui do rap em SP tava mais preocupado em reclamar: 'que favela estava isso', 'que a polícia estava aquilo'. E aí os caras me vem com essa história. Era um cotidiano totalmente diferente. Ai, a gente, porra, será que essa parada é rap também? E era muito louco tá ligado?” Max Bo (Extraído do Filme Mr. Niterói)

Gustavo Ribeiro nasceu em 1973 na cidade fluminense de São Gonçalo. Cresceu na cidade vizinha Niterói. Estudou inglês desde a infância e realizou sua formação em colégios particulares. Gustavo conta25 que se sente meio alienígena em todos os lugares. Estranho por ser negro em um mundo de classe média com maioria de identificação branca, estranho no meio dos negros que não compartilham uma identificação de classe, onde é “tirado de playboy”. “Você conhece o pré-conceito racial e conhece o pré-conceito social, que tem muito aqui no Brasil, que é o lance do dinheiro, da posição social, do status social, que seu pai tem, que você tem. Então as vezes eu sofro preconceito até de quem é negro, então, é, essas coisas, todos esses lados ai, eu aprendi desde moleque como lidar com cada um.” Gustavo Ribeiro.( Extraído do Filme Mr. Niterói)

No começo dos anos 90 Gustavo era frequentador do campo de São Bento localidade da cidade de Niterói marcada pelo encontro de jovens de várias tribos e pelo intercâmbio cultural. Gustavo praticava o skate e por conta disso conheceu DJ Rodriguez que mais tarde lhe apresentou Cláudio Márcio. Em 1991 acabariam por formar um grupo de rap chamado Speed Freaks, nome inspirado por um filme californiano sobre skate. No grupo Gustavo Ribeiro assumiu o codinome de Bulletproof e rimava a maior parte do tempo em inglês, Cláudio Márcio assumiria o codinome de Speed Gonzales, tocava baixo e rimava em português e inglês, DJ Rodriguez era responsável pelas bases eletrônicas. 24

Filme: Mr. Niterói: a lírica bereta. Diretor: Ton Gadioli. Rio de Janeiro, GadioliFilmes, 2012. Disponível em https:// www.youtube.com/watch?v=HLd9wSI5Bb4 . (Último acesso em 25/06/15). 25Extraído do filme: Mr. Niterói: a lírica bereta. Diretor: Ton Gadioli. Rio de Janeiro, GadioliFilmes, 2012. (transcrições realizadas pelo autor)

30

“tinha pobre, tinha rico, tinha classe média. Tudo misturado andando de skate sujo e esfarrapado. Ouvindo Punk Rock, Rap, essas coisas que rolavam aí. Mas ao mesmo tempo com essa convergência cultural.” De Leve, sobre Niterói dos anos 90 (Extraído do Filme: Mr. Niterói). “Isso tudo acabava sendo trazido pra gente pelo próprio skate. A gente tinha muita curiosidade do quem a gente acabava ouvindo por aqui. Não tinha internet, nada disso. Então a gente contava muito com as pessoas que viam de outro local trazendo música pra gente. Então aqui a gente tinha, a gente gostava de ouvir bastante, e procurar saber e etc.. Então a gente começou a descobrir como que era isso.”DJ Rodriguez sobre o Campo de São Bento.(Extraído do Filme Mr. Niterói). “A rapaziada ali também ia a festas, fazia festas também, colocava som novo, a gente começou a ouvir som ali e tal.”Cláudio Márcio ou Speed, sobre o Campo de São Bento (Extraído do filme Mr. Niterói).

Esse lugar do encontro da juventude niteroiense nos revela bastante sobre o contexto que estavam inseridos. O rap estadunidense ali era mais uma novidade que era tocada em fitas K7, junto com outros ritmos como o punk, hardcore, rock entre outros. Tudo isso aliado ao imaginário da prática do skate, esporte urbano, marcado pela velocidade e adrenalina. Não a toa o nome escolhido pelo grupo foi Speed Freaks, ou loucos por velocidade. O skate uniu Gustavo não só a DJ Gonzales e Cláudio Márcio mas também a Marcelo D2 e Skunk, fundadores do Planet Hemp 26 banda que mesclava guitarras distorcidas do hardcore com rimas afiadas do rap, tudo isso defumado por letras marcadas pela referência ao consumo de maconha. Gustavo, agora atendia pelo nome artístico de Bulletproof Nigga, era grande fã de Public Enemy, Beastie Boys e Run DMC, e fluente em inglês. Rimava acelerados improvisos em inglês e as vezes em português, unidos ao baixo frenético e rimas pesadas de Cláudio Márcio, agora Speed Gonzales. Cláudio Márcio, quando conheceu Gustavo, já tocava baixo há 10 anos e era músico presente em improvisos pela cidade de Niterói, primeiro no baixo, depois nas rimas. A formação do grupo foi bem recebida pelos colegas artistas. Chegaram a gravar no estúdio Groove, de Ronaldo Pereira, no Rio de Janeiro, mesmo local que foi gravada a fita demo do Planet Hemp e do Funk Fuckers. Em 1993 é a vez do Speed Freaks gravar sua demotape K7. A demotape circulou entre os músicos da cena underground do Brasil e apesar de nunca lançada (hoje disponível na internet) é ouvida, comentada e hoje em dia lembrada por vários artistas da época. Por exemplo: no filme Mr. Niterói é falado que uma das fitas demo que ainda existem do Speed Freaks, seria uma que Jorge Du Peixe encontrou no carro em que Chico Science27 morreu em acidente. “Nessa época só tinha rap oldschool que era o pessoal de São Paulo. Aqui no Rio tinha um pessoal que 26

27

Para a discussão sobre a banda: MUNDIM, Pedro Santos. DAS RODAS DE FUMO À ESFERA PÚBLICA: O DISCURSO DE LEGALIZAÇÃO DA MACONHA NAS MÚSICAS DO PLANET HEMP - Mestrado em Comunicação Social da UFMG. UFMG: Belo Horizonte, 2004 Sobre Chico Science ver: AMARAL, Liana Viana do. Da lama e do Caos – Globalização e hibridismo na produção do movimento mangue beat/ Chico Science & Nação Zumbi. Fortaleza: 2005 (tese) – UFC.

31

fazia com banda e tudo. A gente foi o primeiro a fazer com dois MCs e um DJ.(...) Nós somos pioneiros da nova escola de rap do Brasil. Então nós somos oldschool da nova escola.” Cláudio Márcio, ou Speed Gonzales ( Extraído do filme Mr.Niterói) "Hit Hard Hip Hop is bitches kind of flip flop Punk mother fucker gonna' check if I can do my job Time for the king to do his thing Rio de Janeiro gotta a new rap scene I am breakin up routine And this fucking up skin So power music yes … Better move your ass nigga Or this funk is gonna do you Se liga meu irmão Planet Hemp is Phunk Buda Na hora de zoar a gente zoa e fala merda Mas na hora de falar sério a gente faz a coisa certa.”Letra de Hit Hard Hip Hop (transcrita pelo autor)

Em 1994 Speed Freaks lançam a música “Hit Hard Hip Hop” na coletânea “No Major Babes vol 1” disco que tinha como objetivo representar a cena musical underground do Brasil, através da reunião de músicas de bandas e artistas independentes. Na coletânea estavam reunidos bandas de Punk/Hardcore como Ratos de Porão, bandas de Trash Metal como Gangrena Gasosa (que mistura o Trash Metal a temas da umbanda), grupos de Rap como Clemente, Thaíde e DJ Hum de São Paulo e Speed Freaks de Niterói- Rio de Janeiro, além de bandas como o Planet Hemp que estavam ali na interseção desses estilos musicais e buscavam ser reconhecidas exatamente pela mistura de ritmos. O disco repercutiu no Brasil, Estados Unidos e Europa. A letra da música anuncia uma nova cena do rap no Rio de Janeiro. Uma cena articulada com as tendências globais e em rede com a cena da música independente brasileira. Enquanto outros grupos experimentavam o Hardcore ou o Metal, Speedfreaks decidiram experimentar o Rap como caminho para se expressarem. Em 1996, agora já utilizando o nome artístico de Black Alien, nome originalmente utilizado por DJ Rodriguez para nomear as suas produções, Gustavo passa a integrar o Planet Hemp cobrindo o lugar de Bernardo (B-Negão) que se ausenta do Planet Hemp para se dedicar ao seu outro projeto Funk Fuckers. Black Alien junto do Planet Hemp faz turnê por todo o Brasil e participa da gravação do segundo disco da banda “Os cães ladram mas a caravana não para” lançado em 1997 e que 32

atingiu disco de platina de vendas. Gustavo e Claudio Márcio já haviam realizado participações no primeiro disco da banda “Usuário” em 1995. Gustavo acaba sendo preso junto com os outros integrantes da banda em Brasília em 1997, acusados de apologia as drogas, a prisão do grupo é abraçada por grupos ativistas no Brasil e acaba servindo como bandeira para a causa da legalização da maconha28. Paralelamente ao trabalho com o Planet Hemp Gustavo segue o projeto Black Alien junto com DJ Rodriguez sem Cláudio Speed. Começa também uma relação de participação em shows e gravação de músicas com os mais variados artistas, como apontado por De Leve: “Ele entrou em alguns círculos que muitos não entraram. E de repente nem vão entrar. Pô, ele gravou com Chorão, gravou com Raimundos, ele gravou com maior galera. E participava de discos da Fernanda Abreu, participou do disco de muita gente sem ter nada lançado. Isso que era o mais incrível dele.(...)Ele é pioneiro nisso, cara. Um cara do Rap ir andando para lá. Andava pro Reggae. Vertentes dele que ele já ouve há muito tempo, já faz há muito tempo.” De Leve (Extraído do filme Mr.Niterói)

Em 1999, volta a dupla Gustavo e Cláudio, agora Black Alien e Speed. Nesse ano vão realizar show em São Paulo no festival Duloko, representando o Rio de Janeiro junto com Marechal e Aori (que mais tarde, em 2003 fundariam a Batalha do Real). O Festival Duloko29 celebrou cultura Hip-Hop trazendo ícones internacionais como: Afrika Bambaataa, Grand Master Flash e De La Soul. Além de tentar mostrar como andava a cena no Brasil com grupos e MCs como: Racionais, Thaíde, DJ Nutz, Z'Africa Brasil e Black Alien e Speed. Após o festival Black Alien e Speed acabaram ficando em São Paulo com o objetivo de gravar um disco e realizar shows. Iniciaram um trabalho com o renomado produtor Carlo Bartollini (produtor de artistas como: Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Cássia Eller, Nando Reis,...) no seu estúdio na Granja Viana. Entretanto após meses de trabalho o disco acaba não saindo. Novamente, da mesma forma que aconteceu na demotape, partes do disco acabam circulando apenas entre as pessoas do meio da música: artistas, produtores e empresários. Mais tarde parte das faixas são disponibilizadas de maneira informal na internet. Sobre este incidente a fala de Alex “Don K” Cecci nos revelam um pouco sobre as entrelinhas do mercado da música e das expectativas do empresário sobre o trabalho, assim como sua visão da cena do Rap no Rio e em São Paulo. “Todo esse tempo que eles moraram lá em casa. Foi em consequência de um interesse do Carlinho Bartollini de produzir o disco deles. Então eles ficaram morando lá em casa e produzindo o disco com Carlinho Bartollini na Granja Viana. E muitas vezes eu que levava os caras para lá e trazia. Muitas vezes eles dormiam lá. Muitas vezes eles dormiam na minha casa. Durante todo o tempo de produção desse 28

SILVESTRIN, Mauro Leno. O movimento pró canábis no Rio de Janeiro (2002-2012): experiências, trajetórias e atores.Dissertação (Mestrado em Antropologia) Setor de Ciências Humanas, UFPR, 2013. 29 Ver:http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq10089923.htm (último acesso: 11/05/15)

33

disco. Que foi o disco que sucedeu esse demo. Que até então era uma demo esse disco que estava na nossa mão. Então ele entraram em estúdio com Carlinho Bartollini que tinha um bom know how e conseguia extrair timbres fortes e criar umas texturas diferenciadas, e eu achava, nós achávamos, eles também, que o som deles requereria isso para fugir dos padrões do Hip-Hop comum o cair na mão dos produtores do Hip-Hop comum, na oportunidade, era uma coisa que estava meio engatinhando ainda, era pobre, né. E a cena do Rio de Janeiro sempre foi uma cena um pouco mais superior que a de São Paulo, porque a música da periferia do Rio de Janeiro é o Funk e não o Hip-Hop. Então a música lá é um pouco mais elitizada do que aqui. Porque aqui o Hip-Hop é a música da periferia. Então sempre teve um nível superior. Eles precisavam dar uma roupagem mais nova, uma cara diferente. E o Carlinho Bartollini estava fazendo um trabalho muito interessante com eles. Produziu um disco incrível com eles. Aos trancos e barrancos, porque é muito difícil conviver com os dois, porque é muito dificil morar com os dois, porque é muito difícil entrar em estúdio com os dois e conviver meses, a base de, pô, pão com mortadela, sabe. Criaram vários climas de tensão. Muitas vezes jogaram tudo por terra. Até que chegou no final com o disco pronto e aí conseguiram jogar tudo por terra mesmo. E esse disco também nunca saiu. (…) O Speed era um cara que ou era do jeito dele ou não era. Só que o Bartollini que era o produtor do disco também era. E o Gustavo também era. Então imagina três cabeças dura dentro do estúdio querendo cada um dar a sua cara para o disco. Então imagina o quanto era difícil conseguir fazer o acordo final. E invariavelmente demorava para se chegar então era um desgaste muito grande e nunca tava bom, e sempre estavam querendo mudar. E aquelas coisas, né, os caras muito criativos não conseguem ficar satisfeitos com as suas obras, porque nunca acham que estão terminadas” Alex “Don K” Cecci (Extraído do filme Mr. Niterói)

Essa fala de Alex “Don K” Cecci nos revela um fator que é essencial para a compreensão do nosso objeto. A principal diferenciação que Cecci enxerga entre o Rap São Paulo e o do Rio de Janeiro é: o de um podendo ser enquadrado como música de periferia e o outro não. Alex chega a colocar uma ordem qualitativa, o que nos revela algo sobre seus próprios valores como empresário da música, entre um e outro. Longe de querermos reproduzir esse discurso hierárquico. Mas, o conteúdo da fala nos revela que o empresário em 1999 vislumbrava a possibilidade de um projeto diferenciado. Utilizando parte do poder estético do rap mas capaz de alcançar outros públicos que o Rap paulista da época não atingia. Mas era preciso para isso a composição de uma ordem estética, passível de identificação com esse formato do rap já vigente, porém diferente. Por isso a escolha do produtor Carlinho Bartollini familiar as tendências do mercado da música nacional. Juntando as formas narrativas de Black Alien e Speed com o know-how de Bartollini seria possível dar a música essa “roupagem mais nova”, o que poderia ter sido aos olhos do empresário a formula para o sucesso. Em 2000 e 2001 Gustavo sai em turnê internacional com o Planet Hemp. Nessa mesma época a música “Quem que Caguetou” de Black Alien e Speed é veiculada por uma propaganda de um automóvel da empresa Nissan, circulando por toda a Europa. Um tempo depois do comercial, a música é remixada pelo DJ europeu Tejo e vira sucesso nas baladas da Europa. Além disso, Gustavo segue fazendo participações com outros artistas e apresentações, mesmo sem ter gravado formalmente seu próprio trabalho. Speed vê a reação internacional como afirmativa da representatividade da dupla para o rap brasileiro. 34

“O mais legal foi o seguinte: a batida era meio que um eletro, a batida oldschool do Hip-Hop dos anos 80. E o pessoal aqui do Brasil chegou a dizer que parecia Funk, entendeu. Se parecesse Funk para mim tudo bem. Mas eu digo assim. Foi legal que o pessoal lá fora, as matérias que eu li e tudo, disseram que a gente era cantor de Rap e vinha do Hip-Hop e tinha gravado naquela batida e tudo.” Cláudio/Speed(Extraído do filme Mr. Niterói)

Em 2004, Gustavo assina com o selo independente DeckDisc e produz o seu 1o disco oficial: “Babylon By Gus vol 1. O ano do macaco”. O selo representava na época a gravadora independente brasileira sendo responsável pelo lançamento de discos de diversas bandas (a maioria do cenário do rock) em um formato de contrato diferente das grandes gravadoras da época, nos tempos marcados pela transição do mercado da música entre a dependência do lançamento de mídia física e distribuição em lojas e o tempo da internet. O disco faz referência a obra de Bob Marley: “Babylon By Bus”. Produzido por Alexandre Basa, o disco mistura elementos do Reggae, Rap, Jazz e diversos vertentes musicais. Esse trabalho amplia o alcance da forma de fazer Rap que Gustavo cria, circulando por todo o Brasil. Aquele “cara culto” com suas “rimas do cotidiano” de “recados densos” e cheias de “referências literária”, como é apontado nas entrevistas do filme Mr. Niterói, finalmente atinge as expectativas de realizar um trabalho musical formal e com grande repercussão. “Eu venho de uma família de músicos, de uma história de música, nem tanto do Rap. Não comecei minha vida escutando rap. Eu comecei minha vida escutando Jazz, escutando música clássica. Escutando instrumentos de sopro: flauta, sax. Eram visões bem diferentes de sentar numa máquina e fazer um Rap. Quando eu comecei a fazer isso, eu tomei muito gosto por isso, por fazer um Rap. Nem foi por opção e eu deixei isso ser natural. Eu não fui diretamente buscando referências no Rap oldschool americano. Nem que chegasse e falasse: 'Ow Black, eu estou com um disco aqui que é estritamente de Rap.'. E é uma cópia americana de alguma coisa, como muitos fazem por ai. Não é isso. Tenho várias influências que eu tentei colocar aqui, que é uma coisa diferente, é uma coisa nova.” Alexandre Basa, Produtor Musical do disco Babylon By Gus vol 1 (Entrevista extraída do filme Mr. Niterói).

Podemos ver que Alexandre Basa, casa bem ao estilo de Black Alien exatamente por sua formação musical diferenciada de outros produtores do rap. Esse efeito ímpar da produção aparece na fala de reconhecimento de Helião do grupo paulista RZO (um dos principais grupos do rap oldschool paulista). Helião reconhece a capacidade de influencia do disco. Destaca a junção do que ele chama de “bagulho oldschool”, que se expressa nas referências musicais do rap dos EUA30, com o que ele chama de “lance contemporâneo”, a forma das rimas de Black Alien que aproxima a sua música do modo de fala, e que narra fatos do cotidiano, seria a marca “jeito diferenciado do Black Alien de cantar”. “Aqui em São Paulo a gente tem ouvido algumas coisas, assim, na linha dele. Em outros lugares no Sul também, Porto Alegre, ouvido também algumas coisas na linha dele. Porque esse disco dele Babylon By Gus, entendeu? Pra todo lugar do Brasil todo mundo conhece, mano, todo mundo gosta, entendeu? É um 30

Lembrando que as referências das influências musicais através de pequenos trechos ou samples de outras músicas é uma característica de central importância no rap, desde o seu desenvolvimento nos EUA. No seu trabalho Tricia Rose a ressalta a importância dos samples (que geraram polêmica nos EUA pela quebra das leis de direito nacional) para marcar a relação dos rappers com as produção musicais das comunidades negras de outras gerações, ritmos como: R’N B, Soul e Funk. Ver: Chapter 4 in ROSE, 1994.

35

disco notório. Então influenciou e vai influenciar muito ainda, tá ligado?(...)Ele tem influência do Dirty Bastard, do Wu-Tang Clam. Ele tem influencia do Gravediggaz. Ele traz esses bagulho oldschool que pra nós é da hora Entendeu? Fora o lance contemporâneo, assim, de letra, de imaginação. Ele é muito contemporâneo. É muito atual de imaginação e de criatividade.” Helião RZO (Entrevista extraída do filme Mr. Niterói) “Minha voz É um instrumento Que dá sustento Ao microfone, espírito Dos novos tempos O sentimento O mar a vela e o vento Prá navegar na Babilônia De asfalto e cimento Infelizmente eu só lamento Sem agradecimento Dos filhos deste solo és Mãe gentil E Black Alien É seu rebento... Por favor doutor Deixe eu mostrar Meu documento Do começo ao fim Do fim ao começo Da juventude à infância Do geriatra A adolescência ao berço E eu me lembro Não mal agradeço Por você até O último degrau eu desço De dezembro a dezembro Cantando ragga muffin Num minuto de silêncio Sem documento e lenço E com o poder da oração Com a mão no terço Ou não é pouco Mas de coração É o que te ofereço... [Refrão] Babylon by Gus

36

O fogo da vela me dá luz Com a caneta e o papel Erradico pus A caneta e o papel Irradio luz Babylon by Gus Meus amigos São os mesmos Eles fazem jus A justiça dos homens Perdeu um ônibus Babylon by Gus (…)” (Techo da letra da Música Babylon By Gus, disco Babylon By Gus, Deckdisc 2004)

A música Babylon By Gus, que dá nome ao disco, foi eleita uma das músicas single do disco e também se tornou video clipe, sintetiza bem esse “espírito dos novos tempos que o disco traz”. O subtítulo do disco: "ano do macaco”, em referência ao calendário chinês também passa essa ideia de renovação e execução de novos projetos. O formato da música mistura influências do Raggae jamaicano e de várias escolas do Rap americano que acabaram não chegando tanto ao público brasileiro. Esse trecho que selecionamos mostra um pouco da forma de organização narrativa de Black Alien, recheada de metáforas e referências obscuras. O rapper faz uma reflexão sobre a sua própria trajetória, junto a uma meta-linguagem sobre o próprio fazer música. Cantando novos tempos para ele e para a cena do rap. No ano de 2014, o disco comemorou 10 anos e a revista Rolling Stone fez uma matéria31 especial sobre o disco e o rapper. A matéria teve o título: "Black Alien, que comemora dez anos do clássico Babylon by Gus, vê evolução no rap nacional”. Esse título nos revela como a forma encontrada por Gustavo serve de referencia a construção de uma cena do rap mais adequadas aos valores que a revista defende. Não a toa se fala em evolução do rap, ao mesmo tempo que vários outros agentes e meios apontem que o rap morreu, perdeu a essência, se afastou das raízes. Essas diferenças nos discursos nos revelam distintos lugares numa disputa simbólica. A disputa colocada é sobre: qual a identidade do rap brasileiro e quem é responsável por imprimi-la. "O rap brasileiro, segundo o músico, ainda não tinha uma identidade: 'Também rolava um receio em falar sobre amor. Grande parte das letras eram sobre a violência, a polícia e as brigas entres os MC’s ou entre os coletivos. Hoje, evoluímos muito nesse sentido. O fato do Brasil ter entrado na rota de turnês de artistas interacionais de hip-hop fez com que os artistas buscassem melhorias. As letras hoje falam sobre 31

Disponível em: http://rollingstone.uol.com.br/blog/cultura-de-rua/black-alien-que-comemora-dez-anos-do-classicoibabylon-gusi-ve-evolucao-no-rap-nacional#imagem0 (último acesso 02/07/15)

37

temas mais amplos como política, amizade e problemas do nosso cotidiano’.”(Rolling Stone - 11/09/14)

Cláudio Márcio assumiu o nome SpeedFreaks e seguiu realizando carreira solo para além dos projetos com Gustavo. Na sua carreira solo SpeedFreaks gravou 7 discos de maneira independente: Expresso(2001), Sangue Sob o Sol (2003), Só o Começo (2006), Meu Nome é Velocidade (2008), De Volta no Jogo (2009), Remixxx Featuring vol.1 (2009) e Remixxx Featuring vol. 2 (2009). SpeedFreaks lança 2 selos indepedentes: Speed'Studio e Speed'sHits32. Utiliza os selos para lançar na internet e produzir esses 7 discos, que citamos, e videoclipes de suas músicas. Speed cria uma forma de fazer Rap muito particular, apontado por alguns como ácido, ou sombrio, faz uma música “sem maquiagem” como ele mesmo coloca em uma de suas canções. Influenciado pelo gangsta rap os universos que Speed narra nas suas música e clipes mesclam o universo da zona norte niteroiense, a relatos sobre drogas e situações de violência. Apesar de não alcançar a mesma fama que Gustavo, o trabalho que Speed realiza, marca muito as entrelinhas do rap nacional, visto como um dos precursores do rap brasileiro e, como afirma um dos sites sobre ele na internet, como “lenda viva”33 . Em Março de 2010 Speed saiu das ruas para a história do rap. Seu corpo foi achado em uma vala de esgoto nas imediações da favela do Sabão34 no centro de Niterói. “eu sou assim eu sou o Speed, Pim! é assim que eu sou eu sou o Speed, Pou! pra você que conhece meu rap, meu ragga MC Speed psicopata camarada sabe que por causa da minha arte eu saio na porrada, eu falo sério, falo o que eu quero em charadas complicadas decifradas sem mistério, entro no seu prédio mas não escalo fachadas a entrada não é ensaiada em casa pulo do seu estéreo na sua sala sem plano de fuga pulga atrás da orelha 32

Speed Hits ainda possui canal no youtube que é possível encontrar parte do material do Speed: https:// www.youtube.com/user/SpeedsHitS (Último acesso: 17/05/15) 33 Ver: http://speedfreaksalendaviva.blogspot.com.br/ (Último acesso: 17/05/15). Especial agradecimento a esse blog que se dedica a disponibilizar uma acervo muito completo do trabalho do rapper. 34 Ver, por exemplo: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/rapper-speed-e-encontrado-morto-em-favela-em-niteroi/ n1237588314193.html (Último acesso: 17/05/15)

38

meias palavras resignadas usadas não são nada para datá-la, minha rima idéias cruzadas colméias de abelhas africanas assassinas se raiva trucida, violência mata paciência forçada é um estouro de manada na barriga criança criada na pranchada a ciência da idade avançada sendo desrespeitada eu compro a briga eu sou assim... não sou macaco gordo mas passeio de galho em galho quebrando todos em todas as gerações multidões trilharão meu atalhos, ditados sábios serão meus refrões, sempre ao lado dos bons otários e peidões saiam dos meus sons minas mexam suas coxas quando eu xingar palavrões e chamuscar suas bocas loucas e borras seus batons dôo meu sangue e acabo o show com um xou xou de língua roxa pronto pra outra no chão ou no colchão DJ tem o dom caio uma vez levanto três minha lei é a do cão. Pou! cuidado larápio o meu cardápio lírico não é apiário de idéias certezas cegas dão ferroadas certeiras e protegem a colméia do ladrão”(Letra da música: “Eu Sou Assim, disponível em:http://letras.mus.br/ speed-freaks/1171332/)

Enquanto eu estava escrevendo esse trabalho monográfico, Gustavo acabara de lançar o seu segundo disco: “Babylon By Gus vol II - No princípio era o verbo” , junto ao mesmo produtor do primeiro disco Alexandre Basa. O processo de gravação desse disco foi anunciado, iniciado e interrompido, diversas vezes nesses 11 anos(entre o fim do primeiro disco e lançamento do segundo), tendo saído finalmente em 2015. O disco foi lançado dessa vez gratuitamente na internet e foi viabilizado por uma campanha de financiamento coletivo. Gustavo segue fazendo shows pelo Brasil e influenciando a maneira de se fazer Rap. Vejo, a importância de Black Alien para nossa investigação exatamente na capacidade de influencia do formato e do discurso que ele propõe para o Rap. Creio que a partir do trabalho de Gustavo se rompe a ideia de que o Rap brasileiro se vincula necessariamente a voz da periferia e do

39

povo negro. Não pretendo aqui discutir a legitimidade desse modelo de Rap, nem tampouco realizar uma comparação hierárquica entre ele e o modelo inaugurado em São Paulo que representa a periferia. Me interessa aqui investigar o surgimento dessa expressão do Rap associado a cultura de Rua e a cena da música underground e o seu crescente poder. Acho que a trajetória de Gustavo nos permite a reflexão sobre o contexto onde esse estilo se desenvolve. Um marco inicial, segundos as entrevistas, é o campo de São Bento em Niterói. Local marcado pela união da juventude alternativa e underground da cidade nos anos 90. Se realiza ali a união dessas tribos antenadas nas novidades mundiais. É notório que a trajetória desses jovens é bastante privilegiada na possibilidade de ter acesso a um capital simbólico para além daquele veiculado pela grande mídia. Em um tempo onde as trocas de informação pela internet engatinhavam. Privilégio que se evidencia por exemplo na possibilidade de ouvir as letras em inglês e compreendê-las.A mensagem do rap tal qual surgido no Bronx consegue atravessar o mundo e influenciar diversos jovens, muito pela sua capacidade de transcender a linguagem verbal e realizar uma conexão com o interlocutor através da gestualidade, da imagética, da estética e do ritmo. Mas, para esse grupo de jovens que estudamos a relação com as letras é algo centralmente importante. O que leva Gustavo a além de ouvir, cantar e produzir suas próprias letras e improvisos em inglês. No filme de Gadioli vemos Gustavo sendo reconhecido por diversos artistas, produtores, empresários e críticos musicais, por ser uma “pessoa rica de informação”. Esse discurso da existência de um “jeito diferenciado” imerso em “referencias literárias e cinematográficas” que é destacado como a característica principal de Black Alien, nos revela: um teor preconceituoso da visão por parte dos agentes que evocam esse discurso em oposição a uma outra forma de fazer Rap que seria simplista, desinformada, crua; além da própria constituição dessa diferente cena cultural e o sentido da sua repercussão. Não seria possível essa cultura do Rap niteroiense se desenvolver da forma que se desenvolveu em outro contexto. Se os agentes não tivessem acesso aos privilégios do capital simbólico e material que lhes permitiram trocas diferenciadas de informação. O ordenamento das coisas seria completamente diferente. Em outras palavras: se a condição de vida fosse outra, a história seria outra. Como coloca Max Bo: “Bagulho que a gente aqui do rap em SP tava mais preocupado em reclamar: 'que favela estava isso', 'que a polícia estava aquilo'”.

Ou ainda como coloca de maneira elitista o

empresário da música Alex “Don K” Cecci: “E a cena do Rio de Janeiro sempre foi uma cena um pouco mais superior que a de São Paulo, porque a música da periferia do Rio de Janeiro é o Funk e não o Hip-Hop. Então a música lá é um pouco mais elitizada do que aqui. Porque aqui o Hip-Hop é a música da periferia.” .

40

Outra característica interessante ao desenvolvimento do nosso trabalho é como esse estilo de uma "outra" forma de fazer Rap se espalha pelo Brasil. Uma questão interessante, é o fato de Gustavo antes de ser ouvido pelo grande público, ter a circulação da sua música restrita ao meio artístico e da produção cultural. Isso se evidencia na formação de uma rede que permite com que Gustavo demore treze anos para lançar seu primeiro disco, e ainda assim passe esses anos realizando participações em shows e em gravando participações na música de artistas pelo Brasil inteiro. Notamos aí portanto as articulações promovidas por uma ideia de cena underground da música. Como vemos nessa música: "Esta é a história de uma decisão.Eu preciso tomá-la. Uma, a grande decisão, é a história de um grupo de técnicos, de um grupo de trabalhadores, que confiaram num povo, e de um povo, que confiou no Rio de Janeiro. Começamos praticamente do nada, eu gostaria de recordar a todos, duas coisas, simples, e puras: Quero ver a poeira subir, e muita fumaça no ar! UM ! Planet Hemp manda bala rap, rock'n'roll, psycodelia, hardcore, ragga, funk e soul. se liga você vai ver, chegou a hora e a vez do cabelo crescer. DOIS ! Speed Freaks (loco), saiu pra dar um rolé mas vai voltar daqui a pouco. Todo mundo perguntando, mermão cê tá onde, e oquê que eu tô ouvindo Speed freak sound. TRÊS Black Alien sangue bom cê pensa que é brincadeira, não é brincadeira mermão. Rodriguez e bulletproofniga, pode crer eu tô na tua, então se liga meu irmão Planet Hemp Phunky Buddha. No número quatro o Rappa não deixa barato é a ginga carioca pra cê não ficar parado. Música pra te informar que é só regar os lírios do gueto que o Bethoven negro vem se mostrar. CINCO! The Funk Fuckers camarada então abra os olhos e se liga na molecada Eu vou dizer uma coisa "I don't like suckers,in da house,the Funk Fuckers". SEIS! Mangue Boys Recife pegando fogo trasbordando, então vai. Mundo Livre,Cabeleira,Chico Science e Nação Zumbi se antenando com o mundo a parabólica é ali. Dos Festivos Gozadores eu vou falar no sete são tantas as luzinhas que a gente se derrete Abra a porta da sua festa que eu quero tirar um tasco ou então caminha que aqui é de Osasco.

41

Hemp Family tem o poder mermão. Planet Hemp, Funk Fuckers, Black Alien e o Rappa isso é uma só família querendo legalizar. Você não conhece, então eu vou te explicar: Família não é sangue família é sintonia. Então me falem, me falem, me falem quem é sangue bom pois eu te digo, o da Hemp Family é do bom” (Planet Hemp, Hemp Family, disponível em : http://letras.mus.br/planet-hemp/79165/)

Gustavo Black Alien nas suas letras inaugura portanto algumas das características desse estilo cultural, que vimos no capítulo I, de uma cena do Rap brasileiro como cultura de Rua. A primeira delas se dá na temática: as letras de Gustavo deslocam a temática de um conflito aberto com as autoridades e denúncia dos problemas sofridos pela periferia e pelo povo negro, para algo que ele coloca como “narrativa do cotidiano” marcado por referências e ironias. Não seria o Rap reclamativo paulista uma narrativa de uma outra forma de cotidiano? Essa narrativa do cotidiano significa para Gustavo trabalhar um mundo de referências: referências a fatos contemporâneos, extraídos de notícias de jornal como em: “quem está no erro sabe, cocaína no avião da FAB”; referência bíblicas como em “a cabeça de João Baptista numa bandeja de prata”; referências a elementos da cultura popular contemporâneas a época “Demorô Damon Hill, estilo é Cypres Hill”; referências ao seu local de origem cidade de Niterói, isso se evidencia na escolha do próprio codinome Mr. Niterói, até a rimas como: “Black Alien, Niterói, nascido e criado”. É exatamente essa lógica de uma música pautada pelas referências que é vista como evidencias do fato de Gustavo “possuir cultura”. Mais tarde no universo dos improvisos das batalhas de rap esse modelo simbólico vai ser retomado. Uma frase que ilustra bastante a perspectiva de Gustavo sobre sua forma de fazer rap é quando coloca em uma de suas rimas: “das ruas tenho o cartão de acesso” e dentro desse lugar se colocaria como: “testemunha ocular da história como repórter Esso”. Creio que ai se evidencia a base do discurso dessa forma de rap como uma cultura de rua e das ruas. Se narra a rua, se vive a rua. Essa relação com a rua é central para a constituição de um estilo de vida, a constituição da rua como um lugar da cidade a se ocupar pela cultura alternativa, underground. Gustavo falando sobre o seu processo de inspiração evidencia esse lugar narrativo que ele se encontra e reivindica: “Minha inspiração vem sempre, basicamente do jornal. É.. Rua. Eu sempre ando pela rua. Eu sento, escolho um lugar pra sentar. Gosto muito de observar as coisas, assim, do lado de guardador de carros, taxistas, porque eu não dirijo, então eu ando muito de taxi.(...)O Rap é uma coisa que é tipo reportagem, como a CNN.” Gustavo - Black Alien (Extraído do filme Mr. Niterói)

42

Capítulo III: Outsiders – Cultura do Desvio: > Aperta o Play: https://www.youtube.com/watch?v=lcOefLyMn0Q “Sempre que um grupo de pessoas tem parcialmente uma vida comum com um pequeno grau de isolamento em relação a outras pessoas, uma mesma posição na sociedade, problemas comuns e talvez alguns inimigos comuns, ali se constitui uma cultura. Pode ser a cultura fantástica dos infelizes que, tendo se tornado viciados em heroína, partilham um prazer proibido, uma tragédia e uma batalha contra o mundo convencional. Pode ser a cultura de um par de crianças que, enfrentando os mesmos pais poderosos e arbitrários, criam uma linguagem e um conjunto de costumes próprios que persiste mesmo quando elas se tornam grandes e poderosas como os pais. Pode ser a cultura de um grupo de estudantes que, desejosos de se tornar médicos, vêem-se diante dos mesmo cadáveres, testes, pacientes complicados, professores e orientadores.” (HUGHES, 1961, apud BECKER, 2008, p.90)

Acho, que poucas pessoas seriam tão bem definidas sobre o conceito de outsider, desenvolvido pelo sociólogo estadunidense Howard Becker, quanto Gustavo Black Alien. Como ele mesmo coloca, Gustavo se sente “alienígena em todos os lugares”, encarnando uma postura de isolamento similar ao que Becker identifica nos música de Jazz dos anos 40. Os seus desvios de comportamento são características essenciais para a criação do mito, da figura artística, de Black Alien. O tom de muitas entrevistas do filme é ambíguo justapondo a admiração pelo artista e o lamento pelo fato de Black Alien não ter alcançado todo o potencial que poderia, pela maneira que conduziu sua trajetória. Como aparece na entrevista de Alex “Don K”: Alex “Don K” Cecci (Empresário ramo musical)“Todo esse tempo que eles moraram lá em casa. Foi em consequência de um interesse do Carlinho Bartollini de produzir o disco deles. Então eles ficaram morando lá em casa e produzindo o disco com Carlinho Bartollini na Granja Viana. E muitas vezes eu que levava os caras para lá e trazia. Muitas vezes eles dormiam lá. Muitas vezes eles dormiam na minha casa. Durante todo o tempo de produção desse disco. Que foi o disco que sucedeu esse demo. Que até então era uma demo esse disco que estava na nossa mão. Então ele entraram em estúdio com Carlinho Bartollini que tinha um bom know how e conseguia extrair timbres fortes e criar umas texturas diferenciadas, e eu achava, nós achávamos, eles também, que o som deles requereria isso para fugir dos padrões do Hip-Hop comum o cair na mão dos produtores do Hip-Hop comum, na oportunidade, era uma coisa que estava meio engatinhando ainda, era pobre, né. E a cena do Rio de Janeiro sempre foi uma cena um pouco mais superior que a de São Paulo, porque a música da periferia do Rio de Janeiro é o Funk e não o Hip-Hop. Então a música lá é um pouco mais elitizada do que aqui. Porque aqui o Hip-Hop é a música da periferia. Então sempre teve um nível superior. Eles precisavam dar uma roupagem mais nova, uma cara diferente. E o Carlinho Bartollini estava fazendo um trabalho muito interessante com eles. Produziu um disco incrível com eles. Aos trancos e barrancos, porque é muito difícil conviver com os dois, porque é muito difícil morar com os dois, porque é muito difícil entrar em estúdio com os dois e conviver meses, a base de pô pão com mortadela, sabe. Criaram vários climas de tensão. Muitas vezes jogaram tudo por terra. Até que chegou no final com o disco pronto e aí conseguiram jogar tudo por terra mesmo. E esse disco também nunca saiu. (…) O Speed era um cara que ou era do jeito dele ou não era. Só que o Bartollini que era o produtor do disco também era. E o Gustavo também era. Então imagina três cabeças dura dentro do estúdio querendo cada um dar a sua cara para o disco. Então imagina o quanto era difícil conseguir fazer o acordo final. E invariavelmente demorava para se chegar então era um desgaste muito grande e nunca tava bom, e sempre estavam querendo mudar. E aquelas coisas, né, os caras muito criativos não conseguem ficar satisfeitos com as suas obras, porque nunca acham que estão terminadas”

Ao mesmo tempo é reconhecido que exatamente o fato de ser uma pessoa “difícil”, “cabeça dura”, “meio vagabundo” e não disciplinado que fazem de Black Alien o artista que ele é. Esses comportamentos servem na interpretação de outros artistas e produtores para explicar “o misterioso 43

dom artístico”, utilizando os termos de Becker, que Gustavo possui. Portanto o sistema de crenças 35 de que o músico é alguém diferente, que leva uma vida diferente e não pode, portanto, ser repreendido, nem ao menos compreendido, por alguém que não possui o dom musical. Assim como, o observador externo dirige ao artista um misto de reprovação e admiração por seu comportamento excêntrico, e do seu jeito que zomba de normas sociais convencionais. Esse sentimento ambíguo de admiração e reprovação é dirigido a Gustavo em várias falas do filme. Uma das falas que tende mais a reprovação, é a fala de Alex “Don K”. Alex é apresentado como empresário da música, seria o perfeito quadrado, seguindo a categoria de Becker, para ele a música de Gustavo e Claudio representava um produto a ser investido, na dinâmica do mercado da música. Portanto é compreensível a sua insatisfação com a ação da dupla Black Alien e Speed de “jogar tudo por terra”. Mesmo depois de o empresário ter investido, tanto capital material, quanto simbólico (hospedar a dupla na sua casa, se submeter ao que identifica como situação difícil e estressante de convívio com a dupla). O investimento no produto musical nesse caso não promoveu os retornos esperados. Daí a insatisfação. Já, nas falas dos produtores que trabalharam com Black Alien e produziram o EP e o primeiro disco: Ronaldo Pereira e Alexandre Basa, e dos artistas Marechal e Speed, perpetua-se a dinâmica do sentimento ambíguo em relação a excentricidade do cantor. Reconhecem algumas das características “negativas” de Gustavo, porém aqui, a balança tende para a admiração inabalável ao artista. Sendo as características identificadas como negativas, compreendidas como constituintes de Gustavo e parte essencial do artista. Nos dois casos as opiniões caem na mesma dinâmica porém demonstram pontos de vista, e consequentemente interesses, diferentes, na relação com Black Alien. “Os grandes talentos são difíceis de lidar. Mas ao mesmo tempo a gente se deu bem. O Black me respeita. A gente se respeita assim. Eu senti que ele tinha gostado da base, do bambas e biritas. Eu senti que ele tava na viagem mesmo da música assim. Então isso já, não tava ali pra só fazer parte, mas entrou na viagem do som, e chegou ali pra somar na canção mermo. Então o que demorou, poderia ter sido. Poderia já ter trazido alguma coisas prontas assim, que acabou demorando. Acabava vindo com qualidade. E... Pra mim o único defeito que o Black tem é ser meio que um vagabundo assim cara. Porque se ele resolvesse trabalhar e aregaçasse a manga. Puta que pariu. Ele ia estar muito mais além. Porque eu acho que o talento dele é gigante. A obra dele é muito maior que ele.”Ronaldo Pereira (Produtor Musical – Estúdio the Groove) “É trabalhar com o Gustavo é o seguinte.Na arte. Num sei. Depende da pessoa, isso não é inerente a todos os artistas, como eu to falando. Tem artista que é mais temperamental. Isso até influencia no trabalho do cara, na arte do cara, se o cara é mais agressivo, mais temperamental mermo, mais exigente. Eu não reclamo nunca. Porque se o cara vai cantar, vai fazer um trabalho artístico. Você não pode ficar cerceando o artista. Porque no final das contas isso prejudica a perfomance do artista. Entendeu?” Speed 35

Ver: Capítulo 5- A cultura de um grupo desviante: o músico de casa noturna, in, BECKER, 2008.

44

“Ele não é um maluco que ele vai ser tipo disciplinado. E que, tipo, vai combinar, e de repente vai aparecer na hora certa. Um maluco mais correto, assim, nos horários essas coisas. Mas é um maluco que quando grava, quando faz as coisas, ele faz muito bem feito, né cara. Então eu acho que tem esses pós e contras das coisas, uma coisa assim que sai o que ele é. Eu acho o mais importante. A música reflete o que ele é”. Marechal “Quando você trabalha com uma pessoa com um gênio muito forte, com uma personalidade muito forte. Essa pessoa quer mudar o mundo a cada momento, a cada opção que ela tem na mão se torna muito complexa. E você acaba tendo que esperar, ele de repente, pensar melhor sobre o que ele está fazendo. Ele vai analisar o momento dele. Ele vai analisar o que ele fez. Muitas vezes você vai fazer algo com ele e achar que está pronto e você vai estar muito feliz com aquilo. Mas aquilo tem um processo ainda de digestão. Ele olha, ele volta para trás. Tem horas que ele acha muito bom, tem horas que ele acha muito ruim. Então é muito difícil se você não tiver um controle emocional.” Alexandre Basa ( Produtor musical - Produtor do 1o disco do Black Alien: Babylon by Gus)

O caso de Black Alien, nos permite refletir para além, dentro dessa cultura do Rap nacional que estava se formando no Rio de Janeiro nos anos 90 e 2000, em especial no caso da cidade de Niterói. A questão do desvio apontada por Becker, é ao mesmo tempo: elemento que constitui essa expressão cultural em aproximação a cultura das outras formas de Rap que estavam se desenvolvendo no Brasil (em especial na periferia paulista); e elemento que permite pensar essa cultura se construindo em distinção ao que estava constituído no resto do Brasil. Ou seja, essa forma de fazer rap, dá vida a uma cultura própria dentro do mundo do rap nacional. Essa relação ambígua pode ser percebida na análise das próprias falas aqui expressas, retiradas do filme Mr. Niterói. As figuras do rap de São Paulo entrevistadas no filme: Helião RZO, Max B.O, Rapin Hood, Criolo Doido, Daniel Ganjaman e Alex “Don K.B” Cecci, narram uma admiração e um estranhamento a forma de fazer rap de Black Alien. Como Max B.O coloca: seria aquilo rap também? O trabalho de Becker nos auxilia a nossa reflexão, pois creio na possibilidade de se traçar uma aproximação entre o grupo cultural que analisamos e aquele estudado pelo autor, mesmo sendo afastados por um longa distância temporal e de contexto. O pianista de jazz e o rapper niteroiense compartilham a construção de um ideal do que é a figura do artista. No rap que vai se desenvolvendo em Niterói debater o que é ser artista é central. Fazer rap era uma forma de ter acesso a possibilidade de se expressar artisticamente no mundo de uma maneira que conseguia fugir das amarras mais formais do mercado e das normas da música. Encarava-se o rap como a estética mais simples de se produzir, dialogando com a ideologia punk do do it yourself. Bastava, ter um microfone e um computador e pronto podia-se produzir uma batida e fazer uma letra improvisada. Mais simples até do que montar uma banda de garagem, por exemplo. Essa simplicidade permitiu que tanto o jovem de classe média niteroiense quanto o jovem da periferia paulista conseguissem gravar seus relatos. E apesar da diferença entre eles serem enormes os dois podiam se enxergar do mesmo lado, nas trincheiras das batalhas travadas dentro do mercado musical, que no anos 90 e 45

começo de 2000 era dominado pelas grandes gravadoras. O rap chega questionando essa estrutura de gravação, formação de público, distribuição de mídias e toda a organização da cena musical brasileira. Com o passar do tempo vão se proliferando Home Studios, os equipamentos vão ficando mais acessíveis, as técnicas de gravação mais fáceis de serem assimiladas. Agora em 2015 se produz um disco em casa em uma semana, e a cada semana sai um disco novo e surge um grupo novo. Mesmo nos anos 90 as EPs eram produzidas em pequenos estúdios, que na época não eram muitos e não atuavam na lógica de se tornarem mídias para serem vendidas nas grandes lojas de discos do Brasil. As EPs do rap circulavam entre as redes que se formavam nos shows e eventos. Por isso foi tão importante para a trajetória de Gustavo se inserir numa rede de bandas e grupos de uma cena underground brasileiro, acabava que as redes se somavam e acabavam possibilitando acessar o público e realizar as trocas entre as pontas. Com o advento da internet tudo mudou e a cena do rap soube surfar muito bem nessa nova onda. Novamente, ai se evidencia, uma das marcas da classe média, que na virada do séc.XXI descobriu e passou a ter acessado a internet nos seus domicílios. Lembrando que nos anos 2000 menos de 6% da população brasileira tinha acesso a internet. Hoje, em 2015, 49,4% da população tem acesso a internet (segundo o IBGE). Grupos como o Quinto Andar, surgido no ano 2000, conseguiram então criar sua carreira, utilizando principalmente a nova ferramenta como fonte de distribuição de suas músicas. O grupo Oriente, surgido em 2008, soube se utilizar da segunda virada da internet que foi o advento das redes sociais. A página do grupo hoje possui mais 900 mil seguidores, seu canal do youtube possui mais de 91 milhões de visualizações. O grupo funciona como uma empresa que veicula sua própria marca tanto em formas de arquivos de áudio e videoclipes (que são comercializados ou distribuídos pela internet de forma gratuita36 ), quanto em bonés, vestuário, skates e outros produtos que levam a marca Oriente. Além disso o grupo consegue articular uma agenda de shows do Norte ao Sul do país se utilizando das redes da internet. Sobre esse primeiro momento de entrada na internet, a entrevista (recolhida por Arthur Moura e publicada na sua monografia: MOURA, 2013) do músico De Leve, ex-integrante do grupo Quinto Andar nos revelam interessantes estratégias para explorar as ferramentas da internet do começo do séc.XXI. Em especial o Napster, uma das primeiras ferramentas de compartilhamento de

36

Mesmo no caso dos vídeos distribuídos de forma gratuita no Youtube, existe uma economia virtual envolvida. Possuindo um canal monetizado pelo site que abriga vídeos de todo o planeta. O grupo recebe uma quantia em dinheiro para cada visualização que recebem em seu vídeo. Especialistas nessa forma de mercado relatam que pode se arredondar essa quantia para nível de comparação de mais ou menos $1 dólar para cada 1mil visualizações, embora essa conta não seja precisa e esses valore variem.

46

música no formato surgido na época do MP3 (um dos primeiros formatos de compreensão de áudio com poucas perdas e qualidade, o MP3 permitiu comprimir arquivos a 10% do seu tamanho original). O Napster e o MP3 anunciaram a virada do mercado da música do novo milênio. O Napster surge em 1999 e em 2001 começa a ser bombardeado de processos jurídicos de direitos autorais por advogados de grandes gravadoras e artistas como a banda Mettalica e a cantora Madonna. No anos de 2002 o Napster perde o processo na justiça e é obrigado a parar de compartilhar música da maneira que fazia, é vendido para uma grande empresa e passa a vender música na internet. “Arthur Moura – Como vocês fizeram pra divulgar o som? De Leve – Então cara, a gente veio do nada, cara! Eu lembro até que eu que fazia essa parada. Eu ficava na internet, eu ficava no Napster com as músicas nossas assim, quatro músicas, a gente tinha quatro ou cinco músicas e eu fazia a busca: ‘Racionais’. Quem tinha Racionais? Ah, usuário tal. Eu ia no cara e conversava com o cara. Pô fulano, você conhece rap do Rio, cara? “Rap do Rio?! Existe?” Existe! Ouve aê! Quinto Andar! Aí nego ouvia, mas mó galera não gostava. Nego tá ouvindo Racionais, cara! Olha só, o cara tá ouvindo Racionais, vai ouvir a gente? Nego ouvia e falava “que merda!”. Foi o maior marketing boca a boca que eu já vi.” ( Extraído de MOURA, p.29, 2013)

Creio ser possível, realizar uma aplicação das categorias que Becker utiliza de Músicos vs Quadrados para investigarmos a relação entre a cena do rap de Niterói e a de São Paulo. Por exemplo: mesmo que Max B.O estranhasse a letra “Krishna , Buda, Jesus ou Alah”, talvez porque se afastava da forma de rimas que ele estava acostumado a escutar, onde o conteúdo tendia a reclamar “que a favela estava isso, que a polícia estava aquilo”. Era ainda assim, possível ouvir aquilo, não se identificar com o discurso, mas “achar muito louco”. Ou seja era possível ouvir e gostar daquela expressão artística, e compor com ela, e/ou se inspirar a partir dela. Em termos da pesquisa do Becker ai se realiza a identificação de que mesmo que distinto, aquele trabalho é algo artístico digno de um músico, possui genialidade artística, portanto tem seu valor e nunca poderia ser realizado por um quadrado. Por outro lado, se essas duas expressões culturais estavam do mesmo lado frente a um quadro cultural maior. Parece evidente também, a distinção entre elas. De um lado os rappers de Niterói queriam fugir do estereótipo de um “rap de periferia”, “falando de muita coisa negativa”, “que só reclamava”. E queriam expressar as suas próprias visões de mundo e do cotidiano que não se identificavam com aqueles discursos. Essa distinção se dá por um motivo muito evidente,

47

embora não se evidencie de forma tão explícita nos discursos dos agentes dessa cultura, existe uma diferença de classe social entre os grupos do rap de Niterói e os de São Paulo dos anos 90. O jovem de classe média que passava o dia andando de skate, não tinha as mesmas preocupações, nem a mesma realidade, do jovem da periferia. Creio que é possível pensar também em uma herança cultural carioca onde os problemas nos discursos da música tendem a ser tratados de uma forma burlesca e irônica37 , como no carnaval, ao invés de uma postura que busque o confronto aberto e direto. Nesse quesito podemos tecer aproximações entre a cena do rap de Niterói ao movimento do funk dos anos 9038. Vemos essa estrutura de se abordar os problemas sociais com ironia burlesca, até se olharmos para a música que é considerada por muitos o primeiro rap do Brasil: “Melô do Tagarela” gravada em 1980 por Miele, jornalista, branco, carioca e de classe média. Gravada em cima da base de Rapper's Delight do grupo estadunidense Sugar Hill Gang (primeiro hit do rap estadunidense a estourar nas rádios, no ano de 1979), Miele repete a frase: “É sim de morrer de rir, quando a gente leva sério o que se passa por aqui” seguida por uma situação ruim que mostra a condição do país, como por exemplo: “E sobe outro edifício, e tome apartamento. Falta grana e sobra gente. Sobra lixo e falta vento”. É importante lembrar que obviamente no filme Mr. Niterói e as entrevistas dos representantes do rap de São Paulo tem em comum uma visão positiva sobre a nova forma de fazer rap que estava vindo por aí. Entretanto, essa postura não é unânime. Existiram e seguem existindo disputas dentro da cultura do Rap e Hip-Hop nacional por legitimidade de discursos. Para muitos, o “rap verdadeiro” seria aquele da periferia de São Paulo, que influenciou diversas localidades como a periferia de Brasília e do próprio Rio de Janeiro. Para as pessoas que pensam assim, os discursos que não tratavam o problema da periferia de maneira cru e direta são vistos como “modinha”. É claro que há o outro lado também, há letras de rappers de Niterói que ironizam as características assumidas como as do rap verdadeiro e rebatem as críticas com ironia. Como podemos ver nessa música de Marechal: “Bota a mão pra cima parceiro Finge que tá chovendo dinheiro 37

Ver o estudo sobre essas características no samba e no carnaval da primeira república. Por exemplo: SOHIET, Rachel. O povo na rua: manifestações culturais como expressão de cidadania. in, DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; Ferreira, Jorge. O Brasil Republicano, O tempo do nacional-estatismo - do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo, Livro 2. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2007. 38 Ver por exemplo: HERSCHMANN, 1997.

48

Que todas as minas te dão mole Que o mundo que cê vive é verdadeiro Eu já falei pros meus parceiros Underground é o caralho Eu quero mais é ter dinheiro Sou real no meu trabalho O disco eu mesmo que fiz, não tem na loja, demorô Vagabundo, independente dá moral pros camelô Pra quem falou que meus raps são só caô, vai vendo Meu show geral tá tranqüilo No seu os irmãos tão Morrendo Cê vive fantasiando ''hip hop tá crescendo'' Fala de revolução mas nem sabe o que tá se havendo Eu tô vendo vários dizendo ser real, mil grau aqui em cima Se dedicando muito mais a falar mal que nas rimas Ser criminal, acha que é pimp com as minas Não tem moral ainda insiste com vagabundo: ''bota a mão pra cima'' Só porque gringo faz, Só porque viu na cena do clipe o mané pulando apareceu o carrão lá atrás Agora é aquilo tá na de fazer também Vai, pega os 1 real pinta de azul e diz que é cem Você se diz contra o sistema, dobra no que grava Mas seu Nike 12 molas vem com sangue e mão de obra escrava Chuva desaba na semente de ilusão O engenho do senhor dinheiro te mantem na plantação Eles fazem pras minas rebolar Põe melodia ruim nas rimas pra tu decorar Amigo a vida me ensina, isso não vai me enganar Não preciso de platina deus me deu brilho no olhar.”(Marechal, Bota a mão pra cima, disponível em: http://www.vagalume.com.br/mc-marechal/bota-a-mao-pra-cima.html)

Observemos a polêmica entre MC Marechal e Cabal. Cabal, apesar de ser de São Paulo não se enquadra no mesmo local dos músicos que citamos antes como a cena de São Paulo dos anos 90,

49

oldschool, ou da periferia. Cabal participou de um projeto com DJ Hum que o levou a fama com músicas de letras românticas e formato que misturava refrões melódicos com rimas no formato do rap paulista. Já Marechal, ex-integrante do grupo quinto andar, está há mais de 10 anos num processo de gravar um disco (parecido com o que se passou com Black Alien), um dos pioneiros na organização das batalhas de rima, esteve a frente da Batalha do Real e agora está a frente da Batalha do Conhecimento. Em 2005, Marechal, após ter se sentido ofendido por uma música de Cabal grava a letra: “Vai tomar no cu Cabal”. Cabal responde então com a música: “Foda-se dichinelo”. Pouco nos importa o que realmente motivou essas músicas. Mas é fato que eles ganharam repercussão e ajudaram a povoar o imaginário dos seguidores do Rap em categorias de oposição Rap Niterói (podendo assumir nesse caso a imagem de estado Rio) vs Rap de São Paulo.

“Rima de merda, infantil, gastou uma faixa do CD Se esqueceu que eu avisei, bucha, não acha que é pra você A prepotência te limita, cê não entende meu caminho Eu mexo com verdade e vida e tu vai, mexe o corpinho Eu vi seu clip, tudo VIP, Ah, quem cê quer enganar? A Universal tem que pagar praquelas modelete entrar Sua corrente brilha (blin), mas uma Prova Cabal Da ilusão do seu mundin', igual a ela não é real Se diz ser muito mas eu vejo sempre o mermo flow Sem conteúdo, fraco, ruim pra caralho Vai no Faustão, essas merdas que tu se sujeita Lança sua blusinha rosa, maquiagem e sobrancelha feita Super MC? mó comédia, me copia Única parte relevante na sua música é minha "Sua mina ouve meu rap" enquanto a "senhorita" chora Falou merda, riu forçado? pela saco, ri agora [refrão] não dá pra tu, Cabal, vai tomar no cu (mexe com os outro vai, mexe até se quebrar) não dá pra tu, Cabal, vai tomar no cu (mexe com os outro vai, mexe até se quebrar) Cumpadi tu é doente de entrar numa com a Dichi Mexe seu corpo falso enquanto minha alma tá aqui(Playboy) Rio não é Miami, rua não é MTV Tu acha que o MR.Shock vai te ajudar? deixa eu rir O DJ Hum e o Bomba tão contigo por dinheiro Pra qualquer um é óbvio que você não é verdadeiro Quer ser da rua, vem pras ruas do Rio de Janeiro Sua segurança não é pesada como meus parcero Temporada de Caça, aonde? tu não caça ninguém Alias ai, na moral...o P.Rima é quem?? Tu consegue ser tão ruim que sua estréia foi uma prova Desde Legião Urbana, Daniel já tava na cova Se ficar falando muito, vou roubar sua corrente Vou dar pra favela, banhar alguns pente”(Marechal, Vai Tomar no cu Cabal, Disponível em: http://www.vagalume.com.br/mc-marechal/vai-tomar-no-cu-cabal.html#ixzz3phwPflhv)

50

“Pela saco eu tô rindo de você e da sua frase Comecou a guerra perdendo me deu a sua base A mulherada mexe o corpo dança, e curti Enquanto você pede socorro pras crianças no orkut? (troxa) Pior que isso, clona meu perfil puta coisa de viado, tipo clodovil Ei marechal, to orgulhoso de você BUXA finalmente lançou sua primeira musica (Pró Hip-Hop) Pra começar você é uma PUTA E eu tô fazendo isso por 5 motivos se liga ae.. primeiro: temporada de caça não foi pra você e você sabe disso Então não vem falar que seu som é uma resposta... segundo: você atrasa o rap do brasil com esse papo de largado deixando a mulecada com vergonha de fazer dinheiro terceiro: não desconsiderando os parceiros do RJ mas aqui é São Paulo PORRA o berço do rap nacional quarto: você sempre mandou indireta pra mim sempre teve inveja de mim então quer saber a verdade? O que? quinto: FODA-SE o quinto para o som, para o som! (...) Eu procurei uma musica sua pra poder zuar, mais a única que eu achei, era uma base gringa, tá ligado? eu to na batalha do milhão, você tá na batalha do real nunca lançou um disco, e ja tá virando velha escola Aí, volta pra novela ou vai procurar um emprego na SEBAE, com essa caixa d'agua rapaz!(hahaha) Eu to buscando resultado, aqui a coisa é séria, num é bate-papo de internet,não tá ligado? eu to fazendo isso pelo crescimento do Rap no Brasil invadindo a Mídia pra mudar de dentro pra fora...” (Cabal, Foda-se dichinelo, disponível em: http://www.vagalume.com.br/c4bal/foda-se-dichinelo-resposta-ao-mc-marechal.html)

As discussões sobre quem pode ou não falar pela cultura do rap nacional são muito intensas. Até porque, se já existiam disputas nos anos 90, com o passar dos anos os mais diferentes artistas vão fazer rap, de diferentes formas. O rap hoje em dia caiu no gosto de variados músicos e produtores musicais, atualmente é apontado como o queridinho da MPB. Complexificando ainda mais esse mosaico cultural. Seria muito mais fácil se cada um desses grupos culturais tivesse criado para si um novo nome, assumindo uma relação antropofágica com a cultura porém mais marcadamente distintiva, como o fez por exemplo o movimento Mangue Beat. Em especial a banda Nação Zumbi, que misturava através de seu vocalista Chico Science (admirador de Black Alien) levadas com a 51

estrutura do Rap ao Rock e ritmos tradicionais como o Maracatu e o Coco. Ou como o movimento do Trap que mais recentemente demarca uma ruptura estética na forma de fazer rap, inaugurando uma nova forma, marcada principalmente por um novo estilo de batidas e bases sonoras para as rimas. Porém, os grupos que estudamos não vão por esse caminho, se utilizam da mesma nomenclatura: RAP , ritmo e poesia. Compartilham algumas referências base com outros grupos que se sentem integrantes desse movimento cultural. Criam entre si uma relação marcada tanto pela disputa, quanto pelo reconhecimento mútuo. Não objetivo com esse trabalho tomar partido em uma batalha simbólica de legitimidade sobre qual seria a mais “verdadeira”, mais “real” ou a “melhor” forma do rap. Até porque não creio que haja sentido coerente em trabalhar nesses termos. Apesar de ser importante aqui demonstrar que dentro desse campo cultural existem essas disputas entre os agentes. O que nos interessa aqui, em suma, é como esse discurso serve para a construção e afirmação de diferentes discursos de identidade.

52

Conclusão: >Solta o play: https://www.youtube.com/watch?v=n_ZXeg6gD_o “A música rap traz a tona uma teia da mais complexas questões sociais, culturais e políticas na sociedade contemporânea americana. As articulações contraditórias do rap não são um sinal de de falta clareza intelectual; elas são uma característica comum das comunidades e culturas populares, que sempre ofereceram a possibilidade de mais de um ponto de vista: cultural, social ou político”. (ROSE, p.2, 1994. Tradução livre do autor)

Compartilho, nessas considerações finais, uma linha de raciocínio motivado por uma conexão que a internet e sua forma de criar conexões, ou links, me promoveu. Estava eu, vendo clipes de raps palestino rimando em árabe e denunciando os crimes de guerra de Israel, a perseguição e a bárbara condições de vida que são impostos. Ironicamente me deparei com um clipe que possuía legenda em inglês, para minha sorte, possibilitando assim a minha compreensão. Me chama atenção então a entrevista de um grupo chamado Katibe 539. O grupo reune refugiados libaneses e palestinos unidos pelos horrores da guerra. O grupo diz, assim como Mano Brown do Racionais e tantos outros, ter primeiramente se interessado por rap ao ouvir Fight the Power do grupo estadunidense Public Enemy. Hoje, Katibe 5, se vêem como uma continuação do legado deixado por Public Enemy. Misturam a influência do rap estadunidense, com a tradição da poesia popular árabe e a crítica política. A câmera abre um plano dentro de um quarto num vilarejo de refugiados nas atuais terras do estado de Israel. Um jovem faz beat-box40 , enquanto outros se revezam fazendo freestyle em árabe. Um dos integrante do grupo diz cantar: “sobre o que é ser um jovem palestino”. Já outro integrante diz que eles não são só palestinos falando sobre seus problemas, mas que os seus problemas se relacionam a um contexto global de pessoas que sofrem opressão. Para terminar, um outro integrante diz que o rap não é o objetivo central do grupo, cantar a mensagem da sua causa é o objetivo central. Vamos para outra cena: colégio estadual da cidade de Niterói, um debate organizado sobre rap e educação, contaria com três integrantes porém dois faltam a mesa. Fica apenas então MC Marechal. Ele conta um pouco da história do rap surgido no Bronx, algo sobre a história do rap no Brasil, fala bastante sobre a falta de disciplina como um problema, utilizando inclusive a falta dos outros integrantes da mesa como exemplo, estimula as crianças a empreenderem suas vidas e ressalta a importância de se acordar cedo, ler e estudar. Em algum momento da sua fala, provocado

39 40

Disponível em: http://culturesofresistance.org/make-music-katibe-5 Técnica de fazer barulhos simulando batidas, utilizando apenas o corpo.

53

por uma professora sobre sua opinião sobre outros ritmos musicais, Marechal responde: “Eu faço música de mensagem, faço rap porque sei fazer rap, se soubesse fazer forró, faria forró de mensagem.”. Tricia Rose estava certa na sua pesquisa publicada em 1994, 11 anos depois em uma leitura de suas reflexões, aqui bem longe do Bronx-NY, podemos reafirmar que de fato “ninguém segura o rap”. Dedicamos esse trabalho a ressaltar as particularidades da cena do rap surgida na cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro, no Brasil. Após vermos as particularidades desse movimento, podemos concluir essa monografia, identificando suas relações com os movimentos paralelos que surgem ao redor do mundo. Como Rose revela o poder do Rap nos EUA residia no empoderamento da juventude negra, na reinvenção das tradições orais negras, aliada a apropriação das ferramentas da música eletrônica. Vou além, e arrisco, concluir que essas características possibilitaram o Rap se tornar uma forma de estética universal, bem recepcionada por juventudes de diferentes partes do mundo. O Rap, em sua simplicidade de execução, nas possibilidades criativas do improviso, na relação com tradições rítmicas locais, possibilitam o empoderamento de juventudes por todo o mundo. O número de exemplos interessantes não cabem aqui nessa páginas: seja do Rap palestino de Katibe 5; do Rap feminista e aliado as tradições indígenas da chilena: Ana Tijoux (https://www.youtube.com/watch?v=EKGUJXzxNqc); ou dos rappers Guaranis que misturam sua língua ao português: Brô MCs (https://www.youtube.com/watch?v=IBafJlZxT6s); das imigrantes cubanas denunciando as dificuldades de se ingressar e viver na espanha: Krudas (https://www.youtube.com/watch?v=pW4tSvb-mfA); ao cântico que une o continente latino americano dos porto-riquenhos: Calle 13 (https://www.youtube.com/watch?v=DkFJE8ZdeG8). Entre tantos outros exemplos possíveis. Em Niterói, não foi diferente. A juventude dos anos 90 aqui decidiu utilizar o rap para narrar a suas próprias experiências com a vida, o seu próprio lugar no mundo. Poderíamos nos dedicar a estudar cada um dos exemplos que demos a cima e entender como a cena rap de cada localidade se relaciona a discursos de identidade distintos. A identidade apesar de subjetiva, se calca em grupos, em comunidades imaginadas em todos esses casos vinculadas a uma relação com o local de origem. Como nos locais de origem urbanos se acumulam milhares, as vezes milhões de pessoas, se tece, então, não só uma identidade associada ao local, mas associada a um determinado estilo de vida daquele local. O Rap seria então uma boa síntese para um termo em voga nas análises culturais

54

contemporâneas: o glocal41 . Em suma, a produção de uma cultura produzida localmente com um olhar global. No caso do rap de Niterói e de todo o Brasil. podemos ver no improviso uma relação com as tradições orais da cultura popular local como: repente, o calango, a embolada, o partido alto, entre outros. Uma análise detalhada dessa relação daria um trabalho acadêmico interessante. Os próprios rappers da cultura de improviso tem consciência disso e várias vezes fazem referencia ao repente, produzem material junto com repentistas ou duelos de rima entre MCs repentistas 42 . Rapadura Xique-Chico rapper do Ceará, levou essa união a outro nível, buscando uma marca identitária nordestina no rap. Imagino que se buscássemos analisar com calma as cenas de rap de outras localidades do planeta, encontraríamos resultados parecidos, quanto a relação com suas próprias tradições orais e rítmicas e a um discurso de identidade. O rap serve como elemento que remonta a diáspora negra e a riqueza cultural da população negra nos guetos americanos, e em diversas localidades pelo mundo. No caso de Niterói, apesar de beber na fonte dos ritmos negros, a cena do rap não se constrói pautada no empoderamento da população negra. Essa cena nos revela, por outro lado, algumas imagens sobre o contexto social, o imaginário e os valores dessa tão complexa e difícil de ser definida: classe média. A cena rap de Niterói consegue dentro dessa própria indefinição, dentro desse próprio limbo conceitual, que é a classe média, dar face e corpo a essa forma fluída. Ao se reivindicar o estilo de vida da cultura de rua, não se reivindica de uma forma meramente tribal como mais uma possibilidade dentro do jogo adolescente de identificações, como pode parecer a uma pessoa de fora. Para o jovem que canta ser de Niterói, e que descreve os pontos altos da sua vida na cidade, essa é a própria experiência da vida. Qualquer outra possibilidade seria algo externo, fora dessa comunidade imaginada, fora desse campo de realidade. Portanto ser de Niterói, não é apenas habitar em Niterói. Ser rua, não é apenas frequentar as ruas. E por mais que seja interessante para alguns fins, as pesquisas que remontem a grande história do Rap sob uma forma linear e como uma coisa única e coesa, nunca vai conseguir entender a importância e a beleza dos detalhes particulares.

41 Apud

HERSCHMANN, 2010. “Conforme argumenta Roland Robertson, esse termo tem origem na expressão japonesa dochakuka, derivada de dochaku, ou “viver da própria terra”. A glocalização – idéia popular no mundo dos negócios do Japão a partir dos anos 1980 – significa produzir localmente, com um olhar global. O conceito foi extrapolado para o campo cultural, especialmente a partir dos anos 1990, na esteira dos estudos sobre os desdobramentos da globalização (Robertson, 1999).” 42 ver: https://www.youtube.com/watch?v=-Fulq3n0RNo

55

Musicografia Black Alien, Babylon By Gus, 2004 disco Babylon by 0 Gus, Deckdisc. Black Alien, Caminhos do Destino, 2004, disco Babylon by Gus, Desckdisc. Black Alien, É, 1999, disponível em: http://letras.mus.br/black-alien/ 1754012/) Black Alien, From Hell do Céu, 2004. Disponível em: http://letras.mus.br/black-alien/145043/) Black Alien, Universo Paralelo, 2006, disponível em: http://letras.mus.br/black-alien/universo-paralelo/ Black Alien, Hit Hard Hip-Hop, 1993, transcrito pelo autor. Black Alien e Speed, Nikiti City, 2000, Disponível em: http://www.vagalume.com.br/black-alien/nikiti-city.html#ixzz3hCzNonuk Cabal, Foda-se dichinelo, 2005, disponível em: http://www.vagalume.com.br/c4bal/foda-se-dichinelo-resposta-ao-mc-marechal.html Caixa Baixa, Pode Acreditar, 2013, disponível em: http://letras.mus.br/caixa-baixa/pode-acreditar/ ConeCrewDiretoria, Lá pa Lapa,02008, disponível em: http://www.vagalume.com.br/conecrewdiretoria/la-pa-lapa.html#ixzz3pgSZb8AZ De Leve, Amônia Dub, 2015, disponível em : http://letras.mus.br/de-leve/melo-da-amonia/ De leve, Essa é pros amigos, 2003, Disponível em: http://www.vagalume.com.br/de-leve/essa-e-pros-amigos.html De Leve, Eu Bolo, 2003, disponível em: http://letras.mus.br/de-leve/237249/ De Leve, Largado, 2003, disponível em :http://letras.mus.br/quinto-andar/72212/ De Leve, Rolé de Camelim, 2006, disponível em: http://letras.mus.br/de-leve/569961/ Marechal, A Rua sabe, disponível em: http://www.vagalume.com.br/mc-marechal/a-rua-sabe.html) MC Marechal, Bota a mão pra cima, 2007, disponível em: http://www.vagalume.com.br/mc-marechal/bota-a-mao-pra-cima.htm MC Marechal, Vai Tomar no cu Cabal, 2005, disponível em: http://www.vagalume.com.br/mc-marechal/vai-tomar-no-cu-cabal.html#ixzz3phwPflhv Oriente, A Noite, 2012, disponível em: http://www.vagalume.com.br/oriente/a-noite.html#ixzz3pgLKfWHc Oriente, Eu sou de Niterói, 2010, disponível em : http://letras.mus.br/oriente/1662419/ Oriente, Isso aqui é Itacoa, 2011, disponível em: http://www.vagalume.com.br/oriente/isso-aqui-e-itaoca.html Planet Hemp, Hemp Family, 1997, Os cãe ladram mas a caravana não para, disponível em : http://letras.mus.br/planet-hemp/79165/ Planet Hemp, Legalize Já, 1995, Usuário, Disponível em: http://letras.mus.br/planet-hemp/48151/ Projota, Vagabundo Trabalhador, 2013, disponível em: http://letras.mus.br/projota/vagabundo-trabalhador/) Quinto Andar, Rap do Calote, 2005 disponível em : http://letras.mus.br/quinto-andar/242317/ ) Rashid, Ainda Ontem, 2009, disponível em: http://www.vagalume.com.br/projota/ainda-ontem.html) Speed Freaks, Eu Sou Assim, 2001, disponível em:http://letras.mus.br/speed-freaks/1171332/) 0

56

Discografia: Obs: A maior parte das músicas citadas não saiu em formato de disco, elas estão vinculadas a sites contendo as letras, quando existem, ou a penas trancritas de arquivos baixados on line. Black Alien, Babylon By Gus vol 1, DECKDISC, 2004. Planet Hemp, Usuário, SONY BMG, 1995. Planet Hemp, Os Cães Ladram mas a caravana não para, SONY BMG, 1997. Planet Hemp, Invasão do Sagaz Homem Fumaça, SONY BMG, 2000. 0

Filmografia: De Repente: poetas de rua. Diretor: Arthur Moura. Rio de Janeiro, 2009. L.A.P.A. Diretor: Cavi Borges e Emílio Domingos. Rio de Janeiro, 2009. Freestyle, um estilo de vida. Diretor: Pedro Gomes. São Paulo, 2008. Mestres do Viaduto. Diretora: Ana Estrela e Bárbara Viggiano. Belo Horizonte, 2012. Firmeza Total. Diretor: Dre Urhahn e Jeroen Koolhass. São Paulo, 2006. Funk Ostentação. Diretor: Kondzilla. São Paulo, 2012. A Batalha do Real. Direçao: Tarja Preta. Rio de Janeiro, 2006. Mr. Niterói: a lírica bereta. Diretor: Ton Gadioli. Rio de Janeiro, 2012.

Referências Bibliográficas: ALMEIDA, L. de. Lili Leitão, o Café Paris e a vida boêmia de Niterói & Niterói, poesia e saudade. Niterói: Niterói Livros, 1996. ALVES, Rôssi. Rio de Rimas. Tramas Urbanas. 2013. AMARAL, Liana Viana do. Da lama e do Caos – Globalização e hibridismo na produção do movimento mangue beat/ Chico Science & Nação Zumbi. Fortaleza: 2005 (tese) – UFC. ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. Ed. Ática, 1989. AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. BARBOSA, Antonio Rafael. RENOLDI, Brígida. VERISSIMO, Marcos.(orgs). (I)legal : etnografias em uma fronteira difusa. Niterói, Ed UFF, 2013.; LABATE, Beatriz Caiuby et al (Org.). Drogas e Cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2008. 57

BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. In: Magia e Técnica, Arte e Política. 3 edição. São Paulo, Brasiliense, 1987. BOURDIEU, Pierre. 'Gostos de classe e estilos de vida'. in: Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. BUZO, Alessandro. (2010). Hip-Hop: dentro do movimento. Aeroplano. Rio de Janeiro. COELHO, Frederico. “Suingue e agitação: apontamentos sobre a música carioca contemporânea”. In: GIUMBELLI, E; DINIZ, J.; NAVES, S. (orgs) Leituras sobre música popular – Refl exões sobre sonoridades e cultura. Rio de Janeiro: 7 letras, UFRJ, PUC-Rio, 2008. CHANG, Jeff. Generación Hip Hop: de la guerra de pandillas y el grafiti AL gansta rap, Buenos Aires: Caja Negra, 2014. DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia dos dilemas brasileiros. Rio de Janeiro: Rocco, 1978. DA MATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil. Rocco, RJ, 1986. FERREIRA, Marieta de Moraes. A cidade como centro político. In: MARTINS, I. L.; KNAUSS, P. (Orgs.). Cidade múltipla: temas de história de Niterói. Niterói: Niterói Livros, 1997. p.73 - 100. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós Modernidade. Lamparina, 2014. HERSCHMANN, Michael. Lapa, Cidade da Música. MAUAD, 2007. Vários in HERSCHMANN, Michael. Abalando os Anos 90: funk e hip-hop : globalização, violência e estilo cultural. Rocco, 1997. Vários in HERSCHMANN, Michael. Nas bordas e fora do mainstream musical, novas tendências da música independente no início do século XXI. FAPERJ, 2011. JAMESON, Fredric; ZIZEK, Slavoj. Estudios Culturales: reflexiones sobre el multiculturalismo. Buenos Aires: Paidós, 2008. LUZ, Margareth. "Nasce uma nova Niterói": representações, conflitos e negociações em torno de um projeto de Niemeyer. Artigo, 2009. LEAL, Sérgio José de Machado. Acorda hip-hop! : despertando um movimento em transformação. Aeroplano, 2007. MACEDO, Márcio. Hip-Hop SP: metamorfoses, rupturas, continuidades e institucionalização entre uma cultura de rua, negra e periférica na construção de uma “democracia sem dente” (1983-2013). Artigo MANUEL VALENZUELA ARCE, José. Vida de Barro Duro: cultura popular juvenil e grafite. Rio

58

de Janeiro, UFRJ, 1999. MOURA, Arthur. Uma Liberdade Chamada Solidão: a formação do rap independente no Rio de Janeiro (1990 – ’013), UFF, 2013. MUNDIM, Pedro Santos. DAS RODAS DE FUMO À ESFERA PÚBLICA: O DISCURSO DE LEGALIZAÇÃO DA MACONHA NAS MÚSICAS DO PLANET HEMP - Mestrado em Comunicação Social da UFMG. UFMG: Belo Horizonte, 2004 NOBREGA, Orlando. Os boemios da cultura de Niterói: a memória da cidade através dos bares, restaurantes, livrarias, esquinas e serestas. Niterói: Niterói Livros, 1994. ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. SP: Brasiliense, 1994 PIMENTEL, Spensy. O Livro Vermelho do Hip Hop, São Paulo: Universidade de São Paulo, 1997. SANTOS, Milton. Sociedade e Espaço: a formação social como teoria e como método. In: Boletim Paulista de Geografia, n 54. São Paulo: AGB, jun. 1977. SOUZA, José Antônio de Soares de. Da Vila Real da Praia Grande à Imperial Cidade de Niterói. Niterói, Niterói LivroslFuniarte, 1993. STADEN, H. Duas viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. Tradução de Angel Bojadsen. Porto Alegre, RS. L&PM. 2010. p. 101. SILVESTRIN, Mauro Leno. O movimento pró canábis no Rio de Janeiro (2002-2012): experiências, trajetórias e atores.Dissertação (Mestrado em Antropologia) Setor de Ciências Humanas, UFPR, 2013. SOUZA, José Antonio Soares de. Da vila Real da Praia Grande à imperial Cidade deNiterói.Niterói, 1993. ROSE, Tricia. Black Noise. . Wesleyan University Press. 1994. UNESCO-BRASIL. Fala Galera, Rio de Janeiro: Garamond, 1999.

59

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.