Ninfas, ondinas,sereias, Melusina ... O mito da \"mulher das águas\" e a \"Ondina\" de Fouqué.

May 29, 2017 | Autor: Teolinda GersÃo | Categoria: Comparative Literature, German Literature
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Teolinda Gersão
Ninfas, ondinas, sereias, Melusina ... O mito da "mulher das águas" e a
Ondina, de Fouqué



I
A Ondina de Fouqué. O Livro das Ninfas de Paracelso como sua
fonte principal. Aspectos e pressupostos culturais do mito da
«mulher das águas».






1.
O Märchen[i] de Friedrich de la Motte-Fouqué Ondina (Undine) foi
publicado pela primeira vez em 1811, tornando-se de imediato, dentro e fora
da Alemanha, um dos textos mais lidos e celebrados do seu tempo.
Heinrich Heine, que tanto criticará o Romantismo, contribuirá para a
consagração da obra, referindo-se-lhe com admiração e apreço em Die
romantische Schule (1835), em termos cujo teor e tom surpreendem o leitor
familiarizado com a sua pena mordaz – «que adorável poema é Ondina! Este
poema é ele próprio um beijo» –, e aludirá ao autor como «o nosso magnífico
Fouqué». Edgar Allan Poe corrobora esta opinião, afirmando em 1839 que «por
um Fouqué há cinquenta Molières»[ii].
No século xx, encontraremos ainda admiradores incondicionais de Fouqué,
como é o caso de Arno Schmidt, que escreveu uma biografia do autor e vê
nele «um grande poeta, um mago, capaz de tecer com palavras imagens
sobrenaturalmente brilhantes»[iii].
Uma análise pormenorizada da recepção do texto poderá encontrar-se no
artigo de Gisela Dischner «Friedrich de la Motte-Fouqué: Undine»[iv] e, no
contexto do Romantismo alemão, no livro de Kurt Goldammer Paracelsus in der
deutschen Romantik[v].
Desde os finais do século xviii que o motivo dos espíritos elementares
surgia recorrentemente na literatura alemã, devido à influência dos Märchen
franceses, do Oberon de Wieland, de Shakespeare (A Midsummer Night's Dream
e The Tempest) e de colectâneas de Märchen alemães (Volksmärchen der
Deutschen de Musäus data de 1782-1786). Fora do campo literário, são ainda
de assinalar outros estímulos, com origem na filosofia romântica da
natureza, sobretudo de Schelling, no pensamento de Böhme e de Baader e na
teoria do neptunismo de Werner, que encontrou na época numerosos
defensores.
No início do século xix, grande número de textos aborda o motivo da
«mulher das águas»: Tieck publica em 1801 a Sehr wunderbare Historie von
der schönen Melusine; o poema «Lore Lay» é incluído por Brentano no romance
Godwi (1801-1802) e, em 1803, o mesmo autor retoma o motivo da «mulher das
águas» na Chronika eines fahrenden Schülers; Karl Friedrich Hensler, que já
em 1789 editara Das Donauweibchen), publica Die Nymphe der Donau em 1808; o
fragmento de Tieck Das Donauweib data igualmente de 1808 (para citar apenas
alguns exemplos).
É neste contexto que surge como clímax em 1811 a Ondina de Fouqué. O
motivo será particularmente sedutor para os românticos. Bastará lembrar a
figura da nixe (espírito das águas na mitologia dos povos germânicos
europeus) em Das Marmorbild de Eichendorff (1826) e em numerosos poemas do
mesmo autor; Märchen como Die Nixe im Teich ou Die Wassernixe, incluídos
nos Kinder- und Hausmärchen de Grimm (o primeiro volume é de 1812); ou
ainda, já posteriormente ao período romântico, a Histoire von der schönen
Lau de Mörike, incluída em Das Stuttgarter Hutzelmännlein de 1853.
A Ondina de Fouqué continua aliás a encontrar novas versões e a ser
fonte de inspiração até aos nossos dias, nos domínios da literatura, da
ópera, do teatro, do bailado. Citarei como exemplos (entre outros
possíveis) as óperas Ondina de E.T.A. Hoffmann (1815), de Albert Lortzing
(1845), de Tchaikovsky (1869), a Rusalka (nome das ninfas aquáticas na
mitologia eslava) de Dargomijsky, sobre texto de Pushkin (1856), ou a
Rusalka de Dvořák, de 1901, que segue muito de perto La Motte-Fouqué e
ainda hoje é encenada com enorme sucesso.
Em 1834, surge o bailado Ondine ou la Naïade, com música de Cesare
Pugni e coreografia de Jules Perrot. Em 1958 e em 1988, Londres aplaude no
Covent Garden o bailado Ondina, com música de Hans Werner Henze e
coreografia de Frederick Ashton.
Pushkin deixou inacabado um drama em verso, Rusalka (ponto de partida
para o libretto da ópera de Dargomijski), Jean Giraudoux escreve a peça de
teatro Ondine (1939), de onde releva uma enorme fascinação pelo texto de
Fouqué, de que já se tinha ocupado quando jovem num ensaio inédito[vi].
São célebres outros textos inspirados em Fouqué, como, por exemplo, o
conto de Hans Christian Andersen, A Sereiazinha (1837), e o de Ingeborg
Bachmann, Undine geht (1961).


*

O que ressalta desde logo no tratamento do motivo é a variação
terminológica: a «mulher das águas» surge como ninfa, mulher, ondina,
sereia, nixe, Melusina e outros nomes ainda.
No Livro das Ninfas de Paracelso, que foi a principal fonte de Fouqué,
ocorrem as designações Wasserfrau (mulher das águas) Meerfrau (mulher do
mar), Undine (ondina), Nymph (ninfa), Sirene (sereia) – esta última
considerada um monstro. Paracelso utilizará ainda, uma única vez, o termo
Unda (onda) como sinónimo de «ondina».
«Mulher das águas» é o termo mais abrangente, uma vez que inclui todas
as águas, independentemente de serem ou não marinhas, e por isso o
adoptarei sempre que se torne necessária uma referência não particularizada
ao motivo.
A designação não é todavia o aspecto decisivo. A característica comum e
essencial é a ligação com a água. Assim, todas essas figuras – nixe, ninfa,
Melusina, Ondina... – podem ser consideradas variantes de um mesmo motivo.
Nesta perspectiva, é secundário que a ligação com a água se manifeste ou
não a nível físico por um resíduo visível, ao nível do corpo, como a cauda
de peixe da sereia ou a cauda de serpente aquática de Melusina. Porque no
corpo «perfeito» da ninfa também a associação à água é mantida, e o motivo
não se torna por isso mais frouxo, talvez ganhe, pelo contrário, em
intensidade, em virtude da própria ambiguidade implícita.
Por detrás destas figuras estão as «mulheres das águas» da mitologia
grega e as fadas das águas das histórias medievais, como adiante
explicitarei num breve relance sobre o motivo, em que apontarei algumas das
suas implicações a nível antropológico e psicológico. Essa perspectiva
fornecerá um pano de fundo contra o qual ou sobre o qual se poderá ler o
texto de Fouqué.




2.
A principal fonte de Ondina foi, como referi, o Livro das Ninfas de
Paracelso[vii], a cuja leitura o autor foi conduzido através da obra de
Jakob Böhme. O termo Undine, como sinónimo de «mulher das águas», deriva
provavelmente da contaminação de Unda (onda) com a terminação -ine de
Melusine.
Curiosamente, o termo «ondina» e a concepção paracélsica dos espíritos
elementares foram sobretudo divulgados na Alemanha e na Europa pelo livro
francês Le Comte de Gabalis ou Dialogues sur les Sciences Secrètes, de
Montfaucon de Villars (1670, tradução alemã 1782[viii]). Fortemente
influenciado por Paracelso, este texto era de leitura muito mais acessível
e chegou a um público mais alargado.
No Livro das Ninfas, Fouqué encontra os motivos centrais de Ondina: os
espíritos elementares da água (interessam-nos neste caso apenas os de sexo
feminino) têm em tudo uma aparência humana, são «seres de sangue, carne e
osso como qualquer de nós», dotados de razão e inteligência; todavia não
têm alma, podendo no entanto adquiri-la através da união sexual com os
humanos; e porque ardentemente a desejam, «esforçam-se por conquistar [os
homens] e ganhar a sua intimidade», para o que utilizam, por vezes
ardilosamente, a força da sua sedução.
Essa união é lícita, pois faz parte dos desígnios de Deus em relação ao
universo: «Tal como um pagão pede o baptismo e anseia por ele para obter a
sua alma e se tornar vivo em Cristo, assim também esses seres perseguem o
amor dos homens para se ligarem a eles». E «é tal o poder da aliança entre
duas coisas, que a inferior goza da vantagem da superior e tem a força
desta», escreve Paracelso. Assim, de parte a parte a união traduz-se num
ganho, na aquisição de «algo mais»: os seres elementares adquirem alma, mas
por outro lado facultam vantagens aos humanos, pois são poderosos e
frequentemente guardiães de tesouros.
É ainda no Livro das Ninfas que Fouqué se inspira para dois dos seus
tópicos: o de que «se alguém tiver uma ninfa por mulher não a deve deixar
aproximar-se da água nem ofendê-la sobre as águas», sob pena de a perder; e
o de que se o homem casado com uma ninfa tomar outra mulher por esposa,
esta vem e lhe traz a morte.
O motivo da perda da ninfa por desobediência a um interdito ocorre na
história de Melusina, e o da morte devido a tomar outra mulher por esposa,
na história do cavaleiro de Stauffenberg. Ambos os textos são referidos por
Paracelso, que mediará a sua transmissão ao Romantismo alemão, e é de supor
que Fouqué os tenha lido – este último provavelmente na versão de Arnim,
publicada em 1806 no Des Knaben Wunderhorn: Ritter Peter von Stauffenberg
und die Meerfeie, wahre Geschichte Herrn Peter von Stauffenberg (baseado na
edição de Estrasburgo de 1595, embora se registe a existência de versões
anteriores). Quanto à história de Melusina, originariamente, como se supõe,
de raiz francesa, o seu aparecimento em língua alemã data de 1456, com
Thüring von Ringoltingen: Melusine. Dis Abenteürlich Buch Beweyset uns von
einer Frawen genandt Melusina die ein Merfaye war. O livro em prosa de
Ringoltingen é tradução da obra em verso de Couldrette Melusigne, Livre de
Lusignan ou de Partenay, terminado por volta de 1401, e que por sua vez
constitui uma nova versão do livro de Jean d'Arras L'Histoire de la Belle
Mélusine, surgido entre 1387 e 1394. Supõe-se que Fouqué terá lido a versão
romântica de Tieck, Sehr wunderbare Historie von der schönen Melusine,
publicada em 1800.




O motivo dos seres elementares aquáticos (neste contexto, de sexo
feminino) não começa evidentemente em Paracelso. No pensamento ocidental,
como referi, os Gregos foram os primeiros a dar-lhes forma e nome (ninfas,
sereias, náiades, nereides...). Mas a ideia de que os elementos são
habitados por seres que a eles se ligam numa relação estreita tem raízes
antiquíssimas e prende-se finalmente a concepções animistas, cuja história
se confunde com a própria história do homem. Como escreve Mircea Eliade, no
Tratado da História das Religiões:


Não foi a imaginação helénica que as produziu [às divindades
aquáticas]: [estas] estavam lá, nas águas, desde o começo do mundo.
[...] Semelhantes ao elemento de que só imperfeitamente se destacaram,
sem que nunca o conseguissem definitivamente, estas divindades são
estranhas e caprichosas, fazem o bem e o mal com igual ligeireza, mas o
mal com mais frequência, como o mar. Vivem, mais do que outros deuses,
para além do tempo, para além da História. Muito próximas da origem do
mundo, só ocasionalmente participam no seu destino. A sua vida é talvez
menos divina do que a dos outros deuses, mas é mais igual e mais
solidária com o elemento primordial que representam.[ix]


Alguns aspectos das concepções helénicas serão, ao longo dos séculos,
característicos do imaginário europeu, e deles encontraremos ainda
ressonâncias em Ondina. A título ilustrativo, podemos referir as nereides,
que personificavam talvez as ondas marinhas e eram em geral apresentadas em
número de cinquenta. Viviam no fundo do mar no palácio de seu pai Nereu e,
sentadas em tronos de ouro, fiavam, teciam e cantavam, gozando de poderes e
conhecimentos superiores. Frequentemente estes seres aquáticos eram dotados
do dom da metamorfose.
As ninfas apaixonavam-se pelos homens e assumiam muitas vezes o papel
activo no jogo amoroso: em vez de raptadas, eram elas as raptoras ou as
sedutoras. Um elemento negativo ou «perigoso» estava por vezes implícito no
jogo de sedução: quem visse ao meio-dia as náiades ou ninfas das fontes,
nascentes e regatos podia ser acometido de loucura; as sereias
representarão o grau máximo de ambivalência e perigosidade, como o próprio
aspecto híbrido do seu corpo indica (serão concebidas inicialmente com
cabeça e peito de mulher e o resto do corpo de pássaro[x], e só mais tarde,
em lendas provavelmente de origem nórdica, como seres marinhos). Também em
Paracelso as sereias serão «monstros», embora numa perspectiva algo
diferente.
Na tradição judaico-cristã, a angeologia e a demonologia irão misturar-
se ao conceito de espíritos elementares. Assim, por exemplo, Filo
identifica os anjos das Escrituras com os «demónios» dos filósofos gregos,
e considera-os intermediários entre Deus e os homens (os demónios dos
filósofos gregos – daimones – representavam simplesmente forças naturais).
No Livro de Enoch (19,2) as mulheres amadas pelos anjos caídos
transformaram-se em sereias[xi]; segundo outras concepções, os seres
elementares provêm da união dos anjos com as filhas dos homens[xii]. No
vasto campo dos «anjos caídos» e da demonologia, a figura de Lilith é
particularmente interessante no presente contexto: criada nos seis dias da
Criação como espírito desencarnado, procura um corpo e associa-se
sexualmente aos humanos, primeiro a Adão e depois aos seus filhos. Lilith,
a quem o Zohar chama «prostituta», «maldita», «falsa» e «negra», devoradora
de homens e de recém-nascidos, «tem o seu verdadeiro domicílio nas
profundezas do mar», e pela sua face de sedutora é aparentada com as
sereias, como refere Gershom Scholem analisando a simbologia da
Cabala[xiii]. Em Lilith ou la mère obscure, Jacques Brill aponta Melusina,
a Lorelei e as «filhas das águas», nas suas várias formas, como outras
tantas figurações de Lilith[xiv].
Na Idade Média, talvez a partir do século xii, os seres elementares são
concebidos como fadas. O nome provém do baixo latim fata (fatae) e
significará destino(s). Algumas destas serão fadas das águas (fontes,
regatos, lagos, mar...), serão boas e/ou funestas e também elas capazes de
metamorfose. A ninfa de Stauffenberg é apresentada como «fada do mar»
(Meerfei), e também Melusina é encarada como fada, ligada à água pela sua
cauda de serpente e pelo seu regresso aos sábados ao elemento aquático (a
contemplação pelo marido desse regresso funcionará neste caso como
interdito).
Segundo a Deutsche Mythologie de Grimm, o termo merminne designa o
conceito de «sereia», e no século xiii merwip e merfrouwe serão termos
equivalentes para designar a «mulher das águas» (neste caso,
especificamente do mar); em relação a merfei, «fada do mar», a referência
fornecida por Grimm é novamente a da ninfa de Stauffenberg[xv].
No Apêndice I a Paracelsus und die deutsche Romantik, intitulado Woher
kommt und wohin geht Undine?, Kurt Goldammer investiga as origens do motivo
da ondina em Paracelso e verifica que, para além da mitologia grega e do
folclore medieval, Paracelso foi provavelmente influenciado pelo
neoplatonismo do século xv, sobretudo por Marsílio Ficino e por Pico de
Mirândola. Ficino, comentando Plotino, Porfírio, Jâmblico, Proclo, Miguel
Pselo e outros, alude por diversas vezes aos espíritos elementares; em
Jâmblico surgem «demónios», concebidos como «forças», alguns dos quais são
terrenos e corpóreos. No De Demonibus, de Miguel Pselo, os «demónios» são
corpóreos, e entre eles encontram-se os espíritos da água. Estes espíritos
elementares podem mudar de forma, e manifestar-se, nomeadamente, sob as
formas de homem, de mulher ou de animal[xvi].
No espaço linguístico alemão, Paracelso será ainda influenciado por
Tristhemius, autor da Steganographia (1500), e por Cornelius Agrippa de
Nettesheim, cuja Philosophia Occulta (1533) refere os espíritos elementares
numa perspectiva demonológica e mágica[xvii].
Como Paracelso menciona várias vezes ao longo da sua obra, e como
também se pode ler no Livro das Ninfas, a Bíblia é sempre, em último caso,
a autoridade máxima. No entanto o seu pensamento assimila além disso
perspectivas neoplatónicas, gnósticas, herméticas, cabalísticas e
alquímicas, que escapam à ortodoxia. Na visão paracélsica o conceito de
espíritos elementares integra-se num vasto contexto cosmológico e
antropológico e prende-se a questões como as de espírito, matéria, corpo,
alma, criação, criador e criatura. Por detrás das concepções de Paracelso
perfila-se um universo de pensamento em que surgem noções como o universo
em degraus, a doutrina das emanações, a correspondência entre o macrocosmos
e o microcosmos, a «simpatia» unindo todos os seres, o motivo da subida e
descida da alma até ao corpo através do cosmos, etc.
Um aspecto central na concepção paracélsica de espíritos elementares é
a meu ver o retomar do motivo do espírito «caído» na matéria. De facto,
estes seres estranhos, em que «a carne é espírito e o espírito é carne»,
que Paracelso tem dificuldade em definir e a que por vezes chama «coisas»
(Ding), «pessoas-espíritos» (Geistmenschen), estão mais próximos do animal,
portanto abaixo do homem na escala da criação; não sendo dotados de alma,
dissolvem-se como o animal no seu elemento, de que estão imperfeitamente
separados e com que são solidários, e estão assim muito próximos da matéria
de que são feitos e com a qual em parte se confundem.
Esta ideia de que o espírito «caído» e «aprisionado» deverá sofrer um
processo de ascensão através da matéria, e de que a transformação do caos
em cosmos coincide com a realização desse percurso, é novamente uma ideia
neoplatónica, recorrente com intensidade em Plotino e também característica
da Gnose, da Cabala, do Hermetismo e da Alquimia. Encontramos a mesma ideia
no cerne do universo de Böhme, cuja teosofia é uma filosofia da revelação
ou da iluminação (a «centelha» de luz divina caída na matéria deverá ser
«libertada» através do homem, na sua ascensão ao conhecimento).
O motivo do espírito caído na matéria atravessa também a filosofia da
natureza característica do Romantismo alemão, e é expressa com grande
intensidade plástica na concepção schellinguiana da «alma do mundo»,
concebida como «um espírito gigantesco que existe na natureza e que, embora
rígido em todos os seus sentidos, agita por vezes as suas asas, move-se e
irrompe com violência e, através das coisas animadas e inanimadas, luta
desesperadamente pela consciência». Inerente a esta concepção está a ideia
de uma cisão inicial, da Criação como ruptura, quebra da unidade
primordial. Claude Tresmontant, em La métaphysique du christianisme et la
naissance de la philosophie chrétienne, designa esta ideia como «metafísica
da Queda» e estabelece o princípio da divisão (entendida como catástrofe,
culpa, ou simplesmente como o mal) no seio da própria divindade[xviii].




3. Aspectos de Melusina em Paracelso, do ponto de vista psicológico


Em duas obras que se relacionam de forma particularmente directa com o
presente contexto, Psychologie und Alchimie e Paracelsica, Jung refere do
ponto de vista psicológico este motivo do espírito «caído» na matéria e
dela de novo se libertando. Este motivo corresponde a um conteúdo
inconsciente, a um complexo autónomo que adquire uma existência
independente no Não-Ego psíquico e que é imediatamente projectado sempre
que analogias exteriores o suscitem[xix].
Deste modo reaparece recorrentemente na história do pensamento humano,
e também o que se passa na transformação alquímica se pode entender como
metáfora dessa elevação da matéria até ao espírito.
Neste sentido, e comentando Paracelso, Jung considera que o desejo de
alma e salvação da ninfa é paralelo à ideia de que existe uma substância
mutável (isto é, capaz de metamorfose) caída inicialmente na matéria, à
espera de salvação[xx], e cita um texto alquímico do século xvii, Symbola
Aureae Mensae, de Michael Majer, em que o «rei» aprisionado grita por
socorro das profundezas do mar: «Quem me salvará das águas e me trará até à
margem enxuta?», «a quem me salvar [...] farei feliz, com riquezas
perpétuas»[xxi]. O que no texto surge como «rei» ou por vezes como «filho
do rei» (filius regius) representa, segundo Jung, o princípio espiritual e
dinâmico que se confunde com a prima materia e com a «alma do mundo»[xxii]:


A escuridão e a profundidade do mar significam o estádio inconsciente
de um conteúdo invisivelmente projectado. Na medida em que este
conteúdo faz parte da personalidade, e através da projecção só
aparentemente se desprendeu do seu contexto, verifica-se sempre uma
atracção, que em geral se revela sob a forma de fascínio. É isto que a
alegoria alquímica exprime pelo grito de socorro do rei, desde a
profundidade da situação inconsciente e dividida. A consciência deveria
obedecer a este apelo.


Salvar o rei não seria então apenas sabedoria, mas salvação. No entanto
implicaria também a necessidade da descida ao mundo sombrio do
inconsciente, a aventura da travessia nocturna do mar, cujo objectivo seria
a reconstituição da vida, a ressurreição e a vitória final sobre a morte.
Esta travessia do mar, isto é, do inconsciente, é a proposta do processo
alquímico, em que uma prima materia, base de toda a Obra, irá sendo
depurada até à perfeição ou síntese final.
A prima materia aparece nos textos alquímicos sob designações várias,
uma das quais é a de Aquaster (Iliaster é outro dos termos usados, também
por vezes conotado com o elemento aquático – o «húmido radical», a «água»,
o «espírito da água», etc. No entanto, como assinala Walter Pagel, Iliaster
tende a surgir como a prima materia anterior à Criação, idêntica ao Fiat
divino[xxiii]).
Aquaster, embora seja simultaneamente um princípio psíquico, porque nas
concepções alquímicas a matéria é sempre também espírito e o espírito
matéria, tem contudo um carácter mais marcadamente «material». Segundo
Jung, o Aquaster é de todos os conceitos paracélsicos o que mais se
aproxima do conceito moderno de inconsciente[xxiv]. A este âmbito do
Aquaster pertence Melusina, que é uma ninfa (Paracelso sublinha a sua
«natureza ninfídica»), «uma fada das águas, com cauda de peixe ou de
serpente»[xxv].
Enquanto símbolo da prima materia, Melusina representa a «alma do
mundo», que terá de ser libertada: neste sentido, Jung refere Melusina como
representando Mercúrio e a serpens mercurialis[xxvi] (a «matéria
transformável», a alma do mundo), e apresenta uma ilustração com uma figura
de sereia como símbolo da anima Mercurii[xxvii]; noutra representação
iconográfica, o autor apresenta o Artifex (ou alquimista) como pescador de
Melusina[xxviii], ou seja, aquele que a retira das águas. Mas retirar
Melusina das águas significa trazer até à luz da consciência um conteúdo
inconsciente. E, por outro lado, descer à profundidade das águas para
salvar Melusina (a «alma do mundo», o «filho do rei») significa um risco de
morte, porque a consciência corre o perigo de se «dissolver» no
inconsciente, de soçobrar no «incesto» que a união com Melusina representa
(daí a conotação maléfica que por vezes é atribuída a Melusina: no Livro
das Ninfas, ela realizou um pacto com Belzebu).
No motivo da dualidade espírito-matéria, a conotação maléfica da
matéria tem raízes antiquíssimas. Como Jung observa (mas os exemplos
poderiam multiplicar-se), para os neopitagóricos a matéria, ligada ao mal,
é de natureza feminina, uma anima mundi, a physis feminina que anseia pelo
abraço com o Uno, o Bem, a Perfeição[xxix]. Para os gnósticos, o princípio
masculino, espiritual, da luz e do logos, sofre uma «queda» («morte») na
fusão com a physis (o que representa simbolicamente o incesto)[xxx].
A gnose justiniana, por seu lado, representa a matéria como Edem,
virgem na parte superior do corpo e serpente na inferior, e concebe-a como
imagem da «alma divina, presa nos elementos», que é preciso salvar. É esta
mesma figura, continua Jung, que «nos escritos de Paracelso surge como
Melusina»[xxxi].




*


É evidente que quando na obra do alquimista Paracelso transparecem
alusões à obra alquímica em termos de libertação de Melusina de uma prima
materia inicial, (o que será apenas uma das muitas formas simbólicas por
que é referido o processo espagírico), o autor não tem (nem naturalmente
poderia ter no século xvi), a noção de que se trata da projecção de um
conteúdo psíquico.
Como Jung observa:


A verdadeira natureza da matéria era, para o alquimista, desconhecida.
Apenas a conhecia por alusões. Ao tentar investigá-la, projectava o
inconsciente na escuridão da matéria, para iluminar esta última. Para
esclarecer o mistério da matéria, projectava o seu background anímico
desconhecido [...]. O que, bem entendido, não era um método
intencional, mas um acontecer involuntário.
A projecção, em sentido estrito, nunca é feita – acontece, é
encontrada. Na escuridão de algo exterior encontro, sem o reconhecer
como tal, o meu próprio conteúdo interior ou anímico.[xxxii]


É curioso verificar todavia como algumas das referências a Melusina
noutras obras de Paracelso sugerem um certo grau de interiorização do
motivo. Assim por exemplo na Philosophia ad Ateniensis, Paracelso refere
que «as Melusinas vivem no sangue humano»[xxxiii] – corresponderiam,
portanto, a uma realidade interior. Num comentário do século xvii, Dorn,
discípulo de Paracelso, escreverá que as Melusinas são «uma visão que
aparece na mente» (visio in mente apparens)[xxxiv]. A situação subliminal
(inconsciente) de Melusina é também sugerida no Liber Azoth de Paracelso,
segundo o qual as Melusinas não têm sexo e vivem numa espécie de paraíso
subaquático[xxxv].
As ninfas e outros seres elementares são, segundo a Erklärung der
ganzen Astronomie, igualmente de Paracelso, estranhos fantasmas (seltsame
phantasmata) cuja origem é desconhecida, mas não descendem de Adão[xxxvi]
(embora se tenha naturalmente de ressalvar que o termo «fantasma» não
tinha, no contexto paracélsico, o mesmo sentido psicológico que hoje lhe
atribuímos).
Note-se através destes exemplos como a hesitação terminológica e a
pluralidade de aproximações ao motivo são significativos da dificuldade de
definição desses seres que durante milénios serão concebidos como fazendo
parte da natureza exterior, antes de a moderna psicologia os situar
finalmente no inconsciente humano.




II
Perspectivas para uma análise do texto




O extraordinário êxito do Märchen de Fouqué não encontra a meu ver
justificação suficiente na sua qualidade literária. Richard Benz, talvez o
crítico que mais severamente o julga, em Märchendichtung der Romantik,
considera que o livro foi enormemente sobrevalorizado, que o estilo revela
incapacidade criativa e a linguagem não possui força nem qualidade
poética[xxxvii]. Mesmo que não se subscrevam inteiramente as objecções de
Benz, é inegável que Fouqué é um autor romântico menor (bastará ver como a
sua adjectivação é estereotipada e como a convenção e o sentimentalismo se
insinuam no texto). O que não impede Ondina de continuar a fascinar o
leitor, para lá de todas as suas insuficiências formais.
O fascínio (esta é seguramente a palavra exacta) parece-me derivar do
facto de o texto constituir a reactualização de um mito, através de
determinada constelação de acontecimentos e personagens. Um mito exprime
uma realidade psíquica; assim, o que Ondina, em último caso, nos oferece é
uma representação da nossa própria psique, e é isso o que tão profundamente
nos atrai.
Nas palavras de Emma Jung, em Anima et Animus:


Como mostraram investigações no domínio da psicologia profunda, a
psique, que tem a faculdade de criar mitos espontaneamente, emite
imagens e figuras que não devem ser apenas consideradas como reflexos
ou transcrições de manifestações exteriores, mas também como expressão
de realidades psíquicas internas; podemos por isso pensar que são uma
espécie de representação da própria psique.[xxxviii]


A figura de Ondina constitui assim uma representação mítica da anima,
que a autora passará a analisar, em termos junguianos:


Entre os numerosos seres míticos gigantes, anões, elfos, etc., só
considerei os que podem ser encarados como personificação da anima,
porque são do sexo feminino e em relação com um homem. A anima
representa como sabemos a componente feminina do homem, mas também a
imagem que ele traz consigo da mulher em geral, ou, por outras
palavras, representa o arquétipo feminino.[xxxix]


No entanto, a referência que a autora faz à Ondina de Fouqué, e que é
curiosamente a única que a crítica psicanalítica faz a este texto, é
extremamente superficial, mantém-se ao nível da mera paráfrase do seu
conteúdo manifesto. Muitos outros aspectos seriam de considerar, como
adiante explicitarei.
Uma vez que são os aspectos míticos do Märchen que me parecem
significativos, não me irei ocupar da relação entre os motivos e a
biografia do autor (como seria indispensável numa análise freudiana, para a
qual haveria aliás vasto e interessante material a utilizar, como a
autobiografia, cartas e, inclusivamente, referências intrínsecas, como a
alusão do narrador ao amor por duas mulheres, no início do capítulo xiii).
Também não me ocuparei dos aspectos «datados» do livro, por exemplo o que
na relação homem-mulher e no papel de cada um corresponde à mentalidade do
início do século xix, ou o que na ingenuidade das concepções religiosas
deriva da visão extremamente conservadora do autor. Centrar-me-ei no texto
enquanto expressão de um mito, isto é, de um conteúdo do inconsciente
colectivo, em que naturalmente o inconsciente individual se integra, de
modo que o Märchen possa por sua vez entrar numa relação especular com o
inconsciente do leitor. Limitar-me-ei a perspectivas de análise, onde não
caberá descer a todas as explicitações e pormenores, embora considere que
os aspectos essenciais ficarão clarificados.


O Märchen de Fouqué confronta-nos com uma história de amor. Mas se
aceitarmos que Ondina é uma representação mítica da anima, do arquétipo
feminino na psique masculina, o texto deverá ler-se do ponto de vista da
figura masculina: Huldbrand será então, se não a figura central, pelo menos
a figura condutora, porque é inicialmente do seu percurso que se trata e em
função dele que as outras personagens se organizam.
Outro aspecto que me parece importante sublinhar, e que não é
mencionado por Emma Jung, é o facto de a história de amor não se passar
entre Huldbrand e Ondina, mas entre Huldbrand e duas mulheres, Bertalda e
Ondina. Ambas representam, a meu ver, duas faces do mesmo arquétipo.
A relação inicial é entre Huldbrand e Bertalda e reactualiza uma
situação familiar ao leitor, desde as histórias de fadas da tradição oral e
dos textos medievais (não é por acaso que o autor situa o texto na Idade
Média – «Era uma vez, já lá vão muitos séculos» – embora a Idade Média não
seja aqui mais do que cenário): o cavaleiro enamora-se da bela dama, por
quem aceita enfrentar monstros e perigos.
Situação típica que se revela também arquetípica, a travessia da
floresta por Huldbrand reactualiza o mitologema do herói em combate com os
«monstros», na conquista de novo estatuto e dignidade: deverá ser o
vencedor, que terá direito a desposar a dama (a «luva» – simbolicamente
«mão» – será, como pars pro totto, promessa do seu corpo) e a inaugurar um
novo tempo, presente e futuro, num novo espaço, o seu castelo de
Ringstetten.
Huldbrand deverá assim sair do seu castelo para a ele voltar como
vencedor, trazendo consigo a dama desposada. Trajecto que corresponde a uma
dupla iniciação, social e sexual, percurso exterior a que corresponde uma
maturação interior, a vitória sobre os «monstros» representa uma vitória
sobre o inconsciente e a aquisição de um grau superior de consciência.
A forma como Huldbrand desvaloriza a relação inicial com Bertalda,
apresentando como «brincadeira» o pedido da luva e a aceitação das provas
(provações), tem de ser interpretada em relação ao seu contexto: no momento
em que fala com exaltação da «mulher belíssima, magnificamente ornamentada,
que de pé numa das galerias assistia ao espectáculo» e que foi o seu par no
baile, é mordido na mão por Ondina, após o que se tornam menos elogiosos os
termos em que refere Bertalda. A mudança deveu-se portanto ao poder mágico
de Ondina, que se manifestará ao longo do texto de vários modos.
A desvalorização da relação com Bertalda é aliás contradita pelo
decorrer da acção: Huldbrand, mesmo desposando Ondina, levará consigo
Bertalda (será de resto a esta que primeiro dá o braço ao subir para a
carruagem – cap. xii); o amor interrompido pela aparição de Ondina reacende-
se no castelo («[...] como Bertalda se foi impondo ao jovem com um amor
cada vez mais ardente» – cap. xiii); e finalmente Huldbrand pretenderá
desposar Bertalda e realizar a sua intenção inicial.
Na história de amor entre Huldbrand e Bertalda, que em certo sentido
constitui o fio condutor do texto, é assim Ondina que funciona como o
interdito. Ou como uma etapa necessária na relação entre Huldbrand e
Bertalda, porque o cavaleiro só poderá desposar Bertalda depois de
atravessar a floresta, e nessa travessia deverá encontrar Ondina e através
dela conhecer a história secreta de Bertalda.
A história de Bertalda está portanto profundamente ligada à de Ondina.
«Fomos trocadas em crianças», dir-lhe-á esta última, «já na época os nossos
destinos se entrelaçaram. Doravante vamos entrelaçá-los tão intimamente que
não haja força humana capaz de os separar» (cap. xii). Ambas surgem como
«irmãs» – os pais adoptivos de Ondina são os pais verdadeiros de Bertalda,
e a água funciona como elemento de união entre as duas: o lago onde
Bertalda cai na infância e onde supostamente se afoga (mas na verdade a
conduz para um destino feliz, no palácio dos duques) é o mesmo que traz
Ondina, que irá substituir Bertalda no lugar e no afecto dos pescadores. O
lugar da desaparição de uma será o lugar da aparição da outra, ambas terão
aproximadamente a mesma idade e semelhanças que aos olhos dos pescadores as
identificam; ambas se sentirão unidas numa relação de cumplicidade e será
novamente a água, na figura de Kühleborn, a revelar a Ondina a identidade
de Bertalda.
Uma e outra estão portanto ligadas à água (ao lago) à floresta e à
noite, que representam o mundo elementar do feminino. Ambas desafiam o
cavaleiro a enfrentar esse mundo, que é o rosto profundo de cada uma delas.
Assim, Bertalda promete dar a luva a Huldbrand se este lhe trouxer notícias
da floresta sinistra (cap. iv); e Ondina pedirá que ele lhe conte o que viu
na floresta (caps. i e iii). Uma e outra se embrenham na água na floresta e
na noite, forçando o cavaleiro a segui-las e a salvá-las: Ondina várias
vezes, nos primeiros capítulos, Bertalda na fuga para o Vale Escuro (caps.
xiii e xiv).
Cada uma a seu modo, ambas lhe exigem que se aventure, por seu amor, no
mundo elementar. No princípio e no fim estarão as imposições de Bertalda:
Huldbrand deverá começar por vencer a floresta (a noite e a água), e no fim
novamente a água, nas nascentes do Danúbio. Mas, porque a primeira prova
não foi vencida, Huldbrand não vencerá nenhuma outra que Bertalda lhe
imponha. E será em vão que ela se arrependerá de o ter atraído para a
floresta. Ela será finalmente tão responsável pela sua morte como Ondina.
A relação de identidade entre as duas é também por outro lado uma
relação de contraste. A diferença entre uma e outra é a diferença que
existe entre a mulher e a ninfa. Em relação a Bertalda, Ondina funciona
como a sua face de sombra.
Porque Ondina é uma ninfa que vem do fundo das águas, de palácios com
«abóbadas de cristal», de jardins onde «brilham grandes árvores de coral
com frutos azuis e vermelhos», onde vivia sempre alegre e desconhecendo o
sofrimento (cap. viii). Deste maravilhoso reino subaquático, que é o lugar
paradisíaco da infância, é enviada por seu pai, «um poderoso príncipe das
águas no Mediterrâneo», em busca de alma, através da relação sexual e do
amor de um homem. «Mas tudo quer elevar-se acima de onde está. E foi assim
que meu pai [...] quis que a sua única filha tivesse uma alma e passasse
depois pelos sofrimentos sem conta dos seres dela dotados» (cap. viii).
Este desejo paterno de «elevação» da sua filha «única» (implicitamente:
muito amada) a uma condição mais alta de existência exprime o motivo atrás
apontado da elevação ou espiritualização da natureza através da mediação
humana. O pai, que não voltará a ser referido no texto mas que surge neste
momento crucial de (possível) viragem, representa o impulso de individuação
de Ondina, a força condutora no seu percurso, que será – ou seria – o da
passagem de ninfa a mulher.
Mas Ondina é também filha de sua mãe, a água. E a água é no texto uma
presença ambivalente: por vezes parece funcionar como adjuvante (é a água
que na infância leva Ondina até aos pescadores, introduzindo-a pela
primeira vez no mundo dos humanos, é a água que transforma a língua de
terra em ilha, facultando o encontro com o cavaleiro e prolongando a estada
deste até ao casamento com Ondina, etc.), mas em último caso a água
funciona como opositor – na figura de Kühleborn, a água acompanha-os na
viagem, como uma presença indesejada, intromete-se no castelo como um
perturbador e um protector terrível (cap. xiii). De uma forma ou de outra,
a água persegue Ondina, que em vão tenta expulsar Kühleborn e os seres
elementares que o acompanham e em vão lhes afiança: «Já não tenho nada que
ver convosco» (cap. ix). Ondina não poderá defender-se (cenas
particularmente expressivas serão o tapar do poço para impedir que
Kühleborn entre no castelo, ou a luta extenuante com as assustadoras
cabeças que assomam à tona de água na viagem no Danúbio – caps. xiii e xv).
A água, envolvente e ameaçadora, torna-se uma omnipresença de onde parece
não haver saída, e no fim será a água a levar ou a recuperar Ondina.
Nesta perspectiva, faz sentido salientar que a figura – masculina, mas
sempre em metamorfose – de Kühleborn (etimologicamente: nascente fria)
actua como adjuvante da mãe fálica, pois se encontra a cada momento ao seu
serviço, ou é uma representação dela mesma. A mãe fálica está do lado da
frigidez, da esterilidade e da morte e procura por todos os modos
reconduzir Ondina ao seu mundo subaquático, que não é já o lugar
paradisíaco da infância, mas o lugar sombrio da desaparição da ninfa, o
lugar da regressão que o seu regresso finalmente significa.
O retrato físico de Ondina põe em evidência a sua situação de «filha»:
as marcas sexuais são esbatidas, ela é apresentada como «virgem», e a
«virgem» não é (ainda) mulher, é apenas ambiguamente criança-mulher, dotada
de uma certa androginia. A sua beleza é caracterizada em termos de
graciosidade e leveza e nunca em termos sexualizados: Ondina não tem os
longos cabelos das sereias nem os seios grandes de Melusina[xl], não possui
nenhum atributo maternal (nunca será mãe, no que se afasta de Melusina),
mantém-se infantil e sem maturação, de certo modo parada no início do seu
percurso, o que se pode igualmente atribuir à influência da «mãe fálica»,
que contraria o crescimento e a prende na infância.
Enquanto filha das águas, Ondina mantém-se solidária com a sua origem.
Também ela é uma figura de Kore em relação a uma Perséfone subaquática,
representada por várias figuras que exprimem a sua capacidade de
metamorfose (a análise de Kore, jeune filie divine, por Kerényi[xli] é
aplicável, nos aspectos essenciais, à figura de Ondina).
A adopção pelos pescadores constitui a sua primeira entrada no mundo
humano e é simbolicamente um outro «nascimento», embora se trate de um
«nascimento» incompleto e de uma participação imperfeita no universo dos
homens. Porque Ondina se mantém não humana, ou não inteiramente. Apesar da
sua aparência, permanece filha das águas, como é sublinhado pela sua recusa
em mudar de nome e pela sua incapacidade de aceitar as coordenadas do
universo humano. Os pescadores tratá-la-ão com alguma censura e estranheza,
porque ela se comporta como um ser «caído da lua» (cap. ii), como se fosse
«criada por pagãos» (cap. v). De facto, enquanto ser sem alma, Ondina
mantém em parte na sua vida terrena a sua condição elementar: a sua
existência sempre alegre e sem nunca se deixar «abater pela tristeza, como
os rouxinóis [e] os peixes dourados», é a do mundo subaquático e a do
universo paradisíaco da infância, assente num sentimento de indiferenciação
entre o eu e o mundo, de fusão com a natureza de que é parte (e portanto
plenamente participante), é a ausência de individuação que se traduz na
sensação de plenitude de uma existência total. O mundo de Ondina é o da
infinita repetição, do prazer e do jogo, alheio ao desgaste do tempo e
indiferente à morte, que não significa mais do que a «dissolução» não
dolorosa no seu elemento: «Nós e os nossos semelhantes dos outros elementos
extinguimo-nos em pó e em fumo, espírito e corpo, de tal sorte que não
resta nenhum vestígio de nós, [...] ficamos onde ficam a areia e a
centelha, o vento e a onda» (cap. viii).
Sem alma, dirá Ondina noutro passo referindo-se a Kühleborn, mas que
igualmente se poderia aplicar a si própria, não se é mais do que «um
espelho elementar do mundo exterior, incapaz de reflectir o interior» (cap.
xiii). Deste modo, Ondina vive egoisticamente centrada em si própria e
dessolidariza-se de tudo o que directamente não a toca. Daí os seus
caprichos, o seu humor instável, a sua atitude narcísica, que tende a
excluir a alteridade, porque o seu mundo, em que «interior» e «exterior» se
confundem, lhe garante a totalidade sem brecha que é o mundo animal e o
mundo elementar das águas. O desejo e a realização do desejo são para ela
magicamente contíguos – Ondina tem poder sobre as águas, que obedecem ao
seu mando (porque não há distância entre o eu e o mundo), ambos são
solidários e inseparáveis e falam a mesma linguagem, que aos humanos parece
uma língua estrangeira (cap. x).
As águas são, por outro lado, o mais pertinaz dos espelhos, cuja
superfície, uma vez ferida, logo de novo se solda e se reconstitui numa
totalidade sem brecha. Enquanto ser elementar aquático, Ondina é este
espelho, ao mesmo tempo da perfeição e do vazio: porque o espelho não é em
si mesmo nenhuma imagem, mas apenas a infinita possibilidade da imagem.
Na passagem de ninfa a mulher, Ondina deverá literalmente sair do
espelho (das águas) e adquirir pela primeira vez uma imagem própria. Deverá
portanto romper a superfície: terá de ascender a uma situação acima e fora
da água, que se traduzirá num ganho – a passagem da virtualidade à
existência, do inconsciente à consciência –, mas também numa «perda», numa
ferida narcísica (neste sentido, em Böhme a perda do paraíso e da inocência
é olhar-se ao espelho e ver a sua própria imagem[xlii]).
O acesso à alma – e a perda da virgindade – significa assim o corte da
relação com a mãe, a «morte da mãe» como etapa necessária para a entrada no
mundo humano, que já não é absoluto mas relativo, e em que a dor e o amor
se misturam.
Ondina deseja e receia esse momento: «Uma alma será por certo algo
muito desejado, mas também terrível [...] não seria melhor nunca a termos?»
(cap. vii). «Deve ser um fardo pesado, o da alma [...], muito pesado! Pois
se só a sua proximidade já me envolve numa sombra de angústia e de aflição.
Pobre de mim, eu que até agora vivia tão alegre e despreocupada!» (cap.
vii).
O seu medo e as suas lágrimas estão em estreita ligação com o facto de
ela não se dessolidarizar nunca por completo do universo da água (também
este novo «nascimento» no casamento com Huldbrand foi portanto incompleto)
e de permanecer, até ao último instante, «ondina».
A relação entre Ondina e Bertalda adquire nesta perspectiva um novo
sentido: enquanto filha das águas, excessivamente dominada pelo elemento
feminino, Ondina aproxima-se mais facilmente de outro ser do mesmo sexo,
com quem possa manter uma relação narcísica. Enquanto a «outra face» de
Ondina, Bertalda estar-lhe-á muito mais próxima do que Huldbrand, mas
funciona por outro lado como interditor na relação entre este e Ondina,
reactualizando a figura maternal da água que constantemente se intromete
entre ambos, impedindo a relação amorosa. Nesta perspectiva, poder-se-á
considerar que Ondina se mantém prisioneira de uma certa homossexualidade
adolescente.
Mas Bertalda, sua «irmã», que por intervenção da água ascendeu a uma
alta posição social como filha adoptiva dos duques, representa também a
face socializada de Ondina, a figura de «mulher» (e não de «ninfa») que
Ondina deverá integrar para se tornar mulher de Huldbrand e senhora do
castelo de Ringstetten. Manter junto de si Bertalda é para Ondina, criatura
estranha ao universo social, ter um modelo a seguir no novo mundo em que
entrou e em que, como se verifica na festa de Bertalda (cap. xi), se sente
inteiramente desorientada e perdida.
Que o mundo social seja em tudo inferior ao natural, que a sua suposta
ética seja hipocrisia e convenção, que os sentimentos se corrompam e o bem
e o mal se misturem, é evidentemente também uma perspectiva implícita. É em
termos de perda, verifica-se, que se processa a ascensão social de Ondina:
a famosa alma dos humanos surge como algo prostituído e adulterado e é a
«humana» Bertalda que se revela «desalmada». A estranheza de Ondina («Terás
realmente alma, Bertalda?») exprime não apenas a visão da personagem, mas a
visão irónica e desencantada subjacente a todo o Märchen, como uma das suas
visões possíveis.
Por outro lado, se Bertalda é a face socializada de Ondina, Ondina é a
face elementar de Bertalda, que ela deverá recuperar ou integrar, no seu
percurso de individuação. Porque Bertalda, no momento em que é olhada e
desejada por Huldbrand, é ainda – e só – a máscara social, a personna
caracterizada por atributos exteriores, como sejam a posição na sociedade,
o vestuário e as jóias, a «mulher belíssima, magnificamente ornamentada
[...] numa das galerias». Mas, por detrás da máscara, ela terá de ser
também a mulher, o ser desconhecido, que não reside no esplendor da corte
mas nas sombras do mundo elementar. A procura dessa mulher é o sentido
profundo da «provação» que ela impõe a Huldbrand de atravessar a floresta.
No entanto a busca da face elementar não poderá ser realizada apenas
por Huldbrand. Terá de ser também Bertalda a fazer o seu próprio percurso
(da mesma forma que Ondina e Huldbrand terão de ser sujeitos e agentes do
seu próprio processo de individuação). Bertalda deverá assim fazer o
percurso inverso de Ondina, despir-se dos atributos sociais meramente
exteriores e de certa forma falsos, uma vez que só por acidente ascendeu à
condição aparente de filha dos duques, e recuperar a sua verdadeira
identidade de filha dos pescadores, voltando à sua origem, à cabana humilde
e ao lago onde se perdeu na infância. Esse lugar de perda será então lugar
de reencontro: Bertalda, que saltou etapas inadvertidamente, terá de voltar
atrás e de espelhar no lago o seu rosto dessocializado e despido de falsos
valores e falsos sentimentos – que é afinal o rosto elementar de Ondina.
No entanto, Bertalda recusa fazer esse percurso, que seria de
«expiação» por ter assumido a falsa identidade de filha dos duques e por
rejeitar a sua verdadeira identidade de filha dos pescadores.
Contrariamente a Ondina, que obedece à vontade de seu pai, um poderoso
príncipe do Mediterrâneo, Bertalda não obedece à vontade de seu pai, o
pescador, nega-se a atravessar a floresta sozinha e imobiliza-se na
situação exterior de máscara, preocupada com a posição social,
frequentemente descrita em termos de «jóias» e «vestidos». Ao contrário de
Huldbrand e de Ondina, será incapaz de evolução e revelar-se-á a personagem
mais pobre do texto, embora seja também a menos ameaçada e finalmente a
única que sobrevive, porque a individuação, tentada pelas outras
personagens, representava obviamente um risco. Fugindo à provação da
floresta (recusando enfrentar o inconsciente e integrar a sua face de
sombra), Bertalda irá aproximar-se ardilosamente do cavaleiro e partirá com
ele e com Ondina para o castelo de Ringstetten, de que por todos os modos
se tentará tornar senhora. A sua posição, ao nível da máscara social,
ficará assim aparentemente assegurada. Resta-lhe tentar ocupar, no leito do
cavaleiro, o lugar de Ondina.
Porém, na relação entre Huldbrand e Bertalda, que mais uma vez se
estabelece, surge de novo como interditor Ondina, que se intromete entre
ambos, porque ela é uma etapa inevitável na relação entre os dois. Bertalda
tentará em vão afastar ou suplantar Ondina e finalmente, em desespero,
imitá-la-á, forçando Huldbrand a segui-la até ao Vale Escuro. Mas no mundo
elementar, com o qual, ao contrário de Ondina, não tem relação alguma,
Bertalda estará perdida e só poderá encontrar a morte. Huldbrand será
também uma vez mais incapaz de vencer o elementar, a água em que cavalo e
carro se afundam, e só graças à intervenção de Ondina ambos se salvarão no
último instante.
O medo de Ondina de entrar no mundo humano – o medo da sexualidade
adulta, porque o acesso à «alma» é também neste sentido o acesso ao corpo,
o reconhecimento de que o processo de individuação passa pelo encontro com
o sexo oposto, de que a passagem da «ninfa» a «mulher» pressupõe o corte
com o universo maternal do início – é, como referi, uma das perspectivas do
texto. O que não pode todavia ocultar a perspectiva oposta: o desejo da
ninfa de ascender à condição de mulher e conhecer o amor, mesmo pagando por
ele um alto preço.
Assim, Ondina, filha única de seu pai, aceita alegremente a vontade
deste de que ascenda a uma posição superior na escala dos seres através do
amor de um homem. Por isso recebe festivamente Huldbrand, que de imediato
se torna objecto do seu desejo (ou em quem imediatamente se cristaliza o
seu desejo sem objecto), aproxima-se dele sem ambiguidade, quer ouvir a sua
história e conhecê-lo, torna claro que o acha belo, que a sua presença é
fonte de prazer e, como um animal ciumento, morde a sua mão quando ele fala
com demasiada exaltação de Bertalda. A sua atitude é «natural», alheia às
convenções e contrariando a suposta passividade feminina no jogo social de
cortejar. Os pescadores achá-la-ão despudorada e tentarão reprimi-la, sem
que ela obedeça.
De facto, Ondina está pronta a amar o cavaleiro (desde o início, ela
esperava este momento, trazendo do mundo subaquático duas alianças na
bainha do vestido). Tudo fará para ganhar o seu amor e entrar no seu mundo.
O problema para ela não é renunciar ao universo das águas, mas a
possibilidade de não ser amada por Huldbrand enquanto ser elementar. Daí os
rodeios para contar a sua história, logo interrompida e desdita quando
iniciada; só depois do casamento ela ousará falar da sua origem, mas fá-lo-
á hesitando, com medo de ser repudiada. Repare-se portanto que é por muito
desejar o cavaleiro que Ondina utiliza o ardil de só se revelar depois do
casamento, quando a separação seria mais difícil.
Neste sentido, há uma diferença essencial entre Melusina, na versão de
Jean d'Arras, e Ondina: Melusina esconde a sua natureza elementar e a sua
origem aquática, o que significa que pretende manter o marido numa situação
de filho-amante. Na história de Melusina será esta a detentora do poder,
erigirá castelos, distribuirá riqueza e fundará uma linhagem, mas o preço
da felicidade e da abundância é a manutenção do seu «segredo». Perante a
sua figura matriarcal, o homem não é assim um ser igual e autónomo, mas um
instrumento do seu desejo e da sua vontade. Ondina, pelo contrário, revela
a Huldbrand a sua origem aquática. Enquanto Melusina oculta, Ondina é
transparente. Melusina resiste a tornar-se mulher e a perder os seus
atributos de fada: uma vez descoberta, foge voando pelos ares para
preservar o seu segredo.
Mas no Märchen de Fouqué, diversamente, o interdito não é não ser
revelada ou descoberta, mas não ser amada: se o homem não a amar, perdê-la-
á; então ela será de novo ninfa e voltará a submergir-se nas águas. Deste
modo o motivo central não é apenas o receio da jovem virgem perante o mundo
da sexualidade adulta, mas também, e a meu ver fundamentalmente, atendendo
a que é sobretudo da perspectiva de Huldbrand que se trata, o receio do
cavaleiro virgem perante o universo elementar e desconhecido da sexualidade
feminina (e da sua própria) que pela primeira vez se lhe depara. A cegueira
– edipiana – de Huldbrand consiste em não conseguir ver que em qualquer
história de amor heterossexual o igual não se casa com o igual e que sempre
de algum modo «um homem e uma sereia contraem uma união insólita» (cap.
xv).
Assim, verifica-se, eram plenamente fundados os receios de Ondina de
não poder ser amada enquanto ser elementar. Huldbrand desposa-a ignorando
quem ela é (mas basta a suspeita da sua identidade para que a noite de
núpcias seja para ele – não para ela – povoada de terrores e de pesadelos
em que «belas mulheres» de repente aparecem com «cabeça de dragão» – cap.
vii). «Eu não sabia que ela era uma sereia», dirá no fim. «É a minha
desdita [...], mas a culpa não é minha» (cap. xv).
Huldbrand nunca irá portanto assumir o seu amor pela ninfa. Caiu num
logro, verifica; só por engano se ligou ao seu universo, de que finalmente
se dessolidariza repudiando-a com agressividade, devolvendo-a ao elementar
e extremando a fronteira entre o seu mundo e o dela: «Continuas então a
relacionar-te com [os seres aquáticos]? Volta para junto deles e deixa-nos
em paz, a nós, humanos» (cap. xv).
A «culpa» (a ousadia) de amar um ser elementar parece-lhe demasiado
grande para que possa assumi-la e para que não tente desculpabilizar-se
invocando (como Édipo) a sua ignorância do acto cometido: «É a minha
desdita [...], mas a culpa não é minha.» De facto, Huldbrand só
involuntariamente, e não por escolha, desposou a ninfa. Não foi herói mas
«vítima».
Assim o cavaleiro parte no início a enfrentar a floresta, por amor de
Bertalda. Mas na floresta encontra Ondina e «esquece» Bertalda, por amor de
Ondina. O que significa que em lugar da relação homem-mulher prefere uma
relação mais narcísica com uma mulher-criança, caracterizada por uma certa
androginia. Ondina funciona como traição a Bertalda, como fuga à tarefa
imposta e aceite de conquistar o amor de Bertalda através de vitórias
sucessivas.
Huldbrand não vê portanto inicialmente que Ondina representa, também
ela, um perigo e uma armadilha, que a língua de terra transformada em ilha
pela cheia do lago se irá converter num refúgio isolado do mundo que será o
lugar paradisíaco do amor, mas também o regresso ao seio materno, o lugar
do incesto que a união com Ondina significa.
Quando esta lhe revela o seu segredo, Huldbrand compreende que caiu num
logro, que a mulher-criança quase assexuada participa afinal, enquanto
filha das águas, da natureza de sua «mãe», com quem se identifica, e que
nela estão, embora camuflados, todos os atributos aterradores do arquétipo.
Ser ondina significa portanto que o seu rosto profundo é um rosto
maternal, que para o filho-amante, impreparado e imaturo, incapaz de ousar
voluntariamente o incesto, se converte na face horrível da morte: «Não
permitas, na hora da minha morte, que o meu espírito seja atormentado por
uma visão aterradora. Se por baixo do véu que trazes o teu rosto for
horrível, não o descubras» (cap. xviii).
O principal motivo da ambiguidade do texto, e porventura uma das fontes
da sua sedução, reside no modo como a figura de Ondina é dulcificada e como
nela os atributos de femme fatale se misturam com os de femme fragile. O
que não impede que o motivo do incesto seja decisivo no texto – incesto
passivo, na terminologia usada por Erich Neumann no seu estudo sobre as
origens da consciência, o incesto de Édipo que leva à culpabilidade e à
morte, e não o incesto activo (isto é, assumido), que leva ao amor[xliii].
Assim Ondina é, ela mesma, a grande «provação» que Huldbrand deverá
enfrentar (e para a qual Bertalda o envia). Depois de vencer os seres
elementares da floresta, os demónios e os gnomos, ele deverá provar o seu
estatuto de adulto, capaz de dissociar dentro de si a anima da imagem da
Grande Mãe devoradora[xliv]. Deverá literalmente libertar Ondina, vencer o
«monstro-água» que a mantém cativa, mergulhar nas águas (do seu próprio
inconsciente) e delas emergir de novo, trazendo Ondina.
Desse modo, o mito poder-se-ia aproximar da situação arquetípica de
textos atrás citados. Como a Melusina alquímica, a alma do mundo referida
por Jung, também Ondina chamaria, das profundezas do mar (do inconsciente
de Huldbrand): «Quem me salvará das águas e trará até à margem enxuta? A
quem me salvar farei feliz, com riquezas perpétuas.»
A riqueza desejada, mas difícil de alcançar, seria ao mesmo tempo ela
mesma e o grau superior de consciência que Huldbrand atingiria ao assumir o
seu amor por ela. Estaríamos assim perante o mito da transformação do herói
em todas as etapas assinaladas por Neumann: a libertação da cativa (Ondina)
como objectivo da luta com o monstro (água); a transformação do feminino,
que perderia a conotação negativa, através da autotransformação do
masculino; a libertação da anima do arquétipo maternal e a superação do
medo ancestral do feminino; a conquista da amada e a descoberta do mundo
anímico; a riqueza difícil de alcançar como realidade anímica criativa; o
«nascimento» do herói como portador ou criador de cultura; o hieros gamos
(união sexual sagrada) como imagem da síntese de consciência e
inconsciente[xlv].
Huldbrand teria passado de herói «lunar» a herói «solar» – o mundo da
floresta e de Ondina é um mundo húmido e lunar (veja-se por exemplo como a
noite de núpcias se desenrola sob «a luz pálida e fria da lua»), enquanto o
mundo exterior à floresta, onde se inaugura um novo espaço, é um mundo
solar: «Mais uns passos, e ei-los fora da floresta. A velha cidade estendia-
se esplendorosa diante deles», e o sol poente dourava as suas torres (cap.
ix).
Assim, se Huldbrand tivesse podido amar Ondina enquanto ondina, teriam
saído da «profundidade das águas» e alcançado a «margem enxuta» onde
começaria a verdadeira vida. Huldbrand possuiria a amada e seria senhor do
seu castelo (isto é, da sua alma); e Ondina teria deixado definitivamente o
mundo das águas e passado de ninfa a mulher. A sua transformação seria uma
autotransformação (na medida em que aceitou amar o cavaleiro), mas também
consequência da autotransformação de Huldbrand: é no inconsciente deste que
começa a transformação da ninfa, que só poderá ser amada depois de
dissociada da imagem da Grande Mãe arquetípica.
Ondina não poderá portanto deixar de ser ondina apenas pelos seus
próprios meios. É neste sentido profundo que no contexto do Märchen será o
cavaleiro a trazer-lhe a alma como parte fundamental de si mesma (mas do
mesmo modo também ela lhe dará uma parte fundamental dele mesmo – ambos
serão «dadores de alma»). Na simbologia alquímica, «Melusina», alma do
mundo prisioneira da matéria, passaria a um estádio superior de
espiritualidade através da intervenção do homem que com ela fundiria o seu
corpo e a sua alma, transformando-a numa outra «substância» (mas também aí
a recíproca seria verdadeira, para um e para outro a via de ascensão a um
grau superior de consciência seria o solve et coagula espagírico).
Porém este objectivo nunca é atingido no texto, não por «culpa» de
Ondina, que fará a parte do percurso que pode realizar por si mesma (note-
se por exemplo que é dela a iniciativa de deixar a floresta, enquanto o
cavaleiro hesita e se demora na ilha, «berço do seu amor» – cap. ix), mas
por «culpa» do cavaleiro, que sucumbe perante o terror do incesto e até ao
fim rejeitará Ondina como um ser «estranho» na sua vida.
Assim a face arquetípica de Ondina (no inconsciente de Huldbrand) é a
monstruosidade, o defeito que ele jamais poderá perdoar ou aceitar. A
violência e o medo surgirão no lugar do amor: Huldbrand desposará mas ao
mesmo tempo rejeitará Ondina, e o receio levá-lo-á a tentar subjugá-la e a
«domesticá-la» pela força: ele será o senhor e esposo de uma Ondina nunca
aceite como alteridade, como o outro, mas constrangida a moldar-se
passivamente (com a passividade da água) ao mundo e à vontade do cavaleiro,
a tornar-se «espelho» de Huldbrand, que deste modo permanece prisioneiro de
uma relação narcísica consigo próprio. Mas a doçura de Ondina converte-se
por sua vez em violência, na medida em que, enquanto femme fatale, ela
detém sobre Huldbrand todo o poder de fascinação, gerador de angústia, do
arquétipo: «Tu não podes separar-te de mim!», dir-lhe-á (cap. vii).
É portanto em desequilíbrio que as personagens se recortam: Huldbrand
cercado pela água, prisioneiro no seu próprio castelo (cap. xv), oscilando
entre duas mulheres, sem amar nenhuma; Ondina sem lugar para existir,
porque é um ser sem definição, nem (ainda) mulher nem (já) ninfa,
desadaptada no mundo humano, porque não cortou a ligação com a água, e mais
tarde igualmente desintegrada no mundo elementar, porque levou para ele uma
alma humana; Bertalda tentando do princípio ao fim um casamento impossível.
Mesmo quando, contra tudo e todos, este finalmente se realiza (mas não
consuma), a personagem central é Ondina (cap. xviii): Huldbrand, no caminho
do leito nupcial, encontrará o «leito frio» da ninfa. Porque Bertalda – uma
vez mais – usará a água (e Ondina) como interditor entre si própria e
Huldbrand: do poço imprudentemente descoberto subirá Ondina, sairá do
espelho das águas e penetrará no quarto nupcial (cap. xix) para afogar
Huldbrand (de lágrimas) e abraçar o seu túmulo com «braços» de água.


O Romantismo viu em Ondina (e noutras histórias de amores infelizes e
«fatais») uma metáfora da condição humana: a perda da ninfa como expressão
do motivo romântico da nostalgia, do lamento pelo facto de o homem se
experimentar como um ser imperfeito, dividido entre consciência e
inconsciente, masculino e feminino, um ser problemático, nascido de uma
«discórdia» ou «ruptura» inicial, que transformou o seu mundo no universo
da dispersão e da fuga, onde está condenado à errância, desejando e sempre
de novo perdendo o objecto do seu desejo – a carne «subtil» da ninfa, que
se dissolve na água ou se perde no vento.
Especulações sem dúvida pertinentes, porque em último caso sempre
integráveis na «metafísica da Queda» que é a metafísica romântica, e na
estética do fracasso e da perda que é a estética romântica.
A nível psicológico todavia, o mito de Ondina fala-nos de uma relação
homem-mulher que fracassa por uma falha humana, fundamentalmente pelo «medo
das sereias», que desde Ulisses é um motivo recorrente: Ulisses-Don Juan,
como escreve Pierre Solié, é também um filho-amante que receia o canto das
sereias e narcisicamente busca, em todas as suas viagens, a sereia
impossível que é o seu próprio reflexo[xlvi]. Mas como relatou, no século
ii, Apuleio em Eros e Psique (que trata igualmente da relação homem-mulher
e que, a nível profundo, por paralelismo ou oposição, se poderia em vários
aspectos aproximar do mito de Ondina), o amor não está ao alcance de heróis
e heroínas imaturos e enredados nas malhas dos arquétipos, porque é o
resultado de uma longa progressão anímica, é literalmente um «trabalho de
psique».


Teolinda Gersão




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[i] De forma simplificada, podemos dizer que o Märchen é um conto com
elementos fantásticos ou sobrenaturais.
[ii] Citado por Arno Schmidt, na sua biografia de Fouqué: Fouqué und einige
seiner Zeitgenossen. Biographischer Versuch, Frankfurt, Zweitausendeins,
1975, p. 187.
[iii] Ibid.
[iv] Gisela Dischner, «Friedrich de la Motte-Fouqué: Undine» (1811), in
Paul Michael Lützler (org.), Romane und Erzähler der deutschen Romantik.
Neue Interpretazionen, Estugarda, Reclam, 1984, pp. 264-271.
[v] Kurt Goldammer, Paracelsus in der deutschen Romantik, Viena, 1980, pp.
28-39.
[vi] Laurence Le Sage, Die Einheit von Fouqués «Undine». Un unpublished
essay in German by Jean Giraudoux, Romantic Review, 42, 1951, pp. 122-134.
[vii] Poderá ver-se, a este respeito, o meu posfácio à edição portuguesa do
Livro das Ninfas, Lisboa, Apaginastantas, 1986. Nas citações aqui
apresentadas utilizarei esta edição.
[viii] Kurt Goldammer, op. cit., p. 96. Veja-se a este respeito o meu
prefácio à tradução portuguesas deste livro: O Conde de Gabalis ou Diálogos
sobre as Ciências Secretas, Lisboa, Universitária Editora, 1987, pp. 9-32.
[ix] Mircea Eliade, Tratado da História das Religiões, Lisboa, Cosmos,
1977, p. 248.
[x] Pierre Grimal, Dictionnaire de la mythologie grecque et romaine, Paris,
PUF, 1969.
[xi] Citado por C.G. Jung, in Paracelsica, Zurique e Leipzig, Rascher,
1942, p. 101.
[xii] Sobre angeologia e demonologia vejam-se as respectivas entradas na
Enciclopaedia Judaica.
[xiii] Gershom Scholem, La Kabbale et sa symbolique, Paris, Payot, 1975, p.
173. Veja-se também a entrada de Lilith na Enciclopaedia Judaica.
[xiv] Jacques Brill, Lilith ou la mère obscure, Paris, Payot, 1981, pp. 90-
96.
[xv] Jakob Grimm, Deutsche Mythologie, Göttingen, Dietrich, 1844, pp. 404-
406.
[xvi] Kurt Goldammer, loc. cit., p. 104.
[xvii] Ibid., pp. 109-111.
[xviii] Claude Tresmontant, La métaphysique du christianisme et la
naissance de la philosophie chrétienne, Paris, Éditions du Seuil, 1961.
[xix] C.G. Jung, Psychologie und Alchimie, Zurique, Rascher, 1944, p. 409.
[xx] C.G. Jung, Paracelsica, p. 103.
[xxi] Ibid.
[xxii] Ibid., p. 450.
[xxiii] Walter Pagel, Paracelsus als Naturmystiker, in Faivre e Zimmermann
(orgs.), Epochen der Naturmystik, Berlim, Erich Schmidt, 1979, p. 67.
[xxiv] C.G. Jung, Paracelsica, p. 94.
[xxv] Ibid., p. 95.
[xxvi] Ibid., p. 102.
[xxvii] C.G. Jung, Psychologie und Alchimie, p. 415.
[xxviii] Ibid., p. 353.
[xxix] Ibid., p. 414.
[xxx] Ibid., p. 453.
[xxxi] Ibid., p. 414.
[xxxii] Ibid., p. 336.
[xxxiii] C.G. Jung, Paracelsica, p. 101.
[xxxiv] Ibid., p. 102.
[xxxv] Ibid., p. 101.
[xxxvi] Paracelso, Opera (ed. Sudhoff), Berlim, 1894, vol. xii, p. 469.
[xxxvii] Richard Benz, Märchendichtung der Romantik, Gotha, 1908, p. 134.
[xxxviii] Emma Jung e James Hillmann, Anima et Animus, Paris, Seghers,
1981, p. 11.
[xxxix] Ibid., p. 12.
[xl] Richard Kohl, «Das Melusinenmotiv. Symbolgeschichtliche Studie», in
Niederdeutsche Zeitschrift für Völkerkunde, 11, 1933.
[xli] Ch. Kerényi, La jeune fille divine, in Jung e Kerényi, Introduction à
l'essence de la mythologie, Paris, Payot, 1968.
[xlii] J. Böhme, Sämtliche Werke (ed. Schiebler), Leipzig, 1922, vol. i, p.
78.
[xliii] Erich Neumann, Ursprungsgeschichte des Bewusstseins. (Cito a
tradução alemã, Frankfurt, Fischer Taschenbuch, 1984, p. 130.)
[xliv] Sobre o arquétipo da Grande Mãe poderá ver-se o livro de Erich
Neumann, The Great Mother. An Analysis of the Archetype, Princeton
University Press, 1974.
[xlv] Erich Neumann, Ursprungsgeschichte des Bewusstseins, pp. 160-179.
[xlvi] ()Y[amrtzˆ˜[xlvii] 2 8 : @
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íõíåÝåÝå Pierre Solié, La femme essentielle. Mythanalyse de la Grande Mère
et de ses fils-amants, Paris, Seghers-Laffont, 1981, p. 421.
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