No arrastão

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No arrastão Carlos Palombini * Em setembro de 1993 retornei ao país após cinco anos ininterruptos no exterior. Lá descobri o Brasil, fato de que me dei conta ao ver, em cartão postal, A descoberta da América por Cristóvão Colombo, de Salvador Dalí. Sentia-me integrado no Reino Unido. Passei a ver por que muitas coisas não haviam funcionado em minha vida: a pesquisa, o dia a dia, a vida social, o humor, as aventuras eróticas, as relações interpessoais.

No final dos anos 1970 meus pais haviam vendido a casa que meu avô construíra nos fundos da Catedral Metropolitana, no Centro da cidade, sobre cemitério ancestral, para instalarem-se às margens do Guaíba, na Zona Sul de Porto Alegre, em Vila Assunção. Nosso novo bairro incluía praças, residências amplas, vegetação nativa e jardins encrustados de mansões. Moravam ali famílias ricas há várias gerações, famílias de classe média alta, famílias elevadas pela ditadura empresarial-militar e famílias pobres, por usucapião.

                                                                                                                Este texto foi escrito, por sugestão de Adriana Facina, por ocasião dos eventos de domingo, 20 de setembro de 2015, em Copacabana. *

Meus pais assistiam religiosamente a telejornais, telenovelas, programas de auditório, esportivos e de humor, a tal ponto que, de criança, desenvolvi a fobia televisiva da qual insisto em não me curar. Naquele setembro, há vinte e dois anos, eu estava de novo em casa. O estranhamento manifestou-se na forma da hilaridade diante do telejornal em vozes de teledrama. Não era apenas eu que havia mudado. A mansão dos Couto e Silva, com sua réplica de anfiteatro grego nos jardins, continuava a ostentar ampla janela envidraçada, através da qual se entrevia o Buda em bronze, mas a família agora confiava a segurança do lar a um vigia, instalado em guarita plástica à beira da calçada. As demais residências estavam todas cercadas e gradeadas, exceto a minha, por psicopatologia familiar: convencido de que “ladrões entram pelos fundos”, meu pai manteve intacta a fachada. Já as grandes vidraças deslizantes do quarto de meu irmão, que se abriam para o quintal, foram substituídas por minúscula janela de aço, grade sanfonada e cadeado. Adolescente, eu me acostumara a realizar incursões pelo grand monde1 e o bas fond, e, altas horas, retornar a pé para casa nos trajes mais excêntricos. Agora era perigoso conviver às margens. Também ali, a trapaça e a traição haviam ganhado terreno. A vida boêmia deslocara-se do Bom Fim — antigo bairro judeu onde residira minha avó — para a Cidade Baixa, cujos casarões de classe média, entre eles o de meus tios e o de meus tios avós, e ruas pacatas eu conhecia palmo a palmo, por percurso diário, de casa (com quintal, parreira, goiabeiras, abacateiros e cafeeiro) ao Grupo Escolar. Após noitada na Cidade Baixa, onde tentava divertir-me, a imagem de gente pobre e triste a meu redor num ônibus decrépito rumo à Zona Sul sintetizava o espírito do tempo. Grande parte das casas de Vila Assunção estava à venda, seus herdeiros impossibilitados de mantê-las. Meus pais queixavam-se da redução, da extinção ou do atraso de suas aposentadorias, e já não trocavam anualmente de carro. Nem por isso minha irmã e o marido deixaram de convidar-me para jantar, uma semana após minha chegada, na Avenida Protásio Alves, nas proximidades do Bom Fim. Deixamos o restaurante por volta de meia noite e descemos a Protásio. Conversávamos animadamente quando, sob o viaduto da Silva Só, vimo-nos em meio a cerca de quinze adolescentes pobres e hostis. Um deles visou a bolsa de minha irmã, que, para defendê-la — e eventualmente salvá-la — jogou-se ao chão. Procurei ajudá-la e                                                                                                                 1  Minha

crença no grand monde porto-alegrense foi cedo abalada em sala de aula quando Monsieur Roche, ao explicar o significado da expressão le tout Paris a uma das senhoras que prestigiavam não apenas seus cursos, mas também a coluna social do diário dos Sirotsky, perguntou-lhe: “Et est-ce, Madame, que l’on peut dire ‘le tout Porto Alegre’?”

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recebi um soco no rosto, que custou-me um par de óculos Austin Reed e o qualificativo “covarde!”. A poucos metros, no Hospital de Pronto Socorro, soube que também meu nariz estava quebrado. Se tal não constituía fato grave, recolocá-lo no lugar produziu dor insuportável. Para amenizá-la, compartilhei-a com o Hospital em francos gritos. A performance sádica surtiu o efeito desejado. Eu não sabia de “arrastões”, que só conheceria ao ler Micael Herschmann e Hermano Vianna oito anos mais tarde. A Rede Globo os havia espalhado pelo país. Quanto aos jovens de setembro de 1993, sei que seu objetivo não era roubar. Eles afirmavam seu ódio de classe, incitado pela família mais rica do Brasil, em benefício próprio. Hoje, graças à instalação de um Barra Shopping, os imóveis em Vila Assunção estão valorizados. O bairro se revitaliza e refloresce em meio ao comércio do lazer e do luxo. A família de Dilma Rousseff é nossa vizinha. Belo Horizonte, 22 de setembro de 2015

 

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