“No Brasil, só se entende escrever em jornal”. Clarice Lispector, Fernando Sabino e redes de edição no séc. XX

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“No Brasil, só se entende escrever em jornal” Clarice Lispector, Fernando Sabino e redes de edição no séc. XX1 RIBEIRO, Ana Elisa (Dra.)2 Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais/MG

Resumo: Com base em dois livros de correspondências de Clarice Lispector a amigos e parentes (Lispector, 2002; Sabino, 2011), este ensaio mostra, brevemente, a importância de espaços de publicação como revistas e jornais “comerciais” ou suplementos para a circulação da literatura brasileira, em meados do século XX. Tais espaços têm sido reduzidos, ao longo dos anos, embora outros espaços, mais especializados, tenham emergido, especialmente após o advento das tecnologias digitais de informação e comunicação, que parecem ter facilitado a produção editorial e a publicação.

Palavras-chave: Produção Editorial; Publicação de Livros; Revistas Literárias; Clarice Lispector.

Contextualização Pensar a produção de livros no Brasil nos leva, necessariamente, a focalizar o século XIX, especialmente na intensa movimentação em torno do gênero romance. Naquela época, surgem muitos de nossos mais conhecidos escritores de prosa, cuja produção buscava um ‘rosto’ brasileiro, a despeito da forte influência, por exemplo, de romantismos e realismos estrangeiros. Apenas para citar dois grandes nomes de nossa literatura novecentista, José de Alencar e Machado de Assis produziram suas obras, de maneira quase total, como folhetins publicados em jornais (Lajolo; Zilberman, 2002; El Far, 2006). Alguns dos textos que conhecemos, hoje, como romances foram, portanto, urdidos sob uma forma de publicação e circulação que diz muito sobre eles, embora nossa percepção desses livros já se tenha contaminado de um sentido de ‘livro’ que não surgiu juntamente com as obras. Um folhetim era publicado em capítulos, mais ou menos à maneira das novelas,

1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Impressa, integrante do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, 2013. 2 Doutora em Linguística Aplicada pela UFMG; pós-doutora em Comunicação pela PUC Minas; docente do Bacharelado em Letras – Tecnologias da Edição e do PPG em Estudos de Linguagens do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG. [email protected] 1

num formato fragmentado que permitia uma sequência a ser acompanhada pelo leitor. No fim da narrativa, era possível reunir os textos e compor, sob cuidados editoriais, uma obra una. Em alguns casos, esses livros ‘completos’ eram dados como brindes na compra do jornal, como ocorreu a alguns de nossos escritores e ainda ocorre, nas bancas atuais. Essa situação, pode-se dizer, com algum exagero, ainda perdura. No entanto, nos dias de hoje, ao que parece, há muito menos espaço para a literatura nos jornais e nas revistas “comerciais” do que em outras épocas. É preciso considerar, então, a produção de jornais e revistas especificamente literários, que, hoje, encontram campo fértil e facilidades editoriais. É importante a percepção de que, no século XIX, ainda não havia revistas. O veículo começou a circular no início do século XX, suscitando o temor de muitos escritores a respeito do futuro dos jornais e dos espaços de publicação, além da preocupação quanto à velocidade e ao excesso de informação3. A ausência de espaços literários em jornais e revistas “comerciais” termina por criar um campo de “resistência” para revistas especializadas, a maioria independentes, que ajudam a literatura a circular, ainda nos dias que correm. No entanto, isso só acontece num circuito muito diferente do das revistas “comerciais”4. Ao que parece, no Brasil, a escrita literária fazia um trajeto que ia dos jornais às revistas e, só então, aos livros, conforme aponta Martins (2005): (...) o espaço da escrita literária, até então confinado às revistas, migra significativamente para o suporte do livro. Não obstante, ainda assim, a 3

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Escreve o poeta Olavo Bilac, no início do século XX (grafia mantida conforme o original): “Mais de quatro séculos nos separam do tempo em que os impressores de Moguncia e Strasburgo, – espalhando pela Europa algumas folhas volantes, com as notícias da guerra entre gregos e turcos e das victorias do Sultão Mahomet II, – crearam o vehiculo rapido do pensamento humano, a que se deu depois este curto, magico, prestigioso e expressivo nome: ‘jornal’. Aquelles boletins dos discipulos e continuadores de Guttemberg foram, de facto, o nucleo creador d’esta immensa e dilatada imprensa de informação (...) Justamente, agora, nos ultimos dias de 1903, dois physicos francezes, Gaumont e Decaux, acabam de achar uma engenhosa combinação do phonographo e do cinematographo, – o chronographo, – que talvez ainda venha a revolucionar a industria da imprensa diaria e periodica. Diante do apparelho, uma pessoa pronuncía um discurso: o chronographo recebe e guarda esse discurso, e , d’ahi a pouco, não somente repete todas as suas phrases, como reproduz, sobre uma tela branca, a figura do orador, a sua physionomia, os seus gestos, a expressão da sua face, a mobilidade dos seus olhos e dos seus lábios. Talvez o jornal futuro seja uma applicação d‘essa descoberta... A actividade humana augmenta, n’uma progressão pasmosa. Já os homens de hoje são forçados a pensar e a executar, em um minuto, o que os seus avós pensavam e executavam em uma hora. A vida moderna é feita de relampagos no cerebro, e de rufos de febre no sangue. O livro está morrendo, justamente porque já pouca gente pode consagrar um dia todo, ou ainda uma hora toda, á leitura de cem paginas impressas sobre o mesmo assumpto”. (BILAC, Olavo. Revista Kósmos, Anno 1, n.1, janeiro de 1904) São famosas revistas como a Klaxon, que publicou muitos modernistas. Alguns trabalhos se concentraram nesse objeto, como é o caso de Martins (2005). Na atualidade, existem muitas revistas literárias, como a Coyote ou a Medusa, além de dezenas de sítios na web. Sem dúvida, a internet tornou-se um veículo dos mais fundamentais para a produção literária dos anos 1990 para cá. 2

revista mantém sua função de propagadora da leitura, tida como veículo preferencial, intermediário entre o jornal e o livro, com a possibilidade de espectro maior de leitores, dadas as características que então a privilegiam em relação ao livro: custo baixo, caráter ligeiro, leitura fácil, muita ilustração, portátil, espalhando-se por lugares públicos – ruas, cafés, barbearias, farmácias, saguão de hotéis. (MARTINS, 2005, p. 252)

Neste trabalho, dedico minha atenção à edição do livro literário, certamente um gênero à parte na produção livreira. O ponto que aqui me interessa é a relação de alguns autores com a publicação em jornais e revistas, em meados do século XX, como forma de escoar produção, fazer-se conhecido e angariar leitores, além de funcionar como “ganha pão”. Os autores que focalizo aqui são, principalmente, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto e Fernando Sabino. Empreguei como fonte da pesquisa dois livros de correspondências, Lispector (2002) e Sabino (2011), nos quais é possível rastrear, nos diálogos entre autores amigos, sua relação com a edição e a circulação de suas obras, em tempos analógicos.

Clarice, João e Fernando A constante leitura dos textos pelos pares é uma das marcas da colaboração e mesmo da admiração de uns escritores pelos outros, processo que sempre aconteceu e ainda ocorre, embora com outra velocidade de circulação, nos dias atuais. O círculo de amizades de Clarice Lispector, não por acaso, era formado basicamente pelos colegas homens, entre eles Fernando Sabino, Lúcio Cardoso, João Cabral de Melo Neto e, mais esparsamente, Manuel Bandeira. Por meio das cartas aos amigos, em ambos os livros de correspondências que foram fontes deste trabalho, é possível vislumbrar um movimento de publicações que ia dos jornais aos livros, passando pelas revistas “comerciais”, isto é, não especializadas em literatura, ainda entre os anos 1940 e 1970. A reclamação de João Cabral, em carta a Clarice, nos anos 1950, encontra eco em todas as épocas, antes ou depois disso. O escritor precisava encontrar espaço na imprensa não apenas como artista, mas como repórter, cronista, entrevistador ou outra função jornalística. Lamenta Cabral: Que coisa é escrever literatura no Brasil. Eu creio que o melhor é não fazer mais nada. No Brasil, só se entende escrever em jornal. Daí essa coisa superficial improvisada, fragmentária que é a literatura nacional. Às vezes, fico pensando em certas coisas que eu gostaria de escrever: ensaios (não artigos de jornal), viagens, etc; prosa, enfim. E de repente me lembro de que é muito mau isso de escrever e não publicar. Imediatamente desisto. Escrever poesia tem, pelo menos, a vantagem de que é possível sempre se fazer uma edição limitada, barata, e até mesmo mimeografada. Mas a prosa já sai mais 3

cara e nem nós diplomatas podemos nos permitir o luxo de romance ou mais para amigos. (Lispector, 2002, p. 248)

A percepção de João Cabral sobre a publicação e a circulação do poema se contrapõe ao conselho que Clarice dá, por carta, à jovem amiga e aspirante a escritora Andréa Azulay, em 1975. Em tom de conto de fadas, a renomada autora escreve: Andréa lia muitos livros até quase onze horas da noite. E também escrevia muito bonito. Mas veio a fada e avisou-lhe: se você vier a ser escritora, procure escrever em prosa, até mesmo prosa poética, porque ninguém edita comercialmente livro de poesias. (LISPECTOR, 2002, p. 307)

“Editar comercialmente” sugere algo ligado ao negócio do livro, sensivelmente diferente para prosa e poesia, ainda nos dias de hoje. Por onde começar a buscar editores? Se o livro precisa de esforço e dinheiro, em que condições se publicava em revistas e jornais, em meados do século XX? Nisso se arrisca Rubem Braga, em carta de 1956 a Clarice Lispector, quando tratavam da publicação de um dos livros da autora. Clarice entrava em negociação para a publicação de um livro pela famosa editora José Olympio, mas achava que esperaria demais (mais do que gostaria) pela impressão. Já Simeão Leal era o editor de uma coleção de livros saídos pelo Ministério de Educação e Saúde do Brasil, entre os quais estaria um volume de contos de Lispector. A demora nessa publicação foi motivo de várias cartas da escritora a diversos amigos. Rubem Braga disse-lhe: Você decida se quer topar a oferta do Zé Olympio; eu acho que vale a pena, ele é o único editor que sabe lançar um livro no Brasil. Quanto aos contos entregues ao Simeão, esperarei ele voltar da Índia e falarei com ele. Inclusive penso que seria interessante publicar os contos primeiro em suplementos e revistas, depois editar em livro; é mais normal (Lispector, 2002, p. 201).

A “normalidade” aconselhada por Rubem Braga diz respeito, então, a uma trajetória histórica das publicações literárias no Brasil, especialmente naquilo que diz respeito aos suplementos culturais de grandes jornais5. De outro lado, aconselhava Fernando Sabino, no sentido contrário, em relação a contos que Clarice publicaria em

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Este assunto é particularmente interessante e atual. Há alguns dias, o mesmo jornal Estado de São Paulo anunciou o fim de seu suplemento de cultura, o Sabático, argumentando com necessidades de uma nova reforma gráfico-editorial. Os escritores e artistas contemporâneos reprovaram a mudança e manifestaram-se publicamente contra o jornal, inclusive produzindo abaixo-assinados na web e nas redes sociais. O “grito” contra a reformulação mostra, claramente, uma movimentação contra a extinção de um dos raros espaços de publicação mais amplos para artistas, no século XXI. A explicação do jornal pode ser vista em . Acessado em 11 de abril de 2013. Uma petição contra o fim do suplemento pode ser conhecida em: < http://www.avaaz.org/po/petition/Contra_o_fim_do_Sabatico_de_O_Estado_de_S_Paulo_1/?tiUJxeb> . Quando acessada, em 11 de abril de 2013, o documento tinha mais de 1500 assinaturas. 4

um grande jornal, por bom pagamento: Desculpe a grosseria mas os contos são muito bons demais para a gente ficar com cerimônias. E no mais, só sinto que você não tenha pensado em reunilos todos, os outros alguns também, para fazer um livro só – que seria exata, sincera, indiscutível e até humildemente o melhor livro de contos já publicado no Brasil. (SABINO, 2011, p. 119)

Onde os espaços de publicação? Em que revistas e jornais os autores brasileiros publicavam seus textos, em meados do século XX? Que espaços eram esses? Como eram negociados? Essas questões eram respondidas conforme as redes sociais de escritores conseguiam se indicar ou se munir, para ter onde publicar. Espaços preexistentes, considerados poucos ou ruins, não eram, talvez, vistos como uma dificuldade, mas como uma oportunidade para a criação dos espaços necessários. Bluma Wainer, esposa do jornalista Samuel Wainer, em uma das cartas a Clarice Lispector, em 1947, responde a um questionamento da escritora: V. me pediu para informar qual a melhor revista literária. Perguntei a várias pessoas mais informadas que eu, que há tanto tempo andava fora e a resposta foi a que eu imaginava: não há revistas literárias fora Literatura, que você conheceu. O resto são suplementos. Falar nisso, por que você não traduz uns contos, já que não está em mood para escrever v. mesma? Muita gente boa está fazendo isso (Carlos Drummond por exemplo está traduzindo e publicando contos nos suplementos e está traduzindo livros também). (Lispector, 2002, p. 153)

Sem dúvida, o cenário literário atual conta com diversidade muito maior de espaços de publicação especializada para literatura, inclusive de iniciantes. A existência de apenas uma revista especializada e de mais espaços em suplementos não se parece com um cenário atual, no que este nicho editorial parece ter melhorado. A criação de revistas vem, então, como resposta a um cenário um tanto desértico, como se pode ver em carta de João Cabral a Clarice, na verdade, uma proposta enfática e insistente. Em partes, vejamos o desenho de um projeto: Estou em entendimentos com Lauro Escorel – e este com o Antônio Cândido, de S. Paulo – para fazermos uma revista trimestral, chamada ANTOLOGIA (dístico: PLVS ÉLIRE QUE LIRE, Paul Valéry). Será uma revista minoritária, de 200 exemplares, distribuída a pessoas escolhidas pelos diretores. Não terá programa formulado, não dará nenhuma bola à chamada vida literária, não terá seções, nem de cinema, nem de livros, nem de nada. Qualquer coisa fora do tempo e do espaço – um pouco como nós vivemos. O fim verdadeiro da revista será o de começar a escolher o que presta de todos nós. Qualquer coisa como um balanço de antes do fim do ano, um balanço dos fevereiros que nós todos somos. Que acha você? (Lispector, 2002, p. 180)

Sem seções, sem espaços delimitados, fora do tempo, com tiragem limitada a 5

200 exemplares, apenas literatura. Um espaço de seleção do “que presta” de “nós”, isto é, de uma rede de escritores que se conhecia e que intentava criar seu próprio espaço de diálogo, seleção e circulação. A tiragem reduzida pode dizer muito sobre o público almejado pelo projeto, isto é, o círculo dos próprios leitores-escritores, longe do grande público (para quem estes livros só chegariam mais tarde, por exemplo, via cânone escolar). Mais adiante, Cabral continua: Um momento, pensei em fazer uma revista para os escritores brasileiros de fora do Brasil. Mas um certo aspecto Itamaraty dessa idéia me fez deixá-la em quarentena. Gostaria que V. nos mandasse – se é que o Lauro já não os solicitou – suas sugestões, e – coisa que seria ótima que se considerasse a possibilidade de figurar como um dos diretores (aliás, em vês (sic) de diretores, podíamos declarar: ESTA REVISTA É PUBLICADA POR: a) etc.). O cargo não lhe daria grandes trabalhos nem a distrairia grandemente de seu trabalho. Você compreenderá que numa revista chamada ANTOLOGIA o trabalho de diretor é um trabalho de escolhedor. Diga se quer ser um dos ESCOLHEDORES. (Lispector, 2002, p. 180)

O trabalho de escritor, ao que parece, não garante espaços de publicação. É preciso militar, advogar, editar. Clarice, provavelmente pouco afeita às tarefas para além da escrita, parecia já pressuposta nos argumentos de João Cabral. Pela quantidade de argumentos, cuidados e insistências do poeta, é de se esperar que o “não” fosse a resposta mais provável da autora. De fato, ao menos entre as cartas que estão publicadas nos livros que nos serviram de fonte, não há sequer resposta de Clarice a estas investidas editoriais. Sobre questões mais práticas e menos intelectuais, inclusive econômicas, João Cabral esclarece: A revista será impressa por mim, aproveitando a minha máquina e as delícias do câmbio. Esperamos ter um número pronto – no mais tardar – ‘em março’. Já temos alguma colaboração, só faltando o seu coro de anjos que me deixou de orelhas em pé. Posso contar com ele, dentro do envelope da resposta? (Lispector, 2002, p. 181)

A publicação em revistas de amigos aparece ainda, mais algumas vezes, em diálogos de Clarice Lispector com os pares. Ela diz a Sabino, sobre o conto O Crime do Professor de Matemática, mais tarde publicado no livro Laços de família: Vou lhe dizer que mando aí “O crime”, a história tosca de um homem que não quis ser punido. Mandei-a para um amigo que tem uma revista chamada “A Casa”, e a quem prometi há muito tempo dar um conto a publicar. (Sabino, 2011, p. 51)

O espaço do cronista ou do colunista, em revistas comerciais, foi importante para escritores, nos anos 1950, o que ainda ocorre hoje, em páginas cativas de alguns

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periódicos, mas especialmente com comentaristas e cronistas. Clarice Lispector gozou de alguns desses espaços, na revista Manchete, por exemplo, com intermediação de Fernando Sabino. A cronologia de Clarice como escritora em jornais de mais amplo pode ser resumida da seguinte forma6: trabalhou como redatora e repórter da Agência Nacional, em 1940; no jornal A noite, em 1942, como repórter; em 1952, assumiu uma página no jornal Comício, sob o pseudônimo de Tereza Quadros; em 1954, foi autora de uma coluna no jornal Correio da Manhã, sob o pseudônimo de Helen Palmer, além de publicar uma série de contos na revista Senhor; foi colunista do Jornal do Brasil em 1967; deu uma série de entrevistas à revista Manchete, nessa mesma época; escreveu para diversos jornais e revistas até sua morte, em 1977. No trecho de uma carta de 1953, a seguir, Sabino informa a escritora sobre as condições do trabalho na revista Manchete, inclusive colocando em cena a questão da autoria, que, até ali, vinha ocorrendo por meio de pseudônimos. Não fique ofendida, mas falei diretamente com Hélio Fernandes, diretor de Manchete, que ainda por cima agradeceu muito pela ideia. Escreva duas páginas e meia e três páginas tamanho ofício sobre qualquer coisa, semanalmente. Tem que ser assinado, mas não tem importância, nós todos perdemos a vergonha e estamos assinando. Ele quer pagar 750 cruzeiros por crônica – ficou de dar a resposta definitiva amanhã, mas de qualquer maneira já está combinado. Não se incomode muito com a qualidade literária por ser assinado – um título qualquer como Bilhete Americano, Carta da América ou coisa parecida se encarregará de dar caráter de seção e portanto sem responsabilidade literária. O pagamento é pontual, em cheque, e você deve autorizar alguém por carta a receber em seu nome e depositar ou entregar a quem você quiser. (Sabino, 2011, p. 96)

A qualidade literária dos textos, como bem enfatiza Sabino, não importava tanto quanto o fato de haver espaço e trabalho para a autora. Talvez eles pressupusessem, neste quesito, um público amplo menos exigente quanto ao valor literário de um texto. O prestígio de Clarice era desejado pela revista. Ainda assim, a insegurança da autora quanto aos textos a levou a escrever mais a Sabino sobre essa questão. A coluna Bilhete Americano era escrita enquanto a escritora morava nos Estados Unidos. A falta de retorno do editor sobre os textos enviados a incomodava. Haviam sido, até a carta cujo trecho segue, dois textos encaminhados à Manchete, sendo que um terceiro ainda estava por ser escrito. Clarice mesma os classificou de textos “cacetíssimos”. Francamente, se Hélio Fernandes quiser, paro imediatamente, se possível 6

É interessante dizer que, aliás, a vida literária de Clarice Lispector tem início com a publicação de um conto intitulado “Triunfo” no semanário Pan. 7

mais rápido que imediatamente. Hélio Fernandes não precisa hesitar em dizer que não quer – acho mesmo muito difícil mandar notícias, sem saber o que serve ou não; o mais possível é que não sirva. E acontece que só gostaria de assinar C.L. (Sabino, 2011, p. 107)

Jornal O espaço para escrita criativa em jornais é historicamente existente, no Brasil, embora esteja muito reduzido, nos dias atuais. O episódio com o Estado de São Paulo foi vastamente negociado pela autora com os amigos mediadores, já que dependia da publicação de contos que não estavam mais com ela. É digno de nota pensar que a autora escrevia um material que era enviado, ele mesmo, aos editores. As cópias físicas, por vezes, eram distribuídas, podendo ficar o autor sem mesmo uma matriz. No caso em foco, Clarice queria recolher uns contos que havia enviado a Simeão Leal, editor do Ministério de Educação e Saúde brasileiro, que demorou demais a publicar. Ela queria dispor dos contos. Simeão os encomendara à autora, que, embora não gostasse de encomendas, aceitara fazer os textos. No entanto, a extrema demora da publicação de um livro a impacientou. Ela chegou a receber três mil cruzeiros pelo trabalho, mas estava disposta a devolver o dinheiro ao editor. Os originais estavam com ele, fisicamente, e ela os queria reaver. Anos depois, o livro chegou a ponto de provas e ela ainda queria os contos. Dessa forma, enviou uma carta extensa e gentil, pedindo desculpas a Simeão Leal, mas solicitando de volta os textos, que ela queria vender, separadamente, a jornais e revistas. Clarice teve problemas, mais adiante, com a publicação dos mesmos contos em jornais diferentes, do Rio e de São Paulo, cada qual querendo exclusividade. A diferença foi que um jornal do Rio de Janeiro, em que seus textos foram publicados, não haviam pedido autorização à autora. É o amigo Fernando Sabino que dá a notícia da publicação no jornal paulista Estado de São Paulo a Clarice: (...) o Décio de Almeida Prado incluiu seu nome entre os colaboradores do Estado de São Paulo, Suplemento Literário: dei seu endereço, ele deve ter lhe escrito (?) à razão e dois contos por conto. Ora, você tem quinze contos, seriam trinta mil cruzeiros. Por que não ir publicando? Nada impede a publicação posterior em livro, pelo contrário, é boa publicidade. Me autorize que providencio tudo: apanho os contos no Simeão e mando cópia para o Décio de Almeida Prado, de todos de uma vez, ele vai publicando provavelmente de quinze em quinze dias. O recebimento é feito aqui mesmo, na data da entrega – sobre estes detalhes eu me entenderia com a Tânia. Me escreva, e logo, sobre o assunto. (Sabino, 2011, p. 181)

É assim que Clarice expõe a Sabino sua alegria pela publicação dos contos, em 1957: 8

Fiquei radiante com a ideia da publicação dos contos pelo “Estado de São Paulo” – digo francamente que estou querendo o dinheiro. Décio de Almeida Prado não me escreveu, mas se ele publicar os contos, quando Tânia tiver o dinheiro, transformará em dólares e me mandará. Estou tão contente com isso. Se ele não mudar de ideia e você conseguir arranjar mesmo, darei mais três contos que tenho mais ou menos prontos, e assim ficam dezoito. Você me diz que seu eu autorizo, você apanha os contos no Simeão e manda cópia para Décio de Almeida Prado. Autorizadíssimo. (Sabino, 2011, p. 184-185)

O pagamento pelo trabalho é importante e Clarice, mais do que tudo, sente-se aliviada pela publicação dos textos, pressa que ela demonstrou em muitas de suas cartas. O suplemento literário do jornal, a que se refere Sabino, era espaço privilegiado, ao que parece, para a literatura, já que mantinha a publicação de contos, e não apenas colunas de pouco valor literário.

Considerações finais A circulação da literatura impressa, nas décadas intermediárias do século XX, em grande medida, encontrava nos jornais e nas revistas um de seus dispositivos mais eficazes tanto no que diz respeito à vida profissional dos autores quanto no que se refere a uma engrenagem de exposição e legitimação da produção nacional. No entanto, a dependência exagerada que a literatura tinha (e tem?) desse veículo é considerada prejudicial, por exemplo, por João Cabral de Melo Neto. Desse modo de fazer e publicar a literatura advém uma característica fragmentária, segundo o poeta, que em muito viciava os mecanismos de nossa produção, que terminava por circular muito menos em livros, suporte da obra literária, por excelência. Segundo Cabral, o próprio texto literário ressentia-se dos modos como devia ser produzido para ser publicado: aos fragmentos. Um projeto de livro, propriamente, poderia ficar, então, comprometido. Ainda no século XXI, os espaços de publicação em jornais e revistas, especialmente em suplementos, são cobiçados por autores em busca de maior público e de crítica especializada (resenhas e comentários, além da divulgação de lançamentos). A despeito da existência de novas tecnologias e de novos modos de publicação, o escritor continua almejando o livro impresso, que parece ocupar, ainda, lugar nobre entre as possibilidades editoriais no campo literário. Revistas contemporâneas como a Piauí, para citar apenas uma, mantêm espaços importantes para a crítica literária e para a literatura mesma, assim como alguns suplementos especializados de grandes jornais. Questões do livro, como a dos super-sellers, aparecem em matérias de jornal, ligadas às finanças, mostrando a importância do livro como “negócio”, mais do que sua relação

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com a arte e o valor literário7. A movimentação em torno de jornais e revistas, em meados do século passado, parece ainda incomodar os escritores do século XXI, que continuam, no Brasil, a atuar fortemente nesses veículos (como profissionais mesmo), já que os espaços mais amplos de acesso ao público leitor estão aí. Talvez essa característica ainda tenha relação com o baixo consumo de livros literários diretamente pelo leitor, em razão de sermos um país que sustenta suas editoras por meio de compras governamentais. O escritor conhecido, portanto, é aquele que consegue ocupar os espaços lidos pelo público, o que ocorre cada vez menos, já que grandes jornais, como o Estado de São Paulo, têm feito reformas gráficas que os reduzem em volume e tamanho, sendo uma das primeiras providências tomadas o corte de suplementos culturais. Clarice Lispector, Fernando Sabino e outros autores consagrados do século XX viveram em um tempo em que o impresso era quase absoluto como meio de publicação e difusão da obra literária, muito embora tivessem de se articular entre periódicos e livros, numa relação pouco interativa entre os dois suportes, exceto porque o “normal” era migrar de jornais para livros, como aconselhava Rubem Braga a Clarice Lispector. Na atualidade, talvez esses suportes estejam se especializando ainda mais, no sentido de que os periódicos são cada vez menos literários, os livros encontram novos formatos e a World Wide Web torna-se um veículo importante para a circulação de textos e autores, seja em jornais, revistas, editoras de e-books ou em blogs, redes sociais e sites especializados. As novas tecnologias provocam mudanças negativas – do ponto de vista dos espaços para a literatura – quando entram em concorrência com jornais (e por isso eles se reduzem e passam a procurar meios de sobreviver), mas, por outro lado, as TICs oferecem novos espaços, que também podem atuar como displays da nova produção literária, antes de vir à luz um livro literário impresso. Esse é o movimento que muitos autores vêm fazendo, sem se valer das publicações tradicionais. Ao que parece, são tempos da emergência de novas “normalidades” nos trajetos da obra literária, entre sua criação, sua publicação e seu público.

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Para uma discussão sobre as visadas discursivas em matérias sobre livros, ver Ribeiro (2011). Já diz muito o fato de os livros terem se tornado assunto dos cadernos de Informática dos jornais, em vez de estarem apenas em cadernos de Cultura. 10

Referências EL FAR, Alessandra. O livro e a leitura no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. ESTADO DE SÃO PAULO. ‘Estado’ estreia novo projeto gráfico dia 22. Estado de São Paulo, 5 abril 2013. Disponível em: < http://economia.estadao.com.br/noticias/economia-geral,estado-estreia-novo-projetografico-dia-22,149714,0.htm>. Acessado em 11 maio 2013. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. O preço da leitura. Leis e números por detrás das letras. São Paulo: Ática, 2001. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A leitura rarefeita. São Paulo: Ática, 2002. LISPECTOR, Clarice. Correspondências. Org. Teresa Monteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. MARTINS, Ana Luiza. Revistas na emergência da grande imprensa: entre práticas e representações (1890 – 1930). In: ABREU, Márcia; SCHAPOCHNIK, Nelson (orgs.) Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas Campinas, SP: Mercado de Letras, Associação de Leitura do Brasil (ALB); São Paulo, SP: Fapesp; 2005. (Coleção Histórias de Leitura) RIBEIRO, Ana Elisa. The book is on the tablet: Visadas no discurso sobre o livro digital na imprensa. XXXIV CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO. Recife, PE, Anais... 2 a 6 de setembro de 2011. SABINO, Fernando; LISPECTOR, Clarice. Cartas perto do coração. Dois jovens escritores unidos pelo mistério da criação. 8 ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.

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