NO CAMPO DE BATALHA EDIFICA-SE O IMPÉRIO: GUERRA, ORDEM E EQUILIBRIO CÓSMICO NO IMPÉRIO NEOASSÍRIO (884-727 a.C.)

May 31, 2017 | Autor: Ruan Silva | Categoria: Ancient Near East, Historia Antiga, Assiriologia, Assiriology
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Imagem da capa Detalhe de “Pirão”, de Custódio Jacinto de Medeiros (900cm x 210 cm)

A Comissão Organizadora e o Comitê Científico não se responsabilizam pela qualidade dos textos apresentados pelos autores, no que toca aos aspectos redacionais e de normalização de trabalhos acadêmicos.

HELDER ALEXANDRE MEDEIROS DE MACEDO (organizador)

IV Colóquio Nacional

História Cultural e Sensibilidades UFRN  CERES  Campus de Caicó CAICÓ-RN  17 a 21 de novembro de 2014

ANAIS ELETRÔNICOS ISBN 978-85-425-0193-3

CAICÓ 2015

NO CAMPO DE BATALHA EDIFICA-SE O IMPÉRIO: GUERRA, ORDEM E EQUILIBRIO CÓSMICO NO IMPÉRIO NEOASSÍRIO (884-727 a.C.) Ruan Kleberson Pereira da Silva39 AS GUERRAS E O ESTABELECIMENTO DAS FRONTEIRAS DO IMPÉRIO Assíria ganha proeminência na história da Mesopotâmia Setentrional a partir do início do IIº milênio a.C., quando o chefe amorita Shamshi-Adad (1813 – 1781 a.C.) guiou seu exército e se apoderou de Ekallatum, Assur, Nínive, Kurdistão e Mari, adotando o título de shar kishshati40 e exercendo a dominação de grande parte das cidades e tribos de Djezireh. O poderio assírio, porém, declinou com a morte do rei, obrigando os assírios a se submeterem por séculos a laços de dependência estrangeira à Eshnunna, Babilônia e Mitani. No século XIII a.C., Assuruballit aproveitou-se da instabilidade da conjuntura política gerada pelo avanço do Império Hitita para além da Anatólia e garantiu a independência da Assíria, inaugurando o Período Médio Assírio (c. 1350 – 935 a.C.). Diante desta nova realidade, a partir do século XI a.C. Tiglath-Pileser I (1115 – 1077 a.C.) empreendeu campanhas militares com o intento de promover a manutenção e expansão do território assírio, o que atesta um período de gradativo fortalecimento da Assíria. Contudo, a Assíria teve que enfrentar um hiato temporal marcado por revoltas de povos subjugados e pressões promovidas por povos inimigos à espreita nas fronteiras imperiais. No final do século X a.C. Adad-nirari II (912 – 891 a.C.) reteve as pressões estrangeiras e retomou o processo de conquistas territoriais com caráter de libertação nacional, que foi continuado por Tukulti-ninurta II (891 – 884 a.C.) e Assurnasipal II (884 – 859 a.C.)41.

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História – PPGH/UFRN. Orientadora: Profª Drª Marcia S. Vasques. Email: [email protected]. 40 Um dos epítetos que, posteriormente, identificarão a realeza, significando “rei do universo”. 41 KRAMER, 1980, p. 55-57; ROUX, 1987, p. 207; TAKLA, 2008, p. 60-61. 39

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Mapa 1: Império Neoassírio (c. 860 a.C.) Fonte: ALCOCK, 2005, p. 375 apud. TAKLA, 2008, p. 73.

Com a gradual consolidação das fronteiras imperiais, as guerras de rapina deram espaço às guerras de conquista. Isto levou a um rápido aumento do território de caça – área geográfica onde não se podia saquear sem a oposição real – o que atesta o gradativo processo de fortalecimento da Assíria. O alargamento das fronteiras, porém, tornou cada vez mais difícil o controle dos intercâmbios comerciais, a cobrança de impostos – o tâmartu42 ou o madattu43 – e o controle das populações. Isto, obviamente, tornou necessária a instalação de colônias militares ao longo do território assírio; a substituição, em alguns casos, de chefes locais por governadores assírios; a divisão de reinos maiores em províncias e estados vassalos; e, por fim, a formação de uma pesada e eficaz máquina administrativa, capaz de manter a Ordem Imperial. Portanto, a dilatação das fronteiras, o controle territorial, político, militar e populacional, quando acrescidos ao constante enriquecimento do Estado, resultante do sistema econômico unidirecional assírio – no qual a cobrança de tributos transferia riquezas da periferia para o centro – constitui os elementos básicos que conformaram a força do Império44.

Forma de tributo pago ocasionalmente por reinos vassalos sob a influência direta da Assíria. Forma de tributo pago anualmente por reinos vassalos governados diretamente pela Assíria. 44 ROUX, op. cit., p. 312-313. 42 43

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Mapa 2: Império Neoassírio (c. 730 a.C.) Fonte: ALCOCK, 2005, p. 376 apud. TAKLA, 2008, p. 82.

Diante disso, Shalmaneser III (858-824 a.C.) empreendeu constantes campanhas militares, majoritariamente deliberadas contra o norte da Síria e países vizinhos, além de ter conduzido as tropas em manobras de pilhagem, das montanhas da Armênia ao Golfo Pérsico e dos Zagros até a Ásia Menor, o que alude às ambições econômicas que também perpassavam campanhas militares. Por conta do caráter beligerante que imprime a seu reinado, mandou construir no sudeste Kalhu, capital do Império, o Forte Shalmaneser 45 – o qual desempenhava a função de palácio, quartel e arsenal –, construído para a manutenção dos cavalos, carros, armas e equipes militares e para o armazenamento do butim tomado dos inimigos46. A partir disso, podemos inferir que o reinado de Shalmaneser III foi capaz de assegurar e proteger os domínios do deus Assur, mantendo livres as rotas comerciais que enriqueciam o Império e, por extensão, financiavam as guerras que mantinham a autonomia política, econômica e territorial.

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Também chamado Ekal masharti. ROUX, op. cit., p. 319-320; TAKLA, op. cit., p. 73-79.

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Mapa 3: Império Neoassírio (c. 705 a.C.) Fonte: ALCOCK, 2005, p. 377 apud. TAKLA, 2008, p. 85. Embora tenham consistido em um instrumento imperial de grande importância, com Tiglath-pileser III (745-727 a.C.) as guerras de rapina passaram a ser empreendimentos de conquistas duradouras, o que só pôde ser conseguido através do incremento considerável do poder do seu exército47, convertendo-o em um instrumento de futuras conquistas de seus sucessores. Por conta disso, Tiglath-Pileser III foi o primeiro rei a consolidar o domínio assírio para além das fronteiras originais do país, ampliando e fortalecendo seu domínio na Ásia Menor e Mediterrâneo oriental. Além disso, Tiglath-pileser foi o responsável por introduzir a prática da deportação48 em massa de populações em larga

O exército de Tiglath-Pileser III era composto por três categorias: a) Kisir Sharrûti – Termo que pode ser traduzido como “Laço da Realeza”, que designa o exército profissional permanente composto por contingentes recrutados e aquartelados em todas as províncias periféricas, majoritariamente estrangeiros (arameus, medos, cimérios, árabes, elamitas). A Guarda Real era composta por unidades deste exército. b) Sabê Sharri – Termo que pode ser traduzido como “Soldados do Rei”. Eram homens jovens, recrutados em todo o Império, que exerciam o serviço militar como forma de pagamento do ilku – imposto que deveria ser pago através de prestação de serviços ao Estado. Recebiam a alimentação diária e aguardavam em suas casas ou campos o recrutamento para a guerra. c) Sha Kutalli – Termo que pode ser traduzido como “Soldados Reservistas”. Eram homens jovens, adquiridos por meio do recrutamento massivo das populações que compunham as várias regiões do Império em casos de extrema necessidade para cobrir as baixas sofridas. De outra parte, a cavalaria irá ganhar grande destaque no interior do exército, enquanto os carros se convertem em meios de transporte, visto que numerosos combates militares se deram em regiões montanhosas (ROUX, op. cit., p. 367-368). 48 A deportação em massa consistia em instrumento para suprimir espíritos nacionalistas; prevenir futuras possíveis revoltas; povoar novas cidades nos países conquistados e na própria Assíria; repovoar regiões 47

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escala no Império. As atividades empreendidas no reinado de Tiglath-pileser III acabam, pois, por consolidar definitivamente a estrutura imperial que vinha sendo formada desde reinados predecessores, o que consequentemente eleva a Assíria a um patamar significativo na estrutura política do Oriente Próximo. Diante do presente exposto, podemos concluir que o processo de expansão de fronteiras – verificado no Mapa 1, no Mapa 2 e no Mapa 3 – resultou de um intenso processo de campanhas militares levadas a cabo pelo soberano neoassírio, o que garantiu as condições necessárias para a consolidação territorial do Império Neoassírio.

GUERRAS ORDÁLICAS E O ORDENAMENTO DO CAOS Considerando a posição geográfica que a Assíria desfrutava na Mesopotâmia setentrional e a conjuntura histórica de sua independência que fomentou o processo de expansão territorial, podemos inferir que a formação do Império Neoassírio resultou de um empreendimento amplo e planejado pautado nas das guerras levadas a cabo pelo rei assírio, sendo que algumas destas guerras foram operações defensivas ou preventivas destinadas a proteger o território de Assur dos inimigos potenciais e para manter abertas as rotas comerciais essenciais à sua sobrevivência49. Portanto, o empreendimento da guerra, independente do caráter que era imbricado, trazia no seu cerne questões políticas, territoriais, econômicas e, até mesmo, religiosas, visto que a manutenção da liberdade econômica e política garantiam concomitantemente a soberania territorial e a autonomia religiosa. No centro destas questões, o rei. O soberano assírio, enquanto servo do deus Assur, assumia as prerrogativas de sumo-sacerdote e shangu50, por meio das quais é

abandonadas; podendo ser mortos, oferecidos no templo, vendidos, atribuídos em trabalhos agrícolas ou de construção, utilizados como artesões, e até integrados no exército. (KRAMER, op. cit., p. 60; ROUX, op. cit., p. 130-133; TAKLA, op. cit., p. 79-81; BACHELOT, 1991, p.109-128 apud. POZZER e SANTOS, 2012, p. 217). 49 Cf. ROUX, op. cit., 309-310. 50 Administrador do domínio terrestre do deus patrono.

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encarregado de engrandecer e tornar próspero os domínios da divindade. Assim, ao ocupar o trono o rei concentrava em suas mãos todos os tipos de poderes, o que é refletido nos epítetos reais que assume: grande rei, rei poderoso, rei da totalidade, rei do país de Assur 51. Isto demonstra que a articulação entre o poder monárquico e a religião foi profunda na Mesopotâmia: o rei é o escolhido dos deuses e seu representante maior perante os mortais; o papel do soberano nos cultos é fundamental para o estabelecimento da comunicação entre o mundo humano e divino52; o rei é o grande provedor dos templos; além do fato de o rei ser o chefe guerreiro, que defendia seu povo e seu país dos ataques inimigos e, eventualmente, conduzia suas tropas para conquistar ou apaziguar terras distantes 53. Deste modo, a realeza é produto da junção de aspectos políticos e religiosos, as quais podem ser acrescidas os aspectos administrativos e militares. O rei, no atributo de suas funções, personifica as diversas dimensões do Estado assírio. Cabia ao soberano, portanto, a obrigação de estender o domínio o domínio de Assur sobre todos os povos, recorrendo, às vezes, ao uso da força contra os inimigos do rei, os quais eram igualmente identificados enquanto inimigos do deus e, portanto, passíveis de serem castigados54. Em virtude disso,

o imperialismo assírio, convencido de sua ideologia universal, assimila a guerra a uma luta contra as forças do mal. Concebida como uma experiência ordálica, a guerra se tornou um elemento constitutivo da ordem cósmica. Ela salva a população, o rei sendo instrumento da justiça divina, e o deus Assur se vestindo de uma figura guerreira. [...] O estatuto de inimizade e de negatividade do inimigo faz com que as destruições e as devastações adquiram um caráter positivo. O rei assírio é sempre bom e justo, o inimigo mentiroso, mau e impuro55.

ROUX, op. cit., p. 361-362. PORTER, 2005 apud. REDE, 2009, p. 136. 53 REDE, op. cit., p. 136. 54 Cf. ROUX, op. cit., p. 310. 55 GLASSNER, 1993, p. 111 apud POZZER, 2010, p. 121-122. 51 52

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É diante desta conjuntura que o rei converte-se em fator de equilíbrio cósmico, atuando nas dimensões humanas e divinas da existência, sendo o responsável por garantir o bom curso da natureza e do universo, tal como pelo estabelecimento e manutenção das normas de conduta e das regras de convivência no plano social56. Para obter êxito no exercício dos seus atributos, o soberano faz uso da noção de kittum57 e de mîsharum58. Podemos compreender, com isso, que a guerra era vivenciada como parte do comportamento dito civilizado, veículo de manutenção da ordem e instrumento de regulação do equilíbrio cósmico. Em outros termos, as guerras levadas a cabo pelo soberano assírio, no exercício constante de luta contra as forças do caos, eram justificadas pela ideologia político-religiosa dos assírios59. Esta estrutura composta por diversos elementos em relação pode, portanto, se constituir como um sistema que se afirma como condição prévia e necessária para ele existir60. O sistema enquanto conjunto de elementos que interagem mutuamente pressupõe o conceito de estabilidade, pois um ambiente caótico impossibilita a inter-relação dos elementos que o compõe. Porém, o sistema transcende a mera inter-relação das partes e sua organização no todo. O sistema é autorregulação, assegurada pelo conceito de realimentação sistêmica, capaz de determinar a sobrevivência e, na incapacidade de se retroalimentar, a superação sistêmica61. Cabe, assim, ao sistema criar mecanismos que possibilitem assegurar sua permanência e conservação, tais como o desenvolvimento

LAFONT, 1995 e 1998; CHARPIN, 2005a apud. REDE, op. cit., p. 137 Termo, derivado de uma raiz que significa “ser/tornar estável”, que pode ser traduzido por “verdade”, “justiça”, “correção”, “equilíbrio” e indica um atributo mais geral do soberano enquanto responsável pela ordem social, através de um exercício contínuo de zelo e cuidado, e de um combate a todas as manifestações das forças do caos. 58 Palavra que pode ser, igualmente, traduzida por “justiça”, mas que implica uma ação mais dirigida por parte do soberano, uma interferência ativa na vida social através de um decreto. Deste vocábulo que deriva a origem de um epíteto real frequente: shar mîsharim, isto é, “rei de justiça”. 59 ROUX, op. cit., 310-311. 60 CÂMARA JR., 1972 apud. DEMO, 2012: 204. 61 DEMO, op. cit.: 206-208. 56 57

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artístico-escultórico empregado nas paredes das Salas do Trono dos palácios imperiais neoassírios. Nesse sentido, podemos concluir que o Estado neoassírio estabeleceu elementos simbólicos que permitiram manter a estrutura sistêmica imperial em um patamar de equilíbrio e ordenamento através do uso de representações sociais formuladas e veiculadas nas paredes dos palácios imperiais neoassírio. Assim, a própria estrutura arquitetônica dos palácios constituía-se como elemento retroalimentador do sistema e depositário das prerrogativas estatais neoassírias.

SALA DO TRONO E A PRODUÇÃO SIMBÓLICA DO ESPAÇO ARQUITETÔNICO A construção de palácios esteve relacionada às necessidades de guerra que, outrora, exigiram um maior desenvolvimento da autoridade política e militar 62. Enquanto uma instituição e parte do aparato de Estado, o palácio neoassírio tornou-se foco de atividades administrativas, burocráticas, industriais, cerimoniais e residenciais63, devendo possuir algumas características básicas para ser definido enquanto tal: a presença de um pátio central, de muros com uma entrada central e evidências de uso residencial 64.

POZZER, 2003, p. 62. TAKLA, op. cit., p. 116-117. 64 Ibid., p. 120. 62 63

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Planta 1: Palácio Noroeste de Assurnasipal II, em Kalhu. Fonte: ASCALONE, 2006, p. 48.

Diante disto, podemos constatar que a organização básica de um palácio neoassírio (ver Planta 1) é composta de uma parte pública65 e de outra privada66, sendo que a articulação das duas partes palaciais se dá por meio da Sala do Trono, que desempenha a função principal de abrigar o Trono e as cerimônias relacionadas à realeza 67. E mais: ao colocar a Sala do Trono no centro do palácio o rei do século IX a.C. poderia querer exprimir a mensagem de que assim como a sala do trono é o coração do palácio, o palácio é o coração do Estado68. A Sala do Trono constitui-se, assim, como um espaço fundamental na arquitetura palaciana, definido materialmente por limites, fechado mas acessível, capaz de conter um certo número de pessoas, com uma eventual focalisação sobre um ponto particular, sobretudo aonde estava localizado o trono, o móvel que define a especificidade da Sala69. A Sala do Trono é, portanto, o local no qual o rei exerce as suas funções de soberano. Dentre elas, o soberano deve traduzir na prática, pelos seus atos, um dos atributos

Ala palaciana chamada de Babanu, mais aberta, externa, de uso público. Ala palaciana chamada de Bitanu, mais fechada, interna, de uso privado e residencial. 67 MARGUERON, 2007, p. 96. 68 Cf. WINTER, 1993, p. 36 apud. TAKLA, op. cit., p.173. 69 MARGUERON, op. cit., p. 70-73. 65 66

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essenciais e irrenunciáveis da realeza: manter o equilíbrio cósmico, estabelecido pelas divindades, e pelo qual o rei é o responsável delegado no mundo dos homens. Dentre outras formas do exercício contínuo de combate a todas as manifestações das forças do caos, o soberano assírio é era o responsável pela supervisão e aprovação das atividades de confecção de relevos parietais70. Isto está relacionado à finalidade da arte mesopotâmica como sendo prática e não puramente estética71, na qual as cenas representadas adquirem presença, constituindo maneiras de expressar poder e religiosidade ao pretender representar a realidade verdadeira e completa e não a aparente. Nesse sentido, a arte é uma fonte lógica para o estudo do poder em uma sociedade, ao passo que é um instrumento fundamental ao reforçar a ideologia para as massas através de suas exibições. Logo, as representações alargam e fortalecem mensagens existentes que aparecem em outras formas, sendo efetivas, sobretudo na afirmação do poder e da ideologia, além de conterem evidências visíveis de atitudes explícitas e implícitas dos artistas, ou das posições que passaram a adquirir72. Portanto, a imagem tem ação, agenciando significados que transcendem objetos. As imagens, com isso, são responsáveis por psicologizar os signos iconográficos, imprimindo valor a eles. Por sua força impressiva, estas imagines agentes são inesquecíveis e por isso podem ser utilizadas como suporte memorativo para conceitos mais pálidos73, podendo ser (e foram) utilizadas como suporte visual que legitimava o poder e a soberania neoassíria. De tal modo, as pessoas sabem, sem pensar, o comportamento que é esperado delas assim que veem estes símbolos relevantes74. Isto só é possível por meio de representações sociais homogêneas e vividas por todos os membros de um grupo, sendo capaz de prepará-los para pensar e agir de modo uniforme, podendo exercer uma coerção sobre os indivíduos75. PALEY, 1977, p. 534-535. Cf. MOSCATI, 1985. 72 MOLYNEAUX, 1997 apud. TAKLA, op. cit., 36-38. 73 Cf. ASSMANN, 2011, p. 239. 74 RAPOPORT, 1990, p. 46. 75 Cf. MOSCOVICI, 2001, p. 47. 70 71

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Desta forma, as representações sociais são uma forma de conhecimento socialmente elaborada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social76, de modo que a estrutura imagética da representação se torna guia de leitura e, por generalização funcional, teoria de referência para entender a realidade77, já que a sociedade se representa a si mesma naquilo que tem de distinto, de próprio78. Desta forma, podemos identificar na decoração do palácio a expressão das quatro características básicas do império assírio: sucesso militar, dedicação aos deuses, proteção divina e prosperidade para a Assíria79. A decoração de palácios imperiais neoassírios, portanto, convertem-se em expressões da cultura assíria, carregados de significados, ideias, crenças, mitos, ritualizações e funcionalidades. Com isso, os relevos de parede podem ser entendidos enquanto representações sociais dos aspectos políticos, sociais, econômicos e religiosos do Império que, por sua vez, fazia uso de suportes escultóricos para legitimar o poder dos governantes perante os seus súditos e, por extensão, servindo de objeto de admiração da própria realeza na perpetuação de sua imagem e de seu poder 80. Logo, podemos identificar os relevos parietais enquanto instrumento de preservação do equilíbrio cósmico, de manutenção da ordem imperial e de glorificação da realeza.

RELEVOS PARIETAIS: REALEZA, SOBERANIA E EQUILÍBRIO CÓSMICO No que tange aos relevos parietais, é imprescindível frisar que as lajes esculpidas nas paredes dos palácios teriam sido tomadas de empréstimo dos neo-hititas81, sobretudo a partir do reinado de Assurnasirpal II. Contudo, a maturidade artística dos relevos de Assurnasirpal II pode aludir a uma eventual influência vinda do Oeste, possivelmente dos JODELET, 2001, p. 22. Ibid., p. 39. 78 MOSCOVICI, op. cit., p. 52. 79 Cf. RUSSELL, 1998 apud. TAKLA, op. cit., 171. 80 Cf. POZZER, op. cit., p. 129 81 ROUX, op. cit., 373. 76 77

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relevos de Carchemish82. Isto pode demonstrar, aliás, que os “empréstimos” assírios indicam o reconhecimento do valor da tradição cultural dos seus vizinhos do Oeste 83. Fazendo usufruto de influências artísticas estrangeiras, portanto, os reis assírios passam a coordenar a confecção de relevos nas paredes dos palácios imperiais. Este empreendimento, porém, exigiam um grande gasto de tempo e de custo, visto que a Mesopotâmia Setentrional não possuía minas de pedras, necessárias para a produção desse tipo de arte, o que exigia a importação de blocos de pedra de regiões territorialmente afastadas das capitais. Ainda que fosse custoso, esse tipo de composição sobre pedra apresentava a vantagem da longevidade e do baixo ou nenhum custo de manutenção. Por conta disso, a confecção de relevos em pedra ficou restrita aos palácios de capitais imperiais, enquanto a pintura mural vai ser empregada em palácios provinciais, como Til Barsip, norte da Síria84. Assim, mais do que demonstrar a sofisticação artística que os artesãos assírios poderiam imprimir no trabalho sobre pedra, os relevos assírios carregam consigo a imbricação de um discurso de poder e riqueza que o Império, o rei que o governa e o deus Assur – baluarte e de onde emana o poder do Império – possuem. Assim, a arte assíria de esculpir relevos refletia motivações políticas, econômicas e religiosas.

TAKLA, op. cit., 159. POSTGATE, 1992 apud. TAKLA, op. cit., 163. 84 TAKLA, op. cit., 142-143. 82 83

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Relevo 1: Relevo do Palácio Noroeste de Assurnasirpal II (c. 870-860 a.C.) Kalhu (atual Nimrud). Fonte: British Museum. O Relevo 1, originalmente posicionado atrás do trono real, na Sala do Trono do palácio noroeste de Assurnasipal II, é um demonstrativo do poder e grandeza que é impresso à realeza, identificado no repertório das composições escultóricas das paredes palacianas. Neste relevo, o rei é representado duplamente nos dois lados do relevo. Assurnasirpal II aparece esculpido em trajes rituais e empunhando uma maça que simbolizava sua destacada autoridade. Do lado direito, a figura do rei faz um gesto de adoração em direção a uma figura divina – possivelmente Assur, o deus nacional da Assíria, ou Shamash, o deus do sol e da justiça – contida em um disco alado na parte superior central do relevo. Ele tem um anel em uma das mãos, símbolo mesopotâmico da realeza dada por Deus. Do lado esquerdo, por sua vez, a figura do rei faz um gesto votivo em direção a “árvore sagrada” – símbolo da fertilidade e da abundância dada pelos deuses – que domina o centro do relevo. Atrás de ambas as figuras do rei encontra-se um espírito protetor alado que abençoa e purifica Assurnasirpal usando um objeto em forma de cone para borrifar o líquido de um balde ritual. Esta composição escultórica, em virtude da posição que ocupava na Sala do Trono do palácio noroeste de Assurnasirpal II, desempenhara uma impressão visual significativa naqueles que frequentaram a Sala do Trono. O padrão de composição é de

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grande significação, constituindo-se um resumo visual das ideias principais acerca da realeza assíria: ela é a fonte da abundância proporcionada pelos deuses. Por conta disso, exigia-se retidão e reconhecimento da autoridade do soberano assírio, personificação da realeza e do poderio de Assur.

Relevo 2: Detalhe do Obelisco Negro de Shalmaneser III. (c. 825 a.C.) Kalhu (atual Nimrud). Fonte: British Museum. A autoridade do soberano assírio deveria ser reconhecida não somente pelos próprios súditos assírios, como também por povos estrangeiros. Nesse sentido, o Relevo 2 apresenta Jehu, o rei de Israel, prostrado ao centro do relevo, prestando homenagem ao rei Shalmaneser III. A presença de possíveis diplomatas israelenses acompanhando Jehu aponta para o caráter da cena: submissão diplomática diante da Assíria, na qual Israel põe-se sob domínio nominal do rei assírio, comprometendo-se a pagar tributos como forma de manutenção de autonomia. À frente do rei de Israel, Shalmaneser – identificado pelo toucado real – recebe o auxílio de um servo que lhe guarnece com um pálio, enquanto o soberano assírio faz gesto votivo com a mão em direção a uma estilização de disco solar alado contido na parte superior central do relevo. Investido das prerrogativas de chefe militar, soberano político e sumo-sacerdote de Assur, o rei assírio exerce sua destacada autoridade imperial pondo sob seu jugo os reis

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estrangeiros. Isto demonstra que, em alguns casos, era preferível aos estrangeiros colocarse sob dominação indireta do poderio assírio do que indispor-se contra o Império no campo de batalha. Quando optavam por confrontar-se no campo de batalha, o soberano assírio incumbia-se de estabelecer a ordem imperial por meio do poder e força do exército que chefia.

Relevo 3: Relevo do Palácio Central de Tiglath-Pileser III (c. 730-727 a.C.) Kalhu (atual Nimrud). Fonte: British Museum. Nesse sentido, o Relevo 3 representa um ataque assírio a uma cidade estrangeira, possivelmente Upa (?), na Turquia. Nele, os soldados assírios podem ser identificados por seus altos capacetes pontiagudos. À frente dos arqueiros, um aríete sobre rodas, provavelmente movidas por homens no campo de batalha, visto que os animais poderiam entrar em pânico. À esquerda do relevo, lanceiros assírios usando capacetes com crista, escudos redondos e tiras sobre o peito, podem ser identificados abaixo de uma fortificação e escalando-a através de uma escada. Na parte central inferior, um soldado assírio corta a cabeça de um soldado inimigo. A contagem de cabeças era o meio padrão de estimar o número de inimigos mortos. Cabe ressaltar que, em virtude da finalidade da arte assíria, não será constatável em nenhum relevo assírio a presença de um soldado assírio morto.

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Em virtude da análise de relevos contendo cenas de guerra, constatamos que a

representação das batalhas, em uma demonstração de poder hegemônico, era absorvida pelo imaginário daqueles que conviviam com o soberano e tinham a intenção de transmitir, para além das fronteiras geográficas do reino, o poderio bélico, com desenvolvimento técnico e tático de guerra, capaz de aprisionar, mutilar, sitiar e destruir todo aquele que subestimasse o exército imperialista assírio85.

Deste modo, a guerra converte-se em instrumento para manutenção da ordem imperial, garantindo o equilíbrio cósmico e a glorificação da realeza e da soberania religiosa de Assur. Ao esculpir estas cenas nas paredes dos palácios, a Sala do Trono converte-se em um microcosmo, no qual diversas dimensões estão em processo de interação, interpenetrando-se. Com isso, a composição escultórica da arquitetura reforça a instituição da realeza, a figura do soberano, o poderio de Assur e a proteção e justificação divinas ao Império. Portanto, os elementos simbólicos da religião são largamente utilizados no discurso de legitimação do exercício do poder. Destarte, o espaço arquitetônico neoassírio manifestava representações sociais, por meio das quais os homens poderiam decodificar o interesse imperial de manter as prerrogativas políticas e religiosas, estabelecendo e mantendo a ordem e o equilíbrio cósmico.

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