No Ceará não tem disso não: nordestinidade e macheza no forró contemporâneo

October 1, 2017 | Autor: Felipe Trotta | Categoria: Regionalismo, Música Popular Brasileira, Masculinidades, Música Nordestina
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NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO

Felipe Trotta

NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO Nordestinidade e macheza no forró contemporâneo

Esta obra encontra-se sob a licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 3.0 Brasil. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/br/.

Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Revisão: Monica Ramalho Foto da capa: © Fabiano Marques

Conselho Editorial

Estrella Dalva Bohadana (Faculdade de Educação/ Uerj) João Paulo Macedo e Castro (Departamento de Filosofia e Ciências Sociais/Unirio) Ladislau Dowbor (Departamento de pós-graduação da FEA/PUC-SP) Marta de Azevedo Irving (Instituto de Psicologia/UFRJ) Marcel Bursztyn (Centro de Desenvolvimento Sustentável/UNB) Micael Herschmann (Escola de Comunicação/UFRJ) Pablo Alabarces (Falculdad de Ciencias Sociales/Universidad de Buenos Aires) Roberto dos Santos Bartholo Junior (COPPE/UFRJ)



Felipe Trotta No Ceará não tem disso não: nordestinidade e macheza no forró contemporâneo / Felipe Trotta – Rio de Janeiro: Folio Digital: Letra e Imagem, 2014.

isbn 978-85-61012-32-8

1. Arte – Estética. 2. Gêneros musicais – Forró. 3. Costumes – Brasil. I. Título. II. Trotta, Felipe. cdd: 700

www.foliodigital.com.br Folio Digital é um selo da editora Letra e Imagem Rua Teotônio Regadas, 26/sala 602 cep: 20200-360 – Rio de Janeiro, rj tel (21) 2558-2326 [email protected] www.letraeimagem.com.br

Aos meus amigos do Recife

Sumário

Agradecimentos 9 Prefácio, por Micael Herschmann 11 Introdução 15 Nordestinidade 23  O Nordeste 28  Outras ideias sobre o Nordeste 39 A sanfona 45  O fole 53  Hereditariedade 57  O repertório 63 O amor e a safadeza 75  Dança, corpo e sexo 76  O amor romântico e o amor safado 83  O humor dos duplos sentidos 88 A macheza 97  A moral masculina 100  Nordeste, terra de machos 107  A sonoridade da macheza 114 Você não vale nada: outras trilhas 119  A trama e a trilha de Norminha 125  Pega e não se apega 130

A festa 137  O São João no Recife 139  Forró o ano todo! 143  Fé na festa 146  Frevo na latada 151 O Ceará metonímia

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Referências bibliográficas 163

Agradecimentos

Em primeiro lugar, às agências que financiaram a pesquisa, em suas várias fases. Facepe e CNPq nos estágios iniciais, Fundarpe em um período intermediário e FAPERJ pela finalização e edição. A Ângela Prysthon e Paulo Cunha, que me levaram pro Recife. A Tina, pela parceria constante. A Nina e Fernando, pelo núcleo niteroiense na capital pernambucana. A Jeder Janotti, Simone Sá e Thiago Soares, pelas muitas conversas em torno dos temas do forró. A Micael, pelo estímulo e pelo prefácio. Aos forrozeiros com quem conversei, que ouvi e vi nesse período de pesquisa, materializados metonimicamente nos (geniais) artistas Josildo Sá, Santanna, Maciel Melo, Petrúcio Amorim, Xico Bizerra e Targino Gondim. Aos bolsistas que participaram do projeto, me ensinando muita coisa sobre forró: Bruna Alquete, Paulo Thiago Camelo, Maria Cecilia Hunka, Débora Baia, Vagno Higino da Silva, Pedro Paz e Erlan Siqueira. A Gabi, por tudo: a vida, o amor, a viagem, o retorno, a felicidade. A Ana e Nina, por existirem!

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Prefácio

Repensando a relação da música com a identidade regional Por Micael Herschmann1 Ao longo da história do país a relação da música com processos de (re) construção e afirmação de uma identidade nacional e/ou regional é uma temática recorrente e bastante presente no debate nas diversas esferas da sociedade. Basta lembrar-nos da famosa “aproximação” que envolveu atores do mundo do samba (como Pixinguinha e Donga) e intelectuais modernistas (tais como Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Hollanda) nos anos de 1920 e 1930 (VIANNA, 1995) ou das polêmicas entre os partidários da agenda política-cultural dos Centros Populares de Cultura (como, por exemplo, Roberto Schwarz) e aqueles que – como Augusto de Campos – argumentavam a favor do trabalho dos músicos tropicalistas nos anos de 1960 (DUNN, 2009). Lendo No Ceará não tem disso não – resultado de uma densa investigação elaborada pelo pesquisador Felipe Trotta – é possível se recordar de outra polêmica mais recente (dos anos de 1990), a qual envolveu Ariano Suassuna (organizador do Movimento Armorial) e Chico Science (principal liderança do Movimento Manguebeat), ambos já falecidos. Ainda que algum tempo depois ambos fizessem publicamente as pazes, as tensões entre o então Secretário Estadual de Cultura e este expoente do manguebeat movimentaram durante alguns anos intensas discussões, as quais mobilizaram a cena musical de Pernambuco e mesmo do Nordeste. Assim, em meados dos anos de 1990, mesmo depois do sucesso, as críticas dos grupos conservadores ao manguebeat prosseguiram no Nordeste e Suassuna (um dos que defendia a abolição das guitarras elétricas, Doutor em Comunicação pela UFRJ, pesquisador do CNPq, professor do PPGCOM da UFRJ, onde também coordena o Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação (e-mail: [email protected]).

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tal como fizeram os “puristas” que condenaram a Tropicália nos anos de 1960) recusava-se, por exemplo em entrevistas, a chamar Chico Science pelo nome artístico, traduzindo-o para “Chico Ciência”. Certa vez, inclusive, “avisou” ao cantor através dos veículos de comunicação: “faça música brasileira, que aí sim a gente conversa”. Este é um caso que indica como ainda é atual e necessário refletir sobre as “crises das identidades regionais” no mundo contemporâneo – marcado por rápidas mudanças, pela hiperconectividade das novas tecnologias e pelo conjunto de processos complexos que caracterizam a globalização – as quais afetam o imaginário e as construções identitárias. O livro de Trotta de certa maneira contribui para preencher algumas lacunas no meio acadêmico, especialmente no campo da comunicação no Brasil. Seduzido pelo debate sobre a crise da identidade regional nordestina, Trotta convida o leitor em No Ceará não tem disso não – que traz os resultados de uma longa pesquisa realizada entre 2008 e 2013 – a mergulhar no universo cultural do “forró pé de serra” e do chamado “forró eletrônico”. O pressuposto que orienta o livro é o de que especialmente o forró eletrônico tem buscado construir novos modelos de identidade nordestina, o qual continua preso a um forte referencial patriarcal que é constitutivo da ideia de “nordestinidade” construída na primeira metade do século XX. Assim, algumas ideias fundadoras dessa nordestinidade – o “erotismo”, a “festa” e “macheza” – são atualizados e tensionados pelo forró atual, de diversas maneiras (através não só das sonoridades, das letras das canções e performances, mas também pelas dinâmicas deste nicho de mercado musical). A tese do autor é a de que o forró ocupa certa centralidade no debate sobre a nordestinidade contemporânea, sendo um ambiente cultural privilegiado para se repensar os deslocamentos de significados da identidade regional tradicional. Talvez por sua condição de migrante (que viveu em Recife por alguns anos) – que, inclusive, ironiza de forma bem-humorada os preconceitos regionais (presentes no contexto brasileiro) no título desta publicação –, Trotta conseguiu analisar este conjunto de polêmicas com certo distanciamento crítico e de uma perspectiva que foge das explicações reducionistas e simplistas sobre essa dinâmica cultural regional. Nesse livro o autor brinda o leitor, por um lado, com uma análise muito perspicaz do mundo do “forró pé-de-serra”, analisando canções

Prefácio

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de artistas como, por exemplo, Alceu Valença, Trio Nordestino, Dominguinhos e Elba Ramalho, os quais desenvolvem interessantes estratégias para reificar uma “tradição musical de raiz”; e, por outro lado, faz um balanço das trajetórias de grupos como, por exemplo, “Calcinha Preta”, “Aviões do Forró” e “Garota Safada” – as quais, em geral, são marcadas pelo grande êxito e pelas intensas polêmicas que ganham invariavelmente repercussão na cena midiática – sublinhando como estes atualizam e seguem “reinventando a tradição” (HOBSBAWN e RANGER, 1997) da nordestinidade. Tomando como referências não só os discursos dos atores veiculados na mídia regional, nas entrevistas e em algumas incursões etnográficas, mas também algumas obras de cunho teórico-metodológico dos Estudos Culturais e da Etnomusicologia (que foram empregadas de forma interdisciplinar e bastante criativa), Trotta em seu livro parte da premissa de que as distinções entre o forró pé de serra e o eletrônico não são tão significativas como parecem a princípio: por trás do debate da “qualidade” o autor identifica e problematiza detalhadamente (e de forma inovadora) como há articulações entre as duas vertentes estilísticas deste gênero musical. Chama a atenção neste trabalho a maneira oportuna como o autor toma a declaração “desastrosa” de Chico César aos jornais (quando este artista assumia a função de Secretário de Cultura da Paraíba): a partir desta polêmica, Trotta procura evidenciar como o forró é ainda tomado como um importante marco identitário, “um símbolo de pertencimento, uma chave de compartilhamento de ideias, um ambiente de interação festiva e um eixo de negociações culturais”. Revisitando autores importantes do debate intelectual sobre “nordestinidade” – tais como Gilberto Freyre e Albuquerque Junior –, ao longo deste volume o autor toma as inúmeras polêmicas existentes como uma espécie de “pano de fundo”, no qual estão inseridas as articulações e tensões entre o forró pé de serra e o eletrônico. Assim, ao longo do livro Trotta analisa detalhadamente o repertório forrozeiro, destacando algumas temáticas, tais como “tradição”, “sexualidade” e “qualidade”, são mais socialmente acionadas que outras, isto é, ele busca refletir as razões destes tópicos seguirem acumulando mais investimento por parte dos atores nos processos de (re)construção desta identidade regional. Portanto, ao longo dos capítulos finais, o autor ofe-

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rece pistas valiosas para se compreender melhor a sensação de “crise” que envolve o “panteão identitário nordestino”. Segundo Trotta, há uma dificuldade por parte dos setores mais conservadores da sociedade local em se acostumar com um novo “estilo de vida” que de alguma maneira está ganhando visibilidade na experiência musical do forró eletrônico. Assim, vem emergindo um novo imaginário social, no qual o Nordeste configura-se como jovem e tecnológico; urbano e festivo; regional e globalizado. Antes de finalizar vale a pena ressaltar que este é um livro contemporâneo e inteligente, elaborado por um autor que além de não temer tratar de temáticas “espinhosas” (como demonstrou no seu trabalho anterior, O samba e suas fronteiras), também não receia salientar como preconceitos estéticos e sociais – ainda que velados – presidem os debates em certos contextos socioculturais. Portanto, recomenda-se o formidável No Ceará não tem disso não a todos os interessados em problematizar a regionalidade e o Brasil contemporâneo como uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008). Esta publicação certamente cativará a todos os interessados em repensar de que maneira as elaborações (que envolvem sonoridades, letras de canções e performances) podem ser negociadas, conquistando lugares significativos no “imaginário” (LEGROS et al., 2007) de segmentos expressivos da sociedade.

Referências ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. DUNN, Christopher. Brutalidade Jardim. São Paulo: UNESP, 2009. HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. LEGROS, Patrick et al. Sociologia do imaginário. Porto Alegre: Sulinas, 2007. VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

Introdução

Migrante, cheguei ao Recife em fevereiro de 2007 para atuar como professor na Universidade Federal de Pernambuco. Ao chegar, contagiado pela efusiva comemoração do centenário do frevo e de sua escolha como patrimônio cultural do Brasil, imaginei que era o frevo a música mais significativa da cidade. A simbiose entre o carnaval, o Recife e o frevo era velha conhecida minha (e, acredito, de todos brasileiros interessados em música), e naqueles dias iniciais, o gênero me servia de inspiração para pensar a música naquela minha nova cidade. Os ecos insistentes dos compassos iniciais de Vassourinhas e as sinuosas melodias de apologia da cidade como Voltei, Recife e Último regresso confirmavam meu interesse e a importância do frevo na ambientação sonora da “Veneza brasileira”. Porém, ao final do carnaval, o frevo calou. Foi possivelmente o silêncio das cinzas do centenário do frevo que despertou meus ouvidos para outros sons que me cercavam. Os sons eletrônicos do brega recifense, a liberdade estética roqueira da “cena independente”, acompanhados pelo batuque constante do maracatu nas esquinas formavam uma polifonia instigante e desafiadora. Nesses momentos iniciais, visitei cocos, caboclinhos e até rodas de samba em diversos lugares da cidade, tentando ouvir e conhecer suas sonoridades. Aos poucos, nessas incursões, o forró se tornou onipresente. De algum modo, o toque da sanfona e as novidades eletrificadas do forró eletrônico captaram minha afetividade auditiva mais do que qualquer outro som. Após alguns meses, tomei contato com alguns “clássicos” do repertório do forró, até então inteiramente desconhecidos para mim como Tareco e mariola, Cidade grande e Anjo querubim. Ao lado deles, Tome tome, Beber, cair e levantar e a Bicicletinha chamavam a atenção 17

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para a pluralidade de estilos do gênero. Até hoje não sei dizer exatamente o que fez com que o forró se tornasse meu objeto de estudo. Talvez o fato de ter experimentado um movimento migratório contrário ao fluxo que povoou o imaginário sulista sobre Nordeste tenha sido fator significativo. O forró também representou para mim uma chave para compreender melhor a cidade, o estado e, por extensão, parte de certa visão sobre a região, que se apresentavam cercados de mistérios e riquezas para mim. Com a intensificação do contato com o repertório e artistas ligados ao forró, pude perceber uma constante reiteração de uma divisão mercadológica entre as bandas de forró eletrônico e os artistas identificados com o forró pé de serra, que funcionava como uma espécie de divisão entre qualidade e não qualidade. A tensão dessa distinção envolvia múltiplos aspectos que despertaram minha atenção e me fizeram mergulhar no universo do forró, desvelando questões que se revelam na organização deste texto. A identidade nordestina é uma espécie de pano de fundo desse debate, que se materializa no repertório forrozeiro passando por diversas outras temáticas igualmente candentes como a sexualidade, a tradição e a qualidade. “Pé de serra” e “eletrônico” formam, em certa medida, duas trincheiras conceituais a partir das quais tais temáticas são pensadas, processadas e negociadas. Contudo, com o decorrer da pesquisa, comecei a identificar que por trás dessa fissura aparentemente inconciliável, há várias ressonâncias, continuidades e rebatimentos recíprocos entre as duas vertentes estilísticas do gênero, que matizaram outra possibilidade de interpretação cultural sobre a circulação do forró na sociedade. Este livro parte da premissa de que as distinções entre o pé de serra e o eletrônico não são tão fortes quanto parecem ser. Ou, pelo menos, se o são, contêm ao mesmo tempo uma série de aproximações e escondem, como aposta o pesquisador e músico Climério Santos, uma infinidade de estilos forrozeiros que não se encaixam nessa divisão polarizada. O objetivo deste trabalho, contudo, não é discutir a polarização ou suas consequências. A intenção aqui é mapear pontos de contato, divergências, e discutir algumas ideias que são processadas pelo forró no Nordeste em seus diversos estilos, numa tentativa de interpretar pensamentos, ações e valores compartilhados através da experiência musical. Neste percurso, passamos por ideias, conceitos e posições que circulam entre

Introdução

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os Estudos Culturais e a Etnomusicologia, sem ponto fixo de dogmatismo disciplinar, buscando colher os louros das esfumaçadas fronteiras entre tais campos de saber, pesquisa e reflexão. Certo dia, visitando a família nas férias, experimentando um sentimento estranho de saudades do Recife e das coisas do Nordeste, coloquei para tocar a gravação de Flávio José para o belo xote Espumas ao vento, de Accioly Neto. Aos primeiros acordes da introdução, ouvi de um parente próximo a frase “Chegou o nordestino”, proferida num misto de surpresa (afinal, sou carioca), preconceito e ironia. Sorri meio sem jeito e fiquei pensando sobre a força expressiva da sanfona, do xote e do repertório forrozeiro como um todo. Pensei sobre o preconceito, sobre a imensa carga simbólica que cerca a ideia de “Nordeste” e todas as questões culturais que estão associadas a ela e à sua música mais característica. O forró é um marco identitário, um símbolo de pertencimento, uma chave de compartilhamento de ideias, um ambiente de interação festiva e um eixo de negociações culturais. É, ao mesmo tempo, um evento social fortíssimo, um repertório de imagens, sons e narrativas, um espaço de circulação mercantil, um produto comercial, um alvo de disputas, uma ponte para hierarquizações geográficas, sociais e políticas. Fazer pesquisa sobre música popular num país como o Brasil significa interagir com demarcações socioculturais que classificam hierarquicamente pessoas, hábitos culturais e grupos sociais. Significa ter que lidar com estratégias de distinção e segregação que, na música, moldam espaços de convivência, universos de possibilidades afetivas, envolvimentos sexuais, étnicos, etários, faixas de renda e escolaridade. E esse é o maior desafio da pesquisa: processar e interpretar essa ampla gama de questões incorporando sua complexidade e riqueza. A música é uma atividade humana através da qual as pessoas trocam um monte de coisas. São essas coisas (nossas coisas!) e essas pessoas (nós todos!), fundamentalmente, que me interessam. Escrito majoritariamente em Pernambuco, o “Ceará” do título e que acompanha parte das discussões aqui presentes é fundamentalmente uma metonímia, que fala genericamente sobre o Nordeste imaginado e romantizado e, mais especificamente, sobre o forró. Porém, esse Ceará metonímia por vezes se localiza e, internamente, se torna o local simbólico de embates estéticos, por ter sido o berço ideológico e comercial do forró eletrônico. Adicionalmente, o Ceará genérico brinca – conforme

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uma longa tradição de humor reconhecida como característica do Ceará-Estado real – com a indiferenciação entre todos os “nordestinos” que, aos olhos do Sul-Sudeste, se tornam “cearenses”, “baianos”, “paraíbas” ou “pernambucanos”, quase sempre de modo pejorativo. Também é premissa básica desta pesquisa questionar os cânones consagrados que balizam definições de critérios de qualidade das práticas culturais, e discutir as estratégias empregadas pelos variados atores sociais para enfrentar pensamentos musicais divergentes aos seus. Assim, o leitor não irá encontrar nessas páginas nenhum argumento que ratifique a tradição como esfera de valor e o universo pop e massivo como núcleos de diluição e má qualidade. Tal lugar-comum é frontalmente questionado a partir da noção de que a música é uma forma de pensamento e ação no mundo e que todas as práticas musicais são resultado de embates valorativos e da busca por uma melhor qualidade, atingida ou não de acordo com critérios que também não são fixos. Metodologicamente, este livro foi escrito principalmente a partir de gravações, entrevistas e muitas leituras. As gravações funcionam como fontes primárias de acesso ao repertório do forró, entendido aqui como um grande acervo de músicas, pensamentos, sonoridades e clichês musicais. As entrevistas, por sua vez, permitiram um acesso a informações não sistematizadas fornecidas por atores importantes do universo do forró e foram produzidas em diversos contextos, também com variados graus de formalização. Numa estratégia um tanto anárquica de coleta de dados, espalhada por mais de seis anos e com a colaboração de diversas pessoas, as informações das músicas foram complementadas com uma minuciosa pesquisa em material de mídia impressa (notadamente os 3 principais jornais de Pernambuco, entre 2003 e 2010) e diversas incursões ao “campo”, que, na verdade, resumiram-se a idas divertidas a shows de forró com variados graus de profissionalização (centradas basicamente em Recife, mas também incluindo Natal, Fortaleza, João Pessoa, Campina Grande, Olinda, Petrolina e Garanhuns). Não seria preciso chamar essas incursões de etnografias, funcionando muito mais como “entretnografias”, mas convém observar que elas foram fundamentais para o desenvolvimento das reflexões sobre forró aqui presentes. No primeiro capítulo, discutirei a ideia de nordestinidade, que pavimenta o terreno de debates sobre o forró. Não se trata de um capítulo

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teórico de interpretação sobre a construção da noção de Nordeste e da identidade regional, mas uma porta de entrada para as ideias que circulam sobre o forró como elemento de afirmação desta identidade, matizadas fortemente através da polêmica entre pé de serra e eletrônico. As representações do Nordeste no imaginário compartilhado da região são alvo de contínuo reprocessamento, que é articulado por vários agentes e instituições. O forró talvez seja um dos elementos mais importantes dessas negociações. O segundo capítulo é dedicado à discussão sobre a sonoridade do forró, que tem na sanfona seu instrumento principal. Nele, argumento que o processo de sedimentação da codificação da sanfona como som do forró consolidou como hegemônico certo imaginário sobre o Nordeste e sobre o gênero, que tem sido problematizado através da utilização não convencional da sonoridade padrão. O som é o elemento mais “audível” do embate entre pé de serra e eletrônico, tradução pontual da longa tensão entre tradição e modernidade. O capítulo 3 está dedicado às temáticas do forró: o amor e, sobretudo, a safadeza. Dança, resfolego da sanfona e letras picantes moldam um repertório altamente sedutor e erótico, que se romantiza em parte significativa das canções. Se o forró sempre foi uma dança, música e eventos “safados”, sua trajetória opera muitas vezes no limite do permitido e do proibido, passando fronteiras aqui e ali e acionando regras e violações continuamente. A masculinidade é assunto do capítulo quatro, desdobramento direto do tipo de safadeza que o forró aciona. O repertório do forró é construído a partir da narrativa de uma visão masculina sobre sexo e gênero. Os referenciais de valentia e bravura que moldam o imaginário estereotipado do nordestino encontram-se processados nas letras e nas sonoridades do forró tradicional, sendo remodeladas no forró eletrônico. Terra de cabras-machos e de “reis de cabaré”, o nordestino forrozeiro se atualiza em torno de modelos convencionais de masculinidade, a partir dos quais toda a festa do forró irá se desenvolver. É nessa chave de interpretação que os códigos de valor (tanto estético quanto moral) irão se sedimentar e ser negociados. No capítulo 5 será analisado o caso da canção Você não vale nada mas eu gosto de você, tema da personagem Norminha da novela Caminho das Índias (Rede Globo, 2009), interpretada pela banda Calcinha Preta. Na canção e na

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novela, uma grande tensão moral sobre a conduta sexual da personagem servirá como processamento do certo e do errado no casamento e na sociedade. O protagonismo masculino se inverte, sem reprocessar os códigos machistas de divisão de gêneros, mas deixando brechas para algumas ambiguidades, extremamente interessantes para o estabelecimento do debate, no caso, amplificado pela principal emissora nacional de televisão. Assim, chega-se ao último capítulo que tem como tema o ambiente no qual as negociações morais e estéticas do forró se processam: a festa. A ideia de festa atravessa todo o repertório forrozeiro, desde o sucesso inicial de Luiz Gonzaga até o mais recente lançamento das bandas atuais, impregnando de alegria e de energia sexual (típica das festas) os embates, as conciliações e as paqueras da experiência musical rural e urbana. No vai e vem da dança, das várias sugestões eróticas e na performance vigorosa da sanfona ou do naipe de metais, o forró se atualiza e protagoniza um reprocessamento dos referenciais de nordestinidade, sempre em crise. Na conclusão, o título reaparece dando forma às reflexões aqui presentes, buscando interpretar o que é o Ceará como metonímia de todo o Nordeste, o Ceará como locus do forró eletrônico, como terra do bom humor e como espaço entre sertão e litoral que disputa com outros estados e cidades (principalmente com Pernambuco, terra natal de Luiz Gonzaga) o protagonismo da circulação de forró e negociação de temáticas musicais nordestinas, forrozeiras e morais. O que tem ou o que não tem no Ceará-metonímia é certa noção de nordestinidade que, apesar de reprocessada e glamourizada em desfiles campeões de escolas de samba cariocas, retorna estereotipada em preconceitos contra nordestinos que vão e voltam do Canadá (alguém ainda se lembra da Luíza?), Rio ou São Paulo. Atravessado por um conservadorismo machista ainda bastante forte em vários estados brasileiros e lutando para atingir um desejável cosmopolitismo, moderno e conectado, o “Nordeste” é uma construção em crise, mas que atua efetivamente como eixo de coesão interna, identificação externa e como prática musical sedutora e envolvente. Para finalizar essa introdução, convém esclarecer que um livro como este não pode ser escrito com muito distanciamento afetivo. Meu entusiasmo com o forró percorreu um caminho crescente no pe-

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ríodo da pesquisa, e hoje, sem dúvida, o repertório forrozeiro integra parte substancial de minha bagagem musical e afetiva e de todas as minhas playlists. O leitor poderá perceber minhas predileções nas escolhas dos artistas aqui discutidos, que não se encerram nas classificações rígidas das oposições entre pé de serra e eletrônico, incluindo desde a genial obra de Luiz Gonzaga à animação contagiante de Aviões do Forró. Uma cachacinha de Triunfo, um bode guisado (a carne, não a buchada!) com purê de queijo, feijão de corda e macaxeira cozida são bons acompanhamentos para as páginas que se seguem. Bom apetite!

Nordestinidade

Em abril de 2011, o cantor e compositor Chico César, exercendo cargo de Secretário de Cultura do Estado da Paraíba, declarou que, para os festejos juninos daquele ano, o governo estadual não contrataria as bandas de “forró de plástico”. Diante da polêmica de tal declaração, o secretário se viu obrigado a emitir uma nota à imprensa, publicada no dia 18 do mesmo mês, na qual “esclarece” aspectos de sua fala: Tem sido distorcida a minha declaração, como secretário de Cultura, de que o Estado não vai contratar nem pagar grupos musicais e

artistas cujos estilos nada têm a ver com a herança da tradição musical nordestina, cujo ápice se dá no período junino. Não vai mesmo.

Mas nunca nos passou pela cabeça proibir ou sugerir a proibição de

quaisquer tendências. Quem quiser tê-los que os pague, apenas isso.

O Estado encontra-se falto de recursos e já terá inegáveis dificuldades para pactuar inclusive com aqueles municípios que buscarem o

resgate desta tradição.

(extraído do site oficial do Governo do Estado da Paraíba, http://

www.paraiba.pb.gov.br/2011/04/18/chico-cesar-esclarece-apoio-a-

-eventos-juninos/ [Acesso: 26/04/2011]

O episódio apresenta alguns ingredientes interessantes para o nosso debate. Em primeiro lugar, evidencia a força do forró como símbolo da identidade nordestina. Através da atuação de vários músicos, compositores e intérpretes, assim como jornalistas, intelectuais e políticos, durante décadas de atuação no imaginário cultural do país, o forró se sedimentou como um signo sonoro dessa identificação. E esse é um dos assuntos desse livro. Mas as explosivas declarações do compositor pa25

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raibano travestido de político também colocam em cena as disputas culturais e estéticas que atravessam o forró no Nordeste contemporâneo. Aponta para uma cisão aparentemente inconciliável entre visões distintas sobre a própria identidade nordestina e mesmo sobre o pensamento musical e os conjuntos de normas morais que rege nossa vida cotidiana. Chico César integra uma corrente de pensamento dentro desse debate que atribui ao forró certa narrativa de nordestinidade, também encontrável em outros símbolos dessa “tradição”. Sua obra se situa de modo relativamente confortável na classificação “MPB”, reconhecida como de boa qualidade e primorosa na elaboração intelectualizada de harmonias, ritmos e jogos de palavras. Em suas canções, Chico fala recorrentemente de uma nordestinidade atravessada pela identidade negra e por questões sociais (SANTOS, 2009). Desde o uso de ritmos identificados com as tradições populares da região como o sirimbó, o boi de reisado e o coco até a construção de personagens e eventos que narram o pertencimento regional, o compositor processa uma identidade nordestina complexa e sofisticada, acionando vetores complementares de identificação. Assim, constrói uma personalidade pública polêmica, difundindo posicionamentos políticos eloquentes, quase sempre condenando o preconceito contra os negros e contra os nordestinos. Contudo, essa posição “politicamente correta” apresenta contradições. Na canção Odeio rodeio (2005), o artista pede permissão para desabafar e, supreendentemente, explicita seu preconceito contra os rodeios e a música identificada como “sertaneja”: Odeio rodeio e sinto um certo nojo

Quando um sertanejo começa a tocar

Eu sei que é preconceito, mas ninguém é perfeito Me deixem desabafar

O desabafo do cantor e compositor não é curioso apenas por ser proferido por um artista engajado na luta contra o preconceito, mas por servir também como exemplo da complexidade dos conceitos e preconceitos que cercam as preferências musicais. Simon Frith sublinha a interconexão entre aspectos emocionais e ideológicos das manifestações de gosto e, sobretudo, das rejeições.

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Os sentimentos, especialmente os sentimentos de gostar e não gostar

– de músicas, de pessoas – são sempre surpreendentes, contraditórios

e impulsivos; eles aparecem contra o que era esperado que nós sen-

tíssemos ou o que gostaríamos de sentir. (...) Quando nomeamos algo

como “música ruim”, então, é porque é uma música que nos enerva

ou ofende, que não queremos ouvir. Por favor, toque outra coisa! Eu

tenho que ouvir isso? É algo que machuca, que dói, que entedia; é

feio, dolorido; isso me deixa louco! (FRITH, 1998:73)

Nesse terreno repleto de ambiguidades, de ânimos exaltados e de sentimentos feridos, o veto declarado de um secretário de cultura às bandas de forró eletrônico é um exemplo dos embates que cercam as práticas musicais em geral e o forró em particular. Chico César, evidentemente, não está sozinho nessa luta. Em 2005, um Manifesto que matizou a criação da Sociedade dos Forrozeiros Pé de Serra e Ai! em Pernambuco, as mesmas ideias aparecem de forma ainda mais clara: A SOCIEDADE DOS FORROZEIROS PÉ-DE-SERRA E AI!!!, grupo

constituído pelos signatários, vem a público para conclamar o governo, a comunidade artística, ao povo da Nação Nordeste a unirem es-

forços por um pacto em defesa da nossa mais autêntica cultura popular, a música regional nordestina. A semente um dia plantada pelo rei do

Baião, em Exu, está a merecer uma maior consideração por parte e

todos, de forma a garantir preservação da música popular nordestina, hoje tão discriminada, não obstante a qualidade de seu conteúdo

melódico e poético. É hora de abrirmos os olhos, todos, de forma a não permitir que a riqueza da musicalidade regional, carregada de

emoção, paixão e amor telúrico se esvaia, por nossa falta de atenção.

A vocação dessa música é a beleza da história de um povo, seus cânticos

e crenças, seus sonhos, suas alegrias. É nosso dever preservar e dar ao

público em geral uma oportunidade de apreciar e conhecer sua magni-

tude, cuja alma, por ser nordestina e universal, legitima-a, costurando

sua sonoridade, os traços de sua história. Enfim, não podemos privar

o povo desse cantar nordestino tão bonito, porque carregado de afeto

e amor. (Disponível no site , acesso em:

16/06/2008).

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Escrito pelo compositor e militante Xico Bizerra, o manifesto apresenta a tensão entre a “autenticidade” do forró dito pé de serra e a “artificialidade” do forró eletrônico, não nomeado no texto, mas presente nas entrelinhas e na própria motivação do chamamento como um detonador que faz conclamar a “defesa da mais autêntica música popular”. As menções à “história de um povo” e à “alma nordestina” balizam um discurso de forte carga emotiva, no qual um sentido preservacionista herdeiro do folclorismo aparece como eixo de disputas mercantis e simbólicas no mercado cultural da cidade e do estado. Xico Bizerra é ator importante nesse processo, articulando conexões entre forrozeiros respeitados, a intelectualidade e a classe política em Pernambuco. Em 2010, recebeu o título de cidadão do Recife, proposto pelo vereador Josenildo Sinésio (PT) e de cidadão de Pernambuco, concedido pelo deputado estadual Ângelo Ferreira (PSB). Na justificativa do projeto de resolução na Câmara Estadual, o compositor é descrito como um “cearense de coração pernambucano” e possuidor de “raízes nordestinas”, de onde extrai sua paixão “pela beleza melódica e poética do forró pé de serra” e o “amor pelos sertões” 2. A fundação da Sociedade é um marco nas disputas simbólicas e mercantis do forró no Estado de Pernambuco, sendo ao mesmo tempo fruto e reiteradora do processo de “bipolarização do forró” (SANTOS, 2014: 115). Diferente de seu xará paraibano, Xico Bizerra (a grafia com “x” é intencionalmente vinculada a uma apropriação inculta do português falado, tomado por ele como elemento estruturador no Nordeste sertanejo) apresenta uma coerência conceitual irrepreensível, compondo uma obra que se apresenta como defesa veemente de sua visão sobre o Nordeste, vinculada ao sertão e ao forró tradicional. Interessante, nesse sentido, é a estruturação de seu site pessoal, cuja iconografia e vocabulário remetem diretamente ao universo do sertão, berço de sua noção de nordestinidade. O neologismo “Forroboxote” serve de título para o site e para todos os seus 10 discos autorais, produzidos de forma independente com recursos próprios ou com apoio de editais de fomento à cultura lançados por órgãos públicos. O projeto inicial de concessão do título de cidadão de Pernambuco está registrado sob o número 1725/2010 e disponível através do portal “Excelências” da Transparência Brasil (http://www.excelencias.org.br/@candidato.php?cs=16&id=2763 [Acesso em: 29/03/2011]). 2

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No site de Xico e em boa parte do imaginário compartilhado sobre o forró, a ideia de que o gênero é a expressão de uma música típica do sertão se materializa em diversos veículos e manifestações artísticas e discursivas. Num texto publicado em 2008 no Jornal do Commercio sugestivamente intitulado “Eu quero meu sertão de volta”, o jornalista e cineasta Anselmo Alves apresenta um discurso semelhante: Nos últimos dez anos tenho viajado frequentemente pelo Sertão de Pernambuco e assistido, não sem revolta, a um processo cruel de

desconstrução da cultura sertaneja com a conivência da maioria das

prefeituras e rádios do interior. Em todos os espaços de convivência,

praças, bares, e na quase maioria dos shows, o que se escuta é música de péssima qualidade que, não raro, desqualifica e coisifica a

mulher e embrutece o homem. (JC, 21/03/2008)

Anselmo Alves aponta para dois aspectos significativos nesse processo: a sociabilidade e a moral. Segundo o jornalista, a perda da qualidade estética e o desvio moral produzido pelo forró eletrônico traz como consequência fundamental a “desconstrução da cultura sertaneja”, eixo de uma identidade regional erguida durante décadas por diversos atores sociais como instrumento de coesão entre os estados que compõem a região Nordeste. Assim, a referida desconstrução tenderia a dissolver

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os modelos de sociabilidade rural consolidados no sertão, levando junto seus códigos comportamentais e seu quadro de valores éticos e estéticos (é interessante como a ideia de “péssima qualidade” musical é apresentada lado a lado com as consequências sexuais das representações de gênero no repertório referido pelo jornalista). Todo esse debate que envolve o secretário de cultura, o compositor e o jornalista espalha-se por vários estados nordestinos e reverbera em diversas mídias (músicas, festas, shows, jornais, revistas, programas de TV, rádio, debates, editais, propagandas, plataformas de governo, projetos de lei, concursos etc.). O que está em jogo, fundamentalmente, é a eficácia da associação entre uma identidade regional e uma prática musical. O forró é música do Nordeste e as ideias que circulam em torno do termo “Nordeste” são reciprocamente afetadas e ativadas pelas práticas sonoras operadas dentro da classificação forró.

O Nordeste Tentando responder sobre quais seriam as características típicas da nordestinidade, Maura Penna elenca elementos que integram esse corpo imaginário e que são efetivos na construção simbólica dessa identidade regional: Talvez o forró e o baião, o chapéu de couro, carne de sol com feijão

verde, ou macaxeira com manteiga de garrafa. Ou a renda de bilros,

o cordel, o repente, o cego cantador de feira e por aí vai. [...] O típico, no caso, é um elemento que reúne em si os caracteres distintivos do

Nordeste e dos nordestinos, servindo de modelo; um elemento isolado, uma parte, representando o todo, o conjunto. (PENNA, 1992:75)

A função simbólica do “típico” é fornecer coesão e narrativas sobre o que é identificado a ele. O reforço de elementos “típicos” e sua repetição consolidam um imaginário compartilhado em torno de tais símbolos. Ao mesmo tempo, fazem referência constante ao conjunto de ideias que tais elementos encarnam e reiteram. Apenas como exemplo, podemos ilustrar com a caracterização de alguns dos mais famosos restaurantes “típicos” das capitais nordestinas que, desde o nome, o cardápio, a de-

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coração e a indumentária dos funcionários, reforçam o pertencimento da identidade nordestina ao universo do sertão. A “Bodega do Véio” em Maceió, o “Parraxaxá” em Recife ou o “Magai” em João Pessoa e Natal têm como pano de fundo para almoços (nem sempre, mas também) turísticos um repertório musical repleto de forrós, que acompanha a decoração dos restaurantes com referências a cangaceiros e vaqueiros, com acessórios de artesanato naïf com temas rurais, com paredes cobertas de barro. As mesas são forradas com tecidos de chita multicoloridos e as comidas típicas evocam o ethos sertanejo do feijão de corda, da carne de sol com macaxeira, dos pratos de bode e da cachaça. São esses símbolos que, reunidos, configuram uma narrativa de Nordeste hegemônica, que é eficaz por sua repetição e que se atualiza na manifestação de tais símbolos como vetores de identificação. Não é intenção deste livro percorrer o histórico do processo de construção da identidade nordestina nesses moldes. Tal debate já foi feito de forma bastante detalhada por diversos autores (ALBUQUERQUE JR., 2009; PENNA, 1992; ALVES, 2012). Convém apontar, apenas, que a ideia de “Nordeste” operou e continua operando como instrumento de coesão entre indivíduos e grupos sociais muito distantes entre si. O jogo das identidades é sempre um jogo de semelhanças e diferenciações, e no que tange às identidades geograficamente definidas, o componente fundamental de sua constituição é o compartilhamento de certo imaginário. Como sugere Benedict Anderson, “qualquer comunidade maior do que a aldeia primordial do contato face a face (e talvez mesmo ela) é imaginada. As comunidades se distinguem não por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas” (2008:33). E esse imaginário é formado pelos artefatos culturais produzidos e repetidos no interior dessa comunidade. Em torno de alguns elementos como os apontados acima, a nordestinidade é reconhecida e funciona como instrumento de identificação, utilizado de forma variada e muitas vezes conflituosa entre os habitantes da região. Nesse processo, a música atua de forma particularmente efetiva no estabelecimento de laços identitários e na imaginação de pertencimento compartilhado. Os hinos, cantos e repertórios de um “lugar” povoam afetivamente esse espaço com vivências individuais e coletivas que inculcam nos indivíduos um sentimento de coletividade e de pertencimento. As performances catárticas de execução e entoação coletiva

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do hino nacional brasileiro nos jogos de futebol da Copa do Mundo do Brasil em 2014 são um exemplo de afirmação dessa identidade nacional através da música, realizada, nesse caso, de modo particularmente enfático. Entoar o hino nacional ou alguns repertórios específicos significa interagir com ideias que fundam o pertencimento, reforçando laços afetivos e simbólicos. Me senti menos “estrangeiro” em Recife quando passei a dominar e fui capaz de cantar parte do repertório de frevos durante o carnaval ou do de forrós durante os festejos juninos. Saber cantar alguns refrões que notadamente acionam uma noção de pertencimento é fundamental para integrar afetivamente um migrante em um lugar, para localizar o distante. Conhecer as músicas “locais” é vetor de uma operação identitária (provisória, como sempre) que transforma o “eles” em “nós”. Integra e permite um sentimento de integração, de compartilhamento de ideias e sensações de reconhecimento e pertencimento. Ao mesmo tempo, a música sonoriza também um reconhecimento de uma identidade exógena. Os repertórios musicais projetam no espaço sonoro imaginários de alteridade, funcionando como símbolos de grupos sociais identificados como “eles”. Um exemplo ácido de exclusão musical é o processo de “demonização do funk” no Rio de Janeiro, iniciado na década de 1990 com sistemáticas associações à delinquência e criminalidade (HERSCHMANN, 2005) e continuado até os dias atuais com diversas narrativas de truculência policial e de perseguição ao funk nas favelas “pacificadas” da antiga capital federal. Exemplos semelhantes podem ser encontrados em várias regiões do país, onde a estratificação de nossa sociedade é em grande medida publicizada através de músicas que identificam, isolam, segregam e distinguem uns dos outros. Como afirma Straw (1991), a música popular, diferentemente do cinema ou da própria língua, costuma ser acionada como artifício de diferenciação mais até do que de identificação. Retornando ao rodeio de Chico César, a manifestação de “nojo” da música do “outro” é um vetor de desqualificação desse “outro”, mantendo um intencional afastamento (o nojo é um sentimento de repulsa intenso) de seu universo sonoro, simbólico e afetivo. Nesse sentido, o “outro” e seus códigos culturais fornecem elementos para o desenvolvimento de um sentimento que o afasta e denigre. O imaginário de “Nordeste” opera no cenário nacional como o “outro”, acionado pelo centro-sul hegemônico como região distante, ex-

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terna, diferente. Seus hábitos específicos, sotaque, comida, vestuário, paisagens e músicas serão tomados como elementos de diferenciação. Uma diferenciação que, nesse caso, se torna hierarquicamente inferior, construída através de depreciações e preconceitos. Em trabalho pioneiro sobre o preconceito contra o Nordeste desenvolvido no Sudeste do país intitulado O que faz ser nordestino?, Maura Penna discute o conjunto de representações simbólicas da região a partir de discursos midiáticos proferidos através da imprensa paulista e nacional sobre o fato então inusitado da eleição de Luiza Erundina para a prefeitura de São Paulo, em 1988. Segundo a autora, a eleição de uma mulher nordestina desconhecida no cenário político nacional ou mesmo local e oriunda de um partido de esquerda (o Partido dos Trabalhadores) produzia um fato novo que gerou debates sobre sua biografia. Examinando as matérias de jornais, revistas e as cartas de leitores enviadas a tais periódicos, Penna observa que a “nordestinidade de Erundina torna-se um estigma, capaz de fundamentar por si só, a atribuição de identidade e os julgamentos de valor” (1992:109). Valor esse, essencialmente negativo, construído a partir de um discurso no qual “a identidade nordestina surge como acusação, carregando uma apreciação eminentemente negativa, com conteúdos depreciativos e de inadequação” (idem:104). Sete anos mais tarde, seguindo raciocínio semelhante, Durval Muniz de Albuquerque Junior lança o que viria a se tornar um clássico das Ciências Humanas, A invenção do Nordeste e outras artes. Tanto Penna quanto Albuquerque Junior buscam identificar a formação discursiva da região Nordeste a partir de textos das primeiras décadas do século XX, atravessando fontes das ciências sociais, da política e das artes em geral. Nesse percurso, analisam as diversas estratégias de “invenção” da região, tentando investigar as razões para o preconceito. A criação de órgãos de ação política como o IOCS (Instituto de Obras Contra a Seca, em 1909) é mencionada por ambos como exemplos de uma invenção nacional da região em oposição ao “Sul”, matizando uma percepção sobre a divisão do país em universos territoriais e simbólicos desiguais: um desenvolvido e outro atrasado. O “Sul” seria o local do progresso, do cosmopolitismo, do dinheiro, da vida urbana, da modernidade. A cidade é o espaço simbólico do mundo moderno, da tecnologia e de valorações positivas. No polo oposto, o “Norte” (substituído politicamente

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pela classificação Nordeste a partir de interesses das elites locais) seria um espaço de conservação, de estabilidade, de regularidade, que se articula com o campo (ou, com mais frequência, com o “sertão”), espaço do idílico, do inocente, do antigo, da natureza hostil, do trabalho sofrido, da seca, da fome. Existe portanto, na construção da noção de Nordeste uma continuidade entre a região, a natureza e o sofrimento, matizados num espaço geográfico e simbólico atrasado. Diversos atores participaram dessa elaboração identitária, desde o final do século XIX até meados do século passado. Musicalmente, somente na década de 1940 que a narrativa de Nordeste começa a assumir explicitamente esse conjunto de tipos e estereótipos da região, através da atuação midiática de Luiz Gonzaga, a partir do Rio de Janeiro, capital federal. Em seu repertório referencial, a seca é um grande flagelo que produz o êxodo e a tristeza do sertão. Essa ideia atravessa clássicos como Asa branca (parceria com Humberto Teixeira e lançada em 1947), construindo uma associação bastante forte entre a nordestinidade e o sentimento de saudade, que cruza décadas como eixo afetivo do forró e da própria identidade regional. De certo modo, o sofrimento da seca e da distância é elemento estruturador da noção de Nordeste, a partir da qual o “sertanejo” e, por extensão, o “nordestino” se tornam classificações humanas relacionadas ao sofrimento. Um exemplo quase didático dessa aproximação é a letra da canção Gente sofrida, de Antonio Barros e Dezinho Queiroga, lançada pelo cantor Flávio José em 1996, com participação ilustre de Dominguinhos. É a sede, é a fome

É um sertanejo sem nome 

Que há muito tempo não come  Mas de fraqueza não morre 

Ele é que nem a aveloz 

Que sobrevive sem voz 

Mostrando sempre pra nós

Que é um valente não corre  O xique xique o inhambu

Assim também como tu Reclamam desse verão 

Enquanto a chuva não vem

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Se vive do nada que tem 

Olhando pró céu e pró chão  É um deus nos acuda

Porque o tempo não muda

É precisando de ajuda 

Pra consertar sua vida 

Os rios não correm mais  O sol queimou sua paz 

Me diga o que é que se faz 

Com tanta gente sofrida 

A cacimba de beber 

Qual boca aberta a dizer  O que será do sertão

Enquanto a chuva não vem  Se vive do nada que tem 

Olhando pro céu e pro chão 

O sol implacável, que seca os rios e queima a paz, provocando sede, fome e sofrimento se torna o algoz do “sertanejo sem nome”, que espera a chuva e a “ajuda”. No entanto, esse sofrimento não derruba o bravo personagem, que “não corre”, “é valente” e “de fraqueza não morre”. A mítica do habitante do sertão associa sofrimento e bravura, elementos estruturadores de certa narrativa de Nordeste atualizada pelo forró. Em Toada pro povo (de Paulo Matricó), lançada em 2005 pelo cantor Maciel Melo, a descrição do cotidiano do “povo” reforça a associação entre dificuldades de subsistência, a natureza hostil, o trabalho árduo e a coragem. É que me deu uma vontade de cantar

Uma toada improvisada pro povo do meu lugar Falando do valor do povo sofredor

Que é tão trabalhador e tem coragem pra lutar Cultiva sua terra na beirada da serra

Sua virtude intera com a semente que plantar

De manhãzinha quando o santo o galo canta

O mocambo se levanta e tira o lombo do jirau

Vai pro roçado e só volta de tardezinha

Come fava com farinha temperada na água e sal

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Lembrando do vaqueiro que abóia o dia inteiro Fiel ao fazendeiro só vive pra trabalhar

Tempo de apartação laça o boi no mourão E só tira o gibão na hora de se deitar

A sertaneja é prenda da Natureza

Tem a graça da beleza e a braveza do lugar

Vai a cacimba com o pote na cabeça

E volta antes que anoiteça com água pra se banhar

A partir de uma construção romantizada do sofrimento, do vaqueiro “fiel ao patrão” “que só vive pra trabalhar”, ou da sertaneja que “tem a graça e a braveza do lugar”, o povo sofredor elaborado discursivamente por esta canção e pelo imaginário estereotipado do forró (e além dele) alimenta-se precariamente, mas “tem coragem pra lutar”. Num jogo de campos semânticos, a identificação “povo do meu lugar” se especifica na continuação da canção, na qual a nomeação da região aponta para uma crítica com evidentes intenções de posicionamento político, ainda que derivado de uma postura subserviente e passiva diante do “poder” (tanto do governo quanto do “patrão”): Falar desse Nordeste, sertão cabra da peste

Se o poder investe tudo pode melhorar

Chegou televisão, ainda falta feijão

E a situação tá assim vou lhe contar

Por oposição, o imaginário descrito nas letras do forró pé de serra apresenta a “cidade” como local de uma modernidade que também representa perdas em relação ao ambiente sertanejo. A velocidade e a impessoalidade transformam a cidade também num ambiente hostil, “paraíso da loucura”, fonte de “ilusão” e de “solidão” onde o migrante – sertanejo – não consegue se encontrar, como nos versos de Cidade grande, do cantor e compositor Petrúcio Amorim (1993). Minha tristeza rejeitou tua alegria

Num belo dia quando eu pude perceber

Que o progresso é que faz do teu dinheiro Um cativeiro onde se mata pra viver

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Se nem o “progresso” da cidade e nem a natureza violenta do campo fornecem espaços confortáveis para o sertanejo, o terreno da imaginação e do afeto se tornam os principais mobilizadores afetivos de uma familiaridade territorial. A saudade e a esperança da chuva no sertão aparecem, assim, como vetores fundamentais para a expressividade do forró em sua narrativa sobre nordestinidade. Já em 1947 a esperança do retorno está associada ao “verde” da plantação: Quando o verde dos teus olhos Se espalhar na plantação Eu te asseguro, não chores não, viu Que eu voltarei, viu, meu coração (Asa branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)

Em outro clássico gonzagueano, intitulado Qui nem jiló (com Humberto Teixeira, lançado em 1950), o sofrimento não deriva das dificuldades de subsistência, mas da própria saudade que assola o personagemmigrante, amarga e dura. Porém se a gente vive a sonhar Com alguém que se deseja rever Saudade intonce aí é ruim Eu digo isso por mim Que vivo doido a sofrer

Para Albuquerque Jr., a ideia de saudade é fundadora da noção de Nordeste (2009:78). É sentimento que humaniza o sofrimento da seca e do sertão, e que se associa a deslocamentos espaciais e temporais. A distância e o passado se tornam textos de uma narrativa migrante, que revisita espaços e tempos inscritos afetivamente em memórias, e por isso romantizadas e suspensas. Trata-se de uma narrativa de identidade regional que se funda nessa suspensão. Um Nordeste onde o tempo descreve um círculo entre a seca e o inverno. Tempo do qual não participam não só o homem, mas os animais, as plantas e até os minerais. Uma região dividida entre momentos de tristeza e de alegria. Mesmo para quem dela sai, o migrante, o Nordeste aparece como este espaço fixo da saudade. O Nor-

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deste parece estar sempre no passado, na memória; evocado como o espaço para o qual se quer voltar; um espaço que permaneceria o mesmo. (ALBUQUERQUE JR., 2009:98)

Luiz Gonzaga é, sem dúvida, o principal artífice musical desta construção imaginária. De uma forma de outra, parte importante de sua obra – difundida nacionalmente em meio século de carreira – refere-se a esse “sertão cartão postal” (VIEIRA, 2000:90), visto de longe, com saudade, congelado no tempo. É evidente que nas mais de 600 gravações e cinco décadas de atividade do artista há uma diversidade gigantesca de temáticas e abordagens sobre sua nordestinidade que nem sempre se encaixam no modelo saudade-sertão-sofrimento (ao qual seria necessário também agregar o significante “festa”, do qual falarei adiante). Inclusive, a maneira com que ele administra instrumentos do moderno mercado musical da capital já indica que sua posição como arauto do atraso e da tradição é no mínimo ambígua. Porém, é inegável seu protagonismo na configuração de “meta-categorias de uma música popular nordestina” (SANTOS, 2014:46), fundadas em ideias sobre o sertão e a saudade que se reforçam a cada novo sucesso radiofônico do “Rei do Baião”. Sua própria biografia de migrante (do interior distante do sertão pernambucano para a capital federal) funciona como uma manifestação da autenticidade de sua saudade, saudade de sua gente. A canção No meu pé de serra (parceria com Humberto Teixeira, lançada em 1947) talvez seja o exemplo mais evidente dessa associação entre a posição de migrante do compositor e a construção da ideia de saudade do sertão, que irá repercutir de tal modo no imaginário do forró que o “pé de serra” passa até mesmo a nomear a vertente mais tradicional do gênero. Lá no meu pé de serra deixei ficar meu coração

Ai que saudades tenho, eu vou voltar pro meu sertão No meu roçado eu trabalhava todo dia

Mas no meu rancho eu tinha tudo que queria Lá se dançava quase toda quinta-feira

Sanfona não faltava e tome xote a noite inteira

O sofrimento do trabalho duro no campo é compensado pela dança na imaginação saudosista do migrante, que, de longe, lamenta a distância

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física da “sua” terra natal. Sendo tema de grande expressividade, a saudade transcende o referencial geográfico e se manifesta também na pessoa amada, associada à terra, mas materializada no sentimento interpessoal. Quando penso em você

O meu olhar se enche d’água

Não tenho um pingo de mágoa

É só saudade da boa

Que fica na lembrança de um beijo

Do abraço que ninguém me deu igual

Da noite que valeu por todas que eu vivi

(Saudade da boa, de Accioly Neto, 1993)

A força da ideia de saudade se confunde de tal modo com a identidade temática do forró que, desde 1989, com a morte de Luiz Gonzaga, ele próprio passa a ser o objeto da saudade, num processo contínuo de mitificação e de filiação desenvolvido com grande intensidade pelos forrozeiros tradicionais em atuação no mercado contemporâneo. Nos últimos vinte e poucos anos, podem-se contar centenas de referências e citações a obras gravadas por Gonzaga, que se torna tema preferencial de músicas, discos e shows. Nessas homenagens, destaca-se uma simbiose constante entre elementos míticos do sertão do repertório gonzagueano (a “asa branca”, o “pé de serra”, a sanfona etc.) que recorrentemente se fundem na reiteração do imaginário forrozeiro. Aquele pé de serra chora de recordação

A asa branca resiste no galho cantando triste a falta do Gonzagão É eterno seu reinado a um povo com amor

E onde foi sepultado para sempre ser lembrado vai botar um pé de fulô

(Saudades do Gonzagão, Beto Hortis com Santanna, 2009) Velho, que saudades de você

Seu pé de serra está tão triste pois você não voltou mais

Chora a asa branca, choram as juritis,

Ai quanta saudades Seu Luiz

(Cartinha pra seu Luiz, Flavio José com Fagner, 1997)

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A asa branca chora, com saudades, triste, acompanhada sonoramente pelo melancólico toque de uma sanfona que também se torna metonímia do próprio artista. Na serra, da terra ouviu-se um cantar, astro-mor

Um raio, um brilho, uma luz, fez-se um canto maior Ecoou mundo afora a partir desse sol do Exu

E cantou, encantou, asa branca, acauã, transbordou Pajeú

(...)

Saudade tua, eterno Lua, lua de amor, lua de paz, lua feliz

Lua sertão, lua canção, lua brasis, lua baião, Lua Luiz

(Lua Brasil, de Xico Bizerra, cantado por Dominguinhos, 2009)

O apelido carinhoso de “Lua” é tematizado com grande afetividade e reverência em várias canções que eternizam o legado de Luiz Gonzaga transformando-o em elemento imaginário de autenticidade do forró. A presença contundente de tantas referências ao sertão idílico do repertório referencial de Gonzaga acentua uma identificação estereotipada entre o gênero musical forró e toda a ambiência rural e antimoderna do sertão. Nesse sentido, o forró (em sua versão mais tradicionalista) se aproxima do século XXI aprisionado a uma visão estática e romântica do sertão de meados do século passado, encarnando musicalmente a oposição de uma referência pré-moderna. A distinção entre cidade e sertão, que cruza o repertório forrozeiro erguendo uma cisão inconciliável entre desenvolvimento e atraso se torna, aos poucos, um ingrediente amargo para a continuidade e poder de sedução do gênero. E, ampliando seus desdobramentos, essa receita se torna mesmo pouco atraente para a própria ideia de Nordeste. Por esse motivo, Albuquerque Jr. rejeita contundentemente a paralisia de certos referenciais sobre a ideia de Nordeste, apresentando uma espécie de plataforma de ação enfática: Não quer este livro defender o Nordeste, mas atacá-lo; ele não quer

sua salvação, mas sua dissolução enquanto essa maquinaria imagé-

tico-discursiva de reprodução das relações econômico-sociais e de

poder que faz com que sejamos habitantes de uma das áreas mais

pobres e de pessoas mais ricas do país. [...] Se o Nordeste foi inven-

tado para ser este espaço de barragem da mudança, da modernidade,

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é preciso destruí-lo para poder dar lugar a novas espacialidades de poder e saber. (ALBUQUERQUE JR., 2009:352)

Porém, outras estratégias de luta contra o preconceito entram em cena no campo musical e a negação dos modelos em torno dos quais a noção de Nordeste se cristalizou não significa necessariamente a anulação da própria invenção do Nordeste. Nas últimas décadas, o forró tem reprocessado esses valores rurais e conservadores para negociar outros pertencimentos coletivos articuladores de um sentido de região.

Outras ideias sobre o Nordeste Uma vez construída a associação estanque entre sertão e Nordeste, a identidade musical nordestina, no final da década de 1980, precisava construir imaginários capazes de se afastar da ideia de saudade, da saudade do sertão, da saudade do amor que fica, da saudade de Luiz Gonzaga. O intenso processo de digitalização e de globalização econômica e cultural que se acelera a partir de meados da década de 1980 matizava um ambiente que clamava por outras sonoridades. Se o manguebeat permaneceu como música local, fortemente fincada nos mangues do Recife, o próprio forró iria construir vertentes que se afastariam da patológica saudade de Gonzaga. Climério Santos, em instigante trabalho sobre o processo de consolidação da dicotomia “tradicional x eletrônico” no forró identifica diversos agentes que buscaram efetivar misturas em seus forrós no sentido de ampliar o leque de referências do gênero. Artistas como Oswaldinho do Acordeon, que em 1977 (!) lança um álbum intitulado Forró Pop e, dois anos depois emprega sintetizadores Moog, baixo, guitarra e bateria em suas bases (SANTOS, 2014:72). O autor também destaca o trabalho de Jorge de Altinho (Canto livre, de 1983), que misturava forró com soul e rock para atingir uma síntese sonora “moderna” (idem:73). É verdade que diversos artistas ligados ao forró (Flávio José, Elba Ramalho, Alceu Valença, Petrúcio Amorim, Eliane, entre dezenas de outros) e o próprio Luiz Gonzaga produziram durante a década de 1980 versões menos estagnadas do gênero, pressionados pelo desejo de afinar-se com tendências sonoras e simbólicas da época. Todas essas misturas, no entanto,

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acabaram pavimentando um terreno criativo para ser intensamente retorcido a partir do início da década de 1990. Do Ceará, a banda Mastruz com Leite é apontada como marco inicial desse reprocessamento mais radical do forró. Inventada pelo empresário Emanoel Gurgel, a banda buscou construir uma sonoridade que estivesse em diálogo com a “nordestinidade” do forró, mas que incorporasse também outros códigos e valores. Essa conciliação estética tem como resultado uma instrumentação fortemente apoiada na sanfona, mas com a inclusão de teclados, saxofone, bateria e baixo. Mais do que isso, o “forró pop” da Mastruz não era apenas uma marca de marketing, mas uma estratégia comercial e estética explícita. Gurgel e sua banda buscavam uma inserção no mercado de música pop e, através dela, protagonizar o afastamento de referenciais rurais e “atrasados” que embasavam o imaginário do forró. Uma marca estilística fundamental da Mastruz e de outras bandas identificadas com o estilo é a performance. Os shows da Mastruz são espetáculos grandiosos, com figurinos ousados, danças ensaiadas, iluminação, muita sincronia entre cantores, dançarinos e músicos, complementada por uma vibração energética análoga aos grandes espetáculos do rock e do pop internacional, que na época já apareciam em solo brasileiro há anos com a moda da lambada e, principalmente, com o sucesso das duplas sertanejas – inspiração explícita do novo estilo forrozeiro. Além do espetáculo, outro diferencial importante é o timbre vocal dos cantores e cantoras, oscilando entre um canto áspero e uma voz feminina infantilizada e manhosa. A partir da Mastruz e vazando para outras bandas de sua propriedade, Gurgel desenvolveu a ideia de que era necessário “modernizar o forró”, associando-o ao ambiente urbano, à juventude, ao cosmopolitismo, à tecnologia. Sua atuação no mercado estava atrelada a um poderoso esquema de distribuição radiofônica baseado na rede Somzoom Sat, de propriedade do mesmo empresário, movimentando um sucesso estrondoso no universo do forró. Uma matéria na revista IstoÉ em 1998 apontava para a eficácia empresarial da invenção de Gurgel, sublinhando os aspectos financeiros da sua empresa: Ele [Emanoel Gurgel] é dono da Som Zoom, empresa que engloba estúdios de gravação, funciona como gravadora comercializando

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seus próprios produtos, edita uma revista trimestral de 20 páginas

chamada Conexão Vaquejada – vendida ao preço de R$ 9,90 –, e comanda um pool de 64 emissoras de rádio, a Som Zoom Sat, espalha-

das por 11 Estados, a maioria do Nordeste. Em São Paulo suas ondas

chegam através da rádio Atual e no Rio de Janeiro pela Tropical FM.

Todos os programas da Som Zoom Sat são gerados ao vivo, diariamente dos estúdios da Som Zoom, sem interrupção. Oito locutores

revezam-se nos vários períodos do dia.

É aí que a Som Zoom Sat exerce a função de divulgadora-mor

das oito bandas das quais Gurgel é “dono”, entre elas a consagrada

Mastruz com Leite, a emergente Cavalo de Pau e outras 46 ligadas

à empresa, todas com nomes singulares como Calcinha Preta ou Cachorra da Mulesta e Brucelose.

Mas seria ingênuo e até mesmo equivocado atribuir ao forró eletrônico de Gurgel o processamento de uma identidade nordestina contraditório com as convenções rurais da mesma. Como qualquer construção identitária, o discurso hegemônico de uma nordestinidade fundada no rural e no arcaico sempre conviveu com outras narrativas e outras percepções que tensionam esse modelo. Se nos restringirmos ao universo da música em Pernambuco, por exemplo, podemos encontrar na década de 1960 e 1970 movimentos de rock alternativo extremamente significativos como o Udigrudi, protagonizado pela célebre banda Ave Sangria. O próprio movimento migratório do frevo de Recife para Salvador inaugura uma vertente elétrica do gênero pernambucano, que se desenvolve no solo fértil da capital baiana numa atmosfera jovem, urbana e modernizante. Ainda na década de 1970, artistas como Elba Ramalho, Fagner, Geraldo Azevedo e Alceu Valença processam uma identidade regional associando sonoridades e estilísticas da canção moderna brasileira – a MPB – com timbres e sotaques que falam em nome da região Nordeste sem se ater exclusivamente às narrativas da seca, da fome, do cangaço ou do sertão. Na década de 1990, simultâneo ao surgimento da Mastruz e da Somzoom, o manguebeat processa os tambores do maracatu de Recife com a crueza das guitarras distorcidas, produzindo um som jovem e original, que imediatamente adquire respeitabilidade da crítica musical de todo o país. E seria ainda errôneo associarmos o impulso cosmopolita de certas regiões do Nordeste apenas ao momento de intensificação da “indústria

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cultural” no Brasil, localizando todo esse movimento após a década de 1960 (ORTIZ, 2003). Em instigante trabalho sobre a produção cinematográfica no Recife da década de 1920 (!), Paulo Cunha Filho aponta para a construção utópica de um cosmopolitismo urbano e tecnológico em torno dos filmes do chamado “Ciclo do Recife”. Segundo o autor, o movimento demarca a “aurora da modernização periférica” cujo vetor motriz é o desejo de implantar na cidade uma cultura popular moderna e massiva, “capaz de ultrapassar a ideia da tradição conservadora” (2010:26). Para estes realizadores, apropriar-se de equipamentos técnicos (cinema, fotografia) significava pertencer a um contexto internacional industrial, absorver novos códigos morais, hábitos cotidianos, roupas, práticas de lazer e mobilidade. O que as imagens técnicas revelam em primeiro lugar é que a questão periférica não era a de ser igual ao outro, mas sim a de ser o

outro. Melhor dizendo: eliminar a alteridade pela inclusão total do

padrão visual hegemônico. Contra a dualidade da tensão centro-pe-

riferia, contra o binarismo do conflito moderno-tradicional, a cidade

se pretende simplesmente outra, mas outra em si mesma (CUNHA

FILHO, 2010:63).

A leitura de Cunha Filho demonstra como o processo de construção de um imaginário cosmopolita em uma cidade na periferia (tanto nacional quanto internacional) é concomitante à sedimentação de uma identidade nordestina sertaneja e agrária, elaborada em torno da seca (ALBUQUERQUE JR., 2009; PENNA, 1992). Porém, se acreditamos na tese de que o desejo de inclusão num conjunto de modelos estéticos, técnicos e morais modernos busca anular a construção de uma identidade própria cosmopolita para simplesmente “ser o outro”, é possível pensar num contraponto decisivo para a construção da ideia vencedora de Nordeste agrário. Ou seja, se para tecer a modernidade da cidade é necessário negar os referentes identitários da região, a força dos clichês rurais de reconhecimento dessa região torna-se inquestionável. Paradoxalmente, a negativa do regional colabora para a sedimentação do regional, conferindo à modernização um caráter exclusivamente exógeno, tomado como positivo em si mesmo. A oposição a essa visão positiva da modernização técnica se estrutura, por exemplo, neste trecho (e em

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vários outros) do famoso Manifesto Regionalista (lido durante o Congresso Regionalista de 1926) de Gilberto Freyre: Procurando reabilitar valores e tradições do Nordeste, repito que não julgamos estas terras, em grande parte áridas e heroicamente

pobres, devastadas pelo cangaço, pela malária e até pela fome, as

Terras Santas ou a Cocagne do Brasil. Procuramos defender esses

valores e essas tradições, isto sim, do perigo de serem de todo abandonadas, tal o furor neófilo de dirigentes que, entre nós, passam por

adiantados e “progressistas” pelo fato de imitarem cega e desbragadamente a novidade estrangeira. (FREYRE, 2009[1926]:48)

O moderno se torna, aos olhos dos intelectuais do Congresso Regionalista, simplesmente “estrangeiro”. Configuram-se, desta forma, projetos contraditórios que procuram reprocessar a importância nacional dos estados e cidades da região Nordeste. Ocorre que a curta duração do Ciclo do Recife e sua circulação exclusivamente local, contraposta à nacionalização midiática, intelectual e comercial de visões mais sertanejas do Nordeste (nas artes visuais, na literatura, na sociologia e na música, com o baião de Luiz Gonzaga) deixou esse projeto modernizante em segundo plano até o final do século XX, quando começam a aparecer questionamentos de várias ordens sobre a noção de atraso vinculada à região. No cinema, a “retomada” da produção nacional de filmes em meados da década de 1990 ocorre a partir de produções de Recife, seguido mais recentemente por produções do Ceará. Esses filmes consolidam no início do século XXI um novo polo de produção cinematográfica consistente e respeitado, elaborando narrativas que tensionam representações rurais do Nordeste com a moderna técnica cinematográfica 3. É de Recife também que emerge o manguebeat, estética musical intelectualizada que desloca do barro seco do sertão para o terreno encharcado do mangue urbano a metáfora natural de identificação regional, mesclando guitarras e alfaias. A sonoridade proposta por Chico Science Alguns filmes de destaque nesse cenário são Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1997), Árido movie (Lírio Ferreira, 2005), O baixio das bestas (Cláudio Assis, 2006), O Céu de Suely (Karin Ainouz, 2006) e O som ao redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), entre outros, que obtiveram razoável destaque na mídia nacional. 3

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& Nação Zumbi buscava não uma tensão contraditória entre sertão e cidade, mas, antes, uma síntese. O caminho da síntese é um esforço que parecerá particularmente profícuo no campo da música. Mesclas de ritmos e sonoridades eletrônicas e elétricas (o “moderno”) com instrumentos e clichês harmônicos, melódicos e líricos de músicas reconhecidamente “locais” ou “regionais” serão visitados por diversos artistas desde meados da década de 1980 até os dias atuais, com crescente recorrência. Num outro caminho alternativo à dualidade campo-cidade, já ampliando o escopo para além do universo cultural, algumas iniciativas também organizadas na capital pernambucana instauram núcleos de tecnologia de ponta mundialmente respeitados na região, alterando estereótipos de “atraso”. Merecem destaque o Programa de Pós-Graduação em Física da Universidade Federal de Pernambuco (que desenvolve pesquisas nucleares em seus laboratórios) e a criação do C.E.S.A.R. (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife), conjunto de empresas de tecnologias da informação abrigadas no moderníssimo prédio do Porto Digital, responsável pelo desenvolvimento de softwares de games e sistemas de computação empresarial com clientes em todo o mundo. A partir do início do século XXI, durante o Governo Lula (2003-2010), o Nordeste assume posição estratégica para redução das chamadas “assimetrias regionais”, recebendo vultosos investimentos de infraestrutura e modernização. Aos poucos, as ações do governo federal passam a atender a demandas surgidas desde o início da década de 1990, que apontavam para a necessidade de revisão econômica e cultural da noção de atraso da região. Em 2007, a recriação da extinta Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) é o marco legal de diversas políticas de financiamentos da região. Grandes obras como o Porto de Suape, a Ferrovia Transnordestina e a Transposição das Águas do Rio São Francisco matizam um novo projeto desenvolvimentista para o Nordeste, que tem fortes repercussões nos modelos de reconhecimento e compartilhamento da identidade regional. Todo esse movimento não é a causa de alterações nas percepções de modelos de nordestinidade, mas podem ser pensados como articuladores institucionais de um processo de redefinições e tensões sobre as identidades regionais. Tensões que, no universo do forró, materializamse em debates sobre a hegemonia comercial do forró eletrônico, criado no Ceará. As declarações preconceituosas do secretário de cultura da

Nordestinidade

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Paraíba são ecos de discursos recorrentes na região, originados quase sempre em conversas informais em bares e restaurantes intelectualizados das cidades, com repercussões em reuniões decisórias de órgãos governamentais, editais de fomento à cultura, páginas de jornais e declarações de músicos e artistas. Entrincheirados na luta contra a força simbólica e mercantil do forró eletrônico, os admiradores da vertente “pé de serra” desenvolvem narrativas complexas sobre o Nordeste, buscando construir uma nordestinidade contemporânea que dialogue com os matizes rurais de sua invenção, mas que aporte altivamente no cenário nacional uma identidade regional respeitável e expressiva. Muito mais fácil é o processamento desta identidade feito pelas bandas, que cantam odes ao progresso, à modernidade e à tecnologia, absorvendo tudo o que há de mais instigante e de mais nefasto nos circuitos culturais do capitalismo, que é traduzido pelo showbizz forrozeiro como uma nova nordestinidade. Um dos aspectos mais contundentes desse processamento – não por acaso um elemento sistematicamente acionado nos debates – é a sonoridade. Tensões entre a modernidade das guitarras, naipes de metais, teclados, baterias, sons eletrônicos (raros no forró) e a tradicionalidade do trio sanfona, triângulo e zabumba são o ponto de partida desses embates. Entre tantas outras possíveis, vamos seguir essa pista.

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Na inspirada teoria semiológica de Luiz Tatit, o eixo primordial de construção de sentidos na canção popular é a articulação entre letra e melodia. O conteúdo do que é dito pela letra se apresenta na canção através de uma forma de dizer, que intensifica as inflexões tonais da fala, estabilizando-as no canto. Assim, há uma voz que fala dentro da voz que canta, que formam o núcleo principal de semiose da canção popular (TATIT, 1996). Um exemplo dessa integração semântica entre o modo de dizer e o conteúdo do que é dito é a canção Saudade dói (de Humberto Teixeira). Gravada em 1976 por Luiz Gonzaga, a introdução apresenta uma inflexão melódica do cantor num “lalaiá”, que prolonga as vogais e desacelera o andamento, numa materialização do sofrimento da saudade, que Tatit descreve como um processo de passionalização (1996:23). A constatação dolorida da saudade pelo sujeito que canta (o eu lírico-cantor) é intensificada pela extensão do vocalise que precede a letra e pela própria forma de dizer dos versos iniciais. Trata-se de uma espécie de integração entre melodia e letra que se manifesta “na descrição de estados passionais que acusa a ausência do outro, o sentimento (presente, passado, futuro) de distância, de perda” (TATIT e LOPES, 2008:21). La laiá laiá laiá, laiá Saudade dói

Todo esse planejamento entoativo se reforça pelo prolongamento das notas mais agudas da melodia (grifadas), que funcionam como pontos de inflexão do próprio sentimento dolorido da saudade. Porém, seria bastante limitador imaginar que a expressividade dessa canção advém 49

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exclusivamente da compatibilização entre letra e melodia. A sonoridade do fole da sanfona aberta em acordes blocados que acompanham o par letra-melodia é elemento crucial na construção da dor sentida pelo cantor. Gostaria, então, de deslocar provisoriamente a ênfase da interpretação sobre a canção da letra para a sonoridade, buscando estabelecer conexões mais amplas entre os diferentes elementos da escuta. Nos estudos sobre música popular, é possível observar um interesse crescente nas últimas décadas em ampliar as considerações exclusivamente musicológicas (análises de encadeamentos de acordes, soluções composicionais melódicas e rítmicas, estruturas formais, alternância de partes) para aspectos relacionados às condições de escuta e consumo, que acionam debates sobre as formas de compartilhamento de repertórios, afetos, espaços sociais, cenas, assim como interpretações sobre significados e sociabilidades. Também costumam estar presentes estudos que priorizam a circulação simbólica e comercial dos produtos musicais, com enfoques sobre os processos de midiatização e mercantilização da música ou sobre análises dos usos da música em produtos audiovisuais como programas televisivos, filmes, games, publicidade e vídeos. No entanto, ainda é relativamente pequeno o número de trabalhos e pesquisas que se dedicam a isolar as características propriamente timbrísticas e texturais dos produtos musicais, que podem ser incluídas numa genérica ideia de “sonoridade”. Pensar sobre a sonoridade de determinado artefato musical implica em discutir aspectos relativos à constituição do timbre (tanto dos instrumentos quanto da voz humana), acionando um conjunto de repertórios e memórias que construíram no interior de certo circuito cultural associações simbólicas e identitárias relativas à sonoridade dos instrumentos e das combinações instrumentais. De acordo com o Dicionário de Música Grove, o timbre é “um termo que descreve a qualidade tonal de um som”. Seu reconhecimento depende de determinada quantidade de informações sobre a fonte sonora e se processa através de comparações de inúmeros parâmetros (altura, ataque, volume, decay, harmônicos etc.). Para José Miguel Wisnik, são “os componentes de sua complexidade (produzida pelo objeto que o gerou) que dão ao som aquela singularidade colorística que chamamos de timbre” (1999:24). Tornando a questão ainda mais complexa, podemos pensar em gradações no reconhecimento dos timbres, indo de uma esfera mais ge-

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ral de identificação de sua origem (o timbre de um violino ou de um trompete), passando pela identificação de alterações no timbre geral (determinadas regiões dos instrumentos possuem até mesmo um nome específico) e até caracterizando aspectos muito peculiares do “som” do instrumentista e da construção do instrumento. Por essa complexidade, o estudo dos timbres quase sempre demanda um aparato tecnológico adequado, com medidores de ondas e amplitudes de harmônicos, o que o torna mesmo um elemento sonoro refratário a teorizações (SLAWSON, 1981:132). Por outro lado, músicos, produtores e arranjadores estão cotidianamente envolvidos com debates sobre o “som”, que atravessam várias etapas da produção sonora, desde a eficácia da execução de um instrumentista à qualidade do próprio instrumento, dos equipamentos de gravação, da mixagem dos timbres, da equalização geral do arranjo e até na organização técnica dos palcos e aparelhos reprodutores de mídias sonoras. Quem já teve oportunidade de acompanhar ensaios musicais ou gravações em estúdio pode confirmar que as discussões e escolhas estéticas são, na maioria das vezes, direcionadas para a inclusão ou não de certos instrumentos, certos timbres, certas referências fragmentadas que formam uma espécie de mosaico sonoro de timbragens e texturas instrumentais e vocais. Os timbres acionam pertencimentos estéticos e repertórios culturais que se tornam elementos da comunicabilidade da música, provocando adesões e recusas. De acordo com o sociólogo Ángel Quintero Rivera, o desenvolvimento da sonoridade dos vários instrumentos musicais a partir do século XVI instaurou pouco a pouco na história da música uma hierarquia entre eles na conformação da própria orquestra sinfônica. O autor observa uma gradação de importância entre os instrumentos, partindo, no topo, dos instrumentos de corda e arco até a posição ruidosa da percussão, nas esferas menos prestigiadas de reconhecimento. Contudo, para Quintero Rivera, as músicas populares “mulatas” (que em sua teoria são aquelas criadas em ambientes de misturas étnicas e culturais como o jazz, o blues, a salsa, o reggae, o samba e o tango, entre outros) teriam promovido uma relativização dessas hierarquias, ao valorizar o aspecto rítmico e, com isso, a percussão. Essas músicas foram, portanto, rompendo com a ideia de que alguns timbres – e seus instrumentos – carregam a “voz cantante”, enquanto outros somente os acompanham.

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Em sua sonoridade que expressava a ‘relativização das leis de gravidade tonal’, as músicas “mulatas” foram desenvolvendo uma expressividade baseada na multiplicação integrada dos timbres, exercendo cada um uma voz própria (QUINTERO RIVERA, 2005:83). Apesar de coerente, a formulação de que a canção popular de alguns lugares do mundo reprocessou a hierarquia dos timbres pode ser um tanto utópica, pois esse processamento vem sempre acompanhado de novas hierarquizações. É claro que a ideia de uma multiplicidade de combinações tímbricas é pertinente, sobretudo a partir da formação de conjuntos musicais de tamanhos variados sem necessariamente apontar vinculação à instituição orquestra. Porém, a ênfase em determinados timbres produzidos por músicas “locais” em todo o mundo é também uma ação de hierarquização de sons e valores, que funciona como critério distintivo e como vetor de tensões sociais. Podemos pensar na história da música popular no Brasil (e em outros lugares do mundo) como uma negociação cultural em torno de timbres e ideologias priorizados e rejeitados. O surgimento da bossa nova – apenas para ficarmos em um exemplo famoso e canônico – tem sido muito discutido sob o ponto de escuta formal e harmônico. Em uma descrição excessivamente parcial e romantizada, Tatit apresenta sua visão sobre o reprocessamento da “sonoridade brasileira” realizado por João Gilberto em seu disco de estreia, em 1958. Os aspectos emocionais da canção ficaram a cargo das novas direções melódicas sugeridas pelos desengates e engates dos acordes dissonantes (...). O canto passou a depender de maior precisão de con-

torno melódico e de divisão rítmica, pois tanto a dissonância quanto a sincopa, assimiladas no acompanhamento, retiravam os pontos de apoio que guiavam os cantores de outrora. (TATIT, 2004:50).

Mais adiante, o autor aponta que, “pela primeira vez, no universo da canção nacional e por herança do jazz, o acompanhamento instrumental foi pensado como progressão harmônica” (idem:51). Desta forma, toda a valorização (e certo endeusamento acrítico) da bossa nova, via João Gilberto, processado pelo autor e por diversos outros pesquisadores sublinham veementemente as “inovações” no campo da harmonia, da forma e do ritmo. Porém, a ideia de um estilo vocal econômico as-

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sociado a um planejamento geral de despojamento tem relação muito mais direta com a dimensão do timbre do que com a complexidade melódica e harmônica. A ênfase no som do violão intimista produz um ambiente sonoro que, no final da década de 1950, gerava um distanciamento tanto da sanfona de Luiz Gonzaga quanto da guitarra elétrica do rock anglófono, que dominavam o mercado nacional. O violão aciona ainda um modelo de experiência musical doméstico, restrito, distintivo. Sua sonoridade com pouco volume e certa suavidade gerada pela execução dedilhada (em oposição a uma agressividade animada do violão de aço ou da própria guitarra tocados com palheta) fornecia um modelo de sociabilidade, baseado na elegância, que ajudou a bossa nova a alcançar posições privilegiadas na hierarquia dos gêneros musicais. O símbolo sonoro do violão, acompanhado do uso contido da voz e da neutralização rítmica instauram um padrão de qualidade para a música brasileira que se sedimenta no decorrer da década de 1960. Por outro lado, alguns anos mais tarde, o som da guitarra elétrica – funcionando como um primo “moderno” do violão – será duramente atacado por setores da intelectualidade brasileira como símbolo sonoro da dominação cultural, numa lógica ideológica binária, característica da época. As notícias hoje risíveis da passeata contra a guitarra elétrica no Brasil de 1967, protagonizada por cantores e compositores de destaque no cenário da música nacional podem servir como um termômetro da densidade emocional das sonoridades, sistematicamente negligenciadas ou tratadas como aspecto secundário ou desimportante nas reflexões sobre a música popular (e também sobre a “impopular”). O que tinha a guitarra elétrica que incomodava tanto aos músicos que aderiram à passeata? É possível pensar atualmente numa manifestação pública contra um timbre? A guitarra elétrica é talvez o primeiro instrumento musical amplamente disseminado cuja produção de som é realizada por um impulso elétrico e não físico-acústico. A invenção da guitarra de corpo sólido e dois captadores é atribuída a Leslie Polfuss, conhecido como Les Paul, que construiu seu modelo em 1941, comercializado no final da mesma década, um pouco antes do lançamento da famosa Fender Stratocaster (em 1953), fabricada por Paul Bigsby e Leo Fender (FRIEDLANDER, 2002:298-299). Como sempre ocorre em momentos de inovações timbrísticas,

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os guitarristas de rock clássico, fortemente enraizados nas tradições do blues e do country, reagiram de formas diferentes em relação às

guitarras de corpo sólido. O guitarrista de Elvis, Scotty Moore, e Carl

Perkins continuaram a usar as de corpo oco; Eddie Cochran e Chuck

Berry tocavam guitarras de corpo semi-sólido. Buddy Holly foi o primeiro grande artista de rock a optar pelo som agudo e metálico da Stratocaster (FRIEDLANDER, 2002:299).

Durante a década de 1950, a guitarra elétrica se tornaria o símbolo do rock, que experimenta nesse mesmo período uma notável internacionalização, associado à invenção da cultura jovem internacional através de artistas transnacionais do cinema e da música. A manipulação elétrica do som da guitarra permite a experimentação de timbres e intensidades variados, matizando um som que pode ser amplificado e adotado por uma juventude identificada em plano mundial. Como coloca Robert Poss, Ao contrário de muitos instrumentos, o coração da guitarra elétrica de corpo sólido envolve uma convergência de suas características

sonoras inerentes com uma amplificação e processamentos apropria-

dos, ao invés de uma pureza essencial do timbre. (1998:45)

Dessa maneira, numa esfera mais geral, a guitarra elétrica instaura um determinado timbre elétrico nas sonoridades do rock, mas, em um nível mais profundo, a própria guitarra se presta a uma diversidade grande de timbres, cada um associado a um determinado universo sonoro-cultural-moral. No contexto político-ideológico da década de 1960, determinados setores da sociedade encontravam-se particularmente sensíveis a adotar uma forte rejeição ao timbre da guitarra, associado ao universo do capitalismo norte-americano. Porém, na contradição dos conflitos culturais, o mesmo som da guitarra gera uma identificação juvenil transnacional associada à contracultura, que permitiria adesões variadas no escopo ideológico. Assim, artistas (como Gilberto Gil) que aderiram à pitoresca passeata não hesitaram em se apropriar de seu timbre alguns meses depois, como forma de refletir sobre a importância dessa articulação juvenil transnacional em seus aspectos políticos e estéticos. Não havia nada de conformidade ideológica ou de dominação cultural na performance de Jimi Hendrix em Woodstock, por exemplo!

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O que toda essa mobilização aponta é para o fato de que os timbres não são neutros e, no caso específico da guitarra, o aspecto da geração elétrica do som é um elemento importante inclusive para a manipulação e alteração do timbre. O som distorcido da mesma guitarra de Hendrix é fundamental para “distorcer” os significados estabelecidos de dominação e matizar outras ideias em torno do instrumento e da juventude do período. Mais recentemente, o sintetizador Moog e o teclado eletrônico matizaram outra sonoridade instrumental, imediatamente adotada como símbolo de modernidade da disco music e em práticas musicais urbanas cosmopolitas em todo o mundo, dançantes ou não. No início dos anos 1980, o teclado eletrônico foi central para a dance music e para a música pop em geral, fornecendo um imaginário diferente e alterando as convenções de composição e performance. No Brasil, o choro e o conjunto “regional” sedimentam no final do século XIX uma sonoridade que se tornaria típica do samba, ainda que este gênero tenha sido muito pouco ortodoxo na utilização de sonoridades em suas gravações, rodas e shows. O mesmo pode ser dito sobre a “gaita” gaúcha, sobre a viola caipira, a rabeca, as alfaias do maracatu, ou mesmo o bandoneón do tango, a gaita escocesa, o charango andino, a cítara indiana ou o cuatro venezuelano. Certos instrumentos e timbres guardam em sua estrutura acústica valores e repertórios que se tornam idiomáticos em cada prática musical a eles associada, convocando a uma interpretação estreitamente relacionada à sua história e ao repertório referencial que construiu tal significação. Mas, novamente, essas associações nem são plenamente estáveis nem são atreladas exclusivamente à sonoridade geral do instrumento, mas também a uma forma de tocar. É o que acontece, precisamente, no caso da sanfona.

O fole No ambiente do forró, é possível afirmar que todas as referências ao sofrimento advindo da natureza hostil do sertão ou da saudade da terra natal, assim como as narrativas míticas de coragem, bravura e força são entoadas em melodias e letras que recebem um determinado acompanhamento sonoro que participa fundamentalmente do processo de construção, identificação, reconhecimento e valoração do forró. A sonorida-

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de do forró formada pelo trio sanfona, zabumba e triângulo é elemento fundamental nesse processo. Sedimentado pela hegemonia comercial de Luiz Gonzaga nos anos 1940 e 1950 e reforçada continuamente desde então, o trio do forró encarna todas as representações sobre Nordeste, saudade e sofrimento que se manifestam em centenas (milhares?) de letras e melodias do repertório referencial e nas atualizações deste. A combinação instrumental particularmente eficaz em termos musicais e acústicos (o triângulo respondendo pela percussão aguda, a zabumba pelo médio-grave e a sanfona preenchendo harmônica e melodicamente toda a tessitura intervalar) se tornaria elemento definidor do próprio forró a partir de sua reiteração em centenas de palcos espalhados por décadas e léguas do país. Não é arriscado afirmar, contudo, que dos três instrumentos, a sanfona assume papel protagonista. Além de ser o único instrumento harmônico-melódico do trio, a figura do sanfoneiro responde pela condução das canções e, popularizado midiaticamente pela atuação de Luiz Gonzaga, a simbiose entre sanfona e forró se molda como elemento crucial para a identificação do gênero. A sanfona é um instrumento que pertence à imensa família dos instrumentos aerofônicos, cujo princípio de produção de som é a passagem do ar comprimido por um tubo, sendo o som gerado pela abertura de orifícios ou por palhetas localizadas em seu interior. Nessa família sonora encontram-se os instrumentos de sopro (flauta, oboé, clarinete, fagote, trompete, trompa, tuba, saxofone e seus derivados) e os instrumentos de fole (órgão, acordeão, bandoneón etc.), nos quais a pressão para a passagem do ar é realizada por um mecanismo de compressão de ar. A pressão do fole para a compressão do ar permite maior sustentação e amplitude sonora, gerando um resultado acústico que apresenta algumas semelhanças timbrísticas significativas entre tais instrumentos. Tal semelhança é detectável também na voz humana, cuja produção sonora, ainda que não seja feita por palhetas, apresenta um resultado bastante próximo ao órgão e à sanfona. Essa semelhança timbrística se intensifica na sonoridade do coro, que neutraliza certos timbres particulares (individualidades) e sublinha sonoramente o “colorido” 1 da coletividade, A metáfora da cor é continuamente associada à ideia de timbre. Apesar de sua fragilidade conceitual, a recorrência desse referencial visual para a caracterização da particularidade do timbre é significativa. A cor como metáfora permite pensarmos em gradações, misturas, 1

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possibilitando maior extensão tonal e uma sustentação mais uniforme das notas prolongadas. Extrapolando esse raciocínio, Wisnik afirma que um único som afinado, cantado em uníssono por um grupo humano, tem o poder mágico de evocar uma fundação cósmica: insemina-se

coletivamente, no meio dos ruídos do mundo, um princípio ordenador. Sobre uma frequência invisível, trava-se um acordo, antes de

qualquer acorde, que projeta não só o fundamento de um cosmos sonoro, mas também do universo social. (1999:33)

Em sua teoria sobre a música e o som, Wisnik sublinha (possivelmente com certa dose de exagero) a dimensão sobrenatural da prática musical, com ênfase nos ritos humanos relacionados ao canto. Em quase todas as religiões do mundo, o contato com os deuses é facilitado pela música que, em linhas gerais, materializa-se numa sonoridade que combina forte ênfase na percussão e no canto. Cantar em conjunto encarna sempre uma dimensão simbólica de união em torno de um fazer coletivo, com recorrentes associações à adoração e também à guerra. No ambiente restritivo da prática musical culta na chamada Baixa Idade Média (realizada, controlada e executada por padres no interior dos serviços religiosos), o canto sem acompanhamento era o único meio aceitável de realizar música nas igrejas. Diversos teóricos eclesiásticos se posicionaram frontalmente contrários à adoção de instrumentos musicais nas celebrações litúrgicas e até mesmo fora delas. São Gerônimo, mais extremado, esperava que nenhuma menina cristã educada jamais viesse a saber o que era um alaúde ou uma harpa. A Igreja romana não era hostil apenas ao uso de instrumentos

na igreja, era hostil a todo instrumento musical; procurava destruir

toda a geração de artistas ambulantes que divertiam o público e tudo

fez para impedir a música e dança seculares. (RAYNOR, 1986:34)

saturações e combinações variadas, ao mesmo tempo em que produz uma sensação física (ocular) e simbólica (cultural). No entanto, o envolvimento emocional com o timbre e as inúmeras associações destes com universos culturais, grupos sociais e principalmente com repertórios, faz com que este parâmetro sonoro se torne muito mais complexo do que o da cor, que aciona diversas associações em um patamar afetivo muito mais superficial.

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A expressividade do canto humano coletivo (com seu timbre peculiar) era entendida como uma espécie de veículo de comunicação com instâncias espirituais superiores, o que só seria alcançado através da neutralização dos aspectos sedutores e corporificantes da prática musical. A menção à harpa e ao alaúde é digna de nota, pois são instrumentos associados a festas e ao erotismo (ao corpo) desde a mitologia grega antiga. Aos poucos, essas proibições foram cedendo e o primeiro instrumento admitido nos serviços religiosos foi precisamente o órgão, por suas características semelhantes à voz humana. A semelhança timbrística com a voz humana e a “combinação” eficaz entre a sonoridade do órgão e do canto foram aspectos acústicos fundamentais para essa aceitação, que quebrou a rigidez da proibição de instrumentos. A partir do século XII e XIII, todas as igrejas já possuíam órgão e os cultos utilizavam diversos instrumentos em suas práticas musicais. À época de J. S. Bach (1685-1750), a vida musical religiosa era recheada de timbres e texturas instrumentais. Atualmente, por influência da música gospel negra do protestantismo norte-americano, diversas religiões que mantinham restrições quanto ao uso de certos timbres têm adotado a música coral como elemento de agregar fiéis e possibilitar esse engajamento emocional e religioso coletivo. O que essa pequena digressão nos interessa de perto é a força dessa simbologia transcendental que associa a voz humana e o timbre do ar pressionado pelo fole, capaz de ser admitida na rígida moral cristã da Idade Média e de despertar, séculos à frente, poderosa adesão afetiva entre públicos e culturas espalhadas por todo o mundo. O acordeão é adotado como instrumento preferencial de várias práticas populares rurais e urbanas do mundo todo, desde pequenas vilas italianas ao sertão nordestino, passando pela movimentada Buenos Aires da virada do século XIX para o XX, gerando ritmos e gêneros característicos como tarantelas, chamamés, forrós e tangos. O acordeão é um instrumento relativamente recente, tendo sido inventado na primeira metade do século XIX e passado por diversas modificações até consolidar sua forma atual. Uma versão mais rudimentar do acordeão é conhecida como “sanfona de 8 baixos”, cuja produção de sons é realizada por séries de botões em ambos os lados do fole. A sanfona de 8 baixos era o instrumento mais comum no sertão nordestino até meados do século XX, sendo instrumento central na animação

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de festas rurais. Dotada de boa projeção sonora e volume, a sanfona é um instrumento versátil o suficiente para acompanhar melodias mais lentas e expressivas (com o fole aberto em notas longas, resultando em uma sonoridade bastante próxima à do órgão de igreja) e também para articular vibrantemente ritmos demarcados e músicas aceleradas (através da articulação rápida do fole em vai e vem, instaurando um clima dançante e vivo). Atualmente, o acordeão mais utilizado é o de teclado, que apresenta do lado esquerdo um sistema de botões para abertura das palhetas e, do lado direito um teclado análogo ao do piano. Esse instrumento tem diversos tamanhos, definidos quase sempre pela quantidade de botões do lado esquerdo – os “baixos” – que acionam as notas graves e alguns acordes. O acordeão de teclado é um instrumento mais completo e equilibrado do que a sanfona de 8 baixos, se tornando instrumento preferencial na utilização profissional desde a década de 1950. A sanfona de 8 baixos, inclusive, encontra-se em processo de desaparecimento, sendo apresentada hoje em dia como instrumento “tradicional” mas sem muito poder de sedução para as novas gerações de acordeonistas.

Hereditariedade Mais do que um simples instrumento dotado de especial capacidade de sedução e grande eficácia sonora e social (volume, timbre, portabilidade), a sanfona é também um símbolo de continuidade cultural, processada tanto em âmbito doméstico-familiar quanto em apadrinhamentos mercadológicos. O próprio Luiz Gonzaga era filho de um prestigiado sanfoneiro da região do Araripe, “seu” Januário, responsável não somente pela execução do instrumento em festas da região como também pelo conserto de instrumentos de outros sanfoneiros. Como aponta Dominique Dreyfus em sua apaixonada biografia sobre Gonzaga, O sanfoneiro era um personagem importante na vida do sertão. Para

Januário, que era um excelente tocador, não faltava trabalho. Da quinta-feira ao domingo, ele não parava. Saía de casa, no final da

tarde, com o fole a tiracolo e só voltava para casa de madrugada.

Quando a festa não era longe demais, a família o acompanhava. (...)

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no ceará não tem disso não

Na verdade, o dia-a-dia do menino Gonzaga, como de qualquer ser-

tanejo, era regado a música. Ela estava em todos os cantos, em todos

os momentos: na banda de pífanos, nos cegos da feira cantando suas

litanias fanhosas, nos seresteiros lânguidos, nos repentistas improvisando seus desafios e dedilhando na viola, entre duas estrofes, rojões

que inspirariam mais tarde o ritmo do baião a Gonzaga. (2007:38)

Assim, a iniciação musical realizada “em casa” e no ambiente sociocultural do sertão se torna um aspecto importante na transmissão de saberes na região rural e na própria mítica do forró. Em torno da sanfona, o conflito geracional se mistura com a noção de pertencimento e hereditariedade, matizando a ideia de continuidade. A canção Respeita Januário talvez seja um exemplo efetivo dessa operação, conduzida ainda de forma sensível e bem-humorada pelo “filho de Januário”. Quando eu voltei lá no sertão eu quis mangar de Januário com meu fole prateado

Só de baixo cento e vinte, botão preto, bem juntinho, como nego empareado

Mas antes de fazer bonito, de passagem por Granito foram logo me dizendo:

De Taboca à Rancharia, de Salgueiro à Bodocó, Januário é o maior E foi aí que me falou meio zangado o Véio Jacó: Luiz, respeita Januário Luiz, respeita Januário

Luiz, tu pode ser famoso mas teu pai é mais tinhoso

E com ele ninguém vai, Luiz

Luiz, respeita os oito baixos de seu pai

Nota-se na canção a oposição entre a sanfona de 8 baixos de Januário e a de 120 baixos de Gonzaga (de teclado, “fole prateado”). O fole grande e bonito seria motivo para gerar inveja no pai, matizando um conflito estético entre a modernização da sanfona de 120 baixos (associada ao “Sul”, ao progresso, ao território urbano) e a estabilidade, a continuidade e a hereditariedade da sanfona de 8 baixos. Por outro lado, o refrão ironicamente exige respeito, o que também se torna uma homenagem carinhosa ao pai famoso na região, mas completamente

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desconhecido no cenário urbano da nação e da mídia. Na sequência da gravação, o cantor inclui um trecho falado, em que se coloca como narrador externo à sua história. Nesse caso, a música articula uma divisão de dois personagens narradores: o próprio Luiz Gonzaga que canta em primeira pessoa, e o “outro” (possivelmente um “Véio Jacó” coletivo, genérico), que fala sobre o artista em cima da levada da sanfona. Com sotaque e expressões nordestinas caricaturalmente carregadas (inclusive com a supressão da pronúncia do “s” e do “z” ao final das palavras “Luiz”, “dois”), o discurso falado é uma elaboração sobre o toque da sanfona, o conflito “Sul-Norte”, a hereditariedade, a identidade regional e o próprio sucesso. Eita, com seiscentos milhões, mas já se viu? Dispois que esse filho de

Januário vortou do Sul tem sido um alvoroço da peste lá pras bandas

de Novo Exu. Todo mundo vai ver o diabo do nego. Eu também fui mas não gostei. O nego tá muito modificado. Nem parece aquele

molequinho que saiu daqui em 1930. Era malera, boxudo, cabeça de

papagaio, zambeta, feio pra peste! Qual o que?!?!?! O nego agora tá

gordo que parece um major. É uma gazimira lascada. Um dinheiro

danado. Enricou! Tá rico! Pelos cálculos que eu fiz ele deve possuir pra mais de 10 contos de réis. Sanfonona grande danada, cento e

vinte baixos. É muito baixo! Eu nem sei pra que tanto baixo porque

arreparando bem ele só toca em dois. Januário não! O fole de Januário tem oito baixos mas ele toca em todos os oito. Sabe de uma coisa?

Luiz tá com muito cartaz. É um cartaz da peste! Mas ele tem que respeitar os oito baixos do pai dele.

O que chama a atenção nessa canção – e que vaza para todo o universo do forró tradicional – é que as relações de confiança, respeito, continuidade e mudança estão articuladas ao som da sanfona, que é instrumento de admiração, de animação de festas e também de conflito, ainda que bastante suavizado pela autoironia do artista nacionalmente reconhecido. As narrativas de artistas hoje consagrados sobre sua iniciação com a sanfona quase sempre incorporam de alguma forma construções sobre a ideia de hereditariedade. O cantor e compositor Targino Gondim descreve sua aproximação com o instrumento a partir da observação de seu pai na década de 1980, num discurso repleto de afetividade atravessada

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pelo instrumento e pela admiração por Luiz Gonzaga que, no seu caso, era reforçada por uma efetiva proximidade relacional (seu pai era amigo muito íntimo de Eugênio Gonzaga, irmão de Luiz). Com 12 anos de idade de repente eu tava assistindo televisão e meu

pai do lado tocando Asa branca e eu fiquei maravilhado. Olhei, fiquei

prestando atenção e olhando como ele fazia e aí eu pedi a sanfona e ele me deu a sanfona, que era 80 baixos, não era tão grande como

essa de 120. E aí eu já fui tocando e remendando ele; não tanto igual, mas remendando. Meu pai nunca tocou bem demais pra fazer show

de forró, mas ele aprendeu o suficiente pra me passar. Nunca can-

tava, era só instrumental. E aí eu aprendi a tocar com ele. (...) Foi quando Luiz Gonzaga faleceu em 89. Eu tinha ganhado um disco 50

anos de chão, com 5 discos de Luiz Gonzaga, com os maiores sucessos

dele, fiquei apaixonado por Luiz. Foi a época que meu pai se separou de minha mãe e passou um mês, foi embora, um mês distante e

levou a sanfona. E eu fiquei sem a sanfona e aquela paixão, aquela

loucura pra ter a sanfona de novo. Aí meu pai me presenteou e

me deu a sanfona. Ficou sem sanfona e me deu a sanfona. Aí eu

comecei a pesquisar a aprender mais as coisas de Luiz Gonzaga e

tudo e comecei a fazer show porque me convidavam. (depoimento ao autor em 12/11/2010. Juazeiro, Bahia)

No caso de Targino Gondim, a sanfona está associada ao afeto, transformando-se em artefato de hereditariedade que determina a própria profissão do filho. A distância do pai é associada à distância da sanfona, assim como a força simbólica da doação da sanfona, numa família com nove irmãos. A ideia de que o gosto pela sanfona é algo herdado consanguineamente surge como explicação para o próprio talento, ainda que o seu pai não tenha se profissionalizado. Em sua pesquisa sobre “velhos sanfoneiros” em atividade no nordeste brasileiro, Sulamita Vieira narra diversas trajetórias e discursos de músicos que vinculam o ofício de sanfoneiro a uma herança consanguínea (2006: 17-31). Não raro, a sanfona, herança familiar, é também instrumento de mobilidade social, levando a outros espaços físicos e simbólicos. De acordo com o sanfoneiro Tonico, o “Tonicão de Sobral”, um de seus entrevistados, a sanfona é ponte de superação de dificuldades que permite um trânsito social impensável:

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Toquei em muitos lugares, onde tinha oportunidade eu ia tentando

(...). Nunca esperei tocar nos Estados Unidos (1986) pra duas mil

pessoas... Na Itália (1994) com a Eliane, em Roma, Torino, Bolonha...

Até em Veneza, naquele aguaceiro lá. Quando voltamos, depois que fui pra Portugal (Tonico, citado em VIEIRA, 2006, p. 22).

Essa capacidade de trânsito fica ainda mais evidente na narrativa de trajetória de artistas que se tornaram famosos, que recorrentemente associam essa ascensão social à sanfona. Na brevíssima nota biográfica sobre Dominguinhos, no Dicionário Cravo Albin, o talento do sanfoneiro à profissão de seu pai e à intermediação de Luiz Gonzaga: Dominguinhos – Seu pai, mestre Chicão, foi um famoso tocador e

afinador de foles de oito baixos. Começou a tocar sanfona aos seis anos de idade, juntamente com mais dois irmãos, em feiras livres e

portas de hotéis do interior de Pernambuco. Com oito anos de idade,

conheceu Luiz Gonzaga na porta de um hotel em que este se apresentava com o trio “Os Três Pinguins”, formado por ele e mais dois

irmãos. Luiz Gonzaga acabou se tornando o seu padrinho artístico. Em 1954, mudou-se para o Rio de Janeiro, indo morar com o pai e com o irmão mais velho no município de Nilópolis, na Baixada

Fluminense. Nesta ocasião, recebeu do padrinho Luiz Gonzaga uma

sanfona de presente. (Disponível em: www.dicionariompb.com.br.

Acesso: 07/11/2011)

No caso de Dominguinhos, a herança familiar é sobreposta pelo apadrinhamento de Luiz Gonzaga, que identificou no “menino Domingos” grande talento com o instrumento, apoiando decisivamente sua carreira. O apoio consistiu em várias ações, entre as quais se destaca a doação de uma sanfona profissional para o talentoso instrumentista se desenvolver (DREYFUS, 2007:202). Parte da posição simbólica que Luiz Gonzaga assumiu para o forró deriva de sua atuação como “padrinho” mercadológico de sanfoneiros. Artistas como Dominguinhos, Trio Nordestino ou Marinês têm suas trajetórias cruzadas com a de Luiz Gonzaga, fornecendo uma hereditariedade não sanguínea, mas estética, como continuadores de um legado, de um conjunto de ideias e práticas culturais. A materialização dessa continuidade é comumente articulada através

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da sanfona, seja no compartilhamento do palco sob seu som, seja, mais incisivamente, através da doação de instrumentos. Targino Gondim sublinha o ato de doação como momento chave do processo de identificação e apropriação do instrumento. Na biografia de Luiz Gonzaga, o ato de doar sanfonas é recorrentemente lembrado como demonstração não só de um gesto carinhoso de reconhecimento de talento, mas também como uma forma de ampliar o escopo de tocadores-seguidores no repertório referencial do forró, encarnado no som aberto e vigoroso do fole. Sendo um instrumento relativamente caro (sobretudo o acordeão de teclado), o ato de doação é uma ação que reafirma uma relação social, um reconhecimento e uma dívida. Em estudo clássico sobre a dádiva, o antropólogo Marcel Mauss identifica na obrigação de dar e receber presentes uma manifestação de união relacional. “Se o presente recebido, trocado, obriga, é que a coisa recebida não é inerte. Mesmo abandonada pelo doador, ela ainda conserva algo dele” (2003:198). No caso da doação de sanfonas, o “espírito” do doador ainda tem o poder de estabelecer essa herança, funcionando como uma espécie de aval de qualidade. O comerciante de sanfonas Lauro Valério, atuante no ramo há várias décadas, narra uma história que ilustra muito bem essa relação de afetividade em torno do instrumento. Em 2002 eu sofri um assalto em meu depósito em São Paulo e levaram todo meu estoque de 12 sanfonas importadas. Com um preço médio de 20 a 25 mil reais cada uma, fiquei sem nenhuma condição

de trabalhar e completamente sem dinheiro em caixa. Certo dia, re-

cebi a visita de solidariedade de Dominguinhos, que me deu uma

sanfona Scandalli e disse: “Toma, Valério, pra você recomeçar” (de-

poimento ao autor em 10/11/2010, em Juazeiro, Bahia).

A sanfona funciona como instrumento de solidariedade, de pertencimento, de hereditariedade. Ela reforça laços afetivos e mantém relações sociais. Todo esse processo, no caso do forró, está relacionado a simbologias específicas de identidade nordestina. São simbologias que são construídas, continuadas e negociadas através do repertório do forró, entendido como grande acervo de pensamentos sobre o gênero, a sociabilidade e a identidade nordestina dessa música.

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O repertório O timbre da sanfona e sua portabilidade contribuíram em muito para a sedimentação de sua sonoridade como símbolo do forró. Podemos atribuir essa popularização também à estrela midiática de Luiz Gonzaga e a suas ações sistemáticas de apoio a sanfoneiros e doação de instrumentos. Mas, sobretudo, é necessário registrar que a sanfona é um instrumento versátil, trafegando com desenvoltura por valsas, tarantelas, tangos, dobrados, xaxados e até mesmo pelo repertório de música erudita. O que vai fechar a associação entre a sanfona e o forró é a construção de um repertório de canções e de procedimentos composicionais que se tornam referência de “música nordestina”, através da midiatização hegemônica iniciada por Gonzaga. Essa associação é derivada de uma articulação complexa entre certa visualidade, um imaginário inscrito nas letras das canções e a sonoridade resultante de determinada maneira de tocar o instrumento. Luiz Gonzaga e seus seguidores de diversas gerações construíram certos procedimentos estilísticos que se consagraram como referenciais para o gênero. Destacam-se três procedimentos de acionamento do fole e de construção melódico-harmônica que matizam uma forma de reconhecimento do forró. Em primeiro lugar, a execução do fole esticado em acordes blocados, normalmente empregada em canções que enfatizam a distância, a saudade, o lamento, a tristeza. Diametralmente oposta a essa maneira de tocar, a execução do fole articulado vividamente também como acompanhamento, mas dessa vez adequado a músicas em ritmo acelerado (o xaxado, o arrasta-pé, o rojão) para cantar a alegria da festa, do encontro, da dança, da sedução. Por último, podemos registrar a utilização da sanfona para execução de melodias e contracantos, quase sempre com forte ocorrência de acordes arpejados, tendendo ao agudo e concluindo na região médiograve por graus conjuntos diatônicos. Certas passagens melódicas se tornaram características do forró e construíram marcas do gênero, estreitamente vinculadas ao som da sanfona e à sua dinâmica física de execução. Todas essas formas de tocar se materializam na sedimentação de um repertório consagrado, no qual a sanfona e o sanfoneiro se tornam temas recorrentes de letras e imaginários, moldando uma indissociação entre o sertão do pé de serra, o sentimento de saudade, o som da sanfona e o imaginário do sanfoneiro, ele mesmo metonímia do gênero.

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Um exemplo emblemático da força expressiva da sanfona como símbolo aglutinador do forró é o CD Com a sanfona agarrada no peito, do compositor Xico Bizerra. Lançado em 2009, o disco é composto por 15 canções de sua autoria, cada uma dedicada a um famoso sanfoneiro do repertório do forró. O ato de homenagear artistas do passado e do presente configura-se como uma ação de memória, que produz a formação de um cânone ao mesmo tempo em que marca uma filiação estética e conceitual. Interessante ainda, na organização do disco, é a ordenação das faixas, que matiza uma hereditariedade nesse panteão de sanfoneiros. As duas primeiras faixas são homenagens genéricas a um “sanfoneiro desconhecido” e a todos os sanfoneiros, imediatamente seguidas da canção Lua Brasil, composta em homenagem a Luiz Gonzaga. À faixa dedicada ao “mestre Lua”, seguem-se reverências apaixonadas a Dominguinhos, seu sucessor, Sivuca, Osvaldinho do Acordeon, Flávio José, Genaro, Arlindo dos 8 Baixos, Zé Bicudo e Camarão, além de mais duas faixas dedicadas à própria sanfona e à “mulher sanfoneira”. Ainda mais significativo, no disco, é o texto de abertura, escrito pelo próprio Xico, no qual expõe em prosa poética sua admiração pelos artistas do fole. Neste disco temos a pretensão de homenagear, modesta, mas sinceramente, o Rei Luiz e seus discípulos, seus seguidores. Trata daqueles

que, a seu exemplo, grudam a sanfona no peito que nem a mulher amada, junto ao coração, e dela recolhem as notas plantadas no fundo

do âmago e adormecidas no teclado da sanfona, ensinando-as os rumos da melodia, harmonizando-as pelo fio condutor da paixão. De Si-

vuca a Chico de Odete, de Severino de Zé do Ubaldo a Dominguinhos, de Osvaldinho a Zé Calombo da Paraíba, nossa gratidão pelo bem que

fazem ao sertanejo no resfolegar do fole, enchendo a carroceria da alma do povo de alegria, arejando com ventos aracatis as boléias dos

corações e amenizando a saudade de quem, longe do seu torrão,

pra lá se transporta na escutação de teclas e baixos da sanfona. O

aguamento do terreiro dos olhos, inevitável nesses momentos, é lágrima da boa, como diria o Poeta. (XICO BIZERRA, 2009, grifos meus)

Como vemos, a narrativa consolidada do forró em torno da ideia de saudade e do sertão é investida de alta taxa de afetividade em torno da ideia da proximidade entre a sanfona e o “peito”. Nas entrelinhas

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da adoração à sanfona, nasce frutífera a noção de que o som do fole é produzido nas regiões mais sensíveis da alma humana, ratificando uma relação espiritualizada com o ritual da música. Destaca-se ainda a referência a Luiz Gonzaga, que matiza a correspondência de qualidade e autenticidade do forró, temperado com a sanfona tocada à sua maneira. O disco de Xico Bizerra é uma pequena amostra contemporânea de uma longeva associação entre o imaginário do forró e o som da sanfona (e o sanfoneiro), que funciona também como eixo estruturador da festa e da alegria. Em 1985, a canção Amigo velho tocador (Dominguinhos) descreve essa alegria e o ambiente do forró e do forrozeiro. Que bom a gente ouvir o som de um 8 baixos De um velho 8 baixos no interior

Na mão de um tocador que toca a noite inteira

Um forró com gemedeira um forró bem gemedor

A reverência aqui é à tradicionalidade da sanfona de 8 baixos, com sua estrutura rústica e encontrada “no interior”. Uma ideia recorrente na construção do imaginário do sanfoneiro é sua resistência em “tocar a noite inteira”. Sendo a força física e a bravura atributos associados à própria identidade nordestina, o tocador animador de festas também deve ser possuidor de energia para aguentar a sanfona e segurar a festa. Sua resistência é um termômetro da qualidade do evento e de sua puxada de fole, que, em alguns momentos, ganha até uma autonomia em relação ao instrumentista: O candeeiro se apagou, o sanfoneiro cochilou

A sanfona não parou e o forró continuou (Forró no escuro, Luiz Gonzaga, 1958)

Em outro caso, o fole furado não impede a animação da festa, que paradoxalmente atesta a própria qualidade do “sanfoneiro do fole furado” da canção Forró número um (Cecéu): Sanfona velha do fole furado Só faz fum, só faz fum

Mesmo assim o cavalheiro faz um refungado

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E o coração da morena faz tum tum

(...)

Vem gente de todo lado conhecer o sanfoneiro

Porque ele é o primeiro a tocar com o fole furado

E logo, logo, já começa o zum zum zum

Sanfona véia assim não se vê em canto nenhum

E haja fum, haja fum, haja fum

Forró com esse fole é forró número um

Muitas vezes, no repertório de Luiz Gonzaga, a sanfona se torna personagem com atributos humanos e é capaz de chorar (Sanfoninha choradeira, 1984), de gemer (Fole gemedor, 1964; Fole danado, 1974), de resfolegar. Um caso particularmente interessante é o da canção Sanfona do povo (Luiz Guimarães / Luiz Gonzaga), faixa-título do LP lançado em 1964, após o episódio do roubo da sanfona do artista. Quem roubou minha sanfona, ai

Traz de volta seu ladrão

Olha que essa sanfona sempre foi a minha dona

Tem valor de estimação

Quem roubou minha sanfona, eu bem sei Foi alguém sem coração

Nesse dia não cantei, quase chorei Foi tão grande a emoção

Quem roubou minha sanfona Peço não faça de novo Pois esta sanfona bela

Que eu estou tocando nela É a sanfona do povo

Além da letra, vale registrar que a música, em andamento lento, se inicia com uma dolorida introdução tocada com o fole esticado e muitos ornamentos melódicos que encarnam sonoramente a dor da perda de seu instrumento querido. Nessa gravação, o artista explora a execução grandiosa da abertura do fole, espiritualizando o acompanhamento enquanto entoa seu lamento com notas prolongadas e muita emoção. Depois da gravação dessa música, Gonzaga iria encomendar uma sanfona

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nova à fábrica Todeschini com a inscrição “É do povo”, que a partir de então passou a ser aplicada a todos os seus instrumentos (DREYFUS, 2007:233). A canção e a inscrição materializam o seu protagonismo na sedimentação do forró como música do “povo nordestino”, que, a partir de sua obra, se vê reconhecido no mercado musical nacional. A peculiar noção de propriedade do instrumento que escorrega concretamente da sua sanfona para se apoiar simbolicamente na sonoridade reconhecida pelo genérico “povo” é um símbolo eficaz para pensarmos na construção dessa associação entre a sonoridade do fole e a identificação musical mais ampla do gênero musical. Sanfona e forró se integrarão de forma tão poderosa que, no início da década de 1990, quando a vertente eletrônica do gênero busca reconstruir as bases da identificação entre forró e identidade nordestina, não prescinde da sanfona. O disco de estreia da banda Mastruz com Leite, Arrocha o nó (1991), é inteiramente acompanhado por uma sanfona vigorosa, presente em acompanhamentos, introduções e contracantos. É claro que isso não significa que a sonoridade da Mastruz reproduza fielmente os referenciais consagrados do gênero. Em muitas canções dos primeiros discos da banda, o acompanhamento incorpora bateria e contrabaixo e a levada é baseada em um violão folk que articula o contratempo marcado das músicas, ora dobrando a sanfona, ora sozinho. O desenho rítmico do acompanhamento é um tanto mecânico, com poucas variações e com uma ocorrência episódica de contracantos. Além disso, em várias gravações é possível ouvir um diálogo entre o solo de sanfona e o saxofone alto, que muitas vezes substitui o fole na condução de introduções e intermezzos. Com essas características timbrísticas, a Mastruz, de fato, soa diferente da tradição do forró, mas não exatamente pela ausência da sanfona ou por uma diminuição de sua importância. O movimento de tensionamento dos referenciais sonoros processado pela Mastruz, contudo, não é exclusivo. Desde o final da década de 1970, vários artistas ligados ao forró tradicional buscavam “atualizar” a sonoridade do trio característico, com misturas e inclusões. Em depoimento ilustrativo, o cantor e compositor Petrúcio Amorim descreve essa busca por “renovação” sonora: Foi quando em 1978, 1979 (...) apareceu Jorge de Altinho (...) com

uma tendência de deixar o forró mais jovem. Porque a característica

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no ceará não tem disso não

do forró (...) era a zabumba o triângulo e a sanfona, e cada um que

ouvia imaginava o pai, o avô, a avó, (...) pensava em Luiz Gonzaga,

falando do sertão, da vida do boiadeiro, da seca, da miséria. Então

Jorge me falou que estava querendo fazer um trabalho no Nordeste, mas que fosse uma conotação de música popular e que as rádios

voltassem a tocar o forró (...). Aí é onde vem a história que eu digo história melhorada do forró. Forró só se ouvia zabumba, triângulo

e sanfona. Aí passou-se a fazer show com a inclusão da bateria, do

baixo, da guitarra e dos metais: sax, trombone e pistom. (...). Porque

(...) a adesão estava sendo tão grande ao forró que (...) começaram

a fazer [shows] em casas grandes com capacidade de 5 mil, 6 mil pessoas. Pra se formar no palco o show somente com a zabumba, o

triângulo e a sanfona não dava para as pessoas ouvirem, mesmo que

fosse boa a qualidade do som da época, não se ouvia perfeição, não

tinha o baixo para dar o peso, não tinha a guitarrinha pra dar o agudo. De peso mesmo a zabumba que não é esse peso todo, o triângulo

fazendo o agudinho e a sanfona. E as pessoas sentiam necessidade

(Petrúcio Amorim, depoimento ao autor em 25/02/2008).

A necessidade apresentada em termos mercantis pelo compositor é também associada a uma “necessidade” simbólica de se afastar do referencial “antigo”, da música que lembra o avô. O dilema dos artistas ligados ao forró era conciliar a reverência ao repertório com a negociação de outros sons. O ambiente sonoro da época, caracterizada pela emergência da discoteca e posteriormente da chegada do grande pop internacional e do BRock2, gerava em torno da sanfona um intenso conflito geracional, fazendo com que os forrozeiros ouvissem o instrumento com admiração e sedução, mas como uma espécie de obstáculo para sua divulgação no mercado. Targino Gondim descreve a tensão que cercava o instrumento em sua adolescência: Eu tinha um problema comigo na época que era o preconceito. As

pessoas viam a sanfona como um instrumento arcaico, instrumen-

O neologismo BRock tem sido usado amplamente na bibliografia sobre música brasileira da década de 80. 2

A sanfona

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to do mato. E eu percebia isso e eu gostava de tocar sozinho, mas

quando tinha uma festinha em casa que aí, no meio da festa, todo

mundo bebendo, diziam “ah, Targino toca sanfona”! Aí me chama-

vam naquele auê, naquele oba-oba, pra tocar sanfona pra eles e eu

ia, mas eu sentia que as pessoas me olhavam de um jeito diferente.

Assim, a impressão que dava era que “esse menino é matuto, ao invés de tocar guitarra, teclado; toca sanfona!” E eu ficava com vergonha e

não queria tocar pra ninguém. (depoimento ao autor em 12/11/2010.

Juazeiro, Bahia)

A oposição entre a sanfona e a sonoridade jovem do teclado e da guitarra é quase didática para pensarmos nessa articulação entre timbres. O sanfoneiro, enquanto jovem, deveria se identificar com os signos e sons do mundo jovem, e a sanfona, com sua forte carga rural e hereditária, simbolizava um afastamento dessa jovialidade. Ao mesmo tempo, os forrozeiros buscavam renovação. O cantor e compositor Jorge de Altinho, citado por Petrúcio, é personagem importante nesse processo, pois começa a gravar no início da década de 1980 discos que combinam o referencial da sanfona com outras sonoridades. Seu primeiro disco, O príncipe do baião (1980), apresenta uma sonoridade fortemente ancorada na sanfona, que será progressivamente ampliada com a inclusão de baixo e bateria, teclado e guitarra, já no seu LP seguinte, Meu cantar, de 1982. Em 1987, o disco Calor de verão apresenta uma sonoridade bem animada, com participação expressiva do naipe de metais e com levadas que aproximam muito seu som da lambada de Beto Barbosa e Luiz Caldas, sucessos no período. Esse disco, no entanto, não se afasta do referencial consagrado do forró através da aproximação reverente com símbolos do repertório consolidado (a sanfona), com uma providencial participação de Luiz Gonzaga na faixa Deixa clarear (Cecéu) e com várias canções cujos versos descrevem a festa do forró, como Né mentira não (Cecéu): Eu gosto de um forró melado, suado e poeirado da cabeça até o pé

Onde tem cana de cabeça daquela que é boa

Onde o sanfoneiro padece e a morena não enjoa Onde se ouve o xique xique da chinela Onde a donzela cai na mão do gavião

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no ceará não tem disso não

Onde a sanfona e o zabumba se incrementam

O cabra se arrebenta e dança até de pé no chão

Matizando sua renovação sonora no ambiente rural da descrição da festa, Jorge de Altinho desenvolve um percurso de modernização reverente, que não procura questionar os modelos sonoros e ideológicos do forró, mas atualizá-los. Nesse sentido, a Mastruz, que lança seu primeiro LP quatro anos depois, soa diferente também pela aproximação irreverente com o repertório tradicional, associada a uma performance ao vivo peculiar (da qual falaremos mais adiante) e ao repertório. O que chama a atenção no repertório da banda montada por Gurgel é a heterodoxia. Convivem no espaço simbólico do show e dos discos práticas musicais aparentemente distintas que, atravessadas pela sonoridade da sanfona, violão folk, saxofone solo, baixo e bateria (além de algumas incursões de teclados eletrônicos), traduzem para uma ambiência forrozeira (mais do que numa tradição do gênero) praticamente qualquer canção. A heterodoxia da Mastruz permite à banda gravar discos em homenagem a grande nomes consagrados do forró como o próprio Luiz Gonzaga (No forró de Gonzagão, 1996), Jackson do Pandeiro (No forró do Jackson do Pandeiro, 1996), Trio Nordestino (Mastruz com Leite canta Trio Nordestino, 1998) e Dominguinhos (Mastruz com Leite canta Dominguinhos, 1999). Destaca-se ainda nos primeiros discos da banda regravações de clássicos recentes do mainstream da indústria musical como o pot-pourri de canções sertanejas Pense em mim / É o amor / Cadê você, lançadas pelas duplas Leandro e Leonardo (em 1989) e Zezé di Camargo e Luciano (em 1991). Ao mesmo tempo, o estilo da Mastruz, avesso a amarras conceituais ou ideológicas, permite à banda investir em canções inéditas, lançando sucessos como Meu vaqueiro, meu peão (Rita de Cássia) e inaugurando uma vertente modernizada do forró. Já vem montado em seu alazão Chapéu de couro, laço na mão

Seu belo charme me faz cantar No rosto um grande lutador

Que trabalha com calor Com toda dedicação

Oh meu vaqueiro, meu peão

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Conquistou meu coração Na pista da paixão

E valeu, boi!

Um aspecto fundamental nessa liberdade temática da Mastruz é precisamente a associação com o universo da canção sertaneja do interior do Centro-Oeste e Sudeste do país, que assumia o protagonismo do mercado musical desde a década de 1980 com as duplas Chitãozinho e Xororó e Leandro e Leonardo. No mesmo ano de lançamento do primeiro disco da banda, Zezé Di Camargo e Luciano explodem com seu clássico É o amor e sedimentam um mercado sertanejo que também reprocessam o referencial rural do gênero. A emergência dessas novas formas de narrar o universo rural pode ser pensada a partir de uma hierarquização de valores na qual o urbano e o moderno assumem definitivamente a posição de prestígio, em detrimento do agrário e rural, que se vincula atavicamente à noção de atraso. Num mercado cultural globalizado e voltado para o jovem, a ideia de modernização passa a ser uma necessidade latente. Para aguentar o tranco do peão que corcoveava na potente pick-up, do pecuarista que negociava em dólar e ia de jatinho de uma fazenda

a outra, dos seus filhos universitários que falavam inglês e ouviam

música internacional, e dos colonos com microsystem na sala e antena no quintal, som sertanejo só bem acabado, com arranjos atuais,

embalado com muitos megawatts de potência. Nesse cenário, a ser-

ventia da violinha de dez cordas virou, malemá, conversa para boi dormir [...]. (NEPOMUCENO, 1999:203)

O vaqueiro, o peão e o próprio sertão não são mais, necessariamente, exclusividade da identidade nordestina, mas podem se tornar referenciais jovens, articulados ao universo do mundo pop, mas mantendo referências ao imaginário rural modernizado. Se a viola de dez cordas era um referencial a ser descartado no universo da música sertaneja, no caso do forró a sanfona tinha uma posição mais complexa e não foi imediatamente descartada, mas progressivamente associada a outras sonoridades que geravam um forró menos “sanfonado”. No terceiro disco da Mastruz, intitulado Coisa nossa, a sanfona é textual e sonoramente

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homenageada, ainda que coadjuvada por um saxofone de timbre bastante metálico. Que xameguinho bom que a sanfona faz É sem sair do tom, estou querendo mais É numa nota só é no forrobodó

Que o cabra que não fica só Seu sanfoneiro toque mais!

(Sanfoneiro toque mais, 1993)

Mas a oposição de fundo entre a “banda” e a sanfona (ou o trio) vai se intensificando como uma disputa de timbres, sons e ideias. Numa espécie de antevisão do fenômeno do forró eletrônico, que só explodiria efetivamente a partir da década seguinte, Dominguinhos lança, em 1985, a canção Pra fungar e poeirar (João Silva / Maranguape), na qual compara as sonoridades da “banda” e da “sanfona”. Para a banda que chegou o sanfoneiro

O sanfoneiro é bem melhor pra se dançar

A banda até que toca direitinho

Mas o gostoso do forró é o fungadinho

Que a banda toca mas não dá Nem pra dançar nem poeirar

Indo um pouco mais além, o próprio “fungadinho” da sanfona se constituiu em um modelo de sexualidade, sonorizando um ambiente de festa, de dança e paquera. O forró como evento social é revestido de uma forte sensualidade, que resvala da dança para a festa e desta para a sonoridade do fole articulado em um sugestivo vai e vem. Também em 1985, o cantor e compositor Jorge de Altinho lança a canção Bom de fole (Bastinho Calixto e Gebardo Moreira), que explicita algumas associações sexuais. Empurra o dedo, saculeja e puxa o fole Não seja mole e bote o sol pra derreter

Se a sanfona, o triângulo e o pandeiro

Estão tocando no zabumba eu vou bater

A sanfona

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Eu contratei um cabra macho bom de fole Para tocar nesse pagode até cansar

O cabra mole pelo jeito ele não pode

Tocar sanfona até o dia clarear

Deixa a moçada se acabar no rela-rela

Esquenta a goela com cachaça até queimar Deixa o batuque levantar terra do chão Deixa o vestido da morena levantar

Com uma levada animada e arranjo inteiramente apoiado na puxada rápida da sanfona, a canção retoma a ideia da resistência (até o dia clarear) sublinhando a dimensão erótica e sedutora da festa do forró. O vestido levanta no “rela-rela” ao som da sanfona, que, de certa forma, é o instrumento que faz tudo acontecer. Mas aí já não estamos falando apenas da sanfona, mas de outro aspecto fundamental na construção simbólica e discursiva do repertório do forró e também de certa ideia de nordestinidade: a safadeza.

O amor e a safadeza

O forró é uma música safada. Tendo sido criado no espaço lúdico da festa, o gênero está estreitamente articulado com a sedução dos encontros amorosos, com a dança de par e com a libido. A safadeza do forró é constitutiva do gênero, presente em letras picantes, na levada da sanfona, na dança erotizada e na energia do “salão”, seja ele criado metaforicamente na terra batida das fazendas do sertão ou no terreno cimentado nas praças públicas. O repertório forrozeiro consolida-se nessa linha propositadamente imprecisa entre a permissividade e o conservadorismo, no tempero quente das festas populares (nos vários sentidos possíveis associados ao vocábulo). Há várias linhas possíveis de análise dessa safadeza do forró. Em primeiro lugar, os aspectos ligados à dança. O contato corporal entre homens e mulheres (sim, o conservadorismo forrozeiro anula quase totalmente a possibilidade de formação de casais homossexuais1) é um código ambíguo de manifestação da sexualidade, análoga a outras práticas dançantes em todo o mundo como o tango, a salsa ou o bolero. Mas a dança não é só um elemento erótico de sedução, constituindo-se também uma chave de aproximação afetiva entre casais. Nesse sentido, é difícil dissociar a safadeza do romantismo. A dança forrozeira é uma peça de uma Climério Santos menciona a possível existência futura de um forró queer, citando o exemplo do grupo de bacamarteiros de Serra Talhada “Canga Gay”, que dramatizam pelotões armados de bacamartes ao som de sanfona, triângulo, zabumba ou de banda de pífanos. Contudo, o autor reconhece que a iniciativa é tímida e polêmica, e, no ambiente do forró, apesar da diversidade de orientações sexuais entre cantores e músicos, verificase “a ausência de intérpretes que dramatizem essas orientações – como ocorre no rock e na MPB – [o que] parece ser um sintoma de uma ostensiva heteronormatização e de um paralelo recalque” (SANTOS, 2014:270). 1

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engrenagem que funde amor e sexo num ambiente de atrações e sentimentos variados. Nas letras, manifesta-se o amor romântico e as privações pelo afastamento da amada (a saudade onipresente!) ao mesmo tempo em que se valoriza o chamego do encontro dos corpos e a dança como dramatização da relação sexual. Mas as letras também estão carregadas de duplos sentidos. Toda a semântica safada se materializa em letras que recorrem com incrível frequência a metáforas sexuais e valorizações de atributos sensuais. Talco no salão, peba na pimenta, chupa que é de uva, fubica lubrificada! O bom humor dos duplos sentidos mascara as tensões (ou pulsões, para ficar mais freudiano) sexuais da festa, atravessada por interdições morais de várias ordens. O ambiente bem-humorado é outra chave de aproximação para o repertório forrozeiro, ingrediente fundamental para imprimir leveza a temáticas espinhosas ou proibidas.

Dança, corpo e sexo A safadeza do forró é um contínuo entre a festa, as letras, a sonoridade e a dança. Não é possível pensar sobre o gênero sem considerar sua funcionalidade como música para dança e todas as questões associadas ao forró estão imbricadas com o espaço físico e simbólico do salão de dança. Numa síntese particularmente feliz e declaradamente apaixonada pelo gênero, Claudia Matos apresenta a questão: É possível dançar individualmente o samba, o rock e a maioria da música pop. Mas forró (no sentido amplo) só se dança junto. E muito

junto! Forró se dança colado, estimulando o namoro, acoitando e

celebrando o contato erótico dos corpos. É o paraíso da paquera, a

ocasião ideal para se permitir um xamego, uns cheiros, uns beijos,

um pecadilho, um jeito sonso e manhoso de se mover e se tocar.

Com a liberação sexual contemporânea, essa conduta e significação eróticas exacerbaram-se. Frequentado majoritariamente por jo-

vens e muito jovens, o forró hoje em dia é um dos ambientes mais

propícios para “ficar”, numa facilidade de aproximação embalada pela coreografia do sarro, de um jeito ao mesmo tempo indecente e

inocente, que pode impressionar e confundir o observador externo

(MATOS, 2007:431).

O amor e a safadeza

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Há vários aspectos aqui. Inicialmente, é necessário termos em mente que o forró é uma música associada a um evento que recebe o mesmo nome. Como evento festivo, é ocasião de encontros sociais e amorosos. Evidentemente, isso não é exclusividade do gênero, mas é característica própria de qualquer festa. A dança de par forrozeira promove momentos de aproximação dos corpos, embalados em requebros de quadris, abraços e “roçadas” em pernas, coxas e pélvis. A proximidade dos rostos permite também a percepção do calor corporal, do suor e da respiração do outro. Por isso a “coreografia do sarro” permitida pela dança é momento propício para aproximações sedutoras e eróticas. Chamar alguém para dançar é um convite para uma espécie de dramatização coreográfica que tem o potencial de metaforizar a própria relação sexual. Nesse sentido, os ritmos que compõem a classificação do forró são ritmos dançantes, que promovem deslocamentos nos tempos fortes, processados basicamente pelo acompanhamento (como vimos, recorrentemente conduzido pela sanfona). Os deslocamentos rítmicos são dançados com deslocamentos corporais e essa movimentação opera como deflagradora potencial do erotismo da dança. Há diversas canções no repertório do forró cujas letras narram a dança como ritual de encontro que promove a formação do casal em torno do amor e do sexo. Apesar de encontrar nas linhas acima uma elaboração difícil de ser refutada por qualquer pessoa que já tenha algum dia ido a uma festa de forró, é necessário observar que a continuidade entre dança e a atividade sexual – ainda que entendida simbolicamente – merece uma discussão um pouco mais cautelosa. Para Frith, a vinculação direta entre o rock, por exemplo, e o sexo não deriva dos sons, mas de convenções sociais (1989:123). Mais do que falar especificamente sobre a prática sexual propriamente dita, parece mais rentável pensarmos no terreno da sexualidade, da construção de identidades sexuais e de formas de relação afetiva e sexual atravessadas pela constituição dessas identidades e dos desejos. A sexualidade é um dos aspectos mais intensamente prazerosos e

ao mesmo tempo mais problemáticos da experiência humana. Ela é ao mesmo tempo o campo mais pessoal e o mais cuidadosamente

constrangido da ordem social. (...) A música é capaz de atuar decisivamente para a construção da identidade individual: junto com

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outros meios influentes como os filmes, a música nos ensina como experimentar nossas próprias emoções, nossos desejos e inclusive

(especialmente na dança) nossos próprios corpos. Para o bem ou para o mal, a música nos socializa (McCLARY, 2002:53).

Nesse sentido, a dança de par opera como um vetor de constituição e dramatização de papéis masculinos e femininos. Segundo McClary, é possível identificar uma ampla gama de convenções de linguagem musical que associam, de um lado, o corpo e os sentimentos ao feminino e, do outro, a mente, a espiritualidade e a razão ao masculino. Analisando a ópera Carmem, de Bizet, a autora afirma que “as estratégias musicais de Bizet, (...), apresentado tensões tão insuportáveis que causam no ouvinte não somente a aceitação da morte de Carmem como algo ‘inevitável’, mas os leva a efetivamente desejar sua morte” (2002:62, grifo no original). A assimetria entre o imaginário feminino (fraco, doce, emotivo) e masculino (forte, expansivo, racional) se torna um padrão de negociação da sexualidade que é processado em praticamente todas as atividades humanas, entre as quais a música e a dança se destacam. A dança “não é uma mera multiplicação de reações corporais a sons particulares, mas sim encadeamentos de movimentos nos quais se produzem figuras ou contrafigurações expressivas” (QUINTERO RIVERA, 2005:38). Tal expressividade está sujeita a controles de várias ordens, impondo modos de comportamento adequados ao feminino e ao masculino. No forró, no tango, na salsa, no bolero e na ampla maioria das danças de salão, a condução dos passos é realizada pelo homem, que deve “proteger” e “guiar” sua parceira. À mulher cabe “responder” à condução masculina com leveza e graça, estabelecendo uma negociação corporal altamente hierarquizada. Sobre esse aspecto, é interessante observarmos iniciativas como a do tango queer, que busca deslocar os rígidos papéis da dança tradicional do tango, possibilitando troca de papéis durante a dança. Nesta modalidade de dança, a posição mais aberta do abraço cria “uma distância maior entre os corpos que formam o par, numa união que permite gerar espaço para o exercício de uma maior destreza individual e que facilita o reconhecimento da transição da troca de papéis” (LISKA, 2009:2). O jogo, assim, é uma performance entre indivíduo e duo, entre uma certa autonomia coreográfica do primeiro em contraposição a um controle regrado do segundo.

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Porém, no forró não há espaço simbólico para um intercâmbio entre os papéis masculino e feminino e muito menos para uma versão queer. É um gênero em que se dança “muito junto” e seguindo o protocolo estabelecido: o homem conduz a dança e a mulher o acompanha. Se abusarmos um pouco da metáfora sexual, a dança pode articular uma encenação corporal das atitudes desejáveis do próprio ato sexual: o homem conduz e a mulher seduz. Num ambiente cultural fortemente codificado e rígido, o flerte da paquera também se condiciona ao poder patriarcal machista, demarcando modos de dançar e modos de participar do jogo erótico. As estratégias sexuais (poderíamos falar talvez, bourdieusianamente, numa espécie de “economia erótica”) da dança estão bastante presentes nos passos do forró, mas vazam também para as letras e até mesmo para a malícia do resfolego da sanfona (metáfora recorrente no repertório tradicional). Em alguns exemplos, a dança se torna uma metáfora para o sexo, onde “dançar a noite inteira” equivale a “transar a noite inteira”, narrativa que invariavelmente é apresentada por um ponto de vista masculino. Um exemplo significativo de um clássico do repertório é a famosa Numa sala de reboco, lançada por Luiz Gonzaga em 1964 e regravada em 1985 por Dominguinhos com participação de Mestre Lua. Todo tempo quanto houver pra mim é pouco

Pra dançar com meu benzinho numa sala de reboco

Enquanto o fole tá tocando tá gemendo

Vou dançando e vou dizendo meu sofrer pra ela só E ninguém nota que eu estou lhe conversando

E nosso amor vai aumentando pra coisa mais melhor Só fico triste quando o dia amanhece

Ai, meu Deus se eu pudesse acabar a separação Pra nós viver igualado a sanguessuga

E nosso amor pede mais fuga do que essa que nos dão

(Numa sala de reboco, de Luiz Gonzaga e José Marcolino, 1964)

Se, por um lado, a paquera espertamente secreta (“ninguém nota”) aponta para o espaço concreto do salão de dança, a “dança” que dura a noite toda, animada por um fole que “toca” e “geme” é um preparativo

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para o desejo de uma vida a dois permanente, e não apenas nos espaços de “fuga” aproveitados. A ambiguidade da aproximação entre os campos semânticos de “fuga”, “sofrimento” e “separação” reforça a ideia de que a música fala de um momento de aproximação talvez mais intenso do que a dança, que faz o amor aumentar e o dia raiar. Ao mesmo tempo, a interdição do namoro é experimentada como provisória e, no futuro, o personagem espera o momento do amor livre, possivelmente num “quarto” de reboco. Mas é importante destacar que a conotação sexual da dança e das letras são possibilidades, que podem ser mais ou menos acionadas dependendo dos limites sutis que seus protagonistas irão se impor. Pensar nas letras de canções como expressão de imaginários compartilhados é uma estratégia analítica pertinente, mas corremos sempre o risco de homogeneizar práticas e ignorar apropriações variadas e difusas. Numa análise etnográfica da performance dançante do casal Fábia e Alexandre durante a execução da canção Saia e bicicletinha numa festa de forró eletrônico, o antropólogo Roberto Marques sublinha a possibilidade de haver uma certa distância entre o conteúdo da letra, a dança e o próprio pensamento compartilhado do casal. A letra descreve em seu refrão uma moça fictícia que “sai de casa em sua bicicletinha / uma mão vai no guidão e a outra tapando a calcinha”. Tal qual na experiência do axé baiano, cada verso exige do ouvinte

um gesto diferente, indicando ora a bicicleta, ora o guidão, ora a

calcinha. Fábia, ao dançar, não reconhece a si na letra da música. A moça que tapa a calcinha andando de saia é uma possibilidade do

feminino. Um arranjo possível naquela festa, em qualquer outra festa. Os olhares de Alexandre e Fábia se cruzam ironizando a ousadia da moça na letra da canção. Seria possível, em algum momento que

a intencionalidade impressa pelos olhares trocados sobrepusesse Fá-

bia e a moça da canção, ou Alexandre e a moça da canção. Isso não aconteceu ali e eles permaneceram rindo e “fazendo os passos” até o

final da música (MARQUES, 2011:181).

Marques descreve uma dramatização da dança, que, através do humor e da ironia, pode apontar para a negativa da letra, ao invés de sua conformidade. As experiências da música e da dança são modos

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de compartilhamento de ideias, não necessariamente de reiteração de ideias. É o casal, a dança e a dinâmica da festa que estabelece o grau de erotização da dança, o grau de sedução dos corpos, sua aproximação ou afastamento. Nas estratégias sociais e afetivas do forró, a correta “leitura” dos códigos de intencionalidades e permissões difusas é uma das chaves para aproveitar a festa e a alegria do forró. As interdições e encorajamentos nunca são explicitados sob os holofotes. Por este motivo, a penumbra do salão de dança é não somente uma contingência, mas elemento fundamental para o sucesso do baile e para sugestão de um anonimato social do casal que dança. Há dois exemplos bastante didáticos que versam sobre a valorização da meia luz. O primeiro é Forró no escuro (Luiz Gonzaga, 1958), que descreve o sucesso de um baile que permanece animado mesmo sem iluminação. O candeeiro se apagou, o sanfoneiro cochilou

A sanfona não parou e o forró continuou (...)

Meu amor não vá se embora Fique mais um bocadinho

Se você for, seu nego chora

Vamos dançar mais um tiquinho

Na canção, a continuidade do forró vai até o amanhecer, mas o personagem necessita da presença do seu par para aproveitar a noite. Mas em Forró no claro (Antonio Barros), gravado pelo Trio Nordestino em 1978, a valorização da penumbra é ainda mais explícita, funcionando como uma reclamação incisiva sobre a quantidade de lampiões acesos. Nesse forró a gente tem vergonha

De dançar agarradinho

Aqui tem muito lampião aceso

Apaga o lampião, esconde o lampião Que a dança só é boa na escuridão

A “escuridão” é um condicionante para manter obscura a conotação propriamente erótica do roçar ritmado dos corpos na dança. O estabelecimento de um ambiente familiar e respeitoso – fingindo cumprir

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o rigoroso código moral conservador rural – demanda uma neutralização do conteúdo mais corpóreo da atração física. A pesquisadora Adriana Fernandes, em sua tese sobre o forró, descreve de maneira bastante elucidativa sua experiência nas festas de forró tradicional, que ela chama de “estilo nordestino”, em contraposição a um “estilo universitário”, que a autora identifica nos bailes e festas de São Paulo e Rio de Janeiro. Como mulher, eu sentia uma atitude de respeito, preocupação e

proteção enquanto dançava no estilo nordestino (...). Eu não sentia

que meus parceiros [de dança] estavam tentando me controlar ou

tirar proveito de mim, ou agir com algum tipo de improbidade. (...)

Quando eu aceito um convite para dançar forró eu permito que meu parceiro masculino lidere, e concordo em segui-lo sem reservas. Este pacto não é feito de forma explícita em palavras; ao contrário, é

feito implicitamente, através da música e dos movimentos corporais

(FERNANDES, 2005:239).

Não deixa de ser curiosa a separação que a autora estabelece entre “tirar proveito” e “aceitar que o parceiro masculino lidere”. Considerando que Fernandes toma como um acordo tácito a liderança masculina na condução da dança, o que ela possivelmente chama de “tirar proveito” seria a forma como essa dominação coreográfica é exercida e o tipo de aproximação corporal permitida ou não durante a dança. É um terreno extremamente instável que separa o “proveito” do “respeito”, que depende muito da maneira como o erotismo da dança será acionado. A licenciosidade e a variedade de códigos corporais durante a dança permitem uma pluralidade de maneiras de dançar e relacionar-se social e sexualmente. É nesse terreno ambíguo que a dança (e o próprio convite para a dança) pode revestir-se de inúmeros significados sensuais e eróticos ou pode ser simplesmente um momento de prazer corporal não erótico, desprovido de conotações sexuais. Não creio ser inútil lembrar que o forró-evento tem como referencial fundador e mitológico os bailes rurais familiares, nos quais as moças teriam permissão do patriarca para dançar com outros membros de sua família: pais, tios, avôs, irmãos, primos. Essa possibilidade já manifesta uma ambiguidade sensual na dança, que pode neutralizar o seu compo-

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nente erótico em situações nas quais ele não é desejável. Nesse terreno moral ambíguo, dançar forró se torna uma atividade com amplas possibilidades, situadas entre o prazer corporal assexual, o erotismo sedutor ou o afeto romântico.

O amor romântico e o amor safado Boa parte das letras do repertório forrozeiro é constituída de canções de amor, que narram de forma indireta a relação sexual. O grau de sutileza das sugestões corporais do “amor” – palavra que eventualmente também é empregada como eufemismo para o sexo – varia de acordo com a época, o artista, o espetáculo. Há casos bastante explícitos nos quais o sexo é um ingrediente do cotidiano dos casais e a canção apresenta de modo claro o “convite” para o sexo. Maria minha,

Sai dessa cozinha o café pode esperar

Vem ficar na rede que eu armei pra gente amar Se balançar, brincar de vai e vem

Maria minha

Vem que eu estou disposto a te fazer feliz Vem que eu faço gosto como sempre fiz

Vem minha rainha, diz que eu sou seu rei

(Maria minha, de Targino Gondim, cantada por Gilberto Gil, 2010)

Numa levada de xote, melodia sinuosa e performance vocal sedutora, a gravação de Gilberto Gil reforça o convite da letra, contextualizado num ambiente doméstico de um casal já constituído. É interessante que nessa canção, ao contrário de vários outros exemplos, é o cotidiano sexual que é tematizado e não os momentos excepcionais de conquista, paquera ou traição. Essa simbiose lembra o universo da canção romântica brasileira, que tem em Roberto Carlos seu maior expoente. Em parte significativa das canções do “rei”, narrativas de lençóis, roupas pelo chão e cavalgadas coexistem com declarações de amor enfáticas e até um pouco exageradas (TROTTA, 2011a:137). No forró, amor e sexo formam muitas vezes um único campo semântico, que ecoa nos movi-

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mentos sensuais da dança e no ambiente safado da festa. Um exemplo bastante conhecido do repertório do forró que descreve o sexo do casal é Amor com café (Cecéu), gravado por Elba Ramalho em 1982: Se você quiser o meu amor

Tem que ser assim agarradinho, escondidinho Bem bonitinho somente pra mim E de manhã cedo fazer o café

Trazer na cama depois do café

A gente se ama, a gente se gama depois do café Ficar o dia inteiro nesse dá-me, dá-me Nesse toma toma, nesse pega pega Nesse coma-coma

Nessa brincadeira sem ninguém dar fé

E o dia vai acabar e a noite já vem

O nosso amor pegando fogo vamos se queimar Levar a vida nesse jogo

Pra se ganhar e muito mais se querer bem

É difícil ouvir essa letra e não estabelecer uma comparação com Café da manhã (Erasmo Carlos e Roberto Carlos, 1978) clássico do repertório de Roberto Carlos que narra a “chama acesa”, o “amor” na manhã, o sexo que atravessa o dia surpreendendo o casal à chegada da noite 2. O amor do forró é, em vários casos, o amor sexualizado da canção romântica, o amor safado e corporal, o amor real da vida cotidiana. Nesse aspecto, o forró pé de serra e o eletrônico apresentam poucas diferenças substantivas, pois a continuidade entre amor e sexo parece ser uma constante do gênero. Em alguns exemplos do forró eletrônico, é possível identificar também certa naturalização do sexo como parte da vida a dois, que com recorrência assume nas letras um conteúdo mais efetivamente descritivo Para refrescar a memória dos leitores com uma das mais belas canções de Roberto e Erasmo: “Amanhã de manhã / Vou pedir o café pra nós dois / Te fazer um carinho e depois / Esquecemos de tudo // Em meus abraços / Na desordem do quarto esperar / Lentamente você despertar / E te amar na manhã / Amanhã de manhã / Nossa chama outra vez tão acesa / E o café esperando na mesa / (...)” 2

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das relações sexuais. Podemos classificar esses casos como narrativas de sexo com amor, que opera na verbalização de práticas sexuais amplificadas nos espetáculos coletivos dos shows das bandas. Um exemplo bastante eloquente dessa estratégia narrativa é a canção Chupa que é de uva (Elvis Pires / Richardson Maia / Rodrigo Mell), grande sucesso 3 de Aviões do Forró em 2008. [ELE] Vem meu cajuzinho, te dou muito carinho Me dá seu coração, me dá seu coração

Vem meu moranguinho, te pego de jeitinho Te encho de tesão, te encho de tesão

[ELA] Me deixa maluca, tirar o mel da fruta Me mata de amor, me mata de amor Me pega no colo, me olha nos olhos

Me beija que é bom, me beija que é bom

(refrão:)

Na sua boca eu viro fruta,

Chupa que é de uva

Chupa, chupa, chupa que é de uva

A conhecida metáfora da fruta aparece nessa canção como ingrediente apetitoso do sexo do casal. Imagens verbais consagradamente associadas ao afeto como o olhar nos olhos, o coração, o carinho e a própria polissemia da palavra amor são relacionadas lado a lado com vocábulos que remetem ao ato sexual como o verbo chupar, o tesão, o beijo. A ideia de sexo com amor se acentua ainda com o uso dos diminutivos, que ao mesmo tempo fornecem um atalho para rimas fáceis e apresentam um ambiente amoroso e envolvente para o sexo. Pode-se O caso da gravação dessa música é curioso. Apesar de ter sido tocada exaustivamente em rádios, shows e eventos durante todo o ano de 2008, a música não integrou nenhum dos (até agora) sete CDs “oficiais” da banda e ficou disponível para download durante anos no site oficial www.avioesdoforro.com.br. Essa aparente contradição demonstra claramente a ênfase nos shows que Aviões que faz parte inerente do mercado do forró eletrônico. Contudo, desde o lançamento do “volume 6”, distribuído pela Som Livre, a banda deixou de disponibilizar seus arquivos sonoros e visuais e tem atuado de forma mais convencional no mercado de música. Discuti esse caso em maiores detalhes em Trotta, 2009. 3

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alegar (e isso foi alegado) que essa canção ultrapassa o limite aceito da descrição sexual ao utilizar metáforas exageradamente diretas de forma insistente. Concordo que há uma diferença de gradação entre o “vai e vem” da “rede” e o “mel da fruta”. Porém, parece-me conveniente analisarmos o grau de eficácia e de explicitação das metáforas inserido no contexto dramático da canção, que articula amor e sexo. Em Chupa que é de uva, assim como em Amor com café ou Maria minha, o amor é um sentimento condicionante para o sexo, facilitador do encontro sexual e realização do afeto. Em ambos os casos, o sexo é descrito através de metáforas que obscurecem o sentido mais direto, apagam o lampião. Por outro lado, em muitos casos, o romantismo forrozeiro assume uma forma mais descorporificada. A sensualidade é sonoramente tão presente no swing da dança, das levadas contramétricas e no resfolego da sanfona (e dos corpos), que permite que as letras tematizem o amor de forma mais idealizada, totalmente desvinculada do prazer sexual, do encontro corporal. Não devemos esquecer que o forró, apesar de sua origem rural e comunitária, é um gênero de canção popular e seus elementos sonoros, semânticos e poéticos estão imbricados com as temáticas predominantes da música pop nacional e internacional. E, como dizia Edgar Morin na década de 1970, o amor é tema obsessional na cultura de massa (MORIN, 1977). O forró não se situa fora dessa obsessão. O amor romântico vai aparecer basicamente sob a forma de narrativa de desejos e no lamento de separações. Podemos lembrar aqui mais uma vez do trabalho de Luiz Tatit sobre canção popular. No primeiro caso, as canções funcionam como artefatos de paquera, articulando convites para uma vida a dois futura. É, segundo Tatit, um tipo de expressividade entoativa que promove a presentificação do “eu” narrador. Quase sempre o personagem-narrador apresenta seu desejo para a amada, buscando valorizar a felicidade que irá preencher a vida de ambos, caso o amor se concretize. Vem ficar comigo, vem cuidar de mim Só o teu amor me deixa feliz

Não deixa eu sofrer, nem deixe eu chorar

Sou capaz de tudo só pra te amar

(Vem ficar comigo, de Nando Cordel e Félix Porfirio, gravado por Petrúcio Amorim em 1986)

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O convite cantado é um meio sedutor, que busca aproximar a amada, através do sentimento. Uma gíria bastante empregada há várias décadas para se referir ao ato de tentar seduzir alguém com palavras é justamente... “cantada”. “Dar uma cantada” é uma ação que se realiza pela voz entoada e se reforça por todo um conjunto de expressões e movimentações corporais. A cantada é uma ação que busca a concretude de uma realização afetiva e sexual, apontando para um futuro próximo. É um movimento poético de angústia, que performatiza um sofrimento provisório, extinto por um possível “aceite”. Da minha casa pra tua é tão perto, vou de pé

Aqui sinto teu perfume, o cheirinho do café

Escuto você cantando com essa voz de mulher

Mesmo assim fica tão longe porque você não me quer Faça isso não, meu bem, faça isso não

Você tão perto de mim, longe do meu coração Faça isso não, meu bem, faça isso não

Tenha dó de quem te ama, vem viver essa paixão

(Vem viver essa paixão, de Pinto do Acordeon, gravada por Maciel Melo em 2005)

O apelo para a amada objeto do desejo corresponder ao sentimento do “eu” narrador da canção é ao mesmo tempo vitimizante e esperançoso, articulando uma potencialidade do amor. Mas o amor é também um território de sofrimento. Apaixonar-se é algo sempre arriscado, e muitas vezes o sentimento sobrepõe-se à própria vontade do personagem, como em Coração: Coração, para que se apaixonou Por alguém que nunca te amou

Alguém que nunca vai te amar

Eu vou fazer promessa para nunca mais amar

Alguém que só quis me ver sofrer

Alguém que só quis me ver chorar

(de Dorgival Dantas, gravado por Aviões do Forró em 2003)

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Os verbos no presente e no futuro, a aposta de um momento próximo que determinará o fim do sofrimento (no caso de Coração) ou promoverá a formação definitiva do casal (em Vem ficar comigo) são manifestações de um amor que negocia estados afetivos, modos de compartilhamento social, desejos e a própria ideia de felicidade. Em outros exemplos, a palavra amor é acionada eufemisticamente para narrar o encontro sexual, nem sempre como uma descrição do mesmo, mas apenas como manifestação de um desejo, como em Adão e Eva (Calcinha Preta). Vou te amar como nunca ninguém te amou

Como animal faminto

Como Adão e Eva nus no paraíso

Entre o amor descrito como sinônimo de sexo e o sentimento descorporificado, o forró processa ideias sobre as relações a dois, abordando de várias formas as etapas de sedução, conquista, realização afetiva e concretude sexual. Ambientado no salão de baile, o forró, porém, é um evento social no qual tais temáticas estão presentes de modo muito expressivo e nem sempre sua abordagem é simples. Por esse motivo, talvez, é possível ouvir no repertório forrozeiro um grande número de exemplos que acionam o humor como estratégia narrativa. É o melhor do forró safado, o segmento do repertório do qual nos aproximamos com leveza e um irônico sorriso no canto dos lábios.

O humor dos duplos sentidos A sedimentação do forró no imaginário nacional como “música nordestina” esteve associada de perto com a circulação de um repertório sacana, leve, descontraído e ao mesmo tempo dançante, romântico e sedutor. Na obra seminal de Luiz Gonzaga, ao lado de odes ao sertão, Rosinhas e ao próprio gênero em gestação – o baião – encontramos diversos exemplos de músicas safadas, que brincam com jogos de palavras e duplos sentidos eróticos. No delicioso livro História sexual da MPB, Rodrigo Faour comenta alguns clássicos de Luiz Gonzaga nas décadas de 1940 e 1950 que invariavelmente, mencionavam “cheiros”, “chame-

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gos”, “fungados” e suores (2006:304). Em Pagode russo (Luiz Gonzaga, 1946), o autor zombava das danças russas e dos perigos que o “cai não cai” poderia oferecer para o “kossaco”. Alguns anos depois, em 1958, lançava no seu LP Xamego O torrado da Lili (Helena Gonzaga e Miguel Lima), que explicitamente metaforizava a atividade sexual. Lili, tem torrado aí?

Me dá uma narigada que eu quero dormir

Eu tenho mas porém não dou

Meu torrado é bom, mas é do meu amor

Muitas das canções com duplos sentidos do forró exploram um convite para “dar” e “comer”. Um ano antes da Lili, a estreia fonográfica da cantora Marinês era alavancada pelo sucesso de um prato típico bastante apimentado. A sonoridade da Peba na pimenta (João do Vale, José Batista e Avelino Rivera) é o mote para uma narrativa simples de uma convidada que ficou toda “ardida” com o tempero forte do dono da festa. Seu Malaquias preparou cinco peba na pimenta

Só do povo de Campinas seu Malaquias convidou mais de quarenta

Entre todos convidados pra comer peba foi também Maria Benta

Benta começou a comer, a pimenta era danada e começou a arder

Ai, ai, ai seu Malaquias

Ai, ai, ai, você disse que não ardia Ai, ai, ta ardendo pra danar

Ai, ai, ta me dando uma agonia

A utilização de duplos sentidos com alimentos é extremamente frequente no forró (e além dele). A comida está ligada a uma ideia de satisfação corporal e de prazer, que invariavelmente se encontra atrelada ao prazer sexual. O próprio ato sexual é muitas vezes referido na gíria popular como um ato de “comer”, reforçando ainda mais essa conexão. Michel Bozon identifica nessa metáfora alimentar uma lógica baseada no princípio das ideias antagônicas de atividade e passividade. Aquele que “come” se posiciona num lugar de dominação simbólica enquanto o que “dá” se torna passivo e submisso (BOZON, 2002:23). No caso da pimenta, o tempero é colocado pelo dono da festa e Maria Benta “sofre”

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com o calor do prato, matizando um discurso recorrente de distribuição desigual de poder na esfera da sexualidade. Por outro lado, a atmosfera irônica e o canto de Marinês deslocam esse sentido reforçando a ideia de que Benta compartilha o prazer da pimenta, num jogo irônico recheado de ambiguidades e metáforas, com destaque para a performance cantada dos “ais”. Sempre que se menciona música popular de duplo sentido, lembra-se da figura de Genival Lacerda. Seu sucesso nacional se inicia em 1975, com o lançamento da música Severina Xique Xique (João Gonçalves e Genival Lacerda), que tem o famoso refrão “ele tá de olho é na butique dela”. Segundo Faour, Genival construiu um repertório hilariante que teve outros sucessos, sempre

acompanhados de uma dança característica inventada por ele, com direito a passos bastante maliciosos, bailando com a mão em cima de seu imenso barrigão, e caretas histriônicas muito engraçadas

(2006:309).

Outro sucesso da carreira do intérprete é o Radinho de pilha (Namd e Graça Góis), lançada em 1979 com uma conotação mais direta entre o “rádio” e o “corpo” (ou parte dele) da mulher do personagem narrador. Na história da canção, o migrante paraibano trabalha duro no Rio de Janeiro e consegue comprar um rádio para a mulher (que presumivelmente ficou na Paraíba). Ao regressar para sua terra natal, descobre que ela “deu o rádio”. Ela deu o rádio,

Ela deu o rádio e nem me disse nada Ela deu o rádio

Ela deu sim, foi pra fazer pirraça Mas ela deu de graça

O rádio que comprei e lhe presenteei

Essa música parece nos levar à ideia de que nem sempre a metáfora irônica do “dar” articula uma desvantagem no âmbito da economia sexual. A personagem paraibana que “deu” o rádio não parece estar menos ativa do que aqueles não nomeados que o obtiveram esse “presente”.

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Nessa letra e em várias outras, a ideia de troca parece ser mais precisa para interpretar o humor comestível da metáfora, sempre relacionado a uma ideia de satisfação e prazer corporal. Em 1990, a gravadora Continental lançou um LP que pode ser um bom ponto de partida para pensarmos a safadeza dos duplos sentidos forrozeiros. Trata-se do segundo volume da coletânea “Forró safado”, que, desde o tratamento gráfico à seleção de músicas, sonoridades e intérpretes, situa-se como um exemplo paradigmático da licenciosidade popular do forró. A atmosfera simbólica do forró safado não apresenta muitas sutilezas, mas ao mesmo tempo não é explícita. O batom vermelho, a piscadela exagerada da moça da capa, sua saia curta na contracapa e o próprio título do disco não deixam dúvidas sobre o contexto limítrofe da moral do disco, mas sempre com um ar de ironia. Ao mesmo tempo, não há nenhuma explicitação sexual, e o sentido propriamente erótico se faz presente através de um jogo ambíguo de ironia dos signos costumeiramente associados à sedução. Dos artistas participantes do LP, convém destacar a participação de Clemilda, voz feminina de destaque no contexto do forró de duplo sentido. A cantora iniciou sua carreira fonográfica no final da década de 1960 e é coautora da famosa Forró cheiroso (com Miraldo Aragão), lançada por ela como faixa-título de seu LP de 1987, que explora o jogo fonético entre o “t” e o “d”, alterando o sentido da palavra “talco”:

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Talco no salão, talco no salão

Pro forró ficar cheiroso e ter mais animação

Clemilda é responsável pela interpretação da faixa de abertura do LP, intitulada Bilhete pra comadre Dinha (Miraldo Aragão e Clemilda), em cuja letra aparece um jogo de palavras bastante direto, aludindo o sexo anal. Comadre Dinha mando lhe avisar

Que esse ano eu vou passar por lá Capriche muito nabo na salada

A quiabada deixe pra Dona Dadá

Você já sabe que eu adoro nabo, Dinha Nabo, Dinha, nabo, Dinha

Na hora do café eu como nabo, Dinha

Na hora do almoço eu como nabo, Dinha Na hora do jantar eu como nabo, Dinha Nabo, Dinha, nabo, Dinha

A voz metálica da cantora acentua a ironia da canção, que está estruturada inteiramente em torno do trocadilho do nabo. Assim como no tratamento gráfico da capa e da contracapa, nessa canção não há necessariamente um erotismo levado a sério, mas uma brincadeira em torno da semelhança fonética entre o “nabo”, o “rabo” e a “bundinha”. No mesmo disco, diversas músicas abordam essa estreita proximidade entre alimentos e sexo, já nos seus respectivos títulos: Melô da feira, A vida de um açougueiro, Criação de crustáceos e O peru. Ao comentar o repertório de artistas de forró do que classificou como “porno-forró” (como Clemilda e Genival Lacerda), Adriana Fernandes manifesta surpresa com o fato de que “esse estilo de forró é muito apreciado por nordestinos de baixa renda” (2005:137). E segue seu raciocínio: Em minha opinião, isso é um retorno a estágios iniciais do forró

e da música rural relacionada a atos cômicos e ao teatro musicado.

Naquele tempo, as piadas, por vezes ofensivas, eram parte do estilo.

(...) Eu atribuí esse gosto à experiência de um estilo de vida campo-

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nês antigo – muito mais próximo da natureza e dos corpos (humanos

e animais). Portanto, letras falando sobre o corpo e o sexo estão

relacionadas a experiências passadas e a uma visão de mundo próxima à vida familiar, com várias dinâmicas e facetas, algumas que se

aproximam com respeito e conduta adequada, outras de modo tolo e cômico. (FERNANDES, 2005:137)

A descrição de Fernandes apresenta um discurso bastante recorrente sobre as músicas de duplo sentido (não somente no caso do forró), que são desqualificadas enquanto música relevante do tempo presente, mas que se encontram, no caso, justificadas porque se vinculam a um passado tradicional que as autentica. A opinião explicitamente classista de que as músicas de duplo sentido são adotadas por um público de baixa renda é um ingrediente adicional que subentende um gosto mais rústico ou inculto que amenizaria essa predileção. Indo numa direção oposta, quero sugerir que a safadeza e o humor são constitutivos do forró e que a recorrência com que as letras mais picantes aparecem na carreira de alguns artistas não deve obliterar o fato de que todo o universo simbólico e sonoro (que envolve a dança e a paquera nas festas e bailes de forró) do gênero está estruturado em torno de um imenso debate sobre sexo e sexualidade. Imaginar que letras que falam de sexo e corpo inserem-se numa dinâmica de passado familiar e rural é extrair do tempo presente todas as sutilezas e safadezas. E atribuir aos setores de menor poder aquisitivo o gosto pelo duplo sentido é ignorar a enorme projeção dessas músicas no repertório dos bailes e de sua importância na construção de um imaginário forrozeiro. Os exemplos de duplos sentidos no forró parecem oferecer um universo extremamente amplo e variado de alusões, metáforas e estilos que ajudam a emoldurar o quadro complexo de referências que se cruzam em torno do gênero nordestino. Nas letras mais explícitas um elemento constante é o trocadilho fonético, possivelmente estimulado pela malícia da dança ou pelo andamento tranquilo do xote. Um exemplo divertido é a canção Velho Cuca, de Tororó do Rojão, gravada em 1991 no LP de estreia da Mastruz com Leite: Seu Delegado eu vou lhe contar um caso

Meu nome é Cuca, e o negócio foi um seguinte

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A Minha Mulher que se chama Auristéla Eu dei de presente a ela um carango 85

Agora ela inventou de passear

Esqueceu que tem um lar, e que seu marido sou eu

Anda falando que outro cuca arranjou, mais a ninguém enganou Porque seu Cuca é eu, seu Cuca é eu, seu Cuca é eu!

Ela anda pensando em outro mais seu Cuca é eu!

O engraçado nessa canção não é tanto a narrativa da traição consumista da esposa do personagem da canção, mas simplesmente o desfecho sonoro do trocadilho. Certo non sense pseudo-realista contribui para o tom irônico do refrão, que integra a lista de nabos, rádios e “cucas” que abundam no repertório forrozeiro (peço perdão por não ter resistido a mais um trocadilho). Mas também não é só de metáforas indiretas que a safadeza do forró se inscreve nas letras. Uma das canções de maior sucesso do início da carreira de Aviões do Forró brincava com os duplos sentidos avisando que Não é nada disso. Abre as pernas e senta em cima dela

Abre bem as pernas e senta em cima dela Não é nada disso que você está pensando

É da bicicleta que eu estou falando Mete o dedo e dá uma rodadinha

Mete o dedo e dá uma mexidinha

Não é nada disso que você está pensando

É do telefone que eu estou falando

É dura e comprida e quando entra sai sangue Não é nada disso que você está pensando

É da injeção que eu estou falando

A injeção, a bicicleta e o telefone não têm nenhuma função narrativa na música, que está construída apenas em cima da proposição do tipo “o que é o que é”, liberando um sentido aguçado de práticas ligadas à sexualidade e desviando o campo semântico. Alguns anos depois, Chupa

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que é de uva ocuparia todas as rádios e palcos do Nordeste (e além dele), enveredando novamente pela metáfora da alimentação, das frutas, do “mel” e do prazer. Os duplos sentidos conferem ao forró uma atmosfera lúdica, que se materializa em metáforas por vezes pueris e risíveis. São estratégias de compartilhar conhecimentos e dizeres sobre sexo e sexualidade que possivelmente não seriam possíveis em letras mais diretas. Afinal, a penumbra e a ambiguidade da dança são ingredientes de uma festa forrozeira recheada de duplas intenções e de intensa energia sexual. No forró, homens e mulheres interagem corporalmente em rituais de alegria, brincadeira e sedução, usufruindo desse jogo, microcosmo das próprias relações sociais. Através do humor e da ironia dos duplos sentidos, o repertório forrozeiro elabora modos de ser e de se comportar sexualmente, negociando papéis e atos próprios do feminino e do masculino em matéria sexual. Essa negociação brota em um terreno extremamente machista, que assume sem pudores referências a um patriarcalismo rural nordestino notadamente tensionado pelas mudanças éticas e morais da segunda metade do século XX. Por isso mesmo, a ampla maioria de dizeres sobre o forró e do protagonismo forrozeiro é feita por homens, que naturalizam sua posição de dominação patriarcal em refrões e danças onde exercem seu papel de machos típicos. Por isso, a macheza é uma ideia constitutiva do universo simbólico do forró, que vem sendo processada e problematizada de diversas formas, mas ainda encontra-se fortemente fincada no cerne do imaginário do gênero.

A macheza

Uma porcentagem altíssima de toda a produção de música popular no mundo está atravessada pelo que na bibliografia anglófona (e parte da hispânica) tem sido chamado de androcentrismo. O androcentrismo se caracteriza por uma visão hierarquizada entre os sexos, de acordo com a qual os homens e o universo masculino são dotados de característica essencialmente positivas e as mulheres e o feminino de aspectos negativos. Essa maneira de valorizar o gênero se apresenta em narrativas que (re)produzem uma leitura de mundo que reforça a primazia do masculino. O androcentrismo se manifesta em expressões de linguagem, em filmes, livros, na divisão hierarquizada de profissões e salários, na valorização exacerbada de elementos associados ao universo masculino e na exclusão feminina de diversos espaços de convívio social. A perspectiva masculina é dominante na ambientação semântica de parte expressiva das letras de canções de vários gêneros musicais em todo o mundo. No forró não é diferente. Se isolarmos amostras aleatórias no repertório forrozeiro, aparecerão inúmeros exemplos nos quais a mulher é aludida, mencionada e até mesmo nomeada, mas raramente ela é protagonista dos sentimentos que movem a canção ou possui voz no discurso da canção. Um exemplo clássico de ocorrência dessa visão exclusivamente masculina é a própria Asa branca, maior sucesso de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (1947). Quando o olhei a terra ardendo Qual fogueira de São João

Eu perguntei a Deus do céu, ai Pra que tamanha judiação

(...)

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Inté mesmo a Asa branca Bateu asas do sertão

Intonce eu disse “adeus Rosinha”

Guarda contigo meu coração

A letra é didática. A falta d’água assolou a vida no sertão, matou a plantação, o cavalo, e até os pássaros abandonaram o lugar. O camponês se transforma em retirante em busca de melhores condições de vida, afastando-se do braseiro que arde e aniquila com toda a vida. De acordo com Carlos Sandroni, em belo artigo sobre Luiz Gonzaga, Asa branca é um exemplo radical de canção de exílio, uma alegoria da partida e da deserção, na qual somente o “eterno feminino oferece ali um princípio de esperança, esta Rosinha cujos olhos verdes poderão, quem sabe, contaminar um dia a plantação e refundar o mundo” (blog do IMS 13.12.2012). De fato, são seus olhos verdes (a única informação que temos sobre ela durante a música) que anunciarão a chegada da chuva que permitirá o retorno do sertanejo. Mas e até lá? Se optarmos por uma reflexão menos metaforizada, Rosinha é a antagonista que é condenada a ficar no inferno. A ficar esperando dias melhores que talvez a encontrem ainda com vida. Sua função na narrativa da canção é de guardiã do afeto e de mensageira do fim da seca, cuja esperança mascara o absurdo do abandono da mulher, símbolo da própria imutabilidade e fixidez do arcaísmo rural. Depois de quase sete décadas ouvindo e nos emocionado com essa canção, continuamos nada sabendo sobre seu sofrimento individual, suas motivações, sua saudade, suas opções. Como ela iria sobreviver nesse ambiente tão hostil, ainda mais sozinha? Quem é Rosinha, afinal? Três anos depois do lançamento comercial da Asa branca, Luiz Gonzaga grava uma continuação para esta canção intitulada A volta da asa branca (parceria dele com Zé Dantas) que, mais otimista, anuncia a chuva no sertão, as cachoeiras e rios cheios, o mato verde e a terra molhada. Refere-se no passado a um tempo em que a seca fez o personagem “desertar” da sua terra e comemora o retorno do pássaro que precede o seu próprio. Nos versos finais, Rosinha reaparece. Sentindo a chuva me “arrecordo” de Rosinha

A linda flor do meu sertão pernambucano

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E se a safra não atrapalhar meus planos

Que que há, oh seu vigário, vou casar no fim do ano

Novamente Rosinha se encontra numa função decorativa, intensificada pela própria metáfora floral de seu nome. Ela não desertou da terra, aguentou o sofrimento do sertão e agora está disponível para o retorno do personagem e para seus planos conjugais. Curiosa também é a menção ao casamento em primeira pessoa, numa conversa direta com o vigário local. Não há um pedido de casamento, uma menção sequer aos desejos de Rosinha que permanece inerte, dependente dos planos do macho e das intempéries naturais. Para não restringirmos essa anulação feminina a um período muito recuado no tempo, podemos anexar o exemplo de Ana Maria (Janduhy Finizola), canção que marcou o início do robusto sucesso regional do cantor Santanna, em 2001. Seu sucesso foi catapultado por sua participação no programa de TV de Ana Maria Braga em 2002, que executou a canção como vinheta durante mais de um mês, virando um hit (SANTOS, 2014:113). Eu dei um beijo, eu dei um beijo Eu beijei Ana Maria

Por causa disso eu quase entrava numa fria

Ana Maria tinha dono e eu não sabia (...)

Agora adeus Ana Maria

Deus te guarde para o amor

No céu Santa Maria aqui na terra o seu amor

Ana Maria, como eu queria

Dar outro beijo, matar o meu desejo

Ai, como eu queria

Ana Maria eu quanta alegria

O seu querer, beijar a sua boca e ser de você

Novamente a partida e o desejo são perspectivas do homem, personagem da canção. O curioso nessa letra é a noção de propriedade que é narrada sem maiores constrangimentos. O problema do beijo – terá sido à força? – é que a Ana Maria pertencia a outro homem. Não é exatamen-

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te a quebra de uma regra moral de exclusividade conjugal que aparece como elemento de distúrbio na música, mas sim uma espécie de invasão de propriedade. Que sabemos sobre Ana Maria? Será que há possibilidade de ela querer trocar de “dono”? Quais suas motivações, seu desejos? Se começarmos a nos indagar sobre os personagens femininos do forró, produziremos dezenas de perguntas que ficarão sem respostas. Não é exagero diagnosticar um forte apagamento das mulheres no imaginário compartilhado das canções do forró, sobretudo em sua vertente mais tradicional. O domínio do forró é masculino e em torno dos ideais de masculinidade o repertório se constitui, reforçando e fornecendo nuances às narrativas de Nordeste, tanto as convencionais consagradas quanto as mais inovadoras. Contudo, é necessário observarmos que há diversos modelos de masculinidade (e de machismo) que circulam em torno do forró. O que nos interessa aqui mais de perto é a conexão desse referencial de macheza com a própria definição simbólica e contextual do gênero. E, na sequência, a articulação da macheza com a nordestinidade. Se o forró é uma dança safada da qual homens e mulheres participam e compartilham as diversas referências sexuais e afetivas, é importante demarcar que parte majoritária do imaginário forrozeiro é formada por uma perspectiva masculina que define modelos de masculinidade e feminilidade. Como no forró tradicional a participação feminina nas letras é quase sempre reduzida ao modelo de Rosinha ou Ana Maria, resta identificarmos os elementos de constituição da masculinidade forrozeira, aspecto marcante nas definições e no próprio reconhecimento do gênero.

A moral masculina O macho do forró se articula com modelos bastante genéricos de masculinidade, que têm despertado atenção crescente no âmbito dos estudos de gênero e vazado para além destes a partir da percepção da diferenciação de gêneros em diversos contextos sociais. Segundo Maria Izilda de Matos, a “masculinidade hegemônica é sustentada e mantida por grande parte do vasto segmento dos homens que se sentem gratificados” com ela e, ao mesmo tempo, pressupõe certa configuração de feminilidade bipolar e linear (2001:50).

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Gilmore identifica três imperativos morais para tornar-se homem: “engravidar a esposa, sustentar os dependentes e proteger a família” (GILMORE, 1990:48, citado em BLAZQUEZ, 2008:6). Tais imperativos são obrigações sociais ligadas à virilidade e ao poder financeiro. O modelo do patriarca é um referencial de força e poder que se materializa na potência sexual e no controle econômico. Essa lógica de estereotipização masculina é didaticamente explicitada na desnorteante letra de Faltou o leite Ninho (Gilton Andrade e Christian Lima), gravada pela Calcinha Preta em 2007. Eu era uma menina linda, linda

E você foi chegando, me seduzindo Eu fui me apaixonando E você foi me iludindo

Aí deu no que deu

Nasceu, nasceu, nasceu

E você correu, correu, correu Fiquei de pneuzinho

Aumentei uns quilinhos

Você me abandonou e nem olhou mais pra mim Faltou o leite Ninho do nosso filhinho

E você raparigando com as outras por aí Não é você quem passa fome

Não é você que vê o filho chorar

Você foi homem na hora da cama

Tem que ser homem pra suas contas pagar

A narrativa feminina apresenta a cobrança de um código moral masculino desrespeitado. O curioso é que os modelos convencionais estáticos de feminilidade e masculinidade parecem estar completamente naturalizados na canção, pois a “fuga” do homem é indiretamente justificada pelo afastamento do padrão de beleza feminino (“aumentei uns quilinhos”). Ao mesmo tempo, o processo sexo-fuga-contas, detonador da dramaticidade da canção, funciona como exigência de reparação. Na performance da banda registrada no DVD de 2008 (Ao vivo no Recife), essa canção é encenada no palco tal qual uma esquete teatral que narra a desavença do casal, com direito a uma boneca como “objeto” cênico.

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A mudança na interpretação vocal da cantora Paulinha Abelha também é significativa. No início da canção, ela aciona uma voz suave, num tom um pouco melancólico, valorizando o “i” da palavra “linda”. Ao final, amplia a agressividade dos gestos e da entoação, acompanhada por gestual cênico incisivo e adota rasgueados de voz na mesma vogal do “leite Ninho”. A alteração do estilo vocal sublinha a passagem do tempo e acentua a reprovação da conduta masculina. Por outro lado, ao que parece, a fuga do macho seria perdoada se as “obrigações” financeiras fossem cumpridas. Também de forma oblíqua, a principal condenação apresentada é a destituição da masculinidade, que, mesmo tendo sido “provada” na “hora da cama”, é colocada em dúvida (e em risco) pelo não pagamento do leite. Outro aspecto significativo na narrativa dessa canção é a relação que se estabelece entre a boa performance masculina “na cama” e o mau desempenho ético no pagamento do leite. A sexualidade masculina é comumente entendida em termos de performance, controle e conquista (SIEDLER, 1989:39). Nesse sentido, mais importante até do que o ato da conquista é sua narrativa (idem:23). Não é muito difícil encontrar dezenas (quiçá centenas) de canções de praticamente todos os gêneros musicais que descrevem conquistas amorosas, desejos masculinos despertados por mulheres particularmente sedutoras. Apenas para citar dois exemplos emblemáticos (e assombrosamente parecidos, guardadas as distâncias temporais e estilísticas), podemos lembrar a clássica Garota de Ipanema, que despertava a admiração de Vinicius de Morais e Tom Jobim em 1959, e a popularíssima Ai se eu te pego (Sharon Acioly e Antônio Dyggs), que pavimentou a projeção internacional de Michel Teló em 2011. Em ambas, a mulher que passa é admirada pelo personagem da canção que expõe seu desejo sexual de conquista (é verdade que na Garota a conquista parece menos provável do que em Ai se eu te pego). A conquista está relacionada à performance, e a valorização da macheza do protagonista reside fundamentalmente no exercício sexual ou na prova de sua existência (por exemplo, com a gravidez). Mas é interessante reparar também que as mudanças nos modelos de masculinidade, pressionadas pelas conquistas femininas e feministas rumo à eliminação da hierarquia de gêneros provocam um desdobramento dessa performance. A masculinidade é provada não apenas na efetivação do ato sexual, mas na prova de que o homem efetivamente

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proporcionou prazer à mulher. De certa forma, é possível pensar numa quantificação da masculinidade que é proporcional à satisfação sexual da mulher, que inverte provisoriamente a dominação entre os gêneros, pois passa a possuir a chave que controla a avaliação da performance sexual masculina. Além da conquista, deve haver a vitória, ou, pelo menos, a narrativa da vitória. Ocorre que, como essa narrativa depende do acionamento da voz feminina – o que raramente acontece –, produz-se com recorrência descrições hiperbólicas de peripécias sexuais protagonizadas por homens em verdadeiros rituais de verborragia sexual. E a música popular é um território extremamente fértil para essas descrições fantasiosas. Nas canções, os homens relatam os desejos despertados, as estratégias de conquistas, as nuances do coito e o prazer proporcionado, estabelecendo verdadeiras histórias épicas de valorização de sua masculinidade. Numa espécie de roteiro de caçada (procurar, atacar, ganhar a presa e, acrescenta-se: agradar à presa), os homens compartilham entre eles, através dessas descrições, suas construções de masculinidade, ainda que veladamente desconfiando de seus companheiros. Evidentemente, essas narrativas só são possíveis através do afastamento das mulheres, de seu silenciamento. No caso específico do forró, a narrativa masculina majoritária obscurece a voz da mulher, que fica excluída do debate, como um objeto e não como sujeito. Nesse sentido, o verso “foi homem na hora da cama” cantado pela protagonista da canção é um caso inusitado que contradiz a regra geral de silenciamento feminino e que garante ao antagonista da canção uma rara narrativa feminina de sua performance sexual. Porém, essa descrição positiva do desempenho “na cama” é obscurecida pela cobrança financeira, operador talvez mais substantivo do poder masculino patriarcal tradicional. Apesar de ter “cumprido” as exigências para alcançar sua plena condição de macho na ocasião da conquista e da performance sexual, presumivelmente por ter proporcionado prazer à mulher, o homem da canção falhou na obrigação moral de zelar pelo sustento da família, sendo humilhado publicamente com a própria canção. O interessante é que é a mulher que “denuncia” o deslize moral do macho, garantindo uma voz que, nesse caso, ecoa a lógica binária e patriarcal. Mas é necessário ter em mente que o contexto geral de estereotipização da identidade masculina (e de seus símbolos de afirmação) apresenta inúmeras variações e atualizações, sendo alvo de contínuo reprocessamento.

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Ao interpretar a construção de masculinidade no heavy metal, Robert Walser sublinha o que chama de “ansiedade” na administração dos signos de macheza no metal. Se, por um lado, o gênero exclui sumariamente as mulheres de suas narrativas, vídeos, sonoridades, letras e imaginários, por outro, há também uma negociação de signos ambíguos de androgenia e de romance, que complexificam o conjunto de significantes masculinos. Segundo o autor, o “metal é excessivamente preocupado em apresentar imagens e confrontar ansiedades que têm sido tradicionalmente entendidas como peculiares aos homens através de elementos musicais convencionalmente codificados como masculinos” (1993:110). Nesse sentido é particularmente instigante sua interpretação sobre o uso recorrente de imagens andrógenas por algumas bandas de metal que, através da adoção de elementos visuais codificados como femininos e acionados como dispositivos de sedução erótica feminina produzem um estranhamento contraditório com os signos sonoros e éticos do machismo patriarcal e misógino do gênero. A androgenia no metal pode servir, portanto, para “aliviar as tensões do poder masculino”, destacando o fato de que os garotos e jovens adultos do sexo masculino também sofrem sob o controle patriarcal, desenvolvendo “maneiras inovadoras de expressar controle sobre as mulheres ao mesmo tempo em que provam seu pertencimento à masculinidade adulta e sua rebelião contra os homens que os dominam” (WALSER, 1993:129). Processo semelhante foi identificado por Gustavo Blázquez em seu estudo sobre jovens frequentadores dos bailes de cuarteto em bairros populares da cidade de Córdoba, na Argentina. Um dos tipos mais recorrentemente acionados como identificadores grupais no contexto dos bailes é o do “carteludo”, “aquele que exibe ou faz cartel de sua masculinidade por meio de atitudes desafiantes para com outros homens do baile e para com a polícia” (2008:3). Para um carteludo, o êxito em uma performance de masculinidade é confirmado ou pela

conquista efetiva de alguma companheira sexual – atividade descri-

ta como fazer uma mina – ou pelo triunfo em uma briga – prática

através da qual, segundo os entrevistados, o sujeito faz-se homem.

Ambas as práticas, o cortejo heterossexual e a luta homogenérica, se

convertem e, provas finais de masculinidade, sempre em discussão, dos sujeitos (BLÁZQUEZ, 2008:5).

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As narrativas sobre as construções de masculinidade no cuarteto, no heavy metal ou no forró invariavelmente apontam para um mesmo processo, que negocia um “modelo de masculinidade hegemônico ou normal, que supõe a heterossexualidade, a conduta predatória frente às mulheres, a homossociabilidade e a homofobia” (BLÁZQUEZ, 2008:6). Mas homem também sofre. Sobretudo no terreno reflexivo da canção popular, a masculinidade constantemente aparece tensionada por condutas femininas inesperadas, que alteram a passividade recatada do estereótipo da mulher. Eduardo Archetti, ao discutir os modelos de masculinidade no tango do início do século XX identifica um homem em crise, que busca encontrar condutas adequadas frente a mulheres com hábitos cosmopolitas no contexto da modernidade de Buenos Aires (2003:185). Um tema constante no tango (e também no forró) é o da mulher que abandona o homem. Não se sabe ao certo, mas pelo menos nesses textos, parece que raramente ela o faz por outro homem. Muitas vezes, constrói-se a imagem de um homem triste recordando sua felicidade perdida. Em todos os casos, os leitores (ouvintes) se confrontam com um casal em união consensual, sem filhos e a mulher sempre se vai da casa. Em termos literais, ela sai para o mundo e “para divertir-se” (ARCHETTI, 2003:199). Esse homem “melancólico” do tango clássico é um dos estereótipos possíveis que narram golpes afetivos na masculinidade. Do repertório da Calcinha Preta, a canção Amor fatal (Berg Rabelo) apresenta uma versão desse estereótipo sofredor e abandonado. Vai, que eu vou ficar aqui e te esperar amor Eu fico aqui sozinho olhando pra você

Na foto que ficar aqui em minhas mãos

E assim, eu mato minha saudade olhando pra você Espero a hora e o dia em que você voltar

O amor que sinto por você faz esperar

Temos aqui também um ponto de contato entre as vertentes eletrônica e pé de serra do gênero, pois o sofrimento masculino é recorrente também no forró de linha mais tradicional. A saudade patológica da terra natal (do “sertão” ou do “pé de serra”) muitas vezes se confunde com

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a dor do afastamento da mulher amada. É verdade que em muitos casos esse afastamento pode ser entendido como provisório e comumente ele foi gerado por um agente externo (a seca). Um exemplo mais direto desse homem abandonado é a canção Vivendo só (Joãozinho Soares e Jorge de Altinho), lançada em 1982. Continuo vivendo a sofrer

Continuo vivendo a chorar Só no baião eu vou vendo

O tempo me acabar

A saída para o homem aturar o sofrimento do abandono irremediavelmente passa pela bebida. A bebida cumpre várias funções no universo masculino e pode ser considerada um ingrediente primordial da sociabilidade masculina. As redes de cumplicidade e afeto entre homens, fundamentais para o estabelecimento de laços de pertencimento e para compartilhamento da masculinidade são construídas quase sempre em torno da bebida. No espaço público dos bares e botequins, os homens dividem suas expectativas e ansiedades sobre a vida (de homens) narrando conquistas e bebendo. Ao sair à noite para “caçar”, a bebida permite aliviar as tensões associadas ao temor pelo mau desempenho e adquirir doses extras de coragem e extroversão necessárias à conquista máscula de fêmeas na noite. Por último, é a bebida a companheira solitária da tristeza do abandono, da fossa e da perda da mulher amada. Com frequência, é possível estabelecer no repertório do forró (e, possivelmente, de várias outros gêneros musicais) uma separação bastante direta entre o universo da bebida e da relação amorosa estável. Vale a pena passarmos por essa letra gravada por Aviões do Forró (2006): Parei de beber por causa dela

Parei de fumar por causa dela

Farra nem pensar por causa dela

Ela me deixou e hoje eu sofro por ela Voltei a beber por causa dela

Voltei a fumar por causa dela Tô na farra pra esquecer ela

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Mas se ela voltar, eu deixo tudo por ela

(Fiz tudo por ela)

Nessa canção, o homem sofre e bebe, mas almeja o fim do sofrimento (e da bebedeira) com o retorno da mulher amada (o “outro” ausente). O universo das drogas (fumo e bebida) está associado ao da “farra”, eufemismo para ambiente de paquera ou de prostituição, onde o personagem da canção encontra consolo para sua dor. Mas nem sempre o sofrimento é tão individualmente experimentado e vivido de forma introspectiva. Robert Walser sugere que a recorrência de canções de heavy metal que descrevem o sofrimento masculino o faz através de narrativas de mulheres “misteriosas e perigosas”, cuja atração erótica “destrói tanto o autocontrole masculino como a força da coletividade dos laços afetivos dos homens” (1993:118). Assim, a mulher é o “outro”, cuja objetificação pode garantir a estabilidade das relações de dominação masculina. Daí que surge, no contexto de várias práticas musicais contemporâneas – o forró incluído –, um volumoso repertório de canções que explicitamente apresentam uma visão machista e redutora da mulher, colocando-a ora no papel de objeto sem voz, ora no papel de mulher fatal, mensageira do sofrimento. Contudo, há nuances e fissuras que podemos investigar.

Nordeste, terra de machos Investigar o universo das negociações e construções de masculinidade no forró demanda atentarmos simultaneamente para a inscrição do gênero (musical) como símbolo da identidade nordestina. O homem do forró está vinculado não apenas a uma óbvia identificação biológica e cultural ao gênero masculino, mas também ao contexto da identidade cultural e geográfica na qual o forró se estrutura. O tipo de homem que elabora a masculinidade forrozeira está associado ao conjunto de significantes do referencial “Nordeste”, com suas formulações convencionais, tensionamentos e contradições. Discutir os modelos e práticas sociais da masculinidade no Nordeste nos faz cruzar a todo instante com a obra do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. Em diversos ensaios, livros e artigos, o pesquisador

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tem interpretado os contextos de codificação do “cabra macho” e as modificações nos estereótipos deste modelo. Emblemático nessa produção é seu livro Nordestino, uma invenção do falo (2003), que aprofunda a importância do referencial masculino no que em sua obra clássica chamou de “invenção do Nordeste” (2009). De acordo com o autor, a formação de um imaginário compartilhado sobre o tipo humano habitante do Nordeste é concomitante à construção de uma ideia de região, intensamente estimulada pelo discurso regionalista dos anos 1920 e 1930, que passa a atuar como uma nova forma de pensar a realidade nacional (2003:86). Nesse processo, a figura de Gilberto Freyre é central tanto na formulação como na difusão de ideias sobre o Nordeste e o nordestino. Em seu livro Nordeste, publicado originalmente em 1937, Freyre estabelece uma associação muito estreita entre a cultura canavieira e a formação de uma identidade nordestina, escravocrata, açucareira e patriarcal. Na conclusão desta obra, interpreta as conexões raciais dessa divisão social, tipificando o homem da região. A história social do Nordeste da cana-de-açúcar está ligada, como

talvez nenhuma outra região do Brasil, ao esforço do mestiço, ou an-

tes, do cabra. Um esforço que se tem exercido debaixo de condições

duramente desfavoráveis. Mas, mesmo assim, notável pelo que tem construído e realizado (FREYRE, 2004:171).

Na interpretação de Albuquerque Jr. sobre as ideologias regionalistas materializadas em Freyre, o “tipo nordestino” seria construído, assim como a própria noção de região, a partir da percepção de que os valores da cultura rural açucareira estariam desafiados e alterados pela modernização e pela mudança no regime de trabalho no campo e na cidade. Assim, o tipo gestado em sua luta contra uma natureza hostil poderia preservar de alguma forma a integridade regional, em litígio com uma ordem política nacional que a escanteava. O tipo nordestino vai ser definido, portanto, como um tipo tradicional, um tipo voltado

para a preservação de um passado regional que estaria desaparecen-

do. Um passado patriarcal, que parecia vir sendo substituído por uma sociedade “matriarcal”, efeminada. O nordestino é um homem que se

situa na contramão do mundo moderno, que rejeita as suas superficia-

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lidades, sua vida delicada, artificial, histérica. O nordestino é definido

como um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise, que ser viril capaz de retirar sua região da situação de passividade e subserviência em que se encontrava (ALBUQUERQUE JR., 2003:91).

A força do tipo nordestino estaria construída, dessa forma, a partir do enfrentamento do homem com o meio, numa priorização do sertão como área por excelência de caracterização do Nordeste e de seu habitante. “Se a masculinidade representa o espírito guerreiro, o nordestino surgira de uma luta muito particular, que o singularizava, a luta contra as intempéries da natureza” (idem:106). Nesse sentido, o Nordeste é pensado como uma “terra de machos”, onde até as figuras femininas são valorizadas por sua coragem, bravura, resistência e força. O repertório de Luiz Gonzaga será uma ponte articuladora dessa ideologia, traduzida em música e amplificada pelas ondas do rádio nacionalizante. Em suas canções, os tipos nordestinos vão ganhando forma replicando imaginários da literatura, das histórias rurais orais, do cordel, das músicas de festas. O nordestino personagem das canções de Luiz Gonzaga será caracterizado muitas vezes por sua atitude viril, posta à prova em enfrentamentos diversos. Em Forró de Mané Vito (Luiz Gonzaga e Zé Dantas), lançada em 1950, o personagem narra em primeira pessoa, com interlocução de um “delegado”, os acontecimentos violentos do referido forró, onde ele teve que “fazer bonito”. Daqui pra li, pra lá, dançava com Rosinha,

Quando Zeca de Sianinha me proibiu de dançar Seu delegado, sem encrenca eu não brigo

Se ninguém bulir comigo, não sou homem pra brigar

Mas nessa festa, seu doutor, perdi a calma

Tive que pegar nas armas pois não gosto de apanhar Pra Zeca se assombrar mandei parar o fole

Mas o cabra não é mole, quis partir pra me pegar Puxei o meu punhá, soprei o candieiro

Botei tudo pro terreiro fiz o samba se acabar

Essas músicas têm vários elementos interessantes para pensarmos na masculinidade forrozeira. Em primeiro lugar, como registro, con-

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vém notarmos que o personagem dançava com a mítica “Rosinha”, que continua absolutamente inerte nas narrativas do forró, desaparecendo da canção quando a briga se instaura. Ao ouvir com calma esse relatocanção, nos perguntamos por que motivo Zeca de Sianinha o proibiu de dançar? Terá sido alguma disputa pela Rosinha, que se configuraria como um troféu? Não há como saber. De todo jeito, a valentia do personagem irá se sobrepor no contexto da música às suas habilidades de dança e sedução. Ao analisar a dinâmica dos bailes de forró inscritas nos repertórios de Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, Claudia Matos identifica uma continuidade entre a sedução erótica e a virilidade da briga, sendo ambos acionados em um ambiente masculino de afirmação perante mulheres e perante outros machos (2007:438). Porém, no caso específico dessa canção, parece que a valentia da briga descreve melhor a macheza do personagem, que intervém de forma violenta para não ser humilhado no forró. Contudo, o que nos interessa mais de perto são as atualizações desse modelo processadas pelo forró contemporâneo. O cabra macho do imaginário forrozeiro permanece como tipo ideal dos personagens do forró, mas negocia sua macheza com elementos do mundo atual. No forró eletrônico, essa masculinidade afirmativa se conecta com símbolos internacionais de machos, absorvendo modelos atualizados de comportamentos másculos. Em boa parte do repertório do forró eletrônico – e também nas performances de palco, nas visualidades e na própria sonoridade – a masculinidade nordestina está associada ao universo jovem e ao contexto das festas. No repertório contemporâneo, a ação da briga não é muito presente enquanto elemento narrativo ou de afirmação masculina. Provavelmente essa atualização temática está relacionada a uma ideologia atual de valorização da não violência, que reduz o prestígio da valentia exercida diretamente através do vigor físico. Assim, o personagem ideal do forró eletrônico é um macho jovem e nordestino que exerce sua macheza fundamentalmente em seu desempenho erótico sedutor nas festas juvenis. Vou cair numa gandaia atrás de um rabo de saia De hoje é que não passa

Sexta-feira é só folia, bebo até raiar o dia

Eu vou cair na cachaça

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A mulher me abandonou, o patrão me dispensou Já que tá tudo ferrado

Vou cair no arrasta-pé, topo tudo o que vier Nem tudo tá acabado

Mas pega fogo, cabaré

Hoje eu não arredo o pé

Pode vir que eu to no ponto

Só filé, só filé

Se a mulherada é de primeira

Fico até segunda-feira, bebo até ficar tonto Pega fogo, cabaré

(Pega fogo, cabaré, de Nildomar Dantas, 2008)

O interessante nessa música é a associação de diversos elementos associados ao exercício dessa masculinidade jovem e contemporânea. Em primeiro lugar, a apologia da festa como espaço de paquera e sedução. A urgência sexual (“de hoje é que não passa”) é um dispositivo estimulante para “cair na gandaia atrás de um rabo de saia”. Na interpretação da Calcinha Preta, a performance vocal dos cantores Berg Lima e Raied Neto explora o canto em terças e alguns rasgueados de voz, aproximando bastante a estética vocal das convenções sonoras das duplas sertanejas. Com isso, a “festa” se localiza sonoramente no ambiente rural contemporâneo, dos rodeios, feiras e festas agropecuárias, onde o forró eletrônico divide a cena com as duplas sertanejas. O macho em questão não é um humilde trabalhador, mas um valente vaqueiro, ou um bem-sucedido fazendeiro, que pilota sua pick up e se esbalda no forró. Mas também há um segundo aspecto importante, que é a relação entre a urgência sexual e a “gandaia” no cabaré. Ou seja, o macho vai pro arrasta-pé atrás de mulheres e, caso não obtenha sucesso, descarrega sua energia sexual no cabaré. Lá, as mulheres estão disponíveis e em exposição, como peças de carne num açougue, mas caracterizadas como carne de primeira – “filé”. Tal descrição feminina apresenta um tom profundamente misógino, no qual a mulher perde toda sua humanidade através da metáfora da “carne”, historicamente associada ao contexto do sexo e dos prazeres corporais. Nesse contexto, a masculinidade é provada através da anulação feminina, reduzida a um objeto que permite suprir uma necessidade biológica. Um

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terceiro aspecto diz respeito à bebida. Beber é um ato de socialização masculina e um vetor de afirmação dessa masculinidade. Ao mesmo tempo, a alteração de consciência produzida pelo álcool aumenta a euforia e a “coragem” do macho para abordar as fêmeas nas festas e mesmo no bordel. Ao analisar essa canção, Albuquerque Junior aponta um sintoma de constituição de um modelo vencedor de masculinidade, cuja referência é o rapaz filho de classe média, aquele boy que tem um carrão, onde

instala um enorme aparelho de som, símbolos de status, com os quais

irá impressionar as mulheres, obter sucesso em suas conquistas. (...)

Uma masculinidade vivida como potência e prepotência, achando-se

no direito de bagunçar em todo canto que chegar, ligar o som a toda

altura independentemente de momento ou lugar, um personagem

individualista e autocentrado, uma personalidade egoica e narcísica

com pouca noção de solidariedade e convivência comunitária e social (ALBUQUERQUE JR., 2010:55).

O diagnóstico pessimista de Albuquerque Junior não o impede de observar que o repertório das bandas tem processado modelos de masculinidade, atualizando o clássico machismo patriarcal em torno do qual o estereótipo nordestino se configurou. Por outro lado, pode ser interessante afastar-se desse caminho reflexivo abertamente condenatório para apontar nuances e sutilezas que podem, no limite, alterar significativamente essa visão pessimista. É importante incorporar a ideia de que as músicas são elementos de uma negociação de pensamentos sobre esses modelos e não reflexos ou detonadores de convenções estáticas replicadas pelo público. Não há uma relação direta entre o conteúdo das letras e a adoção de comportamentos e práticas sociais pelos admiradores do forró eletrônico. Trata-se, antes, de universos temáticos que são acionados, processados e discutidos através da experiência musical, num processo muito mais contraditório e ambíguo do que as letras sugerem. Pega fogo cabaré é, em certa medida, assim como várias outras canções, uma narrativa fantástica sobre um macho desnorteado pelas demandas culturais do mundo moderno. Um macho que precisa reafirmar valores em crise, modelos de masculinidade reconhecidamente ultrapassados e simplificados. Albuquerque Junior provavelmente se es-

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pantaria mais ainda com a letra de Parar meu carro na frente do cabaré (Neto Lima), gravada pela Saia Rodada em 2007. Eu vou parar meu carro na frente do cabaré

Vai ter muita mulher vai ter muita bebida Todo o puteiro me conhece

Eu sou o cara que alugou um caminhão Pra encher de rapariga

A interpretação intencionalmente grosseira do cantor Raí acentua a narrativa hiperbólica da macheza absoluta, que parece indiretamente lamentar a perda da posição dominada das mulheres em outros períodos da história e procura extravasar sua energia erótica pagando para objetificar as “raparigas”. Um detalhe criativo desse exagero fantástico é o caminhão, que supera o carrão ou a pick up num superlativo absoluto e até mesmo grotesco da potência sexual do automóvel – signo da sociedade mundial de consumo capitalista muito mais do que de uma identificação masculina “tipicamente” nordestina ou rural. Expondo evidente má vontade em relação ao forró eletrônico, Albuquerque Junior critica toda a produção do estilo alertando para a circulação de “perigosos valores e modelos subjetivos”, chegando ao ponto de desqualificar o próprio público do forró que, segundo ele, “não tem em casa, na escola e mesmo em outras instituições sociais e culturais o contraponto, a contramensagem a esta mensagem avassaladora, repetitiva e recorrente que toma de assalto os ouvidos e mentes mesmo daqueles que a recusam” (2010:65). Ao entender a música como uma “mensagem” unidirecional e homogeneizante, o autor demoniza as performances e letras do forró eletrônico, ignorando as múltiplas possibilidades de recepção e interpretação do público. Ao contrário, a experiência musical é vivenciada em situações de conflito e negociação com os temas abordados, produzindo narrativas e sínteses reflexivas díspares e variadas. Se algumas letras do forró eletrônico elaboram uma hipérbole sobre um tipo de masculinidade rude, patriarcal e misógina – e isso é inegável – podemos entender também que essas letras processam novos modelos de masculinidade que tensionam estereótipos patriarcais tradicionais através do exagero. Esse processo ilumina as disputas em torno dos embates de gênero, e é resultado de um discurso de anulação

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feminina que já não é tão eficaz quanto em outras épocas. Isso sem falar que esse discurso absurdamente sexista não acompanha a totalidade do repertório do forró eletrônico, dividindo espaço com outras narrativas sobre relações de gênero que apontam para outras direções. Por isso, o caráter violento do machismo de algumas músicas deve ser interpretado lado a lado com essas outras narrativas que, juntas, contraditoriamente, processam os modelos de masculinidade e feminilidade no forró contemporâneo, inclusive negociando com modelos tradicionais do forró pé de serra. Voltarei nesse tópico no próximo capítulo, mas, antes, gostaria de deslocar o debate do plano linguístico das letras para o universo sonoro, que, juntamente com as visualidades e as performances cênicas, participam do jogo de negociações de macheza no forró.

A sonoridade da macheza A masculinidade vivenciada no forró não é experimentada exclusivamente através das letras. O ambiente da festa forrozeira e sua dinâmica fundamentalmente dançante colocam os machos desse ambiente em situação de pressão social pela atividade sedutora. O macho que vai ao forró fica invariavelmente impelido a convidar fêmeas para a dança que, como sabemos, configura-se como alvo fundamental da música-forró e ação coletiva de materialização corporal das canções. É na dança e na capacidade de sedução para a dança que o macho processa uma narrativa metaforizada de sua virilidade e macheza. Um exemplo particularmente interessante dessa atividade masculina no forró é apresentado pela etnografia de Roberto Marques nas festas de forró na região do Cariri. Marques descreve em detalhes sua relação com o personagem “Alexandre”, que viria a se tornar um de seus principais informantes / interlocutores no processo de sua pesquisa. Alexandre dançava e incitava aos outros e a mim também. “Hoje

você vai dançar! Essa aqui vai ser a melhor festa do ano!” Gritava

para todo o grupo. Cada nova pessoa que se aproximava era apresen-

tada a partir de sua profissão ou simplesmente com a frase – “Esse

aqui é um amigo meu!” –. (...) Alexandre agregava as pessoas com

facilidade e constância, além da facilidade de comunicação e do riso

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fácil, enchia os copos puxando conversa sem parar; ou distribuindo

pares de dança. “Dança aqui com ela!” Disse para mim apontando

uma das irmãs de Fábio – “Eu ainda não bebi o suficiente” – respondi. A certa altura da festa, a própria Fábia me chamou para dançar

(MARQUES, 2011:153-154).

Espaços particularmente favoráveis para manifestações da masculinidade, os contextos de festa ocuparão parte significativa do repertório e do imaginário do forró, produzindo uma mítica em torno da festa sertaneja característica. No ambiente da festa forrozeira, a resistência física do sertanejo-macho estereotípico é posta à prova na dinâmica da dança e da tensão da paquera. O forró é lugar onde os homens fruem a presença das mulheres e

exercem ostensivamente sua própria masculinidade, afirmando-se

como verdadeiros machos perante as fêmeas e perante outros homens. A dança, assim como a briga, é um momento de comprovação do vigor físico e da plenitude sexual (MATOS, 2007:433).

Movido pela licenciosidade da dança, o forró se consolida como festa, como lugar de sociabilidade, como repertório cultural, como afirmação de uma identidade regional e como compartilhamento (e processamento) de códigos culturais em trânsito, em conflito. A performance social de Alexandre na festa é um dos modelos de experiência de masculinidade no forró: extrovertida, alegre, sedutora. Essa construção do macho-emfesta tem relação estreita com o universo do protagonismo masculino machista patriarcal, mas é reprocessada pelo ambiente forrozeiro atual. A dança é o eixo aglutinador da festa e tem relação estreita também com a sonoridade dessa festa. Nesse espaço social, a nordestinidade ganha uma sonoridade que matiza as negociações sobre seus elementos constitutivos e seu conjunto de regras morais. O trio sanfona, zabumba e triângulo – com óbvio protagonismo do primeiro – fornecerá, nos forrós, o som característico para a construção de um repertório e de um imaginário sonoro compartilhado, ligado à identidade nordestina e ao seu tipo característico, o cabra macho. Sanfoneiro macho (Luiz Gonzaga / Onildo Almeida), lançada em 1985 como faixa-título do LP de “mestre Lua” é uma canção que expõe

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em sua letra a configuração estética da sonoridade do forró, associada ao tipo macho do sanfoneiro. Sanfoneiro puxa o fole, bota o fole pra roncar

Que o ronco desse fole faz a gente se animar

Andei mais de légua e meia pra poder aqui chegar Onde tem forró eu vou eu faço tudo e chego lá Eita sanfoneiro bom, eita sanfoneiro macho Ele toca em qualquer tom

Toca dos 8 aos 120 baixo

A resistência no acionamento do fole e na firmeza para portar a sanfona a noite toda passam a ser atributos da masculinidade do sanfoneiro que se ligam simbioticamente ao próprio som da sanfona. Força, volume, peso e velocidade são características timbrísticas da sanfona que narram sonoramente uma masculinidade viril, resistente e sensual. A sanfona localiza essa masculinidade no ambiente do sertão, auxiliando a traduzir sonoramente a vinculação entre a nordestinidade e o mundo rural, a masculinidade nordestina e o universo simbólico da cultura agrária da cana e do couro. Sob esse aspecto, a codificação de uma sonoridade mais urbana e jovem para o forró processada pela Mastruz com Leite e, posteriormente, por bandas como Aviões do Forró e Garota Safada pode ser pensada também como uma forma de atualização cosmopolitizante desse referencial de masculinidade. É som de alto volume, ritmicamente intenso e suingado, que se conecta com ideias de modernidade, do industrial, do “jovem”. O som do macho forrozeiro configurase como um som “jovem”. Ao mesmo tempo, essa sonoridade intensa forjava uma construção de masculinidade roqueira igualmente intensa, que se configura como uma interpretação jovem e atualizada de referenciais convencionais de masculinidade. Do rock para o forró, a construção da masculinidade no forró eletrônico absorve essa elaboração internacional e se manifesta nos paredões, como na canção Corra corra (Elvis Pires e Rodrigo Mell), faixa de abertura do CD “Volume 6” de Aviões do Forró (2009): Quem não aguenta que corra, corra, corra Corra, corra do meu paredão

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E a galera está no posto curtindo o som

Os carango equipado, oh duelo bom!

Formado por dezenas de caixas de som empilhadas, o “paredão” é um signo de qualidade do evento, seja ele na festa com as aparelhagens completas, ou mesmo no “posto”, onde os automóveis (e seus donos) disputam para aferir quem possui o som mais potente. Nesse ponto tocamos (com intensidade) numa associação bastante linear entre a potência sonora e desempenho sexual. Tocar alto e “aguentar” são atributos indicadores de masculinidade, sendo medidas de poder fálico. Há por trás de toda essa mensagem uma apologia da força como elemento primordial da constituição do masculino, que será representada sonoramente na intensificação do volume, nos ritmos afirmativos, na dança enérgica. Energia, força e poder compartilham o mesmo campo semântico quando ligados ao mundo do macho viril, que tanto no baile rural quanto no “posto” deve demonstrar sua masculinidade. É interessante observar que esse referencial não se restringe a uma localidade, sendo uma constante no repertório do pop / rock transnacional1. Porém, no caso do forró eletrônico, a ênfase no volume e na sonoridade eletrificada (presente na formação das bandas com baixos, guitarras e teclados) é dividida com o naipe de metais, que se tornaram nos últimos 10 ou 15 anos uma marca estilística da vertente. Formado predominantemente pelo trio trompete, sax e trombone, o naipe executa sempre em bloco melodias em introduções, intermezzos, comentários e codas. A execução em bloco implica numa indistinção entre os três instrumentos, que “timbram” para soar como um único corpo de vibração, aumentando a amplitude das ondas sonoras geradas. A sonoridade resultante do naipe de metais em bloco é forte, dura, agressiva, intensa. Não por acaso, o naipe de metais tem sido empregado por séculos para execução de marchas militares, hinos, dobrados e conteúdos cívicos. Associado ao rufar da caixa de percussão, o naipe molda uma sonoridade brilhante e enérgica, propícia para encarnar auditivamente os modelos José Jorge de Carvalho cita a canção “All men play on ten”, do grupo de heavy metal Man O’War, que celebra o poder do ruído ensurdecedor e afirma “quem é homem tem que tocar no nível 10” (CARVALHO, 1999:6). A masculinidade no heavy metal, assim como no forró eletrônico, no funk ou no rock é aferida também pelo volume. 1

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de força necessários para demonstração de poderio militar e relacionados ao poder monárquico (também militar). 2 O uso do naipe de metais no forró eletrônico incorpora o processamento enérgico da masculinidade pop transnacional a uma narrativa de nordestinidade, que se fará presente através dos signos do rural reprocessado, de expressões de linguagem distintivas e do próprio conservadorismo moral das letras, reprocessando o machismo rural da sanfona. Sem abrir mão dos modelos de constituição do macho nordestino, mas tensionando essa identificação regional viril com outros códigos masculinos da cultura internacional-popular, o forró das bandas, movido a metais em bloco em alto volume reprocessa imaginários e sonoridades, mantendo o pé firme num certo conservadorismo machista. Guitarra, teclado, naipe de metais, som alto e uma sanfoninha ao fundo para negociar essa nova identidade masculina regional em festas, vaquejadas, shows e mesmo na televisão em rede nacional. Mas essa narrativa de macheza ocorre em um momento de profundo questionamento dos referenciais patriarcais das distinções entre os gêneros e de embates e lutas pela diminuição da assimetria entre os sexos. E no forró eletrônico, sobretudo, há um espaço significativo para essas outras narrativas e para os vários tipos de disputas e tensões.

No cinema, essa associação é sistematicamente utilizada em trilhas sonoras de castelos, reis, rainhas, princesas e coroas. É curioso notar, por exemplo, que muitas vinhetas de apresentação das marcas dos grandes estúdios cinematográficos (Disney, Fox, Columbia) são acompanhadas pelo naipe de metais, sempre numa atmosfera visual de brilhos e grandiosidade. (ver dois vídeos didáticos produzidos para demonstrar essa associação: http://www.youtube.com/watch?v=rTPmf4bF4T4 e http://www.youtube.com/ watch?v=yUmov-nmfjM 2

Você não vale nada: outras trilhas

No capítulo anterior descrevi o forró como um universo musical fortemente marcado por um conservadorismo machista. O machismo do forró é uma das várias manifestações do machismo de nossa sociedade, que assume formas variadas em momentos distintos. Vivemos numa época particularmente atenta à problematização de hierarquias entre grupos e pessoas e o questionamento de comportamentos como o racismo e o sexismo é oportuno. Porém, cabe dizer que este livro não tem a intenção de surfar numa plataforma acusatória que identifica manifestações desse machismo em várias ações cotidianas. O que interessa mais de perto aqui é a articulação desse referencial machista com o contexto da experiência forrozeira. A música popular é um artefato cultural que processa modelos morais e formas de pensamento funcionando como um instrumento de elaboração de ideias e de compartilhamento de problematizações e tensionamentos variados. Nesse sentido, o forró participa de um jogo interpretativo que tem como marco inicial um referencial obviamente machista, mas negocia maneiras de atualizar, questionar e até mesmo neutralizar o seu próprio machismo constitutivo. Em outras palavras, o machismo no forró contemporâneo é experimentado coletivamente de forma bastante semelhante ao machismo da sociedade atual. É um machismo muitas vezes envergonhado, constantemente colocado em xeque e muitas vezes desafiado. Não estou querendo afirmar que o machismo no forró está caminhando para uma diminuição relativa, isso seria excesso de otimismo. Apenas estou apontando complexidades e contradições nas maneiras através das quais o pensamento machista é vivenciado no repertório e nas performances do forró contemporâneo, sobretudo em sua vertente eletrônica. A meu ver (e escutar), o repertório do forró atual percorre caminhos variados no que diz respeito à 121

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moral sexual, e penso que seria interessante percorrer outras trilhas de raciocínio para interpretá-lo. De início, é importante notarmos que a maior parte das bandas apresenta um casal ou um grupo de cantores e cantoras. A existência de vocais femininos e masculinos ambienta um universo moral que coloca nas narrativas das canções, frente a frente, posições de fala de homens e mulheres. Parte das convenções machistas do forró tradicional, como vimos, está relacionada a um contínuo apagamento das vozes femininas nas canções. As mulheres não se apresentam, não cantam seus desejos, não são protagonistas no repertório mais tradicional do forró. No forró eletrônico essa tendência se repete em vários casos, mas, com certa frequência, nos deparamos com canções que fornecem narrativas duplas, complexificando as negociações de gênero e afastando-se do referencial masculino convencional do forró. Em tais narrativas, entram em cena dramatizações de relações duras, de cobranças afetivas e financeiras, de ameaças de vinganças e, eventualmente, de desejo e esperança numa união futura. Faltou o leite Ninho é um exemplo de ativação das figuras femininas. Apesar de incluída em uma lógica desigual e machista (a mulher fica com a criança, o homem foge, foi “macho na hora da cama” e agora o que se espera é somente que ele deposite o dinheiro do leite), não devemos menosprezar a força da tematização desse conflito, que apresenta uma perspectiva feminina que exige o compromisso masculino. Exigir reparação, pode-se alegar, é um mecanismo tímido de obter voz na relação, sobretudo se levarmos em conta que essa reparação está sendo exigida sobre um modelo de masculinidade absolutamente convencional e patriarcal. Porém, se compararmos a posição da figura feminina nessa canção com as encenadas por Rosinha ou Ana Maria, é possível falar em um direito de fala efetivo e, no mínimo, de um questionamento tensivo da dominação masculina. Na canção Agora é com você, gravada por Aviões em 2008, a situação é um pouco mais incisiva. A figura feminina rejeita a relação que a oprime emocionalmente e busca de algo melhor, também em tom de ameaça. Vai

Mas tenha a certeza dessa vez não vou voltar atrás

É só você sair por essa porta e não te quero mais, não mais

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Esse seu jogo sujo comigo não cola mais

Inventa uma briguinha sem motivo e com os amigos sai Não vou ficar em casa enquanto você se distrai

Uma mulher sozinha e carente por aí é perigoso demais Por isso pense mais

Se for, bye bye

Não quero mais

Vai me perder

Pense um pouco mais

Eu sou capaz de te deixar e te esquecer

Agora é com você

A ameaça de abandono pode ser entendida como uma posição de inferioridade da mulher, mas também demonstra um poder exercido de controle dos limites da relação a dois. A voz grave de Solange e sua interpretação com vibratos e prolongamentos acentuam a dramaticidade da ameaça proferida por uma mulher que não se encaixa mais no modelo de persona neutra e escondida em casa atrás dos desejos e iniciativas masculinas. Do mesmo disco, Bateu levou apresenta o tema da vingança, recorrente em diversas músicas da banda. Bateu, bateu, bateu, bateu levou

Bateu, bateu, vou descontar com outro amor Fique você sabendo

Que eu não sou de ferro

Eu não nasci pra perdoar Não sou de brincadeira

O negócio é sério

Cuidado pra não vacilar

Eu sou do tipo de mulher que é fiel demais Mas se ferir meu coração

Te dou o troco e... bye É toma lá da cá

Eu sou capaz de tudo pra te ver feliz

Mas também sei cortar o mal pela raiz Não tem colher de chá

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Meu bem um amor pra mim Só tem valor assim

Não venha me enganar... Porque senão...

Pode-se argumentar que a vingança feminina é uma versão frágil de uma voz efetivamente altiva da mulher, pois mantém a prerrogativa da ação no homem, sendo a atividade da mulher apenas uma “resposta”. Quem “bate” primeiro na música é o homem, que, mesmo “levando” também, continua no protagonismo da ação. Ao analisar a letra da música Mulher não trai, mulher se vinga (Rodrigo Mell e Elvis Pires), também gravada por Aviões, Marques identifica que a letra insinua “que o desejo de trair parte do homem, restabelecido então como um polo de natureza distinta da mulher” (2011:196). Esses exemplos podem indicar que ainda é cedo para comemorar um verdadeiro “empoderamento” feminino que significaria uma equidade na hierarquia entre os sexos. Ao mesmo tempo, de forma contraditória, a presença expressiva de personagens femininos nas canções materializadas nos palcos e nas gravações pela presença física e sonora das cantoras é um dado novo do forró eletrônico que me parece extremamente relevante nos processos de questionamentos da moral machista. Os modelos femininos de cantoras até então ora processavam certa masculinização, como em Marinês, ora exploravam abertamente os duplos sentidos sexuais, na linha do humor, como em Clemilda. A indumentária de Marinês e sua postura repleta de significantes “masculinos” (ela foi apelidada de “Luiz Gonzaga de saias”, o que reforça o referencial masculino e apresenta a mulher como o “outro”) integra de certa forma os referenciais de macheza da constituição do imaginário do nordestino. Ela é a própria “mulher-macho” que estrutura o repertório de “tipos” do Nordeste. Sua voz potente em frequências médias e de penetração incisiva molda sonoramente esse modelo rústico de canto e de pertencimento. O mesmo pode ser dito de Clemilda, que se notabiliza pela maneira direta e ríspida de entoar (em médio-agudo) as piadas e trocadilhos sexuais de seu repertório, matizando uma posição feminina assentada nos referenciais patriarcais. É evidente que circulam pelo forró outras cantoras que, sobretudo a partir da década de 1970 e 1980, procuram construir imagens públi-

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cas mais diversificadas. Elba Ramalho é um exemplo de diálogo com referenciais comerciais da “MPB”, que adiciona à sua interpretação um toque de sensualidade eficaz na construção de encarnações diferenciadas do feminino. Essa sensualidade será intensificada pelas cantoras do forró eletrônico, que, desde o final da década de 1980, elaboram modos de se apresentar em palcos e discos que articulem outras ideias em torno da mulher. Significativa nessa empreita é um trecho do pequeno documentário que integra o segundo DVD de Aviões do Forró, sobre a carreira da banda. Nele, os empresários Carlinhos Aristides, Antonio Isaias e Claudio Mello explicam a opção pela contratação de Solange, a “gordinha” de uma antiga banda de forró. Tinha 10, 15 cantoras bonitas e no meio das dez tinha Solange, gordinha. E na época tinha que ser pavão no palco. E eu disse: “não, eu quero a gordinha!” (...) Aí você vai e namora com uma banda como

Aviões do Forró, com dois gordinhos, fugindo completamente do padrão do mercado. E eu sempre respondia: “eu acho que nada supera o talento” (depoimento no 2º. DVD de Aviões do Forró, 2011).

A escolha da “gordinha”, ao contrário dos padrões consagrados de beleza feminina, é explicada pela qualidade técnica de sua voz, que suplantava naquele momento a inadequação visual da cantora. Porém o sucesso da banda no decorrer dos anos provocou uma tensão nesse referencial e Solange se submeteu a uma operação de redução de estômago para atender aos padrões estéticos femininos. A mulher no palco é (também) para ser vista e no forró eletrônico, assim como no pop internacional, não há espaço mesmo para as gordinhas. Se, de um lado, a imagem feminina nos palcos de forró eletrônico reforça o lugar da mulher como objeto a ser olhado (o que Laura Mulvey chama de “to-be-looked-at-ness”), parte do repertório desenvolve-se em torno de canções em que a mulher se apresenta como questionadora dos referenciais machistas. Essa presença da voz feminina se torna ainda mais clara em canções interpretadas pelo casal de cantores das bandas. Nelas, com frequência, ouvimos um ambiente tenso de igualdade sexual raro na canção popular, expresso na entoação da mesma letra tanto pelo homem quanto pela mulher. Em Você não merece, composta pela dupla sertaneja Edu e Maraial, o enfrentamento do casal na gravação de

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Aviões explicita a dureza da relação afetiva e os sentimentos compartilhados de amor e abandono, tanto do homem quanto da mulher. Meu amor,

Depois que você foi embora

Eu fiquei numa deprê danada

Chorei demais, querendo um dengo

Sem um beijo, sem carinho, só na madrugada.

Eu sei que eu nunca fui pra você

Aquele amor que você tanto sonhava Escuta o que eu vou te dizer

Enquanto me negava, como eu te amava. Você não merece, mesmo assim eu te amo

Você não merece, mesmo assim eu te quero

Você não merece mesmo assim eu sou maluco, Mato e morro por você (2x)

(Você não merece, de Edu e Maraial)

Convém destacar a lógica do “não merecimento” nessa canção, particularmente recorrente no contexto do debate afetivo processado pelo repertório do forró eletrônico. Os duetos amorosos muitas vezes apresentam julgamentos de valor negativos do/a companheiro/a, estabelecendo uma atmosfera de confronto constante. A dureza das relações amorosas e sexuais é compartilhada em narrativas intensas, repletas de traições, vinganças, porres, brigas e fossas. Um desses casos, que merece uma análise mais detalhada, é da canção Você não vale nada mas eu gosto de você, do compositor Dorgival Dantas. Num movimento bastante comum no repertório do forró, a canção iniciou sendo cantada por diversas bandas, integrou o repertório do primeiro DVD de Aviões em 2006 e posteriormente foi gravada pela banda Calcinha Preta como canção-tema da personagem Norminha da novela Caminho das Índias. A gravação da Calcinha permitiu uma ampla circulação nacional da música e da banda, associada à sua presença no contexto da trama da novela. A combinação entre trama e trilha amplifica o debate sobre as tensões de gênero, negociando em larga escala condutas e valores morais referentes à sexualidade e à formação de casais.

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A trama e a trilha de Norminha Caminho das Índias (de Glória Perez) foi exibida entre janeiro e setembro de 2009 no horário nobre (prime time) da Rede Globo, com grande sucesso. Sua trama gira em torno de duas famílias indianas de alta casta, em conexões com personagens e ações no Brasil, igualmente pertencentes a estratos superiores de nossa hierarquia social. Reproduzindo um modelo recorrente de estruturação das produções nacionais, a novela apresenta dezenas de tramas paralelas, externas ao contexto da trama central, que funcionam como núcleos alternativos de cenários e personagens. Um desses núcleos encontra-se no bairro mítico da Lapa carioca, cenário para os personagens do “núcleo pobre” 1. Na Lapa de Caminho das Índias vive um casal sem filhos formado pela dona de casa Norminha (Dira Paes) e o guarda de trânsito Abel (Anderson Muller). Ele é caracterizado como um tipo muito honesto e respeitador das leis e ela como uma esposa dedicada, apaixonada, fogosa e atraente, que se esmera em cuidar do seu marido com afagos e quitutes. Ocorre que Norminha sistematicamente oferece a seu marido um copo de leite (de novo o leite!) com sonífero e sai pelas noites do bairro em busca de fugazes aventuras sexuais extraconjugais. Configura-se, assim, aos olhos dos moradores do bairro (que sabem de tudo) e dos telespectadores, a tensão de uma traição realizada por uma esposa sedutora diante de um marido inocente. Temperada com a simpatia de Abel e Norminha e com a aparente felicidade do casal nitidamente apaixonado, a situação do casal desperta julgamentos morais que complexificam a condenação pura e simples e promovem um debate repleto de contradições. As cenas noturnas de Abel tomando leite e adormecendo no sofá enquanto Norminha se prepara para sair se repetiram diversas A rigor, o substantivo “núcleo” é empregado pela Rede Globo em referência às tramas centralizadas em alguns personagens, quase sempre familiares. Assim, no caso, haveria em Caminho das Índias um núcleo “Norminha e Abel”. A expressão “núcleo pobre” é utilizada cotidianamente de forma irônica (já foi inclusive empregada em programas humorísticos) como recurso para identificar os personagens e “núcleos” de menor poder aquisitivo no contexto das novelas. Sem aprofundar debates sobre a definição de pobreza, a expressão será utilizada neste trabalho com a intenção de sublinhar as estratégias narrativas e musicais de representação da pobreza nas telenovelas. Para minimizar a imprecisão terminológica, adotarei a expressão entre aspas.

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vezes durante a exibição da novela, aumentando a tensão da situação, à medida que aumentava também a popularidade e a repercussão dos personagens entre os telespectadores. Parte dessa popularidade pode ser creditada à música-tema de Norminha, que acompanhou toda a exibição da novela. Você não vale nada mas eu gosto de você funcionou como uma encarnação sonoro-musical do estado afetivo da personagem, sendo utilizada tanto nas cenas de suas traições quanto em momentos cotidianos, nos quais sublinha sua moral fronteiriça. A repetição da música como leitmotiv de Norminha estabeleceu uma simbiose entre a personagem e a música, que contribuiu tanto para a narrativa da novela quanto para o debate sobre seu comportamento. Você não vale nada mas eu gosto de você Você não vale nada mas eu gosto de você Tudo o que eu queria era saber porque Tudo o que eu queria era saber porque

A tensão entre moral e sentimento é entoada pelo cantor, o que estabelece uma identificação dos telespectadores com uma possível experiência afetiva vivida por Abel. O personagem da canção, portanto, pode ser compreendido como o personagem arquetípico do marido traído. Num roteiro patriarcal tradicional, a traição feminina é intolerável e deve ser reparada com a morte ou violência. Na trama, a recorrência dessa traição produz deslocamentos nesse referencial, sobretudo porque, ao contrário de célebres narrativas sobre mulheres sedutoras e ardentes, Norminha não é caracterizada como “mulher fatal”, mas como uma simpática e amorosa esposa que tem uma espécie de patologia sexual pontual e que, de certa forma, em nada interfere em sua felicidade conjugal. O oferecimento do “leite” a Abel é um ingrediente desse zelo sincero, que infantiliza o marido ao mesmo tempo em que exerce o papel mais convencional de esposa que “cuida”. O fato de ela não ter emprego e atuar na novela como dona de casa é mais um aspecto dessa caracterização tradicional da personagem. O problema é que ela o trai! É interessante também observarmos que, na canção, o personagem masculino conhece a moral desviante de sua amada, na trama não. Combinada com a narrativa ficcional, o refrão sublinha uma situação

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insolúvel, que desafia os códigos comportamentais convencionalmente aceitos. Uma observação mais aproximada das relações entre melodia, harmonia e letra é ilustrativa dessa tensão. No refrão, a reiteração dos versos em estrutura AABB é distinta da repetição melódica (em estrutura ABAB) reforçando essa sensação de insolubilidade. Enquanto a estrutura harmônico-melódica se desenvolve no clássico padrão fraseológico de pergunta e resposta – correspondendo perfeitamente, tanto no plano estrutural motívico quanto no tamanho de cada membro de frase e na harmonia óbvia de tônica e dominante – a letra apresenta o mote inicial (uma espécie de axioma da canção) numa melodia suspensiva e repete a mesma letra na melodia conclusiva (que acaba no acorde de tônica). O que seria previsto e desejável seria um desdobramento semântico correspondente ao teor conclusivo da relação da melodia e da harmonia, que é frustrado num eco atordoante do axioma inicial. O mesmo ocorre com o terceiro e o quarto verso, a repetição da indagação porque no primeiro membro de frase (suspensivo) e no segundo (conclusivo). Com essa estrutura, a finalização do refrão atesta que não há uma “saída” para o choque entre o sentimento e o julgamento moral, que deve ser vivido na tensão emocional. Junto com a imagem, apesar de alegre e festivo, o refrão soa como uma espécie de condenação da conduta moral de Norminha, proferida não diegeticamente por um cantor oculto que se identifica com a “situação” de Abel. Há ainda uma dubiedade nos dois versos finais, pois não fica claro se a indagação “porque” refere-se ao fato de a suposta mulher (no caso, Norminha) não valer nada ou ao sentimento que o cantor (no caso, Abel) nutre por ela. Fechase o circuito de um refrão que constata uma tensão emotiva, mas não aponta para sua resolução. A caracterização da “mulher que trai” como uma pessoa que “não vale nada” reforça modelos convencionais de construção do feminino. Os desejos femininos são comumente encenados como sentimentos perigosos e, nas narrativas tradicionais da literatura, do teatro e da ópera, esses desejos podem ser fatais. Analisando a ópera Salomé, de Richard Strauss, Linda e Michael Hutcheon identificam que a caracterização da mulher sedutora e envolvente – uma “femme fatale” – está relacionada a um julgamento de valor extremamente negativo dessa figura, que adquire poder “ao ser olhada” e, com suas estratégias sedutoras nutre seus

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desejos sexuais mais perversos (2003:40). Seu fim trágico (ao final da ópera, ela convence o rei a decepar seu amado e beija a boca da cabeça do cadáver, provocando asco no mesmo rei, que manda matá-la) é a única saída possível para o dilema moral de sua narrativa perigosa. No caso de Norminha, porém, a traição não parece acarretar num fim trágico, nem na trama, nem na música. Sua simpatia dissolve a força do julgamento moral negativo, demandando uma “solução” dialogada, que se desenvolverá na própria canção. Seguindo um modelo recorrente no repertório do forró eletrônico, a traição irremediável será desdobrada em um desejo de vingança, que corresponde ao “troco”. O julgamento negativo da pessoa amada expresso no refrão é um elemento numa trama conflituosa de enfrentamentos nada assimétricos. A segunda parte da letra da canção (que praticamente esteve ausente da trama da telenovela) sugere a ideia de que o comportamento da mulher (que não vale nada) é derivado de um sentimento de vingança. Ou seja, possivelmente, na canção, a conduta feminina está ocorrendo em resposta a uma traição do homem (o que definitivamente não é o caso de Abel). [ELE:] Você brincou comigo, bagunçou minha vida Esse sofrimento não tem explicação

Já fiz de quase tudo tentando te esquecer

Vendo a hora morrer não posso me acabar na mão Seu sangue é de barata, a boca é de vampiro

Um dia eu lhe tiro de vez o meu coração

Aí já não lhe quero, amor, me dê ouvidos

Por favor me perdoa eu tô morrendo de paixão

[ELA:] Eu quero ver você sofrer Só pra deixar de ser ruim

Eu vou fazer você chorar, se humilhar Ficar correndo atrás de mim

Na canção, o homem pede perdão e ela sugere que só conseguirá tê-la de volta depois de sua humilhação. Fecha-se um circuito de condenações e acusações recíprocas que, de certa forma, novamente, sugere que a ação inicial é masculina, mas que se desenvolve sobre um clima de desqualificações de parte a parte. A solução possível para os dilemas dessa relação tensa é a demonstração de sofrimento por parte do

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homem, que não parece resolver a tensão, mas que pode ser uma saída para a relação. No contexto duro das relações amorosas e sexuais no forró eletrônico as ideias de pena e penitência parecem exercer certo fascínio e são recorrentemente acionadas. O fim dos relacionamentos é momento de expurgação de tensões conjugais, de exposição e agressões verbais. Em Jogo sujo (Chrystian Lima / Ivo Lima, gravada pela Calcinha Preta em 2003), o dueto expõe a fragilidade emocional do homem traidor e a força autossuficiente da mulher traída, que o dispensa: ELE: A minha vida era o seu amor

Você não soube me dar valor

ELA: Você quis sair assim da minha vida Pra viver só por viver

Sem ter amor não tive culpa não ELE: Até o meu nome você sujou Eu tinha fome do seu amor

ELA: Mas você usou a sua liberdade Pra esconder toda verdade

Me traiu, fez jogo sujo Me enganou

ELA (refrão): Vá embora mas não leve o meu coração

Vá embora dessa vez não tem mais jeito não Vá embora que eu aprendo a cuidar de mim Sem você aqui vai ser bem melhor assim

Novamente nesse exemplo, o homem sofre com o abandono feminino, mas nesse caso, ele é resultado de sua própria conduta. O que chama a atenção é que o controle sobre a relação está na construção da personagem feminina, que exerce esse controle de forma radical, abandonando o homem. Pode-se alegar que a desistência é derivada de um modelo machista indissolúvel, que posiciona a mulher num plano inferior e que sua única saída é decretar o fim do relacionamento. É claro que a prerrogativa da traição masculina é um eco forte do modelo

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patriarcal de construção de masculinidade, mas me parece interessante também que as canções de forró eletrônico desenvolvam narrativas nas quais as personagens femininas não aceitam esse patriarcalismo de forma direta. A recusa à traição masculina é uma manifestação – ainda que possa parecer tímida – de deslocamento de referenciais aceitos de masculinidade e feminilidade. No caso de Norminha, a conclusão da trama é ainda mais instigante. Possivelmente pressionada por sua canção-tema, a situação conjugal de Norminha e Abel precisaria de um final que sustentasse essa tensão da letra e da estrutura melódica e harmônica. Após descobrir as traições de Norminha, Abel se separa dela e o afastamento provoca agudo sofrimento em ambos. Nos capítulos finais, o casal se reconcilia, o que poderia ser uma narrativa de correção moral de Norminha. Porém, o que ocorre é o oposto. A cena final mostra o casal em sua casa, numa conversa cotidiana amigável e feliz. Em determinado momento, Norminha oferece o leite para Abel, que toma sem questionar e dorme no sofá enquanto ela sai para mais aventuras amorosas. O modelo de casal onde a mulher trai sai vitorioso na trama de Caminho das Índias, construindo novas possibilidades morais. A rigor, a trama paralela de Norminha e Abel na novela tem como tema a busca pelo prazer. Norminha encontra prazer em suas saídas noturnas, mas ao mesmo tempo é apaixonada por seu marido correto e respeitoso. Uma dualidade instigante e tensiva que acompanha o festivo naipe de metais da gravação da Calcinha.

Pega e não se apega As relações afetivas e sexuais narradas pelo repertório do forró eletrônico apresentam com frequência um forte desejo pela alegria e pelo prazer corporal. O corpo é o objeto do prazer do forró, que se manifesta tanto na dança quanto no sexo. Dança e sexo são, como vimos, atividades corporais relacionadas a modos de ser e estar coletivamente, codificadas por convenções e normas sociais e possibilitadas pela centralidade da festa forrozeira. É nesse viés que se inserem algumas canções que apresentam o sexo como objetivo primordial da festa forrozeira, seja experimentado como parte de uma relação amorosa mais estável ou de

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forma rápida, no contexto da busca por prazer em uma noite de festa. De forma quase didática, a canção Pega e não se apega (Eric e Matheus), gravada por Aviões, exprime esse pensamento que dissocia o sexo (a “pegação”) do amor. [ELE] Deu mole na balada, eu vou pegar geral

Virou mania beijar e tchau tchau

A onda é beijar e tchau, tchau

[ELA] Eu não quero dizer que acabou o amor Mas é que na balada, quem pegar, pegou

Eu não quero dizer que não é bom amar Mas é que na balada o bom é pegar

[ELE + coro] Pega, pega, pega, beija mas não se apega Pega e não se apega, beija mas não se apega

Há vários aspectos nessa canção que chamam a atenção. Inicialmente, devemos destacar que a narração em dupla reforça lugares definidos (e convencionais) para o homem e a mulher. Ele afirma a atividade de “pegar geral”, num discurso baseado na construção da masculinidade viril, que deve atender a todo instante seus impulsos sexuais. Ela, por sua vez, precisa justificar sua postura “predatória” na balada manifestando ainda certa crença no amor. A posição feminina se tornou uma posição do afeto e a mulher que renuncia à primazia da busca por amor na economia da noite corre o risco de ser classificada de forma pejorativa como prostituta. Essa divisão de gênero é reforçada ainda no refrão, cantado pelo personagem masculino, numa ode ao descompromisso da “pegação” e dos perigos do afeto. Porém, em uma leitura menos linear, podemos entrever nessa canção uma apologia da alegria festiva e sexual da festa que é experimentada por homens e mulheres. Ao analisar o repertório do forró eletrônico sob a perspectiva das relações de gênero, Golbery Chagas identifica que as ideologias feministas ainda não têm surtido os efeitos pretendidos

mais precisamente no campo das representações artísticas. Declara-

damente, os sujeitos femininos, vazados pelos compositores, têm de-

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monstrado dependências ainda estruturais da performance de masculinidade viril (2008:219).

A apologia da “pegação”, em certa medida, é uma confirmação dessa estrutura patriarcal de valorização da virilidade. Entretanto, convém observar que, se ampliamos o leque de repertório para a totalidade do repertório forrozeiro, incluindo o forró pé de serra, a simples irrupção de sujeitos femininos que narram seus desejos representa um momento de elaboração desses referenciais e, principalmente, das formas de conduta que se extraem desses modelos machistas. Como lembra Foucault, “uma coisa é uma regra de conduta; outra, a conduta que se pode medir a essa regra” (2007:27). Se, por um lado, parece que ainda estamos longe de uma chegada satisfatória fundada numa perspectiva de igualdade de direitos entre homens e mulheres, por outro, é importante sublinhar que o direito à “pegação” também é exercido pelo sujeito feminino dessa canção, sem que com isso ela sofra um processo de desqualificação social aparente. O protagonismo de sujeitos femininos no repertório do forró feminino é por si só uma negociação que tensiona modelos patriarcais de anulação das mulheres e, sobretudo, do prazer das mulheres nos contextos de festa e paquera. É fato que em boa parte das canções, as mulheres estão em busca do amor ideal, do “homem ideal”, do romantismo sensual que se coaduna com expectativas da sociedade contemporânea ocidental. Porém, identifica-se em parte das letras do repertório do forró eletrônico uma posição feminina que não aceita humilhações, violências ou cerceamento de direitos frente ao seu parceiro sexual e afetivo. Em Se você quiser é assim (Chrystian Lima, Ivo Lima e Gilton Andrade), gravada pela Calcinha Preta em 2007, a mulher se nega a abrir mão de sua “liberdade” em prol do relacionamento. [ELA, depois ELE] Se você quiser vai ser assim Me ame mas me deixe livre

[ELA] Quem disse que eu preciso de um amor assim Que pega no meu pé, que quer mandar em mim Que quer prender as rédeas do meu coração Que corta minhas asas se eu quiser voar

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Que eu não tenho tempo nem de me explicar Que morre de ciúmes se eu quiser sair

Que quer adivinhar até meus pensamentos

Essa música apresenta uma negativa contundente de orientações patriarcais descritas como comportamentos adequados para o feminino (e para o masculino que deve zelar pela boa conduta de “sua” mulher). O controle das mulheres exercido pelos homens é veementemente condenado por esta personagem, que rejeita o próprio amor caso tenha que se sujeitar a esse modelo. Trata-se de uma espécie de indignação em relação a uma suposta demanda masculina, acentuada pela estrutura melódica e harmônica, que a cada verso é repetida numa região mais aguda que a anterior, aumentando a tensão entoativa. O caminho da melodia em direção a uma reiteração melódica sempre para o agudo reforça a ideia de um tom de voz alterado, conotando a sensação de um estado afetivo de incômodo com cada ação narrada nos versos. A mulher do forró eletrônico, nesse caso, definitivamente não aceita essas exigências e cobranças. Interessante é estabelecer um paralelo entre essa canção e uma narrativa que glamouriza a situação de controle e dominação masculina, processada por parte do repertório do forró mais tradicional. Dono dos teus olhos, de Targino Gondim, lançada pelo próprio compositor em 2011, é reveladora de uma posição dominadora masculina sobre o corpo da mulher (seus olhos): Não se esqueça que eu sou dono dos teus olhos Faz favor não espiar pra mais ninguém

Que o azul cor de promessa dos teus olhos Faz qualquer cristão gostar de ti também

Que Nosso Senhor perdoe o meu ciúme Quando penso em cegar os olhos teus

Pra que eu, somente eu seja o teu guia

O dono dos teus olhos, a luz dos olhos teus

O absurdo da conclusão violenta da música pode (e deve) ser entendido como uma licença poética, evidentemente. Contudo, mesmo essa licença se insere numa lógica que reforça aquilo que a personagem da

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música da Calcinha Preta rejeita: o controle. Não há como ouvir essa música e não pensar na ideia de “posse” e de propriedade, exercida de modo violento pelo imaginário masculino do patriarca, do coronel. O coronel encarnaria o poder ilimitado, com que talvez muitos sonhem, aquele que casa e batiza, que solta e manda prender, aquele

que seria dono de tudo e todos à sua volta, aquele que, remontando à escravidão, pode se apossar, inclusive, dos corpos alheios, pode

comprar a mulher para lhe servir na cozinha e na cama, pode dispor

da vida de seus agregados e protegidos para fazer a guerra a seus inimigos ou para apoiar as suas pretensões políticas (ALBUQUERQUE

JR., 2012:111)

Esse poder masculino absoluto está manifestado na postura do personagem da canção e encarna uma forma de experimentar a vida a dois atravessada por esse estereótipo patriarcal. Por outro lado, na narrativa de Se você quiser é assim, o homem também apresenta suas condições para o relacionamento, que são fundadas nas expectativas patriarcais e dominadoras de liberdade masculina, de insubmissão. [ELE] Quem disse que eu preciso de um amor assim Eu sou um bicho solto, sou um furacão

Bem longe dos seus olhos sou um gavião Eu disse pra você quando me conheceu

Eu não sou de ninguém e nunca serei seu

Ainda não nasceu mulher pra me amarrar E me deixar igual a um bobo apaixonado

Colocando as duas estrofes em continuidade, a música apresenta duas perspectivas radicalmente diferentes que apontam para o mesmo lugar: o desejo de liberdade, de prazer e de festa. E ambas abrem possibilidade, ainda que remota, de estabelecimento de uma relação amorosa que seria o oposto dessa liberdade. O amor prende; o que eles querem é “não se apegar”. Na narrativa masculina, o “gavião, bicho solto que parece um furacão” encarna uma referência hiperbólica da macheza, caricatura que, no tensionamento do diálogo da canção, parece estar em choque com as demandas, desejos e posturas das mulheres do forró

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eletrônico. Para Chagas, esse posicionamento discursivo coloca a mulher numa situação extrema: “ou se submete à condição exposta pelo parceiro, reconhecendo seu lugar de submissão, ou mantém a tônica de seu discurso, abandonando o relacionamento” (2008:222). De todo jeito, nessa música, colocada em perspectiva junto a outros exemplos do repertório que apresentam um discurso ativo das personagens femininas, nos autorizam a imaginar que está em curso um projeto de questionamento dos códigos machistas da relação a dois. As relações duras, as condenações de parte e parte e não aceitação de referenciais patriarcais de dominação, assim como a ocorrência (ainda que tímida numericamente) de apologia da festa e do prazer entoada por homens e mulheres podem indicar que leituras homogeneizantes e totalizantes sobre os discursos do forró podem acarretar em simplificações e esconder sua eficácia como vetor contemporâneo de negociações de valores compartilhados. Vamos a outro exemplo: A gente quer o que ele quer (2x)

É farra, é farra o que todo homem quer

A gente quer o que ele quer (2x)

É farra, é farra o que todo mundo quer

[ELE] A mulher se apaixona

[ELA] Homem diz que adora

[ELE] Mulher diz que é casada [ELA] Homem diz que namora [ELE] Mulher diz que ama

[ELA] Homem diz que é ficante

[ELE] A mulher diz “meu marido” [ELA] Homem diz que é amante

(Farra, de Gilton Andrade, Calcinha Preta, 2010)

Se a prerrogativa da “farra” vincula-se a um imaginário de construção da masculinidade, nessa música as mulheres reivindicam participar dessa farra. Na segunda parte, a enumeração trocada de características estereotipadas genéricas do “homem” e da “mulher”, cantados por seu antagonista pode ser lida de duas maneiras. Por um lado, as demandas convencionais são reafirmadas e sedimentadas e o refrão parece

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operar na mesma lógica da vingança feminina: se há um inconciliável conflito de modos de ser (imutáveis, estáticos), a saída da mulher é participar também da farra, ainda que esse não pareça ser seu desejo inicial. Porém, por outro lado, é possível entender essa segunda parte como uma reprodução crítica desses modelos engessados que estariam sendo negados pelo refrão. Algo como se houvesse um implícito “é mentira” em cada verso da segunda parte, pois o que “todo mundo” quer é a farra. As duas interpretações não são necessariamente excludentes e elaboram pensamentos contraditórios sobre a relação das mulheres com o machismo no forró, num curto-circuito entre a adesão aos estereótipos que as inferiorizam e a luta para superar tais modelos. Outro aspecto relevante de todo esse movimento deriva da força simbólica e expressiva do local social no qual esse debate é travado: a arena do entretenimento midiatizado, dos encontros sociais de ócio, nos anseios por paqueras e flertes sexuais, na dramatização da sexualidade, no ambiente de prazer e de congraçamento das reuniões coletivas com dança, música, bebida e sedução. Enfim, tudo isso ocorre no espaço lúdico e prazeroso da “farra”, da festa.

A festa

Mais do que um gênero musical, uma categoria de classificação ou um repertório heterogêneo de canções e ideias, o forró é uma festa. Enquanto festa, o universo simbólico a ele articulado discute, abriga, processa e tensiona os modelos de comportamento social em festas. Quase sempre, as músicas de forró fazem elogios e descrevem preparativos e acontecimentos das festas, apontando para a valorização dos eventos festivos. Há vários tipos de festas de forró que apresentam características peculiares, por vezes muito distintas umas das outras. Dos bailes em locais fechados e entrada paga aos grandes shows e megaeventos em parques e praças de grandes cidades (normalmente gratuitos para o público), do forrozinho semanal de trio em pequenas localidades no sertão aos festejos duradouros da época de São João, a diversidade dos eventos de forró dificulta uma interpretação de cunho mais genérico sobre a festa. Por este motivo, vou me concentrar nos aspectos simbólicos do repertório forrozeiro atual para pensar o imaginário da festa, mais do que as festas concretas que ocorrem semanalmente. Como imaginário, a festa do forró é recorrentemente descrita e encenada nas canções, que compartilham em grande medida uma tendência alegre e otimista fundada na possibilidade de encontros sociais – afetivos e/ou sexuais. As festas mantêm com o cotidiano uma relação de licença poética: sem dele se esquecerem, até porque supõem laboriosos preparativos

e meticulosa organização, dele se afastam temporariamente, intro-

duzindo-nos num tempo especial por meio de elaborada linguagem

artística e simbólica. Um tempo cíclico, fortemente ligado à expe-

riência vital, cheio de conteúdos cognitivos e afetivos. Um tempo

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que entrecruza o calendário histórico e traz de volta, a cada ano, as diferentes festas do calendário popular. (CAVALCANTI, 1998:294)

A ideia de temporalidade que circula em torno da noção de festa é fundamental para pensarmos na circulação do forró pelo Nordeste. A sazonalidade é uma característica de qualquer música. As músicas participam da vida cotidiana atreladas a comemorações, eventos e rituais que demarcam temporalidades diversas. No tempo cíclico da música, encenamos a organização social do tempo e nossas demarcações temporais. Como afirma o sociólogo Ángel Quintero Rivera, “a organização humana dos sons ou a música é também uma forma de organizar, expressar ou simbolizar o tempo” (2005:35). Assim como na música, há momentos fortes e fracos em nossas comemorações e ritos sociais, que se apresentam com maior ou menor relevância no compartilhamento de símbolos, pensamentos e identidades, quase sempre sonorizadas com certos repertórios. Se refletirmos sobre a paisagem sonora das cidades, observaremos uma escuta que nos indica fases do calendário e estados festivos e afetivos associados. Entrar numa grande loja de departamentos no período de Natal implica em uma possibilidade concreta de ouvir uma versão instrumental para a melodia do Jingle Bell, quase sempre interpretada ao som de teclados eletrônicos. Ao lado de uma profusão de árvores decoradas, imagens de Papai Noel e enfeites de presentes, esse repertório (e particularmente essa música) moldam o ambiente natalino e preparam afetivamente a chegada da festa, do fim do ano, do verão, do período de férias escolares. Em seu estudo sobre sonorização de lojas de rua na Inglaterra, Tia De Nora notou que todas elas adotam determinados repertórios cuidadosamente escolhidos em função do dia da semana, do horário e da época do ano, buscando estabelecer uma especificidade temporal no ambiente da loja, relacionado a um consumo específico (DE NORA, 2004:139). O mesmo ocorre no carnaval, com enfeites em ruas principais de todas as cidades, agendas paralisadas pela folia, compartilhamento de ideias relacionadas à euforia, dança, estados alterados de consciência e um determinado repertório composto por marchinhas, frevos ou axés, dependendo da região do país. No caso do forró, podemos pensar em dois arcos temporais que se entrecruzam nas festas: o amplo intervalo anual, demarcado pela festa de São João, e os arcos semanais e mensais que demarcam os circuitos

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de shows, vaquejadas, rodeios, festas de exposições de animais e micaretas. Em torno de todas essas dimensões temporais, o forró constrói uma ideia compartilhada de festa que reforça noções de pertencimento regional e negocia ideias sobre a nordestinidade. Pra começar, vamos analisar o caso da cidade do Recife, iniciando pela organização do São João na cidade.

O São João no Recife Tão importante no calendário anual quanto o Natal ou o Carnaval, as comemorações em homenagem a São João ocupam espaço privilegiado no ciclo de festas populares na região Nordeste. As três festas têm em comum sua origem religiosa que se manifesta como inspiração, mas que se profaniza em eventos caracterizados pela reunião familiar (Natal), pela inversão festiva de posições e papéis (Carnaval) ou pela consolidação de referências identitárias e simbólicas (São João). Em toda a região Nordeste, o mês de junho é ocupado por signos que falam sobre uma construção da identidade regional, desenvolvida e reafirmada a partir de referenciais rurais e festivos. A origem da festa de São João está relacionada a tríduos (sequência de orações que se estendem por três dias) organizados pela Igreja em homenagem ao santo, que tomaram forma de evento significativo com comidas, bebidas e música, característica de algumas festas católicas (CHIANCA, 2006:37). O dia 24 de junho é feriado regional e nessa data, lojas, supermercados e até shoppings centers fecham suas portas desde a noite da véspera, liberando funcionários e clientes para aproveitar a folia junina. As cidades se enchem de elementos associados à festa e o som das lojas de departamento dá o tom do período, tocando forró durante todo o mês (AMARAL, 1998:43). Sendo uma festa predominantemente rural em seus símbolos e origem, relacionada a comemorações ligadas à fertilidade e à colheita no calendário europeu, o São João ocupa as ruas das cidades grandes e médias com referências diretas a signos da ruralidade (SILVA, 2002:14). Entre eles, os mais significativos talvez sejam as comidas à base de milho e macaxeira, a fogueira, a indumentária de “matuto” (também chamada de “caipira” no Sudeste) e o forró. Cidades como Campina Grande (PB) e Caruaru (PE) extraem das festas de junho não somente

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momentos de alegria para sua população, mas lucros diretos com turismo e ampliação exponencial de sua visibilidade estadual, regional e até nacional. Em Campina Grande, o “maior São João do mundo” é comemorado numa arena central chamada sugestivamente de “Parque do Povo”, onde a festa assume característica de um megaevento, aglutinando público numeroso e rendendo frutos políticos e mercantis significativos (NÓBREGA, 2009:2). Em Caruaru, cidade cujo slogan afirma ser a “capital do forró”, as comemorações do São João ocorrem no Pátio de Eventos Luiz Gonzaga, uma área de 41.500 metros quadrados e com capacidade para 80 mil pessoas (FARIAS, 2005:16). Em ambas as cidades, o entretenimento está associado ao turismo, configurando uma rede de influências de várias naturezas, que perpassam da festa para a cidade, atravessando a classe política e a própria população num jogo de negociações simbólicas, financeiras, autoestima e identidade. Por este motivo, as festas agigantadas de Campina e Caruaru são protagonizadas por bandas de forró eletrônico. Em Recife, contudo, a situação é um pouco diferente. Conhecida e reconhecida nacionalmente pelo carnaval há várias décadas, a capital pernambucana é uma cidade com 3,7 milhões de habitantes em sua região metropolitana (Censo 2010) e sem problemas de autoestima, convivendo muito bem com sua centralidade regional e nem tão bem assim com sua marginalidade nacional. Diferentemente do Carnaval ou dos vários festivais de música da cidade (com destaque para o Abril Pro Rock, Rec Beat e PE no Rock, entre outros) as comemorações do São João na cidade do Recife não estão articuladas com o mercado turístico, configurando-se como eventos destinados predominantemente à população local. Talvez por este motivo, a capital esquiva-se da disputa simbólica entre Caruaru (135 km de distância) e Campina Grande (a 191 km do Recife) e tem se dedicado de modo sistemático a apoiar o forró tradicional, também conhecido como “pé de serra”. Em outras palavras, no Recife, a publicidade do São João opera na inversão da magnitude das festas de Caruaru e Campina, buscando sedimentar o calendário oficial do mês como eixo legitimado da autenticidade da festa. Para o São João de 2010, a prefeitura criou o provocativo slogan “Tradicional a gente faz na capital”, que traz, além da rima, uma dupla alusão. Tanto apresenta em sua festa uma marca distintiva com relação à “capital do forró” e à grandeza do “maior do mundo”, quanto sugere

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que o “São João da Capitá” – evento patrocinado pela Rede Globo Nordeste no início de junho e com ampla participação de bandas de forró eletrônico – não reflete os desejos e aspirações da população recifense. Mas há ainda uma inversão irônica que se manifesta no slogan, relacionada à predominância simbólica dos elementos associados à ruralidade. Se o São João é uma festa que se localiza em zonas rurais sob a inspiração matricial de cultos à colheita e à fertilidade, era de se esperar que localidades no interior dos estados produzissem uma festa mais tradicional no sentido de construção identitária. Ao contrário, a política da prefeitura – pressionada por diversos grupos e entidades culturais – em vetar as bandas de forró eletrônico e produzir um São João exclusivamente “tradicional” inverte a expectativa da autenticidade rural e desloca para o asfalto metropolitano a força simbólica do sertão. Em 2009, o slogan já apontava na mesma direção afirmando que “Recife tem São João e valoriza a tradição”. Em 2011, 2012 e 2013, o slogan de 2010 foi praticamente repetido – “São João tradicional a gente faz na capital” – matizando um discurso reiterativo de ênfase no tradicional. No campo semântico gerado pelas rimas, “São João” e “capital” associam-se nos slogans ao vocábulo tradição, em sua forma substantiva e adjetiva. Não por acaso, em 2010, um dos homenageados do São João oficial da cidade foi Humberto Teixeira, parceiro de Gonzaga em clássicos como Asa branca, Baião, Qui nem jiló. Em 2012, aproveitando as comemorações de seu centenário, o homenageado foi o próprio Rei e em 2013 o forrozeiro Maciel Melo (afetiva e simbolicamente vinculado com o forró tradicional) e o artista popular Mika Silva, coreógrafo de quadrilhas juninas. De certa forma, o sentido de tradicionalidade atrelado ao ambiente do sertão e, mais especificamente, ao pé de serra, é acionado em toda a construção simbólica do São João do Recife. A marca oficial da festa de 2010 é um desenho com três figuras, dois homens e uma mulher que acionam conexões variadas, quase todas relacionadas ao sertão, a começar pela representação dos instrumentos consagrados do forró – sanfona, zabumba e triângulo. Ao utilizar esses símbolos, a Prefeitura do Recife consolida seus referenciais da tradição, valorizando a festa como espaço de destaque. O palco principal do São João do Recife é um parque conhecido como Sítio da Trindade, no bairro de Casa Amarela, na zona norte da cidade. No folheto oficial da programação de 2010, o Sítio é apresentado como

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uma área com cerca de 65 mil metros quadrados, local onde o “cenário urbano transporta-se para o rural, com fazendinha, cidade cenográfica, parque de diversões, coreto e palhoça”. O Sítio é ainda um lugar emblemático na narrativa de construção da cidade, pois foi em seu entorno que foi construída uma vila que ofereceu resistência à invasão holandesa por cinco anos, vindo a sucumbir aos invasores em 1635. Atualmente, o parque é preservado e utilizado primordialmente na época junina. A programação do Sítio da Trindade para 2012 envolveu 69 shows de artistas variados 1, entre 7 e 23 de junho, além de um grande festival competitivo de quadrilhas, realizado na palhoça do parque e de um palco auxiliar intitulado “Sala de Reboco” (título de uma famosa canção de Luiz Gonzaga e nome da principal casa de forró da cidade). Tudo isso forma uma festa de grande impacto social e simbólico para a cidade, que reforça a construção de um sentimento de nordestinidade vinculado ao universo rural. O rural baseado na colheita do milho, da ingenuidade estereotipada do “matuto” e na dança festiva da quadrilha, que pouco integra a urbanidade cosmopolita e tecnológica da cidade. Mas funciona como símbolo e também como festa. Uma festa do forró. A movimentação de forró durante o período junino é intensa e ele funciona como uma espécie de sedimentador mercadológico para o gêEntre as atrações, podem-se destacar artistas de grande reconhecimento regional como Geraldo Azevedo, Silvério Pessoa, Petrúcio Amorim, Santanna, Geraldinho Lins, Jorge de Altinho e Josildo Sá, entre outros. 1

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nero. Mas as festas de forró acompanham também outro arco temporal, mais curto, semanal, que se espalha por todas as cidades nordestinas o ano inteiro.

Forró o ano todo! O São João corresponde, no universo forrozeiro, a um momento de intensificação. A festa em homenagem ao santo, que integra um ciclo religioso do qual participam também Santo Antônio – o santo “casamenteiro” – e São Pedro, é uma festa relacionada à alegria da colheita e à fertilidade. Matizada na safadeza da dança do forró, a festa de São João é uma apologia da reprodução, do sarro, da paquera, da vida. Pode-se dizer que este imaginário joanino ecoa nas centenas de festas de forró que são preparadas durante o ano. É como se o imaginário da alegria do milho, da colheita e da fecundidade resvalasse por todo o calendário, agregando sensualidade e diversão. No Nordeste contemporâneo, a ideia de festa forrozeira está diretamente relacionada à estrutura de shows e bailes com música ao vivo. A própria organização do São João é pensada a partir de “palcos” nos quais os “artistas” se apresentam para o “público” cantar e dançar. Palco, artistas e público são categorias de um mercado de música popular que não se encaixam muito bem nas festas forrozeiras idílicas e comunitárias cantadas no repertório tradicional de Luiz Gonzaga e seus seguidores mais diretos. Mas formam uma adaptação moderna desse imaginário, que se traduz na estrutura comercial de circulação musical. São os shows que formam as festas. Show e festa são, nesse contexto, sinônimos. Há vários tipos de shows de forró que contribuem para sua onipresença no cenário musical nordestino contemporâneo. As casas de shows de tamanhos variados produzem semanalmente espetáculos forrozeiros que atraem público numeroso. Normalmente, essas casas reforçam uma divisão estética entre pé de serra e eletrônico: os espaços maiores e mais modernos são dedicados ao eletrônico (com mais público) e os mais intimistas dedicados ao pé de serra. Nas casas de pé de serra, é comum encontrar decorações que remetam a cenários do sertão, com referências frequentes a vaqueiros, casas de barro, visualidades sertanejas, comidas típicas (carne de sol, macaxeira e milho)

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(ver Trotta, 2011b). Nas dedicadas ao forró eletrônico, ao contrário, o ambiente é modernizante, análogo a qualquer espetáculo do universo do pop: palcos grandiosos, equipamentos de luz e som em destaque, decoração em linhas retas, com frequência empregando neon ou cores fortes. É comum também apresentações de forró eletrônico em clubes, aproveitando os espaços de quadras e áreas de lazer. Os espaços de festa são significativos para os códigos que circulam pelas festas e para sua eficácia simbólica. Além das festas organizadas em espaços privados e fechados, há inúmeras festas de forró patrocinadas comumente pelo setor público, que ocorrem ao ar livre, em praças, feiras e eventos das cidades. Muitas delas estão relacionadas a um circuito de festas do mundo rural, ligadas e “exposição pecuária” ou rodeios. Nelas, um misto de feira, parque de diversões, comércio de alimentos e espetáculos de shows (além das atividades relacionadas ao mundo da pecuária) formam um evento de grande intensidade e interesse local (MARQUES, 2011:21). Em etnografia realizada em uma dessas festas – a Expocrato – Roberto Marques conta “uma piada local corrente de que muitos filhos do Cariri nascem em maio ou abril, nove meses após a exposição agropecuária: rebentos gerados nos currais e estábulos durante a festa” (idem:20). A piada é interessante, pois reforça a ideia de que as festas são momentos particularmente propícios para encontros eróticos e sexuais. E, como vimos, toda a ambiência safada do forró colabora para esse clima constante de sensualidade e paqueras. Porém, é evidente que os ciclos temporais da sexualidade, da alegria, da dança e da sociabilidade festiva não podem ocorrer somente algumas vezes por ano. Semanalmente, diversas festas de menor apelo fornecem possibilidades de encontros variados. Ainda tendo como referência o trabalho de Marques, o autor identificou que, sob o ponto de vista dos jovens frequentadores desses eventos, há uma relação entre a percepção da qualidade da festa e sua capacidade de agregar pessoas. Tal capacidade parece estar marcada pela localização da festa; em que cidade ocorrerá; a facilidade de acesso; a qualidade da atração

que tocará e ser medida pela “quantidade de gente que vai entrar”.

Ao mesmo tempo, não é só a quantidade do público que importa. A

variedade do público faz com que se percorram festas em várias cida-

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des diferentes, distritos e vilarejos ao redor. Tão importante quanto

“ter gente” é “ter gente diferente” (2011:76-77).

Podemos aqui pensar na metáfora de Clifford Geertz sobre o grau de “absorção” de um evento. Em sua célebre interpretação sobre a briga de galos em Bali, Geertz enumera diversos fatores que moldam o quanto uma determinada briga irá agregar afetos e densidade emocional: a posição social do dono do galo, o histórico do galo, o volume das apostas, o tempo de preparativos (1989). Analogamente, uma festa de forró irá gerar engajamento afetivo proporcional à sua estrutura, à projeção das bandas programadas, ao tamanho do palco, ao investimento em divulgação. Há festas circunscritas, menores, mais modestas, e festas grandiosas, que agregam mais valor e afetos. Em todas elas, estabelece-se uma relação entre o evento festivo e a cotidianidade. Os forrós seriam uma forma de animar a vida cotidiana “a partir da materialização momentânea das representações coletivas” (MARQUES, 2011:54). Os festejos de São João formam um símbolo decisivo no imaginário do forró. Mas esse imaginário vaza para além dos festejos juninos e reverbera em canções, discos e shows que perpassam o ano todo. Se o São João permanece atrelado a um conjunto simbólico fortemente rural e tradicional, é possível identificar movimentos contemporâneos que cercam o imaginário da festa do forró e que transcendem esse universo, ainda que dialoguem com ele. Proponho isolar dois discos recentemente lançados no mercado forrozeiro, que demarcam estratégias semelhantes de aproximação e interpretação do cenário atual do forró, fundado na festa. Intencionalmente, nenhum dos dois discos se inscreve satisfatoriamente nem na vertente pé de serra nem na vertente eletrônica do gênero, buscando articular uma espécie de eixo comum em torno do qual o imaginário compartilhado do forró se estrutura. O primeiro deles é o CD Fé na festa, de Gilberto Gil, lançado em 2010. O veterano artista dispensa apresentações, mas é conveniente lembrar que Gil tem papel crucial na valorização do forró a partir da década de 1970, continuamente referenciando e reverenciando a obra e a figura de Luiz Gonzaga em um momento em que seu sucesso havia passado. Em 2000, Gilberto Gil revisita a obra de Gonzagão gravando algumas de suas canções mais emblemáticas no CD do filme Eu, tu, eles, de Andrucha Waddington. O sucesso do filme e do

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disco, capitaneado pela canção Esperando na janela (Targino Gondim), novamente auxiliam a valorização do gênero no mercado musical nordestino e nacional. E é o forró que Gil vai revisitar ao elaborar o disco no ano de sua saída do cargo de Ministro da Cultura, festejando a vida e o próprio forró. O outro disco em análise é Frevo na latada, de Josildo Sá, lançado no final de 2011. Pernambucano de Tacaratu, Josildo incorpora nesse disco a ideia de interconexão entre gêneros, fundindo o universo rural do forró-baião gonzagueano com o fervor urbano do frevo do Recife. Nessa mistura, processa uma identidade nordestina animada, alegre e festiva, sob o sol quente do carnaval pernambucano. Em ambos os discos, a festa forrozeira é o personagem principal, processada a partir de significantes do século XXI.

Fé na festa Fé na festa apresenta uma narrativa bastante peculiar e precisa sobre o universo contemporâneo do forró. O disco se inicia com um convite à festa feito pela faixa-título. Nela, o compositor molda o ambiente sertanejo do forró em torno de um de seus estereótipos: o transporte de jegue. Na “velocidade ideal” e sentindo a “brisa fresca da noite”, o personagem da canção e sua interlocutora estão em cima do animal e manifestam sua crença de que vão “chegar em paz na festa”. A levada de rojão característica de uma parte do repertório típico dos festejos juninos define a festa em questão, marcada no feriado regional do dia de São João. Não é uma festa qualquer! Eu, eu e o sertão

Tu, tua emoção

Nós, nós e o São João

Mais não pode não

A sonoridade da canção e de todo o disco tem como base o violão, baixo, bateria e os arranjos estão baseados fundamentalmente nos contrapontos entre a sanfona e o violino, por vezes substituído pela rabeca. Rabeca e sanfona formam um par de sons que localizam o contexto

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da festa, materializando as expectativas rurais da festa forrozeira, mas ampliando tais referências através de uma proposital clareza urbana na sonoridade, matizada na execução precisa e por vezes virtuosística dos dois instrumentos, assim como no peso grave do contrabaixo e da bateria. Com esse “som”, Gil reafirma sua vinculação hereditária ao forró gonzagueano, que aparece de forma explícita na canção Aprendi com o rei (João Silva), que também integra o CD. Onde quer que esteja um fole de oito baixos Zabumbeiro, num terreiro, forrozeiro, opa! Ó eu aí no meio, tô eu aí no meio Pode crer que eu tô no meio

Não posso fazer feio, não, não

Isso eu aprendi com o rei

A referência ao reinado de Luiz Gonzaga se reafirma na faixa seguinte, uma regravação da emblemática Dança da moda (Luiz Gonzaga e Zé Dantas), lançada originalmente em 1950, que diagnostica o sucesso do baião na capital brasileira. No Rio tá tudo mudado Nas noites de São João

Em vez de polca e rancheira

O povo só dança, só pede o baião

Na gravação de Gil, o arranjo original de Luiz Gonzaga é substancialmente alterado com uma nova introdução, um andamento mais acelerado e com a exploração constante da rabeca e suas intervenções em diálogo com a sanfona e com a guitarra. Com isso, a atmosfera festiva da música fica particularmente acentuada, contribuindo para uma performance vocal alegre, sorridente. Mas é interessante o convívio proposto no disco entre a reverência ao “rei” e a observação das nuances da festa forrozeira atual, movida fundamentalmente pelo ambiente jovem e pelo forró eletrônico. Gil não agrega em nenhuma faixa do disco sonoridades que remetam ao universo do forró eletrônico, configurando facilmente o disco dentro de uma classificação elástica do forró tradicional, mas com traços na-

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cionalizantes que advém de sua própria carreira de décadas. Porém, se o ambiente jovem da vertente de maior público do gênero está ausente da sonoridade do disco, ele aparece discretamente na letra da canção O livre-atirador e a pegadora (Gilberto Gil), a segunda faixa do CD. Não é casal porque não são casados

Não é um par porque logo são três ou mais

O fato é que já estão acostumados

Namorados, namoradas, vários de uma vez

Muita performance, muita parada Muita balada, muito forrozão

Não tem romance, não tem paixão frustrada

De vale-naite não precisam não

O descompromisso afetivo do casal genérico formado por um “livre-atirador” e uma “pegadora” é um modelo jovem festivo de navegação nas festas de forró. É o modelo do Pega e não se apega. O valor moral da afetividade jovem está na versatilidade individual e libertária (libertina?) da festa, na qual os laços românticos podem ser tomados como limitadores. Por outro lado, na canção de Gil não observamos um aspecto que me parece crucial na apologia da liberdade individual sexual, que é a ironia. De certa forma, esse desprendimento em Pega e não se apega ou mesmo nas canções machistas como Pega fogo, cabaré não são acionadas de modo muito sério. É como se tudo fosse uma performance social festiva e fugaz, que não necessariamente teria força de uma ética afetiva permanente. O casal de Gil, ao contrário, parece articular esse descompromisso de modo permanente, percorrendo shows musicais em busca de diversão. Na continuação da música, esses shows são nomeados: O livre-atirador e a pegadora

A pegadora e o livre-atirador, que amor Que amor pra eles é amor pletora

Quem namora, quem namora, quem namora quem? Quem Timbalada, quem Babado Novo Quem Psirico, quem calcinha azul

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Calcinha Preta com cuequinha branca Quem vale norte, vale norte a sul

Um aspecto importante dessa enumeração de shows é a não exclusividade de forró que o casal frequenta. Continuamente em reflexões sobre gêneros musicais, tratamos do público como um grupo homogêneo e coerente, ignorando diversidades e outras sonoridades. Esse livro não foge à regra, mas convém pelo menos registrar a diversidade de ofertas e de pertencimentos variados dos jovens urbanos. Babado Novo, Timbalada e Calcinha Preta podem tranquilamente formar um conjunto de gosto compartilhado por expressivos grupos juvenis em várias cidades do Nordeste e além dele, acionando questões e pensamentos variados. Isolamos aqui o forró como objeto de estudo, mas isso não aniquila as interconexões com outros gêneros, especialmente aqueles que perpassam elementos semelhantes de comportamento, alegria e, principalmente, compartilham a ideia de festa. Aliás, é importante registrar que as bandas de forró eletrônico têm frequentado rodeios e micaretas, produzindo musical e socialmente um intenso contato com a música sertaneja em sua versão mais pop e a energia contagiante do axé baiano. A festa da canção de Gil é “de norte a sul”, variando um pouco de sonoridade, mas não no espírito. O livre-atirador e a pegadora é a única canção do disco que nomeia e referencia o forró eletrônico. Apesar disso, o faz extraindo um dos aspectos centrais a meu ver do estilo: a negociação de papéis masculinos e femininos processados pela música nordestina atual. Nem um nem outro são julgados pela liberação sexual e não parece haver hierarquias de gênero entre os dois. Possivelmente, os enfrentamentos morais das sexualidades afetivas foram superados e eles agora podem viver suas aventuras festivas em paz. Outra leitura possível é exatamente inversa. O livre-atirador e a pegadora evitam o compromisso afetivo com medo de ter que encarar as dificuldades emocionais da assimetria entre os sexos, as cobranças e agruras da vida a dois. Com medo de ter que negociar o pagamento do “leite Ninho”. De todo jeito, o que nos interessa aqui é a amplitude dessa sensação de festa, que se expande da esfera territorial e simbólica do Nordeste para todo o país, como afirmam os versos finais:

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É vale dia e noite, é vale noite e dia

Vale pro carnaval, vale pro São João

Vale pro Rio, pra São Paulo, pra Bahia Vale pro Ceará, vale pro Maranhão

Após esse percurso nacional que compreende Sudeste e Nordeste (curiosa exclusão de estados das regiões Norte, Centro-Oeste e Sul, que parecem alijados do compartilhamento de signos forrozeiros) retornamos ao ambiente da festa no Rio de Janeiro já no final do disco, com a música São João carioca. Nela, os compositores Gilberto Gil e Nando Cordel anunciam uma festa junina na cidade da qual os santos que emprestam seu nome a lugares e bairros locais se integrarão para participar. O Rio de Janeiro vai ser só animação É forró é alegria é festa de São João

São Cristóvão te convido pro chamego

São Conrado vem que o fogo vai pegar São Januário pode vir com seu molejo

Diga a São Sebastião que a festa vai começar

São Judas Tadeu, Santo Antônio e Santa Bárbara

Traga São Vicente, São Bento e muita energia São José, São Jorge e São João Batista

Santa Marta, todo mundo vai cair nessa folia

A articulação criativa de uma festa repleta de santos católicos numa cerimônia pagã em homenagem a um deles é um elemento instigante para pensar o forró contemporâneo. Em primeiro lugar porque ele se desloca de seus significantes propriamente nordestinos e situa-se como música de festa, adequada ao momento ético atual de diversidade e integração. Além disso, os santos aparecem na geografia da cidade misturando nomes de bairros, favelas, igrejas, ruas, túneis, cemitérios e estádios de futebol, numa salada territorial em torno da festa. Nesse emaranhado profano, o santo que justifica a festa e o padroeiro da cidade se embolam com designações variadas, brincando com a própria religiosidade oblíqua da antiga capital federal. Assim, o disco funciona como uma homenagem ao forró e à pluralidade nacionalizante do Rio

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de Janeiro, cidade que projetou Luiz Gonzaga e seus referenciais de nordestinidade. E ao mesmo tempo, manifesta sua fé nessa bagunçada festa de santos, lugares e identidades.

Frevo na latada Em 2006, Josildo Sá lançou no mercado independente um disco com o clarinetista Paulo Moura que buscava uma aproximação entre o choro, o samba e o forró. O disco, o terceiro de sua carreira, intitulava-se Samba na latada e obteve expressiva divulgação em Pernambuco, consagrando Josildo como um dos principais cantores de forró do estado. A estética do CD era a afirmação de uma regionalidade nacional para o forró, que era construída a partir da aproximação com o samba. Samba na latada explorava ainda o fato de o vocábulo “samba” ter sido utilizado por muitos anos no sertão pernambucano para designar “festa”, com músicas de variados estilos e gêneros musicais. Com isso, Josildo e Paulo Moura apostavam na versatilidade e na variação de sonoridades do forró, afastando parte de seus referenciais tradicionais gonzagueanos. E, mais do que isso, o artista pernambucano situava-se no mercado musical fora da disputa bipolar entre o forró eletrônico e pé de serra, saindo pela tangente e não se enquadrando em nenhum dos dois (SANTOS, 2014:199). Tem frevo na latada é uma continuação dessa ideia, produzida talvez de forma ainda mais radical. A mistura do forró com o frevo articula dois vetores de identificação regional de matriz pernambucana que circulam no imaginário musical nacional como representações sonoras da nordestinidade. De um lado, o forró sertanejo e, de outro, o frevo urbano litorâneo. Ao mesmo tempo, a concomitância do frevo e do forró manifesta um desejo utópico de fusão de duas festas sociais espalhadas pelo ano – Carnaval e São João – em torno de um “devaneio” dionisíaco. Organizado sob a forma de uma narrativa festiva e fantasiosa em torno dessa inusitada união, o disco apresenta duas canções que funcionam como editoriais, posicionadas estrategicamente na primeira e na última faixa do CD. A faixa-título apresenta a ideia fundante do disco, imaginando Luiz Gonzaga como tema do famosíssimo bloco Galo da Madrugada, apogeu do carnaval de Recife.

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O rei Luiz nascido lá no Exu

Passou em Tacaratu pra chegar na capital

Trazendo cheiro de gibão, sela e cavalo

Virou o tema do Galo abriu nosso carnaval

(Tem frevo na latada, de Josildo Sá, Beto Hortis e Diomedes Mariano)

A canção é um frevo, com arranjo tradicional do gênero, em andamento acelerado e estilo melódico-harmônico inteiramente codificado como tal. No entanto, na sonoridade já fica clara a conexão que será elaborada entre a levada do frevo e o ritmo da quadrilha junina, compondo uma referência dupla de identidade pernambucana e nordestina. Outro aspecto que chama a atenção nessa música e em todo o disco é o uso do naipe de metais. Ao articular um dos signos mais expressivos da sonoridade do frevo com o uso recorrente dos metais no forró eletrônico Josildo incorpora os desejos de uma atmosfera jovem ao universo simbólico do forró, através do carnaval. Se o naipe de metais é uma das marcas sonoras do forró eletrônico, associado a narrativas de alegria, festa e macheza, o frevo-forró de Josildo reafirma esses valores numa espécie de torção simbólica de seu devaneio festivo. Essa opção fica ainda mais evidente na última canção do disco, Folia gonzagueana (Junior Vieira). Nela, o cantor reconhece sua fantasia e explora a memória do forró e do frevo através de seus principais cantores e intérpretes já falecidos. A elaboração de uma lista de autores significativos é recurso recorrente na música popular para conotar pertencimento e hereditariedade. Nessa homenagem final, o principal compositor de frevos do repertório carnavalesco pernambucano, Capiba, integra uma festa hipotética com Gonzagão, Sivuca, Lindu e Coroné, personagens referenciais da história do forró. Num devaneio eu voava num balão Pra falar com Gonzagão

Só pra ver se ele queria

Vir lá de riba, com Batata, com Capiba

Sivuca da Paraíba, pra “modi” entrar na folia

Aí o Rei conversou com Ari Lobo Cobrinha que não é bobo

Falou pra Lindu e Coroné

A festa

155

Vamos s’imbora hoje tem festa eu quero Ver Ludugero, João do Pife e a mulher (...)

Eita folia gonzagueana

Tem Seu Luiz, Januário e Mãe Santana Tem Araripe, tem litoral

Que fuzuê já virou o carnaval

A integração delirante da serra do Araripe com o solo quente do litoral do Galo da Madrugada é uma homenagem à festa que reivindica uma atualidade urbana para o forró, em um caminho alternativo ao forró eletrônico. De certa forma, Josildo procura incorporar referenciais de juventude, alegria e safadeza produzindo outro caminho estético para tais noções. E sua intenção é atravessada pela construção de um imaginário simbólico e identitário nordestino, de matriz pernambucana. Conciliar litoral e sertão, carnaval e São João ou Gonzaga com Capiba é um jeito de unir tradição e modernidade num discurso cosmopolita e regional ao mesmo tempo, assim como fazem as bandas com gigantesco sucesso. Mas o artista evoca de modo inconteste sua hereditariedade. Seis das outras dez músicas do CD são de autoria de Luiz Gonzaga, o que denota de forma inequívoca por onde anda seu “devaneio”. Porém, Josildo optou por selecionar do gigantesco repertório do “Rei” músicas particularmente safadas e irônicas, que se afastam do referencial idílico da Asa branca ou No meu pé de serra. A regravação de Pagode russo em forma de frevo não chega a ser uma novidade, pois a própria letra já diz que o tal “pagode” com sua dança do “kossaco” “parecia até um frevo naquele cai não cai”. Mais instigante é a faixa Deixa a tanga voar (Luiz Gonzaga e João Silva), gravada por Luiz Gonzaga em seu LP Sanfoneiro macho, de 1985, que reafirma sua macheza nordestina tradicional. Na gravação de Josildo, o frevo-quadrilha brinca com a safadeza deslocada do “Zé Matuto” na praia, assustado com o tamanho reduzido dos biquínis das mulheres, amarrados com uma singela “rabichola”. Zé Matuto foi à praia só pra ver como é que é

Mas voltou ruim da bola de ver tanta rabichola Nas cadeiras das muié

(..)

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no ceará não tem disso não

Uma tanga, mini tanga, tão pequena,

Piquitinha, miudinha não precisa amarrar

Ora pomba, ora bola

Jogue fora a rabichola e deixa a tanga voar Deixa a tanga voar! Deixe a tanga voar!

No disco há espaço também para os duplos sentidos irônicos que atravessam boa parte da safadeza do forró, como em Todo mundo lá tem culpa (Marcelo Reis e Belinho), que acusa o sogro e a sogra de provocarem sua desunião conjugal com fofocas sobre suas possíveis traições. O recurso humorístico é bem parecido com o empregado por Genival Lacerda em Velho Cuca, explorando a sonoridade altamente expressiva do fonema “cu”. Lá tem culpa todo mundo, seu doutor Lá só não tem culpa eu

Por vezes, a referência a partes do corpo ou atividades sexuais através de metáforas são a única razão da estruturação da canção (como em “ela deu o rádio”). Outro exemplo do disco de Josildo é Meu casamento (Zenilton e Januário Gonçalves), na qual o recém-casado personagem descreve o ambiente de pobreza material da nova casa e narra o dia em que ele foi buscar água na “cabaça” de sua mulher e tropeçou no caminho, “quebrando a cabaça dela”. A festa que Josildo imagina é uma festa safada, indecente, lúdica e inclusiva, que mistura referenciais de nordestinidade afastando-se do modelo saudosista e rural. É uma festa urbana, que funde o santo profano dos festejos juninos com a orgia carnívora de fevereiro. É uma condensação do calendário das festas e de seus símbolos, na celebração de uma identidade nordestina jovem, energética e cosmopolita. A cidade escolhida para encarnar esse novo tempo não é o Rio de Janeiro distante e central, mas a capital do próprio estado de Pernambuco, rival do Ceará na centralidade econômica e cultural do Nordeste e berço do forró tradicional. É a cidade do carnaval, de seus delírios e sonhos momescos, traduzidos como vetor de identificação regional. Os discos de Gil e Josildo são exemplos de uma contínua elaboração da nordestinidade forrozeira que negocia modelos tradicionais de pertencimento, mas procura ampliar esses referenciais com elementos

A festa

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modernizantes. Porém, é necessário sublinhar o alcance limitado desses dois artistas no espaço de circulação do forró no Nordeste. Se Gil é um artista nacionalmente conhecido e respeitado, a diversidade de seus trabalhos o coloca numa posição de certo distanciamento das “coisas do forró”. Seus recorrentes trabalhos sobre o gênero são tomados como incursões externas de um artista localizado no respeitado segmento de mercado da MPB. Josildo, por sua vez, de projeção recente no mercado pernambucano, alinha-se com a vertente “pé de serra” em espaços de shows e vendas de discos, agregando público significativo para esse segmento, mas, apesar de seu sucesso inconteste, encontra-se muito distante da dimensão numérica das bandas de forró eletrônico. A análise dos trabalhos recentes de Gil e Josildo funciona como atestado de que a festa do forró é múltipla e que a aguda cisão comercial entre pé de serra e eletrônico não encerra todas as possibilidades estéticas de processamento da nordestinidade no forró atual (SANTOS, 2014). Entretanto, é inegável que a centralidade do forró eletrônico faz com que suas referências sejam protagonistas da reflexão sobre forró, contemporaneidade e nordestinidade. E essa reflexão está atrelada física e simbolicamente a uma ideia difusa sobre o “Ceará”, metonímia de todo o Nordeste.

O Ceará metonímia

Em 1950, Luiz Gonzaga lança pela RCA-Victor um compacto com a canção No Ceará não tem disso não (Guio de Morais). Classificada como um baião e no auge do sucesso deste recém-inventado gênero fonográfico, a canção elabora, ao lado de diversas outras do mesmo período, um conjunto de referências para a circulação de ideias sobre o Nordeste e a nordestinidade. Uma nordestinidade sertaneja, temperada pela saudade migrante das coisas, pessoas e encontros de um sertão longínquo no tempo e no espaço. Uma nordestinidade festiva e safada, cultivada no ambiente moral conservador do patriarcado rural e em crise com a experiência urbana na “capital”. O sertão de Luiz Gonzaga, como já foi dito, é visto de longe, a partir do asfalto e das modernidades da cidade grande. Nesse sentido, ao narrar um tempo mais lento, descrevendo coisas e animais que para serem vistas “o cristão tem que andar a pé” 1, o repertório referencial do forró investe na valorização de uma temporalidade rural em resposta ao tempo acelerado do progresso da cidade. Tudo o que tem de bom no sertão (e no Nordeste) se constrói e se reafirma, portanto, pela negação de características encontradas na “capital”. Vejamos a letra de Guio de Morais: Tenho visto tanta coisa nesse mundo de meu Deus Coisas que pra um cearense não existe explicação

Qualquer pinguinho de chuva fazer uma inundação Moça se vestir de cobra e dizer que é distração

Vocês cá da capitá me adiscurpe essa expressão

1

Verso da canção Estrada de Canindé (Luiz Gonzaga). 159

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no ceará não tem disso não

No Ceará não tem disso não

Tem disso não, tem disso não Nem que eu fique aqui dez anos eu não me acostumo não

Tudo aqui é diferente dos costumes do sertão

Não se pode comprar nada sem topar com tubarão

Vou voltar pra minha terra no primeiro caminhão

Vocês vão me adiscurpar mas arrepito essa expressão

O Ceará funciona nessa canção como metonímia de todo o Nordeste, concebido como espaço territorial baseado no sertão e nos referenciais rurais. A tensão moral da indumentária das moças e da esperteza dos “tubarões”, somados aos problemas urbanos formam um emaranhado de símbolos contraditórios nos quais o migrante não se localiza. É difícil se acostumar a um novo estilo de vida, uma nova ética, um novo conjunto de referências sexuais. A inadequação do sertanejo-nordestino à cidade se materializa na formulação da saudade e do desejo de reencontro com o seu “lugar”. Essa cidade não é a capital do estado, mas o centro nacional da política, da cultura e da economia, o polo de onde saem as “modas” e os costumes da modernidade. E seguem-se narrativas de identidade que se apoiam nessa distância do sertão, na dificuldade de absorver os códigos da modernidade e da urbanidade. E o repertório do forró se lamenta: Por ser de lá do sertão, lá do cerrado

Lá do interior do mato, da caatinga, do roçado

Eu quase não saio, eu quase não tenho amigos Eu quase que não consigo

Ficar na cidade sem viver contrariado

Por ser de lá, na certa por isso mesmo

Não gosto de cama mole, não sei comer sem torresmo

Eu quase não falo, eu quase não sei de nada Sou como rês desgarrada

Nessa multidão boiada caminhando a esmo

(Lamento sertanejo, de Dominguinhos e Gilberto Gil)

A origem geográfica (e cultural) é a explicação para a contrariedade. A falta de adequação do “sertanejo” aos costumes da cidade cantada

O Ceará metonímia

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estabelece uma negociação tensa entre visões de mundo conflitantes. O “Ceará” metonímia, que se confunde com o sertão e com um universo moral conservador e patriarcal, em crise com a cidade dos tubarões, moças permissivas, das multidões e da “cama mole”. As relações de gênero e a sexualidade são eixos temáticos bastante abordados, comumente pelo viés bem-humorado, que é um recurso para elaborar assuntos polêmicos e complexos, discutindo uma determinada moral vigente. Esse modelo de pensamento aparece de forma menos dramática em outra canção do repertório fundacional do forró, interpretada por Jackson do Pandeiro em 1956 e intitulada Xote de Copacabana (José Gomes). As “moças” que se “vestem de cobra” configuram uma temática recorrente do repertório consagrado do forró: Eu vou voltar, eu não me aguento

O Rio de Janeiro não me sai do pensamento Quando eu me lembro que fui à Copacabana

Passei mais de uma semana sem poder me controlar

Com ar de doido que parecia estar vendo

Aquelas moças correndo de maiô à beira-mar As mulheres na areia se deitam de todo o jeito

Que o coração do sujeito chega a mudar a pancada E muitas delas vestem um tal de biquíni

Se o cabra não se previne dá uma confusão danada

Mais bem-humorada e otimista, a Copacabana de José Gomes na jocosa interpretação de Jackson é terreno de uma moral libertina que atiça os desejos do sertanejo. Uma ideia particularmente interessante é a do nordestino macho, dono de uma hipermasculinidade viril incontrolável. A recomendação do personagem da canção aos seus conterrâneos – materializados na figura poética do “cabra” – para que se “previnam” antes de visitar a famosa praia carioca é um discurso de oposição de valores morais. De certa forma, nota-se um espanto e uma libido à flor da pele no mote principal da música que camufla um tom condenatório sobre a conduta libertina das mulheres na areia de biquíni. Novamente o que está em jogo aqui é uma negociação de valores morais ligados

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no ceará não tem disso não

à sexualidade, que se produzem no enfrentamento com os “costumes” diferentes dos do sertão. A oposição entre “Ceará” e “Rio de Janeiro” processada por ambas as músicas é uma negociação moral de uma nordestinidade construída no limite, uma nordestinidade rural em constante conflito com a urbanidade e a modernidade que a criou. Porém, essas narrativas foram formuladas há mais de cinco décadas e têm sido atualizadas por diversos forrozeiros de várias maneiras nesse amplo espectro temporal. O forró eletrônico, ao eleger o cotidiano jovem como tema fundamental de suas temáticas, absorve modelos morais cosmopolitizantes e processa essa identidade nordestina a partir de outros valores. A licenciosidade sexual valoriza a sedução erótica como vetor primordial de sua performance e de seu imaginário de nordestinidade. Os nomes das bandas são sugestivos: Cavaleiros do Forró, Gaviões do Forró, Solteirões do Forró, Aviões do Forró, Taradões do Forró, Garota Safada, Saia Rodada e Calcinha Preta, entre tantos outros, articulam uma narrativa hiperbólica e explicitamente superlativa da masculinidade e da feminilidade, ambas destinadas à sedução festiva. É do Ceará que o forró eletrônico circula por todo o Nordeste (e mais recentemente também para o restante do Brasil), a partir de sua base empresarial fincada em Fortaleza, sede da A3 Entretenimento e da pioneira Somzoom Sat. As bandas cearenses ocupam o imaginário regional e produzem dezenas de shows semanalmente, reprocessando a nordestinidade em outras bases. Não mais o rural idílico, com sua safadeza escamoteada no ambiente patriarcal e machista, mas o urbano jovem e erótico, explícito em seus desejos e tendo que negociar os valores do “politicamente correto”. É o Ceará metonímia que oscila entre valores que ora tendem para a equidade entre homens e mulheres, ora aborda certas temáticas com uma dose insuportável de violência e misoginia. É uma nordestinidade contraditória, presa a valores patriarcais e que simultaneamente negocia seu pertencimento a um mundo jovem e cosmopolita, sem abrir mão de sua identidade regional. É o Ceará do bom humor, da safadeza, das frases curtas e da alegria da vida. O forró contemporâneo é uma música nordestina nacional, que processa e faz circular imaginários difusos sobre juventude, sexo, identidade e festa. De barro, de plástico ou de neon, mas fundamentalmente de “som”, o forró atual constrói uma nordestinidade inclusiva, feliz com

O Ceará metonímia

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seu pertencimento regional, mas querendo falar outras línguas, buscando agregar outros sentimentos, outros elementos simbólicos, outros públicos. Um Nordeste jovem e tecnológico, urbano e festivo, nacional e internacional, que é ao mesmo tempo um motivo de coesão e de identificação interna e região símbolo estruturante na propalada diversidade nacional. E gestado numa safadeza festiva deliciosamente envolvente e divertida. No Ceará tem disso sim!

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O “Ceará” do título desse livro, inspirado numa canção de Guio de Morais interpretada por Luiz Gonzaga, é uma metonímia do Nordeste. O que tem ou não tem no Ceará-metonímia é uma indagação sobre os estereótipos que pautaram a construção da identidade nordestina. Atravessado por um conservadorismo machista ainda bastante forte em vários estados brasileiros e lutando para atingir um desejável cosmopolitismo, moderno e conectado, o “Nordeste” é uma construção em crise. Como música característica do Nordeste, o forró processa ideias contraditórias e polêmicas sobre a região que, escondidas sobre a oposição entre “pé de serra” e “eletrônico”, deslocam continuamente os estereótipos de nordestinidade. Terra de machos valentes e viris, o Nordeste do forró atual revela um mundo diversificado e cheio de conflitos, que se condensa em suas sonoridades e nas festas, com alegria e safadeza.

Apoio

ISBN 978-85-61012-32-8

isbn 978-85-61012-32-8

9 788561 012328

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