No descruzar dos caminhos: a pesquisa poética de Viriato da Cruz

May 24, 2017 | Autor: Francisco Soares | Categoria: Estudos Africanos, Teoria da literatura, Literatura Angolana
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No descruzar dos caminhos: a pesquisa poética de Viriato da Cruz

Francisco Soares

1

Texto preparado para a reedição da obra Angola – Viriato da Cruz: o homem e o mito (a sair em Luanda, na ed.ª Chá de Caxinde). Resulta da revisão do texto de título similar escrito para a 1.ª ed. da obra. 1

Pela influência que deixou, pela recepção que teve mas, sobretudo, pelos poemas que escreveu, Viriato da Cruz pode ser considerado o grande paradigma da literatura nacionalista angolana e o seu máximo expoente poético. Os poemas que escreveu continuam a ser populares em Angola, conhecidos e cantados em Portugal, antologiados por toda a parte. O nome e a obra circulam hoje pela Internet, em páginas lusófonas, francófonas e anglófonas de poesia ou de crítica. «Namoro», por exemplo, tornou-se um clássico ao mesmo tempo da música popular angolana e da portuguesa. Sem rima, com métrica muito flexível, com o ritmo agitando-se entre o do verso e o da prosa, tanto como entre o do metro e o da marimba, contando um caso tipicamente luandense de enamoramento, foi fácil de musicar e mais fácil ainda foi consumi-lo no país colonial, como em outros onde chegou só por via escrita. Quais as razões do sucesso num poeta de que saiu um pequeno livro, com escassos poemas e que, segundo tudo indica, trocou muito cedo a poesia pela política? Aliás, de um homem onde o político matou o poeta? Porque foi ele tido por “possivelmente o poeta representativo da poesia angolana”2, “o melhor realizado dos poetas angolanos”3? Segundo Mário António, o que “iria fixar, para os [poemas] de Viriato, uma posição ímpar na poesia angolana”, tornando-o no “primeiro poeta angolano”, era “o sentido de descoberta”, que faria com que não se soubesse “onde começa o poeta e onde começa a sua gente”4. Não há dúvida, os poemas foram escritos “todos num tom de absoluta autenticidade”5. Os críticos e teóricos nunca se entenderam sobre o que é isso da autenticidade em poesia. Pela minha parte, acho que o tom resultará da coesão textual, porque é pela coesão comportamental que avaliamos a veracidade do que diz uma pessoa, somando os sinais observados e a repetição de coincidências entre eles. Num poema, que é um organismo, passa-se o mesmo. A estrutura que lhe dá sentido é preenchida por constantes imagens que remetem para o mesmo sentimento ou para a mesma sugestão. A própria estrutura, no seu conjunto, pode fazer analogia com tal sentimento. Pois não dizia o velho Aristóteles que a poesia era imitação? Se os homens julgam a autenticidade assim, temos que imitar os que falam com verdade para os convencermos dela. Para lhes incutirmos uma impressão de autenticidade há que lhes dar muitos sinais que, a vários níveis, remetam para o mesmo sentimento. Pelo que estudar a organização Mário António, A Formação da Literatura Angolana (1851-1950), Lisboa, IN-CM, 1997, p. 342. 2

3

Mário António, Reler África, Coimbra, IAUC, 1990, p. 183.

4

Op. cit., p. 184.

5

Op. cit., p. 175.

dos poemas, pelo menos a sua sinalização, torna-se fundamental para avaliar a autenticidade literária. Reparando nas peças, porém, veremos que a sua comunicação é garantida por ambivalências, que as adaptam a várias enciclopédias, ou seja, às memórias e informações de vários tipos de leitor – aí se garantindo igualmente a universalidade dos versos. Como pode a coesão textual manter-se com tão contraditória companhia? Pode se o leitor, quer seguindo uma valência, quer outra, no final, chegar sempre a perceber a mesma sugestão de autenticidade. A autenticidade é também uma ficção poética, no sentido em que Fernando Pessoa fala dela na «Autopsicografia». Isso é que explica certos casos de identificação público-autor, por exemplo o de Mutimati Barnabé João no mercado cultural moçambicano e lusófono. O sentido da “descoberta” (a do «Vamos Descobrir Angola!») especifica-se nos poemas de Viriato da Cruz sistematicamente, sendo “cada um deles […] um caminho aberto à pesquisa da forma e do fundo angolanos de uma expressão literária. Em cada um deles se utiliza um meio próprio para essa pesquisa. O seu aspecto prospectivo é o que mais se impõe”6. Relativamente a «Sô Santo», Salvato Trigo observa o mesmo, um “modelo textual e discursivo da moderna literatura angolana, anunciada pelo «Vamos Descobrir Angola!»“7. A palavra “pesquisa” e a palavra “moderna” dão sinal de uma valência de raiz universal na poesia de Viriato da Cruz. Ao se conjugar à localização e legitimação, à “forma” e ao “fundo” angolanos, ela permite manter a coesão textual e a ambivalência como traços complementares. Muitos modernismos seguiram o mesmo caminho. No âmbito da língua portuguesa, o da Mensagem de Fernando Pessoa, o antropofágico brasileiro, o da Claridade cabo-verdiana, aspiravam todos ao mesmo tempo à modernidade globalizada e à antiguidade localizada. Vamos procurar em cada poema, conclui-se daí, a via por ele constituída e as bivalências críticas8 que lhe permitem manter o duplo objectivo da modernização e da situação. Para o fazermos articulando-nos ao mesmo tempo com modelos, arquétipos, géneros e práticas linguísticas, literárias e sociais comuns, o ponto de partida será o da ficção enunciativa que instala o poema. Não se preocupe algum leitor com o palavrão. Eu já traduzo. Vou só resumir primeiro a razão porque escolho tal caminho: a partir da ficção enunciativa podemos analisar, não só os quadros sociais que representa, mas os que se deduzem dos pactos ou protocolos que propõe ao leitor e que, portanto, pressupõe que este conhece. A pressuposição dá-nos indícios concretos acerca da comunidade literária na qual o poeta principalmente se insere. 6

Loc. cit..

7

Luandino Vieira, o Logoteta, Porto, Brasília ed., [1981], p. 77.

V. Mário de Andrade, «Évolutions et Tendences Actuelles», pref. a La Poésie Africaine d’Expression Portugaise : anthologie, Paris, Pierre-Jean Oswald, 1969 (o texto não vem 8

paginado ; é a quarta página do prefácio).

Os quadros enunciativos sugerem ao leitor uma relação entre aquele que fala ou escreve e a estória, o episódio, a cena, contados, descritos, ou evocados, bem como uma relação entre emissor e receptor. Quando uma personagem fala, dentro de uma estória, apresenta-se na primeira pessoa (“eu”); mas o narrador, para além dela ou coincidindo com ela, pode fazer o mesmo para contar ou sugerir as acções e os ambientes. Ao se referirem ao contexto em que a personagem fala, ou em que fala o autor, as marcas da enunciação mostram a posição do autor e do leitor em relação à estória: se estão a ver as personagens (como em «Sô Santo»), ou se elas são colocadas numa estória a que não estamos a assistir. Imaginemos que alguém escreve: “vou contar a estória do cágado”. Ao lermos, visualizamos uma pessoa que se dirige a um grupo para contar um episódio que não se está a passar ali. Para além disso percebemos que as pessoas presentes estão habituadas à fórmula e sabem classificar a estória pela personagem principal. Toda essa visualização é o que chamo quadro enunciativo. Ele caracteriza também o que fala e gesticula e o seu público. Na escrita, o escritor e o leitor incluem-se, por vezes, como personagens da própria narrativa, o que acentua o carácter ficcional do quadro enunciativo. Mas o escritor recorre sempre a estratégias retóricas e poéticas que pensa comuns aos receptores, o que denuncia o conhecimento poético em circulação no seu meio social. Por isso, a maneira de o contador se dirigir ao auditório denuncia o tipo de leitores que ele julga ter, o que dá algum sinal dos que tem na verdade, pois não teria sucesso caso errasse muito. Para os convencer (por exemplo da autenticidade) usa truques que vê resultarem no quotidiano. Não tem que imitar esse quotidiano tal qual se fala, tem que perceber os mecanismos que estão na base dos truques que usamos diariamente para nos exprimirmos e para convencermos – ou ainda para ensinarmos. Ao mesmo tempo que isto se passa, o autor (que é também leitor) faz referências para eruditos. Logo, pressupõe que eles conhecem e apreciam aquilo a que alude nesse instante. Referências ou alusões a obras, tópicos, motivos, temas e imagens que o destinatário terá gosto em reconhecer ali. Como disse Umberto Eco, os leitores são enciclopédias ou memórias (literárias, antropológicas, linguísticas), enciclopédias vivas e pressupostas na emissão da mensagem. A angolanidade poética emerge daí com precisão: é definida pelo conjunto dos conhecimentos literários em Angola num dado momento e que, naquele momento, se diferenciam dos de outras comunidades literárias em alguns aspectos ou na configuração geral. Dentro da memória comum as opções autorais vão privilegiar, por causa da globalização, os recursos que sejam igualmente funcionais perante outros tipos de público. Algo similar ao que fazemos elegendo o petróleo e os diamantes como factores principais da riqueza nacional. Assim não ficamos reduzidos a práticas específicas, à produção que só tem viabilidade local. Privilegiamos recursos nossos mas que, ao mesmo tempo, são procurados pelos outros. Conhecedor de outros tipos de público para além daquele imediato, querendo ser lido (ser “famoso”) dentro e fora do país, o escritor prepara as suas palavras de modo a que elas atravessem mais do que um

circuito de comunicação. Organiza palavras e frases para serem apropriadas a partir de códigos que não coincidem completamente com o dos ouvintes imediatos, embora possam interagir com eles. Faz o mesmo que um político em campanha. Ele vende o seu petróleo para além da refinaria da capital sem deixar de a fornecer. Daí vem a prática reiterada de ambivalências, que são comuns às mais variadas comunidades literárias, na medida em que a ânsia de fama e a propagação da escrita (hoje também digital) globalizaram desde sempre a literatura. Pelo ritmo atingido nas trocas culturais, as ambivalências tenderão a crescer ao mesmo ritmo que as resistências (garantes da autenticidade). As primeiras, aliás, podem servir as segundas. Ao menos podem proporcionar ao leitor estrangeiro a legibilidade específica, assim a globalizando, quer dizer, trazendo-lhe a possibilidade de ser lida em qualquer parte do mundo. Espero ter explicado bem porque acho que no quadro enunciativo podemos perceber indícios concretos de quanto foi globalizador e localizador o trabalho do poeta e, potencialmente, o horizonte de expectativas dos seus leitores. Na intersecção do plano social (representado pelos tipos de público) com o meta-literário (que nos dá os conhecimentos técnicos do autor – linguísticos, retóricos, poéticos) desenrolam-se as ambivalências destes versos. A análise de Mário António, sem usar os mesmos termos (por exemplo, a expressão “quadro enunciativo”, ou “globalização”), leva em conta fenómenos que eles designam. Nesta medida, proponho-me desenvolver e actualizar o carácter prospectivo da leitura que Mário António fez dos poemas de Viriato da Cruz. Em Reler África ele introduz a questão literária (“que seiva, desse chão, chegou à floração poética?”) estabelecendo o contexto cultural que vai marcar o discurso e os quadros enunciativos dos poemas de Viriato: “a nova poesia angolana é-o na medida em que, dentro da literatura de língua portuguesa, busca cantar, de maneira diferenciada, um mundo diferente. O seu chão é uma cultura que talvez se possa considerar crioula, em que as diferentes expressões culturais se apresentam carregadas de elementos uma da outra. Em que o português – veículo dominante da comunicação oral e escrita no contacto entre grupos – se apresenta enriquecido de elementos que o mundo circundante e a cultura associada lhe fornecem. Que seiva, desse chão, chegou à floração poética? Respondem à pergunta os Poemas de Viriato da Cruz, considerado, como já dissemos, o melhor realizado dos poetas angolanos”9. Talvez o português de Angola não seja propriamente “enriquecido” por elementos culturais, geográficos e sociais do “mundo circundante”. Mais do que isso ele é reorganizado pelas pessoas dali. Mas o essencial da perspectiva parece-me pertinente: boa parte das análises que vou submeter aos poemas de Viriato da Cruz deriva da percepção de que a sua obra, pelas intertextualizações que mobiliza, procura a estesia ou a poesia nas relações 9

Op. cit., p. 183.

entre as culturas bantos (ou bantu) e as que resultam da globalização (incluindo algumas de forte influência banto, como a cubana). Por isso, a pesquisa poética do autor é efectivada num processo constante de modernização e de apropriação. Daí o clima literário tenso e complexo, que resulta da passagem de um mundo anterior para o “novo”. Falando no “conflito entre o tradicionalismo e os tempos novos”, tal como representado nas literaturas africanas em língua portuguesa, Salvato Trigo diz que “esse conflito […] não é mais do que uma transição, por vezes forçada, do «mundo negro» para o «mundo africano» […] encontramo-lo com rara finura poética, por exemplo, no […] angolano /// Viriato da Cruz, em dois poemas de uma africanidade genuína: Makèzú e Sô Santo”10. Salvato Trigo distingue entre o “mundo negro”, das tradições orais, e um “mundo africano”, expresso nas literaturas africanas (escritas). Este “mundo africano” é “culturalmente híbrido”, sendo o «mundo negro» quem lhe dá substrato cultural11, não o português (daí que estas literaturas sejam escritas em língua portuguesa sem serem de expressão portuguesa). A literatura aqui move-se no mundo africano e no da angolanidade12, que se definem por um discurso trans-étnico e misturado. Esse mundo, que já é antigo, estranha também os tempos novos: novos hábitos, ruptura das estruturas sociais anteriores, rotação de problemas, carências e papéis. Intermediário várias vezes, o escritor repete bivalências, ainda quando sejam críticas13: está-se num mundo novo com a memória banzada e saudosa do antigo. Há nestes versos uma voz que, em poemas lúcidos, bem organizados, consequentes, hibridiza motivos oriundos das várias culturas em confronto e convívio e motivos apropriados ao confronto dessas culturas com o “novo” no local da enunciação. O poeta, aqui, é um tradutor, mas um tradutor para pelo menos duas línguas em simultâneo. Um tradutor que pode escrever frases percebidas de maneira diferente, mas não oposta, por pessoas de formação diferente (por exemplo a avó Ximinha e os camaradas do partido, seja em Angola, seja em qualquer outro país). O tradutor poético assegura uma condição essencial da arte, que é a da plurivalência, com a plasticidade subsequente. A obra do poeta de Porto Amboim, nesse aspecto, é uma arquitectura de compromissos, relações, confrontos e analogias de origem diversa, a reconstituição pessoal (por vezes momentânea, mas sempre empenhada e coesa) do conjunto das culturas a que acede. A fidelidade aos temas, propósitos e motivos mais salientes no local garante a unidade do conjunto, apesar de constantes bocas bífidas (expressão retirada à lírica de David Mestre), que de resto ecoam por toda a poesia posterior e boa parte

10

Op. cit., pp. 18-19.

11

Op. cit., p. 31. Cf. p. 81.

12

Op. cit., p. 77.

13

V. Mário de Andrade, pref. cit..

da anterior. Vamos encontrar algumas delas ao longo dos seus versos e tentar perceber porque não ferem a coesão textual. Em Makézú vê Mário António “um quadro, ao gosto popular”. Assim define uma situação enunciativa. Por analogia, aquela em que se faz a representação sucinta de uma cena típica. Antes de falar o sujeito que vai sugerir o quadro, ouve-se a voz de uma das personagens: “Kuakié!... Makèzú, Makèzú…”. Por vezes os jovens, em festas de escolas, liceus, ou teatros universitários, representam curtos episódios estruturalmente iguais: está uma velha sentada (a avó Ximinha), no chão, lança o pregão; depois entra um jovem, apresenta a personagem e o quadro (“O pregão da avó Ximinha…”), após o que sai de cena, para dar lugar ao cenário da velha quitandeira apregoando; logo em seguida a avó Ximinha e outro velho (mano Filisberto) travam diálogo até ao fim. Está o recado dado. Perante o modelo assim definido, o poema abandona um recurso característico: uma eventual reentrada do narrador para dar a conclusão (lição de moral) a extrair do quadro. Aqui as próprias personagens fazem isso, podendo-se baixar o pano com o fim das respectivas falas. É como se o poeta nos quisesse deixar ali, na “realidade” que narra, e apagasse os seus vestígios. O quadro é predominantemente dramático (personagens a representar). Mesmo a breve apresentação da personagem e a caracterização sumária do ambiente, no início do poema, fazem-se em peças de teatro conhecidas, ou pela indicação para os encenadores, ou pela encenação dessa indicação, ou de partes dela. A opção por um quadro enunciativo destes, que aponta para a curta alegoria dramatizada, especifica ou diferencia a angolanidade literária. Em outros países tal quadro podia ser tomado por ingénuo, arcaico, ou por qualquer outro motivo não seria um modelo estético – na época de Viriato, ainda sob a vigência da turbulenta sucessão de vanguardas. A originalidade de Viriato da Cruz e, por via dele, a dos angolanos, consiste em mostrar que esses modos de representação, locais, também forneciam modelos estéticos eficazes então. O sucesso das crónicas (e de alguns poemas líricos) de Ernesto Lara Filho, como dos poemas de Aires de Almeida Santos, apesar de muitas vezes eles se apresentarem na primeira pessoa, deriva daqui também, da adopção de um modelo aparentemente ingénuo, coloquial e local. Quanto à “forma”, nisto consiste a propriedade dos poemas de Viriato da Cruz e da surpresa que «Makèzú» provoca no leitor globalizado. O “fundo” é construído por muitos indícios, alguns deles apontados atrás, como os que dão o quadro do diálogo. Pela distribuição das línguas e dos níveis de língua no poema recebemos sinais de um outro sistema – o linguístico. Quando as personagens falam, misturam o português local e o quimbundo, enquanto o narrador usa apenas o português. Como lembra

Mário António, o “português dialectizado” e associado ao quimbundo “dá iniludível cunho cultural” ao diálogo. O uso de um registo mais distanciado (um português mais comum) pelo narrador é assumido na colocação de aspas sobre a pronúncia local (“venidas de alcatrão”). Salvato Trigo nota que Avó Xima e Mano Felisberto são “representantes do tradicionalismo cultural”14. As aspas sobre as “venidas” dizem que a linguagem dessas personagens não é a do autor. Este encontra-se, portanto, no “mundo africano” mas já dentro do “novo”, já diferenciado face às personagens – e com um domínio, aliás, invejável da língua portuguesa. As personagens apercebem-se tardiamente da mutilação da “raiz” pela “civrização” mas, ao deixá-las tirar a conclusão da estória, Viriato da Cruz acaba por aderir ao que pensam: que a recuperação da raiz leva à longevidade, à resistência, portanto ao futuro. O distanciamento marcado pelas aspas encontra aqui o seu movimento contrapolar, num português mais mestiçado (porque mais bantuizado) do que o do próprio poeta que assina.

O distanciamento reduz-se e subsiste na estória seguinte. A estória de Sô Santo leva-nos a pensar numa explicação para o desenraizamento que lhe está na origem. Não dá a resposta, obriga-nos a pensar nisso, o que é muito mais inteligente e garante ambivalências úteis. Sobre «Sô Santo» diz Salvato Trigo que “Viriato da Cruz desenvolve a mesma temática” de «Makèzú» e faz do protagonista o “símbolo de uma burguesia nacional angolana vítima dos «tempos novos»“. A dicotomia fazse notar na disjunção final: se “é o símbolo da Raça / ou vingança de Sandu…”15. Por um lado, ela constitui a expressão daquilo que irão perguntar a Ngombo através de um Quimbanda – é ao mundo “negro” que se vai buscar a resposta, ao “substrato cultural” do mundo africano, onde Ngombo é a “entidade espiritual da adivinhação”, “o espírito revelador da verdade”16. A tal atitude o poeta adere17, ou pelo menos usa-a para pedir a verdade, para chamar a atenção sobre ela, ao contrário do que se passou com alguns dos seus colegas. Por outro lado, essa decisão responde a uma cisão (entre “velho” e “novo”).

14

Op. cit., p.. 19.

15

Op. cit., p. 80. Na transcrição que M. António faz de um artigo de Filinto Elíseo de Menezes, escreve-se “Sându” (A Formação da Literatura Angolana (1851-1950), Lisboa, INCM, 1997, p. 344. O mesmo artigo republica-se em Angolense, 14-21 de Abril de 2001, p. 15, mas com a forma “Sandu” na transcrição do poema. Óscar Ribas, Diccionário de Regionalismos Angolanos, Porto, Contemporânea, [1997], p. 112, col. 2. 16

17

V. Salvato Trigo, op. cit., p. 81.

Se ela não deixa de revelar um tempo dilacerado, segundo Salvato Trigo a disjunção (entre os dois mundos) resolve-se pelo facto de Sô Santo se ter alienado e, portanto, tratava-se de uma vingança de Sandu – muito provavelmente uma corruptela de Santo, palavra que designa “uma entidade espiritual proveniente da raça branca”18. A leitura de Salvato Trigo é a mais provável e imagino muitas vezes o poema assim. Apesar disso, acho que não há elementos textuais para garanti-la, acho que o final deixa no ar a dúvida (“…Se ele é o símbolo da Raça / Ou vingança de Sandu…”), mais que uma resposta, apesar do compromisso social explícito e implícito. A dúvida pode ser parcialmente resolvida (com analogias que a ambivalência aguente), é de resto o mais apropriado (à ideologia do autor), mas o texto deixa no ar a pergunta. Fazendo-o, obriga o leitor a pensar na causa da decadência de Sô Santo e da comunidade crioula que ele representava, obriga-o a pensar na verdade, ou seja, procurar o Ngombo. Esse é o efeito que domina. É possível que a intenção do poeta fosse, mesmo, deixar a pergunta no ar como quem diz: pensem bem, porque é que isto lhe (nos) aconteceu? Daí se deduz que o erro cometido por Sô Santo (que tem o mesmo nome de Sandu) é o erro a evitar. Mas, mesmo que a intenção do autor não fosse esta, o que interessa é que o leitor não tem como resolver a pergunta a partir do texto. O que interessa é, portanto, que esse efeito vai dominar a recepção, fazendo com que o leitor repita a pergunta para si mesmo. A resposta, de resto, será sempre cumulativa. Em qualquer das leituras articuladas (excepto a que remete para a melanização da personagem) ela supõe uma desgraça alimentada por vícios, uma “alienação”, que atingiu o presente na medida em que empobreceu o passado. Fosse o “símbolo da Raça” ou a “vingança de Sandu”, haveria sempre uma falta cometida por «Sô Santo» e o recado do poema está nisso: atenção, vamos evitar falhas anteriores. Salvato Trigo lembra as oposições entre o início e o fim (subindo a calçada / descendo a calçada; charuto nos lábios / cigarro apagado). Tais oposições “valem, sobretudo, pela sua capacidade de, semanticamente, nos sugerirem a alteração que a sociedade angolana sofreu, em virtude da europeização que lhe foi imposta”19. A coesão do texto acentua-se por a estrutura opositiva ter expressão linguística: os símbolos iniciais (da riqueza de Sô Santo) são transcritos em quimbundo e em português bantuizado; os símbolos finais (da sua decadência) são transcritos no português de norma europeia. A decadência é representada com o aportuguesamento e a época de maior riqueza é representada com a bantuização do português. Daí podemos deduzir um ‘recado’: o de que essa decadência coincide com a respectiva perda de 18

Óscar Ribas, op. cit., pp. 266-267.

19

Op. cit., p. 85.

poder, identidade e vigor cultural no colonialismo do princípio do século XX. Estas conclusões, aliás, vêm na linha das de Salvato Trigo e resumem-nas20. Pelo que o ensaísta e investigador conclui que fica “implícita uma crítica do poeta contra um sistema que forçou a transformação da sociedade africana numa sociedade europeia, alienando pelo assimilacionismo e marginalizando todos aqueles que o não aceitassem”21. As tensões linguísticas na linguagem que reportava isto, com o respectivo grau de africanização, não só recriam o português22, mas são funcionalizadas poeticamente. Os vários níveis de apropriação distribuem-se pelas falas das personagens, incluindo-se entre elas a do narrador que, de novo, é a que está mais próxima do que era então o português oficial. De onde o poema “vale[r] também e especialmente pela mistura de níveis de língua que o sustentam e pelo discurso bivalente que acompanha os dois momentos – poético e histórico – em que o texto se resolve”. Isso faz parte da “estrutura dialogante” de que fala Salvato Trigo, que logo a seguir precisa: “narrativo-dramática”23, definindo o quadro genológico e enunciativo (basicamente o mesmo de «Makèzú», com a intervenção inicial do narrador encurtada). Quando a avó Naxa24 conta a vida do protagonista, o modelo (“narrativodramático”) exemplifica-se no que Mário António chamou “a riqueza do kizemu (mal-dizer), toda a mordacidade da sátira popular”. É a propósito disto que ele fala em “valores dialogais e outros que se diriam de teatro (se este termo se não devesse aplicar a toda a narrativa oral africana)”. Trata-se de um dos arquétipos enunciativos de Viriato da Cruz, o da “narrativa oral africana”, apanhado porém no quotidiano popular de uma cidade colonizada. No arquétipo a representação e a narração eram simultâneas, pois o contador vai imitando as personagens enquanto narra. No kizemu não necessariamente, ou não tanto. Na transição para “a mordacidade da sátira popular” luandense, que é a transição do português das personagens para o do ensaísta Mário António, associa-se o texto intermédio (o kizemu) a uma variante da sátira, a popular, que se realiza na contemplação de um quadro local muito corriqueiro. Assim a mistura de géneros (“narrativo” e “dramático”), tão corrente nos modernismos, vem da seiva de que o autor brotava também, pelo que mistura igualmente níveis de língua e quadros enunciativos locais e globais. As misturas tornam-se

20

V. op. cit., pp. 84-85.

21

Op. cit., p. 86.

22

Mário de Andrade, pref. cit.., penúltima página.

23

Op. cit., p. 80.

No artigo de Filinto E. de Menezes, citado por M. António, aparece “vovó Naxa” (A Formação da Literatura Angolana, p. 344). Na republicação do Angolense aparece como no 24

livro (“avó Naxa”).

mais um conector entre a identidade antropológica e a literária, bem como entre a cidade colonizada e a cidade mundial. Em Namoro, o “fundo” é fornecido (mais uma vez) pela “deliciosa surpresa da recriação, em termos de musseque de Luanda, da velha história da negaça feminina utilizada como elemento de excitação amorosa”25. A “velha história” foi representada na poesia lírica de J. O. da Cruz Toulson, Eduardo Neves e Cordeiro da Matta no século XIX. Aí ela tinha uma estrutura dialógica, dramática, usando cada personagem uma língua própria (a mulher a língua local e o homem a portuguesa, ao mesmo tempo local e de outras paragens). Viriato da Cruz muda-lhe o quadro enunciativo, que é também tirado do quotidiano. Podemos comparar o poema ao discurso de um jovem que narra o seu caso amoroso. Dirige-se, por exemplo, a um amigo ou a um grupo de amigos. É uma enunciação subjectiva (ou seja, na primeira pessoa) mas narrativa, em que o diálogo é quase reduzido ao monólogo. Talvez o facto de, na altura, muitos associarem o tema do amor à enunciação subjectiva (confundida com o género lírico) explique a mudança face aos quadros anteriores. Outra fuga nota-se pela diminuição significativa da alegoria. Não há uma história contada para dela se tirar uma lição directa, portanto não há o propósito didáctico dos dois primeiros poemas e da maioria dos versos de Viriato da Cruz. Embora se possa conotar a moça com Angola… O “fundo”, que sobressai dos indícios culturais resumidos por Mário António, aponta para panos de origem diversa, mostrando novamente que a autenticidade não se confundia com a univocidade cultural. A carta segue “em papel perfumado” e serve para o poeta associar a mulher a motivos locais e universais como “sumaúma”, “jambo”, “rosas”, “maboque”, “laranjas” (do Loje), “marfim” (um tópico já no século XIX associado à mulher negra ou mestiça, aqui junto com “rosas”). Numa progressão que levará ao desaparecimento da escrita como veículo útil para o efeito pretendido, passa-se ao “cartão”, tipogrado pelo Maninho. Não é por acaso que se fala nisto, nem só por ser um hábito, é porque realmente vários dos filhos e netos do mundo em que Sô Santo foi grande optaram por essa profissão, com visível sentido de oportunidade. Do cartão passa-se ao “recado”, entrando-se portanto no mundo da oralidade e evocando-se já formas religiosas populares, embora a sua origem recuada seja exógena. Depois do “recado” vem uma fala directa, com promessas, como fazem as personagens masculinas dos poemas de Toulson, E. Neves e Cordeiro da Matta. Mas o que realmente resolveu tudo foi uma rumba arrebatada no baile do Sô Januário. O que a torna um operador importante para definir a angolanidade nesse instante.

25

Mário António, Reler África, p. 185.

A rumba designa ao mesmo tempo uma dança e o tipo de música dançado. A sua origem é dupla: hispânica e africana, tendo-se desenvolvido em Cuba desde o século XVI, com a chegada dos primeiros escravos negros. Na Europa e nos EUA tornou-se muito popular nos anos 30 do século passado, sendo já então familiar a muitos países da América Latina. Em Angola estava apropriada, como demonstra o poema de Viriato. A escolha da música não é casual. Na sua origem a dança imitava os movimentos do acto sexual, movimentando-se mais as ancas do que os pés. Os passos do homem sugeriam uma atitude “sensualmente agressiva” e os da mulher uma postura essencialmente defensiva26. Nos poemas da “negaça feminina” do século XIX (por exemplo, «Kicôla», de Cordeiro da Matta) são essas também as atitudes masculina e feminina. Um traço que não se perde no «Namoro» de Viriato, como se o seu poema fosse a representação literária da rumba. Pegando nesta música e dando-lhe tal relevo o poeta junta algo popular, enraizado, de origem marcadamente africana, uma dança sensual, e ao mesmo tempo música e dança prestigiadas numa grande parte do mundo, incluindo no mundo dos colonizadores. Na globalização em que já se vivia, ele aproveita um contributo afro-hispano-americano, mundializado, para reivindicar e representar a angolanidade. Assim realizava um propósito negritudinista e pan-africanista sem deixar de falar em algo próprio, tanto quanto reconhecido no mundo contemporâneo. O momento-chave da peça é, mais uma vez, ambivalente sem lhe prejudicar a coesão. A recorrência de analogias e oposições permite ligar as tradições africanas (e de forma geral as tradições) à modernidade. Tanto quanto a rumba, são recursos conectores e não diferenciadores. A sua utilização remete para aquela parte dos propósitos enunciados por Viriato da Cruz em que ele escreve que o «Vamos Descobrir Angola» apelava ao “estudo das correntes modernas da cultura estrangeira” ao mesmo tempo em que “exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana”. Ao falar nisto ele tinha em vista os dois perigos da época no meio literário angolano: o dos cânones ultrapassados e o do exotismo. Para actualizar a literatura angolana, ele, que se colocava na sequência dos esforços de Cordeiro da Mata e outros, falava nas “correntes modernas” da cultura globalizada; para evitar o exotismo falava na “autêntica natureza africana”. Assim constituía, sobre mais uma oposição, a sua bífida identidade literária: ao mesmo tempo “moderna” e “autêntica”. O recurso à analogia, generalizado nos seus poemas através do uso de alegorias, algumas remetendo para personagens e estórias locais, conecta os versos de Viriato da Cruz com uma identidade antropológica também (uma memória urbana recente, por exemplo a do «Sô Santo», e as tradições As informações sobre a ‘rumba’ vieram essencialmente da History of Dance, uma espécie de enciclopédia da dança, publicada na Internet no endereço www.centralhome.com/ballroomcoutry/history.htm. 26

locais – a estória do cágado, por exemplo, em «Serão de Menino»). Mas as alegorias não são transcritas completamente, como é tradicional. Elas afloram fragmentadas à superfície lírica da página, mediadas por espaços brancos de silêncio, distendidas por reticências, entrecortadas por falas e comentários das personagens e do poeta. Há, portanto, elisão de elementos (partes da estória), alusões (que a memória comum preenche com elementos locais e a memória global ocupará a partir da sua própria enciclopédia), a par dos constantes saltos de microfone, de voz em voz, ouvindo-se ora o narrador, ora cada personagem, ora as personagens em diálogo. O carácter fragmentário, as elisões, os cruzamentos, a sequência aparentemente caótica das situações enunciativas, aproximam-no da poesia lírica mas também das “correntes modernas”. A constante mudança de voz, além de sinal de domínio da lição modernista, sugere-nos um cenário no qual a transmissão das estórias se realiza nas nossas oralidades, quer rurais, quer urbanas. Por outro lado, estes poemas são minuciosamente preparados e trabalhados, incluindo aquele de que estou a falar. Mesmo a métrica, não o parecendo, obedece a segmentações que a versificação portuguesa aproxima de ritmos populares (Amorim de Carvalho) e que são metros conhecidos e cultivados, por versejadores angolenses ou residentes, do século XIX e princípios do século XX. Por exemplo esta estrofe de «Namoro»:

Para me distrair Levaram-me ao baile do sô Januário Mas ela lá estava num canto a rir Contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário Aparentemente é irregular. O primeiro verso pode ter 5 ou 6 sílabas conforme se leia. Uma vez que o próprio Viriato da Cruz defendia que os escritores deviam dirigir-se ao seu povo, é de supor que ele próprio lesse “pra me distrair”, apesar da grafia não indicar a elisão. Teríamos, portanto, aí, 5 sílabas métricas. Os dois versos a seguir parecem ter 11 sílabas. Cinco e onze, a junção de dois ímpares, segundo o canonista Amorim de Carvalho, cai mal, fere o ouvido. Parecia, portanto, isto ser uma ousadia modernista e nacionalista que visava desmentir a regra canónica da metrificação portuguesa. Mas, na verdade, podem estar lá dois bipentassílabos: Levaram-me ao baile / do Sô Januário e Mas ela lá estava / Num canto a rir. Como o verso não tem vírgulas, não sabemos se haveria uma a evitar a elisão (Num cant’a rir), nem se o o de canto desaparecia com a pronúncia. Não desaparecendo, temos dois bipentassílabos. Ou seja: uma sequência de três versos com base de cinco sílabas, portanto muito coerente (esse é um

dos metros preferidos de Urbano de Castro, não o Urbanito Angolano dos anos 70 mas o seu longínquo antepassado do século XIX). O último verso da estrofe, esse, parece quebrar totalmente a expectativa de um ritmo harmónico, melodioso, pela sua excessiva extensão. Mas, se dermos atenção, estão lá três pentassílabos: Contando o meu caso / às moças mais lindas / do Bairro Operário. De maneira que, afinal, toda a estrofe gira em torno de um ritmo de cinco sílabas, que as letras de muitas músicas angolanas visitam hoje ainda. Aliás não giram só em torno de um diâmetro de cinco sílabas, eles espiralam, crescem, porque passamos de um verso de cinco sílabas para versos com duas vezes cinco e, finalmente, com três vezes cinco. O aumentar da tensão dramática toma corpo desta forma também. Se isso mostra a coesão textual, o confronto entre a métrica e o grafismo mostra uma ambivalência muito conveniente. A disposição gráfica evoca-nos a prosa quotidiana, irregular e com pausas, em geral evitando o enjambement, encavalgamento, ou simplesmente o transporte do significado de um para outro verso. Acontece muito na poesia nacionalista angolana essa mistura de versos longos e curtos, essa forma de imitação dos ritmos aparentemente irregulares do quotidiano. Mas o ritmo que a tipografia escondeu era de cinco sílabas métricas. O poema vai, portanto, satisfazer o leitor interessado na aproximação ao quotidiano pelo aspecto visual (o que é nacionalista mas também moderno) e vai sustentar o seu ritmo numa concentração métrica oposta: repetida, regular. O desenho gráfico é marcado pelo verso ‘moderno’ e o pentassílabo assimila ritmos tradicionais, igualmente populares (por isso aparecem nas ‘letras’ de músicas comerciais e ligeiras do século XX angolano). Serão de Menino inscreve-se na linhagem da poesia didáctica, segundo Mário António. Na situação didáctica típica um mestre ensina a um discípulo o seu saber. A situação enunciativa correspondente pode ser encenada pelo texto (caso dos Diálogos, tão populares entre os filósofos), ou pode reduzirse à voz de alguém a falar aos outros (a ‘vós’), eventualmente contando e descodificando uma alegoria. É o que se passa neste poema, onde o narrador introduz o ambiente em que se conta (como fazia, por exemplo, Óscar Ribas em alguns dos seus contos) e, no final, explicitamente nos traduz uma lição, como na estória que cita (do leão e da corça) faz o cágado, animal consensualmente habilitado para leccionar. O demasiado explícito, comum nas poesias didácticas, retira poeticidade ao texto, do que Mário António se ressentiria. Mas está na lógica didáctica do poema e por isso não deixou o ensaísta de o valorizar. Como já fizera em «Sô Santo», aqui Viriato não só transcreve as falas das personagens, também introduz uma parcela de outra estória, numa proliferação típica de mil e uma noites e de vários diálogos filosóficos também. Essa estrutura narrativa tem paralelos, portanto, com discursos de sabedoria veiculados pela tradição escrita e vai trazer uma mensagem que

se cola à sabedoria dos velhos. quer dizer, não deixa de se relacionar simultaneamente com a tradição oral. A identidade literária assim construída completa-se com o recurso a “elementos mitológicos que estão adormecidos em todos os angolanos. Fálo utilizando-se de meios encantatórios que lhe são propiciados pela maestria com que morre [deve ser gralha, deve ser ‘recorre’] à onomatopeia para a criação de «ambiente»“. Daí resulta um efeito forte, assim definido por Mário António: “não há angolano nenhum que, ouvindo este poema, não sinta dentro de si um menino encolher-se de terror infantil” 27. Atrevome a acrescentar que vários outros leitores, não-angolanos, apercebem-se desse medo mesmo que não o sintam, associam-no a algo idêntico da sua infância, garantindo assim a universalidade do texto. Mas o medo, que será directamente sentido pelos filhos de Angola e em diferido pelos outros, o medo é apenas uma peça na engrenagem. A engrenagem visa desmontar leituras ingénuas da tradição, que não descodificam as estórias como a “gente grande”. O recado posto na boca dos mais velhos é, no entanto, o do autor e surpreende pela sua universalidade: “casumbi” só faz mal a quem não ama. Na transmissão da sabedoria do cágado (a meio) e na descodificação da alegoria toda (no final), em dois momentos relacionados com os mais velhos e o local, a métrica é no entanto regular, respeitando o quadro normativo da metrificação portuguesa ou brasileira e apelando ao que, nesse quadro, são versos da oralidade e da escrita: os de sete sílabas são da tradição oral e metrificam a fala do cágado; os de oito sílabas são muito mais comuns na tradição escrita, por exemplo na lírica de Cecília Meireles. Com eles os mais velhos transmitem-nos a mensagem que, no fundo, é a que o autor deseja transmitir. Por estes motivos, onde se destaca uma intertextualização muito forte, não acho “culturalmente menos significativo”28 o poema. Nem literariamente. O começo é, aliás, bem ilustrativo da concepção crioula de literatura angolana exarada por Mário António. “Na noite morna, escura de breu” recorda o início do «Mostrengo», de Fernando Pessoa – poeta e poema que muito provavelmente Viriato da Cruz lera. O segundo verso do «Mostrengo» (da Mensagem de Pessoa) começa precisamente por “Na noite de breu ergueuse a voar”. Caso Viriato da Cruz estivesse mesmo a responder à Mensagem pessoana (atitude consequente com a postura nacionalista angolana que ele praticamente inaugura), a segunda parte do verso pode ser significativa. Permite-nos ler com mais clareza o conjunto da primeira estrofe: “enquanto na vasta sanzala do céu / de volta de estrelas, quais fogaréus, / os anjos escutam parábolas de santos…”29. A africanização da imagem do céu (uma grande sanzala) e das estrelas (fogueiras à roda das quais se contam estórias) produz um efeito estético forte e original em comparação com o 27

Reler África, p. 186.

28

Id., p. 185.

29

Ed. cit., p. 21.

voo nocturno do mostrengo “a chiar” ameaças. «Serão de Menino» pode ser visto como a resposta do mostrengo ao invasor, numa releitura que transforma o ser diabolizado e aterrador na vítima. Nesse aspecto, a lição do cágado e a final são mais pertinentes ainda: “não tenham medo da força”, tenham amor e justiça, são respostas ao leme de D. João II e da Mensagem oficial. No final da citação percebe-se que o céu africanizado pelo autor era de raiz cristã (“os anjos escutam parábolas de santos”). Essa imagem antecipa o quadro central, que é justamente o dos “meninos à volta da fogueira” ouvindo contos bantos (dos quais o poema tira um para exemplo). A articulação entre as duas partes, representada pela palavra “enquanto”, pode ser irónica ou não. Sendo irónica, ela estará a dizer-nos qualquer coisa como: ‘deixa-os lá no céu entre os anjos e os santos que nós vamos ouvir as nossas estórias’; não sendo, ela pode dizer-nos que há uma coincidência entre o que os santos dizem aos anjos e as estórias contadas pelos velhos (sábios) às crianças (ingénuas) entre povos bantos. As hipóteses são contraditórias mas, em qualquer dos casos, há uma valorização da cultura banto. No primeiro, ela seria acompanhada pelo abandono ou desprezo da cultura do outro; no segundo a cultura do outro serve para construir uma analogia com a nossa, pelo que a relação entre as duas pode ser cumulativa. Tal analogia é sem dúvida muito mais bela, sem deixar de possuir um cunho nacionalista. Parafraseando: os nossos avós são santos e as nossas crianças são anjos30; o que implica serem os santos como os nossos avós e os anjos como as nossas crianças. Mas em qualquer dos casos, a par da valorização da cultura banto, a estória desenrola-se a partir dessa dicotomia entre referências endógenas e exógenas, dicotomia que já vimos a outros níveis. No Rimance da Menina da Roça nota Mário António a “influência do outro lado do Atlântico”. Também me parece que o título remete para líricas e narrativas típicas de certos períodos das literaturas brasileira e portuguesa, do século XIX e da primeira metade do século XX. Entre elas as da literatura brasileira ganham especial destaque num título, O Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, que é um bom exemplo dessa recuperação de uma forma tradicional portuguesa em pleno século XX brasileiro (foi publicado em 1953, no Rio de Janeiro, pela editora Livros de Portugal31). A titulação repete-se na lírica da mesma autora, com a forma “rimance”, em Vaga música, publicada em 194232, também no Rio. Do outro lado do Atlântico Jorge Barbosa aproxima-se do motivo em «O Destigno A imagem da criança, ou do ingénuo, como anjo está bem representada na língua portuguesa. Recorde-se as duas acepções em se diz a frase “meu anjinho” (uma avó referindo-se a um neto podia representar uma delas; chamar ‘anjinho’ a alguém, em vez de ‘parvo’ ou ‘ingénuo’, representaria a outra). 30

31

Fonte: «Bibliografia» das obras da autora, em Flor de Poemas, p. 49.

32

V., ed. cit., pp. 49 e 98-99.

ignorado» e podemos considerar esse poema uma espécie de ponte intermédia entre o de Viriato e os hábitos de leitura a que responde. A “menina da roça” leria provavelmente os romances regionalistas brasileiros, em que se falava nas roças e nos seus amores infelizes. Viriato da Cruz contrapunha-lhes as de Angola e São Tomé, respondendo a esse tipo de literatura com uma representação dialéctica. A palavra “roça”, ali, remete para estes dois aspectos contraditórios. O primeiro é representado pela menina; o segundo é representado pelos comentários subtis do poeta, que vou referir ainda. A matriz afectiva da literatura de romance e de roça no Brasil era marcada por um sentimentalismo peculiar, um particular e sublime regresso à pureza da infância dos meninos do engenho. O regresso transforma-se, em Angola, com a literatura nacionalista, no retorno a uma pureza que visa denunciar o sistema vigente (recurso recorrente em Luandino Vieira), aproveitando a capacidade de penetração e dissimulação da “palavra escrita”33. Essa transformação opera-se aqui, respondendo ao mesmo tempo a poetas locais, uns angolanos e outros coloniais, mas sobretudo estes, que viam só “o encanto da mata!” sem ouvirem “o bater compassado / do aço das enxadas” – imagem digna do melhor realismo socialista. Os versos questionam a lírica e a narrativa exemplificadas em “rimances” de Cecília Meireles, ou em romances do regionalismo nordestino; mas os tópicos dessa origem estavam textualizados no país, entre as fadigas da “tonga” (palavra que entra na literatura angolana pelo fim do século XIX). A geração nacionalista, em boa parte por influência do neo-realismo português e brasileiro, recusaria com veemência a lírica maculada por alguma ingenuidade social, ou por algum sentimentalismo, termos empregues na época para depreciar os poetas aparentemente não-militantes, como Mário António34. Se era injusta a crítica a Mário António, ou a Alda Lara, onde a representação do amor é profundamente personalizada e portanto contextualizada, o alvo principal estava bem retratado (e ironizado). O poema de Viriato da Cruz pode ser lido como uma resposta da poesia nacionalista angolana ao carácter, originalmente subtil e requintado, mas alienado, que a história do “rimance” continha no país e fora dele. Nesse contexto, o caminho que aponta à angolanidade literária é o de uma alegoria comprometida com uma visão crítica da sociedade. O aspecto crítico está representado, na terceira estrofe, pela imagem da menina alongando “a vista”, à qual se segue a resposta “do aço de enxadas / dos negros na tonga…”, que nega a ilusão do carro a vir, o carro que traria o seu amado pelas rodas da civilização. Não é um poema ingénuo e mostra-nos como a criatividade se estrutura sobre repetidas relações entre opostos, que desfilam numa sucessão de “a palavra escrita é também uma arma, e ela tem a vantagem de poder actuar em toda a parte de uma maneira que não pode ser considerada violenta” (excerto de uma carta a Lúcio Lara, publicada pelo destinatário em Um Amplo Movimento, I, p. 147). 33

34

Sobre Mário António leia-se o prefácio, já citado, «Évolution et Tendences Actuelles», de Mário de Andrade.

perguntas e respostas: o sentimentalismo da protagonista vai ser sistematicamente composto e decomposto pela voz do narrador, aquele que sabe e conta a verdade que a desilude. Os primeiros versos são de uma ingenuidade aparente (na verdade são irónicos); a segunda estrofe, à qual responde a quarta (ambas dísticos destacados graficamente), desmente-os perguntando se a menina “terá poesia nos olhos de mel”. Se juntarmos as duas vemos bem como uma responde à outra: “A menina da roça terá poesia / terá poesia nos olhos de mel? /…/ A menina da roça tem é um namoro / tem um namoro com um motorista”. A intriga prosaica do namoro com o motorista, típica da maledicência de pequenos meios, desfaz a exclamação, etimologicamente ingénua, do “encanto da mata!...”. Fá-lo usando uma estrutura de pergunta e resposta contraditórias. O barulho do carro do amado ao longe é desmontado assim. O processo repete-se na estrofe seguinte (5.ª) com o som dos “negros pilando / dendém para azeite / na grande canoa” enquanto a menina “os olhos erra no verde à toa”. Uma terceira vez se reevoca e desmente o barulho do regresso do amado. A fala inicial da menina (“É o carro a vir?!”) transforma-se no sentido da realização do desejo (“O carro chegou!...”), que no entanto se revela tão falsa quanto a primeira percepção, pois ela apenas ouviu seu coração bater. É quase o mesmo jogo de desenganos que faz com que, depois do diálogo das “negras” (que ela não ouve), a “triste canção que vem do rio” se reduza ao coração que chora de amor. Quase, porque a ilusão agora vem do sensível, do exterior, enquanto a realidade é a do íntimo. A canção do rio (a que chegaria pelos sentidos) não existe, mas sim a “que vem do peito”, que agora é dolorosa e não esperançosa. Os últimos dois versos (“Menina da roça – águas do rio / saudades da fonte… desejos de amar”) mantêm o tom intimista na caracterização do amor, mas associando-o com a fertilidade e a água, com a procriação de que só é capaz a mulher, não a criança. A sequência parece dizer que a passagem pela dor e pela desilusão faz a menina adulta, tanto quanto que o amor (esse amor) é despertado pela função de procriar. A analogia não surgiu ali, mostrando-nos que, muitas vezes, a imagem e o final são preparados e reorganizados ao longo do texto. No diálogo entre “as negras” esta analogia aparece quando uma das personagens diz que “os olhos de mel” se estão a afundar “num lago azul / que faz sonhar…” (o visível – e que vê – imerge no íntimo – que não se vê). Daí para o final, do “lago azul” passa-se para a “fonte”, substituindo-se um traço estático por outro dinâmico, relacionado nos mais variados textos com a origem (da poesia e da vida). A imagem final reorganiza, por essa dinamização, a desta estrofe (9.ª), sancionada pela conversa das “negras”, aliás com idade para serem mães. Mamã Negra tem uma enunciação fingidamente subjectiva e típica da poesia militante no chamado ‘Terceiro Mundo’, que em geral foi colonizado nos séculos XIX e XX. Escrevo “fingidamente subjectiva” porque o “eu” não

é individual: “minha Mãe – drama vivo duma Raça”; pela sua voz, vozes vindas das diásporas forçadas dos escravos; pelo seu dorso, o dorso dos escravos, etc. Se a mãe representa o “drama vivo duma Raça”, então o filho coloca-se no lugar dos filhos desse drama. O «eu» é assimilado pelo «nós», os dessa “Raça”. No caso, o “eu” colectivo é definido pela cor e pela escravatura, o que leva Mário António a dizer que o poema “marca a adesão do poeta à negritude”, ao mesmo tempo em que refere que foi dedicado, no n.º 1 da Mensagem, a Jacques Roumain, “o poeta haitiano”. Jacques Roumain, admirado e visitado por Langston Hughes em 1932, tinha com este e com Viriato em comum a defesa da negritude (em sentido lato) e uma forte ligação ao marxismo. Viriato fundou o Partido Comunista Angolano cerca de 20 anos depois de Jacques Roumain ter fundado o Partido Comunista Haitiano. Esta ligação entre marxismo e negritude vinha, portanto, já desde pelo menos os anos 30, a ela se ligando, cubanamente Nicolás Guillén, brasilianamente Solano Trindade35 e, mais recuado no tempo, Claude McKay. Roumain defendia, com sentido estratégico, a separação entre a luta pelas independências e a luta pela “revolução”. Viriato compreendeu o mesmo e por isso partiu para uma política frentista, que permitisse aglutinar todos os nacionalistas, embora nunca tivesse abandonado a perspectiva e os objectivos básicos dos movimentos marxistas. Por isso via o caminho para a independência e o desenvolvimento capitalista como etapas que levariam, segundo a profecia de Marx, à verdadeira revolução, não dirigida nem dirigista. Mas, voltando a Jacques Roumain, é-lhe geralmente reconhecida a mesma importância, no Haiti, que teve a Légitime Défense nas Antilhas, o que é esclarecedor para o caso e passo a explicar porquê. Pires Laranjeira, em A Negritude Africana de Língua Portuguesa36, diz que António Jacinto, num testemunho dado pouco antes de morrer, teria fixado 1952 como o ano em que a negritude chegou a Luanda e afirma em seguida: “mas talvez em 1950, quando Mário de Andrade, em Lisboa, ofereceu e dedicou a antologia de Senghor a Viriato da Cruz, a viver em Angola”37. Joga-se aqui com um conceito histórico preciso, mas que não tem grande pertinência considerado assim. Havia vários movimentos, sem dúvida, movimentos que mais tarde escalpelizámos, para lhes encontrar as diferenças que justificassem um lugar específico e preciso num quadro crítico e teórico. Porém, todos eles tinham traços em comum: promoviam a solidariedade entre os povos ‘negros’, valorizavam a respectiva cultura, propunham a negritude como tópico e motivo do canto e reivindicavam a igualdade com os ‘brancos’, o que passava pela defesa das independências. A semiosfera de que emergiam os poetas angolanos “de agora” (do “agora” Os seus primeiros poemas de motivação negra são publicados a partir de 1936. O primeiro livro, Poemas de uma Vida Simples, sai em 1944, numa edição que não menciona lugar nem editor (provavelmente uma edição de autor). Um poema seu foi musicado em Angola por Rui Mingas. 35

36

Dissertação de doutoramento, Coimbra, 1994, p. 110.

37

Id., ib.

de Lorca) integrava estas posturas sem se preocupar com distinções escalpelizadas. Havia uma adesão ao todo, ao movimento geral, a uma espécie de nuvem de sugestões em torno do mesmo tema. Viriato da Cruz não pensaria, fosse em 1949 ou em 1952, não pensaria, julgo eu, agora vou escrever um verso negritudinista e não pan-africanista. Havia o propósito colectivo, por ele partilhado com emoção, de responder ao branqueamento cultural afirmando, dialecticamente, os valores das culturas de cuja construção participaram povos e autores negros. Isso é que torna «Mamã Negra» um poema negritudinista, pan-africanista, ou qualquer outra coisa parecida. Porque era essa atitude que os poetas angolanos então partilhavam e que estava já no manifesto de Hughes, The Negro Artist and the Racial Mountain. Aí defende Hughes, reagindo ao segregacionismo americano, para quem eram negros todos os que não fossem claramente brancos, defende Hughes que o factor negro é inseparável do factor poesia, que um negro só pode ser um poeta negro, não simplesmente poeta38. Num momento e num país em que o ser negro (ou mestiço de sangue negro) se tornava cada vez mais problemático, os poetas e intelectuais negros e mestiços mais lúcidos passaram a defender e afirmar a sua negritude ainda que usando outras palavras, mas o mesmo é dizer que defenderam o direito a si próprios e à sua auto-representação. O que interessa é que esse direito e essas auto-representações eram uma reivindicação comum, sem nome exclusivo e que, no calor das lutas e no gelo das discriminações, se tornou um dever imperioso até que se atingissem os objectivos. Se «Mamã Negra» foi publicado em 1950, não é preciso mais nenhuma referência para colocar o advento da negritude e do pan-africanismo em Angola antes de 1952. Ele é, no mínimo, contemporâneo da Mensagem. Mas raras vezes o aparecimento de uma corrente ou aspiração literária se dá num dos números do calendário. É plausível que a negritude e o panafricanismo já fossem conhecidos antes (o próprio Pires Laranjeira diz que o poema foi escrito em 194939) e Geraldo Bessa Victor falara, recuadamente, em termos que nos permitem pensar que se continuou, sem ruptura significativa nas comunicações, a acompanhar a literatura negra americana (do continente americano) e francófona durante a primeira metade do século XX em Angola40. É, portanto, provável que a chegada dessas notícias não se desse só pelas fontes consideradas por Pires Laranjeira. Sendo outras, podiam ser directas, através de algum emigrado, ou de algum turista (há um conto no Boletim Angola que sugere um conhecimento razoável de um salão americano e de alguma da vida social dos EUA), ou podiam ser indirectas (a partir de traduções, por exemplo). 38

Na Angola colonial Salinas de Moura defendia que nunca um branco poderia escrever como se fosse negro, criticando os poetas coloniais que macaqueavam as variantes do português local. Eram, realmente, poetas gaguejantes – com excepção extraordinária de Tomás Vieira da Cruz. 39

Id., p. 170.

Falo disso em Notícia da Literatura Angolana, Lisboa, IN-CM, 2001. A obra de Geraldo Bessa Victor foi reunida e publicada pela IN-CM também em 2001. 40

Das leituras poéticas ‘negras’ (negras no sentido que a palavra tinha na altura nos EUA) dão-nos conta os citados nestes versos, entre os quais começo por destacar Langston Hughes. A ligação com o poema em análise não se fica só pela referência à “voz altiva de Langston”41. O título de um dos livros do poeta americano é The Negro Mother and other Dramatic Recitations. E, apesar de não ter nascido lá, o seu nome ficou ligado ao Harlem, o “Harlem District South” de que fala Viriato em «Mamã Negra» numa terceira referência. Hughes foi traduzido para a língua portuguesa nessa época, pelo menos no número inaugural (de 1947) da Revista Brasileira de Poesia, onde pontuavam poetas politicamente próximos de Viriato e outros que, sendo-o menos, não seriam rejeitados ainda assim. Entre eles encontram-se “Ribeiro Couto e Manuel Bandeira, / poetas do Brasil, / do Brasil, nosso irmão” – que era o exemplo de Maurício Gomes. Também colaboravam na Revista Brasileira de Poesia os poetas, tradutores de poesia e ensaístas Péricles Eugênio da Silva Ramos e Domingos Carvalho da Silva. O primeiro era “Director Responsável” e o segundo “Secretário de Redacção”. Finalmente colaborou lá outro nome que se tornaria também famoso no mundo da música, Vinícius de Morais, a par de Énio Silveira e Dalton Trevisan (correspondente no Panamá). O conjunto de nomes dá uma inclinação política afim à de Viriato da Cruz e todas as suas sugestões poéticas são modernistas ou posteriores ao modernismo. Lúcio Lara diz que Viriato “desenvolveu os seus estudos políticos em contacto com intelectuais da época e com o Brasil”42, o que torna mais provável ainda essa leitura. A “ponte” brasileira é reforçada por uma informação referida pelo próprio Pires Laranjeira: a correspondência de Domingos Van-Dúnem, “desde 1949, […] com um amigo, que lhe envia exemplares do jornal Quilombo, “paladino da valorização do negro brasileiro” (D. Van-Dúnem, 25-6-1950)”43. A presença da literatura brasileira fazia sentir-se, então, com alguma regularidade, como já é sabido. O que não era considerado era que por essa via chegava também a Angola a poesia de reivindicação negra de toda a América. Nessa mesma página, Pires Laranjeira escreve: “nada indica tratar-se de uma posição inequívoca a favor da Negritude, que, então, e segundo o testemunho de António Jacinto (…), seria ainda desconhecida em Luanda”. Não era solicitado ao poeta, nem por ele mesmo, que tomasse uma “posição inequívoca a favor da Negritude”. O que certamente Viriato partilhava era uma reivindicação que ela (a Negritude) fazia. Na mesma obra fala Pires Laranjeira em A Voz de São Tomé onde, a 16-1-1948 (pp. 1 e 3), Alda Espírito Santo “apresenta poemas de Langston Hughes e de Costa Alegre apologéticos dos negros”44. Essa era outra fonte que podia ter chegado, em

41

Por gralha, a edição da UEA tem “voz altiva da Langston” (p. 31).

42

Op. cit., pp. 18-19. V. o prefácio de Fernando Mourão à presente obra.

43

Op. cit., p. 119.

44

Id., p. 120.

Luanda, às mãos de Viriato da Cruz. Ambas as ‘apresentações’ de Langston Hughes podiam ser lidas por Viriato. Guillén é outro nome citado em «Mamã Negra», numa referência elogiosa: “na bela voz de Guillén…”. Este foi realmente um escritor de “bela voz”, cronista e prosador de mérito para além de poeta lírico. Dessa prosa e da ligação a Langston Hughes, ou ao movimento negro americano, ficaram páginas saborosas e cheias de cor local, entre elas uma crónica publicada no Diário de la Marina a 9-III-193045. Aí se incluem pedaços de uma eventual entrevista, na qual Hughes afirma que passou por Luanda, o que não deixa de ser curioso. Cito o retrato de Hughes por Guillén, quando os dois se olharam pela primeira vez:

cuando apareció mister Hughes nos encontramos com um jovencito de veintisiete años, menudo y delgado, de color trigueño, y que no usa bigode a la inglesa ni a la moda de ninguna otra nación. Parece justamente um «mulatito» cubano. Uno de esos mulatitos intrascendentes, que estudian una carrera en la Universidad Nacional y se pasan la vida organizando pequeñas fiestas familiares a dos pesos el billete. Sin embargo, detrás alienta uno de los espíritus más sinceramente interesados en las cosas de la raza negra, y un poeta personalísimo, sin más preocupación que la de observar su gente para traducirla, darla a conocer y hacerla amar. O nome de Guillén aqui não faz sentido só pela ligação ao negro norteamericano. Um poema de Guillén chama-se «Rumba» e outros (p. ex. «Secuestro de la Mujer de Antonio») são postos pelo autor na categoria de “quadro popular”, mais precisamente “quadro de rumba”46. Esses poemas podiam ter sido lidos por Viriato e não será dispiciendo ver como intertextualiza com o primeiro (numa leitura a posteriori, a que fazemos agora) o «Namoro». Em «Rumba» a dança é, para além de sensual, o veículo através do qual “Ya te cogeré domada, / ya te veré bien sujeta, / cuando como ahora huyes, / hacia mi ternura vengas”47. A mesma dança e música (“Tocaram uma rumba – dancei com ela”) dão finalmente o namoro ao herói de Viriato na sua imitação da negaça feminina. A diferença, curiosamente, é que no verso angolano, talvez por fuga ao exotismo, não há uma referência tão sensual; apenas se poderá deduzir alguma a partir do entusiasmo e do ritmo, sinalizados pela palavra “maluco”: “e num passo maluco voámos na sala”. Mas a analogia seguinte codifica sem qualquer sensualismo o “passo”: “qual uma estrela riscando o céu!”. A leitura da rumba como a dança em que o homem conquista a mulher e lhe domina o desejo é que une estes dois poemas, seja qual for a sua história comum. 45

O mais antigo dos textos recolhidos em Prosa de Prisa por Ángel Augier, pp. 7-9.

46

Op. cit., p. 21.

47

Op. cit., p. 22.

Unindo-os demonstra que Viriato da Cruz sabia do que estava a falar quando se referia à “bela voz de Guillén”. «Mamã Negra» não tem a subtileza alegórica de «Namoro». Mas tem à mesma uma estrutura coesa, que revela um poeta de raciocínio rigoroso. Para identificar a mãe negra e o “drama vivo duma Raça” ele fala da voz e dos olhos, do dorso e do regaço. A voz e os olhos exprimem o drama, ao mesmo tempo que o “canto de esperança”; o dorso e o regaço sofrem-no. A sequência pela qual são nomeados é fílmica: a focagem passa da garganta ou da boca (a voz) para o dorso; continuando a descer, passa de novo para a frente, para o regaço; e, como os olhos dos meninos que as mãos seguram no regaço, como essas mesmas mãos, também nós passamos a fixar os olhos da velha mãe negra. Levando a metáfora até ao fim, o poema termina com a criança no colo da mãe olhando para o dia da humanidade e vendo “O DIA DA HUMANIDADE”…

Outros poemas

Os poemas de Viriato da Cruz não reunidos em livro parecem-me também menos conseguidos. Uma vez que a sua obra completa ainda não foi resgatada, faço no entanto referência a eles. No estudo de Moisés Alves Fernandes sobre as relações entre Viriato e a China, há referência a um poema que Viriato da Cruz teria feito a Cashemira. O documento em que se baseou (uma informação para a PIDE), infelizmente, não o transcreve. Pires Laranjeira, em A Negritude Africana de Língua Portuguesa, refere uma informação e uma fotocópia de José Eduardo Agualusa que dizem respeito a um poema disperso de Viriato da Cruz. Aí se diz que foi publicado no Jornal Magazine da Mulher, n.º 27, Lisboa, Maio de 1953 e, quase ao mesmo tempo, na revista Sul de Florianópolis (n.º 19, Maio de 1953, p. 24)48. Agualusa refere ainda, em carta a Pires Laranjeira, um poema inédito que teria deixado “em Luanda, nas mãos do Bonavena”49. Manuel Ferreira, na antologia No Reino de Caliban II, transcreve «Dois Poemas à Terra» do n.º 2/4 da Mensagem, epigrafados por uma citação do “Cântico do Irmão Sol” de S. Francisco de Assis. Não incluído nas edições dos Poemas ainda está História de Beleza, referido por Mário António: “que supomos permanecer inédito […] uma outra experiência de Viriato: inteiramente feita em português dialectizado (expressão ainda não suficientemente sedimentada, de modo a permitir uma fixação, não caricaturada, das suas formas), realiza, de um modo algo individualizado, uma intenção de negritude”50. O mesmo ensaísta fala de «Sá da Bandeira», “postal poético que o remanso da Chela consentiu”. Mário António diz que os dois estão datados depois dos do livro. O segundo vem datado de “1 de 48

Op. cit., p. 170.

49

Id., ib.

50

Op. cit., p. 186.

Novembro de 1951” na antologia no reino de Caliban II, de Manuel Ferreira. Aí se refere também a primeira publicação: “Jornal de Angola, ano I, n.º 6, 27.5.1954”. Mário António fala dos poemas inéditos ou dispersos apenas para confirmar que Viriato se teria limitado à acção prospectiva, abrindo caminhos que não explorou. Talvez porque o político emudeceu o poeta: quando perguntei à viúva sobre inéditos ou dispersos de poesia, foi-me dito que, desde muito cedo, os seus textos passaram a ser só de carácter político. Os «Dois Poemas à Terra», datados de “9 de Dezembro de 1951”, constituem a sequência natural de «Mamã Negra (canto de esperança)». No primeiro, a progressão semântica é marcada pela repetição do primeiro verso no último. A redundância não é total: “minha Mãe Terra” passa a “nossa Mãe Terra”. Há uma fuga da subjectividade para o colectivo, conotado com a épica na filosofia romântica alemã e com o povo na poesia militante. A palavra “Terra” ganha com isso, pelo menos, uma dupla significação: no primeiro verso designa provavelmente o país mas, no último, pode referir o país, que será nosso, e o planeta, que também é nosso, ao qual também temos direito, na perspectiva de uma “humanização do mundo”51. Se a primeira significação tem mais força num país que luta pela independência, a segunda permite uma leitura global, entusiasmando os que partilham o mesmo ideal planetário. E é a segunda que se repete no final dos dois poemas. Outra nota que aponta para figuras cumulativas ou ambivalentes é de carácter intertextual. Repare-se no sublinhado posto na “emoção”, várias vezes repetida e caracterizada no poema. Ele evoca afinidades (se não leituras) senghorianas; acrescenta-lhe, porém, uma visão dinâmica e revolucionária da emoção. A mesma das “super-e-sub-humanidades”, no momento menos poético de todo o texto. Esse e outros traços, de maior ou menor eficácia estética mas apontando sempre um discurso acumulado, passam também pelo abuso da conjunção «e» ou da enumeração (comum na lírica de Agostinho Neto) e são característicos da poética “mensageira” angolana. Estão ainda próximos de um modelo globalizado na época, mais uma vez o da poesia “militante”52, que raras vezes teve o seu Nazim Hikmet ou o seu Langston Hughes. O segundo dos poemas à Terra é dedicado à propagação de valores. Em primeiro lugar uma declaração anti-metafísica, rentabilizando a imagem reflexiva do lago. A imagem do lago é, contraditoriamente, uma imagem platónica, em que o reflexo da luz na caverna é substituído pelo reflexo do céu no lago. Mas tal reflexo garante, em Viriato da Cruz, que não é preciso ir ao céu para definir as condutas humanas. Os valores a transmitir (a mensagem) surgem, portanto, sob a forma de analogias telúricas: a solidariedade, desde os grãos de areia aos cumes; a 51

Verso de Viriato, No Reino de Caliban, ed cit., p. 163.

52

Mário de Andrade, pref. cit., penúltima página.

fraternidade no abraço dos rios; a beleza e a harmonia (valores metapoéticos) nas planícies férteis e floridas; o amor e a fertilidade no amplexo do pólen; finalmente, a mais bela de todas estas imagens: “a infância cuidada e doce das árvores nos frutos”53. O tópico da infância estava relançado para toda a poesia angolana posterior. A lista de valores e analogias é resumida no final, numa passagem de reduzido efeito estético: “ubérrima livremente dadivosa e igual – de todos”. Nota-se a preocupação de especificar bem o sentido, sobretudo no fim: “igual – de todos”. Embora aqui isso não resulte belo, a estrutura do poema é, toda ela, muito bem programada, aliás a dos dois poemas, publicados em conjunto, só com data no final do segundo (9-12-1951): adota-se um motivo universal (sancionado por S. Francisco de Assis), desenvolve-se-lhe as analogias (locais e temporais) e termina-se por um resumo e reafirmação da sugestão ambivalente: a terra, “minha” e “nossa”, que é “de todos”, deve ser “para todos”. A forte coesão dos seus poemas mantém-se aqui, a par da composição de ambivalências de que falei no início. «Sá da Bandeira» é um poema hesitante, mesmo titubeante. Entre o fascínio exótico pela cidade fértil passeiam as imagens e palavras de ordem subliminares, ora no “vermelho” da maçã, ora na “alegria vermelha e sonora” do “sangue da luz”, ora mais explicitamente na ingénua (porque pouco engenhosa) proclamação: “do progresso da Huíla! Do Progresso de Angola!”. Isto apesar de o domínio das imagens relativas ao fascínio exótico se notar em número e não só. As palavras de ordem são de facto insólitas (as imagens estão entre travessões), não se encontra aquela coerência, aquele amarrar das partes que se vê nos poemas do livro que foi canonizado e que realmente aponta para um equilíbrio que se perde nestes versos, por vezes sem osso. É ainda um poema hesitante porque o vocabulário de angolanidade que vinha até ali – o do calor, do sangue, da luz – se dispersa, perde fulgor e desaparece perante aquela paisagem. Os quadros são outros. A frescura do ar é nova. A fertilidade é maior, também o verde é mais variado. Comum, só a força dos trovões e da chuva torrencial, essa que durante muitos anos uniria o país, mas que foi mais frequente no Sul. Para descrever poeticamente a nova paisagem, exótica em relação a Luanda, faz-se apelo a uma linguagem exótica também. A analogia inicial e final, a mesma (do “pratinho de louça / de Rouen”), dá sinal disso. Vai acompanhá-la um vocabulário antigo e regional na literatura de então, sobretudo na portuguesa. Ouve-se nele a “voz argentina dos regatos e das levadas”, vêem-se as “faces da manhã” (rosada), canta-se a “cavatina da Fertilidade”, das “devesas”, “hortas” e “pomares”, tudo numa linguagem de “alfombra” e “louçanias” que demonstra um domínio alargado da língua portuguesa, mas também uma inesperada ausência de vocabulário próprio da terra. Ainda a esse nível se nota a hesitação entre o arcaico e o moderno, não só entre o 53

No Reino de Caliban, ed. cit., p. 164.

arcaico e o panfletário. Procura-se efeitos espetaculares com versos que falam no “estupendo manifestar dos elementos”54 ou na “harmonia pictórico-sinfónica”55, nas “policromias, fulgências, feitios e transparências”, mas para identificar a cidade e, sobretudo, o “pratinho de louça / de Rouen”56, que nunca esperou ser famoso na luta pela independência de Angola.  Em todos estes poemas há traços comuns. Em primeiro lugar a distribuição dos níveis de língua pelas personagens interagindo com marcas identitárias. Por exemplo interage com os níveis de instrução, que dão indícios de uma colocação social específica (e injusta) no quadro das cidades coloniais angolanas. Em segundo lugar o carácter pedagógico da maioria das composições, que resulta claro de algumas das afirmações feitas aqui e da leitura dos poemas, por mais ingénua que seja. Em terceiro lugar, a mistura de géneros. O lírico (estruturador, dado o carácter fragmentário das narrativas) cede os espaços relevantes ao drama e à narrativa, de tal forma que passagens várias parecem narrativas em verso. Em quarto lugar, as intertextualizações constantemente suscitadas pelo texto, como também penso que resulta claro das análises que fiz. Os traços comuns indiciam todos um escritor várias vezes intermédio e intermediário, que escreve no cruzar dos caminhos das gentes que vão prá baixa. Está fora de dúvida que é empenhado, nacionalista, marxista e defende a nação dos oprimidos contra a nação dos opressores, isso faz parte do cimento semântico do poema. O que fui querendo mostrar foi que, apesar dessa mensagem principal unívoca, o poema organiza e desperta, ao mesmo tempo, várias ambivalências para poder funcionar nos vários palcos do mundo e continua cruzando referências para nos atiçar o desejo daquele rumo. Recapitulo brevemente. A distribuição dos níveis de língua faz-se entre duas línguas, pelo menos, sendo sempre uma delas de origem europeia. Na maior parte dos casos a outra é banto. Só em «Mamã Negra», hino à diáspora forçada pela 54

Op. cit., p. 172.

55

Op. cit., p. 173.

56

Op. cit., p. 171.

escravatura, a componente banto submerge completamente sob o jugo da portuguesa em lúdica disputa com a inglesa (embora esta ocupe muito pouco espaço) e com referências a várias Américas. O aspecto pedagógico é por sua vez característico de algumas das tradições em jogo ali. Dá-se bem com as tradições orais, onde encontramos vários géneros reservados ao treino para a, e à transmissão da, sabedoria dos mais velhos. E satisfaz, ao mesmo tempo, o ideal clássico europeu do docere, no seu tempo rentabilizado pela poesia militante, que durante o século XX foi sendo escrita e reescrita em qualquer dos continentes e em todo o espaço lusófono. Funciona, portanto, como um conector entre as várias partes, um suporte à tradução poética. A mistura de géneros é polivalente nestes contextos. Por um lado ela resolve, a favor do colonizado, uma genologia que não é vista como local; por outro lado ela é característica dos modernismos em todo o mundo. Se formos mais atrás, encontramo-la defendida e praticada por românticos e mesmo por barrocos, na tradição literária europeia (embora nestes com uma intensidade menor e convivendo com formas e fórmulas minuciosamente repetidas). O que dá um alinhamento ao autor em termos de culturas globalizadas. Define-lhe a opção por uma corrente de pensamento e de práticas poéticas conhecida igualmente nos outros continentes, em especial o europeu, de onde veio a ideia de misturar géneros. Gilberto Mendonça Teles analisou isso muito bem para a literatura brasileira, de um país que tinha na altura 100 anos de independência. Para o escritor colonizado (ou literariamente colonizado) e lúcido, a mistura de géneros é libertadora relativamente a preceitos oriundos da Europa, do país colonizador, da sua história cultural. É libertadora porque permite injectar nesses códigos os das tradições pré- ou para-coloniais, ou simplesmente não-coloniais. A mistura de géneros é, portanto, um conector privilegiado, apesar de funcionar em duas direcções que parecem opostas: liberta para dentro e conjuga para fora. Como devem fazer as pessoas educadas. Como uma espécie de anexo à mistura de géneros, é preciso lembrar a dissociação entre o ritmo simulado graficamente e o ritmo e a métrica dos versos tal como são ouvidos. Atrás anotei um exemplo que mostra como isso funciona. O recurso ao verso livre pode ser associado ao modernismo em termos globais, ao mesmo tempo que permite um ritmo próximo do quotidiano, ou seja, do local. Uma vez que não tem de respeitar a métrica de origem e definição portuguesa ou europeia, liberta-nos da mera repetição de fórmulas (como na Europa) e liberta-nos de formas que não derivam dos nossos ritmos, dos que falamos na rua, dos que lemos, dos que ouvimos nas músicas. Estes são apenas alguns dos traços comuns a todos os poemas. Somandolhes a análise detalhada de cada um vemos igualmente ambivalências. As mesmas que tem no dicionário uma palavra com vários sentidos. Elas sustentam as interpretações que vão reanimando os poemas, dando-lhes leituras específicas (ao mesmo tempo originais e especializadas),

explorando-lhes um aspecto particular mais do que outros, igualmente particulares. As constelações textuais que percebemos, o tipo de leituras que tinha o autor, são um dos veículos privilegiados para a universalização da sua poesia. Se ele responde ou recorre, por exemplo, a Rimbaud ou a Langston Hughes, às correntes dominantes das literaturas portuguesa e brasileira, ele dá ao leitor desses sistemas literários equivalências e distâncias relativamente ao seu. A intertextualização, que a literatura pratica desde que existe, é por isso um suporte fundamental para a universalização do escrito. É natural, pois, que o escritor a use para se explicar aos leitores distantes. Neste sentido a poesia de Viriato da Cruz, não só não é xenófoba, concebese a si própria num quadro mundial. O seu nacionalismo é neste aspecto (intrinsecamente literário) como o de Ernesto Lara Filho e de vários outros contemporâneos. É o da colocação de Angola no mapa da roda gigante, a par das outras comunidades literárias. Conseguiu-o tão vivamente que, apesar de escassa, a sua obra conquistou um lugar inalienável. Quando, no aprofundamento de um pensamento político cada vez mais globalizado, percebeu que as sociedades ditas socialistas tinham falseado o marxismo e as independências, tanto quanto empobrecido os povos, desiludido com a China e o mundo capitalista, a vida não deu tempo, já, ao poeta, para regressar. Que versos ele escreveria então?

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