No escurinho do cinema

June 13, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Desenho
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Descrição do Produto

No escurinho do cinema1 Emília Ferreira “La pintura de Sofia Areal es un ejercicio de contrastes, una suerte de turbulencia […] que avanza a partir de lo impredicible o inesperado, es decir, desde un desorden producto de una serie de conexiones aleatorias […]. Sofia Areal nos sitúa entre corrientes de energía: unas densas y brillantes que delatan el uso del esmalte y activan la arquitectura del espacio, las otras, más acuosas con las calidades del acrílico. Diferentes efectos casi siempre desde intensos colores que exceden el dibujo hasta solaparlo por un tipo de energía azarosa que enfatiza y espolea la pintura como materia. Como complemento de sus pinturas, unos pequeños papeles muestran un mundo más mesurado y reflexivo que adquiere el sentido de ensayo o dibujo germinal”. 2

Foram escritas em 2002 estas palavras do crítico galego David Barro, mas poderiam ter sido escritas sobre as obras que Sofia Areal criou, tão generosamente, para a presente exposição inaugural da World Legend Gallery — Artes e Letras. Isto não é de somenos. A obra da pintora mantém as características gramaticais, sintácticas, que permitem a identificação, a marca autoral. Olhamos para um trabalho seu e sabemos de quem é. E percebemos as suas razões, as suas emoções. A sua linguagem é reconhecível, apetecível, verdadeira. Mesmo nas mudanças, mesmo na diversidade da experiência e das suas inquietações. Porque, na verdade, a aproximar-se dos 30 anos de carreira, Sofia Areal mantém intacta a energia dos primeiros momentos, das primeiras criações. Mesmo diferente do dos primeiros anos, o traço é fluído, a geometria contornada pela via da expressão. O espaço é modulado de modo a acolher o mundo numa poética própria. As cores emparceiram com uma força evidente, servindo um gesto rápido, resoluto, que modela contudo alguns silêncios e sabe guardar o mistério. E a sedução.

1. Breves notas biográficas

Sofia Areal (Lisboa, 1960) expõe desde 1982. Está por isso sob os olhos do público e da crítica há quase 3 décadas. Antes disso, porém, já havia iniciado a sua relação com as artes. Para além de ser filha do pintor António Areal, a descoberta, aos 14 anos, da obra de Sonia Delaunay seria decisiva no seu percurso, aí encontrando uma referência plástica e uma reflexão sobre o papel da arte com as quais se identificou. Foi, no Título tomado de empréstimo da canção de Rita Lee. Ferreira, Emília (2011). “No escurinho do cinema”. Em Claro. Sofia Areal. Pintura e Desenho. World Legend Gallery – Artes & Letras, Lisboa, 4 a 29 de Outubro. 2 In Barro, David, in El Cultural, Espanha, 10 de Abril de 2002 (Galeria Ad Hoc, Vigo). 1

entanto, num processo de eliminação, como referiu em entrevista a Ana Sousa Dias3, que acabou por rumar a Inglaterra. “Queria estudar História, mas a Faculdade de Letras de lá [Moçambique] fechou. Fiquei sem saber o que fazer. Como sempre gostei muito de pintar e desenhar, acabei por ir para Inglaterra, para uma escola de arte, aos 18 anos. […] Naquela idade, o que fazemos é limpeza através do não. Continuamos a vida inteira a ter essa vertente na maneira de ser: não gosto disto, não quero. Eu sabia que não queria nada com matemáticas, engenharias ou letras. Foi a desbastar que percebi que naquele campo me sentia bem. As horas não passavam.” Os estudos desenvolvidos, a partir desses anos, em St. Albans, onde segue os cursos de Textile Design e depois o Foundation Course, na Universidade de Hertsfordshire, no College of Art and Design, seriam — como se percebe — fundamentais. Nesses anos formativos, entraria ainda em contacto com obras como as da Escola de St. Yves, em especial do pintor Ben Nicholson. Ficaria também desses anos o seu gosto pela obra de Matisse, a que, ao longo do tempo, se juntarão outras influências: Agnes Martin, Louise Bourgeois, as formas contrastantes de preto e branco do desenho de Chilida, Gorky e Hans Arp, Álvaro Lapa, entre outros. No regresso a Portugal, em 1981, frequentou os ateliers de Gravura e Pintura do Ar.Co. – Centro de Arte e Comunicação Visual, Lisboa. Em 1982, inicia a sua participação em exposições colectivas, na 1ª Mostra de Artes Plásticas, em Lagos, e, em 1990, começa a expor individualmente. Depois disso, participa na realização de um de um portfólio de duas gravuras no âmbito do encontro internacional de gravura no Centro Cultural Francês de Tetouan, em Marrocos, em 1992; executa, com Sérgio Taborda, um painel para a SITTIS e, em 1997, mantendo então o ritmo de quase uma individual por ano e participando simultaneamente em colectivas, realiza um conjunto de pinturas para o espectáculo Prometeu, de Jorge Silva Melo. E os projectos não pararam. Abraçando o quotidiano, com uma generosidade crescente, ela tem desdobrado a sua actividade na pintura, no design de autor, no que define de múltiplos com atitude de peça única (como nos projectos que desenvolveu para a Vista Alegre, por exemplo). Criando as suas narrativas, mergulhando nas suas memórias e refazendo-as. Seja qual for o suporte.

2. Entre as paredes mágicas do antigo Jardim Cinema

3

In Sousa Dias, Ana — “O abecedário de Sofia”, Sofia Areal. Lisboa: Athena, Babel, 2011, p. 17-18.

Depois de uma significativa retrospectiva de pintura e desenho organizada no início de 2011, na Cordoaria Nacional, em que Sofia Areal expôs uma escolha de criações realizadas nos últimos dez anos, é tempo de mostrar obra recente. Para esta exposição a que deu o título “Em claro”, ela realizou um conjunto de 11 trabalhos — sobre tela e sobre papel. Com a excepção do díptico Pedro e Inês e de duas outras pinturas intituladas Espelhos, mais nenhuma obra tem chave para o mistério, como tantas vezes acontece no trabalho de Sofia. Mas tais chaves não são aqui precisas. O que aqui importa é a pintura. E as suas próprias pistas. Com a sua paleta forte e contrastante e o seu gesto rápido — que também sabe ser contido e disciplinado — e expressivo, a pintora evoca, mais uma vez, as grandes forças da vida. Bebendo na memória, como que num eterno retorno, num exercício de renascimento, como uma Fénix, ela relembra que tudo se faz sempre da mesma matéria. E aqui, nestas obras, com desprendimento, como se a vida não tivesse peso, ela renasce através da pintura, do gesto que a evoca. Aprender a ser-se tudo e a desaprender tudo; ei-la de novo como na infância, entre estórias e luzes, o brilho do mar e as flores. Ei-la, de novo, pensando no pai e na mãe, e mais uma vez nas flores, e nos contrastes entre as almas das pessoas, o que as anima à vida, o que as faz pulsar. Ei-la, de novo, recontando as suas paisagens, as histórias que são dela e as que são nossas, também, como Pedro e Inês. Histórias de que se tece a literatura, mas também as outras narrativas. No escurinho do cinema, talvez como na canção de Rita Lee, chupando dropes de aniz (ou, na Madeira da infância de Sofia, rebuçados de funcho?), os amores e os desamores sucedem-se. Episódios difíceis, de tensões como as que movem os planetas, e que se movem como planetas, que nascem e morrem com a velocidade trágica com que as flores atravessam as nossas vidas, são aqui recortados no traço largo e pujante de uma pintora que aborda as cores e a luz com uma frontalidade raras. Sofia gosta das cores primárias, dos contrastes francos, sem modulações. Vermelhos, amarelos, azuis. Mas também sente o apelo de outras cores: o negro, o branco. E abre também a sua paleta a complementares. Nada lhe é estranho. Nestas 11 obras, abundam os negros. É a noite, a mesma noite inteira da infância, de quando olhamos o mundo de olhos deslumbrados. O olhar é aqui preso por inteiro, seja nos pequenos formatos dos registos intimistas dos mais ínfimos desenhos, registados como uma carta, numa escrita murmurada mas ainda assim atrevida, cheia

de breu e de fogos, como o mais fundo universo e o mais puro sangue das flores, como também o branco voluptuoso da espuma que as marés azuis vertem na rocha escura. O negro sustenta a estrutura destes 11 trabalhos, misturando-se ao vermelho, deixando espreitar o amarelo, jogando com o branco que sobre o seu corpo se inscreve, atravessando os espaços de um azul cerúleo, como só o da memória dos primeiros anos. O gesto é transmutado em escrita, como em flor, como em círculo ou coração. A linha metamorfoseia-se em mancha, adensa-se, estreita-se, envolve-nos. Por vezes, sentimos que Sofia nos dá grandes panorâmicas do seu universo. Desta vez, porém, parece antes que ela se aproximou dos seus traços o suficiente para nós nos sentirmos perdidos dentro destes quadros, como um olhar que atravessa uma lente poderosa, adentrando a noite. Sobre o negro das paredes da sala de exposições do antigo Jardim Cinema ressaltam as obras de Sofia, em noites brilhantes, intactas e por estrear, como a do primeiro dia. Tudo aqui é excesso e tudo aqui é contenção — de Pedro e Inês aos Espelhos e aos demais exercícios desta escrita íntima que é a pintura de Sofia. A linha é a mancha aditiva4 de Sofia, essa marca que ela acrescenta ao mundo, no seu jogo de revelação/oclusão que resulta em dança espacial. Nesta série, o facto de nos encontrarmos tão perto do “retratado”, de termos o mundo mesmo à frente dos nossos olhos, faz com que ele resulte, afinal, menos visualmente reconhecível. Mas faz também com que se torne, simultaneamente, tão táctil, sensorial. Tão envolvente. E tão brilhante e sedutor como as memórias de infância. Este mundo de acumulação de memórias como luzes benignas, mesmo quando as sombras nos envolvem, é o resultado de linhas trabalhadas com um fremir que lhes confere vibração. O movimento errático que advém da sua condição gestual dá-lhes organicidade, matéria, tempo. Como se a superfície da tela ou do papel fosse a nossa própria pele, em que a vida cria brechas que recebemos com a felicidade e a ferocidade dos resistentes. É este o mundo de Sofia.

4

Definição usada por Tim Ingold, em Lines: a Brief History. London, New York: Routledge. 2007, p. 43.

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