No lugar divino: uma leitura de \"Rep.\" 614a9-616b2

August 6, 2017 | Autor: L. Ouro Oliveira | Categoria: Mitologia, A república de Platão, Filosofia antiga
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ítaca Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ

Conselho Editorial Prof. Dr. André Martins Prof. Dr. Aquiles Cortes Guimarães Prof. Dr. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues Prof. Dr. Fernando José Santoro de Moreira Prof. Dr. Gilvan Fogel Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco Prof. Dr. Luigi Bordin Prof. Dr. Luiz Alberto Cerqueira Prof. Dr. Maria Clara Dias Prof. Dr. Ricardo Jardim Prof. Dr. Roberto Machado Prof. Dr. Rodrigo Guerizoli Prof. Dr. Wilson Mendonça

Comissão Editorial Getúlio Nascimento Braga Júnior João Luiz Rayol Fontoura Nathalie Barbosa de La Cadena Rachel Martins Renato Nunes Bittencourt

Revista ítaca. PPGF-UFRJ. Rio de Janeiro, 2007. Getúlio Nascimento Braga Júnior, João Luiz Farah Ravol Fontoura. Nathalie Barbosa de La Cadena. Rachel Martins. Renato Nunes Bittencourt (org.) ISSN: 1519-9002 1. Filosofia. 2. Textos acadêmicos

Sumário

< i i n. .10 i - n i i v liberdade e necessidade como origem da filosofia ili n. i i lonçalves de Magalhães .................................................. 118 u . Io \ l n u i d a

Apresentação.. O Conceito de "Fantasia Poética" e a Discussão sobre a Natureza do "Poético" nas Preleções sobre a Estética de Hegel 9 Ana Resende

i ni ilc ('usa e a visão do princípio que fala no universo em imlinv.iV>...........................................................................................130 i ..... .mio Mees

Entre o diagnóstico e a profecia: o percurso da "Grande Política" em Nietzsche 19 Bernardo Carvalho Oliveira

No l ugar Divino - Uma leitura de Rep. 614a9-616b2 ..................... 144 l . Um i;i Ouro A. M. Oliveira

Tratactus, verdade e valor Bernardo Gonçalves Alonso

..30

O enunciado se diz de muitas maneiras: sobre a estrutura formal do enunciado no Da Interpretação 41 Camila do Espírito Santo Prado de Oliveira Das formas platônicas às provas canônicas Camila Jourdan

51

l >;i ;iutonomia mimética - Uma comparação entre a Mímesis Platônica i ;i Mímesis Aristotélica .................................................................... 157 l ,uisa Severo Buarque de Holanda l luinanos, pessoas e sujeitos ............................................................. 171 Marcelo Carvalho Lyrio A ontologia e a contradição do ser e do dever: pequena apresentação da hipótese da equipolência entre identidade e diferença.................181 Michael Pontes de Abreu

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A segunda vida de Brás Cubas .......................................................... 192 Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa

O princípio universal do direito na Metafísica dos Costumes de Immanuel Kant 73 Fábio François

A arte como pedagogia para a liberdade: o exemplo de Schiller......205 Pedro Duarte de Andrade

Sobre o Pensamento e a Linguagem Fábio Cândido dos Santos

Sobre a frase de Nietzsche «Cada palavra é um prejuízo» FIávio Pimentel

84

Nietzsche, o mal do ressentimento e a crise da cultura ocidental.....215 Renato Nunes Bittencourt

A raiz da distinção aristotélica entre razão prática e razão teórica Francisco Moraes

95

A relação do grego com a dor na tragédia ......................................... 230 Robson Cordeiro

A construção do pensamento arendtiano e a desnaturação da como processo filosófico: uma crítica ao pensamento platônico Geórgia Amitrano

.^u íca 106

Nietzsche e ópera em O nascimento da Tragédia Vladimir Menezes Vieira

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No Lugar Divino - Uma leitura de Rep. 614a9-616b2 Lethicia Ouro A. M. Oliveira Mestranda em Filosofia do PPGF-UFRJ/Bolsista do CNPq Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos um poço fitando o céu. F. Pessoa, Livro do Desassossego. 11. p. 54.

No Mito de Er, que finaliza a República de Platão, Sócrates volta à primeira definição da justiça dada por Céfalo no livro l do diálogo, que Polemarco atribui ao poeta Simônides. Pois, se segundo o poeta, justo é dar, a cada um, o que se deve [opheilómena}, no mito dar-se-á a cada homem o que lhe é devido [opheilómena]. Sócrates diz no prólogo do Mito de Er: É isso que é preciso escutar, para que cada um receba exatamente aquilo que, por força da argumentação, éIhe devido.1 [khrè d' autà akoüsai, hína teléos hekáteros autôn apeiléphei tá hypò toü lógou opheilómena akoüsai.] (Rep.614a6-9)

O fim do diálogo encontra seu princípio desde a definição do justo de Simônides. No fim do Mito de Er, a definição do justo do poeta se encontra na narração das recompensas que cada alma recebe após a morte - a

'Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira (cf. PLATÃO. A República. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001). Repare que, na definição de Simônides, encontramos o mesmo verbo presente no prólogo do Mito de Er, opheílein: dever, ter uma dívida: "o justo é restituir o que se deve a cada um" [to tá opheilómena hekastoi apodidonai díkaión estí] Rep. 331e3. Nossa tradução. Que no início do Mito de Er Platão volta a usar expressões como pegar emprestado e pagar de volta, é uma observação de HALLIWELL, S. Plato: Republic 10. ed. bilíngüe. Warminster, Wilshire: Aris & Philips Ltd., 1993. Commentary. 614a8, due to hear, p. 170.

doação a cada uma do que se deve, a doação das recompensas às almas. Neste texto, interpretaremos o episódio do recebimento das recompensas pelas almas, isto é, a primeira parte do Mito de Er, mostrando como cada recompensa recebida após a morte está presente na própria vida do homem cuja alma a recebe. Se tivermos razão nessa leitura, se a história do que ocorre com a alma imortal é a mesma história da vida do homem mortal, poderemos mostrar que a imortalidade da alma tal como desenhada no Mito de Er não diz respeito, ao menos exclusivamente, à continuação progressiva da alma no tempo após a morte do corpo, mas à própria vida em comunhão com ele. Dando início a essa interpretação, baseada na leitura do início do Mito de Er, apresentamos uma breve reflexão sobre quem é o personagem dono da história, Er, o forte panfílio. Er conta o que viu e escutou no lugar aonde toda alma vai depois da morte do corpo e de onde toda alma sai antes de juntar-se a um corpo. Ele pode contar como é esse lugar porque morreu, na guerra. Se Er morre na guerra, ele provavelmente se ocupa com ela, ela é sua tarefa: se está na guerra, Er luta, é guerreiro. Quando Er, o guerreiro, morreu, seu corpo foi recolhido junto com outros e levado para casa para que lá recebesse as homenagens funérias. Ele e muitos morreram, mas devemos nos lembrar de que a morte de Er é estranha à morte dos outros guerreiros; pois ele morre Er e renasce ainda Er. Sendo ainda Er quem volta ao corpo, pensaríamos que, na verdade, ele não morreu... mas isso não diz Sócrates, ele diz:

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Tendo ele morrido na guerra, andavam a recolher, ao fim de dez dias, os mortos já putrefatos...2 [hós pote en polémoi teleutésas, anairethénton dekataíon tôn nekrôn éde diephtharménon...] (Rep. 614b4,5)

Se Er morreu e, diferente dos outros mortos, voltou à vida sendo o mesmo, o que caracterizaria, então, sua morte? Er era guerreiro e, depois de morto, é ordenado vir a ser [genésthai] mensageiro [ángelon] das coisas do lugar divino, do lugar aonde vão as almas após a morte.3 Na República, Sócrates, Gláucon e Adimanto constróem uma cidade em discurso com o intuito de encontrar nela o que é a justiça. Para construí-la, eles concordam com um princípio:4 ... que cada um de nós, no começo, não é formado naturalmente de maneira muito semelhante, mas com naturezas diferentes, cada uma para a execução de uma tarefa diferente.5 [... hóti prôton mèn hemôn phyetai hékastos ou Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira ligeiramente modificada. "Quando se aproximou, disseram-lhe que ele devia vir a ser o mensageiro, junto dos homens, das coisas de lá, e ordenaram-lhe que ouvisse e observasse tudo o que havia naquele lugar." [heautoú dê proselthóntos eipein, hóti déoi autòn ángelon anthrópois genésthai tôn ekei kai diakeleúointó hoi akoúein te kai theâsthai ponta tá en tôi topai.] Rep. 614dl-3. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira modificada. Note-se que, ao longo do diálogo, esse princípio ou fundamento da cidade revelar-se-á intimamente ligado à própria definição da justiça. A justiça será a execução dessa tarefa determinada por natureza. Cf. Rep. 433a6,7. Tradução baseada nas traduções de Georges Leroux (cf. PLATON. La Republique. Traduction Georges Leroux. 2. ed. Paris: Flammarion, 2004) e Maria Helena da Rocha Pereira. É certo que esse princípio possui certo caráter axiomático, já que os fundadores da cidade concordam com tal proposta de Sócrates sem que se passasse por nenhum caminho argumentativo. Contudo vale notar que, em primeiro lugar, tal princípio é uma reapresentação de outro exposto no livro 1: "... a tarefa de cada coisa é aquilo que ela executa, ou só ela, ou de forma mais bela do que as outras." [... toüto hekástou eie érgon hò àn è mónon ti è kállista tôn állon apergádzetai.] Rep. 353a6-8. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira modificada. Tal observação é apontada por PAPPAS, Nickolas. Plato and

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pány hómoios hekástoi, alia diaphéron tèn physin, állos ep' aliou érgou práksci. | (Rep. 370a8-b3)

Cada homem apresenta certa natureza para a execução de uma tarefa própria. O homem determina-se por sua função; é de sua natureza a execução de uma tarefa. Se Er era guerreiro e se tornou mensageiro dos deuses aos homens, se mudou sua tarefa, não parece absurdo que ele tenha, então, nesse sentido, chegado ao fim da vida, como diz Sócrates. A morte e o renascimento falariam de uma mudança, transformação, do ser de Er, de quem ele é. Quanto ao que quer dizer ser tal tipo de mensageiro, apresentamos somente uma sugestão de resposta, pois encontramos alguns vestígios para ela. Na melhor cidade possível construída ao longo da República, o homem que era guardião, o guerreiro da cidade, tornase, após uma educação que o leva a ver o que é invisível aos outros homens, como é descrito na Alegoria da Caverna, governante da cidade feita em discurso, isto é, filósofo. Er, quando viaja ao lugar divino, assim como o homem que se torna filósofo, vê o que é invisível: vê o que ocorre após a morte. E, assim, pode contar aos The Republic. London: Routledge Philosophy GuideBooks, 2001. The first and second cities; the primitive paradise. p. 62. Sendo assim, o axioma não estaria no começo da formação da cidade no livro 2 da República, mas já no livro 1. Além disso, apesar dos amigos não discutirem acerca da validade de tal princípio, a meu ver ele é justificado na continuação da conversa: cada um é, por natureza, designado a uma tarefa, e não a múltiplas, porque quando o homem dedica-se a uma só tarefa, é-lhe possível criar coisas belas [kállion práttoi] (Rep. 370b5). Para que algo seja belo, é necessário que seu criador tenha o tempo disponível para sua arte. É natural ao homem criar coisas belas e, quando ele não cria, foge de sua própria natureza. Talvez o princípio indemonstrável seja, então, a beleza - e, consequetemente, a participação natural do homem nela. Mas tal investigação não faz parte de nossa tarefa - para que nosso texto seja belo precisamos abdicar de falar da própria beleza...

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homens como são as coisas no lugar divino - ele torna-se mensageiro. Os mensageiros dos deuses são certamente os profetas, mas, segundo conta a mesma alegoria, para aqueles que saíram da caverna, o que os profetas dizem não é valoroso; os profetas estão dentro da caverna e são chamados de sábios porque falam do que ocorrerá depois, no futuro.6 A verdadeira sabedoria vem daquele capaz de falar sobre o princípio mesmo do tempo, os astros. E já que, para os gregos, astros e deuses são identificados, aquele que sai da caverna e contempla os astros é capaz de falar acerca dos deuses. Sendo assim, descendo à caverna e governando a cidade, o filósofo torna-se mensageiro aos homens dos deuses - ele mantém a cidade boa, divina. Mesmo de maneiras diferentes, é certo que tanto o filósofo desenhado na alegoria quanto Er são homens que, tendo viajado a outro lugar e voltado ao primeiro, realizam certa união dos dois lugares7; pois diferente será um lugar após a viagem ao outro. Descendo à caverna, o filósofo governará a cidade e libertará outros homens, o que quer dizer dar-lhes a possibilidade de se tornarem filósofos, e, renascendo, Er recomenda, para quem nele acreditar, que se ocupe com a filosofia, pois, como é dito no mito, ela será a única maneira de se fazer sempre uma boa escolha de vida.8 Lembremos ainda que a história contada por Er é uma história repetida por Sócrates, já que é o filósofo quem conta o Mito de Er no livro 10 da República. Por 6

Cf.Rep. 516c8-d2. C. Baracchi chama atenção para a tentativa de junção dos dois lugares feita por Er: "His story is an attempt at carrying that place over, at translating that place into this place... The narration-translation calls attention to the condition of the one who hovers between worlds, who bears and holds worlds together - worlds that belong together, and yet cannot simply be conjoined." BARACCHI, Claudia. Of Mylh, Life, and War in Plato's Republic. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 2002. V. Vision, p. 178. K Cf.Rep. 619el-5. 7

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fim, vale dizer que o mito, como mostraremos a seguir, diz que a justiça é boa nela mesma e por suas recompensas e, a injustiça, ruim, quer dizer, Er conta algo que já havia, de outra maneira, contado o filósofo. Na história de Er, temos o desenho da conclusão filosófica alcançada no diálogo por Sócrates e seus interlocutores acerca do poder, da aynamis, da justiça e da injustiça. Sendo assim, por todas as razões enumeradas, torna-se claro que Er, quando mensageiro dos deuses, é semelhante ao filósofo tal como descrito na República. Feita a apresentação do autor, vamos agora à sua narrativa. Er conta o que sua alma viu e ouviu após a sua morte. Enquanto seu corpo era conservado intacto, sua alma permaneceu em outro lugar, pois os doze dias até que seu corpo pudesse ser cremado correspondem aos exatos doze dias em que sua alma viajou destituída de corpo. Ela chegou ao lugar divino; ao lugar do daímon, lugar próprio do condutor da vida de cada homem, tópon daimónion9 Nesse lugar, toda alma deve, além de receber o que lhe cabe pela vida que levou, ou melhor, pela vida guiada por um daímon, como conta a história1 , fazer a escolha daquele que estará ao seu lado na próxima vida. O lugar caracteriza-se, portanto, por essa força divina que leva o homem para uma situação ou outra, que faz com que ele cumpra seu destino necessário. O que ocorre nesse lugar ocorre por necessidade, independente da vontade dos homens; as recompensas recebidas pelas almas são necessárias. Lendo o mito, Er nos leva consigo a esse lugar divino. Se, lendo a República, já descemos ao Pireu e fomos à casa de Céfalo e de lá avistamos a cidade de homens bons; se fomos da caverna ao ceú e ainda "Rep. 614cl. l °Cf.Rep. 620d9,el.

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percorremos algumas cidades corrompidas, agora vamos com Er ao lugar divino. Nele encontramos diferentes espaços, ou outros lugares, que o constituem. A planície é o primeiro lugar aonde vão as almas. De lá, lendo a conversa das almas ao encontrarem-se na planície, nós vamos ao céu junto com as almas dos homens justos e ao Tártaro junto com aquelas dos injustos. Pois as almas contam umas às outras e a Er, Sócrates, Adimanto, Gláucon, a mim e eu a você (sendo que tudo isso quem nos disse, escondendo-se atrás dos personagens, foi Platão, tendo provavelmente recorrido a histórias por ele ouvidas...11), como é o lugar no qual passaram mil anos12, isto é, as almas justas contam como é o céu e, as injustas, descrevem o Tártaro. Tanto o que fizeram, quanto as recompensas que o justo e o injusto receberam, são relativas um ao outro porque são opostas. Pois se no céu o justo experimenta paixão completa ou perfeita [eupátheia], no Tártaro, ao " Sobre as diversas possíveis influências no Mito de Er, como, por exemplo, orfismo, pitagorísmo, mistérios de Elêusis, zoroastrismo iraniano, religiões da índia e xamanismo asiático, ver HALLIWELL, op. cit. p. 169. Proclus mostra que a primeira frase do Mito de Er, "... Eròs toü Armeníou, to génos Pamphylou; hós pote en polémoi teleutésas...", é semelhante à primeira frase do apócrifo de Zoroastro, ou Zaratustra, como é hoje conhecido, intitulado Descida ao Hades [Katábasis eis Háidou]: "Táde synégrapsa Zoroástres ho Armeníou, to génos Pámphylos, en polémoi teleutésas...". Cf. PROCLUS. Commentaire sur Ia Republique. Tome III. Traduction A. J. Festugière. Paris: J. Vrin, 1970. 111, 1-5. I. Sur Er, fils d'Arménios, p. 54 (nota 1), 55 e 56. 12 No Fedro (248e7), a soma do tempo de cada revolução das almas é também de mil anos. Contudo, repare-se que nesse diálogo, diferente do que encontramos no Mito de Er, cada alma realiza dez revoluções, terminando sua jornada em dez mil anos [myríoí], 1000 vezes 10, deixando-nos como questão o que acontece em seu fim, pois me parece que a alma não pode morrer, por ser imortal. Poderíamos então conjeturar que, no Fedro, myríos quer dizer, em lugar de ano, inumerável, infinito (cf. a possibilidade em BAILLY, Anatole. Lê Grand Bailly: Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette, 2000), como parece ser a jornada das almas no Mito de Er. 150

injusto só cabe sofrer [páthoien]13', pois o justo realizou obras perfeitas [euergesía, euergetekótes], e o injusto só mal fez, causou malefício [kakoukhía], por fim, em relação à piedade [eusébeia] e à impiedade [asébeia], se o primeiro bem sacrificou aos deuses, foi piedoso, o último se negou a sacrificar, foi ímpio. As atividades do justo, assim como as recompensas que recebe no céu, dizem respeito à nobreza, ao bem. É exatamente esse o sentido da partícula eu- em grego.14 As atividades e as recompensas espelham-se. Isso também ocorre em relação aos injustos. Se eles mal fizeram e foram ímpios, sofrem. Quando Sócrates mostra no livro 9 da República que a justiça é boa por ela mesma e a injustiça, ruim, ele diz que o ato justo é o próprio bem, e, o injusto, o próprio sofrer. Em sua história, Er mostra essas características constituintes da justiça e da injustiça. Se elas constituem os atos justos ou injustos, estão necessariamente presentes em vida. As boas recompensas narradas no Mito de Er são recebidas pelo justo no céu e, as más, pelo injusto no Tártaro, depois de mortos. Mas o que eles recebem após a morte é o mesmo que recebem em vida. As experiências descritas no céu dizem respeito, seja ao bem da justiça em si mesma, como dissemos anteriormente, seja às recompensas que o justo recebe em vida, e o mesmo ocorre em relação ao injusto no Tártaro. Vejamos por que: Que a justiça é boa em si mesma e pelas suas recompensas e a injustiça ruim, também em si mesma e pelas suas recompensas, Sócrates mostra quando compara a vida do mais justo dos homens, o filósofo, com a vida do mais injusto, o tirano. Ele mostra por que o primeiro é o mais feliz, enquanto o segundo, o mais infeliz, dentre

Cf.BAILLY,loc.cit. 151

todos os homens. Um dos argumentos para mostrar que o homem mais justo é o mais feliz é dado pelo fato de que somente esse homem desfruta do melhor prazer possível, o prazer do conhecimento. Segundo Gláucon, conhecer, ver a idéia do bem [agathoü idéari] tal como foi apresentada por Sócrates na Analogia do Sol no livro 6 da República, é contemplar o belo intratável [amékhanon kállos].15 No Mito de Er, as almas dos homens justos que estão no céu também contemplam o belo intratável [amékhanos to kállos]. Essa contemplação é uma das boas experiências que elas recebem como recompensa. Quer dizer, fala-se da mesma experiência. Contemplar o belo intratável faz tanto quem, em vida, conhece, quanto a alma que está, depois da morte, no céu. O conhecer é um ato justo. A definição da justiça, encontrada por Sócrates, Adimanto e Gláucon no livro 4 da República é: "... o desempenhar cada um a sua tarefa." [... to tá hautoú práttein.]16 Quando um homem de natureza filosófica, um homem que tem como tarefa conhecer para governar, conhece, ele é justo. Tendo em vista a alma e seus princípios, apresentados também no livro 417, podemos dizer que quando o princípio do lógos da alma conhece, ele exerce sua função própria, é justo. Quer dizer, uma boa experiência do céu, contemplar o belo intratável, é uma boa experiência que ocorre em vida

desde o justo conhecer; desde a justiça em si mesma. Contemplar o belo intratável é, portanto, um bem da justiça em si mesma. A contemplação das almas no céu corresponde à contemplação do homem justo em vida quando conhece, desde o próprio ato justo, em si mesmo. Dado que a experiência das almas no céu é a mesma própria à vida do homem justo, vejamos agora se as recompensas ou experiências recebidas pelas almas dos homens injustos no Tártaro eqüivalem às experiências próprias à vida desses homens. O tirano é injusto [adikós]1*, como dissemos, o mais injusto dos homens, e igualmente como cabe à alma do injusto sofrer \pathoien] em sua recompensa no Mito de Er, segundo o descreve Sócrates no livro 9, em vida o tirano é tomado por sofrimento completo \pathos áthlion]19, é cheio de sofrimento [algedónos]. ° Ora, como foi o homem cuja alma vai ao Tártaro, o tirano é ímpio [anósios]. Além disso, como se lamentam [oayromai]21 as almas que vieram do Tártaro na planície, há lamentação [odyrmós] na vida do mais injusto dos homens. Por fim, para 18

Rep. 509a7. Quando Sócrates diz a Gláucon, ao discorrer sobre o sol, que, assim como o sol é necessário para a visão, a idéia do bem o é para o conhecimento [epistéme] e a verdade [alétheia], continua dizendo que se ele julga serem esses belos, a idéia do bem é ainda mais bonita. É Gláucon quem o completa afirmando que se trata, por isso, do belo intratável. Cf. Rep. 509a6. Sobre os vários contextos nos quais encontramos amékhanos em Platão, ver THEIN, Karel. Lê lien intraitable: enquête sur lê temps dans Ia Republique et lê Timée de Platon. Paris: Vrin, 2001, em especial, Qu'estce que Ia philosophie? - L'adjectif amékhanos et 1'adverbe sphódra, p. 132155. Rep. 433b4,5. 17 Cf. Rep. 434d-441c.

"E também (é acertado dar aos tiranos o qualificativo) de injustos ao extremo, se retamente concordamos antes sobre o que é a justiça." [Kai mèn adíkous ge hos hoíón te málista, eíper orthôs en toís prósthen homologésamen peri dikaiosynes, hoíón estin.} Rep. 576a9-b2. Tradução de Carlos Alberto Nunes modificada. Cf. PLATÃO. A República. Tradução Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000. "Portanto, meu caro Gláucon, é tomado por sofrimento completo, e aquele que exerce a tirania não tem uma vida ainda mais penosa do que o que tu julgavas que a tinha mais difícil? Absolutamente - disse ele." [Oukoün, én d' egó, ô phile Glaúkon, pantelôs to páthos áthlion, kai toa hypò sou krithéntos khalepótata dzên khalepóteron éti dzêi ho tyrannôn; Komidêi g' éphe.] Rep. 579d4-6. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira modificada. 20 "Lamentações, suspiros, gemidos e sofrimentos, em outra (cidade) acreditas encontrar mais?" [Odyrmoüs dê kai stenanmous kai thrénous kai algedónas oiei én tini aliei pleious heurésein;] Rep. 578a5-7. Fala-se da cidade tirânica, espelho do homem tirânico. 21 Rep. 615al.

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completar a evidência da semelhança entre as experiências após a morte e em vida do injusto, assim como o tirano da Panfília encontrado no Mito de Er, Ardieu, é preso em sua punição, algemaram-lhe as mãos, pés e cabeça [sympodísantes kheírás te kai podas kai kephalén]22, o mais injusto dos homens não é livre, é escravo [doülos, 11 aneleutherós] do amor e dos seus prazeres; está algemado em uma prisão [desmoteríoi^4 dos prazeres. Em vida esse homem experimenta o mesmo que após a morte e, se diferença há, é, talvez25, na exaltação, no tornar claro, iluminar, essas experiências, pois podem ser escondidas em vida. Ora, o tirano é escravo dos prazeres. Ele, na loucura [en tôi mainoménoi]26 de experimentá-los, nunca

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se satisfaz, pois não pode realizar tantos desejos despertos pela tirania do amor - o tirano é insaciável [ápleston}21 Sendo assim, podemos dizer que as boas experiências e os sofrimentos experimentados respectivamente pelos justos no céu e pelos injustos no Tártaro são um desenho bem iluminado de experiências próprias à vida desses homens. Segundo o exposto, isto é, se o que os homens recebem no Mito de Er é idêntico a características de seus atos ou às recompensas que recebem por eles em vida, o que é justo segundo Simônides, presente no Mito de Er, ocorre naturalmente. Se segundo Sócrates justo é realizar a tarefa própria e se quando o homem e cada parte de sua alma realizam sua tarefa própria, ele é feliz, então ele recebe o que deve. O mesmo ocorre em relação ao injusto. Se quando não exerce sua tarefa própria, ou quando os princípios de sua alma não o exercem, ele sofre, ele também recebe o que deve. E é essa recompensa necessária28 em vida que o Mito de Er descreve. O Mito de Er dá a cada homem o que lhe é devido; em um mito Sócrates volta à primeira definição da justiça do poeta Simônides. O que é devido é a recompensa recebida, semelhante às experiências da vida do homem cuja alma a recebe. Quem falará dessas experiências é o guerreiro que, quando morre, torna-se mensageiro dos deuses, torna-se semelhante ao filósofo, pois mostra aos homens o invisível, incentiva a ocupação com a filosofia e realiza uma união dos lugares visível e invisível, tarefa própria àquele que saiu da, e voltou à, caverna. Além disso, sua história é contada por Sócrates e ela narra a

Rep. 616al. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Este é um dos castigos recebidos pelos homens injustos que tentavam sair do Tártaro antes de recebem todas as punições que deviam. 23 doülos em Rep. 576a5,577d3, 579d7; aneleutherós em Rep. 577d3. 24 "Porventura não é numa prisão assim que está algemado o tirano, com uma natureza como aquela que analisamos, invadido por toda espécie de temores e desejos eróticos?" [Ar' oün ouk en toioútoi mèn desmoteríoi dédetai ho tyrannos, physei òn hoion dielelythamen, pollôn kai pantodapôn phóbon kai eróton mestos;] Rep. 579b2-5. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira ligeiramente modificada. ' Talvez porque já no livro 9 há uma grande exposição acerca dos sofrimentos característicos da vida do tirano. Além das más adjetivações a ele atribuídas que vimos no corpo do texto, em vida ele ainda é perturbado [methystikós, 573c7], levado pela paixão [erotikós, 573c7], melancólico [melankholikós, 573c7], sofredor [ponerós, 576cl], desafortunado [dystykhet, 580a8], desgraçado [athliós, 580a8, 578b5, 579c5, 579d5], invejoso \phthoneros, 580a5], azedo [ápistos, 580a5], está em confusão [tarakhé, 577e3], sente medo \phobos, 578a3, 579e5], dor [odyne, 579e6], produz gemido [stenanmós, 578a5], é tomado pela agitação [sphadasmós, 579e6], e não possui amigos [áphilos, 580a6]. 26 "Pensas que em qualquer outro encontrarás essa situação mais acentuada do que no homem tirânico que está na loucura pelos desejos e apetites eróticos?" [En andri dê hegei tá toiaüta en álloi tini pleío eínai è en tôi mainoménoi hypò epithymiôn te kai eróton toútoi tôi tyrannikôi;} Rep. 578a7-10. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira modificada.

"E a alma tirânica é sempre necessariamente pobre e insaciável." [Kai psykhèn ara tyrannikèn penikhràn kai ápleston anánke aei eínai.} Rep. 578al-3. Nossa tradução. 28 Que pode ser também uma característica da própria ação, como o bem de um ato justo em si mesmo, como dissemos.

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conclusão alcançada na República sobre a dynamis da justiça e da injustiça. O lugar invisível é o lugar divino, do daímon que dirige a vida dos homens, do que ocorre necessariamente, como a distribuição das recompensas. A vida de cada um determina sua recompensa, em acordo com a ação realizada, própria ou não de um habitante da cidade fundada na conversa dos amigos no Pireu. As recompensas apresentam duas possibilidades opostas, a do justo e a do injusto, que são um desenho da própria vida do homem mais justo e do mais injusto como haviam sido apresentadas no livro 9 da República. As duas possibilidades, o poço, que leva ao Tártaro, fitando o céu intratavelmente belo, são caminhos sempre à frente do homem, presentes em vida. A história da alma imortal fala da vida do homem mortal, no tempo limitado em que necessariamente justiça e injustiça são poderosas.

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Da autonomia mimética Uma comparação entre a Mímesis Platônica e a Mímesis Aristotélica Luisa Severo Buarque de Holanda Doutoranda em Filosofia do PPGF - UFRJ / Bolsista CAPES

A idéia de mímesis já se faz presente de modo importante na cultura helênica antes mesmo do pensamento platônico, e com ele toca o auge de sua atuação filosófica no mundo grego. Aristóteles, como herdeiro filosófico de Platão, e como um pensador interessado em contribuir para o diálogo sobre todos os temas culturais e intelectuais da Grécia de seu tempo, não poderia deixar de analisar este mesmo conceito, desdobrando seus vários significados, contextualizando-os e analisando-os caso a caso. Antes de realizar a efetiva comparação entre as atuações da idéia de mímesis nas obras dos dois filósofos, será útil fazer um pequeno resumo das acepções mais comuns do termo, encontradas tanto nas obras aqui em questão quanto nos textos da Antigüidade grega em geral. As palavras da família de mímesis são de difícil tradução para qualquer idioma moderno por possuírem significados extremamente amplos, por terem utilizações variadas na língua grega e por assumirem feições freqüentemente consideradas contraditórias. Dentre seus possíveis empregos, podemos distinguir as acepções de imitação, cópia, produção de imagens, reprodução, representação, expressão, simulação e emulação. O que importa aqui salientar é o fato de que, embora certas vezes possamos distinguir um uso claro do termo, apartá-lo dos outros e considerá-lo uniformemente, na maior parte dos casos muitos dos sentidos acima listados - ou todos eles encontram-se entrelaçados em uma única utilização do 157

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