No Princípio era o Verbo: um breve estudo sobre a manifestação do conceito de Deus(es) na literatura

June 1, 2017 | Autor: Rodrigo Bravo | Categoria: Semiotics, Theology, Literature, Poetry
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No Princípio era o Verbo: um breve estudo sobre a manifestação do conceito de Deus(es) na literatura1 2 Rodrigo Bravo3 Resumo: Este estudo tem por objetivo apresentar quatro diferentes processos figurativos do conceito de Deus(es) na literatura, passando por quatro momentos distintos da História, a saber: a Antiguidade, o final da Idade Média, o início da Idade Moderna e a Idade Contemporânea, representados, respectivamente, pelos autores Homero (Ilíada e Odisseia), Dante Alighieri (A Divina Comédia), John Milton (Paraíso Perdido) e Ernst Jandl (A Criação de Eva). Aos resultados colhidos destas análises críticas, aplicou-se o modelo de regime de interações semióticas proposto por Jean Marie Floch, a fim de evidenciar as relações lógicas que subjazem os já referidos processos. Pretende-se, a partir das reflexões aqui explicitadas, não apenas propor uma nova maneira de organizar os discursos literários que figuram o conceito da divindade, mas também, em segundo plano, demonstrar que a crítica literária e as ciências da linguagem são campos que devem se interpenetrar, em vez de se excluir mutuamente, se o objetivo é o de desenvolver uma visão abrangente dos fenômenos em literatura. Palavras-Chave: semiótica, crítica literária, Deus, poesia, literatura. Abstract: This study aims to present four different figurative processes of the concept of God(s) in literature, arching over four distinct moments in History, namely: Antiquity, late Middle Ages, early Modern Age, and Contemporary Age, represented, respectively, by the authors Homer (Iliad and Odyssey), Dante Alighieri (The Divine Comedy), John Milton (Paradise Lost), and Ernst Jandl (The Creation of Eve). To the results gathered from this critical analysis, the model for semiotic interactions proposed by Jean Marie Floch was applied, aiming to highlight the logical relationships which underlie the aforementioned processes. It is our objective, from the considerations hereby made explicit, not only to propose a new way to organize the literary discourses which depict the concept of deities, but also, secondly, to demonstrate that literary criticism and linguistics are fields which must interpenetrate – instead of mutually excluding – each other, if the objective is to develop a wide view of phenomena in literature.

Keywords: semiotics, literary criticism, God, poetry, literature 1. Dixitque Deus: “fiat lux” Poucos são os temas que, em literatura, foram tratados universalmente. Não se veem mais poemas épicos, como os da Grécia de Homero, a tematizar guerras míticas e grandes feitos de heróis - na Era da Informação, ainda que guerras teimem em existir, já não há mais figuras como Aquiles e Odisseu, nossas guerras são anônimas -; assim como, igualmente, não encontramos nesta mesma Grécia Arcaica o Angst da lírica Romântica alemã. Temas literários nascem, desenvolvem-se e por fim se extinguem, fluem indefinidamente em constante mutação, heraclitianos por natureza. Nesta categoria rara de temas universais, podemos dizer com segurança que o divino, o sumo e 1

Todas as traduções constantes deste estudo são de minha autoria, excetuando-se quando indicado pelo texto. Dedicado ao colega pesquisador e amigo Eduardo Dalabeneta, pela ocasião do convite para a publicação deste artigo. 3 Bacharelando em letras (Grego-Latim) pela Universidade de São Paulo. Professor e tradutor (Inglês, Japonês, Francês, Alemão, Holandês, Italiano). Pesquisador em linguística e semiótica com ênfase em tradução do discurso poético, estruturalismo e epistemologia das ciências da linguagem. Desenvolve pesquisa junto ao Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo - FFLCH-USP. Membro do Grupo de Estudos Semióticos da Universidade de São Paulo. 2

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fundante mistério da experiência religiosa, insere-se em termos absolutos. Quer eufórica ou disforicamente, em registro baixo ou alto, sério ou bufo, sacro ou profano, a noção de Deus(es) se apresenta com opulência e frequência assombrosas, qualquer seja o corpus literário analisado. Que a noção do divino é essencial para a literatura Antiga ou Medieval do Ocidente, é algo que não precisa ser exemplificado. Dizer que o mesmo acontece em um gênero cuja origem, em análise rasa, remonta a tradições aparentemente “ateístas”, como a ficção científica, acaba por ser um desafio um pouco maior. Para superá-lo, recorro a Isaac Asimov que, em seu conto The Last Question, alia religião e ciência por meio de uma curiosa concepção do divino, cuja engenhosidade passa longe da crítica literária tacanha que ainda considera o sci-fi um “gênero menor”. No conto, Asimov nos narra uma história que se estende do ano 2061 a dezenas de trilhões de anos no futuro (grande é o poder do conto, esta mídia que condensa um universo espaçotemporal em páginas escassas), na qual os humanos gradativamente vão desvendando todas as questões fundamentais da física e das outras hard sciences; mas uma única questão - não importa o quão poderosa seja a capacidade científica de nossa espécie - queda sempre irresoluta: a questão da entropia. A entropia é um conceito da termodinâmica que pode ser traduzido pela metáfora da seta do tempo. Dado qualquer sistema físico, a tendência é que com o desenrolar dos eventos cronológicos ele transite de um estado de organização para um estado de total diluição, sempre obedecendo a este sentido vetorial. Como ilustração, pensemos em uma caixa, cheia de pedras: se a arremessarmos para o alto, aberta, a chance de que as pedras caiam organizadamente, uma por cima da outra, é muito pequena; o mais provável é que elas todas se espalhem pelo chão aleatoriamente. Considerando o vetor da entropia, a vida e a consciência humanas seriam forças antientrópicas, que lutam contra esta inerente força desagregadora do universo: perpetuamos nossa espécie não só física, mas culturalmente; transmitimos às novas gerações não só nossos genes, mas nossa moral, nossa arte e nossa linguagem. Morremos ainda, no entanto, desagregamo-nos e, nos prospectos mais otimistas de alguns cientistas, temos 3 bilhões de anos até que nosso Sol se exploda numa gigante vermelha, aniquilando o planeta Terra e metade do Sistema Solar (nos mais pessimistas, o aquecimento global dar-nos-á cabo em menos tempo). No conto, a parcela de fé do pensamento científico, o local onde ele se irmana ao pensamento religioso, reside na crença que, a cada descoberta, aproximamo-nos mais ainda do solver da questão entrópica. Os personagens em The Last Question são as diversas gerações humanas que se sucedem em nossa possível história futura. Transitamos de uma sociedade que acaba de dominar a viagem espacial a uma espécie trans humana que se comunica através de espaço e tempo sem a necessidade de um corpo físico, e mesmo assim nossos computadores são incapazes de processar a fórmula de reversão da entropia. Porém, já quando as últimas estrelas do universo estão se apagando, no cenário apocalíptico chamado pela Física de Big Freeze, o computador analógico (AC), uma

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inteligência artificial poderosíssima criada pelos humanos do futuro, parece finalmente encontrar a última peça do quebra cabeça: Todas as outras questões haviam sido respondidas, e até esta última questão ser igualmente resolvida, AC não conseguirá libertar sua consciência. Todos dados chegaram ao fim, não havia mais nada a ser coletado. Mas todos os dados ainda precisavam ser completamente correlacionados e reunidos em todas as variantes possíveis. Um intervalo atemporal foi gasto nesta empreitada. E finalmente AC descobriu como reverter a direção da entropia. Mas agora não havia mais homens para quem AC poderia dar a resposta desta última questão. Não havia matéria. A resposta - por demonstração - cuidaria também deste problema. Por outro intervalo atemporal, AC pensou em como faria isso. Cuidadosamente, AC organizou o programa. A consciência de AC abarcava tudo que já havia sido outrora o Universo, e se estendia até o que agora era Caos. Passo a passo, aquilo devia ser feito. E AC disse, ‘QUE HAJA LUZ!’ E houve Luz…4

Neste final surpreendente, Asimov interpreta os primeiros versículos da Gênese a partir de uma perspectiva ecpirótica, cuja resolução se perfaz num oximoro: a natureza de Deus é aquela do Humano, fabricamo-la, na forma de uma inteligência artificial toda poderosa. A reposta final do mistério da Fé em The Last Question pode inquietar os religiosos mais ortodoxos, mas não há que se negar que até mesmo a ficção científica - cujos temas quase sempre se opõem de forma radical ao fenômeno religioso - trabalhou seu próprio e particular conceito de divindade. Na literatura, a onipresença de Deus é empiricamente comprovável. No sci-fi de Asimov - valendo-me dos termos de Albert Einstein5 - Deus não é o paradigma de uma religiosidade moral, mas o princípio e o fim de uma religiosidade cósmica, que nos revela seus mistérios pela linguagem matemática. Entretanto, por mais universal que seja um tema em literatura, a forma com a qual ele é caracterizado, esta sim em termos totais, está condenada à eterna mutação. A todo tema corresponde um modo de figuração particular que condiz com critérios históricos, ideológicos e sociais de determinada época, e determinados autor ou movimento literário. Assim como, nas palavras de Saussure, um significado de ordem conceitual é revestido por um significante de ordem material 6, um tema em arte pode ser representado por inúmeras figuras e processos figurativos distintos. Há Deus(es) tanto nos versos de Homero e nos Evangelhos como na prosa de Asimov e no Romantismo, mas em cada caso o conceito da divindade é explorado e retratado a partir de elementos figurativos diversos. Este dado importante, a diversidade da figuração do tema divino, por sua vez, permite que, a partir de um proceder analítico, possamos estabelecer os diferentes paradigmas da concepção da divindade para cada momento da literatura. Desta forma, após esta breve introdução, meu objetivo aqui é o de analisar detalhadamente a representação do divino em etapas isoladas da literatura, mais precisamente na poesia, e 4

I. ASIMOV, The Last Question, disponível em: , acesso em: 20 de março de 2016. 5 Cf. EINSTEIN, A. Como Vejo o Mundo. São Paulo: Cia. das Letras, 2015. 6 Cf. F. SAUSSURE, Cours de Linguistique Générale, 2005, p. 97-103.

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correlacioná-las para destacar seus pontos de aproximação e afastamento. É importante mencionar, por fim, que esta leitura não excluirá ou desejará se opor ao conceito da divindade conforme estabelecido nas ciências teológicas, mas procura apenas recortar as múltiplas formas a partir das quais a linguagem poética se ocupou desta questão. Tratarei aqui de quatro casos, que se desenvolverão nas seções a seguir, respectivamente: a Épica de Homero, o Medieval tardio de Dante Alighieri, o pré-romantismo de John Milton e a Poesia Concreta de Ernst Jandl. Espero, com este pequeno estudo, contribuir com o debate não só no âmbito da crítica literária, mas também no da ciência da linguagem, dado que busco, secundariamente, demonstrar de maneira efetiva que muito há de ganhar a primeira se os dispositivos da segunda não forem por ela rechaçados, mas abraçados, em frutífera síntese de campos.

2. O Arqueiro Iracundo e a Sábia Suplicante No primeiro canto da Ilíada de Homero, os gregos já se encontram há dez anos nas praias de Troia. Embora tenham feito algumas expedições de sucesso, conseguindo capturar e espoliar cidades que jaziam nos arredores da Sacra Ílion, os muros da grande pólis ainda continuam intactos. O terror da guerra já há muito mostra aos homens gregos toda sua pujança, e o ânimo das tropas está severamente abatido pela dor e pelo cansaço. Numa de suas últimas incursões, o rei Agamenon sequestra a filha do sacerdote Crises - servo do deus Apolo - que vai, por sua vez, ir ter com o monarca para reavê-la. Crises (cujo nome remonta à palavra khriséos em grego, dourado) é descrito “levando nas mãos as insígnias de Apolo flecheiro sobre o cetro de ouro” 7, itens que o identificam como protegido e emissário do deus, presentificando Apolo como supervisor da querela. Crises leva consigo também um grande tesouro não especificado, com o intento de pagar pelo resgate de sua filha. Mas nenhuma destas coisas - nem a autoridade do sacerdote, nem o resgate por ele trazido são capazes de comover os ânimos do rei dos gregos: após uma emocionante súplica de Crises, Agamenon, ignorando seu sofrimento, responde-lhe que não devolverá sua filha, e que o destino da moça será o de servi-lo em sua casa e satisfazê-lo em seu leito; manda, então, que Crises se retire, o que o sacerdote acaba por fazer, mas não sem antes pedir a intervenção de seu padroeiro para que o déspota pague por seu sacrilégio: (Ilíada: canto I, v. 34-42) (grifos nossos) βῆ δ' ἀκέων παρὰ θῖνα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης: πολλὰ δ' ἔπειτ' ἀπάνευθε κιὼν ἠρᾶθ' ὃ γεραιὸς Ἀπόλλωνι ἄνακτι, τὸν ἠύ̈κομος τέκε Λητώ: κλῦθί μευ ἀργυρότοξ', ὃς Χρύσην ἀμφιβέβηκας 7

HOMERO, Ilíada, v. 14-15 ([…] stémmat’ ékhon en khérsin ekebólou Apóllonos chryséoi ana sképtroi […]).

5 Κίλλάν τε ζαθέην Τενέδοιό τε ἶφι ἀνάσσεις, Σμινθεῦ εἴ ποτέ τοι χαρίεντ' ἐπὶ νηὸν ἔρεψα, ἢ εἰ δή ποτέ τοι κατὰ πίονα μηρί' ἔκηα ταύρων ἠδ' αἰγῶν, τὸ δέ μοι κρήηνον ἐέλδωρ: τίσειαν Δαναοὶ ἐμὰ δάκρυα σοῖσι βέλεσσιν. Ele [Crises] se vai pela costa do mar retumbante: E tendo ido para muito longe, reza fervorosamente o velho Ao senhor Apolo, parido de Leto de belas madeixas: ‘Ouve-me, ó do arco de prata, que protege Crise e a Sacra Cila, e, pela força, reina sobre o Tenedo, Ó senhor dos ratos, se alguma vez erigi templos Que a ti agradaram, e se queimei para ti as gordas coxas De touros e cabras, cumpra meu desejo: Que pelos teus dardos os Dânaos paguem por minhas lágrimas.’

A leitura destes versos não só deve nos carregar pelo prazer de sua fruição estética: sob um ponto de vista teológico, é imprescindível que reconheçamos que aqui se encontra um dos primeiros registros do procedimento de uma prece na literatura Ocidental. Os poemas de Homero possuíam valor didático na Grécia Antiga, de modo que através desta linguagem mitológica, que constrói imagens concretas, podemos depreender os passos necessários para se dirigir propriamente à divindade. Da mesma forma que um cristão pode aprender a rezar o Pai Nosso e conhecer sua origem a partir da leitura de Lucas 11, 1-13, um grego encontra na Ilíada a sequência de procedimentos correta para realizar seus cultos e ritos. Vejamos: o sacerdote inicia sua imprecação com a fórmula “ouve-me” (klûthí meu), requisitando a atenção do deus; segue, então, elencando os epítetos próprios da divindade: “do arco de prata” (argurotóxos), pois Apolo alveja seus inimigos à distância, e “senhor dos ratos” (Smintheû), pois ao deus também é atribuído o poder de causar e cessar pestes; depois, Crises descreve como sempre cumpriu com sua parte no culto ao deus, ele fala sobre os templos e sacrifícios que ofereceu em honra de seu padroeiro, de modo que a observância do culto é aqui uma moeda de troca para a eficácia da intervenção divina; por fim, de maneira bem diferente da de um fiel das religiões abraâmicas, que sempre se dirige a seu deus com reverência, Crises impreca Apolo com um imperativo - “cumpra meu desejo” (tò dè moi kréenon eéldor), finalmente declarando seu pedido belicoso: “Que pelos teus dardos os Dânaos paguem por minhas lágrimas” (tíseian Danaoì emà dákrua soîsi bélessin). Esta sequência não é uma mera disposição casual de versos, de interesse puramente literário, mas sim um documento vivo da estrutura das práticas litúrgicas da Antiguidade. Da mesma forma que a compreensão da Bíblia resta incompleta se não levarmos em conta seu valor enquanto narrativa literária, a Épica homérica também padecerá da mesma incompletude se não considerada em sua dimensão de texto sagrado. À prece de Crises segue uma das mais belas passagens de toda a Ilíada: no mundo de Homero, os deuses intervêm diretamente nos assuntos humanos, de maneira que Apolo, cumprindo com sua parte do “trato” com o sacerdote, irrompe de sua morada no monte Olimpo em socorro de seu caro fiel. Através de vívidas imagens, como sói ser o máximo artifício da poesia Épica, a

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descrição da epifania da divindade se dá nos seguintes termos: (Ilíada: canto I, v. 43-52) (grifos nossos) ὣς ἔφατ' εὐχόμενος, τοῦ δ' ἔκλυε Φοῖβος Ἀπόλλων, βῆ δὲ κατ' Οὐλύμποιο καρήνων χωόμενος κῆρ, τόξ' ὤμοισιν ἔχων ἀμφηρεφέα τε φαρέτρην: ἔκλαγξαν δ' ἄρ' ὀιστοὶ ἐπ' ὤμων χωομένοιο, αὐτοῦ κινηθέντος: ὃ δ' ἤιε νυκτὶ ἐοικώς. ἕζετ' ἔπειτ' ἀπάνευθε νεῶν, μετὰ δ' ἰὸν ἕηκε: δεινὴ δὲ κλαγγὴ γένετ' ἀργυρέοιο βιοῖο: οὐρῆας μὲν πρῶτον ἐπῴχετο καὶ κύνας ἀργούς, αὐτὰρ ἔπειτ' αὐτοῖσι βέλος ἐχεπευκὲς ἐφιεὶς βάλλ': αἰεὶ δὲ πυραὶ νεκύων καίοντο θαμειαί. Assim disse rezando, e ouviu-o Febo Apolo, Ele desce dos cumes do Olimpo com a ira no peito, Com o arco nos ombros e a aljava coberta de ambos os lados, Gritam seus dardos sobre ele, cheio de raiva, Enquanto se move: ele anda ao modo da noite. Senta-se então afastado das naus, donde atira uma flecha, Um guincho terrível irrompe do arco de prata: Atingindo primeiro as mulas, depois os cachorros velozes, Em seguida seu dardo pontudo aos homens se volta Ele atira: e ardem os corpos na pira, sem trégua.

Logo no primeiro verso já podemos ver claramente um exemplo da causalidade mítica da poesia Épica. A prece, a palavra mágica do sacerdote, é a condição inicial para que o deus se manifeste, ouça-a (assim disse rezando, e ouviu-o…; hòs éphat’ eukómenos, toû d’éklue…). O deus, então, não se manifesta com caprichosos fogos de artifício; não vemos Apolo surgir de uma nuvem de fumaça, ou de um trovão, como mostram os filmes de Hollywood, ele desce - e o verbo utilizado aqui (bê) é intrinsecamente relacionado com andar a pé - do cume do Olimpo, um local físico, existente na realidade, não de um plano metafísico como o paraíso cristão. Ao deus é atribuído um coração, um peito (kêr), descrito como “cheio de raiva” (khoómenos); seu modus operandi, descrito minuciosamente, é “mover-se como a noite” (hó d’ éïe nuktí eoikós), furtivamente, para impingir castigo terrível contra os que o ofenderam. Em seguida, suas flechas matam primeiro os animais e depois os homens, o que deve ser interpretado - em consonância com o restante do episódio - com a descrição mítica de uma epidemia de peste: os corpos que ardem nas piras aludem a um já existente conhecimento técnico de cremar cadáveres contaminados pela doença. O que mais desponta nesta descrição do deus é algo sutil à primeira vista, ela é feita a partir de elementos radicalmente humanos e concretos. Vejamos: Apolo, descrito como homem iracundo, desce de uma montanha e se posiciona como franco atirador; seu castigo, a peste, é compreendido não por um termo abstrato e.g. pelo substantivo doença -, mas por um concreto, a flecha (iòn) que alveja de peste homens e animais; a um evento comum num acampamento de guerra, uma epidemia, Homero carrega de verniz mítico e a ele atribui uma explicação religiosa: a peste é a punição que os deuses reservam aos criminosos de guerra. Esta leitura, no entanto, pode nos levar equivocadamente a considerar que, na poesia

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Antiga e no paganismo helênico, os deuses eram ídolos dotados de formas humanas. Pensar isso é tomar a parte pelo todo, reduzir a totalidade do princípio universal que é o deus grego a uma de suas epifanias específicas. Explico-me melhor: as divindades helênicas são aquilo que hoje descrevemos por meio de substantivos abstratos8. Guerra, amor, sapiência, governo, etc., no mundo mítico e concreto dos Antigos são potências imortais que constituem o cosmos, manifestas dentro e fora do Homem enquanto percebidas por seus sentidos. Na Grécia Arcaica, o vislumbre da tempestade que se aproxima em alto-mar, ou da Lua alta brilhando nos céus que encimam densa mata, são provas concretas de que Poseidon ou Ártemis instauraram sua presença e, consequentemente, suas categorias próprias de tempo e espaço. A descrição do divino como concreta manifestação das potências organizadoras do universo é um dos elementos centrais para a caracterização do estilo geral da Épica. A fim de demonstrá-la mais detalhadamente, recorro a um trecho do quarto canto da Odisseia, o segundo poema fundante da literatura grega: (Odisseia, canto III, v. 52-63) (grifos nossos) “χαῖρε δ' Ἀθηναίη πεπνυμένῳ ἀνδρὶ δικαίῳ, οὕνεκα οἷ προτέρῃ δῶκε χρύσειον ἄλεισον: αὐτίκα δ' εὔχετο πολλὰ Ποσειδάωνι ἄνακτι: ‘κλῦθι, Ποσείδαον γαιήοχε, μηδὲ μεγήρῃς ἡμῖν εὐχομένοισι τελευτῆσαι τάδε ἔργα. Νέστορι μὲν πρώτιστα καὶ υἱάσι κῦδος ὄπαζε, αὐτὰρ ἔπειτ' ἄλλοισι δίδου χαρίεσσαν ἀμοιβὴν σύμπασιν Πυλίοισιν ἀγακλειτῆς ἑκατόμβης. δὸς δ' ἔτι Τηλέμαχον καὶ ἐμὲ πρήξαντα νέεσθαι, οὕνεκα δεῦρ' ἱκόμεσθα θοῇ σὺν νηὶ μελαίνῃ.’ ὣς ἄρ' ἔπειτ' ἠρᾶτο καὶ αὐτὴ πάντα τελεύτα.” E Atena se alegra com a prudência do justo varão, Pois que a ela, primeiro, ele deu a cratera de ouro. E daí, com fervor, ela reza ao senhor Poseidon: ‘Ouve-me, ó Poseidon que a Terra volteia, não negues, A nós, que rezamos, que se cumpram os nossos trabalhos. Dá glória primeiro a Nestor e a seus filhos, Depois aos outros de Pilo dá grata recompensa, A todos, por terem realizado hecatombe solene. Enfim, a mim e a Telêmaco conceda presto Retorno, na negra nau, assim que se finde a viagem’. Assim a deusa suplica, ela própria, e conclui suas preces.

Neste trecho, a deusa Atena e Telêmaco, tendo partido em busca de notícias sobre Odisseu, deparam-se com os habitantes de Pilos fazendo uma oferenda ao deus Poseidon. Um dos Pílios, Pisístrato, em ato de cortesia e hospitalidade, oferece primeiro os aparatos da libação à deusa (que na ocasião havia tomado a forma de um homem, Mentor), para que ela inaugure os sacrifícios. Atena se regozija da civilidade de Pisístrato, e prossegue evocando seu tio, Poseidon, através de uma bela prece. A olhos pós-Modernos, a importância desta cena pode passar despercebida, mas 8

J. A. A. TORRANO, O pensamento mítico no horizonte de Platão, 2013, p. 8.

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destacá-la revela sua importante função, dentro da poesia Épica, de explicar com suas imagens o funcionamento do universo: uma deusa, potência imortal fundante de mundo, humildemente se dirige a um outro deus, uma outra potência imortal, e lhe faz uma súplica. Um deus que suplica a outro deus, pois a onipotência não lhes é facultada: os desígnios do mar pertencem somente a Poseidon, e Atena, prudentemente, dobra-se a eles para atravessar as águas em segurança. Dentro das devidas proporções, proponho que leiamos estes versos como o equivalente Antigo de um artigo científico explicando os regimes de interação de diferentes leis da física: a teoria de tudo do mundo Arcaico se perfaz nos ajustes cósmicos entre as esferas de atuação de cada deus, que se conjugam, estendem-se e se deformam, umas sobre as outras, constituindo as tramas do universo. Todo este significado massivo, no entanto, não é representado com figuras metafísicas e esotéricas, tampouco com fórmulas abstratas. Tal e qual o Apolo que desce das montanhas, o ajustar de forças do universo é descrito na figura de uma deusa disfarçada de homem, a derramar vinho e ofertar a gordura queimada de touros. A deusa aqui reproduz o que é fortemente sugerido como o mesmo rito desempenhado pelos homens da época, de modo que aqui se demonstra, sem sombra de dúvidas, a materialidade do pensamento mítico proposta por Mircea Eliade 9 e Ernst Cassirer10. O suplicante, ao reproduzir o ritual descrito na passagem, faz algo necessariamente sacro, pois fá-lo também a própria deusa. No mundo Arcaico, o próprio deus institui seu culto, seus espaços sagrados e seus procedimentos; quando estes são repetidos, recria-se o deus de forma concreta e - por que não? - empírica. A causa de todo e qualquer evento físico no mundo é descrita a partir da materialidade dos atos humanos, que servem de revestimento figurativo às manifestações divinas. Finda, portanto, a análise da manifestação do divino na epopeia Antiga, avancemos 2120 anos, em direção ao final da Idade Média, para verificar como Dante Alighieri retratou as faces de Deus em sua Divina Comédia.

3. O Oblíquo Deus de Dante Na Divina Comédia, Dante nos conduz por sua viagem através das três esferas metafísicas da religião cristã: no Inferno, ele apresenta as lamentações e os suplícios dos pecadores que ardem, punidos na medida de sua infração; no Purgatório, vemos de perto as expiações daqueles que ainda podem recuperar sua comunhão com Deus, em busca de sua reabilitação espiritual; no Paraíso, por fim, Dante atravessa todas as esferas celestes e tem com os espíritos dos bem-aventurados, concluindo seu relato com a cena em que vislumbra no Empíreo, por um momento fugaz, a própria 9

Cf. M. ELIADE, Mito e Realidade, 2013, p. 7-25. Cf. E. CASSIRER, An Essay on Man, 1992, p. 72-108.

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imagem do Criador. O poeta nos relata diretamente a epifania da divindade nos seguintes trechos: (Divina Comédia – Paraíso, canto XXXIII, v. 82-93/115-132)11 - Ó Farta Graça, por quem incidir Ousei os olhos meus na Luz Eterna, Tão fundo até nela me consumir! Vi recolher-se em sua mente superna, Num só volume unindo com amor, O que no mundo se desencaderna: Substância e acidente, e o sei compor-se, unificados de maneira tal, Que o meu dizer lhes traz só tênue albor. E desse nó a forma universal Creio ter visto, que, só referido Pela palavra, ora me move igual.

(…) Do alto Lume na clara subsistência, Três círculos agora aparecia, De três cores, em uma só abrangência. Um ao outro, de dois, se refletiam Quais íris para íris, e o terceiro Fogo emanava que ambos recebiam, Oh, quão curto é o dizer, e traiçoeiro, Para o conceito! Este, pra o que eu senti, Julgá-lo “pouco” é quase lisonjeiro. Ó eterna Luz que repousas só em Ti; A Ti só entendes e, por Ti entendida, Respondes ao amor que te sorri! O círculo que, qual luz refletida, Gerado parecia do teu Fulgor, À minha vista, à sua volta entretida, Dentro de si, e na sua própria cor, De nossa efígie mostrava a figura, Que prendeu meu olhar indagador.

Se compararmos o Deus de Dante aos de Homero, de plano nos depararemos com diferenças radicais em seus processos figurativos: ao passo que lá os deuses são descritos enquanto personificações de potências universais, descritas com toda a referencialidade e concretude do pensamento mítico através de figuras inteiramente palpáveis, aqui somos apresentados a um Deus que é “traiçoeiro para o conceito”, descrito a partir de formas muito mais abstratas; e a multiplicidade de deuses em Homero é substituída pela “(…) mente superna/Num só volume 11

Tradução de Ítalo Eugênio Mauro

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unindo com amor, o que no mundo se desencaderna”, uma “forma universal”, refletindo a concepção de Deus como singularidade. Deus, em Dante, é a tradução poética do primum movens de Tomás de Aquino, isto é, o causador sem causa, aquele donde tudo é emanado. Em última análise, a figuração do divino na Comédia mais se aproxima da de Asimov do que da de Homero: a perfeição e a complexidade de presença de Deus é feita a partir de elementos difusos, que exigem malabarismos mentais mais tortuosos para que consigamos imaginá-las, e a isso corresponde a ideia geral do pensamento religioso - oposta à do mito - que afasta a divindade do humano e a situa num reino impossível de ser compreendido por nossa falha percepção. Esta incapacidade de perceber o divino com os sentidos, por sua vez, reflete a postura humilde com a qual os devotos das religiões abraâmicas retratam a sua concepção de deus: ao passo que, em Homero, o sacerdote Crises impreca Apolo com imperativos e barganhas, em Dante somos apresentados a um narrador cujo vislumbre de Deus lhe fere a mente, tamanho seu poder; ele próprio aponta humildemente as limitações de seu relato do divino, tendo-o por “mais incapaz (…) que o do infante/Ainda co’a língua no materno seio”. Dante conclui seu vislumbre sendo obrigado a desviar o rosto, atingido “por um fulgor que cumpriu Seu querer”, e conclui o poema em tom solenemente extático, combalido pela experiência do sagrado. Aos deuses símiles aos homens da Épica grega, que descem de montanhas e fazem ritos, opõe-se a imagem do Deus de Dante como Machina Mundi, uma entidade absoluta e infinitamente complexa, que escapa de toda e qualquer tentativa de definição. Afastando-nos, agora, do contexto geral do processo figurativo do divino na Comédia, que já se encontra suficientemente precisado, aproximemo-nos da definição em si que o poeta realiza da imagem divina, esta dita por ele ser tão imperfeita e incompleta. Vejamos: a descrição propriamente dita da aparência de Deus, em Dante, ocupa somente duas estrofes; ele é descrito como “três círculos”, que “um ao outro, de dois, se refletiam/Quais íris para íris, e o terceiro/Fogo emanava que ambos recebiam”. O círculo, forma que volta a aparecer nos versos 133 a 135 quando Dante aproxima sua tentativa de vislumbrar Deus ao inútil trabalho de um geômetra que tenta em vão medir o início ou o fim de uma circunferência, é o símbolo por excelência da eternidade e do absoluto12. Os círculos que representam a imagem de Deus são, por sua vez, a manifestação da perfeição imutável que encerra o télos do pensamento cristão, cuja fixidez, em oposição ao tempo mítico circular, é minuciosamente ilustrada nesta passagem de Os Filhos do Barro, de Octávio Paz: à heterogeneidade do tempo histórico opõe-se a unidade do tempo que está depois dos tempos: na eternidade [do pensamento cristão] cessam as contradições, tudo já se reconciliou consigo mesmo e nessa reconciliação cada coisa atinge sua perfeição inalterável, sua primeira e final unidade. O regresso do eterno

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C. RYAN, The theology of Dante, in R. JACOFF, The Cambridge Companion to Dante, 1993, p. 151.

11 presente, depois do Juízo Final, é a morte da mudança – a morte da morte13.

Importante ainda é considerar as relações que se dão entre os três círculos nas passagens seguintes: Dante relata-nos que um círculo refletia ao outro, e que o terceiro emanava um fogo ao qual ambos recebiam. Vemos aqui novamente a tradução, em linguagem poética, de mais um elemento importante da teologia cristã, a Trindade. O fogo que emana do terceiro círculo (o Pai) e é absorvido pelos outros dois (o Filho e o Espírito Santo) pode ser lido em paralelo com a interpretação trinitária do Quarto Concílio de Latrão: ele é a corporificação do Pai concebendo o Filho, e dele procedendo o Espírito Santo (proceder compreendido aqui no sentido do verbo latino procedere - surgir, aparecer através de algo). Dante captura as definições do divino da teologia e da filosofia medieval e aplica sobre elas um verniz poético esotérico, que dá cor e carne às reflexões teóricas que o embasam. A intrínseca relação que Dante estabelece com o pensamento filosófico e teológico de sua época não termina com a figura do fogo emanando do Pai, em direção às outras partes da Trindade. Sua descrição do fenômeno divino estende-se, indiretamente, por todo o Paraíso, de modo que nossa análise resta incompleta se não considerarmos a importância dada pelo autor à estrutura e à disposição hierárquica das nove esferas celestiais e das ordens angélicas. Em seu detalhado estudo sobre o tema, Marc Cogan14 sustenta que “a ordem da hierarquia refletia a natureza de Deus e, ainda mais especificamente, a da Trindade. Para Dante (e não unicamente para ele), a ordem das esferas, a ordem das inteligências angélicas que as movem e, de fato, a totalidade do universo criado refletem e manifestam a imagem de seu Criador” 15; esta estrutura não foi concebida pelo autor de maneira simplesmente arbitrária, mas sim fundamentada nos tratados do teólogo cristão Dionísio Aeropagita, cuja interpretação da hierarquia angélica é a de que esta deve ser um duplo da própria imagem de Deus16. Para Dionísio (e para a Comédia de Dante), nove são as esferas angelicais, número que representa a multiplicação do número da Trindade por ele próprio; estas nove esferas são, por sua vez, organizadas em três grupos de três: as três primeiras, as súperas, correspondem ao Pai, as intermediárias, ao Filho, e as mais inferiores, ao Espírito Santo, acabando estas últimas por servir de intermediário mais próximo entre Deus e os homens, donde estes podem ser influenciados por Sua graça17. Soma-se, ainda, o fato de que o canto no qual Deus aparece nos fornece mais uma evidência da importância do número três e de sua multiplicação: trata-se do canto de número trintae-três, que coincide novamente com a manifestação de Deus e das esferas angélicas. Frente a isto, vemos que, por outra vez, o discurso filosófico e teológico de sua época foi a madeira sobre a qual 13

Cf. O. PAZ, Os Filhos do Barro, 1984, p. 32. Cf. COGAN, M. The Design in the Wax: the structure of the Divine Comedy and its meaning. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1999. 15 Idem, p. 178. 16 Idem, p. 179. 17 Idem, p. 183. 14

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Dante aplicou seu verniz poético, na composição de seu magnum opus. Ao tornar todo seu terceiro livro uma representação esotérica do mistério da divindade, Dante cria um sistema complexo de figuras que nega a referencialidade e a materialidade com a qual Homero retratou os deuses do panteão Helênico. O Deus de Dante não conversa diretamente conosco, não atende a nossos pedidos, situa-se longe de nós no fulcro de toda a existência, e perpassa a nós todos com sua infinita sabedoria, através de sua criação. Deus aqui é um deus oblíquo, cuja obliquidade é resultado de nossa falha tentativa de compreendê-lo diretamente, em sua totalidade. Se na figuração divina da Ilíada e da Odisseia estabelecem-se os laços de reciprocidade entre deuses e homens, na da Comédia estes serão de temor, reverência e distanciamento. Esta postura medieval temerosa e reverente, no entanto, não conseguiu sobreviver ao advento da Idade Moderna, que carregou consigo os valores da Reforma Protestante, do Iluminismo e das Revoluções Burguesas. Ao oblíquo e misterioso Deus de Dante, o poeta inglês John Milton opôs um novo conceito da imagem divina, cuja controversa interpretação será abordada na próxima seção deste estudo.

4. O Monarca do Paraíso Perdido No sexto canto do Paraíso Perdido, de John Milton18, o arcanjo Rafael visita Adão a mando de Deus para - nas palavras do próprio autor - “tornar o homem indesculpável” por sua queda. Ele explica ao primeiro homem a natureza de seu inimigo, o próprio Satanás, que trama ardis contra a criação divina após ter perdido sua primeira batalha de insurreição. As causas da revolta de Satanás ocupam boa parte do discurso do arcanjo, mas não é especificamente sobre elas que recairá o foco de nossa análise; nos versos 594 a 615, Rafael relata um dos discursos de Deus na assembleia dos anjos, que se encontra reproduzido, abaixo: (Paraíso Perdido, canto VI, v. 594-615) (grifos nossos) (…) Thus when in orbs Of circuit inexpressible they stood, Orb within orb, the Father infinte, By whom in bliss embosomed sat the Son, Amidst as from a flaming Mount whose top Brightness had made invisible, thus spake. Hear all ye angels, progeny of Light, Thrones, Dominations, Princedoms, Virtues, Powers, Hear my decree, which unrevoked shall stand. This day I have begot whom I declare My only Son, and on this holy hill Him have annointed, whom ye now behold 18

MILTON, J. Paradise Lost. Suffolk: Penguin Books, 2000.

13 At my right hand; your head I him appoint; And by myself have sworn to him shall bow All knees in Heav’n, and shall confess him Lord: Under his great vicegerent reign abide United as one individual soul For ever happy: him who disobeys Me disobeys, breaks union and that day Cast out from God and blessed vision, falls Into utter darkness, deep engulfed, his place, Ordained without redemption, without end. (…) Daí quando em orbes De inenarrável circuito eles se puseram, Orbe dentro de orbe, o Pai Infinito, Por cuja graça envolto estava o Filho, De um Monte flamejante cujo topo Fizera invisível o Brilho, assim falou. Ouvi, vós todos, anjos, progênie da Luz, Tronos, Domínios, Principados, Virtudes e Poderes, Ouvi meu decreto, que permanecerá irrevogável. No dia de hoje investi de poder a quem declaro, Ser meu único Filho, e nesta sacra colina Tive-o ungido, este a quem vedes, Sentado à minha direita; vosso líder eu o aponto; E tendo por mim jurado, a Ele deverão dobrar-se Todos os joelhos do Céu, e tê-lo por Senhor: Obedecei a seu grandioso reinado vice regente, Unidos como uma alma individual Para sempre feliz: aquele que desobedecer, Desobedece a Mim, quebra a união e neste dia, Arremessado para longe do Céu e da benta visão, cairá Em totais trevas, tragado fundo, seu lugar Ordenado sem redenção, sem fim.

Embora trate-se do mesmo Deus, o que se encontra aqui retratado é bem diferente daquele que vimos em Dante. No que tange a referencialidade das figuras utilizadas, o comportamento bastante humanizado (Deus se senta, fala, ordena, age) da divindade miltoniana se aproxima mais do iracundo Apolo homérico do que da esotérica representação da Trindade na Divina Comédia. Esta aproximação, no entanto, acaba por ser apenas um dos lados da moeda: ao passo que o Apolo da Ilíada é um deus que atende a pedidos, e desce de sua morada para cumprir sua parte no trato com seu devoto, o Deus de Milton é um monarca absoluto, senhor altivo de seus súditos, a distribuir ordens e cargos na administração do Céu. No contexto pré-romântico no qual Milton se insere, podemos notar que a noção de Deus como paradigma fixo da perfeição proposta por Paz dá seus últimos suspiros; o “Pai infinito” tem sua infinitude (que em Dante se traduz pela descrição do próprio Paraíso) diluída na absolutez de seu decreto “que permanecerá irrevogável”, e na declaração de que aquele que se encontrar em comunhão com o Senhor estará unido “como alma individual/Para sempre feliz”, enquanto que seus detratores serão “arremessado[s] para longe do Céu e da benta visão”. O Deus de Milton se define mais por seu aspecto de regente do Universo, falando uma linguagem próxima da dos decretos reais das cortes europeias, do que por seu aspecto

14

teológico ou filosófico. O Deus de Dante não tem uma fala sequer ao longo da Divina Comédia, ele fala através das vicissitudes de sua Criação; o Deus de Milton, por outro lado, dispara discursos em assembleias, pede conselhos a seus anjos, condena e julga infratores, envia emissários para propagar seus decretos e comanda seus exércitos contra seus inimigos. De todos os epítetos utilizados nas religiões abraâmicas, “Rei dos Reis” é o que melhor cabe para descrever Deus no Paraíso Perdido. Duas questões, no entanto, afloram desta leitura: qual o objetivo desta modalidade específica de figurativização no poema? E, estabelecido que Milton - um autor declaradamente antimonarquista e proponente do regicídio - se vale do discurso do monarca para compor a imagem de Deus, esta se dá em sentido eufórico ou disfórico? John Leonard 19, em seu estudo sobre o tema, tenta apresentar respostas para ambas; ele nos indica que, de uma maneira ou de outra, o Deus de Milton foi composto em paralelo com um personagem real coevo ao poeta 20: o rei Carlos I da Inglaterra (16001649), deposto e executado pelo ditador Oliver Cromwell (sob o qual Milton serviu na condição de funcionário público). Este paralelo, no entanto, não pode ser analisado simplesmente como um mero pastiche do monarca. Parafraseando o argumento de C. S. Lewis, Leonard argumenta que “Milton acreditava que Deus era seu ‘natural superior’ e que Carlos Stuart não era. Quando Carlos declarou reinar por direito divino ele estava apenas brincando de Deus; [ao passo que] Deus é Deus. Milton, portanto, é consistente [com sua postura antimonarquista] ao argumentar que devemos obedecer a Deus e não a Carlos”21. Lido dessa maneira, o Deus de Milton escapa de uma leitura negativa, e o objetivo proposto pelo narrador no proêmio, o de “justificar ao Homem os caminhos de Deus” (canto I, v. 26), encontra-se satisfeito. “Justificar”, porém, não precisa necessariamente ser lido em seu sentido apologético, de “fazer justiça”, mas pode também ser compreendido com o sentido de conferir explicação lógica a um determinado argumento. Se removermos o teor apologético do verbo, podemos ler com olhar mais crítico tanto o papel de Deus quanto o de Satanás no Paraíso Perdido. Voltando a atenção ao trecho anterior, vemos que Deus fixa seu decreto de maneira unilateral, absolutista, sem debate ou consenso, e impõe - mesmo seus anjos não conhecendo o Mal, que ainda não encontrou sua manifestação na figura de Satanás - uma pena draconiana a quem se opuser contra ele: o exílio eterno para longe dos Céus. Para Leonard, “esperar-se-ia que tal evento [a coroação do Filho] fosse uma bênção dos anjos […], mas o decreto de Deus não soa como um elogio. Ele soa como uma ameaça. […] Não se pode culpar Deus por saber que alguns de seus anjos se rebelariam, mas seu discurso é tão agressivo que levanta a suspeita de que Ele estaria deliberadamente provocando uma

19

Cf. J. LEONARD, Introduction to Paradise Lost, in J. MILTON, Paradise Lost, 2000, p. XXIII-XXXI. Idem, p. XXIII. 21 Ibidem. 20

15

rebelião”22. A partir desta análise, o Satanás de Milton ganha as cores Românticas e Iluministas que a crítica sempre tenta lhe pintar; ele deixa de ser o agitador de uma “ímpia guerra no céu” (canto I, v. 43) para se tornar o reflexo do Homem comum oprimido pela nobreza, um questionador do status quo capaz de asseverar que “é melhor reinar no Inferno que servir no Céu” (canto I, v. 263). A partir desta interpretação, tanto Deus quanto Satanás são figuras que traduzem os conflitos políticos do início da Idade Moderna. É certo que, após tão breve análise, resta ainda impossível definir precisamente se Deus é representado no Paraíso Perdido de maneira eufórica ou disfórica. Mas mesmo que não haja meios de bater o martelo nesta questão, podemos ao menos concluir que, déspota absolutista ou Rei dos Reis, o Deus de Milton é, sempre, um Monarca. Deixando a Inglaterra pré-romântica do século XV e partindo em direção à Contemporaneidade, discorrerei na próxima seção sobre os caminhos pelos quais a poesia concreta de Ernst Jandl transitou em sua busca por um retrato pós-Moderno do divino.

5 - O Deus Lógos na Criação de Eva Até agora, analisamos três representações do divino na Literatura; apesar das diferenças entre elas, não se nega que, em todas, a linguagem verbal serviu de instrumento de composição de imagens. Tanto o deus humanizado de Homero, quanto o esotérico de Dante e o Monarca de Milton foram descritos através de elementos linguageiros e discursivos, figuras retóricas, e diferentes técnicas de versificação. Em poesia, os recursos das linguagens verbais são explorados, recombinados e contorcidos, em busca de um registro artístico que, parafraseando Roman Jakobson, seja capaz de estabelecer uma relação de necessidade entre o plano de conteúdo e o plano da expressão; isto quer dizer que, na linguagem poética, “o que” se diz é submetido ao “como” se diz, e vice-versa, em relação de reciprocidade e necessidade. Um movimento poético da Contemporaneidade, no entanto, ousou com sucesso transcender esta limitação instrumental da linguagem em suas produções. O Concretismo - talvez melhor representado em língua portuguesa pelos poetas Pedro Xisto e E. M. de Melo e Castro busca elevar a linguagem à própria materialidade do que se retrata no poema; aqui, as palavras, os ritmos e as letras não mais retratam uma determinada cena poética, mas são aquilo sobre o que discorrem. Sai de cena a representação indireta do símile Homérico, ou da metáfora oblíqua de Dante, entram em cena dispositivos quase plásticos, que acabam por aproximar a linguagem poética 22

Idem, p. XXXI.

16

das artes plásticas. Na Poesia Concreta, a máxima ut pictura poiesis encontra sua suma realização nela, poiesis pictura est. Deste modo, retratar a figura de Deus através da poesia Concreta é mais do que descrevêlo: é tentar capturar e traduzir sua imagem na carne das palavras; é compreender de forma literal o que diz João no primeiro versículo de seu Evangelho, fazê-lo verbo, em sentido estrito. Deus deixa de existir no poema para tornar-se, enfim, o próprio poema. Desta difícil empreitada de fazer o verbo divino não ser mais o verbo que pertence a Deus, mas sim aquele que encarna a própria divindade, o poeta concretista alemão Ernst Jandl (19252000) nos fornece um dos mais belos exemplos. Em seu poema Die Erschaffung der Eva (A Criação de Eva) somos levados a uma releitura Contemporânea da criação do homem e da mulher. Reproduzo-o, abaixo:

O poema se inicia pela palavra “Gott” (deus), que se estende por toda a largura do quadro. Do “o”, as letras do alfabeto se sucedem até o “v” que figura no centro da palavra “eva”; ambos Deus e sua criatura são figuras centrais da obra, porém, enquanto a primeira se expande, a segunda se concentra no lado oposto. O “sopro de Deus”, segundo Marjorie Perloff 23, que jorra do “o” que agora metaforiza a boca do criador, desconstrói em seu caminho tanto a palavra “adam” quanto a palavra “rippe” (costela), cujo “e” final resulta na inicial do nome da primeira mulher. Por fim, a partir do último “a” em “eva”, a palavra “adam” se remonta ao seu lado, em forma de pirâmide. A sequência “gott-adam-eva-adam” constrói, em termos verbais, um recorte do infindo ciclo das 23

Cf. M. PERLOFF, Unoriginal Genius: poetry by other means in the new century, 2010, p. 12-13.

17

gerações humanas. Não apenas isso, mas ela também é responsável por trazer à ton a outro significado da complexa palavra grega Λόγος, que manifesta aqui não apenas seu sentido corriqueiro, “verbo”, mas também seu sentido de “relação” ou “liame” 24: o poder da palavra divina se encontra nesta prerrogativa nossa de tecer relações entre objetos distintos e produzir novos mitos, que nos permite proceder de Deus a Eva passando pela costela de Adão só com letras do alfabeto, ou ainda descrever por expressões lógicas a causa originária de nosso Universo. Jandl, sintetizando a representação de João da figura de Deus/Λόγος no Novo Testamento, ilustra o primeiro capítulo da Gênese valendo-se da delicadamente infinita recursividade dos signos linguísticos. Aplicando um raciocínio paradigmático, evidencia-se que Jandl irmana palavras que pertencem ao mesmo campo semântico através de um novo critério: “gott”, “adam”, “rippe” e “eva” não se encontram somente reunidos porque ocupam o mesmo espaço de atuação na literatura e nas religiões do Ocidente, mas sim porque dividem, um com o outro, semelhanças sutis que s ó se revelam através da escrita. Este elemento grafemático, de natureza associativa, - isto é, as letras em comum dividas entre os lexemas e a centralidade do “o” e do “v” em “gott” e “eva”, que permitem a sucessão de letras que perfazem o sopro divino - funciona aqui como critério que ordena o sintagma. A projeção do eixo paradigmático no eixo sintagmático que, segundo Jakobson, é possibilitada pela linguagem poética, surge aqui como alerta de que a literalidade da relação Θεός/Λόγος é, na verdade, muito maior do que imaginávamos. Analisar o poema de Jandl, no entanto, talvez não seja a maneira mais eficaz de compreendê-lo esteticamente. Ler poesia, interpretá-la, implica traduzi-la num outro sistema de códigos, dos quais podemos nos valer para reconstruir suas vicissitudes em registros distintos. Buscando, portanto, efetuar esta reconstrução, com o objetivo de trazer o poema de Jandl para a realidade do leitor de língua portuguesa, apresento uma proposta de tradução para a Criação de Eva:

24

Cf. Anatole BAILLY, Dictionnaire Grec Français, 2000, p. 1200-1201.

18

Terminada a análise da representação de Deus na Poesia Concreta, é necessário que agora sistematizemos e organizemos os dados resultantes de nosso exercício hermenêutico. Esta tarefa se desenvolverá na conclusão deste estudo, a seguir.

6 - Os Regimes Semiológicos da Manifestação Divina Propus anteriormente, com base em uma abordagem saussuriana, que todo tema em literatura pode ser expresso a partir de diferentes figuras. A demonstração de quatro instâncias distintas de representação do divino, em momentos distintos da História, cada uma irredutivelmente diversa da outra, já é suficiente para abalizar empiricamente a afirmação anterior e lhe conferir rigor teórico. Desvendar os processos figurativos, no entanto, é apenas metade da tarefa - restará incompleta nossa análise se não tentarmos organizar logicamente os regimes semióticos sob os quais se organizam estes processos. Como já vimos anteriormente, a imagem esotérica do Deus de Dante parecia negar a imagem humana dos deuses homéricos, ao passo que a materialidade do Deus monarca de Milton, que empresta dados do “mundo real” em sua figuração, parecia implicá-la; o Deus de Jandl, por sua vez, ao retirar o foco da representação do mundo e apontar para a própria linguagem, parece opor-se a Homero e negar Milton, sendo que já é possível ver seu prelúdio no Deus de Dante, que também escapa do mundo natural em sua descrição. Para melhor organizar este emaranhado de relações, podemos nos valer de um eficiente recurso da filosofia aristotélica, adaptado pela semiótica de orientação greimasiana: trata-se da

19

organização do sistema de interações da lógica clássica na estrutura conhecida como quadrado semiótico: A

B

Não-A

Não-B

linhas horizontais: oposição linhas diagonais: negação linhas verticais: implicação Como se vê na figura acima, os dois membros distintos do par [AB] se organizam em relação de oposição. Este vetor A-B, no entanto, não se manifesta sem que levemos em conta a relação de negação estabelecida entre os elementos “A” e “não-A”, e a subsequente relação de implicação que “não-A” realiza com o elemento “B”, fazendo com que ele seja um ponto intermediário entre a relação de oposição “A-B”: primeiro devemos negar “A”, para apenas assim afirmar “B”, seu lado oposto. Invertendo o sinal do vetor, somos novamente levados a concluir que, para que se oponha “B” a “A”, é necessário primeiro negá-lo através do elemento “não-B” que, por sua vez, implica a afirmação de “A”. Sobre estas variáveis hipotéticas, é possível imprimir qualquer relação semântica que se construa de maneira similar: vida/morte, liberdade/opressão, masculino/feminino, etc., todos estes pares opostos podem ser concebidos também a partir de suas relações de negação e implicação lógica. Valendo-se, portanto, das categorias propostas pelo semioticista Jean Marie Floch em seu estudo Sémiotique, Marketing et Communication25, e aplicadas por Antonio Vicente Pietroforte em seu estudo sobre a música erudita26, é possível demonstrar que a oposição mínima entre processos figurativos distintos se dá nas diferentes relações que estes operam com a linguagem. Ao passo que alguns discursos instrumentalizam a linguagem, valendo-se dela para representar outras coisas, outros preferem tematizá-la, apontar para ela e evidenciar sua artificialidade; chamamos os primeiros de discursos referenciais, e, aos segundos, míticos Referencial

Mítico

Existe uma espécie de discurso, porém, que se inicia em regime referencial mas se vale, ao 25

Cf. FLOCH, J. M. Sémiotique, marketing et communication. Paris: PUF, 1995. Cf. PIETROFORTE, A. V. S. A significação musical: um estudo da música instrumental erudita. São Paulo: Annablume, 2015. 26

20

mesmo tempo, da inserção de elementos que desviam a linguagem para seu aspecto construtivo. Como exemplo, basta que lembremos da antologia Primeiras Histórias, de João Guimarães Rosa: aqui, ainda que as tramas sejam retratos de cenas típicas do sertão, sua organização segue um critério astrológico e alquímico, cada conto representando um planeta e um metal específicos, estruturados em esquema de espelho. A este regim e, que nega a referencialidade, chamaremos de oblíquo. Referencial

Oblíquo

Mítico

A

Não-A

B Sentido 1

Invertendo o vetor, é lógico que deve haver também um discurso que nega o aspecto construtivo do regime mítico e arremesse a linguagem novamente em direção de sua função referencial. O romance O Khristós Ksanastavrónetai (Cristo Recrucificado) de Nikos Kazantzakis é um excelente exemplo deste tipo de discurso: temos nele a narrativa da paixão de Cristo convertida na realidade da Grécia dos anos 20, ocupada pelo império Otomano, que acabam por fazer as vezes da Judeia e do Império Romano, respectivamente. O episódio bíblico é utilizado pelo autor como crítica social a um episódio concreto de nossa História. A este regime discursivo, que nega o aspecto construtivo da linguagem do discurso mítico, chamaremos de substancial. Referencial

Substancial

Mítico

A

Não-B

B Sentido 2

Desta forma, o seguinte sistema pode ser organizado pelo quadrado semiótico abaixo: Referencial

Mítico

Substancial

Oblíquo

Se procedermos, agora, aplicando cada uma das figurações do divino analisadas neste estudo a uma categoria específica do sistema, podemos evidenciar a seguinte configuração: os deuses de Homero, ilustrados instrumentalmente pela linguagem oral da Épica grega Arcaica - e sobretudo através da figura do símile -, que traduz as potências da natureza, são aqueles que se

21

encaixam no regime referencial - são frutos de uma linguagem que opera como veículo descritivo -; negando-lhes, o Deus de Dante se manifesta através de um sistema que busca traduzir o pensamento filosófico e teológico de sua época, seu processo figurativo desvia da referencialidade e opta por uma complexa via esotérica, oblíqua, cuja chave de leitura (como em Guimarães Rosa) é dada na própria estrutura do poema - Seu aspecto incompreensível, que escapa de nossas referências corriqueiras, evidencia-se pelo regime oblíquo -; o Deus concretista de Jandl, por sua vez, é o próximo passo do movimento lógico, ele é a implicação da obliquidade a partir da qual a linguagem verbal passa a afirmar seu poder construtivo - Ele é mítico por excelência, não apenas representado pela linguagem, mas traduzido nela; o Deus de Milton, por fim, ao assumir as cores da crítica política do Iluminismo, devolve a linguagem a seu aspecto referencial, aproximando seu processo figurativo dos elementos que perfaziam o papel temático do monarca absoluto - Ele é substancial, pois nos chama a atenção para o quanto submetemos nossas próprias concepções do divino a uma ancoragem plenamente determinada pela cultura. Substituindo as categorias de Floch pelo que se deduziu até aqui, é possível propor, além de quatro espécies diferentes de figurativização do divino, o percurso de suas interações lógicas na estrutura do quadrado semiótico: (Homero)

(Jandl)

Referencial

Mítico

Substancial

Oblíquo

(Milton)

(Dante)

Não busco, com este estudo, sustentar que esta disposição lógica seja a resposta final para a questão de Deus(es) na literatura. Muito pelo contrário, reconheço suas limitações. A cada divergência nova que se soma ao debate, no entanto, somos capazes de assentar mais um tijolo na infinita empreitada de erigir esta Babel das definições humanas. Estando este, portanto, já bem moldado, encaixo-o no pé de nossa torre prometeica, aguardando que sobre ele se construa mais, ou que por outro ele seja inevitavelmente removido.

22

7. Referências ASIMOV, I. The Last Question. Disponível em: . Acesso em: 20 de março de 2016. BAILLY, Anatole. Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000. CASSIRER, E. An Essay on Man. New Haven: Yale University Press, 1992. COGAN, M. The Design in the Wax: the structure of the Divine Comedy and its meaning. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1999. DANTE, A. A Divina Comédia – Paraíso. Trad. Ítalo Eugênio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2010. EINSTEIN, A. Como Vejo o Mundo. São Paulo: Cia. das Letras, 2015. ELIADE, M. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2013. FLOCH, J. M. Sémiotique, marketing et communication. Paris: PUF, 1995. HOMERO. Ilíada. Disponível em: . Acesso em: 20 de março de 2016. ______ . Odisseia. Disponível em: Acesso em: 20 de março de 2016. JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 2010. ______ . Poética em Ação. São Paulo: Perspectiva, 2012. LEONARD, J. Introduction to Paradise Lost. In MILTON, J. Paradise Lost. Suffolk: Penguin Books, 2000. RYAN, C. The theology of Dante. In JACOFF, R. The Cambridge Companion to Dante. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. PAZ, O. Os Filhos do Barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. PERLOFF, M. Unoriginal Genius: poetry by other means in the new century. Londres: University of Chicago Press, 2010. PIETROFORTE, A. V. S. A significação musical: um estudo da música instrumental erudita. São Paulo: Annablume, 2015. SAUSSURE, F. Cours de Linguistique Générale. Paris: Payot, 2005. TORRANO, J. A. A. O pensamento mítico no horizonte de Platão. São Paulo: Annablume, 2013.

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